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1 A astrologia nos doze poemas de “Mar Português” do livro Mensagem de Fernando Pessoa Vitorino de Sousa 1998

A astrologia nos doze poemas de “Mar Português”

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A astrologia nos doze poemas de “Mar Português”

do livro Mensagem de Fernando Pessoa

Vitorino de Sousa 1998

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Que as forças cegas se domem

Pela visão que a alma tem!

Fernando Pessoa

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INTRODUÇÃO

Robert Bréchon, em Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa1 diz:

Mensagem é, como Fausto e o Livro do Desassossego, a obra de quase toda uma vida. O poema mais antigo é datado de 21 de Julho de 1913 e o mais recente de 26 de Março de 1934. A diferença está em que todas as outras obras, excepto The Mad Fiddler, que ficou inédito, ficaram por acabar... A Mensagem é o único livro que Pessoa compôs, terminou, reviu e corrigiu, e finalmente publicou. Este livrinho de algumas dezenas de páginas é o mais importante e o mais representativo do seu génio singular. Se, de toda a sua produção multiforme, apenas se pudesse guardar uma única obra, seria com certeza esta, que a posteridade, cumprindo a profecia do jovem crítico de A Águia em 1912, acabou por reconhecer como um dos dois cumes da poesia portuguesa, sendo o outro Os Lusíadas... Parece que a ideia de um livro de poemas de inspiração nacional, centrado sobre os heróis da época das Descobertas, lhe terá vindo ao espírito na época “sidonista”, em 1917-1918. É então que escreve a sequência de poemas publicados em revista em 1922 sob o título de Mar Português, e que vai constituir a parte central do livro... Após um período de seis anos em que o projecto parece abandonado, escreve, entre Setembro e Dezembro de 1928, uma nova sequência de poemas que, na sua maioria, serão integrados na primeira parte, e alguns na terceira e última. Ainda escreve alguns desses poemas entre 1929 e 1933. É provável que, durante todos esses anos, o projecto tenha amadurecido no seu espírito e que se tenha, pouco a pouco, afirmado o seu carácter original, que é o de unir numa mesma inspiração a exaltação do sentimento nacional, os mitos do Sebastianismo e do Quinto Império, o espírito da gnose e da tradição iniciática, em suma, a totalidade do que constitui a “visão Rosa-Cruz”.

À primeira vista, é óbvio que, neste conjunto de 12 poemas, Fernando Pessoa abordou a epopeia dos Descobrimentos Portugueses através de algumas das suas figuras mais proeminentes, quer reais, quer simbólicas, tais como o Infante D. Henrique, Vasco da Gama, Fernão de Magalhães, Bartolomeu Dias, o Mostrengo, etc. No entanto, como se deduz das palavras de Robert Bréchon, algo se esconde em níveis mais profundos. Na verdade, existe um nível de leitura astrológico que se mistura, naturalmente, com um “sumo” espiritual. É este biógrafo do poeta que reconhece: (...) para melhor salientar que a epopeia da salvação nacional é, em sentido figurado, a aventura da salvação da alma pessoal, este livro épico e mítico é antes de mais espiritualista e místico.

Porém, embora se trate de doze poemas magistrais (principalmente quando encarados pela sua vertente espiritual), neles não se encontra qualquer referência explícita ao Ocultismo e,

1. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 541-542.

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muito menos, à Astrologia. Daqui decorre que o leitor com conhecimentos sobre estas matérias, mas não alertado para o arcaboiço que Fernando Pessoa sobre elas tinha, dificilmente seria capaz de descobrir tal artifício e, assim, usufruir desse nível de leitura. Em relação aos leitores sem informação sobre a linguagem da simbologia astrológica, atrevemo-nos a dizer que essa abordagem se torna, pura e simplesmente, impossível. O facto de serem doze poemas (tantos quantos os signos zodiacais), todavia, deveria ser suficiente para nos alertar! O número 12, porém, está cheio de outras simbologias. Por conseguinte, tomar conhecimento do que ultrapassa o nível de leitura e da análise meramente poética, enriquece sobremaneira a fruição deste Mar Português. É parte desse trabalho o que nos propomos ensaiar aqui, para ajudar o leitor a adquirir uma visão mais vasta e profunda da genial capacidade criativa de Fernando Pessoa.

Acrescente-se que não é possível compreender e abarcar toda a significação e profundidade do monumento literário deste poeta sem levar em linha de conta os elevados conhecimentos astrológicos que detinha. Na verdade, Fernando Pessoa foi astrólogo e, para essa actividade, criou até um heterónimo (Raphael Baldaya), o qual se propunha escrever um tratado sobre a matéria. Por isso, parte considerável do seu espólio é de natureza astrológica (horóscopos, anotações, ensaios, textos dispersos, etc.). Eis aqui um bom exemplo:

O horóscopo não relata o que há antes do nascimento, nem o que há depois da morte (...) A vida é essencialmente acção, e o que o horóscopo indica é a acção que há na vida do nativo. Três coisas não há que buscar no horóscopo: (1) as qualidades fundamentais do indivíduo, quanto ao seu grau íntimo; (2) o ponto de partida social da sua vida; (3) o que resulta dele, e da vida que teve, depois da morte. Tudo, menos isto, o horóscopo inclui e define. Não pasmemos de que seja apagado e frustre o horóscopo de tal grande artista que foi célebre só depois de morto: o horóscopo indicará qualidades artísticas (em grau que não podemos medir) e indicará obscuridade. Tudo será indicado em abstracto; só uma vidência nossa o poderá concretizar. (Tal é o sentido do primeiro apótema de Ptolomeu.) Exemplificando melhor: um horóscopo de poeta dramático poderá ser determinado como tal e poderá, adentro desse horóscopo, ser indicada uma certa fama e um certo proveito. À parte isso, o horóscopo pode ser o de Shakespeare ou o de um poeta dramático de inferior nota, que, na época em que viveu, tenha tido uma vida, quanto a fama e proveito, idêntica ou semelhante à de Shakespeare. O horóscopo revela, pouco mais ou menos, o que o mundo vê. Nunca devemos esquecer este pormenor importantíssimo. Sem ele nada faremos da astrologia.

Além disto, os heterónimos Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis tiveram o seu mapa natal levantado pelo próprio Fernando Pessoa, o qual não se coibiu de lhes analisar as personalidades e tecer considerações astrológicas, tendo por base os mapas de nascimento que ele próprio calculara. Veja-se o que ele diz numa carta endereçada a Adolfo Casais Monteiro, no dia 13 de Janeiro de 1935: Álvaro de Campos nasceu em Tavira no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo).

Portanto, e para dar seguimento a esta pretensão, o leitor encontrará nas páginas seguintes a transcrição dos doze poemas de Mar Português e a sua respectiva interpretação astrológica.

Por ser da mais elementar justiça, acrescente-se que a minha descoberta pessoal deste “tesouro” se deve ao astrólogo português Paulo Cardoso, de quem ouvi uma conferência sobre o assunto, em 1989.

Algumas das considerações que se seguem remontam aos apontamentos recolhidos durante esse evento; outras, surgiram da intuição ou tornaram-se surpreendentemente evidentes durante o acto de escrever o que vai ler a seguir.

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Poema I correspondente ao 1º signo, Carneiro

I - O Infante

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Deus quis que a terra fosse toda uma, Que o mar unisse, já não separasse.

Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.

E a orla branca foi de ilha em continente, Clareou, correndo, até ao fim do mundo,

E viu-se a terra inteira, de repente, Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te Português. Do mar e nós em ti nos deu sinal.

Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal!

Como facilmente se reconhecerá, o título deste primeiro poema refere-se, evidentemente, ao infante D. Henrique (1394/1460), o grande obreiro dos Descobrimentos Portugueses. Ele foi o pioneiro dessa aventura, o homem destemido e indomável que se propôs iniciar a concretização desse projecto que abriu novos mundos ao mundo.

Infante significa filho do rei (D. João I). Vamos encontrar este mesmo termo (Filho) na trilogia cristã, posicionado entre o Pai e o Espírito Santo; da mesma forma, também este conjunto de doze poemas está posicionado, no livro Mensagem, entre a primeira parte (Brasão) e a terceira (O Encoberto). É interessante verificar que, se puser em paralelo a trilogia cristã e os três capítulos de Mensagem, encontra as seguintes correspondências:

1 - Deus – “Brasão” 2 - Filho – “Mar Português” 3 - Espírito Santo – “O Encoberto”

Apesar das acepções de “Brasão” e de “O Encoberto”, utilizadas no contexto do livro, é caso para perguntar:

1 - O que é Deus senão um “Brasão”, um símbolo da verdadeira Nobreza? 2 - O que é “Mar Português” senão o “filho” dilecto dos feitos da nação portuguesa? 3 - E o Espírito Santo? Enquanto veículo do Amor de Cristo, não tem andado “encoberto”?

Esta noção de trilogia está bem patente, também, no facto de este poema ter três quadras. Logo no primeiro verso - Deus quer, o homem sonha, a obra nasce - Fernando Pessoa refere as três condições que intervêm na Manifestação, o último estágio da progressiva

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densificação da energia. Igualmente, quando você ouve referir Deus, também três ideias, pelo menos, devem ocorrer imediatamente na sua mente:

1 - Criação 2 - Compaixão 3 - Fogo Criador

Quanto à primeira ideia - Criação - decerto lhe ocorrerá fazer, outra vez, aquela velhíssima pergunta que todos os Humanos, desde sempre, não se cansam de repetir: Quem é o Autor da Criação? Cada vez que, ao longo dos séculos, formulámos esta questão, pretendíamos, evidentemente, recolher uma resposta. Mas quando, nos primórdios do Tempo, colocámos esta questão pela primeira vez, a resposta que recebemos decerto foi um Silêncio Absoluto. Na altura, devemos ter julgado que ninguém respondeu. Talvez por isso, temos vindo a repetir a mesma pergunta milhões de vezes.

É notório o empenho com que nos entregamos a esta inquisição, tal como é evidente o desespero, que temos vindo a acumular, uma vez que a resposta teima em não surgir. Esquecemo-nos, todavia, que aquele Silêncio Absoluto, que decerto recebemos do Alto como resposta, significou então, e significa agora, que nada se pode dizer acerca do Criador. Só um mortal comum, do alto da sua ignorância, poderá emitir uma definição sobre o Criador… o que prova que não pode estar a falar Dele; quanto muito, estará a falar da sua concepção pessoal acerca do assunto. Ora, como praticamente nenhum terráqueo abdicou da sua opinião sobre a matéria, os registos guardam todas essas concepções pessoais, congeminadas por todas as criaturas humanas, ao longo de todas as suas encarnações neste planeta, deste o Primeiro Dia!

Consegue imaginar quantas são? Todavia, concepções pessoais não definem, nem podem definir, a Divindade; limitam-se

a criar a confusão. E como a confusão é, evidentemente, o resultado da ausência de Luz – que é clareza – resulta que todo este processo se transforma num tremendo equívoco, num círculo vicioso, numa impossibilidade, enfim, num entretenimento intelectual ao qual nos entregamos dedicadamente.

Poderíamos colocar a questão doutra maneira: como é que o corpo mental concreto (função do terceiro chacra, plexo solar) poderá ser capaz de definir Deus (função do sétimo chakra), se até mesmo nas decisões mais comezinhas ele é incapaz de escolher no sentido de servir a alma?

O estratagema das definições pessoais não funciona porque Deus não se define, Deus contacta-se no silêncio da mente aquietada, na paz da meditação ou na quietude do retiro. Uma vez contactada, deixa de haver necessidade de se formular questões sobre a sua natureza. Aquilo a que chamamos Deus é um sinónimo de Sabedoria. Logo, não pode ser encontrado com a mente excitada pelo impulso de fazer perguntas. É por isso que, quem sabe, não pergunta; limita-se a saber e a estender essa Sabedoria. Mais: quem vive significativamente não concebe Sabedoria sem Amor. Assim, quem ama não faz perguntas; limita-se a amar e a estender esse Amor.

O verdadeiro Deus vivente é um Ser não-dualista, que não acolhe quaisquer tipos de opostos. O Criador da vida é um Ser de puro Amor, a Fonte e a Primeira Causa de uma realidade e totalidade não-física, o perfeito Um que abarca tudo, e fora de quem não há literalmente nada.

A natureza da Fonte não pode ser descrita. E o leitor não poderá entendê-la enquanto o seu eu/espírito, através da alma, estiver metido nesse escafandro de carne e osso.

Como disse acima, o leitor não poderá defini-la, mas poderá senti-la.

Jesus, em Um Curso em Milagres, diz o seguinte:

A unidade é simplesmente a ideia de que Deus é. E, no Seu Ser, abarca todas as coisas. Nenhuma mente contém nada que não seja Ele. Quando dizemos “Deus é”, de imediato guar-damos silêncio, pois neste conhecimento as palavras carecem de sentido. Não há lábios que as possam pronunciar, nem nenhuma parte da mente é suficientemente diferente do resto para sentir que, agora, é consciente de algo que não seja ela mesma. Uniu-se à sua Fonte e, tal como Ela, simplesmente é. Não podemos falar, escrever, nem sequer pensar nisto em absoluto.

