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KARL MARX CADERNOS DE PARIS & MANUSCRITOS ECONÔMICO-FILOSÓFICOS DE 1844 Traduções de José Paulo Netto e Maria Antónia Pacheco Apresentação de José Paulo Netto Revisão técnica dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 de Sérgio Lessa I a edição EXPRESSÃO POPULAR São Paulo-2015

CADERNOS DE PARIS MANUSCRITOS ECONÔMICO …...Traduções de José Paulo Netto e Maria Antónia Pacheco Apresentação de José Paulo Netto Revisão técnica dos Manuscritos econômico-filosóficos

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K A R L M A R X

CADERNOS DE PARIS &

MANUSCRITOS ECONÔMICO-FILOSÓFICOS

DE 1844

Traduções de José Paulo Netto e Maria Antónia Pacheco

Apresentação de José Paulo Netto

Revisão técnica dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 de Sérgio Lessa

I a edição

EXPRESSÃO POPULAR

São Paulo-2015

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Copyright © 2015, by Editora Expressão Popular

Tradução dos Cadernos de Paris (Notas de leitura de 1844): José Paulo Netto Tradução dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844: Maria Antónia Pache Revisão técnica dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844: Sérgio Lessa Revisão: Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida Projeto gráfico, diagrainação e capa: ZAP Design. Imagens da capa: prefácio aos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e página do caderno I dos Manuscritos econômico-filosóficos Impressão e acabamento: Intergraf

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (C1P)

Marx, Kari M392c Cadernos de Paris; Manuscritos econômicos-filosóficos. /

Kari Marx; tradução [de] José Paulo Netto e Maria Antónia Pacheco.—1.ed.—São Paulo : Expressão Popular, 2015.

4S6 p.

indexado em GeoDados - http://wwvv.geodados.uem.br. ISBN 978-85-7743-255-4

1. Economia marxista. 2. Marxismo. I. Netto, José Paulo, trad. Si. Pacheco, Maria Antónia, trad. III. Título.

C D D 330.85 Catalogação na Publicação: Eliane M. S . Jovanovich C R B 9/1250

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desse livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização da editora.

I a edição: março de 2015

E D I T O R A EXPRESSÃO P O P U L A R Rua Abolição, 201 - Bela Vista C E P 01319-010 - São Paulo - SP Tel: (11) 3522-7516/4063-4189/3105-9500 editora.expressaopopular.corn.br [email protected] www.facebook.com/ed.expressaopopular

S U M Á R I O

N O T A E D H O R L A I 7

A P R E S E N T A Ç Ã O : M A R X E M PARIS 9 José Paulo Netto

Combatendo a "miséria alemã": Marx deixa a Alemanha 13 Marx em Paris: a descoberta de um novo mundo 18 Os estudos iniciados no primeiro semestre de 1844 ( í ) : os Cadernos de Paris 28 Os estudos iniciados no primeiro semestre de 1844 (II): os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 48 Os textos de 1844 e a emergência da teoria social revolucionária 96 Notas • 107

C A D E R N O S D E PARIS ( N O T A S D E L E I T U R A D E 1844) Nota do tradutor 181 1. A Economia Política, ciência do enriquecimento 185 2. Troca e divisão do trabalho 187 3. Valor e utilidade - 187 4. Renda da terra 189 5. Propriedade e acumulação 190 6. Preço natural e preço corrente 190 7. Propriedade e leis dos pobres 192 8. Superprodução e crise 193 9. Renda bruta e renda l íquida - 194 10. Leis econômicas 199 1.1. O dinheiro e Cristo 200 12. Economia Política e dinheiro 202 13. Crédi to e banco 203 14. Comunidade e indivíduo 208 1.5. Propriedade privada e homem total 209 16. Troca, valor e preço 211 17. O trabalho lucrativo 212 18. Divisão do trabalho e dinheiro 214 19. Produzir para ter 215 20. Uma produção que não é social 217 21. A pilhagem recíproca 218 22. A produção humana 221 23. Estado e renda fundiária. . . . 223 24. Homens e médias 223 25. Os preços e a concorrência 223

