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Aspectos Penais da Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural
ANTONIO CARLOS DA PONTE
Promotor de Justiça
Vice-Diretor da Faculdade de Direito da PUC-SP
Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP
Professor de Direito Penal dos Cursos de
Graduação e Pós-Graduação da PUC-SP
Atualmente, quase todas as Constituições
estabelecem como um dos princípios norteadores a proteção ao meio
ambiente sadio. Tal preocupação é constatada na Carta espanhola (1978),
na portuguesa (1976), na suíça (1974), na chinesa (1978), dentre outras.
No Brasil, a preocupação com o meio ambiente
sadio foi detectada já no século XIX, com a reordenação das cidades, que
surge como uma forma de consolidação do Estado-nação. É nesse instante
que a necessidade de proteção ao patrimônio histórico e cultural, elementos
integrantes do meio ambiente, apresenta-se, ainda que de forma tímida.
Contudo, o embate da questão, por meio de norma
constitucional não encontrou guarida nas Constituições Federais brasileiras
de 1824 e 1891. Somente a Carta Magna de 1934 preocupou-se com o
tema, ao estabelecer que competia à União e aos Estados a proteção das
belezas naturais e dos monumentos de valor histórico ou artístico, inclusive
podendo impedir a saída de obras de arte.
A Constituição de 1937, muito embora editada
sob os afluxos do Estado-Novo, alterou a noção tradicional de propriedade
e consagrou o princípio de proteção à cultura, ao estabelecer em seu artigo
134 que os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as
paisagens ou locais particularmente dotados pela natureza, gozam da
proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios.
“Os atentados contra eles cometidos serão equiparados aos cometidos
contra o patrimônio nacional”.
Na Constituição Federal de 1946, a proteção ao
patrimônio cultural tornou-se norma meramente programática inserida no
artigo 175: “As obras, monumentos e documentos de valor histórico e
artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais
dotados de particular beleza, ficam sob a proteção do Poder Público”.
A Constituição Federal de 1967 repetiu a norma
programática do texto constitucional de 1937, mas inovou ao elencar dentre
2
os bens sob proteção do Poder Público, as jazidas arqueológicas1. O artigo
172 possuía a seguinte redação: “Art. 172. O amparo à cultura é dever do
Estado. Parágrafo único – Ficam sob a proteção especial do Poder
Público os documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico,
os monumentos e as paisagens notáveis, bem como as jazidas
arqueológicas”.
A Emenda Constitucional número 1, de 17 de
outubro de 1969, manteve a mesma redação do artigo 172, apenas
renumerando-o para 181.
Com a Constituição de 1988, surge a necessidade
de interação do Direito Penal como instrumento capaz e eficaz de proteção
ao meio ambiente considerado de forma ampla. A intervenção penal para
punir as atividades e condutas lesivas ao meio ambiente passa não só a ser
prevista, como exigida. O patrimônio cultural passa a integrar a categoria
dos interesses metaindividuais ou difusos, ou seja, “interesses que não
encontram apoio em uma relação-base bem definida, reduzindo-se o
vínculo entre as pessoas a fatores conjunturais ou extremamente
genéricos”.2
1 RODRIGUES, José Eduardo Ramos. A evolução da proteção do patrimônio cultural: crimes contra o
ordenamento urbano e o patrimônio cultura. In: Revista de Direito Ambiental. v. 11, p. 29.
2 GRINOVER, Ada Pellegrini. A problemática dos interesses difusos. In: A tutela dos interesses difusos.
São Paulo, Max Limonad, 1984.
3
Os interesses difusos são esparsos e informais,
ligados à qualidade de vida e apresentam duas características básicas: 1a)
seu objeto é sempre um bem coletivo não suscetível de divisão, de modo
que a lesão de um abrange toda a coletividade, ao mesmo tempo que a
satisfação de um interessado implica necessariamente na satisfação de
todos; 2ª) são de titularidade de uma série indeterminada de sujeitos. O
conceito abrange o patrimônio histórico e cultural, expressamente
mencionado pelo artigo 5o, Inciso LXXIII, da Constituição Federal.
