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Teoria da comunicação
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do
Livro, SP, Brasil)
Sodr,Muniz, 1942Antropolgica do espelho : uma teoria da comunicao linear e
em rede / Muniz Sodr. - Petrpolis, RJ : Vozes, 2002.
ISBN 85.326.2684-X
Bibliografia.
1. Antropologia social 2. Comunicao e cultura I. Ttulo.
01-6228
CDD-302.2
ndices para catlogo sistemtico:
1. Comunicao em rede : Cincias sociais 302.2
2. Comunicao linear : Cincias sociais 302.2
Muniz Sodr
Antropolgica do espelho
Uma teoria da comunicao linear e em rede
Va EDITORA VOZES
Petrpolis
2002
2002, Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Lus, 100
25689-900 Petrpolis, RJ
Internet: http://www.vozes.com.br
Brasil
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poder ser reproduzida ou
transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrnico ou mecnico,
incluindo
fotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permisso
escrita da Editora.
Editorao e org. literria: Femanda Rezende Machado
ISBN 85.326.2684-X
Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.
Este livro parte de uma pesquisa empreendida sob os auspcios do Conselho
Nacional de Pesquisas Cientficas (CNPq), ao qual agradeo.
Sumrio
Apresentao, 9
I - O ethos midiatizado, 11
1. Um quarto bios, 21
2. Efeitos polticos, 28
3. Um espao evanescente, 38
4. Habitao e costumes, 45
5. O caos e o ndice, 53
6. Uma outra realidade, 60
7. A teodicia do mercado, 67
8. O ultra-humano planetrio, 72
9. Coexistncia e integrao, 78
II - A hexis educativa, 83
1. Humanismo e trabalho, 87
2. Um novo paradigma?, 91
3. Mutaes pedaggicas, 96
4. Tecnicismo e privatismo, 101
5. Finalidade e sentido, 107
in - Virtus como metfora, 119
1. A questo da conscincia, 126
2. Noosfera e cultura, 130
3. A coisa e sua projeo, 138
4. Identidades novas, 149
5. Dessubjetivao e integrao sistmica, 158
IV - Communitas, ethik, 169
1. Razo e consenso, 185
2. Comum, pblico, consciente, 193
3. Uma tica, por qu?, 201
V - Comunicatio e epistme, 221
1. Autonomia do campo, 232
Bibliografia seleta, 261
Apresentao
Espelho - com seus espectros - metfora para o novo ordenamento artificial do
mundo e suas resultantes em termos de poder, identidade, mentalidade e conduta.
figura relativa tanto mdia linear ou tradicional quanto s teletecnologias,
comunicao em rede ou simplesmente "hipermdia" que, vetorizadas pelo
universalismo
jurdico e pelo mercado, vm produzir transformaes importantes no modo de
presena do indivduo no mundo contemporneo.
Vamos levar em considerao:
- a transformao da pauta de interesses e costumes, por efeito de uma
qualificao virtualizante da vida: o que se descreve em 1) O ethos
midiatizado;
- a transformao das referncias simblicas com que se forma (educacionalmente,
politicamente) a conscincia de jovens e adultos: o que se discute em 2) A
hexis
educativa;
- a transformao dos modos operativos da conscincia, isto , dos processos de
construo da realidade, da memria e da identificao dos sujeitos: o que se
especula
em 3) Virtus como metfora;
- a transformao do campo das normas e valores de sociabilidade: o que se
apresenta em 4) Communitas, ethik;
- a transformao do sistema de pensamento pelo qual se vem tradicionalmente
aferindo os fatos socioculturais: o que se sugere em 5) Communicatio e
epistme.
I
O etnos midiatizado
Aqui se vai procurar mostrar que a mdia ("meios" e "nipermeios") implica uma
nova qualificao da vida, um bios virtual. Sua especificidade, em face das
formas
de vida tradicionais, consiste na criao de uma eticidade (costume, conduta,
cognio, sensorialismo) estetizante e
vicaria, uma espcie de "terceira" natureza.
A maneira do "anjo", mensageiro de um poder simultneo, instantneo e global
exercido num espao etreo, as tecnologias da comunicao instituem-se como
"toca de
Deus": uma sintaxe universal que fetichiza a realidade e reduz a complexidade
das antigas diferenas ao unum do mercado. ..-. A ,
A virada do sculo coincide com a passagem da comunicao centralizada.,
vertical e unidirecional (comunicao de massa, identificada por Edgar Morin num
texto clebre
como o "esprito do tempo") as possibilidades trazidas pelo avano tcnico das
telecomunicaes, relativas interatividade e ao multimidialismo. H quem a
elas
se refira como tecnologias "ps-miditicas".
As novas tecnologias apoiam e coincidem, em termos econmi cos, com a
extraordinria acelerao da expanso do capital (o "turf bocapitalismo") esse
processo tendencial de transnacionalizao do ' sistema produtivo e de
atualizao do velho liberalismo de Adam t Smith a que se vem chamando de
"globalizao"
e cuja autopropa
ganda, atravessada pela ideologia do pensamento nico, lhe atribui poderes
universais de uniformizao. Na realidade, esta ltima
caracterstica mais postulado
do que fato, uma vez que a globalizao mostra-se, claramente regional (os
investimentos concentram-se em determinadas regies do mundo) no seu modo de
ao. Global
mesmo a medida da velocidade de deslocamentos de capitais e
11
informaes, tornados possveis pelas teletecnologias - globalizao ,
portanto, um outro nome para a "teledistribuio" mundial de pessoas e coisas.
De fato, o que
o fenmeno globalista (j antigo) tem de muito novo no fim deste milnio - alm
da "financeirizao" do mundo capitaneada pela vocao imperial dos Estados
Unidos
- primeiramente uma base material caracterizada por verdadeira mutao
tecnolgica, que decorre de macia concentrao de capital em cincias como
engenharia microeletrnica
(nanotecnologia), computao, biotecnologia e fsica. Em seguida, esbatida
contra este pano de fundo, a "informao", palavra de grande ambigidade
semntica, mas
que vem designando modos operativos, baseados na transmisso de sinais, desde
estruturas puramente matemticas at as organizacionais e cognitivas.
No mercado, o termo informao recobre uma variedade de formas (filmes,
notcias, sons, imagens, dgitos, etc.), definidas em ltima anlise como
"fontes de dados"
e economicamente caracterizveis como produtos. Sobre este ltimo tipo de
informao incide principalmente a mutao, que favorece o intercmbio ampliado
e acelerado
entre naes. Sobre os novos produtos no paira mais o temor - tpico dos anos
1960 e 1970 - de destruio da "alta cultura" por uma suposta homogeneizao
inapelvel
da "cultura de massa", uma vez que as fronteiras entre ambas se apagam diante da
onda planetarista da globalizao ou da chamada "sociedade da informao",
indiferente
a tudo que no seja a velocidade de seu processo distributivo de capitais e
mensagens.
No faltam os que exaltem o computador e a Internet como "a verdadeira revoluo
do sculo", comparvel imprensa de tipos mveis de Gutenberg, que modificou a
maneira de pensar e aprender. E corrente a expresso "Revoluo da Informao",
como um sucedneo de "Revoluo Industrial", para designar os impactos em curso.
A palavra "revoluo" pode revelar-se, aqui, enganosa. Ela sempre implicou o
inesperado do acontecimento (portanto, o transe de uma ruptura) e o vigor tico
de um
novo valor. Revoluo no conceito que se reduza ao da mudana pura e simples,
uma vez que seu horizonte teleolgico acena tico-politicamente com uma nova
justia.
As transformaes tecnolgicas da informao mostram-se
12
francamente conservadoras das velhas estruturas de poder, embora possam aqui e
ali agilizar o que, dentro dos parmetros liberais, se chamaria de
"democratizao".
Mesmo do ponto de vista estritamente material, mutao tecnolgica parece-nos
expresso mais adequada do que "revoluo", j que no se trata exatamente de
descobertas
linearmente inovadoras, e sim da maturao tecnolgica do avano cientfico, que
resulta em hibridizao e rotinizao de processos de trabalho e recursos
tcnicos
j existentes sob outras formas (telefonia, televiso, computao) h algum
tempo. Hibridizam-se igualmente as velhas formaes discursivas (texto, som,
imagem),
dando margem ao aparecimento do que se tem chamado de hipertexto ou hipermdia.
com a Revoluo Industrial ocorreu algo semelhante, como bem assinala Drucker1.
A mquina a vapor (transformadora da relao matria/energia) foi, assim como o
computador
para a contemporaneidade, o gatilho das transformaes que levaram mecanizao
da produo de bens. Mas o impacto efetivamente revolucionrio, no sentido da
transformao
de economia, poltica e vida social, deu-se com a inveno da ferrovia - uma
recombinao de recursos tcnicos j existentes -, que unificou naes e
mercados,
modernizando processos e mentalidades. O "novo", como se v, consistiu
propriamente no aumento da velocidade de deslocamento ou "distribuio" de
pessoas e bens no espao.
A se nucleava propriamente o poder civilizatrio do industrialismo europeu.
Isto fica sintomaticamente explicitado na declarao de uma escritora inglesa,
Mary
Kingsley, ao retornar de uma visita frica, uma dcada depois da diviso
daquele continente entre as potncias imperialistas da Europa (1884): "[...] O
que me
deixa orgulhosa de ser inglesa no so as nossas maneiras e costumes [...],
aquilo que est corporificado nas ferrovias. [...] a manifestao da
superioridade
da minha raa".
No que diz respeito Revoluo da Informao, novo mesmo o fenmeno da
estocagem de grandes volumes de dados e a sua rpida transmisso, acelerando, em
grau indito
na Histria, isto que se tem revelado uma das grandes caractersticas da
Modernidade - a
f
l.Cf. Drucker, Peter. O futuro j chegou. Revista Exame, de 22/03/2000, p. 113-
126.
13
mobilidade ou a circulao das coisas no mundo. Se a Industrial centrou-se na
mobilidade espacial, a da Informao centra-se na virtual anulao do espao
pelo tempo,
gerando novos canais de distribuio de bens e a iluso da ubiqidade humana.
