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6 Experimentos parte 2: recursividade na lngua e habilidades superiores
Nos experimentos apresentados no captulo anterior, apenas questes
envolvendo numerais cardinais foram discutidas. Neste captulo, ser abordada a
compreenso de numerais ordinais e, especificamente, a interpretao desses
elementos em estruturas recursivas. Essa questo investigada a partir de dois
experimentos de compreenso: um com adultos e outro com crianas a partir dos 4
anos de idade. Para finalizar o segundo bloco experimental desta tese, reportamos um
terceiro teste concebido com o objetivo de explorar uma possvel relao mais direta
entre o processamento de sentenas relativas tradicionalmente caracterizadas como
exemplos privilegiados da recursividade lingstica e o processamento de estruturas
recursivas no domnio da cognio numrica.
No mbito desta tese, tem sido argumentado que a lngua possibilita a
integrao de informao proveniente de diferentes domnios da cognio ao
funcionar como um sistema representacional que contm termos para nomear objetos
e relaes cujas representaes primrias so construdas por vrios sistemas
modulares. Alm desse repertrio de termos, dois tipos de estruturas lingsticas
podem fornecer um suporte crucial nesse sentido: DPs recursivos e sentenas
relativas. O primeiro tipo de estruturas permite integrar informao relativa a objetos,
nmero e espao (Ex: As duas meninas esquerda do piano no fundo da sala/ Os
quatro cachorros do lado da rvore na frente da banca de jornais).
As sentenas relativas permitem a individuao de objetos por meio da
integrao de eventos, possibilitando assim a interao entre tempos distintos1.
Oraes relativas com encaixamento no centro (nested embedding) em particular, so
consideradas exemplos paradigmticos da recursividade lingstica.
Os experimentos que reportamos a seguir abordam questes associadas
1 A representao do tempo em si parece no estar associada a um core system especfico, mas a representao de aes e agentes pode precisar da especificao dada pelo tempo para a expresso da sua referencialidade.
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recursividade. Os dois primeiros investigam o papel da recursividade no DP (por
meio de modificadores nominais) no desenvolvimento do conceito de numeral
ordinal. O terceiro experimento explora o processamento de estruturas recursivas
equivalentes em dois domnios cognitivos diferentes: lingstico e matemtico.
6.1 Experimento 1: processamento de modificadores nominais recursivos em adultos
A aquisio dos numerais ordinais relaciona-se ao aprendizado da seqncia
de contagem. Os ordinais trazem informao sobre a posio de um dado elemento
num conjunto. Essa posio pode ser de natureza mais ou menos abstrata e estar
vinculada ou no ao espao fsico (O segundo livro na primeira estante vs. O
segundo colocado no concurso pblico). Em qualquer caso, a referncia associada a
um ordinal s pode ser estabelecida se for considerado o conjunto total no qual esta se
insere. Assim, a aquisio dos ordinais requer que seja estabelecida uma relao entre
posies seqenciais de objetos e posies na seqncia numrica (Wiese, 2003a).
Enquanto o conceito de cardinal est associado a individualizao dos itens num
conjunto quantificado, a noo de ordinalidade implica a individualizao de posies
(e elementos vinculados a estas) numa progresso. Embora a seqncia dos ordinais
em si seja caracterizada pela ordem hierrquica e a sistematicidade, quando estes so
utilizados ao fazer referncia a um conjunto de elementos a ordem seqencial dos
mesmos (primeiro, segundo, terceiro) nem sempre coincide com a ordem linear dos
elementos do conjunto. Assim, a compreenso de uma expresso ordinal requer que
sejam identificadas as posies relativas dos elementos dentro do conjunto avaliado
(i.e. o primeiro elemento x no necessariamente encontra-se na primeira posio). A
verdadeira compreenso dos ordinais implica que seja estabelecida uma distino
entre posio linear e posio ordinal relativa ao conjunto considerado globalmente.
A compreenso dessas relaes pela criana pode ser um processo custoso.
A recursividade no DP por meio de PPs permite estabelecer relaes de
ordem conceitual, por exemplo de natureza espacial, que podem ser relevantes para o
desenvolvimento do conceito de ordinalidade (O terceiro prato do armrio no fundo
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da cozinha). Assim, a compreenso de sentenas que carregam informaes dessa
natureza poderia ser crucial nesse processo. Entretanto, resultados experimentais
(Hiraga, 2009; Gentile, 2003; Matthei, 1982) e dados naturalistas (Roeper, 2009)
parecem compatveis com a idia de que diversos tipos de sentenas envolvendo a
chamada recursividade indireta (cf. p. 84) receberiam uma leitura no-recursiva
default nos primeiros estgios da aquisio; isto , no seriam corretamente
compreendidas pelas crianas.
Estudos prvios (Roeper, 1972; Matthei, 1982) reportaram que crianas entre os
3 e os 6 anos de idade interpretam incorretamente seqncias contendo modificadores
nominais recursivos do tipo A segunda bola verde. Nessas pesquisas utilizada uma
tarefa de seleo de imagens na qual as crianas so solicitadas a apontar para the
second green ball num arranjo como o que esquematizamos abaixo. A configurao
visual dos elementos apresentados chamada pelos autores de tendenciosa
(biased), j que h nela um elemento na segunda posio linear mas no na posio
ordinalmente correta ao considerarem-se todos os objetos da seqncia que
apresenta as duas propriedades fundamentais indicadas na instruo fornecida (cor e
forma).
brown green blue red brown green
A B C D E F
Figura 11: Exemplo esquemtico do procedimento utilizado por Roeper (1972)
O padro de resposta registrado nesses estudos sugere que as crianas
interpretam o ordinal second como tendo escopo apenas sobre o N ball, mas no
sobre o AdjP completo. Assim, as crianas tendem a escolher o elemento na posio
B (i.e. a bola que a segunda e que verde) em lugar do elemento na posio F (que
a segunda bola verde), sugerindo interpretaes no-recursivas, mas coordenadas
das estruturas em questo.
Um comportamento similar foi registrado ainda diante de uma segunda
condio experimental chamada de no-tendenciosa (unbiased), na qual o elemento
na posio linear correspondente no partilhava as duas propriedades indicadas.
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Assim, diante de um arranjo visual com as caractersticas do apresentado abaixo
onde a seta indicava a direo na qual devia ser avaliada a imagem as crianas se
recusavam a responder ou ento, quando possvel, tentavam alterar a realidade
trocando a seta de lugar para comear a contar na direo contrria (direita-esquerda).
marrom azul verde vermelho verde azul
Figura 12: Exemplo esquemtico do procedimento utilizado por Matthei (1982)
No foi registrado um efeito significativo de tipo de arranjo visual. Assim,
independentemente do tipo de arranjo visual apresentado (tendencioso ou no-
tendencioso) as respostas das crianas foram compatveis com uma leitura
preferencialmente no-recursiva ou coordenada para os estmulos experimentais. Para
explicar esses resultados, Matthei (1982) considera que as crianas so
essencialmente conservadoras no que diz respeito quantidade de estrutura sinttica
hierrquica inicialmente postulada.