Embora a expressão “patrimônio histórico e
cultural” seja utilizada de forma associada, é certo que patrimônio cultural
é gênero do qual são espécies tanto o patrimônio histórico quanto o
patrimônio artístico e outros que a Constituição Federal faz menção no seu
artigo 216, ao dispor que “constituem patrimônio cultural brasileiro os
bens de natureza material e imaterial tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se
incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras,
objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de
valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, palentológico,
ecológico e científico”.
Os Incisos do artigo 216 da Constituição Federal
não são numerus clausus, mas apenas exemplificativos, de tal modo que o
4
legislador constitucional deixou aberta a possibilidade de construção de
novos tipos culturais. Destarte, qualquer bem pode vir a integrar o
patrimônio cultural brasileiro, desde que seja portador de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos termos do caput do artigo 2163.
Nesse contexto, também constitui patrimônio
histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis
existentes no país e cuja preservação seja de interesse público, quer por sua
vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu
excepcional valor arqueológico, etnográfico, bibliográfico ou artístico
(artigo 1º, “caput”, do Decreto-lei nº 25/37).
I – Ação penal e tutela do patrimônio histórico e cultural
A tutela dos valores ambientais, na esfera
processual penal, é feita pelo Ministério Público, titular exclusivo da ação
penal pública em razão de expressa disposição constitucional (artigo 129,
Inciso I, da CF).
Na hipótese de ocorrência de infração penal que
atinja o patrimônio histórico e cultural, desde que não seja de pequeno
potencial ofensivo, caberá ao Parquet decidir pelo oferecimento ou não da
3 RODRIGUES, José Eduardo Ramos, op. cit., p. 33.
5
competente denúncia. Somente em caso de inércia injustificada de seu
órgão de execução, o particular que se sentir lesado estará autorizado a dar
causa a competente ação penal privada subsidiária (artigo 29 do Código de
Processo Penal).
Aqui ocorre um fenômeno interessante.
Instaurado inquérito policial para a apuração de infração penal contra o
meio ambiente, caberá exclusivamente ao Ministério Público, desde que
respeitados os prazos legais, decidir pela propositura ou não da ação penal.
Caso o titular da ação penal opte pelo arquivamento do inquérito policial,
desde que essa medida conte com a anuência do chefe da Instituição, nada
poderá ser feito por aquele que se sentir prejudicado. Tal constatação
permite a seguinte conclusão: o jus puniendi do Estado não é um interesse
difuso, à medida que ao derivar diretamente da soberania estatal, é interesse
do Estado, isto é, interesse público. Como acentua Hugo Nigro Mazzilli,
diferentemente do que ocorre na órbita civil, o seu exercício não pode ser
atribuído a qualquer do povo, ou a este indistintamente, pois implica em
função que exige, além de conhecimentos técnicos, objetividade, isenção
de ânimo e, sobretudo, independência funcional4.
Na esfera penal, portanto, caberá apenas ao
Ministério Público decidir sobre a conveniência ou não da propositura da
ação penal em caso de violação a algum bem ou interesse relativo ao meio
ambiente, feita a ressalva da ação penal privada subsidiária.4 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor e outros
interesses difusos e coletivos. 7ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995, p. 148.
6
II – Infrações penais contra o patrimônio histórico e cultural
O Brasil, ao contrário de outros países, não conta
com tradição legislativa no que concerne à proteção do patrimônio
histórico e cultural. Enquanto na Itália, França, Espanha, Bélgica, Holanda,
Turquia, Grécia, Egito, Inglaterra e Estados Unidos há um conceito
arraigado na consciência popular de patrimônio histórico e cultural, motivo
pelo qual em alguns casos em que tais bens são protegidos as infrações
penais assumem a característica de infrações transnacionais5, aqui há ainda
uma tímida movimentação no sentido de incriminar alguns
comportamentos.
Quando se comete um crime contra o patrimônio
histórico e cultural não se está atingindo apenas uma cidade ou comunidade
que arrecada verbas com a exploração do turismo, mas a consciência de um
povo, sua história e suas tradições, que se vêem vulneradas e ultrajadas.
A preocupação tímida com tal assunto pode ser
observada não somente através da escassa bibliografia que o envolve, mas,
em especial, do próprio aparato jurídico que pode ser classificado, com
muito boa vontade, de tímido.