Reencontra-se a parcialmente o sentido grego de economia, que era propriamente
distribuio ordenada dos bens - o nomos da palavra oikonomos deriva do verbo
nemein,
que significa propriamente apascentar, bem distribuir o rebanho no espao, no
ritmo adequado. O nomos da modernidade tardia caracteriza-se por velocidade e
fluidez
dos processos.
Esta a singularidade ou o esprito do tempo presente. Frente aos tericos que
buscam caracterizar a sociabilidade atual a partir da metfora explicativa da
"rede"
(onde as conexes e as intersees tomam o lugar do que seria antes pura
linearidade, caracterstica do "telgrafo"), preciso abandonar a iluso de uma
originalidade
substancialista desta hiptese e trabalh-la, sob o prisma da velocidade e
fluidez das conexes. O diferencial a acelerao distributiva (o oikonomos
intensificado)
dos processos. No , portanto, a mera presena macia da tcnica nos processos
sociais, e sim a singular relao intensificadora das neotecnologias com o fluxo
temporal.
Entram em questo as novas nuances da economia capitalista, que tendem a
favorecer uma catalaxia, ou seja, um ordenamento mercadolgico do mundo, para
alm de qualquer
desgnio humano. Isto se realiza historicamente por meio de polticas
diferenciadas em seus modos de aplicao, mas com um denominador comum
configurvel como um
novo tipo de ideologia planetarista capaz de perpassar as instncias econmicas,
polticas, sociais e culturais.
Em termos pblicos, o fenmeno recebe o nome de globalizao, mas politicamente
coincide com a ideologia do "neoliberalismo", uma plataforma econmico-poltico-
social-cultural,
empenhada em governo mnimo, fundamentalismo de mercado, individualismo
econmico, autoritarismo moral e outros. A exacerbao desta ideologia em
governos ou doutrinas,
tais como os da inglesa Margaret Thatcher ou do norte-americano Ronald Reagan,
pode eventualmente conhecer um recesso. Mas, de um modo geral, livre trnsito de
commodities
e a velocidade circulatria dos capitais especulativos so valores excelsos do
novo "oikonomos".
14
De fato, na esfera econmico-financeira, acelera-se a mobilidade de grandes
massas de capitais. A negociao empresarial e o comrcio por meios eletrnicos
demandam
a mudana de mtodos, gestes e padres de qualificao profissional, ensejando
uma nova cultura pblica, fortemente comprometida com o esprito do tempo em
crescente
hegemonia. No mbito dos objetos tcnicos, o "futuro" comparece na forma de cada
novo indutor de nomadismo e velocidade inscrito num instrumento: fluidez da
telefonia
celular e da Internet, acrescenta-se, por exemplo, o hbrido "Internet mvel",
ou seja, Internet pelo celular para gente em trnsito. No campo da mdia, a
tnica
do discurso social passa da televiso em circuito aberto para as
telecomunicaes por toda parte, avana-se na direo da montagem de infra-
estruturas para as infovias
ou para os servios de informao de alta velocidade.
A acelerao do processo circulatrio dos produtos informacionais (culturais)
tem-se chamado de comunicao, nome de velha cepa que antes designava uma outra
idia:
a vinculao social ou o ser-em-comum, problematizado pela dialtica platnica,
pela koinoniapolitik aristotlica e, ao longo dos tempos, pela palavra
comunidade.
Daqui parte a comunicao de que hoje se fala, mas vale precisar que no se
trata exatamente da mesma coisa - ela agora integra o plano sistmico da
estrutura de
poder.
com efeito, j lugar-comum afirmar que o desenvolvimento dos sistemas e das
redes de comunicao transforma radicalmente a vida do homem contemporneo,
tanto nas
relaes de trabalho como nas de sociabilizao e lazer. Mas nem sempre se
enfatiza que est primeiramente em jogo um novo tipo de exerccio de poder sobre
o indivduo
(o "infocontrole", a "datavigilncia"). Os sistemas informacionais e as redes de
telecomunicaes, originalmente concebidos no mbito estratgico das mquinas
blicas
e de controle da populao civil preconizadas pela Guerra Fria, ampliam-se
continuamente como gigantesco dispositivo de espionagem global, controlado
principalmente
pela rede de inteligncia norte-americana, centralizada na National Security
Agency (NSA).
So sintomticos os debates realizados no Parlamento europeu, no final do
milnio, sobre o chamado "Echelon", sistema utilizado para a prtica de
espionagem econmica
e industrial em pases da
15
Unio Europia, assim como na China, Rssia e Amrica Latina. Em meados do ano
2000, avaliava-se que o sistema seria capaz de realizar diariamente trs bilhes
de
interceptaes de mensagens2.
Tudo isso se pe hoje a servio no apenas do Estado, mas tambm das grandes
organizaes civis (empresas multinacionais, corporaes de servios, etc.)
que,pari
passu com o aumento exponencial de dados sobre consumidores reais e virtuais,
consolidam pela vigilncia contnua o seu poder de identificao e imobilizao
dos
antigos cidados polticos nas funes atribudas pelo mercado.
Est depois em jogo um novo tipo de formalizao da vida social, que implica uma
outra dimenso da realidade, portanto formas novas de perceber, pensar e
contabilizar
o real. Impulsionadas pela microeletrnica e pela computao ou informtica, as
neotecnologias da informao introduzem os elementos do tempo real (comunicao
instantnea,
simultnea e global) e do espao virtual (criao por computador de ambientes
artificiais e interativos), tornando "compossveis" outros mundos, outros
regimes de
visibilidade pblica. Mas tambm intensificando os cenrios de antecipao dos
acontecimentos, o que de algum modo neutraliza a abertura para o futuro.
Na realidade, toda e qualquer sociedade constri (por pactos semnticos ou
semiticos), de maneira mais ostensiva ou mais secreta, regimes auto-
representativos ou
de visibilidade pblica de si mesma. Os processos pblicos de comunicao, as
instituies ldicas, os espaos urbanos para os encontros da cidadania integram
tais
regimes.
No sistema moderno de comunicao das sociedades ocidentais, seja baseado na
transmisso oral ou na escrita, as informaes eram simplesmente representadas,,
isto
, apresentadas ao receptor numa forma isenta de sua dinmica ou de seu fluxo
original, o que implica como principais recursos de linguagem a palavra e o
conceito.
Nesta esfera movem-se o livro e a imprensa clssica, caracterizada pela
ideologia poltica das liberdades civis e do discurso crtico.
com as tecnologias do som e da imagem (rdio, cinema, televiso), constituiu-se
o campo do audiovisual, e o receptor passou a 2. Em La marca de Ia bestia -
Identificacin, desigualdades e infoentretenimiento en Ia sociedad contempornea
(Editorial Norma, 1999), Anbal Ford traa um
quadro bastante preciso dessa questo.
16
acolher o mundo em seu fluxo, ou seja, fatos e coisas reapresentados a partir da
simulao de um tempo "vivo" ou real, na verdade uma outra modalidade de
representao,
que supe um outro espao-tempo social (imaterialmente ancorado na velocidade do
fluxo eletrnico), um novo modo de auto-representao social e, por certo, um
novo
regime de visibilidade pblica. Fala-se aqui, por conseguinte, de simulao,
quer dizer, da existncia de coisa ou fato gerados por tcnicas analgicas
(ondas hertzianas,
transmisso por cabo).
A partir do computador, a simulao digitaliza-se (a informao veiculada por
compresso numrica) e, nos atuais termos tecnolgicos, passamos da dominncia
analgica
digital, embora os dois campos estejam em contnua interface. Da decorre a
conformao atual da tecnocultura, uma cultura da simulao ou do fluxo, que faz
da
"representao apresentativa" uma nova forma de vida. Saber e sentir ingressam
num novo registro, que o da possibilidade de sua exteriorizao objetivante,
de
sua delegao a mquinas.
Atesta-se a presena, no atual regime de visibilidade, de um verdadeiro
paradigma analgico-digital, que introduz novas variveis tcnicas, econmicas e
polticas.
Vejamos as tcnicas: a convergncia digital reduz as barreiras materiais,
permitindo a unificao de telefonia, radiodifuso, computao e imprensa
escrita; alm
disso, registra-se em determinados pases uma tendncia para a aproximao entre
o campo comunicacional e toda e qualquer empresa que trabalhe com fluxo ou rede,
a exemplo de eletricidade, eletrnica, transportes, etc.
Em seguida, as econmicas: do lado da produo, a tendncia de fuso das
indstrias setoriais, gerando conglomerados poderosos (seis grandes empresas
dominam hoje
o mercado mundial) enquanto que do lado do consumo prev-se maior ajuste entre a
oferta e demanda (um exemplo a televiso digital, de alta definio, que
permite
ao usurio "montar" o seu prprio programa), capaz de levar a redefinio da
relao produto/consumidor3. Mas preciso observar que,
3. No final do milnio, a "economia digital" - comrcio eletrnico e indstrias
de tecnologia da informao - j era o setor econmico de maior crescimento nos
Estados
Unidos, embora com uma participao ainda relativamente modesta de 1,7% do
Produto Nacional Bruto. Mas o setor tornou-se responsvel por cerca de um quarto
de toda
a capitalizao do mercado de aes norte-americano,
o que significa um papel central na dinamizao do crescimento tanto do mercado
de consumo quanto do investimento de capitais.
17
apesar dos discursos sobre o "acesso universal", o consumo desses produtos
cada vez mais privatizado e socialmente diferenciado; e polticas: na medida em
que
as indstrias da telefonia e da computao avanam sobre o territrio
tradicionalmente ocupado pela radiodifuso em circuito aberto, abrem-se as vias
para o redesenho
do controle poltico dos meios de comunicao; tais vias, entretanto, dentro do
atual modelo neoliberal para a mdia, favorecem quase exclusivamente apenas o
setor
privado das comunicaes.
enorme o impacto da chamada "economia digital" sobre o mundo do trabalho e
sobre a cultura: na indstria, na pesquisa cientfica, na educao, no
entretenimento,
as novas variveis transformam velozmente a vida das pessoas. Um sistema
produtivo pode fragmentar-se numa escala global, organizando a diviso do
trabalho segundo
suas convenincias regionais ou sindicais. O comrcio mundial tende a confluir
para a rede ciberntica, abrindo possibilidades de novos empregos e atividades
rendosas.