Recentemente, esses dados tm sido interpretados em conjunto com resultados
relativos interpretao de outros tipos de estruturas envolvendo recursividade. As
aparentes dificuldades exibidas pelas crianas na compreenso de tais estruturas tm
sido apontadas como evidncia de que sentenas recursivas receberiam uma leitura
no-recursiva default durante um longo perodo no percurso da aquisio da
linguagem (Roeper, 2009). No caso especfico dos modificadores nominais, os dados
reportados parecem compatveis com a idia de que as crianas tratam esse tipo de
seqncias de modificadores recursivos como sendo estruturas coordenadas ou que
estabelecem relaes de escopo como a representada em (32) abaixo. Todavia, outros
autores (Fodor & Crain, 1987) afirmam que as crianas so capazes de atribuir uma
estrutura recursiva a essas sentenas, tal como a apresentada em (33), na qual os
adjetivos so adjuntos esquerda.
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De acordo com Fodor e Crain (1987), as aparentes leituras no-recursivas
registradas podem ser derivadas das demandas impostas pela tarefa experimental
utilizada. Segundo os autores, embora as crianas possam processar os estmulos
lingsticos corretamente elas teriam problemas para integrar essa informao junto
com as outras aes necessrias para a resoluo da tarefa. Em outras palavras, para
fornecer a resposta esperada as crianas no somente precisam compreender o
enunciado (The second green ball), mas tambm levar em considerao a cor dos
elementos e simultaneamente considerar apenas um subconjunto dos elementos
apresentados.
Roeper (2009) e Hollebrandse & Roeper (submetido) consideram que, de um
modo geral, as crianas parecem apresentar uma resistncia interpretao recursiva.
A literatura fornece um conjunto de dados compatveis com leituras no-recursivas
e/ou dificuldades de compreenso por parte das crianas diante de estruturas
envolvendo:
- Possessivos: at por volta dos 3-4 anos de idade (Gentile, 2003; Roeper,
2007);
- Adjetivos: crianas de 3-6 anos (Matthei, 1982; Roeper, 1978);
- PPs recursivos (Gu, 2008);
- Compostos sintticos do tipo tea pourer maker: crianas com at 8 anos
(Hiraga, 2009);
(33) DP
bola
NP
AdjP
verde
XP segunda
a AdjP
AdjP
bola
AdjP
DP
verde
AdjP
segunda
a NP
NP
bola
AdjP NP
(32)
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- Verbos seriais2: dados longitudinais de uma criana falante de Bantu (Baker,
2001);
- Complementos sentenciais: crianas 6;9 de idade mdia (Hollebrandse et al.,
2008).
Uma vez que a recursividade tida como uma propriedade central nas lnguas
humanas, chama ateno que as crianas apresentem dificuldades importantes no que
diz respeito a uma caracterstica to crucial e que, a nosso ver, no devia ser
considerada como um conhecimento a ser adquirido stricto sensu. Na perspectiva
para a aquisio da linguagem aqui assumida, o que deve ser adquirido so os traos
associados aos itens do lxico. Assim, no haveria algo do tipo trao [+/- recursivo]
no lxico, mas a possibilidade de uma mesma categoria ser selecionada reiteradas
vezes ao longo de uma derivao; o que, juntamente com a informao relativa
subcategorizao associada a cada elemento, possibilitaria a gerao de estruturas
recursivas.
O experimento que reportamos a seguir parte da hiptese de que demandas
especficas da tarefa por meio da qual a compreenso dessas estruturas recursivas
vem sendo investigada podem explicar, pelo menos em parte, o padro de resposta
das crianas. Assim sendo, as demandas da tarefa foram variadas, de modo a verificar
o quanto adultos levariam em considerao uma leitura coordenada para esse tipo de
estruturas, num primeiro momento do processo de compreenso da tarefa
tradicionalmente utilizada. Desta forma, os objetivos do teste foram: (i) verificar
como adultos processam essas estruturas, diante de demandas diferenciadas e (ii)
verificar se uma interpretao coordenada seria a primeira interpretao obtida diante
da tarefa padro, independentemente do desenvolvimento lingstico. 2 As construes com verbos seriais so um fenmeno sinttico comum em vrias lnguas africanas e asiticas. Diferentemente da subordinao, na qual uma clusula encaixada em outra, no caso dos verbos seriais conformada uma sequncia de dois verbos na qual no h subordinao mtua. Essas construes apresentam duas propriedades recorrentes: (i) a cadia de verbos compartilha o mesmo sujeito; (ii) a concordncia de sujeito possui frequentemente referncia cruzada nos dois verbos. Segue abaixo um exemplo do Nupe (Tallerrman, 1998): (1) Musa b l bi. Musa came took knife "Musa came to take the knife."
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De modo a atingir os objetivos propostos, foi utilizada a tcnica do
rastreamento ocular (eye-tracking) combinada com uma tarefa de identificao de
imagens. As variveis independentes foram: tarefa (simultnea ou seqencial) e tipo
de arranjo visual (tendencioso e no-tendencioso), sendo a primeira um fator grupal.
A varivel dependente foi o nmero de fixaes iniciais no-alvo; isto ,
indicando uma interpretao inicial coordenada. Com base no estipulado na literatura,
o tempo mnimo considerado como fixao foi de 200-250 ms (Richardson, 2006). A
previso foi a de um nmero maior de fixaes iniciais no-alvo na condio
simultnea.
6.1.1 Metodologia
Rastreamento do olhar (eye-tracking)
O monitoramento do olhar permite estabelecer indicadores dos processos
atencionais, sendo por isso de grande interesse para a investigao de processos
cognitivos tais como os envolvidos na compreenso da linguagem. Parmetros do
olhar podem ser teis para se compreenderem os detalhes de variados processos
lingsticos como, por exemplo, a resoluo da co-referncia pronominal, a
ambigidade sinttica e lexical, entre outros (Rayner, 1998).
Os movimentos oculares so divididos em dois grandes tipos: movimentos
muito rpidos denominados sacadas (que ocorrem tipicamente de 3 a 4 vezes por
segundo (cf. Richardson, 2006)) e momentos de pausa, com durao mdia de 200-
250 ms, denominados fixaes. Atualmente, a maioria dos estudos concentra-se na
durao das fixaes (Maia, 2008).
A pesquisa do rastreamento ocular associada compreenso da linguagem
fornece evidncias em tempo real da interdependncia entre o processamento
lingstico e a percepo visual. Neste paradigma, utilizado um aparelho especfico
(existem diversos modelos disponveis) destinado ao monitoramento dos movimentos
oculares. A depender das caractersticas do aparelho de eye-tracker utilizado, essa
metodologia adequada para a investigao com crianas e adultos. As medidas
comumente tomadas como variveis dependentes so o nmero de fixaes em um
determinado ponto, o tempo de fixao, assim como o nmero de movimentos
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sacdicos e sua direo.