5 Infrações penais transnacionais são aquelas que não obedecem fronteiras, atingindo aos bens e interesses
protegidos pelas legislações de dois ou mais países.
7
Na esfera penal, a proteção dada pelo legislador
brasileiro ao patrimônio cultural e artístico resume-se a quatro artigos da lei
ambiental e um dispositivo, ainda em vigor, no Código Penal.
Com efeito, a Lei nº 9.605/98, no Capítulo
concernente aos crimes contra o meio ambiente (V), em sua seção IV, trata
dos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural (artigos 62
a 65). Por meio de tais normas busca-se proteger o patrimônio histórico,
artístico e cultural, de forma ampla.
O Código Penal, por seu turno, no artigo 165,
cuida do crime de dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou
histórico. Com tal dispositivo, o legislador penal brasileiro busca tornar
mais efetiva a proteção estatal destinada a resguardar a integridade do
acervo cultural do país.
Através de uma análise abrangente dos
dispositivos legais que tratam do aspecto penal das normas ambientais,
observa-se que estas estão em consonância com o princípio da intervenção
mínima, o qual sustenta, basicamente, que o Direito Penal deve se
apresentar como a última ratio, só justificando sua atuação quando os
demais ramos do Direito mostraram-se absolutamente inócuos.
Muito embora o princípio da intervenção mínima
não esteja explicitado no texto constitucional, indiscutivelmente o mesmo
se apresenta como um princípio imanente que apresenta vínculos com
8
outros postulados explícitos e com os fundamentos de um Estado
Democrático de Direito. O que se questiona é se a adoção do princípio da
intervenção mínima mostra-se compatível ou não com a magnitude dos
bens em discussão.
A opção do legislador brasileiro foi clara, no
sentido de agasalhar tal princípio, o que porém não encontra
correspondência em boa parte da legislação comparada. Não é só. A
resposta penal destinada aos autores de tais crimes que atingem a história e
cultura de um povo é extremamente tênue, isto quando há punição, pois,
em boa parte das vezes, são adotadas medidas despenalizadoras.
A título exemplificativo, quem destrói, inutiliza
ou deteriora arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação
científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou decisão
judicial, estará sujeito a uma pena privativa de liberdade de um a três anos
de reclusão, além do pagamento de multa. Se o autor de tal infração for
primário e lhe forem favoráveis as condições mencionadas pelo artigo 59
do Código Penal6, o Promotor de Justiça poderá oferecer a proposta de
suspensão condicional do processo, que se aceita, fará com que o feito
fique suspenso por um determinado período e o acusado submetido a uma
série de condições. Ultrapassado tal lapso temporal sem qualquer incidente,
será julgada extinta a punibilidade do agente.
6 Culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, os motivos, as circunstâncias e
conseqüências do crime.
9
Em razão de um crime gravíssimo, que maculou a
preservação da história de um povo, o autor de tal infração não cumprirá
um só dia de pena; aliás, sequer condenação sofrerá. Certamente não é com
tal tipo de legislação que se irá coibir condutas graves como a perpetrada.
“O emprego de sanções penais para a proteção
do meio ambiente em determinadas ocasiões se tem revelado como
indispensável, não só em função da própria relevância dos bens protegidos
e da gravidade das condutas a perseguir (o que seria natural) senão
também pela maior eficácia dissuasória que a sanção penal possui”.7
O simples fato do legislador brasileiro catalogar
as infrações contra o patrimônio histórico e cultural como passíveis de
medidas despenalizadoras demonstra o compromisso assumido com o
assunto.
A tese sustentada pelos defensores do Direito
Penal Mínimo, segundo a qual não haveria lugar para a proteção de bens
coletivos, dentre os quais os delitos ambientais, não se justifica e,
tampouco, se sustenta. Os crimes que atentam contra bens protegidos ou
ligados diretamente ao meio ambiente são caracterizados por uma
7 MARTIN, Eduardo Ortega. Os delitos contra a flora e a fauna. Direito Penal Administrativo. Granada,
Comares, 1977, p. 401.
10
vitimação de massa, ofendendo, direta ou indiretamente, círculos amplos8
que justificam uma maior preocupação por parte do Estado.