Desenha-se a partir da a possibilidade de um novo tipo de empresa, a "empresa
virtual", definida como uma estrutura hbrida de atividades organizadas, mas sem
a
dependncia constante de decises hierrquicas ou de canais de controle.
Ao mesmo tempo, o virtual representa no mbito da economia a possibilidade de se
agir generalizadamente em funo de expectativas difusas, indeterminadas. Marx
j
falava de "capital fictcio", uma outra dimenso da ratio econmica, onde se
especula com opes reais para um futuro imaginrio. As opes podem,
estrategicamente,
tornar-se mais importantes que os lucros especulativos imediatos. A exacerbada
mobilidade contempornea torna aguda a conscincia de que preciso acompanhar
as
mudanas, mesmo sem que se conhea exatamente a sua natureza.
Por exemplo, no final do sculo XX, as aes das empresas que trabalhavam com a
Internet (ditas "pontocom") passaram a ter muito valor, embora a maioria tivesse
lucro inexpressivo ou at mesmo operasse no vermelho. O que importava era o
potencial de lucro implicado na empresa. Evidentemente, isto no poderia durar
muito
tempo, uma vez que existe o contrapeso concreto da economia: muitas das empresas
ditas "virtuais" terminaram em falncia, seno expulsas do mercado por aquelas
que
efetivamente dispunham de sustentao no mundo "real-histrico".
18
largo, no entanto, o espectro das transformaes epocais. Muda, por exemplo, a
natureza do espao pblico, tradicionalmente animado pela poltica e pela
imprensa
escrita. Agora, formas tradicionais de representao da realidade e novssimas
(o virtual, o espao simulativo ou telerreal da hipermdia) interagem,
expandindo
a dimenso tecnocultural, onde se constituem e se movimentam novos sujeitos
sociais.
A imprensa escrita, como apontam vrios analistas de mdia, sempre esteve no
centro desse processo representativo. Numa perspectiva diacrnica, pode-se
formular
para ela modelos diversos de comunicao, correspondentes a diferentes etapas
histricas nas sociedades liberais-democrticas.
Mige4, por exemplo, distingue quatro modelos: 1) imprensa de opinio -
caracterizada pela produo artesanal, tiragens reduzidas, estilo polmico e
manifestao
de idias; foi o tipo de imprensa que introduziu no espao pblico a razo
argumentativa cara burguesia ascendente; 2) imprensa comercial - organizada em
bases
industriais/mercantis, com prioridade para a publicidade e a difuso informativa
(notcia), politicamente ligada democracia parlamentar; 3) mdia de massa -
produo
definitivamente dependente de investimentos publicitrios e tcnicas de
marketing, predomnio das tecnologias audiovisuais e grande valorizao do
espetculo; 4)
comunicao generalizada - a reboque do Estado, das grandes organizaes
comerciais e industriais, dos partidos polticos, a informao insinua-se nas
clssicas
estruturas socioculturais e permeia as relaes intersubjetivas; trata-se aqui
do que tambm se vem chamando de realidade virtual.
Na contemporaneidade, d-se progressivamente primazia ao quarto modelo, em que a
rede tecnolgica praticamente confunde-se com o processo comunicacional e em que
o resultado do processo, no mbito da grande mdia, a imagem-mercadoria. Mas
no se recusam os modelos anteriores. Podem todos coexistir sincronicamente, num
mesmo
espao social, desde que se integrem num mesmo plano tecnolgico e econmico.
Assim, a convergncia do computador
4. Cf. Mige, Bemard. O Espao pblico: Perpetuado, ampliado e fragmentado. In'.
Novos Olhares, nmero 3, l" semestre de 1999 - ECA/USP, p. 4-11.
19
com a televiso pode ascender, mas no interior do modelo neoliberal para o setor
da mdia e das telecomunicaes. isto mesmo a dita "sociedade da informao":
um slogan tecnicista, manejado por industriais e polticos.
Nada h aqui do que antes se chamaria de "revolucionrio". H to-s
hibridizao dos meios, acompanhada da reciclagem acelerada dos contedos
(sampling, no jargo
da tecnocultura), com novos efeitos sociais. Uma frmula j antiga, como o
noticirio jornalstico, quando transmitida em tempo real, torna-se estratgica
nos termos
globalistas do mercado financeiro: um pequeno boato pode repercutir como
terremoto em regies do planeta fisicamente distantes.Uma enciclopdia
temporalmente acelerada
torna-se "hipertexto".
Apoiadas no computador, as redes e as neotecnologias do virtual deixam intacto,
todavia, o conceito de mdium, entendido como canalizao - em vez de inerte
"canal"
ou "veculo" - e ambincia estruturados com cdigos prprios. inadequada, por
isto, a designao de "ps-miditicas" - baseada na considerao de que a nova
mdia
no implica apenas uma extenso linear da tradicional - para as novas
tecnologias.
Mdium, entenda-se bem, no o dispositivo tcnico. Um exemplo comparativo: o
gnero musical conhecido como "rock'n roll" , na verdade, o negro rythm'n
blues,
acoplado ento novidade tcnica do disco de vinil em 33 rotaes por minuto e
socialmente produzido por rdio (disc-jockey) e mercado. Da mesma maneira,
mdium
o fluxo comunicacional, acoplado a um dispositivo tcnico ( base de tinta e
papel, espectro hertziano, cabo, computao, etc.) e socialmente produzido pelo
mercado
capitalista, em tal extenso que o cdigo produtivo pode tornar-se "ambincia"
existencial. Assim, a Internet, no o computador, mdium.
O mdium televisivo (com possibilidades de mutao tcnica, a exemplo das
previses de especialistas sobre o "telecomputador") permanece ainda hoje como
fulcro da
mdia tradicional, enquanto que o virtual e as redes (Internet), at agora
isentos do regime de concesses estatais, apontam para caminhos ainda no
totalmente
discernveis.
Indiscutvel a evidncia de que tempo real e espao virtual operam
midiaticamente o redimensionamento da relao espcio-temporal clssica.
20
1. Um quarto bios
Tudo isto, associado a um tipo de poder designvel como "ciberocracia", confirma
a hiptese, j no to nova, de que a sociedade contempornea (dita "ps-
industrial")
rege-se pela midiatizao, quer dizer, pela tendncia "virtualizao" ou
telerrealizao das relaes humanas, presente na articulao do mltiplo
funcionamento
institucional e de determinadas pautas individuais de conduta com as tecnologias
da comunicao. A estas se deve a multiplicao das tecnointeraes setoriais.
preciso esclarecer o alcance do termo "midiatizao", devido sua diferena
com "mediao" que, por sua vez, distingue-se sutilmente de "interao", um dos
nveis
operativos do processo mediador. com efeito, toda e qualquer cultura implica
mediaes simblicas, que so linguagem, trabalho, leis, artes, etc. Est
presente na
palavra mediao o significado da ao de fazer ponte ou fazer comunicarem-se
duas partes (o que implica diferentes tipos de interao), mas isto na verdade
decorrncia
de um poder originrio de descriminar, de fazer distines, portanto de um lugar
simblico, fundador de todo o conhecimento. A linguagem por isto considerada
mediao
universal.
Para inscrever-se na ordem social, a mediao precisa de bases materiais, que se
consubstanciam em instituies ou formas reguladoras do relacionamento em
sociedade.
As variadas formas da linguagem e as muitas instituies mediadoras (famlia,
escola, sindicato, partido, etc.) investem-se de valores (orientaes prticas
de conduta)
mobilizadores da conscincia individual e coletiva. Valores e normas
institucionalizados legitimam e outorgam sentido social s mediaes.
J midiatizao uma ordem de mediaes socialmente realizadas no sentido da
comunicao entendida como processo informacional, a reboque de organizaes
empresariais
e com nfase num tipo particular de interao - a que poderamos chamar de
"tecnointerao" -, caracterizada por uma espcie de prtese tecnolgica e
mercadolgica
da realidade sensvel, denominada mdium?. Trata-se de dispositivo
5.O espelho , na Histria humana, a prtese primitiva que mais se assemelha ao
mdium contemporneo, guardadas as devidas diferenas. que o espelho -
superfcie
capaz de refletir a radiao luminosa - traduz reflexivamente o mundo sensvel,
fechando em sua rasa superfcie tudo aquilo que reflete. O mdium, por sua vez,
simula
o espelho, mas no jamais puro reflexo, por
ser tambm um condicionador ativo daquilo que diz refletir.
VtorHighlight
VtorHighlight
VtorHighlight
VtorHighlight
VtorHighlight
VtorHighlight
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VtorHighlightCondicionador: conjunto de regras intituidas pelo medium
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cultural historicamente emergente no momento em que o processo da comunicao
tcnica e industrialmente redefinido pela informao, isto , por um regime
posto
quase que exclusivamente a servio da lei estrutural do valor, o capital, e que
constitui propriamente uma nova tecnologia societal (e no uma neutra
"tecnologia
da inteligncia") empenhada num outro tipo de hegemonia tico-poltica.
A astcia das ideologias tecnicistas consiste geralmente na tentativa de deixar
visvel apenas o aspecto tcnico do dispositivo miditico, da "prtese",
ocultando
a sua dimenso societal comprometida com uma forma especfica de hegemonia, onde
a articulao entre democracia e mercadoria parte vital de estratgias
corporativas.
Essas ideologias costumam permear discursos e aes de conglomerados
transnacionais e de idelogos dos novos formatos de Estado.
Aplicado a mdium, o termo "prtese" (do grego prosthenos, extenso),
entretanto, no designa algo separado do sujeito, maneira de um instrumento
manipulvel,
e sim aforma tecnointeracional resultante de uma extenso especular ou espectral
que se habita, como um novo mundo, com nova ambincia, cdigo prprio e
sugestes
de condutas. Isto eqivale a dizer que essa forma que no se pode
instrumentalizar por inteiro, isto , objetiv-la socialmente como um
dispositivo submetido a
um sujeito, por ser uma entidade capaz de uma retroao expropriativa de
faculdades tradicionalmente atinentes soberania do sujeito, como saberes e
memria.