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[Trabalho alienado118 e propriedade privada] [XXII] Partimos dos pressupostos da economia nacio­

nal. Aceitamos a sua linguagem e as suas leis. Supusemos a propriedade privada, a separação de trabalho, capital e terra, igualmente de salário, lucro do capital e renda fundiária, bem como a divisão do trabalho, a concorrência, o conceito de valor de troca etc. A partir da própria economia nacional, com as suas próprias palavras, mostramos que o trabalhador decai em mercadoria e na mais miserável mercadoria, que a miséria do trabalhador está na relação inversa do poder e da magnitude da sua produção, que o resultado necessário da concorrência é a acumulação do capital em poucas mãos, portanto, o mais terrí­vel restabelecimento do monopólio, que, finalmente, a diferença de capitalista e arrendador fundiário [Grundrentner], tal como a de agricultor e trabalhador manufatureiro desaparece, e toda a sociedade tem de dividir-se nas duas classes dos proprietários e dos trabalhadores desprovidos de propriedade.

A economia nacional parte do fato da propriedade privada. Ela não no-lo esclarece.119 Capta o processo material da pro­priedade privada, pelo qual ela opera (durchmacht) na realidade, em fórmulas universais, abstratas, que valem então para ela

1 1 8 Traduzimos Entfremdmigç, seus derivados por al ienação, alienado etc., e Entãsserwig e seus derivados por exteriorização, exteriorizado etc. As razões para tal escolha são discutidas no apêndice desta edição. ( N . do R.)

m Cf. K . Marx, EJ-BS; Mega\ IV/2, p. 316 e 319. ( N . Ed.)

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como leis. Ela não concebe [begreift]UQ essas leis, i . é, depois não mostra como elas provêm da essência da propriedade privada. J. x economia nacional não nos dá nenhum esclarecimento sobre o fundamento da divisão entre trabalho e capital, entre capi­tal e terra. Quando, p. ex., ela determina a relação do salário com lucro do capital, vale para ela como fundamento último o interesse do capitalista; quer dizer, ela supõe o que deve ex­plicar {entwickeln). De igual modo, por toda a parte intervém a concorrência. Ela é explicada por circunstâncias exteriores. Em (̂ e medida essas circunstâncias exteriores, aparentemente acidentais, são apenas a expressão de um desenvolvimento neces­sário - sobre isso a economia nacional nada nos ensina. Vimos como a própria troca lhe aparece como um fato acidental. As únicas rodas que o economista nacional põe em movimento são a ganância e a guerra entre os gananciosos, a concorrência.

Precisamente porque a economia nacional não concebe ibegreifi) a conexão do movimento, pôde-se, p. ex., tornar a contrapor a doutrina da concorrência à doutrina do monopólio, a doutrina da liberdade industrial à doutrina da corporação, a doutrina da divisão da posse fundiária à doutrina da grande propriedade fundiária, pois concorrência, liberdade industrial, divisão da posse fundiária eram apenas desenvolvidas e conce­bidas {begrifferí) como conseqüências acidentais, propositadas, violentas, e não como conseqüências necessárias, inevitáveis, naturais do monopólio, da corporação e da propriedade feudal.

Portanto, temos agora que conceber a conexão essencial com o sistema do dinheiro {Geldsystem) de toda a alienação (Entfremdung) que é a propriedade privada, a ganância, a separação entre trabalho, capital e propriedade da terra, entre

1 2 0 Lembremos que a categoria hegeliana de "conceito" (Begriff) supõe uma ultrapassa-gem da imediatez em direção a um saber da sua essência, isto é, a uma compreensão concreta do seu desenvolvimento. (N . Ed.)

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troca e concorrência, entre valor e desvalorização do homem, entre monopólio e concorrência etc.

Não nos transportemos - como o economista nacional quando quer explicar - para uma situação originária fictícia. Uma tal situação originária nada explica.121 Empurra meramen­te a questão para uma distância cinzenta, nublada. Ele supõe na forma do fato, do acontecimento, aquilo que deve deduzir; a saber, a relação necessária entre duas coisas, p. ex., entre divisão do trabalho e troca. É assim que o teólogo explica a origem do mal pelo pecado original, i . é, ele supõe como um fato, na forma de história, o que deve explicar.