Participantes
Participaram do experimento 27 alunos de graduao e ps-graduao
pertencentes a diversos cursos da PUC-Rio. Desse grupo inicial, 3 participantes
foram eliminados por problemas tcnicos no registro das respostas. Todos os
participantes (idade mdia 27 anos/ intervalo 18-42; dos quais 10 homens) tinham
viso normal ou corrigida (culos ou lentes de contato). Os voluntrios receberam
como retribuio pela sua participao uma pequena remunerao ou, no caso dos
alunos de Letras, uma creditao para ser trocada por horas de atividades
complementares junto ao Departamento.
Materiais
Foram utilizados 16 pares de frases/imagens experimentais (8 por condio) e
32 pares de distratoras apresentados em formato Power Point. Os estmulos auditivos
correspondentes foram gravados utilizando o programa Sound Forge. Todos os
estmulos auditivos (experimentais e distratores) foram gravados sem interrupes,
para evitar mudanas na entonao e no ritmo, e posteriormente editados de modo a
poderem ser apresentados como frases separadas.
A seguir oferecemos exemplos das pranchas e frases utilizadas.
Olha para o terceiro cubo azul (condio tendenciosa)
Olha para o terceiro cubo roxo (condio no-tendenciosa)
Olha para o cubo amarelo atrs do crculo azul (distrator)
Figura 13: Exemplos do material experimental utilizado no experimento 1
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Aparato
O experimento foi conduzido em uma cabine com isolamento acstico
especialmente preparada nas dependncias LAPAL. Foram utilizados dois notebooks
Hewlett-Packard (HP) com sistema operacional Windows XP e monitores de 15.
Um dos computadores apresentava o experimento para o participante dentro da
cabine, enquanto o outro (do lado de fora) coletava os dados fornecidos por um eye-
tracker, fazendo o registro em vdeo de cada sesso, alm de permitir que o
experimentador monitorasse o comportamento do participante.
O aparelho de rastreamento ocular utilizado foi um eye-tracker de mesa
(table-mounted) TM2 fabricado pela EyeTech Digital Systems. O equipamento tem 1
de acurcia, registra as imagens a 55fps, permitindo at 25x16x19cm de
movimentao da cabea. O software Quick Glance administra o funcionamento do
aparelho, realizando a calibrao correspondente para cada participante e registrando
os movimentos oculares durante a sesso experimental. Foram utilizados ainda duas
caixas de som, um microfone e um mouse especialmente preparado para comandar,
ao mesmo tempo, ambos os computadores empregados.
O programa Power Point foi utilizado para a apresentao dos estmulos. Para
cada lista do experimento foi criado um arquivo nesse formato o qual apresentava
tanto os estmulos auditivos quanto os visuais. Para a gravao dos estmulos
auditivos e para a anlise dos dados foi utilizado o software Soundforge. Utilizamos
ainda o software Snag-it para gravar toda a atividade realizada na tela do computador
que monitorava a realizao do experimento.
Procedimento
Os participantes foram testados individualmente no LAPAL na cabine especial
j mencionada. A tarefa experimental consistia na identificao de elementos na tela
com base em instrues verbais. Os participantes foram orientados a responder em
voz alta s perguntas que receberiam. O objetivo do teste, para os participantes, era
avaliar a compreenso de instrues de complexidade varivel (porm simples).
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O sujeito era acomodado na posio adequada para o ajuste do aparelho de
rastreamento ocular e era realizada a calibrao do aparelho durante a qual o
programa do rastreador era ajustado s caractersticas de movimentao ocular de
cada participante. Para isso o participante devia fixar a vista numa srie de pontos
especficos numa tela especialmente preparada para essa funo medida que o
experimentador ia nomeando-os. Assim que esse procedimento finalizava, o aparelho
atribua um valor que permitia mensurar a qualidade da calibrao. Se o sujeito no
tivesse atingido os valores necessrios o procedimento era repetido. Aps a
calibrao, a velocidade e qualidade do rastreamento eram avaliadas utilizando
imagens similares s dos estmulos experimentais. Somente quando esses parmetros
atingiam o nvel desejado comeava o experimento propriamente dito.
Na fase de teste, o procedimento era diferenciado de acordo com as condies
experimentais (seqencial e simultnea). Assim, na condio de apresentao
seqencial os participantes escutavam uma frase (Olha para a estrela amarela) e
imediatamente depois uma imagem aparecia na tela. Cinco segundos aps a primeira
frase, uma nova instruo era apresentada (Indique a letra que corresponde
instruo recebida) e letras maisculas apareciam abaixo de cada imagem na tela. O
participante era orientado a responder em voz alta. Finalmente, 3 segundos depois da
segunda instruo, o participante ouvia a seguinte pergunta A instruo recebida foi
fcil, mdia ou difcil? e novamente era orientado a responder em voz alta.
Na condio de apresentao simultnea, o procedimento foi idntico exceto
pela apresentao da primeira frase (Olha para a estrela amarela) ao mesmo tempo
que a imagem, isto , o estmulo visual e o lingstico apareciam concomitantemente.
As demais etapas foram iguais s acima descritas.
A seguir apresentamos um esquema do procedimento em cada condio. So
indicadas as etapas comuns e diferenciadas em cada caso.
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Condio seqencial Tela 1 Tela 2
Instruo 1: Olha para a segunda estrela vermelha
Condio simultnea Tela 1
Instruo 1: Olha para a segunda estrela vermelha
Procedimento comum s duas condies
A B C D E FA B C D E F
Instruo 2: Indique a letra que corresponde instruo recebida
Instruo 3: Agora diga, a instruo foi fcil, mdia ou difcil?
Figura 14: Exemplos do procedimento experimental em cada condio
O eye-tracker monitorava o olhar do participante ao longo do procedimento e
todo o material auditivo e visual, alm dos registros de movimentao ocular de cada
um dos participantes, foi registrado para ser posteriormente analisado.
Os estmulos foram aleatorizados em trs listas e os participantes distribudos
de forma equitativa entre as diferentes listas. Cada sesso experimental, incluindo a
fase de calibrao do aparelho, tinha uma durao de aproximadamente 30 minutos.
6.1.2 Resultados e discusso Os dados foram submetidos a uma anlise da varincia (2X2 tarefa X tipo
de arranjo visual) em que foi registrado um efeito principal de tarefa com mais
fixaes no-alvo na condio simultnea do que na seqencial (F(1,22) = 8.01 p
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=.01). Quando os estmulos lingstico e visual foram apresentados ao mesmo tempo,
os participantes tenderam a considerar uma interpretao coordenada num primeiro
momento. O grfico abaixo apresenta esse efeito. No foram registrados outros
efeitos significativos.