J existe, alis, algo de especular em toda e qualquer conduta, como bem viu
Goethe, ao dizer que "a conduta o espelho em que todos exibem a sua imagem".
Mas a
canalizao em que implica a prtese miditica no se confunde com a prtese
clssica de um espelho, ainda que possa, a exemplo da imagem especular, ser
chamada
de "extensiva e intrusiva", por nos permitir olhar onde o olho no alcana (o
rosto, as costas, etc.). A palavra deve ser agora tomada como metfora
intelectiva,
para um ordenamento cultural da sociedade em que as imagens deixam de ser
reflexos e mscaras de uma realidade referencial para se tornarem simulacros
tecnicamente
auto-referentes, embora poltico-economicamente a servio de um novo tipo de
gesto da vida social.
22
No espelhamento de parte da mdia tradicional ou "linear" (cinema, televiso),
ainda se mostra ou se aponta com imagens "paraespeculares", para um espao
externo
(como na figura retrica da hipotipose), que se busca representar
realisticamente. Ou seja, ainda h na representao um efeito irradiado do
referente externo. J
nos ambientes digitais da nova mdia, porm, o usurio pode "entrar" e mover-se,
graas interface grfica, trocando a representao clssica pela vivncia
apresentativa.
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O "espelho" miditico no simples cpia, reproduo ou reflexo, porque implica
uma forma nova de vida, com um novo espao e modo de interpelao coletiva dos
indivduos,
portanto, outros parmetros para a constituio das identidades pessoais.
Dispe, conseqentemente, de um potencial de transformao da realidade vivida,
que no
se confunde com manipulao de contedos ideolgicos (como se pode s vezes
descrever a comunicao em sua forma tradicional). forma condicionante da
experincia
vivida, com caractersticas particulares de temporalidade e espacializao, mas
certamente distinta do que Kant chamaria, a propsito de tempo e espao, de
forma
a priori.
A forma miditica condiciona apenas na medida em que se abre a permeabilizaes
ou permite hibridizaes com outras formas vigentes no real-histrico. Trata-se
de
fato da afetao de formas de vida tradicionais por uma qualificao de natureza
informacional uma tecnologia societal, como j frisamos - cuja inclinao no
sentido
de configurar discursivamente o funcionamento social em funo dos vetores
mercadolgicos e tecnolgicos caracterizada por uma prevalncia da forma (que
alguns
autores preferem chamar de "cdigo"; outros, de "meio") sobre os contedos
semnticos.
So os aspectos de hipertrofia e de um certo vampirismo dessa forma codificante
e tecnointeracional que suscitam as desconfianas de crticos da cultura tardo-
moderna
(como Baudrillard), mas que tambm atraem as alvssaras de outros, a exemplo de
McLuhan, para quem nessa forma-meio est a prpria mensagem, isto , o contedo.
Nela se pem em primeiro plano o envolvimento sensorial, a pura relao, a
"mensagem".
23
Todo este processo uma expanso do que Giddens chama de "reflexividade
institucional" - um dos motores da modernidade -, ou seja, o uso sistemtico da
informao
ou do saber com vistas reproduo de um sistema social6. Na modernidade
clssica, a reflexividade histrica uma pletora de recursos racionais
(filosofia, cincias
sociais, publicismo, etc.) aplicada vida caracterizava-se por uma competncia
analtica voltada para a compreenso dos fenmenos humanos e sociais: a auto-
reflexividade,
exaltada como uma demonstrao da soberania do esprito.
Hoje, o processo redunda numa "mediao" social tecnologicamente exacerbada, a
midiatizao, com espao prprio e relativamente autnomo em face das formas
interativas
presentes nas mediaes tradicionais. A reflexividade institucional agora o
reflexo tornado real pelas tecnointeraes, o que implica um grau elevado de
indiferenciao
entre o homem e a sua imagem - o indivduo solicitado a viver, muito pouco
auto-reflexivamente, no interior das tecnointeraes, cujo horizonte
comunicacional
a interatividade absoluta ou a conectividade permanente.
Desde o imediato ps-guerra, esse processo vem alterando costumes, crenas,
afetos, a prpria estruturao das percepes e agora se perfaz com a integrao
entre
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os mecanismos clssicos da representao e os dispositivos do virtual. Mas o
conceito de midiatizao ao contrrio do de mediao - no recobre a totalidade
do campo
social, e sim, como j frisamos, o da articulao hibridizante das mltiplas
instituies (formas relativamente estveis de relaes sociais comprometidas
com finalidades
humanas globais) com as vrias organizaes de mdia, isto , com atividades
regidas por estritas finalidades tecnolgicas e mercadolgicas, alm de
culturalmente
afinadas com uma forma ou um cdigo semitico especfico.
Implica a midiatizao, por conseguinte, uma qualificao particular da vida, um
novo modo de presena do sujeito no mundo ou, pensando-se na classificao
aristotlica
das formas de vida, um bios especfico. Logo nas primeiras pginas de sua tica
a Nicmaco,
6. Cf. Giddens, A. Une Thore Critique de Ia Modemit Avance. In:
Structuration du Social et ModemitAvance. Org.: Michel Audet et Hamid
Bouchikhi, PUL, Quebec.
Aristteles distingue, a exemplo do que j fizera Plato no Filebo, trs gneros
de existncia (bios) na Polis: bios theoretikos (vida contemplativa), bios
politikos
(vida poltica) e bios apolaustikos (vida prazerosa, vida do corpo)7.
Cada bios , assim, um gnero qualificativo, um mbito onde se desenrola a
existncia humana, determinado por Aristteles a partir do Bem (to agathori) e
da felicidade
(eudaimonia) aspirados pela comunidade. A "vida de negcios", a que o filsofo
faz breve referncia no mesmo texto, no constitui nenhum bios especfico, por
ser
motivada por "alguma coisa mais" (entenda-se: mais do que o Bem e a felicidade),
apontada como "algo violento".
Partindo-se da classificao aristotlica, a midiatizao ser pensada como
tecnologia de sociabilidade ou um novo bios, uma espcie de quarto mbito
existencial,
onde predomina (muito pouco aristotelicamente) a esfera dos negcios, com uma
qualificao cultural prpria (a "tecnocultura"). O que j se fazia presente,
por meio
da mdia tradicional e do mercado, no ethos abrangente do consumo, consolida-se
hoje com novas propriedades por meio da tcnica digital.
De fato, as descries correntes de ambientes interativos e imersivos
digitalmente criados apontam para traos anlogos as formas de vida. Murray, por
exemplo, relaciona
propriedades processuais, que consistem em programar e definir aptides para a
execuo de Kgrzs;participatrias, ou seja, programam-se comportamentos e
respostas;
espaciais ou possibilidades de movimentar-se, de "navegar" topologicamente e
enciclopdicas, devido gigantesca capacidade de conservao de dados pelo
computador8.
Nossa idia de um quarto bios ou uma nova forma de vida no meramente
acadmica, uma vez que j se acha inscrita no imaginrio contemporneo sob forma
de fices
escritas e cinematogrficas. Tal , por exemplo, a base narrativa do filme
norte-americano O show de Truman, em que o personagem principal vive numa
comunidade
7. Cf. Aristteles. tica a Nicmaco, livro I, parte 5. Referimo-nos aqui a duas
edies: l)tica Nicomaqueay tica Eudemia. Biblioteca Clssica Credos, 1988; 2)
Nicomachean Ethics. The Univesity of Chicago (traduo de David Ross).
8. Cf. Murray, Janet H. Hamalet on the holodeck: The future ofnarrative in
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cybenpace. The Free Press, 1977, p. 71-89.
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sem saber que todas as suas aes cotidianas, de trabalho, vizinhana, amizade,
amor, etc. so cenarizadas e transmitidas a um pblico mundial, em tempo real,
por
ubquas cmaras de televiso, controladas por tcnicos e um diretor de
programao. A cidade imaginria de Truman de fato uma metfora do quarto
bios, um arremedo
da forma social miditica.
O mesmo princpio imaginrio, embora com diferentes hipteses tecnolgicas, tem
sido trabalhado em filmes como Matrix, O 12 andar, A cidade das sombras e
outros.
Nestes, no se trata mais de um espetculo para a indstria cultural, nem de
mdia tradicional (a televiso), mas de "realidade virtual" produzida por
computao.
Diferentemente de O show de Truman, aqui j se joga com a hesitao coletiva na
determinao do que original (substncia) ou simulado (linguagem, discurso,
informao
numrica) em matria de vida.
Na verdade, h muito tempo se sabe que a linguagem no apenas designativa, mas
principalmente produtora de realidade. A mdia , como a velha retrica, uma
tcnica
poltica de linguagem, apenas potencializada ao modo de uma antropotcnica
poltica - quer dizer, de uma tcnica formadora ou interventora na conscincia
humana
para requalificar a vida social, desde costumes e atitudes at crenas
religiosas, em funo da tecnologia e do mercado.
A questo inicial a de se saber como essa qualificao - historicamente
justificada pelo imperativo de redefinio do espao pblico burgus em face das
mudanas
estruturais, que vm deslocando o Estado liberal clssico e desestruturando a
sociedade de classes tradicional - atua em termos de influncia ou poder na
construo
da realidade social (moldagem de percepes, afetos, significaes, costumes e
produo de efeitos polticos) desde a mdia tradicional at a novssima,
baseada
na interao em tempo real e na possibilidade de criao de espaos artificiais
ou virtuais.
Esta , na verdade, a questo central de toda sociologia ou toda antropologia da
comunicao contempornea. E a maior parte das pesquisas at agora realizadas
sobre
influncia e efeitos, especialmente os polticos, tem levado convico de que
a mdia estruturadora ou reestruturadora de percepes e cognies,
funcionando
como uma espcie de agenda coletiva.
26
Ancora-se nessa convico a hiptese (acadmica) norte-americana da agenda-
setting9, em especial no que diz respeito ao impresso. A palavra agenda , em
latim, um
particpio futuro passivo: "(as coisas que) devem ser feitas". Agendar
organizar a pauta de assuntos suscetveis de serem levados em conta individual
ou coletivamente.
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No se trata de mera preocupao da Academia. A pergunta freqente sobre as
possibilidades de democracia participativa na mdia ou sobre seus poderes de
transformao
social exige um esclarecimento preliminar quanto natureza do poder da
informao, quanto sua especificidade.