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Quanto à segunda ideia suscitada pelo conceito de Deus - Compaixão - convém esclarecer o que é o verdadeiro sentimento da compaixão: sentir compaixão é ser capaz de reconhecer o Espírito por detrás de todos os corpos/ego, quer eles sejam bonitos ou feios, de raça branca ou negra amarela, homens ou mulheres, etc. Por outras palavras, é ver o verdadeiro Ser por detrás das aparências físicas, das particularidades de carácter, dos atributos da personalidade, da constituição do ego, etc. Ao contrário do que julgamos, compaixão não é ter pena de alguém. Ter compaixão não é ter pena dos pobrezinhos, é, antes do mais, reconhecê-los como nossos iguais, e só depois contribuir para acabar com o seu sofrimento, ajudando-os a reconhecer que não são uns miseráveis mas sim Luz pura. Decerto concordará que isto é bem diferente de só lhes darmos uma sopinha. A sopinha e a fatia de pão podem ser - e são! - úteis, evidentemente. Mas, enquanto acto isolado, apenas contribuem para perpetuar a fome. Para ser capaz de considerar uma criatura humana como um ser feito da mesma “massa” e oriundo do mesmo Grande Ponto, é necessário que não nos vejamos como um egos. Se assim for, forçosamente veremos os outros como egos que falharam na sua afirmação social, como uns sem préstimo que vivem soterrados pela frustração de não terem conseguido triunfar mundo. É assim que veremos os outros, se cometermos o erro de julgar que a nossa própria função é triunfar no mundo. Por esta via, tomar-nos-emos como modelo de avaliação dos outros e não poderemos evitar de os julgar. Ora, a compaixão é o inverso do julgamento.

Quanto à terceira ideia suscitada pelo conceito de Deus - Fogo Criador - verificamos que o Fogo é o Elemento de Carneiro, o 1º signo do Zodíaco, ao qual este primeiro poema está, naturalmente, associado. O segundo verso da primeira estrofe - Deus quis que a terra fosse toda uma - expressa perfeitamente esta ideia de Deus como fonte da Vontade (quis) ligada ao Fogo Criador.

Por seu turno, o verso seguinte -Que o mar unisse, já não separasse - ao referir o mar, orienta-se para o arquétipo de Peixes (12) - o signo anterior a Carneiro (1) - o qual é regido por Neptuno, o Senhor dos Oceanos e dos Mares. Esta menção ao encerramento do ciclo zodiacal, que o transforma numa unidade, é uma referência clara à ideia de que Fogo Criador de Deus bafeja todas as coisas.

A propósito da sequência dos signos, convém dizer o seguinte: os 12 arquétipos zodiacais não são compartimentos estanques, alinhados numa sequência aleatória; cada um deles, apesar da sua identidade própria, é, simultaneamente, um modelo bem definido e uma resposta ao signo anterior. Tanto assim que a sua polaridade e género se vão alternando. Se o ADN é o código da vida no plano físico, o Zodíaco é o código da vida no plano simbólico.

Por conseguinte, Peixes, o último signo do Zodíaco (12, par), une e integra em si todos

os antecedentes. Com esta síntese, encerra um ciclo e abre outro... tal como a audácia do Infante D. Henrique em aventurar-se (Carneiro) nos Descobrimentos dos Mares (Peixes) fechou um ciclo da História de Portugal, caracterizado pela fundação da nacionalidade e subsequente conquista e estabelecimento das fronteiras terrestres, e abriu outro. Este novo ciclo iria cumprir-se através, já não da criação de uma nacionalidade, mas sim da universalidade; já não através da conquista de fronteiras terrestres, mas sim de “fronteiras” marítimas... se é que podemos por fronteiras numa coisa que é global por natureza!

É curioso notar que a última palavra da primeira quadra – espuma - remete para o mito

de Afrodite, a que nasceu da espuma do mar. Afrodite é uma deusa do Panteão Grego a quem os romanos chamavam Vénus. Ora, Vénus é o regente de Balança (7, impar), o signo oposto a Carneiro, cujo regente é Marte. Esta oposição zodiacal entre Marte e Vénus representa um desafio de complementaridade. Este teste ao amor incondicional é bem evidente no contraste entre estes dois pólos da oposição complementar:

MARTE - Coragem, Agressividade, Antipatia, Brusquidão, Masculinidade, Impaciência. VÉNUS - Passividade, Tolerância, Simpatia, Diplomacia, Feminilidade, Calma. Ao escrever O Infante, Fernando Pessoa, que era um conhecedor profundo da

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linguagem astrológica, considerou a forma mais salutar de interpretar o Zodíaco, avaliando cada signo/regente como complementar do seu oposto. Repare: em tudo o que tem um início (Carneiro), ou representa um início (O Infante), está implícita uma promessa de expansão e de esperança que assentam no entusiasmo, na coragem e na firmeza (Carneiro). Esta ideia de movimento para a frente em direcção a algo que o complementa está bem expressa nos primeiros versos da segunda quadra: E a orla branca foi de ilha em continente / Clareou, correndo, até ao fim do mundo. Se notar, algo isolado - a orla branca - saiu em busca do complemento. Fê-lo correndo até ao fim do mundo. E, como os esforços são sempre recompensados viu-se a terra inteira, de repente / Surgir, redonda, do azul profundo. Ou seja, uma coisa encontrou a outra!

Falta dizer que este desafio de o “um” encontrar o “dois” é o propósito profundo do eixo que liga o arquétipo de Carneiro/um/sozinho ao arquétipo de Balança/dois/acompanhado.

Estes dois últimos versos da segunda estrofe reforçam a evidência de que Fernando Pessoa se serviu do código da Astrologia para escrever sobre a saga dos descobridores portugueses.

Neste contexto, a expressão terra inteira haverá de ser entendida, não como a larga paisagem que se apresentava perante o olhar dos navegantes, mas sim como a “visão” que se abria perante eles - uma outra dimensão, superior, não terrena, cheia de possibilidades. Ora, graficamente, o Zodíaco tem uma forma redonda e representa, simbolicamente, a interligação do está em cima com o que está em baixo. Isto é, o relacionamento da vida nesta dimensão com a dimensão superior, não terrena... cheia de possibilidades!

Além disto, o azul é a cor associada ao 5º Raio, aquele que qromove a aproximação das formas à Ideia divina que lhes deu origem, que estimula o desenvolvimento do mundo concreto e age por intermédio do impulso mental e do intelecto e que gera a ciência da alma, a psicologia e a educação. Se ler estes itens considerando o enorme impacto que “a missão divina” dos Descobrimentos Marítimos portugueses provocou no mundo do século XV, decerto perceberá por que Fernando Pessoa utiliza, neste contexto, a expressão azul profundo. Estaria ele a referir-se à cor do mar? Profundo como era, o poeta decerto estava a pensar na primeira atribuição das atribuições do 5º Raio! No entanto, e apesar de tudo, a terceira estrofe diz: Senhor, falta cumprir-se Portugal!

Aguardemos, pois, calmamente.

* * *

Para terminar esta análise de O Infante, resta chamar-lhe a atenção para o seguinte: a palavra que inicia (Carneiro) o poema é: Deus. E a palavra com que termina é: Portugal! Portanto, a primeira palavra remete para Aquele que tudo inicia e onde tudo se inicia; a última palavra remete para um país do último signo, Peixes, aquele arquétipo onde tudo acaba no indefinido e no oculto. Ora, Portugal ficou na História, precisamente, devido à ousadia (Carneiro, o primeiro) de dar início a uma nova forma de afrontar a vastidão desconhecida, oculta, dos oceanos (Peixes, o último). Fernando Pessoa sustenta esta tese denunciando a vertente divina, oculta, dos Descobrimentos.

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Poema II correspondente ao 2º signo, Touro

II - Horizonte

Ó mar anterior a nós, teus medos Tinham coral e praias e arvoredos. Desvendadas a noite e a cerração,

As tormentas passadas e o mistério, Abria em flor o Longe, e o Sul sidério 'Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa - Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta

Em árvores onde o Longe nada tinha; Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:

E, no desembarcar, há aves, flores, Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis Da distância imprecisa, e, com sensíveis Movimentos da esp'rança e da vontade,

Buscar na linha fria do horizonte A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -

Os beijos merecidos da Verdade.

O que ressalta imediatamente deste poema é a utilização de termos que referem os elementos típicos da Natureza primaveril, quando está no auge da sua pujança. Ora, estes termos são, exactamente, os mesmos que referem o arquétipo Touro. Este signo astrológico, como sabe, é regido por Vénus, a deusa da Arte, do Amor e da Sedução, a qual, naturalmente, expressa os valores taurinos de beleza e de sensualidade. Para que isto fique mais claro, gostaria de destacar esses termos e as expressões que, em Horizonte, “escondem” a presença dominante de Touro/Vénus: Tinham coral e praias e arvoredos / Abria em flor o Longe, e o Sul sidério / Em árvores onde o Longe nada tinha / Mais perto, abre-se a terra em sons e cores / E, no desembarcar, há aves, flores / O sonho é ver as formas invisíveis / A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte - Os beijos merecidos da Verdade.

De todas estas referências, típicas de uma primavera que desabrocha (Touro/Vénus - Abril/Maio), a mais clara e inequívoca está, sem dúvida, no quinto verso da primeira estrofe: Abria em flor o Longe, e o Sul sidério…

Touro é um signo de Terra. Este Elemento diz respeito às vertentes práticas da vida baseadas na experiência passada (concretização) e à realidade perceptível do presente (evidência). Por ser preservador e conservador, o elemento Terra está pouco interessada no

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futuro. Ora, como se pode verificar, ele está bem presente neste poema, quer nos termos característicos da sua vertente material e física (aves, flor, árvores, praia, fonte, etc.) quer no sentido das acima citadas “concretização” (baseada na experiência passada) e “evidência” (realidade perceptível do presente). Comecemos pela “concretização” (baseada na experiência passada): na primeira estrofe, o verbo está no pretérito perfeito (tempo passado): Ó mar anterior a nós, teus medos / Tinham coral e praias e arvoredos. Este tempo de conjugação do verbo pressupõe que, agora, os medos já “não têm” coral e praias e arvoredos. Logo, a presença do elemento Terra está em que algo se concretizou no sentido de alterar a definição deles.

Quanto à “evidência” (realidade perceptível do presente): na segunda estrofe, os verbos estão no presente do indicativo (tempo presente): Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta / Mais perto, abre-se a terra em sons e cores / E, no desembarcar, há aves, flores

Outra referência clara ao Elemento Terra é o próprio título do poema: Horizonte. Um horizonte pode ser, evidentemente, apenas uma linha que, aparentemente, assinala o “fim” do planeta. Porém, para os navegantes portugueses que procuravam novas terras, decerto se refere ao avistamento e posterior alcance de algo sólido, alguma coisa de concreto que se visse, sentisse, tocasse e cheirasse (Terra), alguma coisa que se pudesse possuir e preservar (Touro), algo que se pudesse fruir, amar e contemplar (Vénus).

Este poema também denota uma presença bem vincada do signo oposto. Neste caso é Escorpião - um arquétipo de mistério, profundidade, noite, breu, transcendência, morte, regeneração, inconsciente profundo, etc. A terminologia típica deste arquétipo oposto a Touro pode ser encontrada em: Ó mar anterior a nós, teus medos / Desvendadas a noite e a cerração / As tormentas passadas e o mistério / Linha severa da longínqua costa / O sonho é ver as formas invisíveis. Perante isto, será lícito acreditar que Fernando Pessoa decidiu deixar de lado a profundidade dos seus conhecimentos esotéricos, optou por dispensar a maturidade da sua alma e preferiu limitar-se a utilizar, nos seus poemas, termos que constam de qualquer compêndio básico de Astrologia? Fará algum sentido considerar a magistral composição deste poema como uma simples superficialidade inspirada? Será por acaso que Touro e Escorpião estão aqui codificados? Será coincidência? E como comentar o que se passa nos outros poemas? Fernando Pessoa tinha Ascendente em Escorpião. Esse gosto pela investigação, pelo contacto com o oculto e com o enigma forçou-o, evidentemente, a ir bem mais fundo. Toda a sua obra o assegura.

É um facto indesmentível que, por detrás da exaltação da bravura da viagem física, externa, dos navegadores (que serve de tema aos 12 poemas), está a demanda do Graal - a viagem espiritual, interna, o trabalho alquímico, as iniciações, o autoconhecimento, enfim o empenho na tarefa de, progressivamente, ir substituindo a consciência terrena e mundana, por uma outra, divina e transpessoal. É assim que, em Horizonte, há expressões e ideias que apontam claramente para os interesses espirituais do poeta. Os dois últimos versos da primeira estrofe são bem explícitos: Abria em flor o Longe, e o Sul sidério / 'Splendia sobre as naus da iniciação. Repare que Longe está escrito com maiúscula; não refere, portanto, a distância física que separava os navegadores das terras onde pretendiam chegar; é outro tipo de Longe. Além disto, as naus deixam de ser os veículos da descoberta marítima para passarem a ser os veículos da iniciação.

Outro exemplo de expressões e ideias que apontam claramente no sentido da viagem espiritual, do trabalho alquímico, da iniciação e do autoconhecimento, é toda a terceira estrofe, especialmente o seu início: O sonho é ver as formas invisíveis / Da distância imprecisa… O que poderão ser estas formas invisíveis da distância imprecisa senão aquelas que o desdobramento da energia do ser multidimensional podem assumir, na distância imprecisa dos vários planos das distintas dimensões dos diversos Universos? Qual poderá ser esta Verdade maiúscula senão a da nossa origem cósmica e divina? Que “lábios” darão estes beijos merecidos da Verdade, senão os do nosso Pai? Quem os receberá senão uma alma resgatada? Se o leitor cair na

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ingenuidade de pensar que vai sentir esses beijos na pele da sua fronte, suada pelas agruras do Caminho, desiluda-se porque, nessa dimensão, já não precisa de um corpo físico! Em termos de expansão da consciência, o objectivo a atingir é, evidentemente, conseguir realizar o sonho de ver, de ser capaz de reconhecer as formas invisíveis da distância imprecisa, escondidas no futuro por desvendar. Por outras palavras: o leitor não acaba no ponto onde termina a consciência que tem acerca de si mesmo. Muito provavelmente, julga-se um corpo que alberga uma alma. A verdade, porém, é que o seu eu/espírito, ao decidir encarnar outra vez, serviu-se da alma para se poder expressar nesta terceira dimensão, enquanto um eu/ego – você, que responde pelo nome que os seus pais te deram! Enfim, trata-se do célebre mistério da vida, como se costuma dizer. E aqui temos a embrulhada que, enquanto eu/ego tanto gostamos de alimentar: deixámo-nos alienar a tal ponto que já não podemos passar sem representar o papel do tonto perdido dentro do labirinto. Queixamo-nos de que não conseguimos encontrar a saí-da... mas, parece que não queremos sair dele. A razão de ser da nossa vida problemática é investirmos incessantemente na descoberta da saída do labirinto, enquanto nos recusamos a reconhecer que não se sai de um labirinto pelo sítio por onde se entrou, mas sim por cima; sai-se perdendo “peso”, voando. Se não levantarmos os olhos jamais encontraremos a verdadeira saída!