Grfico 9: Mdia de fixaes no-alvo em funo de tarefa (n=12 Max Score=16)
3.591.99
0
1.5
3
4.5
6
Condio seqencial Condio simultnea
Discusso
Os resultados sugerem que a apresentao simultnea dos estmulos visuais e
lingsticos pode levar a uma busca inicial errnea na tarefa de identificao das
imagens solicitadas. Esse tipo de busca compatvel com uma interpretao
coordenada para as frases contendo modificadores nominais recursivos. Esses dados
parecem sustentar a idia de que demandas cognitivas impostas pela tarefa podem
afetar o mapeamento da anlise lingstica no arranjo visual apresentado.
A tendncia observada pode ter sido favorecida ainda pela ordem dos
adjetivos em relao ao N no portugus, que diferente da do ingls (Adj
Ordinal+N+Adj no portugus e Adj Ordinal+Adj+N no ingls). No caso do
portugus, possvel pensar num fechamento antecipado do DP tendo como escopo
unicamente o N, sem que um procedimento de verificao das condies de
fechamento de um constituinte (look-ahead) seja conduzido. O padro de
comportamento dos adultos avaliados , de todo modo, compatvel com o reportado
na literatura com relao s crianas.
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importante salientar que no houve efeito significativo de tipo de arranjo
visual, ou seja, os adultos no portugus assim como as crianas no ingls
apresentaram o mesmo padro de resposta diante de ambos os tipos de configurao
(tendenciosa e no-tendenciosa). Esse fato sugere que a informao veiculada pelo
ordinal rapidamente associada ordem linear e posteriormente re-avaliada em
virtude de outras informaes. Cabe salientar que a necessidade desse tipo de re-
avaliao pode resultar custosa demais para as crianas afetando negativamente seu
desempenho.
Levando em considerao os resultados obtidos, torna-se necessrio verificar
se a forma de apresentao da tarefa pode afetar a compreenso das crianas na
mesma medida, fato que permitiria por em discusso a afirmao de que a dificuldade
das crianas estaria no processamento de estruturas recursivas. Assim sendo, com o
intuito de dar continuidade a essa questo, foi conduzido o experimento 2 que
relatamos a seguir.
6.2 Experimento 2: interpretao de modificadores recursivos em crianas
O experimento reportado nesta seo teve como objetivo avaliar a compreenso
de modificadores nominais recursivos por crianas. O teste foi uma adaptao da
tarefa originalmente proposta por Roeper (1972) e replicada por Matthei (1982) para
o ingls. As modificaes introduzidas foram as seguintes:
- As imagens foram apresentadas na tela de um computador ao invs de
gravuras impressas;
- Somente foram utilizadas figuras simples (cubo, bola, corao e estrela) nos
estmulos de forma a minimizar o custo do reconhecimento. J o teste de
Matthei inclua as seguintes figuras: hipoptamo, urso, carro e avio;
- Foram apresentados 6 estmulos por condio em lugar de 4 como no original,
de modo a termos um nmero maior de instncias experimentais avaliadas; e
- Os estmulos lingsticos e visuais foram apresentados seqencialmente, ou
seja, a frase experimental era apresentada antes do arranjo visual; isto , a
condio de menor custo de processamento conforme os dados dos adultos
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anteriormente apresentados.
As variveis dependentes foram idade (4, 5 e 6 anos) e tipo de arranjo visual
(tendencioso e no-tendencioso). A varivel dependente foi o nmero de respostas-
alvo, isto , respostas compatveis com a instruo recebida.
6.2.1 Metodologia
Participantes
Participaram do experimento 49 crianas (24 meninas e 25 meninos) sendo que os
dados correspondentes a dois dos participantes foram desconsiderados na anlise; um
por ter apresentado problemas na identificao das figuras e das cores durante o pr-
teste e o outro por demonstrar desinteresse e falta de ateno durante o teste. As 47
crianas restantes foram divididas em trs faixas etrias (4, 5 e 6 anos). Os grupos
formados foram os seguintes:
- Grupo 1: 14 crianas na faixa dos 4 anos (idade mdia 4;7 intervalo 4;3-5;0)
- Grupo 2: 18 crianas na faixa dos 5 anos (idade mdia 5;5 intervalo 5;1-5;11)
- Grupo 3: 15 crianas na faixa dos 6 anos (idade mdia 6;4 intervalo 6;0-6;8)
Todas as crianas foram testadas nas creches que freqentam, (creches-escolas
particulares, duas em Niteri e uma no Rio de Janeiro). Em nenhum caso foram
relatados problemas cognitivos ou queixas de linguagem pelas professoras e/ou
coordenadoras.
A escolha da faixa dos 4 anos como idade mnima foi motivada pelo fato de
que, como foi verificado nos testes reportados no Captulo 5, algumas crianas de 3
anos ainda no dominam plenamente os primeiros nmeros cardinais, o que poderia
comprometer sua compreenso dos ordinais.
Materiais
Foram utilizados 12 pares de frase/imagen experimentais (6 por condio) e 9
pr-testes. O material foi apresentado em formato Power Point num computador Sony
Vaio com tela de 15. Os estmulos experimentais foram organizados em 4 listas
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aleatorizadas e as crianas distribudas equitativamente. Seguem exemplos de
pranchas em cada condio.
Figura 15: condio tendenciosa Figura 16: condio no tendenciosa
Mostra pra mim a terceira estrela azul Mostra pra mim a segunda estrela amarela
Procedimento
O teste foi apresentado como um jogo de computador no qual os participantes
deviam seguir as instrues do experimentador, identificando as figuras solicitadas na
tela. Dessa forma, o participante somava pontos at o fim do jogo. Durante o teste,
a criana no recebia feedback relativo a cada trial, mas a cada quatro estmulos
experimentais ganhava os pontos necessrios para passar de nvel. No final da
atividade, independentemente das respostas fornecidas, todas as crianas ganhavam
o jogo.
O pr-teste foi constitudo por duas partes. A primeira visava a verificar se as
crianas eram capazes de reconhecer e identificar as figuras e cores que apareceriam
nos estmulos experimentais. Dado que as frases e as imagens foram apresentadas
seqencialmente, durante essa etapa foi avaliado ainda se as crianas eram capazes de
manter na memria frases de tamanho equivalente quelas que seriam apresentadas
no teste propriamente dito (por exemplo, Me mostra a bola verde pequena). A
segunda etapa de pr-teste tinha como objetivo avaliar a compreenso dos ordinais
por parte das crianas. Para isso foram apresentadas trs pranchas com seqncias de
um, dois e trs tipos de elementos. Em cada caso, a criana era solicitada a apontar
para a primeira, segunda e terceira estrela. Apenas as respostas relativas primeira
prancha (que apresentava elementos do mesmo tipo) foram consideradas como
eliminatrias. Ou seja, as crianas deviam responder corretamente quando solicitadas
para apontar para a primeira, a segunda e a terceira estrela (num arranjo no qual
havia apenas esse tipo de elemento). Crianas que no demonstraram conhecimento
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dessa ordinalidade linear (duas no total) no foram includas na amostra.