Evidente j se fez que a democratizao (ou qualquer ponto-de-fuga para o status
quo monopolista) no nada que se obtenha pela multiplicidade tcnica de
canais,
nem por uma legislao liberal aplicada s telecomunicaes, nem mesmo pela
concentrao de espaos promovida pelas redes cibernticas, que faz os "grandes"
eqivalerem
virtualmente aos "pequenos".
E que a tecnocultura - essa constituda por mercado e meios de comunicao, a do
quarto bios implica uma transformao das formas tradicionais de
sociabilizao,
alm de uma nova tecnologia perceptiva e mental. Implica, portanto, um novo tipo
de relacionamento do indivduo com referncias concretas ou com o que se tem
convencionado
designar como verdade, ou seja, uma outra condio antropolgica.
Do ponto de vista da mdia tradicional - televiso e entretenimento, basicamente
-, o poder da tecnocultura homlogo (e a homologia no se d por acaso, passa
pelo vetor globalizante do chamado "turbocapitalismo" e do mercado) hegemonia
norte-americana no Ocidente, que reside em sua capacidade de formar a agenda
poltica
e noticiosa internacional, de produzir em seus laboratrios e indstrias a maior
parte dos objetos da economia miditica e de atrair as conscincias para uma
forma
de vida sempre modernizadora, por vias do liberalismo democrtico e do consumo.
Na verdade, a lgica dos processos de mdia associa-se, desde fins do sculo
XIX, dinmica da vida norte-americana, assim definida
9. Cf. Mac Comb, M. & Shaw, Donald. The Agenda-Setting Function ofMass-Media.
Public Opinion Quarterly, 36, 72, p. 176/187.
27
pelo presidente Calvin Coolidge: "O negcio dos Estados Unidos so os negcios".
Mas sob o feitio neoliberal assumido pela globalizao no final do milnio,
desde
quando comeou a extraordinria expanso da economia dos Estados Unidos,
exacerbou-se a dimenso imperial (em detrimento da dimenso republicana), do
poder desse
pas sobre o mundo, sobrecarregando o agendamento miditico com as molduras
neoliberais da homogeneizao.
Por mais despolitizado que pretenda parecer, o bios miditico implica de fato
uma refigurao do mundo pela ideologia norte-americana (portanto, uma espcie
de narrativa
poltica), caucionada pelo fascnio da tecnologia e do mercado. Nele, esto
presentes as marcas essenciais de uma "universalidade" americana. Se o Imprio
Romano
dominou o mundo pela espada e pelos ritos, o Imprio Americano controla pelo
capital e pela agenda miditica do democratismo comercial (informao,
difusionismo
cultural, entretenimento). No h nada de verdadeiramente "libertrio" nos ritos
do rock'n roll e do consumo, h to-s coerncia liberal.
2. Efeitos polticos
Agenda no significa, porm, doutrinao ou inculcao de idias em conscincias
dispostas como tabula rasa. Induz s vezes a esta crena o tipo de crtica
dirigido
mdia por militantes polticos ou ento autores como Noam Chomsky e Hans
Magnus Enzensberger, quando a caracterizam como "indstria de manipulao das
conscincias".
Embora seja pondervel o diagnstico de que a mdia restringe, ao invs de
ampliar a liberdade de expresso, esses autores deixam passar despercebida a
dificuldade
da categoria "manipulao", que implica pura linearidade ou instrumentalidade
absoluta do mdium e a hegemonia de uma conscincia sobre a outra. Como j
vimos, inexiste
esse tipo de linearidade, e a prpria mdia, especialmente em sua nova
configurao de plena realidade virtual, j uma nova forma de conscincia
coletiva, com
um modo especfico de produzir efeitos.
Por exemplo, os efeitos polticos: ningum vota num poltico "televisivo" porque
a tev manda, maneira manipulativa do Grande Irmo orwelliano, e sim porque
fez
sua escolha a partir de um
cenrio - que a tev cria por notcias convenientemente editadas, dramas,
espetculos, entrevistas, comentrios -, na verdade, uma "agenda" sub-reptcia
do que deve
ser o poltico ou do que deve fazer o eleitor para tornar-se compatvel com a
modernidade apregoada pela economia de mercado, que por sua vez sustenta a
televiso.
Mas algum pode votar num poltico determinado simplesmente porque ele aparece,
no modo quase-presente da imagem, ocupando o espao publicitrio que lhe foi
reservado
pelas disposies da legislao eleitoral. Ou seja, vota porque o outro
simplesmente existe num espao valorizado (a mdia), o que o torna legitimado
pelo regime
de visibilidade pblica hegemnico. O slogan da Internet - "o que no est na
Internet simplesmente no existe" - aplica-se igualmente mdia tradicional.
Da,
a disputa acirrada dos partidos - nos pases em que h um horrio eleitoral
reservado gratuitamente a polticos - por minutos a mais na televiso.
A anlise de processos eleitorais concretos pode contribuir para o melhor
esclarecimento desse ponto. Por exemplo, a sintomtica eleio de
Fernando Collor de Mello
para a presidncia da repblica brasileira em 1989. Sabe-se que ele detinha o
apoio de setores conservadores da sociedade (desde as elites empresariais e
financeiras
que desejam aumentar a flexibilidade econmica com a manuteno da organizao
tradicional do Estado at os setores privilegiados da classe mdia) e da rede
hegemnica
de televiso (Rede Globo), assustados com a plataforma poltica do Partido dos
Trabalhadores. Restava conquistar a) a massa de eleitores flutuantes ou
indecisos,
em geral os mais suscetveis de serem influenciados nas ltimas horas pelos
meios de comunicao ou pelos resultados da simulao de um "turno eleitoral
antecipado",
em que se constituem as pesquisas de opinio; b) a massa de eleitores
socialmente desarraigados.
As avaliaes estritamente polticas do papel da televiso nesse processo
eleitoral tendem a atribuir um grande peso ao vis da rede hegemnica favorvel
a Collor,
assim como manipulao das imagens no debate final entre os dois candidatos
(mais tempo e melhores momentos para Collor; menos tempo e piores momentos para
Lula,
o candidato do PT). Inicialmente, preciso redefinir a natureza desse "peso":
antes das imagens televisivas favorveis, houve um fato muito importante da
capitalizao
de recursos e de influncias, pelo conglomerado Globo, junto a lideranas de
empresas privadas e estatais.
29
eQuanto s imagens televisivas, no h dvida de que tiveram sua importncia, em
especial nas regies mais remotas do pas (onde a tev o nico canal de acesso
"moderna" realidade nacional), como se evidencia no relato de uma reprter:
"Quando eu perguntava aos ndios que iam votar na penltima eleio para
presidente
da repblica qual era o candidato deles, eles diziam que era Fernando Collor.
Pedia-lhes a razo de tal escolha, e eles diziam que 'todo mundo estava falando
que
ele era o melhor'. Quem era esse todo mundo? Claro, a Rede Globo"10.
Mas a afirmao da influncia televisiva como causa determinante, em ltima
instncia, absolutamente indecidvel: no possvel fazer a prova sociolgica
do fato.
Veja-se, por exemplo, o caso (embora situado num outro contexto) da eleio
presidencial no Peru, em abril de 2000. A mdia dominante, controlada pelo
presidente
da repblica em exerccio, Alberto Fujimori, desfavorecia o principal candidato
da oposio, Alejandro Toledo. Este, no entanto, valeu-se na campanha de sua
origem
indgena (quechua), mobilizando a varivel da etnicidade junto s mesmas massas
que provavelmente elegeram Fujimori uma dcada antes.
Toledo, como se sabe, conseguiu ir para o segundo turno (embora terminasse
desistindo de concorrer), apesar da fraude evidente na contagem dos votos pela
mquina
eleitoral do governo, apoiado por movimentaes populares e presses norte-
americanas no sentido da correo do processo democrtico. Pode-se afirmar que,
aqui,
apesar do resultado final que manteve formalmente Fujimori na presidncia, a
mdia saiu derrotada11. Tempos depois, nas eleies subseqentes, Toledo
chegaria
presidncia da repblica.
No caso brasileiro, entretanto, inexistia qualquer varivel independente daquela
ou de outra natureza. A realidade era que, desde dois anos antes da eleio, a
televiso
vinha construindo junto a um pblico mais amplo, por telenovelas e sub-reptcias
inflexes 10. Cf. Batista, Rosalis e Batista, Oduvaldo. Compromisso com a
Verdade - Meio sculo de jornalismo. Ed. Universitria UFPB, 1999, p. 48.
11. Curiosamente, porm, a prpria mdia, em sua forma "altemativa" (vdeo),
terminou sendo responsvel pelo desmoronamento do governo. As escandalosas
imagens televisivas
do chefe do servio secreto peruano subornando um deputado
levaram Fujimori a primeiramente convocar novas eleies e depois a fugir do
pas, asilando-se no Japo.
30
doutrinrias nos noticirios e programas de entrevistas, um cenrio ou uma
agenda do que deveria ser o chefe-da-nao12. Nessa agenda, ratificada pela
maior parte da
imprensa escrita (por trs da qual se desenha um longo captulo de influncias e
dinheiro), perdia crdito a imagem do poltico tradicional - figurado ora como
corrupto,
ora como idelogo sectrio - e iluminava-se a imagem de um tipo-ideal afim
mitologia do mercado: aspecto jovial, descomprometido com a classe poltica,
investido
das aparncias de sujeito da moral pblica e com toda a cosmtica (pose, roupa,
expresses faciais, gestos) de apresentador de tev.
Neste caso, a ausncia de um programa poltico definido pode concorrer para
estimular o imaginrio popular na direo de um "eu-ideal" qualquer, no
necessariamente
sustentado pela suposta racionalidade do progresso democrtico. Numa populao
constituda em quase dois teros por analfabetos e semi-alfabetizados (a eleio
de
89 foi a primeira a permitir o voto dos analfabetos e dos jovens entre 16 e 18
anos), a maioria fica culturalmente excluda do jogo partidrio. Este to-s a
necessria
base jurdico-constitucional para a continuidade do formalismo democrtico-
representativo.