Como já assinalado, resumem-se a cinco artigos
as infrações penais relacionadas à proteção e preservação de bens de valor
artístico, arquiológico e histórico. Quatro delas estão previstas no diploma
ambiental em vigor (Lei nº 9.605/98 – artigos 62 a 65) e a outra no Código
Penal (artigo 165).
Dos dispositivos apontados, destacam-se o artigo
165 do Código Penal e o artigo 62 da lei ambiental, os quais serão tratados.
III – Dano em coisa de valor artístico, arqueológico e histórico
Estabelece o artigo 165 do Código Penal:
“Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela autoridade
competente em virtude de valor artístico, arqueológico ou histórico. Pena-
detenção de seis meses a dois anos, e multa”.
“Coisas de valor artístico são aquelas que,
reconhecidamente, possuem tal característica: uma escultura, um quadro
notável. Justifica-se desse modo a limitação ao direito de propriedade,
porque o bem, assim declarado, é do interesse de toda a coletividade, e 8MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Derecho penal mínimo y nuevas formas de criminalidad. In:
Revista de Derecho Penal y Criminologia n. 9, enero 2002, p. 160.
11
não apenas do seu dono. Bens de valor arqueológico são os elencados no
artigo 2º e alíneas da Lei nº 3.924, de 26.07.1961. Entre outros,
sambaquis, jazidas, vestígios de ocupação pelos paleomeríngeos (grutas,
lapas, abrigos), cemitérios, sepulturas e inscrições rupestres. Segundo o
artigo 5º, qualquer mutilação ou destruição de tais bens configura crime
contra o patrimônio nacional. Já com relação ao valor histórico, o
objetivo é tutelar as coisas assim declaradas pelo Poder Público. Não é
necessário que o valor seja de âmbito nacional – pode ser de importância
apenas para o Estado, ou até mesmo só para o Município. O exemplo mais
comum é o de construções que retratam a história do Brasil, pouco
importando seu atual estado de conservação.”9
O artigo 165 do Código Penal cuida de uma
infração penal de pequeno potencial ofensivo à luz do que estabelece o
artigo 2º, § único, da Lei nº 10.259/01; portanto, passível de transação
penal.
O dispositivo em análise trata de bens e valores
que já foram objeto de preocupação do legislador anteriormente.
Com efeito, o Código Criminal do Império de
1830 estabelecia que “destruir, abater, mutilar ou danificar monumentos ,
edifícios, bens públicos ou quaisquer outros objetos destinados à utilidade,
decoração ou recreio público”, cominando a pena de prisão com trabalho 9 FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a Natureza. 7ª ed. São
Paulo, Revista dos Tribunais, 2001, p. 199.
12
de dois meses a quatro anos e multa de vinte por cento do valor do dano
causado.
A preocupação foi renovada no Código Penal
Republicano de 1890, respectivamente nos artigos 327 (“demolir ou
destruir de qualquer modo, no todo ou em parte, edifício concluído ou
somente começado, pertencente à Nação, Estado, Município ou
particular”) e 328 (“destruir; abater; mutilar; ou danificar monumentos,
estátuas, ornamentos ou quaisquer objetos destinados à decoração,
utilidade ou recreio público”).
Para a caracterização do crime previsto no artigo
165 do Código Penal, dentre outros requisitos, é imprescindível que o bem
tenha sido tombado10 pela autoridade competente.
O bem ou interesse protegido pela lei penal no
artigo 165 (objetividade jurídica da infração) é a inviolabilidade do
patrimônio nacional natural e cultural, artístico, paisagístico, histórico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
10 Tombar um bem é inscrevê-lo, registrá-lo, inventariá-lo e cadastrá-lo, fazendo constar no Livro de
Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, ou no Livro de Tombo Histórico, ou, ainda, no Livro de
Tombo das Belas Artes e no Livro de Tombo das Artes Aplicadas. Em suma, o tombamento é ato
administrativo pelo através do qual o Poder Público “declara o valor cultural de coisas móveis ou
imóveis, inscrevendo-as no respectivo Livro de Tombo, sujeitando-as a um regime especial que impõe
limitações ao exercício de propriedade, com a finalidade de preservá-las” (RODRIGUES, José Eduardo
Ramos. Tombamento e patrimônio cultural. In: BENJAMIN, Antonio Herman V. (Coord) - Dano
ambiental: prevenção, reparação e repressão. Revista dos Tribunais, 1993, p. 181).