Uma vez terminada essa etapa comeava a fase de teste, dividida em trs
blocos de 4 estmulos (cada bloco equivalia a um nvel do jogo para as crianas). O
experimentador falava as frases experimentais para a criana e em seguida os
estmulos visuais eram apresentados. A criana devia apontar na tela do computador a
figura solicitada. A seguir inclumos um exemplo do procedimento.
Tela 1: O terceiro corao verde Tela 2: Mostra para mim
Figura 17: Exemplo do procedimento experimental utilizado
As respostas de cada participante foram registradas numa folha de controle
individual junto com outras informaes relevantes. As sesses experimentais
duraram em mdia 12 minutos.
6.2.2 Resultados e discusso Os dados foram submetidos a uma ANOVA com design fatorial (3 idade X 2
tipo de arranjo visual). Os resultados apontaram um efeito principal de idade
(F(2,44) = 4,47 p=.01), com um nmero de respostas-alvo significativamente maior
no grupo de crianas mais velhas.
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Grfico 10: Mdia de respostas em funo de idade (Max Score=12)
9.511.27
8.35
0
2
4
6
8
10
12
4 anos (n=14) 5 anos (n=18) 6 anos (n=15)
Foi registrado um efeito principal de tipo de arranjo (F(2,44) = 19,52
p=.0001) com um maior nmero de respostas-alvo na condio no tendenciosa. O
grfico 11 apresenta as mdias correspondentes a cada condio.
Grfico 11: Mdia de respostas em funo de tipo de arranjo (n=47 Max Score=6)
5.374.33
0
1
2
3
4
5
6
Condio tendenciosa Condio no-tendenciosa
No foi obtido um efeito significativo da interao entre as duas variveis
(idade e tipo de arranjo visual). Esse resultado pode ser explicado com base no fato
de que, independentemente de idade o padro de comportamento das crianas foi
similar, isto , a condio tendenciosa foi a mais difcil para todos os grupos.
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Grfico 12: Mdia de respostas em funo de idade e tipo de arranjo visual (Max Score=6)
3.354.4
5.3 65.15
0
1.5
3
4.5
6
tendencioso no-tendencioso tendencioso no-tendencioso tendencioso no-tendencioso
4 anos 5 anos 6 anos
Discusso
Os resultados revelaram um efeito principal de tipo de arranjo visual que no
foi registrado no teste conduzido em ingls (Matthei, 1982). Essa diferena pode se
dever as diferenas na metodologia empregada, crucialmente, o fato de que no
presente teste os estmulos visuais foram apresentados a posteriori. Se considerarmos
os resultados obtidos com os adultos no experimento 1, que no revelaram efeito de
tipo de arranjo visual, podemos concluir que a tendncia de identificar o referente
solicitado o mais rpido possvel comportamento compatvel com um
processamento de natureza incremental seria independente das caractersticas do
arranjo visual que est sendo analisado. Os adultos conseguem se desfazer de uma
eventual primeira interpretao errada, mas isso parece ser custoso demais no caso
das crianas que acabam mantendo a interpretao coordenada.
No teste de Matthei (1982), as crianas avaliadas se situavam em um intervalo
de idade bastante amplo (3;9-6;3 idade mdia 5;1). O prprio autor chama a ateno
para a importncia de se realizar um estudo que permita uma anlise por faixas etrias
mais bem discriminadas, mas esclarece que isso no foi possvel por limitaes da
amostra coletada. O presente teste permite visualizar melhor o efeito da idade no
desempenho da tarefa em questo e mostra que mesmo as crianas mais novas tm
um bom desempenho nos estmulos no-tendenciosos. As crianas na faixa etria
inferior foram as que apresentaram maiores dificuldades na compreenso dos
estmulos quando o arranjo visual era tendencioso (representando apenas 56% das
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respostas-alvo). As crianas de 5 anos tiveram um melhor desempenho, mas a
condio tendenciosa continua gerando uma relativa dificuldade (73% de respostas
alvo nessa condio). J as crianas mais velhas tiveram 100% de respostas-alvo na
condio no-tendenciosa e 88% na tendenciosa, o que sugere que mesmo nessa faixa
etria o tipo arranjo visual continua dificultando a tarefa. De um modo geral, a
condio no-tendenciosa no parece ser muito complexa para nenhuma das faixas
etrias pesquisadas, sendo que em todos os grupos o percentual de respostas ficou
acima de 80% (83%, 85% e 100% respectivamente).
importante salientar ainda que o domnio do prprio conceito de
ordinalidade por parte das crianas envolve um grau de complexidade cognitiva no
desprezvel. Consideramos que, inicialmente, a criana partiria de uma noo que j
lhe familiar, no caso, a noo de cardinalidade. Assim, numa primeira fase a criana
estabelece um paralelo entre numerais cardinais e ordinais (um e primeiro, dois e
segundo, trs e terceiro). Nesse momento, a compreenso da ordinalidade ficar
fortemente associada linearidade que caracteriza os cardinais e a criana ser capaz
somente de contabilizar elementos ordenados como sendo parte de uma seqncia
linear. S depois que passar dessa idia de ordinalidade linear para o conceito de
ordinalidade relativa ou verdadeira. A lngua pode vir a auxiliar nessa passagem
justamente ao permitir estruturas como as avaliadas nas quais o ordinal entra em
relaes de escopo que envolvem recursividade. Essas estruturas de certa forma
explicitam o carter relativo da ordinalidade ao permitirem a combinao relacional
de representaes associadas a domnios cognitivos diferentes (neste caso,
numerosidade e objetos) numa mesma sentena.
Tomados em conjunto, consideramos que os resultados dos experimentos 1 e 2
dessa seo permitem questionar a idia de que as aparentes leituras coordenadas para
sequncias com modificadores recursivos tm sua origem numa dificuldade inerente
da criana para compreender estruturas envolvendo recursividade. Respostas que
sugerem interpretaes no-recursivas so, a nosso ver, decorrentes da interao das
variveis envolvidas na tarefa apresentada e no podem ser explicadas apenas com
base no desenvolvimento estritamente lingstico da criana.
Os achados reportados so ainda compatveis com resultados que contradizem
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a proposta de que oraes relativas ramificadas direita seriam inicialmente
interpretadas como coordenadas (Tavakolian, 1981; Goodluck & Tavakolian, 1982),
demonstrando que esta interpretao pode ser atribuda metodologia
tradicionalmente utilizada (Corra, 1982, 1986; Hamburguer & Crain, 1982).
O experimento relatado na seguinte seo busca explorar uma possvel relao
mais direta entre o processamento de estruturas recursivas nos domnios lingstico e
numrico.