O modelo serve, com variaes, para Fernando Henrique Cardoso, o primeiro
presidente eleito depois de Collor. Amparado no xito de um plano de
estabilizao monetria,
FHC capitalizou a fora de uma espcie de neopopulismo caracterizado por um
"topo de pirmide" tecnocrtico, por uma base socialmente desarraigada, mas
adulada pela
ligeira elevao da capacidade de consumo e por uma ao governamental apoiada
em imagens miditicas. FHC era tambm interpretante vivo de uma conjuntura
tecnopopulista.
Nas reeleies de 98, ficou mais definido o lugar estratgico da televiso no
jogo poltico-eleitoral. preciso inicialmente considerar que, mesmo
pertencendo a
um bios especfico, a tev no um ator social isolado, est sempre inserida em
contextualizaes de ordem scio-histrica. Colocada dentro de uma tradio
sociocultural
patrimonialista, como a brasileira, a tev, apesar do transnacionalismo de sua
forma, produz efeitos especficos, regionais. Assim que,
12. Cf. Lima, Vencio. Televiso e Poltica: Hiptese sobre a eleio
presidencial de 1989. In: Revista Comunicao & Poltica, ano 9, n 11, 1990, p.
29-54.
31
nos estados da Federao brasileira, as emissoras de tev, rdios e jornais de
maior audincia so totalmente controlados pelas oligarquias, o que obriga as
candidaturas
polticas a passarem pelo crivo dos interesses dominantes e da imagem compatvel
com a mdia13.
Apenas em casos desta ordem, a manipulao categoria pertinente explicao
da influncia televisiva, uma vez que, no mbito regional ou local, o controle
dos
contedos miditicos por grupos polticos determinados termina produzindo um
foco semitico, sistematicamente afim, sem disfarces, interesses e vises-de-
mundo particulares.
Por isto, a posse dos meios de comunicao por elites regionais ou mesmo por
faces orientadas para fins doutrinrios especficos (religiosos, morais, etc.)
redunda
num novo tipo de caciquismo poltico-ideolgico. desta maneira que se mantm
em alguns estados da Federao brasileira o velho "coronelismo" poltico e que,
em
grande parte do mundo, governos autoritrios, manipulando o fluxo de informao,
preservam o controle dos aparatos repressivos de Estado.
Reduzida, assim, a fora universalista e modernizante do mercado em favor de
variveis conjunturais administradas por elites locais ou por sofisticados
dispositivos
de infovigilncia a servio do Estado, os meios de comunicao podem perder
algumas das caractersticas predominantes na mdia mercadolgica de carter
nacional
e converterem-se temporariamente em mecanismos de propaganda poltica (muito bem
descritos no clssico -violao das massas pela propaganda poltica, de Serge
Tchakhotine,
1939), a exemplo de qualquer imprensa partidria ou oficialista. Da, a
importncia estratgica para as coalizes governamentais - especialmente nos
pases ditos
de "terceiro mundo" - do favorecimento estatal nas concesses de rdio e
televiso.
13. A velocidade e a plasticidade da mdia eletrnica ajudam-na a adequar-se
mais facilmente a novas conjunturas institucionais e polticas. Sem a fixao
por escrito
de uma linha ideologicamente coerente, sem memria, excessivamente dependente do
mercado e dos dispositivos legais do Estado, a televiso instrumento de fcil
controle, identitariamente oscilante entre dirio oficial do consumo e dirio
oficial de governo. Vale recordar a tev brasileira sob o regime militar, em
especial
a frase do presidente-ditador Garrastazu Medici sobre o telenoticirio da Tv
Globo: " como tomar um calmante aps um dia de trabalho". So muitos os
exemplos disso,
ainda no final de milnio, em
outros pases latino-americanos, onde os governos podem controlar as emissoras
por meio do monoplio de verbas publicitrias.
32
No Brasil, aliana entre as elites tecnoburocrticas do Centro-Sul e as
oligarquias regionais para consolidao do projeto de poder subordinado nova
ordem mundial
- em termos partidrios, uma coalizo de centro-direita -, correspondia, no
plano do broadcast televisivo, uma exacerbao de contedos popularescos (a
programao
esteticamente grotesca), que vem aqui traduzindo uma espcie de pacto simblico
ou "contrato de leitura" entre a tev e os estratos economicamente inferiores da
sociedade.
A mdia televisiva atua com mais fora de influncia onde so altas as taxas de
analfabetismo ou ento onde ocorrem uma reduo das formas organizadas de
mediao
do conflito social (sindicatos, partidos polticos e outras instituies da
sociedade civil) e um aumento da atomizao do comportamento eleitoral, isto ,
de eleitores
flutuantes -partidariamente confusos ou institucionalmente indiferentes. E isto
se d onde mais marcante a convergncia dos velhos eixos ideolgicos
(esquerda/direita)
para um centro poltico-gerencial (um bom exemplo disso o que no final do
milnio os europeus chamavam de "terceira via"), mais preocupada com
telecomunicaes,
transportes, ecologia, etc., do que com as grandes teses desenvolvimentistas ou
reformistas do pensamento poltico tradicional.
Pode-se ponderar que, mesmo nessa temtica centrista-gerencial, exista uma
ideologizao. O que certamente no existe uma polarizao antagnica de
posies, j
que tendem todas a convergir para um ponto comum, afinado com as novas
exigncias da tecnologia, do mercado e do status quo societal. As coalizes e as
tticas pragmticas
abrem caminho para novas formas de poltica, que acabam por tornar contnua a
eroso de identidade dos grandes partidos doutrinariamente centralizados.
Este fenmeno generaliza-se nas sociedades contemporneas, embora em graus de
intensidade diferentes, como parte de um processo desconstrutivo que vem
abalando os
modos clssicos de identificao e organizao das demandas sociais. Ao lado de
outras mediaes, os partidos vo sendo progressivamente esvaziados de seu papel
histrico de canalizao dos interesses coletivos e de institucionalizao
representativa (no apenas estatal) do acesso ao poder.
A expresso "novas formas de poltica" comporta a idia de um retrabalho
generalizado das mediaes tradicionais, tambm com
33
conseqncias que apontam para uma mutao identitria em outras instncias da
sociedade. Uma pesquisa dada a pblico no final do milnio14 mostrava o Poder
Judicirio
no Brasil como foco de uma sociabilizao inusitada: os magistrados so
progressivamente convocados a julgar aes que no tm necessariamente a ver com
as questes
de natureza jurdica, e sim com pleitos sociais, existenciais, ticos, etc., no
mais subsumidos nas formas habituais de acolhimento do conflito humano.
A chamada "despolitizao" miditica ou tecnolgica resulta, por sua vez, do
enfraquecimento tico-poltico das antigas mediaes e do fortalecimento da
midiatizao.
Sob a gide da produo informacional da realidade, a tecnointerao toma o
lugar da mediao, desviando os atores polticos da prtica representativa
concreta (norteada
por contedos valorativos ou doutrinrios) para a performance imagstica.
Eleitoralmente, os candidatos so como que absorvidos ou "solicitados" por uma
conjuntura poltico-social onde predomina uma esfera de valores miditica,
suscetvel
de acionar a fora plebiscitaria das massas contra o formalismo burocrtico, ou
eventualmente doutrinrio, dos partidos. A "absoro" implica, na prtica, a
converso
da identidade poltico-partidria do indivduo em pura imagem pblica, isto ,
em aparncia - constituda por um ou mais traos publicitariamente convenientes
-
experimentada como entidade original ou "virtualizada".
Como j enfatizamos, porm, a esfera miditica hibridizante, no atua sozinha.
No basta, por exemplo, a visibilidade pura e simples de um indivduo na mdia -
a excessiva exposio de sua imagem na tev ou nos jornais. preciso que se
apele para todo um arsenal de identificaes entre a imagem e a audincia, a fim
de
se obter efeitos, no mais apenas projetivos, como no caso do entretenimento
clssico, e sim de reconhecimento narcsico de si mesmo no "espelho"
tecnocultural.
Por isto constam do imaginrio miditico motivaes caractersticas de modos de
funcionamento tradicionais, como preocupaes
14. Cf. pesquisa sobre o Poder Judicirio (1999), coordenada pelo professor Luis
Wemeck Viana, do Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro
(IUPERJ).
34
com segurana existencial, religio e famlia. Estes so elementos e valores
ressignificados pelos dispositivos tecnoculturais em funo da imagem pblica
que se
deseja construir.
Tudo tende a confluir para a imagem publicitria como valor coletivo, o que pode
tornar a interpretao cnica da realidade mais importante do que qualquer modo
tradicional de representao. Publicamente, importa mais a capacidade pessoal de
gerar espetculo (telegenia, histrionismo, agressividade bem dosada, etc.),
portanto,
a performatividade miditica, do que contedos programticos.
um modelo tipicamente norte-americano, que nada tem de conjuntural, por ser
estruturalmente afim forma de vida compatvel com a organizao capitalstica
do
mercado nos Estados Unidos. J o publicista brasileiro Joaquim Nabuco observa em
Minha formao que, numa visita que fizera aos Estados Unidos em fins do sculo
XIX, lhe chamara a ateno o espetculo pblico em que se convertiam as
campanhas eleitorais.
O espetculo ampliou-se ao longo de todo o sculo XX, midiatizou-se fortemente,
culminando no fenmeno dos atores-presidentes, isto , chefes de governo que,
mesmo
no sendo necessariamente profissionais do ramo, seguem os padres de uma certa
cosmtica cnica. Diante da progressiva despolitizao substantiva da democracia
norte-americana, o modelo s tem feito intensificar-se. Na campanha eleitoral
para senado e presidncia dos Estados Unidos, em 2000, bastava consultar
esporadicamente
a imprensa para dar-se conta do jogo intersimulativo entre a realidade poltico-
eleitoral e o imaginrio holywoodiano: astros cinematogrficos assumiam
discursos
polticos, enquanto polticos profissionais faziam as vezes de atores.
Bruce Newman, famoso especialista em marketing poltico e consultor do ex-
presidente Bill Clinton, admite que "a televiso tornou-se to importante na
poltica que
os polticos precisam ter as mesmas habilidades dos atores". Ciente de que as
pessoas acompanham os acontecimentos na Casa Branca como se assistissem a uma
novela,
ele afirma que "para muitos americanos a Casa Branca apenas mais uma estao
de tev".
