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1. INTRODUÇÃO As concepções e tratamentos dispensados à loucura sofreram profundas modificações ao longo dos séculos, passando-se a uma gradual exclusão da mesma no interior de instituições totalitárias que nem sempre tiveram como propósito ações terapêuticas e de cuidado. Tal exclusão, antes compartilhada com outros membros da sociedade que tivessem algum desvio da norma (FOUCAULT, 1975) passa a ser exclusividade dos loucos após a Revolução Francesa, pois eles não são considerados capazes de contribuir para o sistema de produção. Esta exclusão tem como justificativa também uma suposta periculosidade vinculada à loucura, estigma que a acompanha até os dias atuais. Esta internação, método de controle moral e social constante, passa a ter também relações com a medicina, que fica responsável pela tutela do louco e pelo seu tratamento. Inicia-se aí a relação entre a loucura e o saber médico, expressa pela denominação dos ambientes de exclusão de hospitais psiquiátricos. No Brasil o tratamento dado a loucura não foi diferente, com a criação de hospitais psiquiátricos por todo o país e manutenção do louco em condições asilares desumanas, sem chances de reinserção social ou tratamento adequado. Além de não cumprir sua função de tratamento, a precariedade dos asilos passa a ser responsabilizada pelo agravamento das doenças (BIRMAN; COSTA, 1994). No final da década de 70 começa a ganhar forças no país movimentos de reforma baseados nas experiências de outros países, como a Psicoterapia Institucional francesa e o movimento de Desinstitucionalização da Itália, liderado por Franco Basaglia. Esta última é considerada por alguns autores a mais influente no modelo da reforma brasileira (AMARANTE, 1996). Segundo Birman e Costa (1994, p. 46) “não era mais possível assistir-se passivamente ao deteriorante espetáculo asilar: não era mais possível aceitar uma situação em que um conjunto de homens, passíveis de atividades, pudessem estar espantosamente estragados nos hospícios”. Estas propostas de reforma questionam a instituição psiquiátrica e os conceitos de periculosidade, tutela e isolamento dos considerados doentes mentais, e colocam como alternativa um processo de desinstitucionalização que tem como desafios não só retirar a loucura de sua exclusão, mas também promover transformações na forma como a sociedade lida com ela. Para o cumprimento de ambos os objetivos era então necessária a criação de novas formas de lidar com a loucura, alternativas de tratamento para combater as internações. Segundo Amarante (2003, p. 53) Na medida em que o imaginário social – e muito ele é decorrente da ideologia psiquiátrica tornada senso-comum – relaciona loucura à

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1. INTRODUO

As concepes e tratamentos dispensados loucura sofreram profundas modificaes ao longo dos sculos, passando-se a uma gradual excluso da mesma no interior de instituies totalitrias que nem sempre tiveram como propsito aes teraputicas e de cuidado. Tal excluso, antes compartilhada com outros membros da sociedade que tivessem algum desvio da norma (FOUCAULT, 1975) passa a ser exclusividade dos loucos aps a Revoluo Francesa, pois eles no so considerados capazes de contribuir para o sistema de produo. Esta excluso tem como justificativa tambm uma suposta periculosidade vinculada loucura, estigma que a acompanha at os dias atuais. Esta internao, mtodo de controle moral e social constante, passa a ter tambm relaes com a medicina, que fica responsvel pela tutela do louco e pelo seu tratamento. Inicia-se a a relao entre a loucura e o saber mdico, expressa pela denominao dos ambientes de excluso de hospitais psiquitricos.

No Brasil o tratamento dado a loucura no foi diferente, com a criao de hospitais psiquitricos por todo o pas e manuteno do louco em condies asilares desumanas, sem chances de reinsero social ou tratamento adequado. Alm de no cumprir sua funo de tratamento, a precariedade dos asilos passa a ser responsabilizada pelo agravamento das doenas (BIRMAN; COSTA, 1994). No final da dcada de 70 comea a ganhar foras no pas movimentos de reforma baseados nas experincias de outros pases, como a Psicoterapia Institucional francesa e o movimento de Desinstitucionalizao da Itlia, liderado por Franco Basaglia. Esta ltima considerada por alguns autores a mais influente no modelo da reforma brasileira (AMARANTE, 1996). Segundo Birman e Costa (1994, p. 46) no era mais possvel assistir-se passivamente ao deteriorante espetculo asilar: no era mais possvel aceitar uma situao em que um conjunto de homens, passveis de atividades, pudessem estar espantosamente estragados nos hospcios.

Estas propostas de reforma questionam a instituio psiquitrica e os conceitos de periculosidade, tutela e isolamento dos considerados doentes mentais, e colocam como alternativa um processo de desinstitucionalizao que tem como desafios no s retirar a loucura de sua excluso, mas tambm promover transformaes na forma como a sociedade lida com ela. Para o cumprimento de ambos os objetivos era ento necessria a criao de novas formas de lidar com a loucura, alternativas de tratamento para combater as internaes. Segundo Amarante (2003, p. 53)

Na medida em que o imaginrio social e muito ele decorrente da ideologia psiquitrica tornada senso-comum relaciona loucura incapacidade do sujeito em estabelecer trocas sociais e simblicas, a quarta dimenso a que denominamos de sociocultural, e que expressa o objetivo maior do processo de reforma psiquitrica, ou seja, a transformao do lugar social da loucura. Assim o aspecto estratgico desta dimenso diz respeito ao conjunto de aes que visam transformar a concepo de loucura no imaginrio social, transformando as relaes entre sociedade e loucura.

Segundo Amarante (1996), quando perguntado sobre os melhores locais de tratamento para as pessoas com transtornos mentais, Basaglia respondia: So os espaos da cidade. Neste sentido, um dos objetivos da reforma psiquitrica uma mudana no objeto de interveno, passando-se do tratamento da doena mental para uma promoo de sade mental. neste contexto que surgem no Brasil as primeiras propostas de modelos para reorientar o tratamento, a partir de discusses como as realizadas na I Conferncia Nacional de Sade Mental e no II Encontro Nacional dos Trabalhadores de Sade Mental, ambos realizados em 1987. Neste mesmo ano criado o primeiro Centro de Ateno Psicossocial (CAPS) do pas, o CAPS Professor Luis da Rocha Cerqueira, tambm conhecido como CAPS Itapeva, onde este estudo foi realizado.

O CAPS tem importante papel na Reforma Psiquitrica Brasileira, pois passou a demonstrar a possibilidade de uma rede substitutiva aos hospitais psiquitricos. De acordo com o documento Sade Mental no SUS: os Centros de Ateno Psicossocial (2004, p. 9) os CAPS so instituies destinadas a acolher os pacientes com transtornos mentais, estimular sua integrao social e familiar, apoi-los em suas iniciativas de busca da autonomia, oferecer-lhes atendimento mdico e psicolgico.

Desta forma, os CAPS, segundo Goldberg (2004), prope uma nova forma de interveno para a psicose, por meio de projetos individualizados que respeitem o tempo de cada um e possibilitem ao longo do processo o aumento da autonomia. Ainda segundo este autor (1996) os CAPS devem promover o atendimento a estas pessoas, estimular a integrao social e familiar dos usurios e oferecer campos de pesquisa que contribuam para a formao de profissionais para esta prtica clnica. Para isto utilizado um tratamento em rede:

Todos os recursos afetivos (relaes pessoais, familiares, amigos etc.), sanitrios (servios de sade), sociais (moradia, trabalho, escola, esporte etc.), econmicos (dinheiro, previdncia etc.), culturais, religiosos e de lazer esto convocados para potencializar as equipes de sade nos esforos de cuidado e reabilitao psicossocial. (BRASIL, 2004, p. 11)

Dentro deste trabalho em rede, destaca-se a importncia de considerar o territrio onde est situado o servio, com sua identidade, caractersticas, cultura local e recursos disponveis. Cabe ao CAPS mapear estes recursos e utiliz-los no tratamento oferecido aos seus usurios. Neste contexto, percebe-se a importncia da realizao de atividades que explorem estes recursos do territrio, possibilitando que os usurios saiam de dentro dos muros da instituio e entrem em contato com a comunidade em seu entorno.

Esta atuao no territrio permite ainda lidar com duas concepes acerca da psicose que podem ser trabalhadas no contexto dos servios substitutivos (GOLDBERG, 1996). Uma diz respeito a dificuldades de expresso subjetiva, caracterstica da psicose, e outra se refere a dificuldades concretas da vida cotidiana. Ambas esto diretamente relacionadas e devem pensadas na elaborao dos projetos teraputicos individuais de cada usurio e nas atividades oferecidas pelo servio.

Na psicose, muitas vezes, as prprias condies a que as pessoas esto submetidas, de alheamento e de excluso, impede que tenham acesso a um substrato de linguagem no qual possam esboar um discurso. Pessoas que passaram muito tempo em casa no tem assunto para conversar. Assim, no dia-a-dia da instituio procura-se proporcionar um nmero grande de projetos, uma circulao intensa de experincias, que atendam aos pedidos dos usurios: lidar com roupas, atividades de cozinha, de final de semana, marcenaria, xrox e outras. A preocupao central que possam sedimentar uma cultura, um ambiente capaz de ser falado (compartilhado), provendo um suporte para que as questes apaream. As psicoterapias grupais e individuais podem ser o lugar no qual tais questes podem ser trabalhadas (GOLDBERG, 1996, p. 42)

O propsito deste trabalho justamente discutir as possibilidades de trabalho com estas questes em um grupo que realizado fora dos muros da instituio, buscando, a partir dos filmes assistidos, disparar as falas acerca dos temas abordados e tambm, atravs da circulao pelo territrio, trabalhar com uma questo concreta da vida cotidiana, que a convivncia na comunidade. Segue uma apresentao do contexto em que este trabalho realizado e as motivaes para sua realizao.

1.1 Contexto do trabalho

O trabalho aqui apresentado resultado das experincias tericas e prticas vivenciadas no Aprimoramento Multiprofissional em Sade Metal dos CAPS Professor Luis da Rocha Cerqueira (CAPS Itapeva). Trata-se de um Programa de Aprimoramento Profissional (PAP) proposto e financiado pela Fundao do Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP), rgo do governo de estado de So Paulo responsvel por estimular a formao em ps-graduao de profissionais que atuem no atendimento das necessidades de sade da populao. Os profissionais vinculados ao PAP recebem bolsas de estudos financiadas pelo estado e administradas pela FUNDAP. O processo de seleo de responsabilidade de cada unidade de sade participante.

O programa de bolsas do PAP foi criado em 1979 para profissionais de sade no-mdicos e recm-graduados, sendo caracterizado por formao e capacitao dos profissionais em servio. H, portanto, a obrigatoriedade do cumprimento de carga horria de 40 horas de trabalho semanais, sendo aproximadamente 20% do total dedicados formao terica e 80% para atuao prtica. A FUNDAP apresenta como objetivo do PAP capacitar os aprimorandos para uma atuao qualificada na rea da sade e uma viso crtica e abrangente do Sistema nico de Sade. Atualmente h cerca de 450 programas de aprimoramento, alocados em importantes centros de referncia de atendimento e pesquisa.

Neste contexto, o Programa de Aprimoramento Multiprofissional em Sade Mental surgiu em 1989, sendo um dos primeiros programas de formao do modelo CAPS. Desde sua criao este programa vinculado ao NEP (Ncleo de Ensino e Pesquisa), responsvel pelo oferecimento de cursos, palestras, estgios, entre outros, visando formao de trabalhadores da rede de sade.