6.3 Experimento 3: recursividade na lngua e no processamento de expresses numricas
Hauser et al. (2002) afirmam que um dos aspectos que separam os humanos
de outros primatas a habilidade de processar estruturas hierrquicas tais como as
encontradas nas gramticas naturais. As lnguas humanas tm a caracterstica de
apresentar relaes hierrquicas e de longa distncia e, crucialmente, admitem o
encaixamento recursivo de sintagmas dentro de outros sintagmas (Hauser et al.,
2002:1577). Evidncias experimentais apontam para o fato de que humanos so
capazes de aprender tanto gramticas artificiais de estado finito (Finite State
Grammar) quanto gramticas de estrutura frasal (Phrase Structure Grammar
associadas a estruturas hierrquicas), enquanto que primatas no humanos so
capazes de aprender apenas gramticas do primeiro tipo (Fitch & Hauser, 2004).
Friederici et al. (2006a) apresentam resultados que sugerem que a rea de
Broca juntamente com uma regio filogeneticamente mais antiga do crebro que
lidaria com as gramticas de estado finito estaria envolvida no processamento de
gramticas de estrutura frasal. Os resultados desse estudo parecem compatveis com a
idia de que o processamento de estruturas hierrquicas, tais como as presentes nas
gramticas naturais, est associado a reas especficas do crebro.
Num trabalho posterior, Friedrich & Friederici (2009) pesquisaram o
processamento sinttico de frmulas matemticas abstratas num experimento de
leitura utilizando ressonncia magntica funcional (fMRI). Os autores partiram da
tese de que linguagens formais e lnguas naturais compartilham o fato de envolver
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uma gramtica subjacente encarregada da gerao de expresses hierrquicas
estruturadas e que permite determinar se uma expresso gramatical ou no (i.e.
sintaticamente bem formada). Com base nessa idia, era esperada uma ativao no
giro frontal inferior esquerdo e, em particular, na rea de Broca regio normalmente
ativada durante o processamento de estruturas sintticas hierrquicas nas gramticas
artificiais (Friederici et al., 2006a; Opitz & Friederici, 2007) e nas lnguas naturais
(Friederici et al., 2006b; Ben-Shachar et al., 2003). Os resultados revelaram, contudo,
que o processamento de frmulas matemticas (hierrquica vs. no hierarquicamente
estruturadas) tem lugar numa regio no crtex inferior frontal, qual seja, a poro
ventral das regies 45/47 das reas de Brodman3 que mais anterior e mais ventral
que a rea do crebro responsvel pelo processamento de relaes hierrquicas vs.
no-hierrquicas na linguagem. Com base nos resultados obtidos, os autores
defendem a idia segundo a qual, a despeito das possveis analogias levantadas, no
nvel neural, matemtica e lngua natural so processadas de forma diferenciada.
O processamento de expresses numricas e sentenas da lngua parece,
entretanto, envolver certos recursos compartilhados, em particular no que diz respeito
ao uso, em ambos os casos, da memria verbal de trabalho (Fedorenko et al., 2007).
Outro ponto a partir do qual possvel estabelecer uma correlao diz respeito a
estruturas similares presentes nesses dois domnios. Isto , em termos estritamente
estruturais, um paralelo pode ser traado entre determinadas sentenas lingsticas e
expresses numricas. Especificamente, em ambos os casos, podem ocorrer estruturas
envolvendo center embedding. Sob essa perspectiva, pode se considerar que,
independentemente do contedo de domnio especfico, a orao relativa em (34) e a
expresso em (35) compartilham a mesma estrutura recursiva:
(34) O cachorro que o veterinrio atendeu escapou
(35) (6 2 x 2) x 4
As estruturas acima tm em comum ainda o fato de que a formao de
3 As reas de Brodmann delimitam regies na citoarquitetura da corteza cerebral, isto a organizao do cortex de acordo com os tecidos formados por clulas nervosas. Essas reas foram determinadas por Korbinian Brodmann (1909) e enumeradas de 1 a 52.
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relaes hierrquicas nelas no arbitrria, mas obedece a regras. Essas regras no
necessariamente seguem os mesmos princpios em cada caso, mas ainda assim, o
paralelismo em termos estruturais se mantm. Cabe ento questionar se haveria
alguma relao, em termos de processamento, entre estruturas equivalentes, mas
associadas a domnios cognitivos diferentes. Caso tal relao exista, o processamento
de um desses tipos de estruturas pode afetar, em algum grau, o processamento do
outro?
O priming sinttico pode ser caracterizado como a facilitao do
processamento que ocorre quando uma dada sentena apresenta a mesma forma
sinttica que a sentena precedente. Embora o priming de base semntica e aquele
associado forma fontica/fonolgica dos itens sejam os que tm recebido maior
ateno na literatura, h tambm um bom nmero de estudos que pesquisam a
chamada persistncia sinttica ou priming sinttico/estrutural (ver Pickering &
Branigan, 1999 para uma reviso).
A literatura fornece dados compatveis com a idia de que existe uma
tendncia repetio de estruturas sintticas em situaes de dilogo (Estival, 1985;
Giles & Powesland, 1975; Levelt & Kelter, 1982; Schenkein, 1980; Tannen, 1989;
Weiner & Labov, 1983), na produo de sentenas isoladas (Bock, 1986; Bock &
Loebell, 1990; Potter & Lombardi, 1998) e tambm na escrita, embora o efeito de
priming parea ser menos duradouro nessa modalidade (Branigan & Pickering, 1999).
Bock (1986) mostrou que a estrutura de descries verbais de imagens afetada pela
estrutura das sentenas previamente apresentadas. Estudos recentes tm apontado
ainda para efeitos de priming estrutural na compreenso (Ledoux et al., 2007).
Partindo das consideraes anteriormente traadas, ainda que diferente
recursos possam estar envolvidos na conduo das operaes de diferentes domnios
(Friederich & Friederici, 2009), foi concebido um experimento com o intuito de
explorar um possvel efeito de facilitao no processamento intermodal de estruturas
envolvendo recursividade. Para isso, foi construda uma tarefa inspirada na tcnica da
leitura auto-monitorada (self-paced reading) e na noo de priming intermodal.
O paradigma da leitura auto-monitorada foi introduzido independentemente
por vrios pesquisadores diferentes (cf. Mitchell, 2004) e se caracteriza pelo fato de
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permitir que o prprio participante controle pressionando um boto o tempo de
exposio de cada palavra, segmento ou frase inteira durante sua leitura. Assume-se
que o tempo levado para pressionar o boto (passando de um segmento, palavra ou
frase para o/a seguinte) depende das propriedades daquilo que est sendo lido e est
relacionado com o curso dos processos cognitivos durante a leitura e a compreenso.