Nós partimos de um fato nacional-econômico, presente. O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais

riqueza produz, quanto mais a sua produção cresce em po­der e volume. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata quanto mais mercadoria cria. Com a valorização do mundo das coisas, cresce a desvalorização do mundo dos homens em proporção direta. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se a si próprio e o trabalhador como uma mercadoria, e, a saber, na mesma proporção em que produz mercadorias em geral.

Esse fato exprime apenas que: o objeto que o trabalho produz, o seu produto, enfrenta-o como um ser alienado [ein fremdes Wesen], como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, se coisificou122, ele é a objetivação (Vergegenstãndlichung) do trabalho. A realização do trabalho é a sua objetivação. Essa realização (Verwirklichung) do trabalho aparece na situação

1 2 1 Ver as anotações de Marx a um passo de A . Smith em EAS; Meça2, IV/2, p. 336. (N . Ed.)

1 2 2 Em alemão, sachlicbgemacht hat, literalmente, "se fez coisa" ou "se fez objetivo" (no sentido de objetividade oposta à subjetividade). (N . do R.)

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nacional-econômica como desrealização (Entwirklichung) do trabalhador, a objetivação como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como alienação [Entfremdung], como exteriorização [Entausserung].m

A realização do trabalho aparece a tal ponto como desrea­lização que o trabalhador é desrealizado até à morte pela fome. A objetivação aparece a tal ponto como perda do objeto que o trabalhador é privado dos objetos mais necessários não só da vida como também dos objetos de trabalho. Sim, o próprio trabalho torna-se um objeto, do qual ele só pode se apoderar com o máximo esforço e com os intervalos os mais erráticos (Unregelmãjsigsten Unterbrechungen). A apropriação do objeto aparece a tal ponto como alienação que, quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais cai sob a dominação do seu produto, do capital.

Todas essas conseqüências repousam na determinação de que o trabalhador se relaciona com o produto do seu trabalho como com um objeto alienado. O que é claro deste pressuposto: quanto mais o trabalhador se esforça {ausarbeitet), tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alienado, que ele cria perante si próprio; quanto mais pobre se tornam ele próprio [e] o seu mundo interior, tanto menos ele possui. Na religião é igualmente assim. Quanto mais o homem põe em deus com

1 2 3 A versão lusitana dos Manuscritos, que é a base do texto desta edição brasileira, regis­tra, neste passo, desapossamento; em nota, os editores portugueses assinalam: "Neste contexto de oposição a apropriação (Aneigmmg), Entausserungadquire o significado de desapossamento". Optamos por exteriorização, por parecer-nos mais próximo ao texto marxiano - mas está é uma passagem de difícil tradução e interpretação e nos pareceu por bem assinalar a opção da edição portuguesa. Nas outras passagens do texto, optamos por traduzir Entausserung por exteriorização e Entfremdung por alienação. Se é verdade que toda Entfremdung é uma Entausserung, o oposto não é verdade. Esta associação - ou aproximação à quase identidade - , entre alienação e exteriorização, pode ter sentido para Hegel da Fenomonologia e da Ciência da Lógica, mas não faz qualquer sentido nos Manuscritos. C f , supra, a nota 118 (N. do R.)

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tanto menos fica em si próprio. 1 2 4 O trabalhador póe a sua vida no objeto; porém, então, ela já não lhe pertence, mas ao objeto. Portanto, quanto maior é essa atividade, tanto mais privado de objeto fica o trabalhador. O que o produto do seu trabalho é, ele não é. Quanto maior, portanto, é esse produto, tanto menos ele próprio é. A exteriorização do trabalhador no seu produto tem o significado não só de que o seu trabalho se torna um objeto, uma existência exterior, mas também de que ele existe fora dele, independente e alienado a ele, e se torna um poder autônomo frente a ele, de que a vida, que ele emprestou ao objeto, o enfrenta de modo hostil e alienado.

[XXIII] Consideremos agora mais pormenorizadamente a objetivação, a produção do trabalhador e, nela, a alienação, a perda do objeto, do seu produto.