A seleo para o aprimoramento multiprofissional no CAPS feita anualmente, sendo oferecida para psiclogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais e enfermeiros. Em maro de 2010 ingressaram oito profissionais: cinco psiclogas e trs terapeutas ocupacionais, que foram dividas entre as trs equipes de trabalho da instituio. A concluso do aprimoramento acontece em fevereiro de 2011, com a apresentao deste trabalho.

Os profissionais selecionados so inseridos no cotidiano do servio com a obrigatoriedade de participar de algumas atividades, como por exemplo, no mnimo dois atendimentos individuais, a participao em pelo menos um grupo teraputico aberto ou fechado, um projeto de trabalho, compor uma equipe de triagem, ter um perodo de acolhimento, participar das reunies de equipe, supervises e aulas. A insero nos grupos ou nos projetos de trabalho ocorre aps um ms de contato com a instituio e com as propostas existentes. Neste perodo possvel conhecer o funcionamento e caracterstica de cada grupo, o que permite uma escolha a partir da afinidade e identificao com o que proposto.

Um dos grupos que compus durante este ano de aprimoramento foi o CAPSCine, um grupo aberto que ocorre h mais de seis anos e tem como proposta levar ao cinema semanalmente os usurios do servio e aps os filmes promover uma conversa/debate sobre temas decorrentes. Trata-se de um grupo que atualmente coordenado por dois psiclogos, uma terapeuta ocupacional, estagirios e aprimorandos.

Este grupo despertou-me especial interesse por ser o nico, atualmente, que ocorre fora do CAPS, utilizando recursos externos e a explorao do territrio para seu funcionamento. Alm disso, no h trabalhos mais extensos que busquem relatar a experincia deste grupo e explicaes tericas para o que ocorre no mesmo (h somente um artigo ainda no prelo).

Outro ponto que chama a ateno neste grupo o fato dele ter se adaptado s mudanas ocorridas na instituio, como a sada do PIDA, a entrada da SPDM (Associao Paulista para o Desenvolvimento da Medicina) na administrao, o enfraquecimento da Associao Franco Basaglia, que apoiava o projeto, o aumento exponencial no nmero de usurios no servio, entre outras. Alm das mudanas institucionais, o prprio grupo tambm passou por mudanas significativas, principalmente no que se refere ao nmero e caractersticas de seus frequentadores. Por tudo isso, como forma de encerrar uma experincia to intensa como esta do aprimoramento, julguei pertinente escrever sobre um grupo no qual tive uma participao ativa durante todo esse ano e com o qual muito me identifiquei. Alm disso, no h entre as monografias apresentadas em anos anteriores nenhuma que se debruce sobre estas questes disparadas pela participao no grupo de cinema da a importncia de se registrar sua histria e os caminhos trilhados nesses anos de existncia.

Acrescenta-se a outro fator determinante para esta escolha: durante este ano de aprimoramento frequentei tambm um curso de formao em Acompanhamento Teraputico no Instituto de Pesquisa e Ateno em Sade Mental A Casa, que me despertou inquietaes e questionamentos sobre as possibilidades da rua como espao teraputico e as possveis dificuldades e conquistas ao se operar intervenes em um espao desprovido da segurana que os contornos institucionais podem trazer.

A proposta do CAPSCine tem aproximaes com a clnica do acompanhamento teraputico, com a peculiaridade de se utilizar do recurso grupal e no da relao dual que se estabelece tradicionalmente, porm, mantendo a ideia de utilizar A rua como espao clnico.

Este trabalho pretende, a partir da minha experincia neste grupo e do relato em entrevista de alguns participantes, discutir a importncia da utilizao do territrio como recurso teraputico e as possibilidades da realizao do que chamarei de acolhimento externo, ou seja, um acolhimento dos profissionais e do prprio grupo de usurios que ocorre fora da instituio. H uma hiptese de que o vnculo com o grupo traga mudanas aos usurios, no que diz respeito apropriao do territrio e organizao a partir do apoio dos profissionais e demais usurios. Por isto, cabe questionar: este acolhimento externo de fato ocorre? Como ele contribui para uma apropriao dos recursos do territrio? Qual a importncia de se efetivar outras propostas semelhantes de apropriao do territrio/acolhimento externo?

Para tal, pretendo contar a histria do CAPSCine do seu incio at como est inserido na casa atualmente e, a partir da, problematizar as situaes que me suscitaram/provocaram o desenvolvimento deste trabalho. Posteriormente, fazer uma discusso terica acerca das concepes de acolhimento e do trabalho do CAPS no territrio, para ento analisar as entrevistas realizadas.

2. A HISTRIA DO CAPSCINE

H mais de seis anos uma cena se repete: toda quarta-feira tarde um grupo de usurios e tcnicos do CAPS Itapeva, faa chuva ou sol, caminha cerca de 1 km em direo ao Espao Unibanco, cinema parceiro do projeto e localizado a alguns quarteires do CAPS. A histria do CAPSCine, grupo que tem como proposta levar os usurios do servio a cinemas da regio e promover debates sobre os filmes assistidos, comeou em 2004. O Espao Unibanco o parceiro mais antigo e frequente, e l assistimos, junto com seu pblico habitual, a filmes de diversos estilos que esto em cartaz. Interessante notar que este cinema que frequentamos tem como caracterstica exibir filmes considerados alternativos ou cults, nem sempre so grandes produes, com atores conhecidos, roteiros clichs e grande enfoque da mdia.

Desde sua criao o grupo cresceu em nmero de tcnicos e de usurios participantes, trazendo importantes discusses para a instituio acerca da importncia da explorao do territrio e da existncia de grupos que ocorram fora dos muros do CAPS. Alm disso, as discusses disparadas pelos filmes so vistas pelos profissionais e usurios como um espao rico de troca de experincias, abordam questes contemporneas, vivncias emocionais e muitas vezes se relacionam com o prprio tratamento no CAPS.

Porm, importante salientar que este projeto tem razes ainda anteriores. A ideia de realizar este grupo semanalmente, com a regularidade e caractersticas que teve nestes seis anos, surgiu a partir de outra atividade iniciada em 1997/1998, que se intitulava Cinema na Cidade. A proposta era semelhante: levar os usurios do servio ao Espao Unibanco para assistir aos filmes atuais que estavam em cartaz. No entanto, segundo informaes dos profissionais envolvidos, no havia uma periodicidade definida para a realizao de tal atividade houve momentos em que o intervalo entre as sadas era de quatro, cinco meses. Foi determinante para a efetivao desta ideia e tambm para o sucesso do CAPSCine, a localizao do servio na cidade. O CAPS funciona atualmente em um casaro do sculo 20 e em um prdio anexo, localizados a poucos metros da Avenida Paulista, da estao de metr Trianon-Masp, e do prprio Museu de Arte de So Paulo (MASP). Isto significa que a instituio est cravada no corao financeiro da cidade, com milhares de empresas, bancos e rgos pblicos ao seu redor. Outra caracterstica marcante da regio o fato dela ser tambm um plo cultural, com uma infinidade de lugares para serem visitados e explorados. Entretanto, h ainda uma concentrao dos usurios e das atividades no interior da instituio, mesmo com esta caracterstica que pode ser considerada privilegiada e com diretrizes que prope outro funcionamento:

As prticas realizadas nos CAPS se caracterizam por ocorrerem em ambiente aberto, acolhedor e inserido na cidade, no bairro. Os projetos desses servios, muitas vezes, ultrapassam a prpria estrutura fsica, em busca da rede de suporte social, potencializadora de suas aes, preocupando-se com o sujeito e sua singularidade, sua histria, sua cultura e sua vida quotidiana (BRASIL, 2004)

O Cinema na Cidade, projeto anterior a este aqui estudado, fazia parte do chamado Clube do Basaglia, projeto proposto pela Associao Franco Basaglia (AFB) devido vontade dos familiares de organizarem-se para atividades sociais, culturais e polticas (ARANHA E SILVA, 2003).

Para melhor compreender em que contexto ocorre a fundao do Clube do Basaglia, importante dizer que a AFB foi fundada em 1989 por pacientes, familiares e profissionais de sade mental, dois anos aps a criao do CAPS Itapeva, o primeiro do pas, e no meio a grandes conquistas da reforma psiquitrica. Esta associao cresceu como resultado do empenho dos familiares na realizao de festas, reunies, eventos, defesa dos direitos dos usurios de sade mental e no auxlio criao de outras associaes similares. Desta forma, o CAPS Professor Luis da Rocha Cerqueira fez diversas parcerias com a Associao desde sua criao, atravs da realizao de projetos de interesse mtuo, discutidos e efetivados em ambos os espaos (GOLDBERG, 2004). Esta parceria acontecia principalmente no chamado Ncleo de Sociabilidade, que junto com os ncleos de Assistncia e de Ensino e Pesquisa formava o trip de organizao das atividades propostas pelo PIDA-USP (Programa de Integrao Docente Assistencial) que era responsvel pela co-gesto do CAPS Itapeva, em parceria com a Secretaria do Estado da Sade (ARANHA E SILVA, 2003). O PIDA entrou na instituio em 1996, a partir de um convnio firmado entre a Universidade de So Paulo, representada pelo Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquitrica da Escola de Enfermagem e pela Faculdade de Terapia Ocupacional, e a Secretaria de Sade e com o objetivo de melhorar as condies do servio por meio de projetos e recursos. Este convnio vigorou at 2004, momento em que a instituio voltou a ter problemas de investimento e apoio (CEMBRANELLI, 2009)

O Ncleo de Sociabilidade era composto basicamente por quatro projetos: Projeto Trabalho, Escritrio de Cidadania, Projeto Moradia e Clube do Basaglia. Este ltimo, segundo Goldberg (2004, p. 43) contagiou o CAPS e era direcionado a todos os usurios de servios de sade mental da cidade de So Paulo. Bario (2001) diz ainda que junto com o Movimento Multiplacidade, este foi um projeto que pretendia criar um lugar de criao, lazer, cultura, diverso e trocas entre usurios, familiares, profissionais, artistas, entre outros. A autora enfatiza ainda que este projeto explorava a fronteira entre a clnica e o social, oferecendo oficinas de dana, marcenaria, rdio, jornal, desfiles de moda, entre muitos outros, com atividades distribudas por toda a semana. Portanto:

Um Clube pode ser compreendido como um projeto que integra o conjunto das estratgias clnicas, de sociabilidade e de lazer de um servio de ateno em sade mental. Isto porque, a clnica concebida no campo psicossocial, flexvel e complexa, identifica necessidades que dizem respeito construo de lugares de vida e de maior autonomia dos sujeitos e cria dispositivos que possam atender a elas. O Clube pode nascer dessa forma, como uma proposio s necessidades de ampliao dos repertrios dos sujeitos, a partir de suas mltiplas e possveis relaes com o fora: com o fora de si mesmo, com o fora do comum, com o fora da instituio, fora dos limites do teraputico e tambm fora do campo exclusivo da sade mental. Trata-se de potencializar uma perspectiva de olhar e abordar os problemas das pessoas com transtornos psquicos severos e persistentes na sua transversalidade, prpria do projeto institucional como um todo. (MEOLA; ALMEIDA, 2001)

Atravs do Clube do Basaglia, a Associao Franco Basaglia fez uma parceria com o Espao Unibanco, famoso cinema localizado na regio central da cidade, para que os usurios e familiares pudessem frequent-lo. Com o passar dos anos, diversas mudanas institucionais como a sada do PIDA, problemas internos da AFB, intervenes da secretaria de sade na instituio, entre outras, foram tornando a realizao de algumas atividades menos frequente, dentre elas, o Cinema na Cidade. Em meados de 2004, o psiclogo concursado pelo Estado Ren Rogrio Pereira, acompanhou uma dessas idas ao cinema e, interessado pelo projeto, props ao Espao Unibanco que o grupo acontecesse todas as semanas. Apesar de certo receio inicial, a diretoria do cinema aceitou ter um perodo de experimentao, com temor de que houvesse intercorrncias graves o que nunca ocorreu. Outra mudana neste momento que o ingresso passou a ser cobrado, um valor simblico que era pago pela prpria AFB. O grupo ento passa a ser chamado de CAPSCine.