A tcnica permite que os estmulos lingsticos sejam apresentados de vrias formas:
palavra por palavra, por segmentos ou como frases completas. Usualmente, o sujeito
d a ordem de avanar apertando alguma tecla previamente especificada, j seja no
prprio teclado do computador, numa caixa de botes ou por meio de algum outro
dispositivo conectado ao computador (joystick, mouse, etc.).
comum que os experimentos que utilizam esta tcnica apresentem uma
pergunta de compreenso aps a leitura de cada frase com o objetivo de verificar o
nvel de ateno do participante. A varivel dependente considerada relativa aos
tempos de leitura (medida on-line): de cada segmento, da frase completa, de algum
dos segmentos previamente definido.
Diferentemente da tarefa de leitura automonitorada mais comumente utilizada,
na qual as frases so apresentadas em segmentos (por palavra ou sintagma), no
experimento que reportamos a seguir, as sentenas (oraes relativas ou expresses
matemticas) foram apresentadas de forma completa na tela. Alm disso, no que diz
respeito idia de priming intermodal, este usualmente caracterizado em termos de
modalidade de apresentao dos estmulos (visual/auditivo, por exemplo), enquanto
no experimento que relatamos, a idia de intermodalidade diz respeito ao fato de que
as estruturas a serem processadas vinculam-se a domnios cognitivos diferentes.
Desta forma, tcnicas vinculadas a paradigmas experimentais clssicos foram
combinadas e adaptadas de modo a criar uma tarefa especfica para a explorao da
questo levantada. Nessa tarefa, os participantes deviam ler o mais rpido possvel
uma sentena na tela do computador e, posteriormente, responder a uma tarefa de
compreenso4 que consistia em determinar se a nova informao apresentada era ou
4 comum que experimentos que utilizam a tcnica da leitura automonitorada apresentem uma pergunta de compreenso aps a leitura de cada frase com o objetivo de verificar o nvel de ateno do participante. Neste teste, aps a leitura o participante devia decidir se a nova informao que aparecia na tela (uma nova orao ou uma equivalncia numrica) combinava
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no compatvel com aquilo que tinha sido lido inicialmente.
O objetivo do teste foi avaliar se o processamento de uma estrutura com
encaixamento no centro (center embedding), vinculada a um determinado domnio
cognitivo, afeta o processamento de uma estrutura similar, mas associada a um
domnio diferente. Nesse sentido, tipo de sentena (oraes relativas e expresses
numricas) foi tomado como varivel independente. Com vistas a verificar a direo
de um possvel efeito seja de facilitao ou de inibio os trials foram separados
em dois blocos (oraes relativas e expresses), sendo a ordem de apresentao
(leitura de relativas/expresses ou leitura de expresses/relativas) dos mesmos
tomada como varivel grupal. A varivel dependente foi o tempo de leitura de cada
tipo de sentena.
6.3.1 Metodologia Priming
Os padres de desempenho em tarefas de memria tm sido caracterizados
como uma dissociao entre processos de recuperao explcitos e implcitos
(Schacter, 1987, dentre outros). Enquanto a memria explcita faz referncia a um
tipo de processo consciente que permite recordar experincias prvias de modo
intencional ou no, a memria implcita consiste na recuperao no intencional, isto
, sem que o sujeito seja consciente de que est experimentando uma lembrana. O
primeiro tipo de memria avaliado por meio de medidas diretas, em tarefas nas
quais os participantes recuperam o material apresentado num momento prvio. J a
memria implcita avaliada com base em medidas indiretas (Baddeley, 1997).
O chamado efeito de priming est associado memria implcita e diz
respeito influncia que um evento antecedente (prime) tem sobre o desempenho de
um evento posterior (alvo). Esse efeito pode ser tanto de tipo positivo. (i.e. quando as
pessoas apresentam uma tendncia a responder mais depressa a um item precedido de
outro item semelhante) ou negativo (quando o prime faz com que o tempo de reao
ou no com a frase que tinha aparecido antes. Por esse motivo, chamamos essa etapa de tarefa de compreenso, j que no era feita uma pergunta direta aos participantes.
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frente ao alvo seja mais lento, gerando assim um efeito inibidor).
Participantes
Participaram do experimento um total de 37 adultos falantes nativos de
Portugus Brasileiro, dos quais 3 foram excludos porque no seguiram a instruo de
realizar a tarefa o mais rpido possvel ou porque apresentaram um nmero de erros
muito elevado na leitura de expresses numricas (fato que foi tomado como
indicativo de que no dominavam as regras a serem aplicadas). Assim sendo, os
dados correspondentes a 34 participantes (17 em cada grupo) foram considerados na
anlise (idade mdia 29 anos/ intervalo 18-615, 10 homens e 23 mulheres). Os
participantes eram alunos de diversos cursos da PUC-Rio (graduao em Letras,
Comunicao, Psicologia, Relaes Internacionais e Engenharia e da Ps-Graduao
em Letras e Comunicao) e foram avaliados na cabina anteriormente descrita no
LAPAL. Pela sua participao, os voluntrios receberam uma pequena remunerao
ou, no caso dos alunos de Letras, uma creditao para ser trocada por horas de
atividades complementares junto ao Departamento.
Materiais
Foram utilizados dois blocos com 20 sentenas experimentais em cada
condio (oraes relativas e expresses numricas) das quais oferecemos alguns
exemplos a seguir:
(36)
Orao relativa: A vtima que o assaltante ameaou reagiu
Tarefa de compreenso: A vtima reagiu
Expresso: (8 2 x 2) 1
Tarefa de compreenso: = 3
Metade dos trials em cada condio tinha SIM como resposta correta na tarefa
de compreenso. No caso das oraes relativas, a informao apresentada coincidia j
5 Foi observado que o comportamento de partipantes com mais de 50 anos na tarefa utilizada no diferiu do de participantes jovens.
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que trazia o nome da matriz e o verbo da matriz (37) ou o nome da relativa e o verbo
da relativa (38):
(37) O menino que a mdica examinou emagreceu O menino
emagreceu (SIM combina)
(38) A tartaruga que a pesquisadora protegeu sumiu A pesquisadora
protegeu a tartaruga (SIM combina)
No caso das expresses numricas os trials cuja resposta na tarefa de
compreenso era SIM apresentavam a equivalncia correta (39):
(39) (5 + 2 x 3) x 2 = 22 (SIM combina)
Nos estmulos com resposta NO tambm foram utilizados dois tipos. Nas
oraes relativas, nome da matriz + verbo da relativa (40) ou nome da relativa +
verbo da matriz (41). Nas expresses, um resultado obtido se o clculo fosse feito de
forma linear (i.e. sem respeitar as regras e a estrutura recursiva) (42) ou um resultado
parcial obtido se algum passo fosse omitido (43).
(40) A celebridade que o fotgrafo perseguiu fugiu A celebridade
perseguiu o fotgrafo (NO combina)
(41) O passageiro que a aeromoa serviu acordou A aeromoa
acordou (NO combina)
(42) (7 6 : 3) x 4 = 5 (NO combina)
(43) (2 + 3 x 2) x 2 = 20 (NO combina)
Todas as oraes relativas tinham 17 slabas ortogrficas e o gnero dos
nomes na matriz e na relativa foi contrabalanado (a relao completa dos estmulos
experimentais completos pode ser consultada no Apndice).