Deixa, porém, de haver mistério quando reconhecermos que o nosso aparelho mental terreno - aquilo que pensa, faz análises intelectuais e acredita que tem sempre razão - é incapaz de processar a informação que gerará o conhecimento da Verdade. Realmente, tão condicionado aparelho é impotente para descodificar como são as coisas fora do plano desta dimensão física onde ele próprio se debate. É completamente desnecessário pedir a ao que foi concebido para pensar, fazer análises intelectuais e gerar a sensação de ter razão, que nos esclareça acerca de um tema que tem de ser sentido com o coração! Sem entendermos isto, permaneceremos, é claro, dentro do mistério. Esta dramática situação impele-nos a peregrinar erraticamente em busca de orientação, do sentido e do propósito da existência, pelo que o momento de recebimento dos tais beijos merecidos da Verdade vai sendo sistematicamente adiado. Por outras palavras, o ser humano comum, há milhares de anos entretido com o tão propalado mistério do sentido da vida, tem vindo a orientar a sua pesquisa nas seguintes direcções:

O seu local de origem. (De onde venho?); A consciencialização do grau de evolução que possui (Quem sou eu?); A busca do ponto de chegada (Para onde vou?).

Esquece-se, porém, (ou recusa lembrar-se) que conhece perfeitamente o local de origem do seu ser, de onde ele vem: vem de outra dimensão, onde deixou a sua matriz perfeita - aquilo que existe para o ajudar a orientar-se neste mundo das formas, desde que solicite e aceite, incondicionalmente, essa ajuda. Mas, para que tal seja possível, é necessário que o eu/ego se decida a dispensar as contaminadas energias da arrogância e do orgulho. Além disso, conhece perfeitamente o grau de evolução que possui; sabe quem é: é um ser multidimensional, um núcleo de consciência superior, incomensurável. É um Filho da Luz, uma mónada que, junto com muitas outras, resolveu experimentar a densificação a sua própria energia para ver como a criatividade da Fonte se manifestaria nesses planos densos. Esta decisão, porém, implicou a descida de um espesso véu sobre o conhecimento da Essência; a consequência foi essa espécie de amnésia cósmica que o aflige. Finalmente, conhece perfeitamente o ponto de chegada, sabe para onde irá: irá para outra dimensão, para aquela de onde saiu, temporariamente, para fazer esta experiência. Tal como o filho pródigo, voltará para Casa do Pai, esse estado de paz que lhe pertence por direito e de onde jamais poderá ser expulso, esse estado de paz de onde jamais foi expulso. Este ser acredita que foi expulso da Casa do Pai, porque, há milhares de anos, ouve dizer que é uma criatura indigna da Luz. Acredita no que ouve porque vários tipos de sacerdotes lho garantiram ao longo dos milénios. E, como continuam a garantir, vive desgraçadamente como se, de facto, tivesse sido expulso da Casa do Pai. Sente-se separado do Paraíso porque acredita que foi expulso de lá. Esse ser humano comum, porém, bem podia aprender que a energia é neutra. A energia, por si só, não gera coisas boas ou coisas más; na realidade, a energia segue a direcção do pensamento: se

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ele passar a querer e a acreditar que as coisas são de determinada forma, o Universo moldar-se-á para que essa forma venha a ser uma realidade. Portanto, o célebre mistério da Vida não tem mistério nenhum.

Através de tudo isto - e do resto que a mente humana não pode explicar - Fernando Pessoa convida o leitor a reflectir acerca da sua condição de estar encarnado neste mundo... embora não seja deste mundo! Sim, porque o leitor não é deste mundo; não lhe pertence! Está na Terra, preso nesta densíssima dimensão, para reconhecer o que há por detrás do véu que, no momento do nascimento físico, desceu sobre o Conhecimento Essencial da sua verdadeira Origem. Você está aqui para, como diz o poeta: Buscar na linha fria do horizonte / A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte /Os beijos merecidos da Verdade. Ou seja, tem de activar aquele instinto do salmão que faz com que, depois de muitos anos no mar, procure o rio onde nasceu. Portanto, caro leitor, decida sair desse seu “mar” assustador, active o instinto de retorno à Fonte e demande o Rio de Luz onde nasceu. Não pode deixar de retornar para esse Rio. Quando recuperar a condição de Tudo, receberá os tais beijos merecidos da Verdade e, finalmente, perceberá que beija a si mesmo!

***

Repetindo o jogo de relacionar as primeiras e as últimas palavras do poema, pode ver em Ó mar anterior a nós, uma invocação ao mar ancestral e primordial. Trata-se dessa energia criadora do Pai que nos criou a todos. Trata-se do Oceano da Totalidade onde flutua o Ovo Cósmico, esse mar que, necessariamente, é anterior a nós, na medida em que somos o fruto manifestado da Sua criatividade.

A ternura inerente a essa Fonte volta a aparecer no último verso -Os beijos merecidos da Verdade - já que o Criador, depois de ter aguardado que o seu filho completasse a viagem iniciática ao longo de inumeráveis encarnações, recebe-o de volta e permite que ele se funda, de novo, com Ele, para serem Um, como sempre foram e serão. O Pai beija e, no beijar, unifica.

Bom, esta questão dos beijos é uma imagem poética, pois não consta que Deus tenha boca. Como é que uma vibração pode ter lábios? É por isso que tem de se dar um certo desconto à linguagem escrita!

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Poema III correspondente ao 3º signo, Gémeos

III – Padrão (13 de Setembro de 1918)

O esforço é grande e o homem é pequeno. Eu, Diogo Cão, navegador, deixei

Este padrão ao pé do areal moreno E para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita. Este padrão sinala ao vento e aos céus

Que, da obra ousada, é minha a parte feita: O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano Ensinam estas quinas, que aqui vês,

Que o mar com fim será grego ou romano: O mar sem fim é Português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma E faz a febre em mim de navegar

Só encontrará de Deus na eterna calma O porto sempre por achar.

O aspecto mais interesse deste poema é facto de ser o único em que o autor - apesar de se identificar com a figura de Diogo Cão - se expressa na primeira pessoa. Esta excepção deve-se, decerto, à circunstância de Padrão corresponder a Gémeos, o signo natal de Fernando Pessoa (13 de Junho de 1888, às 15:20 de Lisboa). Quando se descreve o signo de Gémeos costuma referir-se a sua acentuada mutabilidade e dispersão, assim como a tendência para intelectualizar as experiências. Com base nestes parâmetros, veja-se como Fernando Pessoa se definiu a si próprio:

Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou. (...) Toda a constituição do meu

espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são “desconhecidas”, símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por demais inteligente. (...) Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, física e mentalmente, para actos decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma decisão nascida do autodomínio, jamais traí externamente uma von-tade consciente. Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinários, inexpulsáveis associações de ideias cujo termo era o infinito. Não posso evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil inter-associações, e não tenho força de vontade para os eliminar ou deter, nem para os reunir num

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só pensamento central em que se percam os pormenores sem importância mas a ele associados. (...) O meu carácter é tal que detesto o começo e o fim das coisas, pois são pontos definidos. (...)

Notável! O leitor poderá investigar os inúmeros compêndios de astrologia disponíveis nas livrarias; contudo, dificilmente encontrará uma descrição que melhor defina o arquétipo Gémeos.

Em Padrão, mais uma vez, Fernando Pessoa usa as navegações, os marinheiros e as viagens pelos maravilhosos mares ignotos desse planeta, para falar da sua viagem espiritual. Di-lo, claramente, no primeiro verso da primeira estrofe. Decerto baseado na sabedoria adquirida por via da inevitável renúncia do mundo e das suas vãs glórias, reconhece: O esforço é grande e o homem é pequeno. / Eu, Diogo Cão, navegador, deixei / Este padrão ao pé do areal moreno / E para diante naveguei. Porém, destes mesmos versos - que assinalam a propensão geminiana de se movimentar permanentemente para diante - pode tirar-se um outro significado. Vejamos: Nesta estrofe, Fernando Pessoa identifica-se com Diogo Cão e confessa-se navegador, o que é uma forma de se reconhecer como um pesquisador peregrino das rotas (Mar, Peixes, Portugal, Espírito) que conduzem à Origem. E, lembrando-se do monumento de pedra (padrão!) que os Portugueses erguiam e deixavam nas terras que iam descobrindo, diz: Eu, Diogo Cão, navegador, deixei / Este padrão ao pé do areal moreno / E para diante naveguei. Tentemos traduzir:

1) O termo padrão - que, ao dar nome ao poema, reforça a sua regência sobre ele - certamente poderá ser entendido como o próprio trabalho literário do poeta. Este trabalho é essa obra de incrível beleza, originalidade e profundidade que deixou nesse planeta, particularmente o livro, Mensagem, ao qual pertencem estes 12 poemas.

2) A expressão - ao pé do areal moreno - é, seguramente, sinónimo das praias desse Portugal à beira mar plantado, as quais se tornaram célebres por terem assistido, durante séculos, à presença angustiada dos seres humanos, principalmente mulheres, que ficavam pregadas no areal, constrangidas e chorosas, olhando o horizonte, depois de terem visto zarpar os seus maridos e filhos.

Um parêntesis: Embora seja matéria do 10º poema (Mar Português) - quiçá o mais belo e conhecido dos 12 que fazem parte deste conjunto - cabe transcrever como Fernando Pessoa expressou este drama, que ainda hoje continua a desenrolar-se no areal moreno de Portugal:

Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar!

3) A expressão - E para diante naveguei - poderá ser interpretada, sem dúvida, como uma forma de Fernando Pessoa dizer que cumpriu a tarefa a que se propusera. Ou seja, escreveu e avisou o que havia para escrever e para avisar. Depois, como convém a qualquer ser humano, não se apegou à sua criação e seguiu para diante, em busca de novas rotas, novas terras, novos portos. Assim se purificou, sabendo que haveria de continuar a evolução noutras dimensões, tendo como objectivo último a Luz Suprema.

E, como se a primeira estrofe não bastasse para confessar o objectivo a que dedicou toda a sua vida, começa a segunda retomando o mote espiritual: A alma é divina e a obra é

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imperfeita. Quer o poeta dizer, certamente, que os Humanos não podem fazer tudo. (Não podem fazer tudo, mas podem fazer muito para que a obra, ainda imperfeita, se torne divina como a alma.) A partir do momento em que decidam desacelerar a vibração da sua energia, fazendo-a baixar para essa terceira dimensão, e que a alma, apesar de divina, tenha de se confrontar com o peso da matéria, só poderão fazer o que estiver ao seu alcance. Por isso, a obra é imperfeita!

Apesar de tudo, o que está ao alcance dos Humanos? Está ao seu alcance usarem o livre-arbítrio da única maneira que vos é favorável, escolhendo a via da dedicação ao aprofundamento espiritual. Esta escolha é fundamental para que, um dia se libertem desse mesmo livre-arbítrio e, finalmente, possam fazer a vontade do Pai, sem se entregarem a apreciações intelectuais sobre se essa Vontade Superior coincide ou não com a vontade inferior. Está ao seu alcance preferir usar o Amor para embeber pensamentos e actos, para que, finalmente, se acabem de vez todas as discórdias e desacordos, todas a desafinações que derivam de a alma não conseguir afinar a personalidade pelo tom, puro, que vibra na Origem. Está ao seu alcance tornarem sagrada a sua consciência terrena, fazendo com que ela seja à imagem e semelhança da sua Consciência Cósmica. Isto é conseguido, naturalmente, desde que se use o livre-arbítrio da única maneira favorável, escolhendo a via da dedicação ao aprofundamento espiritual e se use o amor para embeber pensamentos e actos, para que, finalmente, se acabem de vez todas as discórdias e desacordos! Tudo isto está, perfeitamente ao alcance dos Humanos... mas é preciso ser alcançado! Convirá, pois, não perder de vista o que aceitámos fazer quando decidimos encarnar, outra vez, nesse planeta: 1) Fazer com que a alma deixe de enfrentar as sombras criadas pelo ego; 2) Convidar a personalidade a reconhecer que faz parte de um ser cuja origem é divina. Estas duas das condições nucleares são fundamentais ao processo de ascensão, que nos facilitará o retorno à Fonte de onde saímos, para reassumirmos a prática da nossa verdadeira essência.

Ainda nesta segunda estrofe, Pessoa, considerando a sua obra com a consciência

tranquila, garante: Este padrão sinala ao vento e aos céus / Que, da obra ousada, é minha a parte feita: / O por-fazer é só com Deus. Sim, da obra ousada, ele fez o que era possível ser feito. Acima dissemos: tudo isto está perfeitamente ao alcance dos Humanos... mas é preciso ser alcançado! Fernando Pessoa alcançou o que estava perfeitamente ao seu alcance! Se mais não fez foi porque O por-fazer é só com Deus.