13
O objeto material da ação são os bens móveis e
imóveis tombados pelo Diretor do Serviço de Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (autoridade competente).
Sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa,
inclusive o proprietário, enquanto irá figurar como vítima o Estado (titular
do tombamento). No caso do bem móvel ou imóvel ser particular, irão
figurar no pólo passivo da infração o Estado e o particular.
Na precisa definição de Raphael Carneiro da
Rocha, trata-se de delito plurilesivo, onde há ofensa ao interesse
patrimonial do proprietário, do usufrutuário, do usuário, do habitador, do
locatário ou do comodatário, bem como do Poder Público, sempre que seja
o dominus ou possuidor da coisa, que é objeto material da ação.11
O crime é punível a título de dolo, consistente na
vontade livre e consciente de destruir, inutilizar ou deteriorar coisa móvel
ou imóvel tombada em virtude de valor artístico, arqueológico ou histórico.
Tal delito não admite a forma culposa.
Caso o agente desconheça que a coisa móvel ou
imóvel esteja tombada, ocorrerá erro de tipo, respondendo, eventualmente,
11 ROCHA, Raphael Carneiro da. O Código Penal brasileiro e os crimes contra o patrimônio histórico e
artístico nacional (tese). 1967, p. 38.
14
por crime de dano qualificado (artigo 163, § único, Inciso III, do Código
Penal).
Não se distingue o dolo, neste crime, do dolo no
crime de dano comum. A única diferença que existe entre um e outro é que
aqui o objeto da ação é coisa tombada. O dolo, portanto, no caso do artigo
165 do Código Penal, envolve a consciência do tombamento da coisa
danificada.
Cabe destacar ainda que a Lei nº 3.924, de 26 de
julho de 1961, considera crime contra o patrimônio nacional a destruição
ou mutilação de monumentos arqueológicos ou pré-históricos. O dano
causado caracteriza o crime previsto no artigo 163, § único, Inciso III, do
Código Penal (“contra o patrimônio da União, Estado, Município,
empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia
mista”), independentemente do registro pela Diretoria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Se houver o registro, a adequação típica será
o artigo em comento.12
O artigo 165 do Código Penal trata de um crime
comum (que não exige sujeito ativo qualificado ou especial); material (o
legislador descreve conduta e resultado e o crime se consuma com a
obtenção do resultado. Admite, portanto, a tentativa); de forma livre
(podendo ser cometido por qualquer meio eleito pelo agente); comissivo 12 COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito Penal – Parte Especial. 5ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2001, p.
865.
15
(fazer) e omissivo impróprio ou comissivo por omissão (o agente tem o
dever legal de agir e se mantém inerte, possibilitando a obtenção do
resultado); instantâneo (uma vez consumado está encerrado, deixa de
produzir efeitos); unissubjetivo (pode ser cometido por um só agente);
plurissubsistente (em regra vários atos integram a conduta); de dano
(consuma-se com a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado) e condicionado
(a conduta só será punível se o fato trouxer prejuízo).
IV – Dos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural
Os artigos 62 a 65 da Lei nº 9.605/98 tratam dos
crimes que atentam contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural.
A norma incriminadora que interessa diretamente neste estudo está presente
no artigo 62 do apontado diploma legal, que possui a seguinte redação:
“Destruir, inutilizar ou deteriorar: I – bem especialmente protegido por
lei, ato administrativo ou decisão judicial; II – arquivo, registro, museu,
biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido por lei,
ato administrativo ou decisão judicial. Pena – reclusão de um a três anos,
e multa. Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena é de seis meses a
um ano de detenção, sem prejuízo da multa”.
O crime em apreço, que admite a suspensão
condicional do processo, e, em caso de condenação do agente na forma
dolosa, permite que lhe seja concedido o sursis (artigo 16 da Lei nº
9.605/98), desde que presentes os requisitos dos artigos 77 e seguintes do
16
Código Penal, tem como bem ou interesse protegido pela lei penal
(objetividade jurídica) o patrimônio histórico, artístico e arqueológico, com
especial atenção destinada aos museus, arquivos, registros, pinacotecas,
bibliotecas e outros bens especialmente protegidos por lei, ato
administrativo ou decisão judicial.