Aparato
Foi utilizado um laptop Apple MacBook A1181 para a apresentao do
material e o experimento foi programado e implementado utilizando o software
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PsyScope X B536, que permite projetar e monitorar experimentos psicolingsticos,
registrando as respostas dos participantes e o tempo de reao em milsimos de
segundos.
Procedimento
A tarefa utilizada foi construda com base na tcnica da leitura auto-
monitorada (self-paced reading) e na noo de priming intermodal. Durante o teste, o
participante devia ler as frases que apareciam na tela do computador (oraes
relativas e expresses numricas), sendo o prprio leitor quem controlava a entrada
das frases na tela, apertando a barra de espaos no teclado do computador. Aps cada
frase era apresentada uma tarefa de compreenso que consistia em decidir se a nova
informao recebida combinava ou no com a anterior. A resposta (SIM ou NO) era
dada atravs do teclado, apertando na tecla correspondente.
Os estmulos foram apresentados aleatoriamente em cada um dos blocos
experimentais. Os participantes forneciam suas respostas por meio do teclado,
utilizando duas teclas especificamente marcadas para as respostas SIM e NO e a
barra de espao para avanar entre uma frase e outra. Segue abaixo um exemplo do
procedimento.
Tela 1 Tela 2
6 O PsyScope um software que permite desenhar e rodar experimentos nas reas de psicologia e psicolingstica. O programa foi desenvolvido na Carnegie Mellon University por uma equipe formada por Jonathan Cohen, Matthew Flatt, Brian MacWhinney e Jefferson Provost, dentre outros.
A baleia que a biloga fotografou mergulhou
A biloga mergulhou
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Tela 1 Tela 2
Figura 18: Exemplo do procedimento utilizado
Os participantes eram orientados a realizar todo o procedimento o mais rpido
possvel, mas era salientada a importncia de responder corretamente tarefa de
compreenso. Cada sesso experimental durou entre 10 e 13 minutos.
6.3.2 Resultados e discusso
Os resultados foram submetidos a uma anlise da varincia com design
fatorial 2 X 2 (ordem de apresentao X tipo de sentena) que revelou um efeito
principal tipo de sentena (F(1,32) = 59.5 p
155
Discusso
Os dados obtidos no experimento 3 no sustentam a idia de que o
processamento de estruturas semelhantes associadas a domnios diferentes seja
afetado por um efeito de priming de natureza estrutural. De um modo geral, os
resultados se mostram compatveis com os reportados por Friedrich & Friederici
(2009). Esse estudo prov evidncias baseadas em tcnicas de neuro-imagem de que
as redes neurais envolvidas no processamento de frmulas matemticas somente
envolvem a rea de Broca numa forma bastante seletiva, o que sugere que matemtica
e lngua natural so em boa medida processadas de forma diferenciada. Ou seja, o
fato de diferentes operaes vinculadas a reas diferentes do crebro estarem
envolvidas suplanta um possvel reconhecimento de semelhana estrutural entre
sentenas de diferentes domnios.
A memria verbal de trabalho parece estar envolvida tanto no processamento
de sentenas da lngua, quanto de expresses numricas, fato que sugere certo grau de
compartilhamento de recursos entre ambos os domnios (Fedorenko et al., 2007).
Relaes entre esses domnios cognitivos vinculadas ao modo como a computao
de estruturas associadas a cada um conduzida no tm sido, contudo, claramente
apontadas at ento. Embora seja possvel pressupor uma relao estrutural forte
entre lnguas naturais e linguagens formais essa idia no se v confirmada pelos
dados de processamento atualmente disponveis.
A analogia explorada nesse experimento foi estabelecida com base em
caractersticas de certas estruturas, no caso, estruturas recursivas. Um enfoque
diferente, j mencionado nesta tese, implica considerar a recursividade como um
mecanismo (Lobina & Garca-Albea, 2009). Pesquisar a questo sob essa perspectiva
requereria, inicialmente, estabelecer uma distino no que diz respeito ao
processamento de estruturas hierarquicamente organizadas e estruturas recursivas
isto porque, se bem toda estrutura recursiva hierarquicamente organizada, o
contrrio no verdadeiro de modo a verificar se existe alguma diferena nesse
sentido. Essa distino seria crucial para a obteno de um parmetro que permitisse
caracterizar de forma objetiva como um mecanismo de natureza recursivo aplicado
no processamento de informao (seja esta de que natureza for).
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6.4 Sntese
Neste captulo foram reportados os resultados de 3 experimentos construdos
com o intuito de explorar a idia de que a recursividade lingstica seria uma
propriedade relevante a ser levada em conta na pesquisa sobre o papel da lngua no
desenvolvimento de habilidades superiores.
Os dois primeiros experimentos relatados trazem evidncias compatveis com
a proposta segundo a qual estruturas recursivas possibilitam a integrao de
informaes de domnios diversos e que tal integrao pode ser crucial na
compreenso de relaes assim como na construo de conceitos. Certas estruturas
recursivas podem, contudo, ser totalmente dominadas do ponto de vista do
processamento mais tardiamente pelas crianas, seja por fatores maturacionais
possivelmente associados capacidade de memria necessria para a manuteno da
estrutura em processamento enquanto as relaes recursivas entre os elementos so
computadas ou pelo prprio processo de aquisio das propriedades relevantes
associadas aos diferentes itens do lxico. Nesse sentido, possvel que traos
associados subcategorizao sejam mais tardiamente especificados. Com base na
teoria da aquisio assumida nesta pesquisa, os traos associados aos itens do lxico
podem ser progressivamente especificados, o que permitiria explicar porque em
determinados momentos as crianas interpretam e/ou produzem corretamente
sentenas contendo certos elementos em algumas circunstncias, mas no em outras.
importante lembrar que os resultados dos experimentos 1 e 2 chamam a
ateno para a relevncia de uma cuidadosa avaliao das tarefas utilizadas nas
situaes experimentais, especialmente na pesquisa com crianas. O custo envolvido
na execuo de uma dada tarefa pode incidir negativamente nos resultados,
obscurecendo a verdadeira natureza dos processos que esto sendo investigados. O
experimento 2 mostrou que pequenos ajustes na tarefa original trouxeram uma
mudana expressiva no desempenho dos participantes.
O terceiro experimento conduzido teve como objetivo explorar uma relao
mais direta entre recursividade lingstica e recursividade em outros domnios, neste
caso o domnio da matemtica. Os resultados obtidos no permitem sustentar a
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hiptese de uma relao direta e esto em consonncia com dados recentes reportados
pela literatura que enfatizam a independncia de recursos na conduo da
computao.
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