O último verso da segunda estrofe - O por-fazer é só com Deus - refere a Fonte de

todas a humanidades e de tudo o resto que existe. Trata-se, como é sabido, do Criador, neste caso sob a denominação Deus. Ora bem, o signo complementar de Gémeos (3), é Sagitário (9), o Iluminador do Caminho, o modelo do Mestre, do Guru, do Hierofante (do grego hierophántes: sabedor de uma ciência ou de um mistério). Dito de outra forma, Sagitário é, precisamente, o arquétipo que tem como função religar as criaturas à sua Origem - seja qual for o nome que se lhe dê – ensinando a reconhecer o que se esconde por detrás das aparências. O Centauro Arqueiro treina-se para acertar no alvo do significado profundo, abstracto, filosófico e metafísico daquilo que acontece. E já que, a propósito de Sagitário, estamos a falar de Deus, o Supremo Senhor do Universo, relembremos que Sagitário é regido por Júpiter/Zeus, o Supremo Senhor do Olimpo!

O segundo verso desta estrofe - Este padrão sinala ao vento e aos céus - refere,

claramente, os elementos dos signos que integram este eixo de signos – Gémeos e Sagitário – isto é, o Ar (vento) e o Fogo (Céus), respectivamente. A associação entre o elemento Ar e o vento é óbvia. Todavia, o mesmo poderá não acontecer com a conexão Fogo/Céus. Se parece que o Fogo tem uma relação longínqua com Céus, afina a mente para a vibração espiritual e relembra do Fogo Criador do Pai. Mas também a afina para a vibração mitológica e relembra que Zeus, o Senhor dos Céus, usa o Raio cada vez que se aborrece.

Padrão é o terceiro poema deste conjunto, tal como Gémeos é o terceiro signo do

Zodíaco, o qual, como já vimos, é o signo de nascimento de Fernando Pessoa. Podemos, então, recuperar aqui a terceira pessoa da Santíssima Trindade, essa vibração a que a Igreja Católica resolveu chamar Espírito Santo... embora devesse ser conhecida como Mãe, pois uma família

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composta por um Pai, um Filho e uma Pomba é algo que dá que pensar. Seja como for, Mãe, Pomba ou Espírito Santo são tudo nomes que definem algo, e nomes que definem algo são coisas que só existem aí na Terra, uma escola cujos alunos adoram definições! Recuperemos, então, essa terceira pessoa da Santíssima Trindade para a reconhecermos como a Voz Muda que emite o Som Silencioso de Cristo. Se a designação Espírito Santo define que o Espírito é Santo, então, seguir a via do Espírito nada mais deveria ser do que reconhecer, aceitar e praticar as qualidades do Espírito. Acha o leitor que ser Santo, como o Espírito é, não está ao seu alcance? Tem razão se acha que não está, porque você não pode alcançar uma condição que, na Origem, já é. Seguir, na Terra, a via do Espírito é viver como se fosse possível experimentar, plena e integralmente, todas a qualidades do Verdadeiro Espírito. Já sabe que não é possível, mas é possível viver como se fosse. Trata-se de preferir, conscientemente, uma espécie de fingimento útil, e deixar para trás todos os fingimentos inúteis. Sim, na Terra as máscaras são inevitáveis.

Fernando Pessoa sabia que, embora a fingir, (sim, o poeta é um fingidor...), o Caminho

é individual e solitário. Ele o diz: E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma / E faz a febre em mim de navegar / Só encontrará de Deus na eterna calma / O porto sempre por achar. Talvez por isso, tenha optado pelo discurso na primeira pessoa do singular. Ao falar directa-mente de si próprio, talvez tenha querido aproximar-se mais intimamente do leitor, na esperança de que essa proximidade o ajudasse a reconhecer a premência - e a importância - de trocar todas as perguntas por uma só resposta. Talvez tenha pensado que a denúncia da sua experiência pessoal (ainda que cifrada na poesia) incentivasse outros a seguir-lhe o exemplo. Talvez... apesar de a febre (...) de navegar que nele havia (devida ao que lhe ia na alma)! Isso certamente lhe ensinou que quem tiver a coragem de lançar a sua consciência em direcção ao céu Só encontrará de Deus na eterna calma / O porto sempre por achar.

Para aliviar um pouco a densidade desta prosa, vamos brincar um bocadinho com as

primeiras e últimas palavras deste Padrão. É sabido que os deuses não nos pedem o que podemos realizar facilmente; seria o mesmo que condenar-nos a ficarmos encalhados no mesmo lugar. Se assim fosse, o mundo terreno estaria muito mais cristalizado do que já está. Todos sabemos (embora muitos prefiram esquecer), que só afrontando os desafios é que a Roda, individual e colectiva, se mantém em movimento. Fernando Pessoa, mais do que ninguém sabia disso. Assim, as primeiras palavras deste Padrão - O esforço é grande e o homem é pequeno - e as últimas - O porto sempre por achar - proporcionam o seguinte arranjo:

O esforço é grande, o homem é pequeno e o porto (está) sempre por achar.

Pessoalmente discordo. O que pensará Fernando Pessoa acerca disto, agora que o seu porto já não está por achar?

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Poema IV correspondente ao 4º signo, Caranguejo

IV - O Mostrengo (9 de Setembro de 1918)

O mostrengo que está no fim do mar Na noite de breu ergueu-se a voar;

À roda da nau voou três vezes, Voou três vezes a chiar,

E disse: “Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo, Meus tectos negros do fim do mundo?” E o homem do leme disse, tremendo:

“El-Rei D. João Segundo!”

“De quem são as velas por onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço?” Disse o mostrengo, e rodou três vezes,

Três vezes rodou imundo e grosso,

“Quem vem poder o que eu só posso, Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo?”

E o homem do leme tremeu e disse: “El-Rei D. João Segundo!”

Três vezes do leme as mãos ergueu, Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer três vezes: “Aqui ao leme sou mais do que eu:

Sou um Povo que quer o mar que é teu; E mais que o mostrengo que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo; Manda a vontade, que me ata ao leme,

De El-Rei D. João Segundo!”

Neste poema, Fernando Pessoa aborda a missão da alma, simbolizada pelo homem do leme, em face do destino, simbolizado pelo Mostrengo, missão que se resume a vencer o medo... precisamente o que sente o homem do leme quando se defronta com o Mostrengo. No Zodíaco, esta polaridade está contida no seguinte eixo de signos opostos e complementares:

- 4º Signo, Caranguejo, regido pela Lua, símbolo do mundo interior: inconsciente, noite, alma, emoções orientadas para os valores familiares e patrióticos.

- 10º Signo, Capricórnio (que, em relação a Caranguejo está no ponto oposto, no fim

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do mundo), regido por Saturno, símbolo do mundo exterior: trabalho, responsabilidade, obra, destino, medo, carma.

Ambos, cada qual à sua maneira, gerem as memórias das experiências passadas, as

quais, inevitavelmente, condicionam, no presente, as respostas aos estímulos exteriores que chegam a cada instante. É claro que, em muitíssimas situações, as respostas são escolhas automáticas, condicionadas por hábitos ancestrais. Realmente, quando uma situação se relaciona com algo que, quer nos lembremos, quer não, nos amedrontou no passado, imediatamente esse medo original é accionado, mesmo que não haja razão para isso.

O 4º signo do Zodíaco, Caranguejo, naturalmente, está associado à Casa IV, a qual, por se encontrar na parte inferior da mandala astrológica, toma o nome específico de Fundo do Céu. Esta zona do mapa astral simboliza o fim das coisas (a forma como se acaba o que se começou), mostra o Fundo, o fim do mar das emoções, o Fundo das fundações psicológicas e físicas (família e bens de raiz), bem como o aglomerado de irmãos do mostrengo que pululam no subconsciente. Fernando Pessoa começa por dizer isto mesmo. E, sabendo que esses medos, mais cedo ou mais tarde, sairão a voar da noite de breu para aflorar à superfície da consciência, acrescenta: O mostrengo que está no fim do mar / Na noite de breu ergueu-se a voar.

Tendo isto em consideração, facilmente o leitor reconhecerá Saturno na figura assustadora, severa e ameaçadora do Mostrengo (medo) que sai do útero onde reside (subconsciente/Caranguejo) e se mostra ao apavorado, mas corajoso, homem do leme. Ou seja, porque as suas águas foram perturbadas (Caranguejo/Água), e energia salta para o seu oposto complementar (Capricórnio/Terra), mostrando-se, tornando-se real através de uma figura assustadora. Externamente, o medo simboliza o cabo do mundo, que tem de ser vencido (dobrado) com valentia, sob pena de não se chegar à Índia, o término da viagem: internamente, simboliza a iniciação que tem de ser feita, com entrega, sob pena de não se chegar à Luz, o término da viagem. Seguro do seu poder de manipular a vontade humana, mas surpreendido com a visita, o próprio Mostrengo interroga, ao longo das três primeiras estrofes do poema:

Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo, Meus tectos negros do fim do mundo?

De quem são as velas por onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço?

Quem vem poder o que eu só posso, Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo?

Novamente, está bem clara aqui a viagem espiritual da Humanidade da Terra e o

desafio de enfrentar o desconhecido (inconsciente/Lua). Peço-lhe, caro leitor, para imaginar a situação do homem do leme, símbolo do Caranguejo: está longe da segurança da pátria (Caranguejo), desterrado dentro de uma caravela, no meio do oceano longínquo, acerca de cujas águas (Caranguejo) nada sabe. De facto, quem eram os seus habitantes? Como terminavam? Que surpresas reservavam? Além disto, o homem do leme está rodeado por ventos e tempestades, mergulhado na escuridão nocturna (Caranguejo), enfim, lutando contra o seu próprio desamparo (Caranguejo). Ora, esta situação de um caminheiro marítimo ter de dobrar um cabo no fim do mundo - onde se levanta e berra a configuração monstruosa dos próprios medos sob a forma de um Mostrengo - para poder chegar à Índia, não é muito dife-rente daquela que um caminheiro espiritual enfrenta para poder chegar ao seu Oriente.

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Assim, em O Mostrengo, o homem do leme é um peregrino que luta por ultrapassar os

seus limites, e El-Rei D. João II representa o Divino dentro Humano, guardado nos átomos do corpo físico - aquilo que, um dia, se transformará no fogo que o levará a si, leitor, a outra dimensão, tal como o fogo da fogueira eleva o ar de que se alimenta. Dito de outra forma, El-Rei D. João II a Vontade do Eu Superior, a Voz Silenciosa que ata ao leme e, por isso, não permite desistências. Mas para que serve a Vontade do Eu Superior, se não for posta em prática? No entanto, precisamente por ser Superior, esta Vontade não obriga ninguém a pô-la em prática; ela não viola o seu livre-arbítrio que o leva a continuar a alimentar desequilíbrios e a lamentar perdas; ela não contraria a sua renitência em que o seu próprio Espírito seja apresentado à sua personalidade. Não. A sua Vontade Superior ama-o. Por isso, apesar de reconhecer os caprichos do seu ego, limita-se a esperar que o leitor se decida a aceitar o Seu desígnio. Em O Mostrengo, o homem do leme atingiu esse ponto de consciência e decide pôr em prática a Vontade do seu Eu Superior, neste caso, El-Rei D. João II. Já sem um ego que o comande, acolhe o seu desígnio superior. Por isso, bravamente, responde no fim de tremer três vezes:

Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um Povo que quer o mar que é teu;

E mais que o mostrengo que me a alma teme E roda nas trevas do fim do mundo;

Manda a vontade, que me ata ao leme, De El-Rei D. João Segundo!

Assim, tremendo, mas cumprindo o desígnio superior, enfrenta a noite de breu para se defrontar com os seus monstros pessoais, o medo imundo e grosso que reside nos esconsos da mente.

Numa perspectiva astrológica, a figura de El-Rei D. João Segundo (o poder temporal por detrás dos Descobrimentos), simboliza a Pátria (Caranguejo/Lua). Repescando o poema anterior, desse areal moreno o homem do leme se afastou, ali deixando mulheres pregadas no areal, angustiadas e chorosas, olhando o horizonte, depois de terem visto zarpar os seus maridos e filhos. Sacrificando-se, o homem do leme de tudo isto se afastou e, seguindo a Voz Maior, ousou entrar nos domínios do Mostrengo, entrando em territórios desconhecidos. Numa perspectiva espiritual, El-Rei D. João Segundo é equivalente a essa Voz Maior que o peregrino ouve, a qual, a partir de um certo ponto, não pode deixar de ser ouvida e muito menos abafada. Sacrificando-se, tudo abandona, desidentifica-se do mundo, ali deixando muitas pessoas angustiadas e chorosas... principalmente quem ainda não percebeu que, quando é hora, é tempo de partir!

Na expressão três vezes, que tão insistentemente surge ao longo do poema, podemos ver, também, conotações espirituais e astrológicas. Espiritualmente, pode ver-se uma nova referência à Santíssima Trindade; astrologicamente, relembra os três signos/Elementos que antecedem Caranguejo: Carneiro, Touro e Gémeos, isto é, o impulso (Fogo), a determinação (Terra) e o discernimento (Ar), todos eles necessários à decisiva empresa de mergulhar nas profundidades e reconhecer o que está oculto na essência de cada ser humano.

Vamos agora juntar o primeiro verso - O mostrengo que está no fim do mar - com o último - De El-Rei D. João Segundo - para ver se podemos esticar um mais a criatividade:

O mostrengo que está no fim do mar de El-Rei D. João Segundo!

Perante isto, pode levantar-se a questão de saber o que é de El-Rei D. João Segundo: o mostrengo ou o fim do mar? Assim, deve ler-se: “O mostrengo, que está no fim do mar, de El-Rei D. João Segundo” ou “O mostrengo, que está no fim do mar de El-Rei D. João Segundo”?

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Na primeira hipótese, se tirar a oração intercalada (“que está no fim do mar”), surge o mos-trengo particular de El-Rei: O mostrengo (...) de El-Rei D. João Segundo.

Vejamos: Por detrás do título de rei está um homem como qualquer outro e, portanto, possuidor dos seus próprios medos, hospedeiro do seu mostrengo particular, assim como se a alimária fosse uma espécie de camareiro sombrio, que não o larga nem quando se vai deitar. Medo toda a gente tem, como se tem visto. Porém, pelo facto de ser Rei, talvez esses medos fossem até bem maiores do que aqueles que perturbavam o comum dos mortais da época.