O trabalhador não pode criar nada sem a natureza, sem o mundo exterior sensível. Ela é o material125 no qual o seu traba­lho se realiza, no qual este é ativo, a partir do qual e por meio do qual produz.

Porém, tal como a natureza fornece o meio de vida do tra­balho, no sentido de que o trabalho não pode viver sem objetos nos quais se exerce, assim a natureza fornece por outro lado também o meio de vida no sentido estrito; a saber, o meio da subsistência física do próprio trabalhador.

Portanto, quanto mais o trabalhador se apropria pelo seu trabalho do mundo exterior, da natureza sensível, tanto mais se priva de meios de vida, pelo duplo aspecto de que, primeiro, cada vez mais o mundo exterior sensível deixa de ser um objeto pertencente ao seu trabalho, um meio de vida do seu trabalho;

1 2 4 Cf. L . Feuerbach, Das Wesen..., Introdução, II, e K . Marx, "Zur Kritik... Einleitung",

Mega2,1/2, p. 170471. (N . Ed.) 12<s Stoff, no original. Outra tradução possível seria "substância". (N . do R.)

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segundo, cada vez mais ele deixa de ser meio de vida no sentido imediato, meio para a subsistência física do trabalhador.

Segundo esse duplo aspecto, o trabalhador torna-se, por­tanto, um servo do seu objeto, primeiro, por receber um objeto do trabalho, i . é, por receber trabalho, e, segundo, por receber meios de subsistência. Portanto, para poder existir, primeiro, como trabalhador, e, segundo, como sujeito físico. O extremo dessa servidão é que ele só já como trabalhador se pode manter como sujeito físico e só já como sujeito físico é trabalhador.

(A alienação do trabalhador no seu objeto exprime-se, se­gundo as leis nacional-econômicas, em modo tal que, quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem para consumir; em que, quanto mais valores ele cria, tanto mais sem valor (wertloser) e indigno se torna; em que, quanto mais formado o seu produto, mais deformado o trabalhador126; em que, quanto mais civilizado o seu objeto, tanto mais bárbaro o trabalhador; em que, quanto mais potente (mãchtiger) o trabalho, tanto mais impotente {ohnmãchtiger) o trabalhador; em que, quanto mais espiritualmente rico o trabalho, tanto mais sem espírito (geistloser) e servo da natureza se torna o trabalhador.)

A economia nacional vela (verbirgt) a alienação na essência do trabalho por não considerar a relação imediata entre o trabalha­dor, (o trabalho) e a produção. Com certeza. O trabalho produz obras maravilhosas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Produz palácios, mas cavernas para o trabalhador. Produz beleza, mas mutilação para o trabalhador. Substitui o

1 2 6 Marx emprega aqui um jogo de palavras difícil de ser traduzido em português : geformter é o aumentativo do particípio passado de formen, traduzível por formar ou moldar; mififórmigeré composto por fõrmig, que significa "com forma de", com o prefixo mifí, literalmente falso, muito próximo do fake em inglês. Quanto mais o trabalhador forma seu objeto, mais ele se constitui com forma de falso: "mais deformado", nesta passagem, possui este sentido. (N. do R.)

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trabalho por máquinas, mas lança uma parte dos trabalhadores a um trabalho bárbaro e faz da outra parte máquinas. Produz espírito, mas produz idiotice, cretinismo para o trabalhador.

A relação imediata do trabalho com os seus produtos é a rela­ção do trabalhador com os objetos da sua produção. A relação do abastado com os objetos da produção e com ela própria é apenas uma conseqüência dessa primeira relação. E confirma-a. Mais tarde consideraremos esse outro aspecto. Portanto, quando per­guntamos: qual é a relação essencial do trabalho, perguntamos pela relação do trabalhador com a produção.