O grupo neste momento era coordenado por este psiclogo e por uma aprimoranda, e tinha como frequentadores assduos cerca de 10 usurios do servio. Uma das caractersticas desta primeira formao era o fato dele ser composto por pessoas com maior escolaridade e que j tinham algum contato com a cultura. Alm disso, aps os filmes todos iam at uma lanchonete prxima para conversar sobre os temas abordados e as questes suscitadas pelo que tinham assistido. O grupo se manteve com estas caractersticas por um perodo, com um pequeno aumento no nmero de participantes e a passagem de alguns profissionais auxiliando a coordenao.

Em maio de 2007 foi assinado um convnio entre o CAPS Itapeva, por intermdio da Secretaria de Estado da Sade, e uma organizao social (OS), a Associao Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), ento vinculada a Universidade Federal de So Paulo (UNIFESP). Com a entrada da SPDM o antigo quadro de funcionrios do estado foi mantido e novos profissionais foram contratados, o que no evitou conflitos e fraturas institucionais que ainda repercutem no cotidiano. De qualquer forma, neste ano de grandes mudanas institucionais, o grupo tambm passou por transformaes. A AFB, j com problemas de gesto, informou que no tinha mais condies de manter o projeto, que passa ento a ser apoiado e financiado pela diretoria que acabara de assumir. A entrada de novos profissionais na instituio tambm traz mudanas na configurao de coordenadores do grupo, com aumento gradativo do nmero de participantes. Neste momento, percebe-se que o perfil destes usurios tambm comea a mudar, no sendo mais diretamente relacionado escolaridade alta e ligao anterior com o cinema e a cultura. Por outro lado, fica mais evidente uma dificuldade relacionada com a carncia de recursos materiais da populao atendida pelo servio: por irem ao cinema, os usurios perdiam o horrio do caf da tarde, para muitos a ltima refeio do dia. Por isso, muitos deixavam de ir ou, quando iam, saiam antes do final do filme e das discusses. Mais uma vez uma parceria com a instituio resolveu a questo, e os coordenadores passaram a levar o mesmo caf da tarde servido no CAPS para que os usurios lanchassem enquanto se reuniam para conversar sobre o filme, no prprio Espao Unibanco.

Havia tambm algumas idas espordicas a outros cinemas da regio, principalmente no shopping Frei Caneca, que tem a mesma direo do Espao Unibanco, no shopping Santa Cruz ou Paulista. Foi proposta a parceria com outros espaos, que recusaram argumentando no ter estrutura para receber pessoas nestas condies, o que expressa a existncia de um estigma ainda relacionado com um iderio da loucura vinculado agressividade, periculosidade. A existncia de tal esteretipo confirmada quando se retira do ofcio enviado aos cinemas o termo transtorno mental severo e persistente, utilizado na explicao sobre qual a populao atendida pelo CAPS. A ausncia deste termo facilita muito a entrada com preos promocionais em cinemas que no so tradicionalmente parceiros do CAPSCine. Houve ainda outra situao que causou certo constrangimento: na ida a um dos shoppings da regio, o grupo foi, como de costume, lanchar e discutir o filme na praa de alimentao. Foram ento interpelados pelo segurana que pedia a sada do grupo, pois, mesmo com o local relativamente vazio, no era permitido utilizar o espao para consumir alimentos que no fossem comprados em uma das lojas do shopping. Tal fato retrata tambm como o ambiente pode ser inspito e agressivo em muitos momentos e que ao sair ao territrio estamos expostos a situaes imprevistas e muitas vezes embaraosas. Neste caso, trata-se de uma regra que possivelmente serviria para outros pblicos que tentassem utilizar aquele espao para os fins que propusemos, mas que representa uma lgica da excluso: se no tem recursos financeiros para consumir, aquele determinado lugar no pode ser ocupado.

No ano de 2008 a terapeuta ocupacional Snia Zapparoli passou a fazer parte da coordenao do grupo juntamente com o psiclogo Ren Rogrio Pereira. Alguns meses depois, a auxiliar de enfermagem Priscila Serafim tambm entrou para esta equipe que mais tempo ficou a frente da atividade inclusive era esta a formao quando iniciei meu percurso nela. Esta diversidade de formaes dos coordenadores permite que cada profissional contribua com sua especificidade de atuao e possibilita a atuao multiprofissional proposta pelo modelo do servio.

Com a entrada de mais profissionais o nmero de usurios no grupo continuou crescendo. Em 2009 houve um desdobramento do CAPSCine: passa a acontecer dentro da instituio uma oficina de curtas-metragens, estimulada pelo crescimento do grupo de cinema e interesse dos usurios pelo assunto. Nos anos de 2008 e 2009 no houve participao de aprimorandos devido ao horrio ser coincidente com atividades obrigatrias da formao.

2.1 O grupo em cenas

Meu percurso no grupo se iniciou em maro de 2010 e pude acompanhar um perodo de mudanas significativas. A primeira alterao importante foi a possibilidade de participao das aprimorandas aps mudanas nos horrios de atividades obrigatrias, o que permitiu a entrada de mais trs profissionais. Alm disso, duas estagirias de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de So Paulo, que se vinculavam instituio por um semestre, tambm passaram a frequentar o grupo. Seguindo a tendncia de anos anteriores, o aumento do nmero de profissionais atrai novos participantes, possivelmente por vnculos j estabelecidos em outros contextos institucionais e pela maior disponibilidade de acolhimento por parte dos profissionais envolvidos.

Chamou-me a ateno o fato de que usurios considerados em crise passaram a frequentar o grupo, que acolheu essa demanda e mostrou-se um espao potencial de suspenso do lugar de louco, de criador de problemas para a famlia e para a instituio.

Foi o que ocorreu com Ivonete, que passou por triagem no incio de 2010 e logo foi inserida em atividades na casa, com a elaborao de um projeto teraputico. Ivonete queixava-se de audio de vozes, referia vontade de morrer e depresso, e desde que chegou ficou conhecida pelos profissionais e demais usurios por crises de agressividade em que quebrava vidros, atirava objetos, chorava muito e mobilizava vrios profissionais para acolh-la. Isto ocorria diariamente no incio, dificultando sua insero nas atividades propostas por seu projeto, alm de gerar uma ameaa constante, principalmente por parte de sua famlia, de intern-la. Em uma quarta-feira, logo depois de uma destas cenas, ela demonstrou o desejo de ir ao cinema com o grupo, incentivada pelos demais usurios. Algumas pessoas divergiram quanto possibilidade desta participao estando ela em crise e com o risco do episdio se repetir fora da instituio, o que representaria um problema maior, j que Ivonete constantemente ameaava se atirar na frente dos carros que passavam pela rua. Diante de seu desejo, a equipe avaliou que poderia ser interessante esta participao, e, como o nmero de profissionais era maior, foi possvel que um deles ficasse mais prximo dela neste primeiro momento. A caminhada foi tranquila e durante quase todo o filme Ivonete dormiu. Mesmo assim, ela espontaneamente voltou ao cinema nas semanas seguintes, com um esforo crescente para manter-se acordada e para entender os cdigos daquele mundo at ento desconhecido para ela. Ela se tornou parte do grupo, se vinculou a outros usurios e esta atividade passou a fazer parte de sua semana. Ivonete nunca teve uma de suas crises no percurso at o cinema e tampouco durante as sesses. Estas tambm se tornaram raras dentro da instituio com o passar dos meses, depois de um longo investimento por parte de toda a equipe. Mesmo tendo deixado de ir ao cinema posteriormente, notou-se que este grupo foi importante para sua insero na casa, sua vinculao ao servio e possibilitou outro olhar para suas crises.

Podemos compreender que essa abertura a usurios em crise fruto da mudana da postura da equipe, possivelmente mais segura de dar passos mais ousados por estar em maior nmero e tambm pela maturidade do grupo.

Alm desta possibilidade de suspenso da posio subjetiva dos usurios, atravs dos benefcios que o contato com o mundo pode trazer, notamos que o contrrio tambm ocorre. Conviver com a loucura ajuda a desmistific-la, a retirar o peso dos estigmas que a acompanham h sculos etapa que seria necessria para a reinsero de fato. Tal constatao fica evidente pela mudana de postura dos funcionrios e da prpria direo do Espao Unibanco na forma de lidar com o grupo e no manejo de imprevistos que porventura acontecem, sem a interveno dos profissionais coordenadores.

Para ilustrar tal fato, cabe aqui mais um relato de cena. Jos tambm entrou no servio em 2010 e logo passou a frequentar o grupo de cinema. Logo de incio percebemos as dificuldades que ele tinha para circular sozinho pela cidade, pois ia e voltava do CAPS acompanhado por sua me e segundo informaes da famlia ele de fato no estava acostumado a sair sozinho de casa, pois no consegue se localizar muito bem. Interessante notar que o prprio Jos, parecendo temer ficar perdido, sempre se aproximava de algum dos tcnicos durante as caminhadas e durante a exibio dos filmes. Demorou algum tempo para que ele conseguisse atravessar as ruas sem sentir a necessidade de dar as mos para um dos tcnicos. E, para susto dos coordenadores, que acharam que ele havia se perdido no caminho, ele chegou a voltar para o CAPS com um pequeno grupo de usurios que iam um pouco frente, conseguindo mais autonomia com relao aos tcnicos que acompanham o grupo.

Segundo seu projeto teraputico, Jos deve ir ao CAPS duas vezes por semana, e nesses dias participar da Assemblia, do grupo de cinema, de um grupo denominado Caixa de dilogos e do grupo de karaok. notvel que suas atividades tm uma funo de organizao do seu cotidiano, pois todas as quartas-feiras, no grupo caixa de dilogos, Jos faz uma tabela com seus compromissos do dia, que incluem a Assemblia, o grupo de cinema e atividades na igreja que frequenta.