No caso da segunda hipótese – “O mostrengo, que está no fim do mar de El-Rei D. João Segundo” - é o fim do mar, não o mostrengo, que o pertence ao monarca. Todavia, como é que D. João Segundo podia possuir uma coisa que era de todos? Como podia ser ele o senhor de algo que ninguém sabia como acabava?” Podia porque também o leitor possui o medo, algo que é de todos e, igualmente, não sabe como acaba! Portanto, é indiferente uma hipótese ou outra, uma vez que – sem quaisquer especulações - é do confronto entre o sonho e o medo que depende a realização ou o fracasso de um destino.

Se não nos enganamos era isto mesmo o que Fernando Pessoa queria dizer.

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Poema V correspondente ao 5º signo, Leão

V - Epitáfio de Bartolomeu Dias

Jaz aqui, na pequena praia extrema, O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro, O mar é o mesmo: já ninguém o tema!

Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro.

À primeira vista, este poema é difícil de interpretar. Analisemos as duas ordens de razões para que assim seja.

1ª - Não faz sentido que o poema mais pequeno, de tamanho modesto, corresponda ao signo que gosta da opulência e da grandiosidade;

2ª - O próprio título remete para a escuridão e para a morte, quando se sabe que Leão é regido pelo Sol, símbolo da vida e da Luz.

O sentido profundo deste Epitáfio só fica perceptível quando encaramos esta sequência de poemas sobre a perspectiva de uma viagem espiritual, tal como temos vindo a fazer, sobrepondo esse ângulo de visão com o da Astrologia. Todavia – e isto pode parecer uma afirmação surpreendente - falar de trajecto espiritual ou de Astrologia é exactamente a mesma coisa, uma vez que esta pode ser o veículo daquele. Há, sem dúvida, muitas formas de praticar a Astrologia. No século XXI, porém, não faz sentido fazer outro uso dela que não seja o de reconhecê-la como uma técnica de compreensão humana que, se assim o quisermos, poderá contribuir para a expansão da consciência. Dito de outra maneira, poderá ser uma bússola sempre ao dispor de quem já se sente atraído, conscientemente, pelo caminho inevitável da iluminação. Por conseguinte, a iniciação conseguida através da superação do ego e dos seus inevitáveis medos, dá acesso, evidentemente, a um Homem Novo. Nada mais natural, portanto, do que lavrar um epitáfio que recorde o criatura deixada para trás - a personalidade que “morreu” para dar lugar a outra, mais madura e mais significativa. Jaz aqui, na pequena praia extrema / O Capitão do Fim... quer dizer que aqui ficou o velho ser, aquele que comandou a sua “nau” até à fronteira de uma nova dimensão espiritual. Dobrado o Assombro, ou seja, depois de vencido o medo monstruoso, O mar é o mesmo: / já ninguém o tema! Dito de outra maneira: continuamos a viver na Terra, mas deixou de haver razão para recear!

E onde está a referência ao signo oposto e complementar daquele a que esse poema

diz respeito? Aqui, em Leão, temos de ver de que forma Aquário está codificado dentro deste Epitáfio. Aquário é o futuro. Representa a abertura mental necessária ao crescimento, principalmente espiritual. Aquário pretende projectar-se para a frente e realizar os seus ideais de elevação, ao mesmo tempo que vai deixando para trás o interesse pelas coisas terrenas, as quais, por via do seu peso, não só dificultam o caminho rumo à transparência e à leveza, como ainda impedem a capacidade de respirar o ar puro das Alturas (Aquário). Daí o seu amor ao desapego e o seu apreço pela impermanência! Ao fim e ao cabo, Aquário é um arquétipo de esperança, e simboliza a certeza de que a Humanidade, quando reprogramar a sua mente e a alinhar com a intuição (Urano, regente de Aquário) e com o Espírito, recuperará o conhecimento da Essência e, por isso, passará a conduzir-se habilmente. Assim sendo, fica claro que este Epitáfio é o paradigma do salto para a frente.

Acima, falámos da superação do medo. Ora, neste poema, é disso mesmo que se trata:

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depois de enfrentado o Mostrengo (o poema anterior) e vencidos os seus medos, o Ser fica muitíssimo mais leve. Além disso, esta libertação ainda tem a vantagem de facilitar os movimentos que hão-de ser dados a seguir. Aquário não pode alçar a alma para o alto se o porão da nau estiver a abarrotar de pesos indesejáveis. Se assim acontecer -Atlas, (não) mostra alto o mundo no seu ombro!

Este poema é pequeno, mas, mesmo assim, é perfeitamente possível juntar as

primeiras palavras às últimas, na esperança de que façam algum sentido. Portanto, juntemos Jaz aqui com o mundo no seu ombro:

Jaz aqui, o mundo no seu ombro.

Curiosamente, como Atlas não é referido nesta frase, o ombro deixa de lhe pertencer, para passar a ser de quem jaz (no poema) ou seja, de Bartolomeu Dias. Portanto, o mundo jaz no ombro de Bartolomeu Dias. É mais coerente que seja assim, não pelo facto de ele ser português, mas por se tratar de um ser humano cuja coragem (e o poder de persuasão do Infante D. Henrique!) fez dele um herói e um exemplo. Atlas, por seu lado é, apenas, uma figura mitológica que existe, precisamente, para servir de referência a criaturas da dimensão deste navegador! Mas que “mundo” jaz no ombro deste Capitão do Fim? Decerto o mundo completo, já que, antes da passagem pelo Cabo das Tormentas (Boa Esperança) os ocidentais só conheciam as coisas pela metade, sendo que o mesmo se podia dizer dos orientais. Através desse navegador nos conhecemos uns aos outros e encetámos uma longa história de trocas a todos os níveis. Bem vistas as coisas, se não fosse Bartolomeu Dias, os ocidentais, hoje, não teriam a acupunctura à sua disposição e os orientais ainda estariam para saber o que é a Coca-Cola e o MacDonalds! … Grave perda para os orientais!

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Poema VI correspondente ao 6º signo, Virgem

VI - Os Colombos (2 de Abril de 1934)

Os outros haverão de ter O que houvermos de perder.

Outros poderão achar O que, no nosso encontrar, Foi achado, ou não achado, Segundo o destino dado.

Mas o que a eles não toca É a Magia que evoca

O Longe e faz dele a história. E por isso a sua glória É justa auréola dada

Por uma cruz emprestada.

Este é um texto bem complicado de analisar. Não sei se Fernando Pessoa fez de propósito, mas a verdade é que um dos atributos de Virgem é precisamente a tendência para complicar! Todavia, há muito para dizer. Assim, onde vamos encontrar referências ao Elemento de Virgem (Terra) e ao signo oposto, Peixes?

Este poema, no seu conjunto, reflecte sobre um mundo de posses, equivalente ao da Terra (ter e dar, possuir e perder, produzir e vender, semear e colher, etc.). Logo nos dois primeiros versos se encontra uma clara referência a quem tem ou não tem, a quem perdeu ou a quem achou.

No que diz respeito ao signo oposto, Peixes, toda a segunda estrofe se espraia pelos

símbolos piscianos. Fala-se de Magia, de evocar, de Longe, de auréola. A linguagem já não refere, como na estrofe anterior, as coisas concretas do ter ou não ter mas um ambiente evasivo, diáfano, misterioso e, até, transcendente. Há, inclusivamente, uma clara referência à característica pisciana de não querer ter nem possuir: é quando o poeta diz que a justa auréola dada provém de uma luz emprestada.

Mas, se reparar bem, o que é que este poema tem a ver com os Descobrimentos

portugueses? Objectivamente, nada. Mais: se só há um Colombo, por que se chama este poema Os Colombos? Parece que “os colombos” representam aqueles navegadores e descobridores que fizeram exactamente o que os portugueses fizeram (navegar, descobrir terras, etc.), mas a quem faltava uma coisa essencial: serem portugueses! Se dizemos isto, não é, evidentemente, pelo facto de portugueses serem melhores do que quaisquer outros, é por esses outros terem nascido fora do país que, segundo Pessoa, tinha por missão divina expandir os caminhos marítimos deste planeta e, consequentemente, espalhar por esse mundo o pacífico, criativo, condescendente e sensível ADN pisciano/português. Isto poderá ser muito polémico, mas é o que se pode deduzir de: E por isso a sua glória / É justa auréola dada / Por uma cruz emprestada.

De facto, dá a sensação de que os “colombos” (todos os outros navegadores

estrangeiros) apanharam a “onda” que, divinamente, aos portugueses fora destinada. No

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entanto, como era inevitável que navegadores de outras nacionalidades se predispusessem a contribuir para essa aventura, Fernando Pessoa presta-lhes homenagem, classificando de justa a auréola que, historicamente, ficou rodeando as cabeças deles... apesar de provir de uma cruz (destino) emprestada (a dos portugueses)! Poderá haver quem se espante ou desconfie deste espírito de missão dos portugueses (irremediavelmente piscianos!), o qual atingiu o auge no século XV. Mas há coisas que, embora possam passar desapercebidas aos distraídos, convém prestar alguma atenção. Eis três dos muitos exemplos que podem apresentar-se:

1 - Por que se dirá que Portugal é um país de poetas, de gente ingénua, devota e

caritativa, sabendo-se que a Poesia, a devoção, a ingenuidade e a caridade são atributos de Peixes?

2 - Que outra nação poderia possuir o mito do Encoberto (que voltará numa manhã de nevoeiro), quando se reconhece que nevoeiro, indefinição, sonho, saudade e simbolismo são atributos de Peixes?

3 - Quem mais faria uma revolução (25 de Abril de 1974), onde os representantes dos poderes caídos - responsáveis por mortes, assassinatos políticos, fome, atraso e repressão - em vez de serem julgados, como seria justo, foram misericordiosamente tratados e, já envoltos num perdão inquestionável, acabaram por viajar, na maior tranquilidade, ao encontro do sol acolhedor do país irmão, do outro lado do Atlântico? E enquanto estas cenas, perfeitamente surpreendentes, se iam desenrolando, rubras flores enfeitavam os canos das espingardas, portadas por soldados de lágrima no olho, desejosos de abraçar toda a gente, talvez até aqueles a quem, pouco tempo antes, julgavam impossível perdoar por lhes quererem tirar a vida!

Apenas uma resposta apetece dar às perguntas feitas acima: apesar de calorosos e ingénuos, de brutos e generosos, de provincianos e infantis, só os portugueses poderiam fazer uma revolução como a 1974.

Sem dúvida, é uma questão de natureza da Alma portuguesa. É assim e (se exceptuarmos a obrigação de refinar essa natureza), não há nada a fazer!

A frase - Outros haverão de ter (...) uma luz emprestada - é o que resulta da

combinação das primeiras e das últimas palavras deste poema. É óbvio que Fernando Pessoa nada tem a ver com este verso. E dificilmente poderia assinar uma coisa destas já que, interpretando-o à luz da espiritualidade, embora seguindo uma orientação diferente da que foi usada na análise a Os Colombos, trata-se de um enorme disparate. Assim é porque ninguém poderá ter ou beneficiar de uma luz emprestada. Luz, não é coisa que se empreste! Aliás, sequer é coisa que se dê, porque já foi dada pela única Entidade que poderia fazê-lo. Por que razão haveria o leitor de oferecer o mesmo presente duas (ou mais!) vezes, se, da primeira vez, a dádiva foi completa e feita com o todo o altruísmo, isto é, sem esperar nada em troca? Assim, Luz é algo que o leitor não deve esperar de outra pessoa. Acresce, ainda, ser escusado buscá-la seja aonde for, excepto num lugar: no “coração”! Na dádiva da Fonte não há graus, porque foi absoluta. Onde esses graus já se verificam é na noção que cada um de nós tem da quantidade e qualidade de Luz que irradia. Dito de outra forma, o que está em causa é a maior ou menor consciencialização que cada um possui do quanto já tirou daquilo que obscurecia, e nos casos mais graves encobria completamente, a sua Luz. Deus não empresta nada. Nem dá! Isto poderá parecer um sacrilégio imperdoável, passível de fogueira. Deixa de sê-lo, todavia, se nos lembrarmos que a Origem já deu tudo o que tinha a dar quando vos criou “à sua imagem e semelhança”. O resto tem sido, é e será da nossa responsabilidade!

Contudo, devemos evitar interpretar literalmente este “à sua imagem e semelhança”,

para não corrermos o risco de imaginar Deus com dores de estômago, talvez careca ou bronzeado do Sol e, quem sabe, até, sócio honorário do de algum famoso clube de futebol! Foi isso mesmo que fizeram muitos antepassados, e muitos continuam a fazer presentemente, imaginando um velho e de grandessíssimas barbas (o Big Bang já ocorreu há imenso tempo!), sentado lá em cima, extremamente preocupado, incapaz de tirar os olhos dos biliões de filhos que gerou. E porque tem em vista um futuro e implacável ajuste de contas, faz questão de apontar num caderninho todas as patifarias que a imaturidade humana sempre convida a fazer!

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Não admira que tenhamos medo desse deus que o nosso próprio medo criou! Por isso, leitor, aplaque a sua consciência, pois, enquanto ser divino, você não tem

culpa e, ainda por cima, está isento de pecado! Aquela parte de si que sente culpa e remorsos pelos pecados cometidos, não foi criada pelo Pai. Realmente, quando a criação é perfeita, contém em si a possibilidade de escolha. De outra forma, o Criador não passaria de um reles e lamentável ditador. Logo, é um tanto absurdo acreditar que Ele possa ter criado o ego. Porque Deus é Amor, criou-nos potencialmente perfeitos. Por conseguinte, o ego é da nossa responsabilidade. O que piora as coisas é que o ego, porque serve apenas a si mesmo, está fadado a errar na escolha. Como compreenderá, leitor, aquilo que o impede de reconhecer a Verdade - a tal Luz que é sua desde o Princípio - são, precisamente, as consequências dessas escolhas inábeis, egoístas. Para quê, então, buscar a Luz fora ou procurar quem lha possa fornecer emprestada se, desde sempre, essa portentosa vibração vive dentro do seu coração?