Isto ficou muito evidente no final de 2000, aps o famoso empate eleitoral entre
Al Gore e George Bush, na disputa pela presidncia
dos Estados Unidos. Diante do que se passou depois, o papel anterior da
televiso foi mesmo considerado modesto por observadores. A batalha judiciria
entre os dois
polticos desenrolou-se em tempo real-televisivo, maneira de uma soap-opera,
com heris e viles, surpresas cotidianas, clmax e doses razoveis de suspense.
O
embate ps-eleitoral foi tanto judicirio como televisivo.
Todo esse processo adaptvel, pela americanizao generalizada das campanhas
eleitorais, s peculiaridades de cada regio ou pas. Assim que, quando se
discutia
em meados de 1999 a viabilidade de Ciro Gomes como candidato presidncia da
repblica, o que nele sublinhava a imprensa (supostamente interpretando o senso
comum)
era o fato de seu namoro com uma conhecida atriz de televiso, sua fotogenia e,
at mesmo, como sugeriu um jornalista, sua ctis: "Pela cor da pele pode-se
tornar
aceitvel o que, em Lula, sofreria as reaes do preconceito da classe mdia. No
fundo, votaro em Ciro os que no acreditam no que ele diz"15.
Mas fingem que acreditam, vale acrescentar, porque na verdade est em jogo a
mera adeso por simpatia a uma imagem consoladora. O que a realmente se v o
epifenmeno
de um padro politicamente associado e culturalmente analgico ao do broadcast
televisivo um Centro irradiador de discursos modernizantes e moralistas
(insero
do pas na economia-mundo, campanhas contra bodes-expiatrios, estabilizao
monetria) num espao de maioria populacional tendencialmente excluda da nova
ordem
socioeconmica.
J no perodo pr-eleitoral de 2001, a ascenso da candidatura de Roseana
Sarney, ento governadora do Maranho, presidncia da repblica, foi preparada
por publicitrios
como se costuma proceder com um produto comercial qualquer. Primeiro, dado o
sinal verde de lideranas partidrias da coalizo de centro-direita instalada no
Poder,
houve a insero televisiva de filmetes que deveriam servir como bales de
ensaio junto audincia. Em seguida, a colocao oportuna do nome da
governadora em pesquisas
de opinio, para se testarem os ndices de aprovao e de rejeio. Por trs de
tudo isso, o aproveitamento miditico de uma "novidade" eleitoral, ou seja, uma
imagem
feminina jovem e simptica, ainda que frente de um
15. Coelho, Marcelo. In: Folha de S. Paulo, de 29/09/1999.
36
governo de eficcia administrativa duvidosa. O presidente FHC resumiria o
processo de produo dessa imagem-produto, em tom aprovativo: "O povo quer uma
coisa de
mulher, nova e positiva".
Convertido em imagem-produto, o poltico investido pela lgica da circulao
de signos no mercado, ou seja, pela moda, que sempre arbitrria em suas
imposies:
ora uma feio conservadora, ora inovadora, a depender do grau de desgaste da
imagem em questo. Por esta ltima razo, nem sempre publicitariamente
desejvel
a excessiva visibilidade do candidato na televiso, a fim de se evitar a
vulgarizao de sua imagem.
Ainda que eventualmente fora do dispositivo material (a reproduo tcnica da
mdia), o homem pblico pode definir-se pela cosmtica personalista implicada na
performance
miditica e deste modo tornar-se "imagem" tecno-semitica, funcionando como uma
espcie de "signo" resultante da midiatizao. Assim como num dispositivo de
realidade
virtual, onde o usurio faz do computador a sua "pele" (o chamado wearable
computer), o sujeito humano "veste-se" semioticamente de televiso - isto ,
incorpora
o cdigo televisivo, passando a reger-se por suas regras quanto a aparncia,
atitudes, opinies.
Deve-se, desta maneira, distinguir mdium de empresa ou corporao de mdia.
Enquanto esta ltima implica uma linha de montagem industrial e comerciais de
produtos
tecnoculturais (jornalismo, entretenimento, etc.), o mdium pode constituir-se a
partir da impregnao de esferas particulares de ao da sociedade nacional e
mundial
(estruturas polticas, tecnoburocrticas e outras) por tecnologias da
comunicao, hoje predominantemente eletrnicas e cibernticas.
Por isso, o prprio indivduo suscetvel de converter-se em realidade
miditica. Ncleo de tecnointeraes vrias, ele torna-se imagem e mdium
(anlogo ao self-medium
da realidade virtual) e investe-se, por uma espcie de imerso virtual na esfera
significativa, das regras do cdigo de visibilidade pblica vigentes no momento,
tornando-se boa "cara de vitrine". Imagem pblica, como se infere, no a
representao tecnicamente audiovisual (retrato, filme, etc.) de um referente
humano,
mas um simulacro verossmil ou crvel. a realidade tecnocultural de uma
aparncia, de uma sombra.
37
Esta concepo no nada estranha teoria pragmatista dos signos de Charles
Sanders Peirce. Buscando ultrapassar a dicotomia entre signo (uma conveno
social,
a exemplo de uma palavra, para indicar ou analisar um referente) e pensamento,
ele estabelece que o significado dado por um "interpretante", que atribui
valor
ao signo. O interpretante tambm um signo, que pode atualizar-se ou
hipostasiar-se num indivduo.
Ser "imagem" (signo icnico) pblica significa tornar-se interpretante vivo ou
ncleo politpico de uma determinada conjuntura de valores, significa tornar-se
"mdium".
Mas significa tambm se realizar como forma acabada e abstrata da relao humana
mediada pelo mercado, ou seja, existir como indivduo "irreal", mero suporte
para
signos que se dispem a representar uma realidade instituda exclusivamente como
mercadoria.
3. Um espao evanescente
J Schumpeter, um dos precursores das teorias sobre a racionalidade econmica no
sistema democrtico, detectava traos analgicos entre democracia e mercado de
livre-concorrncia.
Sustentava a equivalncia entre eleitores e consumidores: os votos seriam a
moeda com que se pagam os programas propostos por "empresrios polticos", isto
, os
candidatos a postos eletivos16. At a nada demais. Problemtica a suspeita
levantada por Schumpeter de que os compradores (eleitores) agem irracionalmente
por
no poderem avaliar de fato as mercadorias (programas propostos) que adquirem,
enquanto os vendedores (os polticos) voltam-se apenas para a acumulao do
prprio
poder.
com a entrada da mdia, exacerba-se o irracionalismo (do ponto de vista
utilitrio) do jogo formal e competitivo das prticas democrticas. Seria um
erro, porm,
estabelecer relaes de causa e efeito entre a midiatizao e as transformaes
contemporneas do campo poltico. O que efetivamente parece ocorrer, segundo
Caletti,
"o princpio de um crescente desligamento entre as dimenses do espao pblico
e do poltico, e, mais ainda, o princpio de uma crescente
16. Cf. Schumpeter, Joseph. Capitalisme, socialisme et dmocrade. Payot, 1965.
38
labilidade dos valores socialmente partilhados a respeito do carter necessrio
de sua estreita associao"17. .
Entenda-se: com as mudanas profundas nas formas clssicas de sociabilizao e
participao social, est chegando ao fim a coincidncia entre as dimenses do
espao
pblico e do espao poltico (a centralidade da poltica no espao pblico),
tpica do clssico modelo de Estado republicano (ou democrtico) no Ocidente.
Este
um fenmeno generalizado, como j acentuamos, porm mais agudo em regies
(Amrica Latina, por exemplo) onde predomina o sistema partidrio que os
politlogos chamam
de "no-consolidado", isto , instvel e sem vnculos profundos com a vida
social, com a estrutura indiferente ao territrio e cada vez mais
burocraticamente voltada
para a sua auto-reproduo. .
Pblico, como se sabe, primeiramente a designao do controle ou do
ordenamento estatal (direito e poltico) da vida social. Depois, o espao onde
a sociedade
torna visvel tudo aquilo que tem em comum, inclusive a semiose coletiva
(etiquetas, praas, monumentos, teatros, sales, etc.) resultante da
representao que os
grupos sociais fazem de si mesmos. Na repblica moderna, o fenmeno poltico
centralizou ao longo de sculos o espao pblico, por ser o modo adequado de
acolhimento
do conflito social.
Poltica, por sua vez, a expresso contraditria dos mltiplos interesses em
jogo, logo um fenmeno aberto ao debate e argumentao racional - por isto,
podia
Proudhom dizer que "poltica a cincia da liberdade". A imprensa escrita foi
tcnica comunicacional ("a tipografia a arte criadora da liberdade",
sustentava
o iluminista Condorcet) prpria ao princpio de publicidade, prprio dessa
dimenso poltico-democrtica. Tudo isto tinha maior importncia, por outro
lado, no mbito
do Estado-nao.
Na medida em que o Estado se transnacionaliza, ou pelo menos assim se orienta, e
a poltica torna-se uma dimenso autnoma da vida social, limitando
progressivamente
as decises legislativas, as comisses especializadas e as instncias
tecnoburocrticas, assim
17. Caletti, Srgio. Repensar ei espado de Io publico. Texto apresentado no
Seminrio Internacional: Tendncias de Ia Investigacin en Comunicacin en
America Latina,
20/22 de julho de 1999, Lima-Peru, p. 17.
39
como no jogo eleitoral as coalizes burocrticas, debilita-se o princpio de
publicidade dos assuntos de Estado e restringem-se os temas de debate geral. No
se
trata exatamente da "morte da poltica", anunciada pelo discurso ps-modernista,
e sim da retirada da atividade poltica da cena pblica e de sua localizao em
sistemas especialistas (compostos de assessores tcnicos, peritos, burocratas
financeiros, etc.).
Isso se faz acompanhar do fato, amplamente verificvel, de que os setores
profissionais e sociais ligados ao que se tem chamado de "anlise simblica"
(trabalho
altamente qualificado de identificao e soluo de problemas) pautam-se por
modalidades individualistas de representao, ao invs daquelas implicadas na
associao
a sindicatos ou partidos polticos18. Pode-se chamar a isto de "individualismo
de grupo", epifenmeno da individualizao generalizada na sociedade
contempornea.