Jos tem crises convulsivas frequentes, e no raramente fica bastante sonolento e com movimentos lentificados, principalmente em pocas em que est passando por adaptaes na medicao. Em uma das sadas do grupo, Jos estava visivelmente debilitado, sentindo muitas tonturas e com dificuldades para caminhar. J havia passado por avaliaes dos enfermeiros e dos mdicos, que relacionaram o mal-estar ao uso da medicao. Pensamos ento que no havia condies dele acompanhar o grupo, mas, por insistncia dele, aceitamos. Ele foi amparado por um dos tcnicos por todo o caminho, dormiu durante toda a sesso, mas no retorno j estava se sentindo melhor. Na semana seguinte um novo mal-estar, desta vez acompanhado de uma crise convulsiva, o que nos colocou em alerta para os ricos de sua ida desta vez. Samos do CAPS e Jos, depois de tomar a medicao, repousava no posto de enfermagem. Quando samos da sesso, uma surpresa: Jos havia assistido a um dos filmes, apesar de no ter ido com o grupo e no ter entrado com nenhum dos tcnicos. Aps um tempo conversando com ele e com outros usurios entendemos que Jos acordou se sentindo melhor depois que samos e quis ir nos encontrar. Para isso conversou com Flvia, uma usuria que vai ao grupo de cinema frequentemente, mas que naquele dia havia nos dito que preferia ficar no CAPS fazendo outras atividades. Porm, atendendo aos pedidos de Jos ela o acompanhou at o cinema. Chegando l no encontraram nenhum dos tcnicos, que j estavam dentro das salas de exibio, o que deixou Jos confuso. Como os prprios funcionrios j esto habituados com o grupo, eles os acolheram, entenderam o desencontro e autorizaram a entrada de Jos na sala onde estvamos sem a necessidade de nos consultar, pois j sabiam que ele fazia parte do nosso grupo. Esta cena nos remete importncia dos funcionrios do cinema conseguirem se aproximar de Jos e Flvia e resolverem prontamente a questo, o que nos leva hiptese de que este contato por um perodo mais longo com a loucura parece permitir para estas pessoas colocar em suspenso o estigma do louco para posteriormente ressignific-lo.

Esta histria de Jos nos faz pensar tambm sobre o efeito organizador que esta atividade pode ter para seus frequentadores, pois se trata de um grupo que acontece j h bastante tempo, sem interrupes mesmo durante perodos de festas de final de ano. Esta constncia da atividade, somada a postura acolhedora dos profissionais envolvidos e ao prprio fascnio que o cinema exerce sobre as pessoas podem estar entre os motivos dela se tornar um referencial no cotidiano de muitos dos usurios, como Jos e Carmen, que ter sua histria contada mais adiante.

As mudanas nas caractersticas do grupo exigiram tambm alteraes na sua organizao. Com o aumento do nmero de participantes, desde o incio do ano frequentemente tnhamos mais de trinta usurios indo ao cinema. No entanto, o acordo feito com o espao Unibanco previa que trinta seria o mximo de ingressos disponveis por sesso no preo promocional, pois estvamos includos do projeto Escola no Cinema, com subsdios governamentais para o cinema oferecer os preos mais baixos esta regra, portanto, deveria ser seguida para que os subsdios sejam oferecidos. A soluo encontrada pela equipe, em acordo com a direo do Espao Unibanco, foi dividir o grupo em no mnimo dois, pois desta forma sempre haveria menos de trinta pessoas em cada sesso.

Anteriormente, a escolha do filme era feita pelos coordenadores do grupo, de acordo com os horrios possveis das sesses e opinio dos participantes aps assistirem aos trailers, ou saberem por outros meios de estrias que pudessem ser interessantes. No entanto, esta participao era informal, e a maioria dos usurios ficava sabendo a qual filme assistiria quando o grupo se reunia na quarta-feira. A partir desta necessidade prtica de aumentar as opes de filmes, notamos tambm que havia a uma possibilidade de maior participao dos usurios na escolha do que assistiriam. Desta forma, passamos a fixar com antecedncia em todos os murais da casa quais seriam os filmes disponveis naquela semana, escolhidos ainda a partir dos horrios. Desde ento o nmero de filmes foi de no mnimo dois e chegou a quatro em algumas semanas. No cartaz de divulgao incluamos as informaes bsicas dos filmes: sinopse, direo, durao, pas de origem, entre outras. Tal divulgao tambm contribuiu para que o nmero de participantes aumentasse e se diversificasse ainda mais, principalmente quando oferecamos filmes muitos divulgados e aguardados, como por exemplo, Tropa de Elite 2, Alm da vida, Chico Xavier, Nosso Lar, Cisne Negro, entre outros.

Desde ento, semanalmente, os profissionais coordenadores deixam disponvel na recepo do servio uma cpia deste cartaz de divulgao e listas de interessados em cada um dos filmes. Estas listas, preenchidas pelos usurios, so necessrias para a organizao da quantidade de lanches e para a compra de ingressos. A diviso dos profissionais entre as sesses tem ocorrido de acordo com o nmero de pessoas em casa sesso e tambm atendendo a necessidade de um cuidado mais prximo de alguns usurios. No entanto, estas mudanas tambm reduziram consideravelmente o espao de discusso aps os filmes, pois com os grupos divididos, havia muitos desencontros devido a diferenas de durao das pelculas e pequenas diferenas entre os horrios de exibio dos filmes. O horrio do lanche, que antes era o momento em que as discusses ocorriam mais intensamente, no mais compartilhado por todos, o que fragmentou as possibilidades de debates e temticas levantadas. Embora no haja uma discusso to intensa e formalizada aps os filmes, nota-se que os prprios usurios usam este momento para conversar entre si sobre as temticas e os coordenadores participam destas discusses em grupos menores. De qualquer modo, se mantm tambm a importncia do encontro entre os profissionais e os usurios durante os trajetos de ida e volta, momentos em que possvel abordar mais individualmente tanto questes relacionadas ao que foi assistido quanto falar sobre aspectos do cotidiano, do tratamento, das dificuldades de circulao no territrio, desejos e projetos. H entre os profissionais o desejo de retomar este espao de discusso, pois os prprios usurios relatam sentir falta dele como as entrevistas realizadas para esta pesquisa demonstram. Discusses entre a equipe tm sido feitas para que as dificuldades e tarefas da organizao no impeam a efetivao deste momento de debates.

Como dito anteriormente, o pblico do grupo foi se diversificando ao longo dos anos: alguns usurios esto vinculados ao tratamento, para outros esta atividade externa justamente um caminho para estabelecimento do vnculo, alguns tm o grupo de cinema como atividade complementar, pois conseguem manter seus espaos de estudo ou trabalho e h outros que tem suas relaes sociais e afetivas restritas, e tem o grupo como nica oportunidade de estar em outros lugares fora do CAPS e do contexto familiar, pois necessitam deste espao mais seguro para lidar com as atividades em outros contextos sociais.

Alm de levar os usurios que esto dentro do CAPS para o convvio com o que est fora, o grupo tambm tem mostrado ser um importante intermedirio para trazer quem tem dificuldades de se vincular ao servio. Foi o caso de Carmen. Em 2006 o Programa Sade da Famlia (PSF) solicitou a ajuda do CAPS para o caso de uma jovem com diversos problemas clnicos que se recusava sair de casa e negava o vnculo a qualquer tipo de tratamento. Carmen tinha uma histria de dificuldades de contato social, de passagens conturbadas por instituies escolares e de muitos anos de recluso em casa, na companhia da me. Uma das coisas que mais angustiava Carmen era justamente o contato com um ambiente mdico, e por isso a recusa adeso a qualquer tratamento. Por intermdio do PSF foi feita ento a proposta de que Carmen passasse a frequentar semanalmente o grupo de cinema, uma estratgia de aproximao para que depois fosse possvel abordar outras questes do seu tratamento. Carmen aceitou a sugesto e passou a comparecer pontual e assiduamente a todas as sesses, conseguindo com o passar do tempo falar de seu interesse pela atividade e mostrar-se confortvel com o grupo. Aps mais de dois anos de vnculo com a atividade Carmen aceitou entrar no CAPS para uma conversa informal com um mdico sobre sua hipertenso e obesidade, e s ento comeou a aceitar fazer exames, tomar medicao e pensar em outras atividades no interior do CAPS. Sua me tambm relatava que na poca ir ao cinema era a nica atividade que tirava Carmen do quarto, e que ela se envolvia com os preparativos para esta sada desde a hora que acordava: escolhia e preparava cuidadosamente as roupas, penteava os cabelos e fazia maquiagem. Com o passar do tempo Carmen aceitou conhecer outras atividades da casa, como a Assemblia de usurios, que acontece antes da sada do grupo para o cinema, e o grupo de teatro, que ela passou a participar ativamente, inclusive com a montagem de uma pea na qual ela encena uma das personagens principais. Orgulhosamente, Carmen conta que foi a primeira a decorar todas as falas e que uma das mais empenhadas no projeto. A usuria continua frequentando o grupo de cinema semanalmente e cada vez mais ganha autonomia e fora para empreender novos projetos e atividades.

Segundo Zapparoli (2009), ir ao territrio com o grupo uma possibilidade de promover o encontro entre as necessidades e os recursos, permitindo um reencontro do sujeito com a realidade urbana. Porto e Sereno (1996) dizem ainda que esta seria uma forma de ligar o sujeito e sua organizao psquica ao social.

Seriam estas possibilidades de construo de vnculos e contatos diferentes com o fora, o acolhimento dos profissionais, a constncia e regularidade da atividade e comprometimento dos envolvidos as explicaes para o fato de tantos usurios se vincularem a uma atividade que muitas vezes est distante de sua realidade, pois, como j explicitado, assistimos a filmes muitas vezes de difcil compreenso, boa parte deles legendado e necessrio ainda vencer a barreira do sedentarismo (problema j conhecido no servio) para encarar as longas caminhadas at o cinema.

Pensando no magnetismo que a atividade exerce, interessante contar da experincia de Maurcio, usurio do CAPS h mais de quinze anos e com um histrico de dezenas de internaes psiquitricas. Maurcio, como ele mesmo descreve, sabe apenas escrever o prprio nome e no sabe ler, pois as dificuldades de sua famlia o obrigaram a abandonar a escola muito cedo. Tm muitas dificuldades de organizao financeira, suas relaes familiares so bastante conflituosas e h muitos anos o CAPS faz parte do seu cotidiano, apesar de grande dificuldade de aderir a atividades propostas por seu projeto teraputico. Tem tambm muitas dificuldades de reconstruir sua prpria histria e acontecimentos de seu cotidiano, seus relatos so truncados e esbarram em uma desorganizao do pensamento que dificulta a compreenso. O usurio sempre perde seus documentos, cartes de banco e carto da Sptrans, pois tem tambm problemas para organizar e cuidar de seus pertences, o que gera muitas angstias, j que para ele rduo circular sozinho pela cidade para tirar segunda via de tudo que perde. Maurcio passa os dias tentando vender produtos dentro do CAPS e pensando em meios de conseguir fazer muitos jogos na loteria, j que acredita que esta seria a nica forma de resolver seus problemas financeiros e ter uma vida melhor. Maurcio se vinculou ao grupo de cinema e demonstrava grande fascinao pelas histrias que via na tela, mesmo sem conseguir acompanhar os dilogos na maioria dos filmes, por serem legendados. Ele saa das sesses animadamente recontando e reconstruindo a histria que acabara de ver, baseado nas imagens e sons e vido por tirar dvidas que teve ou buscar ligao entre partes que no entendia. Ele tambm se beneficiava muito das caminhadas feitas, momentos em que conseguia entrar em contato com outras pessoas sem o intermdio de seus produtos ou do jogo.