Até aqui apenas consideramos a alienação, a exteriorização (Entausserung) do trabalhador sob um aspecto; a saber, o da sua relação com os produtos do seu trabalho. Mas a alienação mostra--se não só no resultado, mas também no ato da produção, no interior da própria atividade produtiva. Como poderia o traba­lhador defrontar-se com o produto da sua atividade como algo de alienado se no próprio ato da produção ele próprio não se alienasse? O produto é apenas o resumo da atividade, da pro­dução. Se, portanto, o produto do trabalho é a exteriorização, então a própria produção tem de ser a exteriorização ativa, a exteriorização da atividade, a atividade da exteriorização. Na alienação do objeto do trabalho resume-se apenas a alienação, a exteriorização na atividade do próprio trabalho.

Ora em que consiste a exteriorização do trabalho? Primeiro, em que o trabalho é exterior ao trabalhador, i . é,

não pertence à sua essência, que ele não se afirma, antes se nega, no seu trabalho, não se sente bem, mas desgraçado; não desen­volve qualquer livre energia física ou espiritual, antes mortifica o seu físico (Physis) e arruina o seu espírito. Por isso, o trabalhador se sente, antes, em-si fora do trabalho e fora de si no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é, portanto, voluntário, mas

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coagido (gezwungeri), trabalho forçado (Zwangsarbeit). Ele não é, portanto, a satisfação de uma necessidade, mas é apenas um meio para satisfazer necessidades externas a ele. O seu caráter alienado (Fremdheit) evidencia-se muito nitidamente em que, logo que não exista qualquer coação, física ou outra, se foge do trabalho como da peste. O trabalho exterior, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de autossacrifício, de mortificação. Finalmente, a exterioridade do trabalho para o trabalhador aparece no fato de que ele não é [trabalho] seu, mas de um outro, em que ele não lhe pertence, em que nele não pertence a si próprio, mas a um outro. Assim como na religião a autoatividade da fantasia humana, do cérebro humano e do coração humano opera independentemente do indivíduo, i . é, como uma atividade alienada, divina ou demoníaca, também a atividade do trabalhador não é a sua autoatividade. Ela pertence a um outro, ela é a perda dele próprio.

Chega-se assim ao resultado de que o homem (o trabalhador) já só se sente livremente ativo nas suas funções animais - comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adorno etc. - , e já só como animal nas suas funções humanas. O animal torna-se o humano e o humano, o animal.

Comer, beber e procriar etc. são decerto também funções genuinamente humanas. Porém, na abstração que as separa do âmbito restante da atividade humana e delas faz finalidades últimas e exclusivas, elas são animais.

Até aqui consideramos o ato da alienação da atividade hu­mana prática, o trabalho, segundo dois aspectos. 1) A relação do trabalhador com o produto do trabalho como objeto alienado e com poder sobre ele. Essa relação é simultaneamente a relação com o mundo exterior sensível, com os objetos naturais como um mundo alienado que o confronta hostilmente. 2) A relação de trabalho com o ato da produção, no interior do trabalho.

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Essa relação é a relação do trabalhador com a sua atividade própria como alienada, não lhe pertencendo, a atividade como sofrer, a força como impotência, a procriação como castração. A energia física e espiritual própria do trabalhador, a sua vida pessoal - pois o que é a vida senão atividade? - como uma atividade voltada contra ele próprio, independente dele, não lhe pertencendo. A auto alienação tal como acima a alienação da coisa.

[XXIV] Temos agora de tirar uma terceira determinação do trabalho alienado a partir das duas até aqui [consideradas].

O homem é um ser genérico (Gattungswesen)127 não apenas na medida em que prática e teoricamente torna objeto seu o gênero, tanto o seu próprio como o das coisas restantes, mas também — e isto é apenas uma outra expressão para a mesma coisa — na medida em que ele se comporta para consigo próprio como gênero vivo, presente, na medida em que ele se comporta para consigo próprio como um ser universal, por isso livre.