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Poema VII correspondente ao 7º signo, Balança

VII - Ocidente

Com duas mãos - o Acto e o Destino - Desvendámos. No mesmo gesto, ao céu

Uma ergue o facho trémulo e divino E a outra afasta o véu.

Fosse a hora que haver ou a que havia A mão que ao Ocidente o véu rasgou, Foi alma a Ciência e Corpo a Ousadia

Da mão que desvendou.

Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal A mão que ergueu o facho que luziu, Foi Deus a alma e o corpo Portugal

Da mão que o conduziu.

Comecemos por analisar o título escolhido para este sétimo poema: Ocidente. Como sabe, o sétimo signo do Zodíaco é Balança e está associado à Casa VII, cujo grau

inicial se chama Descendente (por oposição à 1ª Casa, cujo grau inicial toma a designação de Ascendente). Assim, Ascendente e Descendente formam um eixo. Se o Ascendente astrológico é o grau do signo que estava a ascender no horizonte - a oriente - no momento do nascimento da pessoa, o Descendente é, portanto, o grau do signo que estava a descender no horizonte - a Ocidente – nesse mesmo minuto. Logo, Fernando Pessoa não poderia ter escolhido um título mais apropriado para este sétimo poema, o qual tem a ver com o ponto - a Ocidente - onde o Sol se põe! Deste modo, o sétimo signo e a Casa VII referem-se ao outro, ao par, à complementaridade, na medida em que, na roda zodiacal, está em frente de Carneiro, 1º signo, o arquétipo da individualidade. De um lado está, portanto, o “um” (Eu); do outro lado está o “dois” (o Outro). E é, precisamente, por aí que Pessoa começa, dizendo: Com duas mãos...

E prossegue, sempre colocando duas ordens de valores em paralelo, necessárias para realizar qualquer empresa -Com duas mãos - o Acto e o Destino (...) Foi alma a Ciência e Corpo a Ousadia (...) Foi Deus a alma e o Corpo Portugal.

A primeira estrofe reforça bem esta necessidade de cooperação, nascida da

complementaridade típica do signo Balança, onde cada uma das partes da parceria se encarrega da sua função específica: Uma ergue o facho trémulo e divino / E a outra afasta o véu.

A segunda e terceira estrofe confirmam esta ideia: a segunda diz que a mão que desvendou teve como alma a Ciência e corpo a Ousadia; a terceira assegura que a mão que conduziu teve em Deus a Alma e no corpo Portugal. Por conseguinte, cada mão fez a sua parte: uma desvendou e a outra conduziu.

Noutra perspectiva, Fernando Pessoa, mais uma vez, afirma que a missão de Portugal tinha um carácter divino: Foi Deus a alma e o corpo Portugal. Portanto, Deus (a alma do

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projecto), ao determinar que essa tarefa de desvendar fosse realizada, precisava de um corpo que, no mundo físico, e usando duas mãos hábeis e corajosas (o Acto e o Destino), a levasse a cabo. E escolheu as de Portugal.

Aquilo que os Portugueses desvendaram está referido através de duas imagens: 1) um

véu que se rasga (segunda estrofe), e 2) o facho que luziu (terceira estrofe). Esta ideia, onde se mesclam desvendamento e iluminação, é típica do ponto zodiacal chamado Descendente (Ocidente). De facto:

Desvendamento: é nesse ponto do Horizonte que o Sol se põe. É o momento a partir do qual outras realidades são desveladas em consequência da diminuição da luz e a chegada da noite.

Iluminação: é a partir desse ponto que, visto da Terra, o Sol parte para iluminar o outro lado do mundo, envolto da escuridão nocturna.

Acima, a palavra Horizonte aparece escrita em itálico porque foi com ela que Pessoa

intitulou o segundo poema desta série, o qual está associado a Touro. É certo que, neste contexto, a palavra foi escolhida e usada por mim, o que poderá tornar um tanto forçado o que vai seguir-se. A verdade, porém, é que quer Touro (Horizonte), quer Balança (Ocidente), são regidos por Vénus. Ora esta entidade - também conhecida por Afrodite, a Sedutora - é a deusa quer do namoro (fase do relacionamento em que uma mão se dá à outra), quer do casamento (fase do relacionamento em que, tradicional ou simbolicamente, o homem pede a mão da mulher). O problema é que esse “tomar da mão” é usado frequentemente para possuir (Touro) e não para compartilhar (Balança)! Ora, como se pode facilmente comprovar, a posse acaba por gerar outros usos da mão: a pessoa que possui poderá alçar a mão para agredir, quando se vê perante a ameaça de perda; a pessoa que é possuída poderá usar a mão para desenhar no espaço o gesto de despedida! O melhor, portanto, será manter o contacto, segurando sem agarrar!

Resta lamentar que Fernando Pessoa, enquanto homem, não tenha encontrado a sua

“outra mão”. As razões por que assim aconteceu são, decerto, várias e complexas. No entanto, tentou - o que é louvável! Eis um excerto de uma carta que enviou à sua célebre amada Ophélia, em 1.3.1920:

(…) Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como

lhe posso eu levar a mal? A Ophelinha pode preferir quem quiser: não tem obrigação - creio eu - de amar-me, nem realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama. (...) Porque não é franca comigo? Que empenho tem em fazer sofrer quem não lhe fez mal - nem a si, nem a ninguém -, a quem tem por peso e dor bastante a própria vida isolada e triste, e não precisa que lha venham acrescentar criando-lhe falsas esperanças, mostrando-lhe afeições fingidas, e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça? Reconheço que tudo isto é cómico, e que a parte mais cómica disto tudo sou eu.

Pela sua maneira honesta, aberta e sincera de encarar o relacionamento com

Ophelinha, Fernando Pessoa parecia ter tudo para ser bem sucedido. Para que resulte, porém, é preciso que hajam duas mãos...

Estas palavras, com que se inicia Ocidente, podem juntar-se às últimas para dar:

Com duas mãos (...) o conduziu.

Conduziu o quê? O processo de translucidez da alma! As duas mãos, a direita e a

esquerda, podem ser entendidas como símbolos dos dois hemisférios cerebrais, o direito/intuitivo e o esquerdo/racional. A integração destas duas polaridades é um passo indispensável para se conseguir colher a Unidade. A utilização exclusiva (se tal é possível) ou preferencial de um dos hemisférios, necessariamente concorre para o desequilíbrio. Quem, como a maioria dos seres humanos, utiliza mais o cérebro esquerdo, acaba por se transformar

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num culto intelectual ou num arguto cientista; talvez seja, até, uma sumidade, um perito em análise, dedução e raciocínio. Todavia, corre o risco de, por falta da colaboração (ou estímulo) do hemisfério complementar, assumir uma postura fechada e céptica em relação à linguagem simbólica e subjectiva.

Por outro lado, quem privilegia o hemisfério direito em detrimento do esquerdo, poderá cair na falta de lógica, expressar-se através de um discurso utópico e, o que parece ser mais grave, carecer da capacidade de integração e aplicação da riqueza de todos os símbolos na dimensão concreta e mensurável do quotidiano.

Assim, aqui, como em qualquer outra dimensão da vida, não se trata do radical e escorpiónico “ou... ou”, mas sim de um mais saudável, conciliador e libriano “não só... mas também”. Destas deduções se deduz facilmente que quem quiser fundir-se com a Unidade, não deve incorrer em radicalismos, nem deixar nada de fora. Quem conseguiu levar “O Carro” do seu Destino até à estação final, chamada Iluminação, decerto “com duas mãos (...) o conduziu”. Por isso é que o sétimo signo (Balança -Ocidente) é o arquétipo da complementaridade.

Será pela mesma razão que, no Tarot, “O Carro” aparece em sétimo lugar na ordem dos 22 Arcanos Maiores?

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Poema VIII correspondente ao 8º signo, Escorpião

VIII - Fernão de Magalhães

No vale clareia uma fogueira. Uma dança sacode a terra inteira.

E sombras disformes e descompostas Em clarões negros do vale vão Subitamente pelas encostas, Indo perder-se na escuridão.

De quem é a dança que a noite aterra? São os Titãs, os filhos da Terra,

Que dançam da morte do marinheiro Que quis cingir o materno vulto - Cingi-lo, dos homens o primeiro - Na praia ao longe por fim sepulto.

Dançam, nem sabem que a alma ousada Do morto ainda comanda a armada,

Pulso sem corpo ao leme a guiar As naus no resto do fim do espaço:

Que até ausente soube cercar A terra interna com seu abraço.

Violou a Terra. Mas eles não O sabem, e dançam na solidão;

E sombras disformes e descompostas, Indo perder-se nos horizontes, Galgam do vale pelas encostas

Dos mudos montes.

É óbvia a associação deste poema com Escorpião, quando se repara que o texto aborda a morte de um navegador. O ambiente que se respira ao longo das quatro estrofes é escuro, mágico, mítico, assombroso, aterrador, pesado, descrevendo, perfeitamente, o mundo escorpiónico. Basta recordar o mito de Plutão, regente deste signo, para ressaltar essa analogia: no panteão olímpico, ele era e única divindade cuja palavra, uma vez dada, não podia ser alterada ou revogada pelos outros Deuses e, muito menos, pelos mortais. Morte, regeneração e transcendência estão associadas a esta fase do ciclo zodiacal porque não é possível viver a ascensão a estados de consciência mais elevados (fase seguinte, Sagitário) sem que, antes, tenha ocorrido uma profunda metamorfose, a qual, normalmente é vivida através de uma crise mais ou menos perturbadora. Fernando Pessoa, enquanto astrólogo e entidade altamente desenvolvida, sabia-o perfeitamente. Por isso, aborda a morte neste 8º poema e, ao

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9º (correspondente a Sagitário), dá o título de Ascensão de Vasco da Gama. Escorpião é um signo do elemento Água (emoção, sensibilidade) e das profundidades. É

um arquétipo telúrico, regente das entranhas da Terra e das suas convulsões. Ora, é sabido que, no nível humano, não existem maiores convulsões do que as provocadas pelas erupções emocionais que ascendem das profundezas da psique. Daí a má fama deste signo!

Poucos são aqueles que gostam de mudar! Efectivamente, raras são as pessoas que aceitam a impermanência de tudo o que existe manifestado neste plano físico. A verdade, porém, é que a palavra crise contém uma faceta de perigo e outra de oportunidade.

É claro que, quem pretende, através do seu ego, conter e represar as forças da natureza psíquica, está condenado a, mais cedo ou mais tarde, ser arrasado e “destruído”. O que é destruído, todavia, é a decisão de recusar o que deveria de ser bem acolhido. O resultado é o renascimento de um novo ser; sem este renascimento não é possível a fase seguinte que se caracteriza pela ascensão. Esta profunda purificação a todos os níveis é a “função” de Escorpião e do seu regente Plutão.

A viagem à volta do mundo empreendida por Fernão de Magalhães pode ser

comparada com a viagem à volta ao Zodíaco. Quem quiser completar a jornada tem de predispor-se a “morrer” na 8ª fase. O que fez Fernão de Magalhães? Violou a Terra. O navegador teve o “atrevimento” de desvirginar a esfericidade da Terra, o maior segredo que, porventura, o planeta ainda escondia. Tamanha ousadia foi paga com a morte, ainda antes da empresa concluída. Plutão fez-se pagar pesadamente. Porém, com um pulso sem corpo ao leme a guiar, a prova foi superada!

Fernando Pessoa não esconde esta temática escorpiónica e o seu vocabulário habitual.

No poema, há imensas referências que eliminam todas as dúvidas: Uma dança sacode a terra inteira (...) sombras disformes e descompostas (...) Em clarões negros do vale que vão (...) Indo perder-se na escuridão (...) De quem é a dança que a noite aterra? (...) Que dançam a morte do marinheiro (...) Na praia ao longe enfim sepulto (...) Do morto ainda comanda a armada (...) As naus no resto do fim do espaço (...) Violou a Terra. Mas eles não / O sabem e dançam na solidão (...)

Da mesma forma que não é possível fazer uma Ascensão sem que uma iniciação prévia abra as portas da Totalidade, também o feito de Fernão de Magalhães abriu, amplamente, a noção que a Humanidade quinhentista detinha acerca do planeta onde vivia. Mas essa expansão de consciência, inclusivamente científica, só foi possível através do “sacrifício” do navegador. De facto, Plutão mostrou-se, e Caronte exigiu o pagamento!

Este poema reflecte tão perfeitamente o arquétipo escorpiónico que resiste a não se

deixar adulterar quando se juntam as primeiras e últimas palavras dele. O sentido essencial permanece:

No vale (...) dos mudos montes.

Ora, Escorpião tem excelentes relações com o silêncio! No imaginário humano, se há

lugar onde reina a paz que convida ao recolhimento, à devoção, ao agradecimento e à gratidão, é no vale nos mudos montes. É quando nos retiramos e recolhemos nele, física ou mentalmente, que podemos ter a consciência do quinhão da Obra Divina que nos é pedido.

Vimos, no poema anterior, que tudo tem de ser conduzido com as duas mãos, contemplando a união das duas polaridades. Isto é, os relacionamentos são essenciais. Porém, o movimento de O Carro, não pode ser impedido, nem atrapalhado pela presença das pessoas e das coisas mundanas, umas e outras ruidosas por natureza. Há que respeitar o afastamento dos outros que caracteriza a iniciação, como foi citado, também, no 7º poema (Ocidente). Mesmo correndo o risco de cair na vulgaridade (o que, afinal, não envolve risco nenhum), terminaria esta 8ª secção relembrando que melhor do que pescar um peixe, é não desistir de pescar!