,
A poltica em seu sentido mais forte simplesmente deixa de compor a visibilidade
do espao pblico ou a pluralidade da representao. Passa da linguagem
contraditorial
e substancialista de um sistema de delegao de poder ao campo concorrencial e
adjetivista dos produtos oferecidos ao consumo, tal como o descrito por
Schumpeter.
A diferena dos valores dissolve-se na equivalncia geral da forma-produto. Em
vez da seduo sofistica (s vezes, dialtica) da razo argumentativa, a
fascinao
tecnonarcsica obtida pela retrica do imaginrio.
Por isto, o espao pblico da contemporaneidade cada vez mais construdo pelas
dimenses variadas do entretenimento ou da esttica, em sentido amplo, cujos
recursos
provm do imaginrio social, do ethos sensorial e do subjetivismo privado.
Profundamente afetada pela esfera do espetculo, a vida comum torna-se mdium
publicitrio
e transforma a cidadania poltica em performance tecnonarcsica.
Disso resulta a prevalncia da mdia na cena pblica de hoje. No se pretende
aqui afirmar que ela seja a chave explicativa de todo o processo eleitoral, uma
vez
que poder financeiro e apoio partidrio
18. Em pases da periferia capitalista ou "terceiro-mundista", a poltica
tradicional, assolada pelo elitismo e pela corrupo, tende a entrar em colapso,
pela incapacidade
de representar reais interesses coletivos diante da insegurana econmica. O
caso da Venezuela, na virada do milnio, paradigmtico.
40
so decisivos, alm do fato de que dezenas de milhes de pessoas costumam votar
(partidariamente, ideologicamente) na oposio ao bloco conservador. O que se
sustenta
a tendncia substituio do discurso objetivista, argumentativo e
racionalista, compatvel com a imprensa clssica, pela narratividade (na forma
de "casos")
emocionalista da midiatizao, o que significa trocar a opinio arrazoada pela
percepo esteticista da performance.
Muda a subjetividade dos profissionais da poltica, assim como sua relao com a
sociedade civil. Submetidos a uma pura lgica de mercado, avatares do
irracionalismo
competitivo apontado por Schumpeter, eles convertem-se em modelos miditicos,
meros "signos" galvanizadores de afetos, sem qualquer outra funo
representativa alm
de interesses prprios, forosamente coincidentes com as formas hegemnicas de
controle social.
Collor e FHC - tomados aqui como sujeitos de processos eleitorais paradigmticos
de um novo tipo de controle social, portanto comutveis com os atores de outros
processos polticos - so figuras laboratoriais da implementao forada de uma
nova etapa do capital-mundo no Brasil. Coincidiram, por um lado, com o auge de
duas
dcadas neoliberais marcadas pelo aumento da concentrao da renda mundial e
pelo conseqente alargamento do fosso das desigualdades sociais. Por outro, com
o momento
em que a ditadura poltico-militar havia cedido lugar a um sistema tcnico de
organizao do consenso (tecnoburocracia decisria, burocratismo partidrio,
mdia
e pesquisas de opinio), que se empenha em simular a humanizao democrtica do
exerccio do poder. .
Esse no um fenmeno personalista. Trata-se mesmo de um processo complexo, com
muitas variveis scio-econmicas, que afetam inclusive os partidos de oposio,
publicamente identificados com a velha esquerda poltica. Nas eleies
municipais de 2000, o Partido dos Trabalhadores (suspeito, durante muitos anos,
de pretender
uma tomada "socialista" do poder) ampliou consideravelmente a sua fora
poltica, possivelmente porque j no era mais a mesma formao "ideolgica" de
antes. Tinha
passado de uma predominncia politicamente mais radical condio de uma
organizao pragmtica, caracterizada por uma imagem pblica de compostura moral
e de eficcia
administrativa em nvel municipal. Assim que, no pe41
Antropolgica do espelho
rodo pr-eleitoral para a presidncia em 2001, o assunto da contratao de um
grande especialista em marketing eleitoral soava mais alto dentro do partido do
que
a discusso de qualquer projeto poltico novo para o pas.
Como ironizara um rgo da imprensa escrita conservadora, o PT aparentemente
"saiu do vermelho" para o "cor-de-rosa". Leia-se sem a inflexo direitista:
adaptou-se
s novas regras de um jogo eleitoral, que mais no tinha como pano de fundo
social um movimento sindical forte ou ativo, um produtivismo fordista e um
empresariado
nacionalista. De fato, a vitria e a ascenso eleitoral dos petistas podiam ser
objetivamente interpretveis, no simplesmente como uma "reduo do vermelho",
mas
como a conseqncia de uma rejeio poltica da conscincia popular enraizada em
seus territrios de vida real aos desgnios globalistas, neoliberais e
antiterritoriais
do bloco dominante.
Seja esquerda ou direita, a adeso consciente do cidado normatividade da
Ordem , como se sabe, decisiva para a estabilizao das formas contemporneas
de
poder. E a mdia assume a um lugar estratgico. Capitaneada pela televiso,
move-se no quadro de um "democratismo" de escolhas binrias (o sim e o no das
sondagens
ou pesquisas de opinio), influindo normativa e sensorialmente no que diz
respeito a costumes, hbitos e juzos de valor circulantes num grupo social
determinado.
A ela se articulam as pesquisas de opinio, reforando um campo imaginrio (com
foros de cincia poltica) denominado "opinio pblica", que tendencialmente
substitui
o discurso poltico-representativo tradicional por outro de natureza
plebiscitaria, afim a uma suposta democracia direta.
No nada novo o conceito de opinio pblica - produto ideolgico direto da
Revoluo Francesa. Resultado totalizante das opinies individuais da cidadania,
ele
se legitimava como uma espcie de substrato tico e apresentava-se como uma
entidade moral e fiscalizadora dos trs poderes institucionais da repblica. Mas
s a
partir dos anos 30 no sculo XX que os franceses introduzem este conceito no
discurso da cincia poltica, dando margem ao surgimento da medida estatstica
do
substrato coletivo, administrado por institutos de pesquisa. A disseminao dos
mtodos de modelagem matemtica da opinio , no entanto, um fenmeno norte-
americano.
42
Essa "opinio" instrumento de um novo regime de visibilidade pblica e,
portanto, um novo tipo de controle. Tende a no ser mais do que pura imagem ou
objeto inexistente:
"[...] Na realidade, o que existe no a 'opinio pblica' ou mesmo 'a opinio
avaliada pelas sondagens de opinio', mas, de fato, um novo espao social
dominado
por um certo nmero de agentes - profissionais das sondagens, cientistas
polticos, conselheiros em comunicao e marketing poltico, jornalistas, etc. -
que utilizam
tecnologias modernas como a pesquisa por sondagem, computadores, rdio,
televiso, etc.; atravs destas que do existncia poltica autnoma a uma
'opinio pblica'
fabricada por eles prprios, limitando-se a analis-la e manipul-la e, em
conseqncia, transformando profundamente a atividade poltica tal como
apresentada
na televiso e pode ser vivida pelos prprios polticos"19.
Isso que se vem chamando de "novo" jogo poltico j existe h bastante tempo.
H mais de 70 anos, Walter Lippmann, um importante jornalista de seu tempo, em
seu livro Public Opinion, desconfiava das afirmaes de que os cidados baseiam
suas
decises polticas e sociais no estudo objetivo dos fatos pertinentes. A maioria
das nossas decises se baseia no que ele chamou de "imagens em nossas cabeas",
isto , percepes e preconceitos estanques. A idia de uma opinio pblica
informada decidindo questes e aes, disse ele, , em grande parte, uma
fantasia desejvel;
a tarefa de dirigir o pas realizada pelas elites, comenta Dizard20.
Isto significa que "a opinio pblica no existe", conforme tm sustentado
socilogos como Pierre Bourdieu, Patrick Champagne e outros? O que dizer ento
da convico
de srios analistas da poltica norte-americana de que o impeachment do
presidente Bill Clinton, em virtude do escndalo sexual com uma estagiria da
Casa Branca,
teria sido evitado apenas pelo peso da opinio pblica? E por demais complexa e
obscura a trama dos acontecimentos, mas pode-se levar
19. Champagne, Patrick. Formar a opinio - O novo jogo poltico. Vozes, 1988, p.
32.
20. Dizard, Wilson. A nova mdia - A comunicao de massa na era da informao.
Zahar,
1998, p. 51-52. ....
43
principalmente em considerao as afirmaes de outra linha sria de analistas
(dentre os quais a prpria primeira-dama do pas) no sentido de que a tentativa
de
impeachment foi de fato um quase golpe de Estado manobrado por faces
direitistas. Assim como no caso do trmino da guerra do Vietn, as determinantes
do resultado
final ocorreram nos bastidores do poder, na forma dos velhos arcana imperii ou
segredos de Estado.
Na verdade, o controle estatstico da cidadania pelas sondagens (a organizao
do questionrio para as entrevistas induz respostas e produz um pseudofenmeno
poltico),
canaliza e orienta certas disposies preexistentes ou latentes um ethos,
portanto convertendo-as virtualmente em opinio "poltica". No h dvida de que
a "opinio
pblica" existe, mas como uma estratgia de buscar o que de algum modo j se
tem. E nas campanhas polticas, o eleitoralismo resultante termina levando
convico
de que democracia seria pura soma de vontades individuais - a exemplo da escolha
"democrtica" na esfera do consumo - em vez do equilbrio real de foras entre
interesses
de grupos divergentes.
Hoje, de fato, a poltica - como j dissemos, progressivamente autonomizada em
face de outras prticas sociais e dissociada da antiga esfera pblica - tende a
ser
vivida virtualmente ou de modo espasmdico pelos cidados, ao sabor de gostos e
humores idiossincrticos, como fato de mentalidade e costume, sem que as causas
ou
as questes pblicas tenham maiores conseqncias para a sociedade como um
todo21. O que na esfera poltica se experimenta como puro ethos absorvido por
todas
as tcnicas de consenso e controle que confluem para a mdia.
Da mdia para o pblico no parte a
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