Respeitável corrente doutrinária sustenta que o
apontado dispositivo legal revogou implicitamente o artigo 165 do Código
Penal, por ser mais abragente13. Contudo, data maxima venia, ambos os
dispositivos parecem estar em vigência e encontram incidência em campos
distintos.
O artigo 165 do Código Penal cuida de uma
infração penal de menor potencial ofensivo, que não admite a forma
culposa, além do que, o objeto material precisa ser bem tombado.
Por sua vez, o artigo 62 da Lei nº 9.605/98 trata
de um crime que, na forma dolosa, não pode ser classificado como de
pequeno potencial ofensivo, embora admita a suspensão condicional do
processo, como já sustentado.
13 FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a Natureza. 7ª ed. São
Paulo, Revista dos Tribunais, 2001, p. 199.
GOMES, Celeste Leite dos Santos Pereira. Crimes contra o Meio Ambiente – Responsabilidade e Sanção
Penal. 2ª ed. São Paulo, Juarez de Oliveira, 1999, p. 151.
PRADO, Luiz Regis. Crimes contra o ambiente. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998, p. 190.
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. A evolução da proteção do patrimônio cultural – Crimes contra o
ordenamento urbano e o patrimônio cultural. In: Revista de Direito Ambiental nº 11, p. 35.
17
Não bastassem tais distinções, quando se discute a
ocorrência de eventual crime previsto na lei ambiental, não se pode
esquecer que tal diploma legal, em seu artigo 3º, permite a punição da
pessoa jurídica, posto que no entender do legislador, ela pode cometer
crimes, muito embora não pratique conduta humana; pressuposto básico
para o reconhecimento de qualquer infração penal. Sem adentrar na
discussão acerca da possibilidade ou não da pessoa jurídica cometer delitos
e considerando apenas o disposto na lei ambiental e na Constituição
Federal (artigos 173, § 5º, e 225, § 3º), conclui-se que o sujeito ativo do
delito em comento pode ser qualquer pessoa, inclusive o proprietário do
bem especialmente protegido, ou até mesmo uma empresa.
Sendo uma empresa apontada como autora de
uma infração, dois requisitos apresentam-se como imprescindíveis para
sua punição: 1º) que o ato lesivo ao meio ambiente tenha decorrido de uma
decisão de seu representante legal, contratual ou do órgão colegiado; 2º)
que o ato tenha sido praticado no interesse ou benefício de tal pessoa
jurídica.
A sanção destinada à pessoa jurídica, por seu
turno, também apresenta peculiaridades. A uma empresa podem ser
impostas as penas de multa; restritiva de direitos (suspensão total ou parcial
das atividades. Interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade,
proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter
subsídios, subvenções ou doações); prestação de serviços à comunidade
(custeio de programas e de projetos ambientais, execução de obras de
18
recuperação de áreas degradadas, manutenção de espaços públicos e
contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas) e perda de bens
e valores.
Sujeito passivo do crime analisado será a pessoa
jurídica de Direito Público (União, Estado ou Município) e, dependendo da
hipótese, o proprietário do bem merecedor de atenção.
As condutas incriminadas consistem em: 1º)
inutilizar (tornar inútil, imprestável), destruir (arruinar, demolir, assolar)
ou deteriorar (estragar, corromper, desfigurar) qualquer bem, desde que
especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial
(artigo 62, Inciso I, da Lei nº 9.60/98); 2º) inutilizar, destruir ou deteriorar
arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou
similar protegida por lei, ato administrativo ou decisão judicial (artigo 62,
Inciso II, da Lei nº 9.605/98).
São normas penais em branco, que necessitam ser
complementadas por lei, ato administrativo ou decisão judicial.
O inciso I do artigo 62 da lei ambiental possui
caráter genérico, referindo-se a qualquer valor material ou imaterial que
possa ser objeto de uma relação de direito. Pode-se utilizar como exemplo
de conduta incriminada a destruição uma casa tombada por seu valor
histórico ou arquitetônico.