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Poema IX correspondente ao 9º signo, Sagitário

IX - Ascensão de Vasco da Gama (10 de Janeiro de 1922)

Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra Suspendem de repente o ódio da sua guerra

E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,

Primeiro um movimento e depois um assombro. Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro,

E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.

Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões, O céu abrir o abismo à alma do argonauta.

Este 9º poema é, nitidamente, a continuação do anterior, pois estamos no ponto crucial entre a 8ª e a 9ª fase do processo de evolução espiritual da Humanidade terrena. Na via espiritual, não há ligação mais estreita nem “continuidade” mais óbvia do que na ponte que liga o momento da “morte” de uma velha etapa de vida com o momento de Ascensão para outra etapa de dimensão superior. Uma coisa é consequência da outra. E, essa ponte chama-se iniciação! Assim, tal como ao número oito se segue o número nove, também à morte (de Fernão de Magalhães - VIII) se segue a Ascensão (de Vasco da Gama - IX).

Os primeiros versos deste poema denunciam claramente essa continuidade, pois neles

persiste o ambiente escorpiónico descrito no poema anterior: Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra / Suspendem de repente o ódio da sua guerra / E pasmam. Se, nesse 8º poema, o ambiente foi caracterizado por o ódio da sua guerra (típico do “Escorpião” comum), no 9º, temos a grandiosidade e a elevação que tão bem caracterizam Sagitário. Este é o reino de Júpiter/Zeus, o deus dos Deuses, o Senhor do Olimpo e, enquanto planeta, do gigante do Sistema Solar. Pessoa refere isso logo no primeiro verso: Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra…

Mas há, pelo menos, mais duas referências a Júpiter/Zeus, o Senhor do Raio: a primeira está no último verso as primeira estrofe - E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões - que descreve a imagem clássica de Zeus, recostado numa nuvem, fazendo relampejar para se entreter ou, simplesmente, assustar os Humanos; a segunda referência está, ainda mais nítida, no segundo verso da segunda estrofe - Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões.

É interessante verificar que, ao entrarmos nos domínios do Senhor do Olimpo, a Morada dos Deuses, encontremos - pela primeira vez desde que partimos do primeiro poema, O Infante - o termo Deuses.

A presença do signo oposto a Sagitário, Gémeos, não é muito clara, excepto se

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repararmos que Ascensão de Vasco da Gama trata, efectivamente, de uma questão que tem a ver com o reconhecimento da comunicação entre o que está em cima e o que está em baixo. Ora, a temática da comunicação é o fulcro do arquétipo Gémeos, regido por Mercúrio, uma entidade que, além de desempenhar o papel de Mensageiro dos Deuses, era filho de Júpiter/Zeus. Portanto, os regentes do eixo Gémeos/Sagitário estão, mitologicamente falando, ligados por laços familiares bastante estreitos.

Além disto, se Júpiter/Zeus é Senhor e pai, Mercúrio, enquanto filho, deve obedecer-lhe e respeitá-lo. Astrologicamente falando, também a mente racional (Mercúrio) deve ceder perante a abrangência e a sabedoria (Júpiter).

Se nos reportarmos aos irmãos gémeos (Castor e Pólux) que formam o símbolo de Gémeos, verificamos que um deles era mortal (terra) e o outro era imortal (céu). Portanto, mesmo sem sair de Gémeos – o terceiro signo do Zodíaco - a mensagem permanece: sendo o movimento ascensional, o gémeo terreno tem de “morrer” para dar o lugar ao seu irmão divino, pois só assim se consegue plantar um Padrão (III) nos novos territórios conquistados!

No que toca aos respectivos Elementos - o Fogo de Sagitário e o Ar de Gémeos - é

sabido que o Fogo sempre foi considerado um elemento de purificação. Veja-se, a título de exemplo, a queima dos livros empreendida fanaticamente pelo III (!) Reich ou a queima dos hereges durante o período da Inquisição. Assim, o Fogo, entendido espiritualmente, representa a purificação da alma, um processo feito através da combustão de todas as impurezas (fundamentalmente de uma, chamada ignorância), cujo peso adia o destino inalienável da alma, que é ascender.

Quanto ao Ar, ele detecta-se claramente reparando que Pessoa personificou a Humanidade na figura de um pastor que usa o sopro (Ar) para tocar a sua flauta.

E por que terá escolhido Vasco da Gama para protagonista desta Ascensão? Decerto

porque, ao poema correspondente ao signo regido pelo maior planeta do Sistema Solar, tinha de corresponder quem é considerado o maior de todos os navegadores portugueses.

Embora esta analogia possua força suficiente para encerrar a análise deste poema,

ainda há mais para dizer. Vamos tentar expressá-lo através do verso agora mesmo criado com as primeiras e últimas palavras de Ascensão...

Os Deuses da tormenta (...) do argonauta.

Podemos perguntar: mas quem são estes deuses da tormenta do argonauta? Talvez sejam aquelas entidades que presidem, guardam e preservam o manancial de informação assimilado durante o período de formação da personalidade. Todavia, quem não experimentou ainda a desconfortável experiência de verificar que muitos desses conceitos, ensinamentos ou directivas, afinal, pouco ou nada têm a ver com a nossa natureza intrínseca e essencial? Não obstante, são esses os deuses a quem oramos, enquanto os não percebemos como falsos. Quando – finalmente - nos damos conta disso, enceta-se então um longo e inquietante período de substituição desses valores (deuses) por aqueles que vamos percebendo como intrinsecamente nossos, aqueles que, fruto da maturidade, só agora ascenderam à superfície da consciência.

Nesse rol de conceitos, ensinamentos ou directivas, que pouco ou nada têm a ver com

a nossa natureza, incluem-se os falsos moralismos, a “perigosíssima” sexualidade, a distorcida noção de individualidade, a confusão entre independência e egoísmo, o equívoco que paira sobre os conceitos de piedade e compaixão e, ainda mais, a enorme panóplia de preceitos éticos, religiosos, políticos e sociais, etc. Não queremos dizer que todos esses ensinamentos sejam errados; o que pode acontecer é que pouco ou nada tenham a ver com a natureza essencial da pessoa que os recebeu. Aplicamos praticamente tais coisas porque no-las ensinaram e porque nunca nos demos ao trabalho de verificar se fazem sentido para nós ou, melhor ainda, se nos alimentam ou desgastam. Ou seja, se são deuses que adoramos ou demónios que rechaçamos!

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Não é fácil o trabalho de descartar esta bagagem sem arriscar a ilegalidade judicial, a

marginalidade social, o isolamento fraternal, o ostracismo familiar ou a excomunhão religiosa. É difícil porque tudo isso funciona como apoio para a nossa insegurança interna! Aprender a andar suportado apenas pela habilidade e firmeza das nossas pernas é uma tarefa gigantesca. Por isso mesmo, amedronta! A prova está na frequente dificuldade e, em alguns casos, na recusa implacável, de conquistarmos a nossa autonomia. Sabe-se lá por quê, teimamos em viver, estupidamente, sob o jugo tirânico dessa espécie de imperialismo “educacional”, cujas regras aprendemos de pais, professores, educadores, catequistas, etc. Tudo isto em nome de quê? Em nome de uma moral que prega o crime e o castigo, o pecado e a redenção, com o objectivo de condicionar o nosso comportamento em relação àqueles que nos rodeiam. Poderá ser uma armadilha. E, segundo parece, esta opinião não nasceu agora, neste momento, aqui em frente deste computador. Fernando Pessoa, com toda a sua argúcia e veemência já sus-tentava o seguinte: (...) De tal modo estão as coisas arranjadas por ela (a natureza) neste mundo que servir-se cada um a si, completamente, energicamente e competentemente é ainda o melhor meio de servir os outros (...)

Portanto, quanto aos deuses que fazem a tormenta dos dias do argonauta - esse

Peregrino que todos nós somos - só há uma coisa a fazer: apeá-los do panteão, convocá-los para a terra que pisamos e, baseados na Força de Quem está acima de nós (e deles!) dizer-lhes que, de deuses como eles, está o inferno cheio!

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Poema X correspondente ao 10º signo, Capricórnio

X - Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador Tem de passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.

As duas estrofes deste magnífico 10º poema encerram a essência de todo o capítulo central do livro Mensagem – estes doze poemas que temos vindo a analisar. De facto, “Mar Português”, além de dar o nome ao capítulo e de codificar a essência espiritual do “descobrimento individual”, guarda ainda a essência dos Descobrimentos, os quais, segundo Fernando Pessoa, foram encomendados aos portugueses pelo Divino. Neste sentido, veja-se o que ele diz num texto que intitulou Princípios de Metafísica Esotérica: (...) qual a razão porque este trabalho sai primeiro em português (...)? Porque isso tem de ser assim, dado o grande Destino oculto que Portugal tem de cumprir, continuando o que já cumpriu, aquele destino que o Senhor da Ciência segredou ao Infante D. Henrique em Sagres, para que ele o pusesse em prática. Neste ponto, convém lembrar que a essência de Capricórnio, 10º signo é, precisamente, a realização de uma obra no cumprimento de uma vocação específica, segredada ou não pelas Altas Instâncias.

Estas duas estrofes são o exemplo acabado da polaridade Caranguejo/Capricórnio. Vejamos mais de perto o primeiro pólo: sabemos que Caranguejo é o signo da mãe, do filho, da família e da pátria de origem. E, se nos lembrarmos das suas “pinças”, verificaremos que também gosta de agarrar, isto é, possuir. Além disto, este signo pertence ao Elemento Água, o qual tem a ver com emoção, sensibilidade e, portanto, devoção, lágrimas, choro, lamentação, etc. À luz destas palavras-chave, volte a ler a primeira estrofe e repare como está embebida do 4º arquétipo do Zodíaco. O segundo pólo é Capricórnio, signo do Elemento Terra e, portanto, do destino, da determinação, da paciência, do paulatino vencimento das adversidades até que o cume da montanha seja atingido. Este é o modelo da construção, da forma e da estrutura, as quais, espiritualmente falando, representam a construção, a forma e a estrutura do Reino de Pai... ou da missão que Ele destinou, o que vem a dar no mesmo. Acresce que Capricórnio é o arquétipo do medo, da dúvida, da falta de confiança e de fé. Por isso, Fernando Pessoa começa

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por fazer uma pergunta capricorniana: Valeu a pena? Mas, logo de seguida, dá uma resposta magistral: Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena.

Esta segunda estrofe contém a chave do processo de ascensão humana, até se atingir o reconhecimento da condição divina. O que se entende, porém, por essa metamorfose? Limita-se a ser o sentido e o objectivo da vida de todos os seres humanos que já existiram, existem ou existirão neste planeta: largar o lastro instintivo e animal, e alçar-se à condição de indivíduo, de criatura “individida”, o que é sinónimo de estar não separada da sua origem divina! Portanto, ao estar não separada, há de estar “religada” (do latim religare - religião). E, o que é mais, há de ter consciência dessa não separação. Trata-se, ao fim e ao cabo, de um processo alquímico que, não só durante a época medieval mas, também, ainda hoje (embora em menor escala) era executada, no plano físico, através das sucessivas manipulações do chumbo (por sinal, o metal de Saturno, regente de Capricórnio!) até se obter ouro (Sol, símbolo espiritual de iluminação). Mas nunca é demais recordar que as transformações evolutivas, que se iam verificando na amálgama material e física levadas a cabo pelo alquimista, eram concomitantes com as transformações que iam ocorrendo dentro dele. Obter-se o ouro físico era equivalente a atingir-se a iluminação. Se o manipulador fosse um mero “trabalhador de retortas”, nada conseguiria.

É claro que, mais uma vez, esta verdade alquímica surge mascarada com a roupagem das navegações e dos descobrimentos: Quem quer passar além do Bojador / Tem de passar além da dor. Por via indirecta, Fernando Pessoa fala, de novo, do medo, esse ex-libris capricorniano, dizendo, de uma forma maravilhosamente poética, que as coisas não são só o que parecem ser: o medo e a coragem são, apenas, as duas faces da mesma moeda: Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu. Ou seja, quem quiser um (céu), tem de afrontar o outro (perigo/abismo), pois um e outro são a mesma coisa, aliás como o Taoismo preconiza há séculos através do entrelaçamento gráfico do Yin e do Yang.

Portanto, na primeira estrofe, temos uma espécie de lamentação de carácter íntimo e patriótico, de quem ficou na praia cheio de saudades e a sofrer por quem partiu (Caranguejo); na segunda estrofe, reside um elevado sentido realista de quem partiu (com o coração desfeito, porém indiferente à chora), e que foi bem sucedido porque sabia ser essa a sua obrigação e responsabilidade (Capricórnio). Todavia, enquanto desafio de vida, enquanto desafio divino no sentido de que cada um enfrente o seu Mostrengo (título do 4º poema/Caranguejo) e descubra o longe que tem dentro de si, tudo isto só faz sentido para aquele cuja alma não é pequena. Esse, é o tal que, embora integrando, infelizmente, um grupo minoritário, sabe e sente que Quem quer passar além do Bojador não tem outro remédio senão a passar além da dor.

De facto, há que invocar o início do poema - Ó mar salgado - e colá-lo ao fim dele - espelhou o céu -, para ficarmos a saber, por experiência própria, ser aconselhável que o que está em baixo se decida, finalmente, a “espelhar” o que está em cima. A verdade é que o que está em baixo almeja o que está em cima. Dificilmente poderá deixar de ser assim, pois o que está em cima concede o que está em baixo, pois é análogo ao que está em baixo. Enfim, o que está em cima e o que está em baixo limitam-se a ser dois aspectos da mesma coisa, apenas vibrando em registos diferentes, tal como os infravermelhos e os ultravioletas são vibrações extremas da escala cromática. E, assim, de novo nos confrontamos com a questão das polaridades, essas manifestações separadas da Unidade!