As mudanas no funcionamento do grupo tornaram necessrias tambm as idas mais frequentes a outros cinemas da regio, pois pelo menos uma vez por ms os filmes em cartaz no Espao Unibanco no horrio que frequentamos coincidem com filmes j vistos em semanas anteriores. Estas idas a lugares mais distantes so sempre desafiadoras, pois o caminho mais longo e desconhecido por boa parte dos usurios e por vezes temos que pegar o metr para chegar ao destino, por exemplo, quando escolhemos o cinema do shopping Santa Cruz. H muitos participantes da atividade que tem dificuldades para circular sozinho pela cidade, por isso recorrer ao transporte pblico e se expor ao intenso movimento dele representa para ns, tcnicos, um cuidado redobrado com os que no tem autonomia. Nestes momentos percebemos a fora e coeso do grupo, pois ntido o cuidado que eles tm uns com os outros, sobretudo nestes espaos mais inspitos. Tal cuidado ficou evidente em uma cena envolvendo Ldia e Silvana.

Ldia frequenta o servio h alguns anos, com dificuldades de se vincular a projetos e atividades. Por vezes fica longos perodos sem comparecer ao CAPS, e frequentemente est desorganizada, confusa e irritada com tudo e com todos. casada com outro usurio do servio, com quem tem uma relao de graves conflitos e que acabam por interferir diretamente no seu tratamento. Ambos solicitam da equipe intervenes em seus problemas conjugais, que marcado por separaes e retornos. Quando em crise, Ldia, assim como Ivonete, tambm conhecida por todos pelos seus gritos, por quebrar e atirar objetos e agredir verbalmente a equipe e demais usurios do servio. Fora do CAPS tambm se envolve em brigas frequentes, sobretudo com vizinhos. Sua desorganizao frequente marca seu discurso e suas aes, mas mesmo assim Ldia uma das participantes do grupo que circula pela cidade sozinha, sem a necessidade de algum a acompanhando o tempo todo. No grupo de cinema Ldia vai esporadicamente, e sempre que vai sai antes do trmino das sesses, depois de expor para todos os presentes qual foi se incmodo com o filme. Sua presena a que mais gera reclamaes entre os demais frequentadores do cinema, pois de fato ela grita, faz comentrios durante toda sua permanncia na sala e fica muito irritada se um tcnico ou outro usurio tentam intervir de alguma forma.

J Silvana entrou no servio no final de 2010 e sua filha, que sempre a acompanha ao CAPS, contou que sua me no sai sozinha de casa j h bastante tempo, no consegue se localizar e j se perdeu na rua algumas vezes, sem conseguir voltar para casa. Silvana tem como caracterstica uma apatia que s quebrada para acender dezenas de cigarros por dia, mas a maior parte do tempo ela pouco fala e no expressa suas vontades e desejos. Quando suas referncias propuseram que ela frequentasse o grupo de cinema, a filha nos alertou para o fato da necessidade de ter algum prximo para evitar que ela se perdesse, pois se isto ocorresse sem dvidas no conseguiria voltar para casa ou para o CAPS.

Silvana comeou a frequentar o grupo em um dia de muita agitao na casa, pois a Assemblia que ocorre logo antes da sada do grupo foi muito tensa e muitos usurios entraram em crise, necessitando de acolhimento. Ldia foi um deles, pois saiu da sala gritando muito e agredindo a todos. Neste dia havamos marcado de ir ao Shopping Frei Caneca, pois era uma das semanas em que nossas opes no Espao Unibanco estavam escassas. Em meio a uma grande confuso e um grande nmero de participantes, samos do CAPS. Ldia quis ir conosco de qualquer forma e quando notamos, estava de braos dados com Silvana. Elas, que no se conheciam, ficaram bastante prximas logo de incio. Ao chegar ao shopping notamos que Ldia e Silvana no estavam mais junto com o restante do grupo, o que causou grande apreenso, j que Silvana no conseguiria sozinha achar o caminho de volta. Um dos tcnicos deixou de entrar na sesso para procur-las, sem sucesso inicialmente. Elas no haviam retornado ao CAPS e nem estavam no caminho que nos leva ao shopping, pois o tcnico retornou pelo mesmo. Aps algumas horas de desespero, Ldia e Silvana retornaram ao CAPS. Elas ento contaram que se perderam em uma esquina e Ldia, acostumada a ir ao Espao Unibanco, se dirigiu para l. Chegando l no nos encontrou e decidiu passear um pouco com Silvana e pagar um caf a ela, para ento retornarem ao servio. Interessante notar que Ldia, que sempre foi cuidada pelos tcnicos e pelos demais participantes do grupo, por ser confusa e brigar com outras pessoas, neste caso ficou na posio de cuidadora, pois mesmo com sua prpria confuso, percebendo a fragilidade de Silvana teve o cuidado de lev-la de volta ao CAPS. Apesar de no ser o enfoque deste trabalho abordar as questes grupais que ficam ntidas nesta experincia, notamos que h de fato uma identidade grupal, h papeis definidos dentro desta grupalidade (BLEGER, 2003), h uma tarefa a ser cumprida, podendo-se considerar este como um grupo operativo, de acordo com as definies de Pichon-Rivire (2005) e tal como um grupo operativo, tem como uma de suas funes a promoo da sade mental. Sugere-se que estes aspectos grupais sejam aprofundados em um trabalho futuro.

Alm das mudanas citadas, neste ano houve tambm a sada da auxiliar de enfermagem Priscila, em decorrncia de mudanas em seu horrio de trabalho e, alguns meses depois, a entrada do psiclogo Allan Saffioti, tambm concursado do Estado e que veio transferido de outra instituio. Pela quantidade de usurios que frequentam o espao, grande nmero de tarefas que envolvem a organizao do grupo e potencial desta atividade como espao teraputico, sem dvidas seriam necessrios mais profissionais envolvidos, para que desta forma seja possvel manter justamente os aspectos do grupo que chamaram a ateno para este trabalho: a funo de acolhimento, possvel pela disponibilidade dos profissionais envolvidos; seu papel de organizao do cotidiano, devido a funo estruturante da constncia de datas, horrios, segurana; funo de lugar de comunicao, de ensaio para ocupar o territrio, entre outras funes que podemos considerar ter um efeito teraputico para os usurios que dele participam.

3. TERRITRIO E SADE MENTAL

A lei de instaurao dos CAPS no pas (GM/MS 336/02) e as diretrizes de trabalhos dos mesmos (BRASIL, 2004), preconizam que estes servios tenham uma atuao em rede, utilizando os recursos do territrio: os CAPS devero constituir-se em servio ambulatorial de ateno diria que funcione segundo a lgica do territrio (BRASIL, 2002). A concepo de territrio, neste caso, transcende a rea geogrfica e diz respeito tambm a pessoas que nele habitam, suas questes culturais, tnicas, suas instituies e cenrios, que incluem escolas, cinemas, igrejas, entre outros. Esta noo est de acordo com as concepes de Milton Santos (2002, p. 70), que afirma que o territrio a construo da base material sobre a qual a sociedade produz sua prpria histria.

Com base nestas diretrizes, os projetos e atividades do CAPS deveriam ser pensados considerando-se a importncia de se realizar tambm atividades externas e que envolvam a comunidade, o que contribuiria tambm para uma mudana na posio dessas pessoas historicamente excludas do contexto social: o paciente primeiro um cidado e depois um quadro psicopatolgico (LANCETTI, 2000, p. 19).

Segundo Nascimento e Galvanese (2009), que efetuaram uma ampla pesquisa nos CAPS da cidade de So Paulo, as atividades oferecidas nos servios so sobretudo grupais e realizadas dentro da estrutura fsica dos servios, com predomnio de atividades de arte, cultura e socializao. O estudo aponta ainda que, de maneira geral, a preocupao dos tcnicos e dos usurios est mais voltada para acontecimentos internos e que h de fato dificuldades de articulao com o territrio. Esta , portanto, uma dificuldade com a qual as instituies precisam lidar no seu cotidiano, atravs da criao de aes que permitam uma projeo para o exterior. Concluso semelhante elaborada no trabalho de Juc, Lima e Nunes (2008). Os autores afirmam que h grande importncia de algumas atividades serem realizadas na comunidade, sejam estas promovidas pelo CAPS ou no, para que possa haver integrao entre os usurios e sujeitos que habitam o mesmo territrio. No entanto, nas instituies envolvidas em seu estudo havia a concentrao destas atividades no espao interno.

Sair de dentro dos CAPS representa uma possibilidade de romper com o iderio da loucura excluda e marginalizada, imagem construda pela longa histria de isolamento dos pacientes dentro dos hospcios que eram, em sua maioria, construdos distante dos principais ncleos urbanos e tinham pouco contato com o mundo exterior (YASUI, 2008). Os CAPS com seu modelo de assistncia permitiriam uma produo de cuidado em sade mental em dilogo com o lugar que habita, podendo at mesmo criar recursos e promover novos espaos nos lugares as opes so precrias e h escassez de espaos de lazer e produo cultural. Sabe-se que o CAPS Itapeva uma das instituies mais privilegiadas na cidade em termos de recursos para estas atividades, pois a realidade das comunidades da periferia so muito diversas. Justamente por isso, importante salientar que os servios podem tambm ter este papel de estimular e criar novas possibilidades. Segundo Yasui (2008, p. 3) um desafio construir a partir destes espaos urbanos, quase nulos de trocas sociais, espaos pblicos como lcus teraputico, de interveno, de inveno, de montagens e instalaes permanentes a todos, loucos ou no, que habitam as cidades.

Yasui (2008) afirma que h uma tendncia nestes servios de centralizar as aes dentro da instituio, o que alm de causar uma sobrecarga de seus profissionais, dificulta o dilogo com a prpria rede de sade que serviria de parceira, como as UBSs, equipes do NASF, CAPS lcool e drogas, entre outros. Ainda segundo o autor, uma equipe que se concentra apenas em seus prprios recursos pode estar fadada a exaurir-se em sentimentos de impotncia e solido. (p. 4).

Outra dimenso a se considerar na afirmao da importncia da apropriao do territrio, que suas contribuies envolvem questes clnicas, por meio do resgate do sujeito, e questes polticas, por meio da conquista da cidadania e desconstruo da imagem do louco institucionalizado (JUC; LIMA; NUNES, 2008). A atividade grupal do CAPSCine contribui para esta desconstruo, como apontado pelos prprios usurios nas entrevistas realizadas.

Com relao s questes clnicas, pode-se embasar a atuao no territrio pelos estudos desenvolvidos na clnica do Acompanhamento Teraputico (AT). Isto por que, como j salientado, h aproximaes entre o que feito no CAPSCine e o que proposto por esta prtica. Assim como no AT, definida como uma clnica que se preocupa em romper o isolamento dos sujeitos psicticos, deficientes e outros que demandam tratamento (BERGER, 1997), utilizamos a rua como espao teraputico (HERMANN, 2001) e encaramos as possveis dificuldades de operar intervenes em um espao desprovido da segurana que os contornos institucionais podem trazer. Se h esta insegurana por um lado, surge tambm uma infinidade de possibilidades quando nos lanamos ao desafio de encarar o inusitado, o imprevisvel:

Nas narrativas destes acompanhantes-terapeutas evidencia-se a importncia das ruas da cidade no s como cenrio, mas principalmente como recurso possibilitador de acontecimentos que dizem respeito ao fora, tanto no sentido geogrfico-espacial, quanto no sentido existencial e subjetivo, uma vez que acompanhantes e acompanhados so a lanados para o desconhecido. (OLIVEIRA NETO, 2003)

Isto exposto, pode-se afirmar que atividades realizadas fora do muro das instituies permitem uma mudana de posio subjetiva dos sujeitos envolvidos e um rompimento de seu isolamento, ambos com o intuito de dar autonomia aos envolvidos, no sentido proposto por Tykanori (2004, p. 57)

Entendemos a autonomia como a capacidade de um indivduo gerar normas, ordem para a sua vida conforme as diversas situaes que enfrente. Assim, no se trata de confundir autonomia com auto-suficincia nem com independncia. Dependentes somos todos; a questo dos usurios antes uma questo quantitativa: dependem excessivamente de apenas poucas relaes/coisas. Esta situao de dependncia restrita/restritiva que diminui sua autonomia. Somos mais autnomos quanto mais dependentes de tantas coisas pudermos ser, pois isso amplia as nossas possibilidades de estabelecer novas normas, novos ordenamentos para a vida.