19
Por outro lado, o inciso II do artigo 62 do
apontado diploma legal, tutela especificamente os arquivos (locais onde se
guardam documentos); registros (livros onde se anotam ocorrências
públicas ou particulares); museus (locais destinados ao abrigo de obras de
arte, coleções científicas, peças, objetos antigos e outros bens de interesse
cultural); bibliotecas (coleções públicas ou privadas de livros e documentos
destinados a consulta e estudos); pinacotecas (coleções de quadros ou
museus exclusivamente dedicados à pintura); instalações científicas
(laboratórios e locais destinados à pesquisa); sem prejuízo de outros
estabelecimentos similares protegidos por lei, ato administrativo ou decisão
judicial.
Trata o artigo 62, Incisos I e II, da Lei nº
9.605/98, de crimes comuns; materiais (admitem a tentativa); de forma
livre; comissivos e omissivos impróprios ou comissivos por omissão;
instantâneos; unissubjetivos; plurissubsistentes; e de dano. Por serem
delitos que deixam vestígio, mostra-se como imprescindível a prova
pericial (CPP, artigo 158), podendo, todavia, nos termos do artigo 19 da lei
ambiental, ser aproveitada a perícia realizada em inquérito civil ou na ação
civil pública proposta.
O § único do artigo 62 prevê a modalidade
culposa para o delito em análise. Sendo a pena máxima cominada igual a
um ano de detenção, admite-se a transação penal, desde que haja prévia
composição do dano ambiental, salvo comprovada impossibilidade.
20
V – Conclusão
É um equívoco associar o meio ambiente apenas à
natureza intocada e imaginar os aglomerados urbanos como a sua negação.
Meio ambiente é algo muito mais abrangente, podendo ser conceituado
como o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem
física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as
suas formas, incluíndo as áreas naturais intocadas ou degradas, mares e
terras e as áreas rurais e urbanas.
A ênfase do ordenamento jurídico brasileiro,
infelizmente não se dirigiu à proteção e preservação do patrimônio
histórico e cultural, mas, sobretudo, às áreas naturais. Tal ótica distorcida
do legislador permite compreender a razão pela qual os crimes que têm
como objetividade jurídica a preservação do partimônio cultural e histórico
são classificados, na quase totalidade das vezes, como sendo de menor
potencial ofensivo.
Aplica-se o princípio da proporcionalidade às
avessas. Quem destrói a memória de um povo é apontado como autor de
uma infração de pequeno potencial ofensivo e, quando muito, será
compelido à doação de algumas cestas básicas a uma entidade filantrópica
qualquer. Caberá a sociedade suportar e absorver com resignação o
prejuízo provocado pelo agente, que sequer criminoso poderá ser
considerado.
21
É tal subversão de valores que contribui para o
absoluto descrédito da Justiça Penal, trazendo a certeza de que o Direito
Penal, que não pode ser confundido com Direito premial, precisa ser
repensado.
Infrações penais que atentam contra a
comunidade, contra a saúde pública, o meio ambiente e o consumidor,
analisadas de forma ampla, não podem ser tachadas de infrações de
pequeno potencial ofensivo. A resposta penal destinada aos responsáveis
por tais condutas deve ser proporcional ao prejuízo buscado ou alcançado.
E mais, precisa ser célere, pois a Justiça que tarda não irá falhar, já falhou.
A reparação do dano, ou quando impossível, o
recolhimento de valor significativo em favor de um fundo destinado à
preservação do patrimônio histórico e cultural, deverá figurar como
elemento imprescindível à extinção da punibilidade.
Finalmente, é de se observar que carece o
ordenamento jurídico penal brasileiro não somente de penas mais enérgicas
para os crimes relacionados ao patrimônio histórico, artístico e cultural,
mas também de um tipo penal que proíba a exportação de bens culturais
móveis, sem autorização, como é o caso da venda de quadros classificados
como de interesse nacional. A legislação vigente resume-se à Lei nº 4.845,
de 19 de novembro de 1965, que não possui natureza penal.
22
Com a adoção de tais singelas medidas, ouso
concluir que, certamente, estaremos contribuindo para o desenvolvimento
sadio e responsável das futuras gerações.
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