Por isso, Saturno, regente do signo correspondente a este Mar Português, através da sua incomensurável sabedoria, ensina que se vivemos o Alfa de uma área de vida através de frustrações, bloqueios, contrariedades e sofrimentos, também temos a capacidade de poder vir a viver o Ómega dessa mesma área de vida através duma mestria inultrapassável, cujos pilares são a serenidade, a maturidade e a segurança.

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Poema XI correspondente ao 11º signo, Aquário

XI - A Última Nau

Levando a bordo El-Rei D. Sebastião, E erguendo, como um nome, alto o pendão

Do Império, Foi-se a última nau, ao sol aziago

Erma, e entre os choros de ânsia e de pressago Mistério.

Não voltou mais. A que ilha indescoberta Aportou? Voltará da sorte incerta

Que teve? Deus guarda o corpo e a forma do futuro,

Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro E breve.

Ah! Quanto mais ao povo a alma falta, Mais a minha alma atlântica se exalta

E entorna, E em mim, num mar que não tem tempo ou 'spaço.

Vejo entre a cerração teu vulto baço Que torna.

Não sei a hora, mas sei que há a hora, Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora

Mistério. Surges ao sol em mim, e a névoa finda:

A mesma, e trazes o pendão ainda Do Império.

Neste poema, a figura central é um rei. Em nenhum outro texto deste conjunto isso se verifica, tal como não se verifica em nenhum outro verso dos doze poemas de “Mar Português” a ocorrência de um termo tipicamente aquariano - Deus guarda o corpo e a forma do futuro. Ora, o termo “rei” equivale a Leão, signo oposto a Aquário. Neste caso, não se trata, porém, de um rei qualquer; é D. Sebastião (1554/1578), nascido precisamente sob o signo de Aquário (20 de Janeiro), cuja personalidade rebelde e controversa reflecte, perfeitamente, o seu arquétipo solar de nascimento. E por que razão Pessoa encena aqui o desaparecimento de D. Sebastião, rei, símbolo do Sol? Antes de procurar responder a esta pergunta, convém explicar um aspecto técnico da Astrologia:

Cada signo tem o seu regente. Quando, num horóscopo, o regente de um signo se

encontra colocado no signo oposto, diz-se que está em exílio ou exilado. Trata-se de uma

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situação em que a energia está “deslocada”, fora do contexto, “longe” do meio a que pertence. Em decorrência disso, as suas características não podem expressar-se plenamente. No que toca ao eixo Leão/Aquário, a energia em jogo é precisamente a do Sol, porque, ao reger Leão, está, portanto, exilada em Aquário. É por isso que Leão, dispondo do Sol em regência, tende a brilhar para seu próprio gosto e proveito, enquanto Aquário, recebendo o exílio do Sol, tem um carácter mais associativo e fraternal, onde o ego não joga um papel tão preponderante. De fac-to, a postura de Aquário é algo “solar” porque as posições e interesses meramente pessoais (Sol/Leão) “apagam-se” e colocam-se ao serviço fraternal da comunidade.

Por conseguinte, podemos interpretar a decisão de D. Sebastião se envolver na

aventura de Alcácer Quibir, como uma situação onde as qualidades e atributos do rei estavam “exiladas”. As consequências desta decisão parecem ser o resultado de um Sol que passa para o oposto complementar: o Sol (rei), símbolo da vontade pessoal, decide em função do colectivo (a expansão do império). Assim, este Sol afastou-se, arrefeceu, apagou-se e... desapareceu! Convém estar ao serviço dos outros, mas, desta vez, a coisa correu mal. Pessoa reconhece-o quando, na primeira estrofe, adjectiva de aziago o Sol que iluminava a última nau no dia da partida.

No entanto, existe uma passagem intrigante neste poema que só pode ser entendida se for iluminada por uma outra luz, que não a das Descobertas: que razão leva Pessoa a considerar a nau onde embarcou de D. Sebastião como a última, uma vez que as navegações portuguesas não acabaram ali? A resposta não é fácil. Arriscamos, no entanto, a seguinte interpretação: o 11º signo, Aquário, é o último antes da dissolução final (Peixes). Assim, Aquário pode ser entendido como a última oportunidade de iluminação antes do acto de desencarnar. Dito de outra forma, o Sol, por estar em exílio, longe do seu “trono” em Leão, tem como atribuição fundamental reconhecer a si mesmo como uma luz não criada pelo ego, mas pelo Pai. A partir dessa constatação, restam-lhe poucas opções, sendo que a mais recomendada será transformar-se na Luz da fraternidade e, a seguir, fundir-se com o Todo. No caso da evolução espiritual do poeta parece ter ocorrido isso mesmo, já que, na última estrofe, diz: Surges ao sol em mim, e a névoa finda. Ou seja, ao desaparecer a confusão que caracteriza quem ainda está preso às ilusões do mundo, tudo fica claro.

Trata-se, evidentemente, de uma questão particular, alquímica, que só ao manipulador

diz respeito. Tanto assim é que, inesperadamente, Pessoa põe o verbo na primeira pessoa, como se enaltecesse o que D. Sebastião representa: aquilo que há-de voltar numa manhã de nevoeiro (símbolo da confusão que grassa no coração dos homens), para finalmente despertar, dentro de cada peito. Ou seja, a Luz da Fonte! E acrescenta, reforçando - A mesma, e trazes o pendão ainda / Do Império. Esta é, decerto, uma referência ao V Império, o Reino do Espírito Santo, ou seja o último “argumento” do Pai, que volta para fazer valer a Mensagem de Cristo (o Filho). A palavra ainda é importantíssima aqui, na medida em que parece destacar a fidelidade do Espírito Santo: apesar da longa espera e da tolerância sobre a loucura dos homens, ainda porta o pendão supremo do Império!

É claro que, para o que Pessoa pretendia dizer, o local geográfico de chegada do rei

não interessa para nada. Ilha ou continente, tanto faz. O poeta novamente se serve de um episódio da história portuguesa para abordar uma questão transcendente. Ele sabe que, no que toca ao seu percurso espiritual, pessoalmente, está prestes a fazer uma grande iniciação E, apesar de viver numa sociedade maioritariamente composta por gente “adormecida”, está confiante. Por isso diz Ah! Quanto mais ao povo a alma falta, / Mais a minha alma atlântica se exalta… É por causa desta devoção que o poema final desta série (correspondente ao devocional signo de Peixes que encerra o Zodíaco), se chama Prece!

Convidamos agora o leitor a tentar fazer um verso com as primeiras e as últimas

palavras deste poema. Seja qual for a combinação tentada, nenhuma faz sentido suficiente… tal como não faz muito sentido o episódio histórico que esta Última Nau aborda. É estranho que assim seja? Talvez! Mas esta excepção à regra não haverá de causar admiração, pois estamos navegando nos reinos de Aquário e do seu surpreendente, imprevisível e, fundamentalmente, excepcional Urano!

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Poema XII correspondente ao 12º signo, Peixes

XII - Prece (31 de Dezembro de 1921 – 1 de Janeiro de 1922)

Senhor, a noite veio e a alma é vil. Tanta foi a tormenta e a vontade!

Restam-nos hoje, no silêncio hostil, O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou, Se ainda há vida ainda não é finda. O frio morto em cinzas a ocultou:

A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia - Com que a chama do esforço se remoça, E outra vez conquistemos a Distância - Do mar ou outra, mas que seja nossa!

O paralelismo deste último poema com o último signo zodiacal, começa logo no título. Prece é sinónimo de oração, o que pressupõe ligação, reverência e reconhecimento do plano divino, ou, no mínimo, uma ânsia de contacto com ele. Essa é a “atitude” do arquétipo pisciano. Como Peixes vive com saudades do divino, é-lhe difícil lidar com o materialismo, a fealdade e a violência do plano terreno. Tende, assim, a retirar-se para o claustro, para o mosteiro ou convento, ou só para dentro de si mesmo, para reatar os laços com as dimensões transcendentes. Porém, se a espiritualidade ainda estiver adormecida, essa fuga do mundo poderá ocorrer através de tácticas de evasão (ilusões, irrealismo, fantasias, drogas, etc.), ou por via da doença. Torna-se, então, num ser desamparado onde, muitas vezes, impera a chantagem emocional e a autopiedade. Portanto, é razoável começar o poema com uma invocação da divindade: Senhor, a noite veio e a alma é vil.

Este poema tem três estrofes, e cada uma delas refere os três patamares do Tempo. A primeira estrofe aborda o Passado -Senhor, a noite veio e a alma é vil/Tanta foi a

tormenta e a vontade! Todavia, a forma como decorreram as coisas no passado condiciona a forma como estamos no Presente - Restam-nos hoje, no silêncio hostil / O mar universal e a saudade.

A segunda estrofe remete para a vivência do Presente, pelo que a esperança não pode morrer. Por isso, constata-se objectivamente - Mas a chama, que a vida em nós criou/Se ainda há vida ainda não é finda. Nem jamais poderá sê-lo! Nesta segunda estrofe, Pessoa volta a referir o Divino como essência do Presente - O frio morto em cinzas a ocultou: / A mão do vento pode erguê-la ainda.

Esta constatação introduz a terceira estrofe, onde se fala do Futuro. Aqui encontramos aquela evidência (Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia -/Com que a chama do esforço se remoça) que abre as portas para futuras realizações e gera a determinação para percorrer outro plano da espiral evolutiva - E outra vez conquistemos a Distância/Do mar ou outra, mas que seja nossa!

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Estas três estrofes também referem claramente aos quatro Elementos. Relendo a

primeira estrofe (Passado) deste poema, correspondente a um signo de Água (Peixes), nota-se como é claro este Elemento. Porém, como a Terra é harmónica com a Água (a Terra confina, segura e dá forma à Água, enquanto a Água, fertiliza, embebe e amacia a Terra), reconhecemos a Terra em: Tanta foi a tormenta e a vontade! / Restam-nos hoje, no silêncio hostil…

A associação de tormento e hostil com a Terra fica mais clara sabendo que este Elemento representa os “tormentos” inerentes à densificação máxima da energia (materialização), bem como a “hostilidade” dos desafios inerentes a essa situação.

A segunda estrofe (Presente) contém a referência aos outros dois Elementos (Fogo e Ar), cuja acção centrífuga tende a dirigir a energia para fora e para cima. Também eles são naturalmente harmónicos entre si, já que o Fogo aquece e faz movimentar o Ar, e o Ar atiça e vivifica o Fogo. O terceiro verso desta segunda estrofe - O frio morto em cinzas a ocultou - refere particularmente a ausência deles: Frio e cinzas para o Fogo; morto para o Ar. Se o leitor estranhar a associação do Ar com morto, experimente deixar de respirar por uns minutos!

Finalmente, como se de um crescendo se tratasse, a terceira estrofe do poema (Futuro), refere os quatro Elementos, associados na sua relação harmónica (Ar/Fogo e Terra/Água). Nos dois versos iniciais reconhecem-se o Ar e o Fogo: Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia /Com que a chama do esforço se remoça; Nos dois versos finais ressalta o poder da Terra e a posse da Água: E outra vez conquistemos a Distância / Do mar ou outra, mas que seja nossa!

Resta acrescentar uma curiosidade final (diria sincronicidade!) que tem a ver com esta

questão da passagem de um ciclo para outro, de um estado para outro que caracteriza a iniciação espiritual - a qual teve uma presença persistente ao longo deste trabalho. Trata-se da circunstância de Prece ter sido escrito na passagem do dia 31 de Dezembro de 1921 para o dia 1 de Janeiro de 1922!

Novo ano, vida nova! Encetar uma vida nova, aqui, significa repescar asa palavras de início e de fecho de Prece para pedir:

Senhor (...) que seja nossa… a Tua vontade!

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cremos que ficou ficado claro o facto de este conjunto de poemas se referir a outro tipo de viagens, que não só aquelas que os navegadores portugueses empreenderam por “mares nunca antes navegados”.

Enquanto seres espirituais em evolução, cada um de nós encarna periodicamente neste planeta para que, enquanto Infante (I) possa empreender uma expedição aos seus mares internos, desconhecidos e amedrontadores, onde reina um Mostrengo (IV) que adora agigantar-se, mas cuja descoberta e conhecimento garante uma Ascensão (IX).

E porque não importa o que, por ter sido transcendido, ficou para trás, sente-se um impulso de lavrar um Epitáfio (VIII) em sua homenagem e lembrança.

Internamente, o Peregrino, que existe em cada um de nós, deve afrontar um novo Horizonte (II) navegando para Ocidente (VII) e, com orgulho, plantar um Padrão (III) em cada novo território que vai desvelando. Um dia, inevitavelmente, construirá, aparelhará e embarcará na sua Última Nau (XI). E, quando estiver à beira do fim do seu tempo, decerto vai querer encomendar-se a Deus através de uma Prece (XII). Depois, desejará desencarnar em paz e tranquilidade para que possa renascer num tempo e locais propícios.

Trata-se um empreendimento solitário. Não há Colombos (VI) que nos valham! Ao fim e ao cabo, ambas as viagens, quer as empreendidas ao mundo da matéria sólida

e líquida (Terra e Água), quer as realizadas ao mundo da matéria subtil da vontade e da mente (Fogo e Ar) - as quais duram o tempo necessário para conhecermos os segredos de manifestação máxima dos 12 arquétipos zodiacais - simbolizam a semente (I) e o fruto (XII) da Evolução:

(I): Deus quer, o homem sonha, a obra nasce (XII): ... conquistemos a Distância / Do mar ou outra, mas que seja nossa!

Por isso, escolhemos para epígrafe deste pequeno trabalho, dois versos de Pessoa, os

quais, por nos parecer oportuno, relembramos aqui:

Que as forças cegas se domem Pela visão que a alma tem!

Vitorino de Sousa Cascais, de Maio a Julho de 1998