Partindo destes pressupostos, o prximo captulo se dedicar a pensar na possibilidade de acolhimento destes usurios no contexto de uma atividade que explora o territrio, enfatizando que este acolhimento traz contribuies para a apropriao do espao por parte destas pessoas.

4. O ACOLHIMENTO COMO DISPOSTIVO DE TRATAMENTO

Referenciado nos princpios e nas diretrizes da Poltica Nacional de Humanizao da Ateno e Gesto (PNH), foi elaborado o texto Acolhimento nas prticas de produo de sade (BRASIL, 2006), que tem como objetivo definir o que o acolhimento no contexto do atendimento no Sistema nico de Sade (SUS), discutir as formas de efetiv-lo e as contribuies que ele pode trazer para o cumprimento dos princpios de universalidade, integralidade e equidade dos atendimentos do SUS. De acordo com este documento a estratgia de acolhimento seria implantada para garantir espaos de conversa entre a rede familiar e social do usurio com a equipe, e desta forma envolver tcnicos, usurios e comunidade. Seria ento uma forma de postura e prtica nas aes de ateno e gesto nas unidades de sade, construindo uma relao de confiana e compromisso que favoreceria tanto a promoo de sade para os usurios dos servios, quanto a aliana entre trabalhadores, usurios e gestores para a defesa do SUS como poltica pblica essencial da e para a populao brasileira (BRASIL, 2006, p. 4).

Para definir ento o que seria o acolhimento, o texto utiliza significados do dicionrio para o termo: dar acolhida, admitir, aceitar, dar ouvidos, dar crdito a, agasalhar, receber, atender, admitir (BRASIL, 2006, p. 6). Isto implica que o ato de acolher envolve uma aproximao, estar em relao com algum. Silveira e Vieira (2005) definem ainda

O acolhimento pode ser expresso num olhar dirigido a quem chega ao servio, em uma palavra entonada de forma mais acolhedora, pode estar presente em atividades de sala-de-espera que estejam para alm da recepo, num gesto que demonstre que o espao do servio constitui-se verdadeiramente numa referncia constante para o sujeito.

O trecho acima cita o ato de acolher direcionado para quem chega ao servio, mas o documento citado (BRASIL, 2006) alerta ainda para a necessidade de que o acolhimento e as prticas acolhedoras estejam presentes em todas as prticas cotidianas da instituio, no estando portanto restritas a alguns momentos ou atividades. Tais constataes foram formalizadas aps experincias prticas de vrias unidades de sade, nas quais h grandes divergncias sobre a definio e funo do acolhimento. H muitas, por exemplo, em que o acolhimento entendido em uma dimenso espacial, ligada a recepo do usurio e ambiente confortvel, e em uma dimenso administrativa, ligada a triagem e encaminhamento para outros servios. No entanto, o documento aqui apresentado enfatiza que s h sentido neste acolhimento inicial se ele for pensado como uma passagem para outras acolhidas que objetivam a produo de sade.

O acolhimento ento seria uma diretriz que inclui dimenses ticas, estticas e polticas. tica no sentido de reconhecer o outro com seus sofrimentos, suas dores, suas diferenas e seus modos particulares de viver e sentir. A dimenso esttica estaria representada pelo uso dos encontros como meio de se dignificar a vida e construir a humanidade; e por fim, a dimenso poltica estaria relacionada com o compromisso coletivo de estar em unio, potencializando os encontros.

Como h lacunas e desencontros nos modelos de ateno e de gesto dos servios no que diz respeito ao acesso e ao tratamento oferecido, o SUS tem buscado por meio destes textos estabelecer princpios de atuao que promovam mudanas nas prticas e garantam que o processo de produo de sade seja um trabalho coletivo e cooperativo. Por isso, pode-se afirmar que o acolhimento um processo de trabalho em sade que enfoca as relaes, buscando o reconhecimento do usurio do servio como sujeito. Para isso, trata-se de uma postura tica que no pressupe hora para ser realizada, tampouco um profissional especfico para faz-lo. Implicaria, portanto, uma postura que esteja atenta a diversidades raciais e culturais e que procure um dilogo entre as demandas dos usurios e as possibilidades de resposta nos servios.

Na sade mental tal noo de acolhimento se mantm, segundo documentos especficos da rea:

As aes de sade mental na Ateno Bsica devem obedecer ao modelo de redes de cuidado, de base territorial e atuao transversal com outras polticas especficas e que busquem o estabelecimento de vnculos e acolhimento (BRASIL, 2004, p. 79).

Seguindo estes princpios, os CAPS devem oferecer tanto o acolhimento na porta de entrada quanto no cotidiano da instituio e das prticas. H ainda nestes servios a noo do acolhimento em crise, essencial para o cumprimento do objetivo dos CAPS de atendimento a transtornos psquicos graves para evitar internaes. Segundo o documento Sade Mental no SUS: Os Centros de Ateno Psicossocial, os CAPS devem ter um ambiente teraputico e acolhedor, que possa incluir pessoas em situao de crise, muito desestruturadas e que no consigam, naquele momento, acompanhar as atividades organizadas da unidade (BRASIL, 2004, p. 17).

No CAPS Itapeva h equipes de acolhimento divididas por turno, e est hoje baseada na disponibilidade dos profissionais para atendimento de todas as demandas no programadas e crises, com participao obrigatria de todos os tcnicos e deve ocorrer por meio de uma posio ativa dos tcnicos, pela proximidade com usurios em ambincia e disponibilidade.

Alm desta noo de acolhimento que usa conceitos da rea da sade, pode-se tambm fazer aproximaes com conceitos clnicos, ampliando esta presena e disponibilidade para uma escuta diferenciada, uma postura que se aproxima das noes da clnica do manejo de Winnicott. Este autor enfatiza que as relaes estabelecidas entre a me e o beb e o ambiente em que ele vive so essenciais para o desenvolvimento da criana, deixando claro que a psicose estaria relacionada atrasos e distores, regresses e distrbios, nos estdios iniciais de crescimento da organizao meio ambiente-indivduo (WINNICOTT, 1982, p. 386). Segundo o autor (1990) Tais atrasos se dariam nas experincias mais precoces do desenvolvimento e no teriam relao com as tenses no nvel dos relacionamentos interpessoais. Esta fase mais precoce conhecida como estgio de dependncia absoluta, quando o beb totalmente dependente dos cuidados da me, mas ainda no se distingue do mundo externo. De forma resumida, se h falhas nesta fase, o beb entra em um estado de retraimento que o leva a um processo de desrealizao e perda de contato com a realidade, permanecendo em um estado de no-integrao.

Winnicott apresenta ainda trs principais funes que deveriam ser exercidas pela me nesta fase de dependncia absoluta, e que marcam o sucesso ou fracasso do processo de desenvolvimento. A primeira chamada de apresentao do objeto, e no ser aqui explorada. A segunda denominada holding, que pode ser entendido como uma sustentao psquica que permite o contato com experincias integradas de tempo e de espao e a terceira o handling, ou manejo, responsvel pela noo de que o beb est dentro de um corpo. Neste contexto haveria a possibilidade do aparecimento dos objetos transicionais, intermedirio entre a realidade externa e interna:

Essa rea intermediria de experincia, incontestada quanto a pertencer realidade interna ou externa (compartilhada) constitui a parte maior da experincia do beb e, atravs da vida, conservada na experimentao intensa que diz respeito s artes, religio, ao viver imaginativo e ao trabalho cientfico criador. (WINNICOTT, 1982, p. 406)

Tal noo de objeto transicional contribuiu tambm para que o autor repensasse conceitos de transferncia no processo analtico, propondo que o paciente, na relao estabelecida com o analista, poderia us-lo tanto como um objeto transicional quanto como um objeto que de fato objetivo. Desta forma, analista e paciente estariam envolvidos em um processo analtico mais amplo dentro do contexto analtico, no qual ambos esto sendo criados e encontrados um pelo outro (KHAN, 1982, p. 23).

Da mesma forma, o analista poderia tambm fornecer ao paciente regredido ao estado de dependncia absoluta um setting que proporciona holding. Segundo Winnicott (1990, p. 216): Ver-se- que o analista est sustendo o paciente e isto muitas vezes toma a forma de transmitir em palavras, no momento apropriado, algo que revele que o analista se d conta e compreende a profunda ansiedade que o paciente est experimentando.

Com relao ao manejo, Khan (1982) afirma que este estaria mais relacionado ao manejo da situao do que interpretao. Neste sentido o autor explicita que seria essencial o silncio e a ausncia de intruses sobre o paciente, e/ ou a presena fsica, e/ou a liberdade dada ao paciente de andar ou simplesmente estar ali, ou fazer o que lhe parecer necessrio (p. 28).

Esta clnica do manejo pode ser realizada em um setting ampliado, caracterstico de um contexto institucional. Para isto, necessrio que o paciente estabelea com a instituio uma relao de confiana, que pode ser conquistada pela regularidade, estabilidade do ambiente e capacidade de continncia.

No contexto do CAPSCine, grupo aqui analisado, entende-se que a regularidade, disponibilidade dos profissionais, comprometimento com a atividade e capacidade de acolher crises, o configuram como um efetivo espao de holding e de manejo clnico, pois h uma presena fsica marcada ao mesmo tempo pela disponibilidade, pelo respeito aos silncios quando estes so necessrios. O manejo, dessa forma, fornece um ambiente adaptado, no intrusivo, que faltou a esta pessoa em seu processo de desenvolvimento.

Nossa experincia com o grupo mostra que o manejo, como acima compreendido, da situao de ida ao cinema pelos tcnicos, pode configurar, para o usurio, uma abertura para determinadas experincias de sentir, existir ou ser. Nesse sentido, o cinema, experenciado por muitos como parte de um mundo hostil e ameaador, quando apresentado por um outro que presena humana, pode-se tornar um lugar hospitaleiro, humano, em que h lugar para ele tambm.

O grupo de cinema lana a possibilidade do estabelecimento de uma situao: a sada do CAPS, a caminhada at o cinema, o contato com uma atividade cultural no territrio e com outras pessoas que no esto em situao de cuidado, a experincia mesma que o cinema enquanto arte pode proporcionar, as conversas depois da exibio, a volta para o CAPS ou direto para casa. Essa situao, que no a aplicao de uma tcnica, permite ao usurio se manifestar em vrios momentos, pois a presena no intrusiva permite a superao da hesitao e a apario do tempo prprio de cada usurio. E a situao mesma, sustentada pela presena humana dos tcnicos, provoca mudanas, sem ter a necessidade de interpretao nos moldes clssicos, ou a necessidade de ser educativa. Nesse sentido, a situao toda ser mais um espao de experincia do que um lugar de cognio (SAFRA, 2005).

O territrio, quando apresentado atravs da situao da ida ao cinema por um grupo de pessoas que no os tratam de maneira formal, mas so presena, possibilita ao usurio do CAPS, geralmente marcado pela excluso e no-pertena, a esperana de emergir como ser existente e inserido na cultura e com outros homens.

5. METODOLOGIA

O procedimento metodolgico para a realizao deste trabalho pode ser dividido em duas partes principais, ambas baseadas na anlise qualitativa dos dados, que para Goldenberg (2001) so descries detalhadas de situaes que permitem compreender os indivduos de acordo com seus prprios termos. Na anlise qualitativa o pesquisador busca exemplos que possam revelar elementos da cultura em que esto inseridos, no sendo o mais importante o nmero de pessoas pesquisadas, pois a mensurao e quantificao deixam de ser os objetivos da pesquisa. Segundo Bogdan e Biklen (1994)

Um campo que era anteriormente dominado pelas questes da mensurao, definies operacionais, variveis, testes de hipteses e estatstica alargou-se para contemplar uma metodologia de investigao que enfatiza a descrio, a induo, a teoria fundamentada e o estudo das percepes pessoais. Designamos esta abordagem por Investigao Qualitativa. (p. 11)

A primeira parte da pesquisa, j apresentada anteriormente, envolve uma descrio e anlise de dados do grupo eleito para ser objeto de estudo, o CAPSCine. O mtodo utilizado o relato de experincia da autora neste grupo teraputico que est inserido dentro de uma instituio, e, portanto, atravessado por caractersticas dela. Desta forma, opta-se por narrar a histria do grupo desde seu incio e relatar algumas cenas vivenciadas na experincia com estes usurios, buscando articulaes tericas com o referencial escolhido. Esta reconstruo da histria e relato de cenas nos deu elementos para construir o roteiro de entrevista. Na segunda parte da pesquisa, os pontos principais do relato, j discutidos no incio deste trabalho, foram utilizados para fomentar o dilogo com as entrevistas, realizado na anlise destas, aprofundando e discutindo os encontros e desencontros entre os relatos de experincia dos usurios no grupo de cinema e as hipteses da autora.

Esta segunda parte envolve uma anlise qualitativa destas entrevistas, com o objetivo de continuar a discusso sobre este grupo, mas a partir da forma como os prprios participantes o vem. A entrevista, segundo Bogdan e Biklen (1994) um instrumento amplamente utilizado em pesquisas qualitativas, por possibilitar que, a partir da prpria linguagem do entrevistado, o investigador se aproxime da maneira como o outro v aspectos da sua vida.

5.1 Entrevistas

A pesquisa de campo deste trabalho foi feita com trs usurios do CAPS Itapeva que participam assiduamente do grupo CAPSCine, atravs de entrevistas semi-estruturadas que foram posteriormente analisadas. Nas pesquisas qualitativas h diferentes formas de se estruturar uma entrevista, sendo que o modelo semi-estruturado permite que o pesquisador faa perguntas especficas, mas mantm a possibilidade do entrevistado responder de acordo com seus prprios termos. Alm disso, nas entrevistas semi-estruturadas fica-se com a certeza de se obter dados comparveis entre os vrios sujeitos (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p.135).

Foram convidadas para entrevista duas pessoas do sexo masculino e uma do sexo feminino, com idade entre 23 e 53 anos. A escolha dos entrevistados foi aleatria quanto a sexo, idade e escolaridade e usou como critrio o tempo de participao no grupo (superior a um ano), a concordncia com a participao e a disponibilidade para a realizao da entrevista fora do horrio da atividade. Para o que esta pesquisa pretende investigar, os critrios o gnero, idade e escolaridade no eram relevantes na escolha dos entrevistados. O critrio de tempo de participao no grupo foi utilizado por ser importante conhecer o funcionamento da atividade, estar familiarizado com a organizao da mesma e ter vnculos com o grupo. Esta questo do tempo de participao no grupo importante pois s aps a vinculao e a frequncia regular no grupo possvel pensar de que forma o vnculo com o grupo ocorreu, quais situaes e pessoas contriburam para este vnculo, de que forma o CAPSCine contribui para a apropriao do territrio ou para a organizao do cotidiano de seus participantes.

O nmero de entrevistados foi definido a partir dos propsitos da pesquisa e est de acordo com os preceitos da pesquisa qualitativa, que no coloca como prioridade o nmero de participantes. A escolha da entrevista como mtodo foi baseada no fato de que a fala dos participantes deste grupo fundamental para entender suas possveis contribuies, e por que, de acordo com Duarte (2004)

Nesse caso, se forem bem realizadas, elas permitiro ao pesquisador fazer uma espcie de mergulho em profundidade, coletando indcios dos modos como cada um daqueles sujeitos percebe e significa sua realidade e levantando informaes consistentes que lhe permitam descrever e compreender a lgica que preside as relaes que se estabelecem no interior daquele grupo, o que, em geral, mais difcil obter com outros instrumentos de coleta de dados. (p. 215)

Todas as entrevistas foram realizadas individualmente no incio de fevereiro de 2011 em salas de atendimento do servio. Elas foram agendadas previamente com os entrevistados fora do horrio de atividade do CAPSCine e teve durao mdia de trinta minutos. Aps a explicao dos propsitos da pesquisa e da leitura do termo de consentimento (ANEXO 2), todas as entrevistas foram gravadas mediante autorizao dos entrevistados, para serem posteriormente transcritas. Estas transcries (ANEXO 3) foram feitas respeitando as falas do entrevistador e dos entrevistados de forma literal. Nas transcries foram atribudos aos participantes nomes fictcios, assim como nos relatos de cena ao longo desse trabalho, com o objetivo de preservar o sigilo e a identidade dos participantes, conforme acordado no termo de consentimento. Esta etapa da pesquisa est de acordo com os princpios ticos propostos pelo Conselho Nacional de Sade (Resoluo 196/96).

Para todas as entrevistas foi utilizado um roteiro (ANEXO 1), elaborado a partir dos objetivos da pesquisa e que foi utilizado como um disparador do dilogo. As questes buscam identificar, principalmente:

Identificao quanto idade e escolaridade;

de que forma estas pessoas chegam atividade;

os motivos de adeso a ela;

as relaes que os usurios tinham com o cinema antes do grupo e quais eles tem hoje;

percepes e vivncias sobre as mudanas ocorridas na organizao do grupo ao longo do ano.

5. 2 Anlise dos dados

A anlise dos dados foi feita por meio de processos qualitativos de anlise, enfatizando-se a anlise de contedo, com a explorao do material obtido nas entrevistas para, a partir da organizao das informaes, fazer interpretaes e inferncias (BARDIN, 1979). Segundo a autora a anlise do contedo se caracteriza por

Um conjunto de tcnicas de anlise das comunicaes visando obter, por procedimentos, sistemticos e objetivos de descrio do contedo das mensagens, indicadores (quantitativos ou no) que permitam a inferncia de conhecimentos relativos s condies de produo/recepo (variveis inferidas) destas mensagens. (Bardin, 1979, p.42)

Dentre as formas possveis de utilizao da anlise do contedo, a aqui utilizada ser a anlise temtica, em que o tema a unidade de significao a ser trabalhado e que pode ser extrado do texto a partir de categorias de leitura (MINAYO, 2000). H diferentes etapas para tal anlise. Na primeira, denominada pr-anlise, efetua-se uma leitura flutuante do material obtido, com a retomada dos objetivos e hipteses da pesquisa, levantamento de temas e pesquisa bibliogrfica para aprofund-los. Na segunda etapa passa-se explorao do material, que pode ser feita por meio de recortes, selees, buscando o ncleo do texto e determinando as categorias de anlise. J na ltima fase passa-se ao tratamento dos resultados obtidos, com a interpretao dos dados a partir das hipteses e objetivos retomados anteriormente. Nesta fase opera-se tambm a articulao terica com os referenciais estudados.

Portanto, o que se segue so divises temticas das falas dos entrevistados, destacando-se aqueles que aparecem com mais frequncia e que tem relaes com a viso do grupo como espao de acolhimento e de explorao do territrio, temas centrais neste trabalho e que configuram o objetivo geral da pesquisa

6. RESULTADOS E DISCUSSO

6.1 Quem so os entrevistados

Utilizando os relatos das entrevistas, dos pronturios e de informaes passadas ao longo do ano de convvio, segue uma breve caracterizao dos participantes da pesquisa, enfatizando suas origens, relaes familiares, escolaridade, idade, entre outros. Atualmente h grande diversidade entre os participantes do CAPSCine, que atende usurios intensivos e semi-intensivos, de vrias idades e escolaridades. Desta forma, atende seus objetivos de ser um grupo aberto que atende a todos os usurios da casa.

Ronaldo tem 34 anos, nasceu em So Paulo e mora na cidade desde ento. Filho nico, sempre residiu com os pais e no terminou o ensino mdio, pois segundo seus relatos, comeou a ficar doente nesta poca. Ronaldo tambm no trabalhou formalmente, fez apenas alguns trabalhos temporrios, principalmente de office-boy. No se lembra h quanto tempo faz tratamento no servio, mas de acordo com seu pronturio, ele passou por triagem h mais de seis anos. Participa semanalmente do CAPSCine e no consegue ir sozinho, est sempre acompanhado por seu pai e, mais raramente, por sua me.

Quando ele no pode vir minha me vem. Eu no consigo sair sozinho, no gosto, acho que sozinho assim no caminho ruim, a ele vem, na sexta tambm e quando tenho as consultas.

Atualmente suas atividades no CAPS esto restritas s consultas mdicas, ao CAPSCine e ao grupo de curtas, estes dois ltimos com propostas semelhantes. Relata que j participou de outras atividades, mas perdeu o interesse com o passar do tempo.

Pedro tem 53 anos, economista e atualmente reside sozinho em um quarto alugado de hotel. Nasceu em So Paulo e morou aqui at aproximadamente 25 anos, quando foi morar no exterior. Aps mais de dez anos longe do pas ele retornou, e desde ento passa por dificuldades para se readaptar. Teve alguns empregos desde que retornou:

Eu dava aula de Francs, trabalhei em uma empresa, concorrente do Serasa. E j to indo para o terceiro ano nessa, j faz muito tempo que estou afastado, terceiro ou quarto j, nem sei, que eu trabalho para a prefeitura. Sou funcionrio da prefeitura, trabalho com morador de rua.

Em meados de 2009 passou pela triagem no servio, aps uma tentativa de suicdio. Atualmente o nico familiar prximo seu irmo, com quem mantm uma boa relao, pois seus pais j faleceram h um tempo. Pedro tem problemas com uso de lcool e tem crises frequentes em que se recusa a sair de casa. Por isso, seu tratamento no CAPS passou a ser intensivo, com a proposta de atividades abertas, como grupos de acolhimento, grupo de cinema, um grupo de psicoterapia fechado e terapia individual com uma psicloga.

Maria tem 23 anos, a filha mais nova de trs irmos, a nica que ainda reside com os pais. Tem ensino mdio completo e atualmente faz planos de ingressar em um curso pr-vestibular. Tem o desejo de cursar psicologia ou pedagogia. Maria j trabalhou formalmente como operadora de caixa, mas est afastada do emprego h quase cinco anos. Ela veio ao servio em 2006, encaminhada pelo CAPS de Carapicuba, onde residia. Maria um dos exemplos de tratamento em parceria entre o CAPS Itapeva e o PROVE (Programa de Atendimento a Vtimas de Violncia), programa ligado a UNIFESP e que tem uma equipe de profissionais atuando tambm no CAPS. Tal parceria foi feita ao se constatar que o quadro de Maria tinha relaes com um episdio de violncia sofrido por ela:

Eu estava voltando para casa e me agrediram. A, no tinha nem uma hora que eu tinha sado da empresa, eu estava em lugar para pegar o trem, a me agrediram e eu fiquei com estresse ps-traumtico e depresso.

Atualmente Maria frequenta o CAPS para atendimentos individuais, participao em grupo de terapia ocupacional, grupo de teatro e Oficina dos Anjos, projeto trabalho no qual os usurios produzem artigos de artesanato para comercializao. Maria provavelmente deixar de frequentar o grupo de cinema neste ano e reduzir sua presena no CAPS para se dedicar a outros projetos, como o cursinho pr-vestibular.

6.2 As experincias no CAPSCine

Os participantes do CAPSCine relataram ao longo das entrevistas de que forma se deu seu acesso ao grupo. Como ocorre com a maioria dos grupos abertos da instituio, o contato inicial se d por sugestes das referncias ou por convite em ambincia dos profissionais envolvidos e dos prprios usurios. O grupo de cinema, pela quantidade de participantes que agrega atualmente, causa uma grande movimentao na casa, o que contribui para que haja um aumento da procura espontnea dos usurios.

As falas dos usurios demonstram esta diversidade de formas de se chegar ao grupo. Ronaldo conta em sua entrevista que a indicao do grupo foi feita por seu mdico, em um momento em que ele aderia apenas s consultas mdicas:

Foi o meu mdico (...) Naquela poca eu s vinha nas consultas e ele achava que eu tinha que fazer mais coisas, a quando eu falei que gostava de filmes ele me apresentou a Snia. E a depois o Ren me falou do outro grupo de sexta e eu comecei a ir tambm. E eu comecei a vir todas as semanas com meu pai.

No caso de Ronaldo, o grupo permitiu tambm que ele retornasse a atividades dentro da instituio, pois o vnculo com os profissionais da atividade o incentivou a frequentar outras atividades. Nesta fala fica evidente tambm a abertura para a participao dos familiares nas atividades, algo muito importante para Ronaldo neste momento.

J no caso de Pedro o convite foi feito de informalmente em ambincia, e acabou por se adequar ao seu projeto teraputico em um momento em que ele passava ao regime intensivo. Nesta fala, Pedro tambm fala da sua falta de participao nas atividades:

Me chamaram deve ter sido o Ren (...). , por que eles no colocavam anncio como vocs fazem agora. Eu acho que foi. E eu no sabia do grupo, mas tambm eu no sabia por que eu no comia aqui, no participava de nada

Maria teve o convite para entrar no grupo logo que passou por triagem, algo que tambm se tornou comum ao longo do tempo. Este grupo visto por muitos profissionais como um dispositivo de adeso ao tratamento e de compreenso do caso, por possibilitar um contato com o usurio em um espao diferenciado.

A primeira semana que eu vim eu j comecei a ir (...). Foi o Ren [quem falou do grupo], ele que estava no acolhimento a ele j falou do grupo e eu comecei a ir.

Se as formas de iniciar o percurso no grupo podem ser diversas, encontra-se muitas semelhanas nos motivos que levam os entrevistados a continuar frequentando a atividade. Dentre os motivos citados, h o fascnio exercido pelo cinema, a atrao que os filmes exercem nas pessoas e tambm aspectos da convivncia com o grupo, representados pela valorizao das relaes entre os usurios e tambm pelas discusses no final dos filmes, citada por todos como de grande importncia para a atividade.

Ronaldo destaca o momento em que o grupo se rene antes de sair do CAPS e a ocasio de discusso, ambos momentos de reunio e de troca. Nesta fala destaca-se a importncia do grupo para a adeso atividade. Entende-se por esta frase que o acolhimento (BRASIL, 2006) que supomos ocorrer nesta atividade se d tanto pelos profissionais quanto pelos prprios usurios.

Eu gosto de antes de sair, daquela hora que rene todo mundo l na frente, e a gente tira foto, a gente conversa, e no caminho d para fazer amizades tambm. No comeo eu no conversava com ningum, s respondia quando algum perguntava alguma coisa, mas agora eu j converso, j tem muitas pessoas que eu conheo. E eu gosto de ir l, ver o lugar l onde o cinema, acho bonito, ainda mais quando vai em outro lugar, d pra ver gente diferente, coisas diferentes. E gosto dos filmes tambm, quase nunca tem filme de ao, mas eu gosto mesmo assim. Eu gosto da discusso, eu no falo muito, mas legal ver as pessoas conversando sobre o filme, acho legal, e a hora do lanche tambm, todo mundo reunido

Pedro tambm v nesta dimenso grupal um dos motivos para seu vnculo com a proposta, enfatizando que acredita que ir ao cinema com mais pessoas contribui para sentir-se menos excludo, pois haveria uma diminuio do preconceito. Tal fala reafirma a ideia de que a atividade facilita a circulao no territrio, representando uma forma mais segura de estar em contato com um contexto menos protegido (YASUI, 2008).

Eu vou por que o pessoal chama. (...) Final de semana eu no saio, no fao nada. No saio de noite. (...) Primeiro por que eu gosto n, tem bons filmes. Inclusive a gente teve um grupo hoje de terapia que falamos sobre isso, que eu acho que a gente meio que acaba se ajudando, por que j tem o preconceito com as pessoas, naquele espao a gente no v esse tipo de coisa, mas a gente v em outros.

Maria corrobora as falas anteriores, novamente enfatizando a importncia da discusso para a atividade. O fato deste momento ter sido citado por todos os participantes deve ser entendido como um incentivo para a retomada mais sistemtica desta prtica, pois como relatado anteriormente, o aumento no nmero de filmes trouxe dificuldades organizacionais que fizeram com que as conversas sobre os filmes ficassem mais individualizadas.

Eu acho assim que o que me motivou foi a minha conversa com o Ren, que ele falou para eu procurar ir ao cinema, me distrair, imaginar coisas... Perdi a palavra. (...) E eu fui motivada, quando mais eu assistia, mais eu queria assistir. Quanto mais eu entendia a histria e no final tem a discusso n. Quando eu ficava meio em dvida do que o diretor quis passar, a as pessoas colocavam as idias, as opinies e eu entendia: Poxa, era isso, no era o que eu estava pensando. E isso foi me motivando, fui pegando gosto pela coisa, fui gostando cada vez mais, acho que minha maior motivao foi o gosto mesmo que eu fui pegando. Pelo cinema, pelo filme, pela discusso no final. Ah, acho que eu gosto muito de ir no cinema, os filmes que passam so sempre muito legais, so atuais, a gente j v o trailler na TV, pensa em assistir tal filme, chega aqui no CAPS e est l na folhinha como opo.

Pedro destaca tambm a participao dos usurios na atividade como de grande importncia, enfatizando que o ato de ajudar a carregar os lanches deve ser valorizado. Alm disto estar em uma organizao grupal em que h definies de papeis, j que so sempre as mesmas pessoas que ficam encarregadas de levar os lanches, representa tambm certa autonomia dos usurios quanto a alguns aspectos da organizao e a possibilidade de ocupar um lugar dentro de uma atividade. Nestes gestos que, como o prprio Pedro diz, podem parecer bobagem, inicia-se um processo de abertura de experincias de participao ativa em algo que faz parte de seu cotidiano e com isso uma possibilidade de resgate dos sujeitos, como prope Juc, Lima e Nunes (2008).

Acho super legal por que o pessoal ajuda vocs e tal, a gente pode carregar as coisas. Parece uma bobagem, mas no, as pessoas tem que participar

Os motivos elencados pelos participantes para a participao no grupo tm relao com os entendimentos expostos sobre o conceito de acolhimento, pois os usurios percebem este espao como facilitador de trocas, possibilitador do discurso e enfatizam que a organizao e regularidade da atividade contribuem para seu vnculo. Em todas as entrevistas a presena no-intrusiva e ao mesmo tempo acolhedora dos tcnicos aparece nos relatos de cena, como por exemplo, nas cenas citadas acima em que confirmada a importncia da posio dos tcnicos nas discusses ou na cena em que Pedro saiu irritado do grupo aps uma briga ele no tinha condies de conversar com ningum e esta vontade foi respeitada.

Por que eu fiquei muito surtado, por isso que eu fui embora, achei que era melhor. Por que do jeito que eu tava, se eu fosse pra cima dele...

Pedro conta tambm que em alguns momentos ocupa no grupo e na instituio a posio de cuidador, ficando no papel de acolher alguns usurios. Ele mesmo aponta que tal posio no simples, e acabou por trazer-lhe alguns problemas. Tais consideraes so interessantes por demonstrar que, mesmo havendo um acolhimento que exercido pelo grupo, algumas pessoas acabam ocupando este papel de maneira mais proeminente, o que pode trazer dificuldades.

E eu no estou aqui para isso, isso acaba me atrapalhando. Teve uma poca que a Vanessa me falou que eu era paciente e eu tinha que pensar nisso. Teve uma poca que a L. que andava com o R., ela passava a manh falando na minha cabea. Eu saa daqui desnorteado. At que agora s vezes nem bom dia falo. Pergunta se est tudo bem e eu digo que no, pronto, fazer o que. Quer dizer que assim, j to difcil para vocs que so capacitados para ajudar, o que eu posso fazer. Se eu encontro com a L. na rua e ela est precisando de algo, tudo bem, diferente, a gente se cumprimenta e coisa e tal. Esses dias eu falei para o J. na cara dura. Ele ficava falando pra eu falar com a L. pra ele, e eu disse que no estou aqui para isso.

6.3 As relaes com o territrio

Nas entrevistas realizadas foram abordadas as relaes que os usurios tm com atividades culturais antes e aps o vnculo ao grupo. Eles puderam contar tambm as atividades cotidianas que fazem fora do CAPS, permitindo pensar de que forma circulam pelo territrio.

No relato de Ronaldo fica evidente que ele no tinha hbitos de ir ao cinema, apesar de sempre ter gostado muito de assistir filmes. Atualmente, suas atividades cotidianas continuam restritas ao que oferecido pelo CAPS, pois fica a maior parte do tempo em casa.

No, no cinema no, tinha ido uma vez s antes. Eu ia muito no teatro, vrias vezes, meu pai tinha um amigo que trabalhava em um e sempre dava convite pra gente, eu ia direto, vi vrias peas, era legal, mas ele no trabalha mais l agora. Agora eu no vou mais em nada assim dessas coisas, s vejo os filmes em casa. (...) No vou, nunca fui [ao cinema], s com o pessoal do CAPS mesmo, como te falei a gente nunca sai muito, fico mais em casa o dia inteiro quando no dia de vir pra c. E eu tambm nunca trabalhei, sempre fiquei s em casa com meus pais.

Suas relaes tambm ficaram restritas aos familiares e pessoas com quem os pais se relacionam, sendo que poder estabelecer outras relaes com os usurios do cinema foi uma conquista para ele, como citado em relatos anteriores. Interessante notar que para ele qualquer atividade que o faa sair de casa considerada um passeio, mesmo as consultas mdicas. Tal fato denota o empobrecimento das relaes e da circulao comum a muitos usurios do servio, para os quais uma atividade como o cinema representa um espao de convvio que no comum em seu cotidiano, estimulando sua integrao social (