A vida genérica, tanto entre os homens quanto entre os animais, fisicamente consiste primeiro em que o homem (tal como o animal) vive da natureza inorgânica, e, quanto mais universal do que o animal o homem é, tanto mais universal é o domínio da natureza inorgânica de que ele vive. Assim como plantas, animais, pedras, ar, luz etc. formam teoricamente

1 2 7 Para Marx, o universal é tão real e pleno de determinações quanto o singular. O fato de se comer uma pera e não o universal frutas não significa que a universalidade das frutas seja inexistente. O universal é parte da história tal como o singular, ambos são componentes moventes e movidos da história. O homem, nesta frase de Marx, é genérico na medida em que ele só existe como parte do gênero humano, da hu­manidade e, por sua vez, esta apenas existe como síntese dos singulares que são os indivíduos. O que o homem faz é parte movente e movida da história, o produto de cada ato de trabalho é um produto singular que faz parte da história universal do gênero humano. ( N . do R.)

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uma parte da consciência humana, em parte como objetos da ciência da natureza, em parte como objetos da arte - a sua natureza inorgânica espiritual, meios de vida espirituais, que ele tem primeiro que preparar para a fruição e para a digestão - , também praticamente formam uma parte da vida humana e da atividade humana. Fisicamente, o homem só vive desses produtos da natureza, possam eles aparecer agora na forma de alimento, aquecimento, vestuário, habitação etc. Precisamente a universalidade do homem aparece praticamente na universa­lidade que faz de toda a natureza o seu corpo inorgânico, tanto na medida em que ela é 1) um meio de vida imediato, como na medida em que ela é 2) o objeto/matéria e o instrumento da sua atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem, quer dizer, a natureza na medida em que não é ela própria corpo humano. O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de permanecer em constante processo para não morrer. Que a vida física e espiritual do homem esteja em conexão com a natureza, não tem outro sentido senão que a natureza está em conexão com ela própria, pois o homem é uma parte da natureza.

Na medida em que o trabalho alienado aliena ao homem 1) a natureza, 2) ele próprio, a sua própria função ativa, a sua atividade vital, assim ele aliena do homem o gênero-, torna-lhe a vida genérica meio de vida individual. Primeiro, aliena a vida genérica e a vida individual e, segundo, torna a última na sua abstração finalidade da primeira, igualmente na sua forma abstrata e alienada.

Pois, em primeiro lugar, o trabalho, a atividade vital, a própria vida produtiva, aparecem ao homem apenas como um meio para a satisfação de uma necessidade, da necessidade da manutenção da existência física. Mas a vida produtiva é a vida genérica. E a vida que gera vida. No modo de atividade vital

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reside todo o caráter de uma species,12* o seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem. A própria vida aparece apenas como meio de vida.

O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se diferencia dela. E ela. O homem faz a sua própria ativi­dade vital objeto da sua vontade e da sua consciência. Tem ativi­dade vital consciente. Não é uma determinidade (Bestimmtheit) com a qual ele se confunda imediatamente. A atividade vital consciente diferencia imediatamente o homem da atividade vital animal. Precisamente apenas por isto ele é um ser genérico. Ou ele só é um ser consciente, i . é, a sua própria vida é para ele objeto, precisamente porque ele é um ser genérico. Só por isso a sua atividade é atividade livre. O trabalho alienado inverte essa relação até que o homem, precisamente porque é um ser consciente, faz da sua atividade vital, da sua essência, apenas um meio para a sua existência.

O gerar129 prático de um mundo objetivo, a elaboração da natureza inorgânica, é a prova do homem como um ser gené­rico consciente, i . é, um ser que se relaciona para com o gênero como sua própria essência ou para consigo como ser genérico. Decerto, o animal também produz. Constrói para-si um ninho, habitações, como as abelhas, castores, formigas etc. Contudo, produz apenas o que necessita imediatamente para-si ou para a sua cria; produz unilateralmente, enquanto o homem produz universalmente; produz apenas sob a dominação da necessidade física imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da necessidade física e só produz verdadeiramente na liberdade da mesma; produz-se apenas a si próprio, enquanto o homem reproduz a natureza toda; o seu produto pertence imediatamente

U H Em latim no texto: literalmente, espécie. (N . Ed.) 129 Erzeugen. Uma tradução também possível seria "o produzir". (N . do R.)

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ao seu corpo físico, enquanto o homem confronta livremente o seu produto. O animal dá forma apenas segundo a medida e a necessidade da species a que pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de cada species e sabe aplicar em toda a parte a medida inerente ao objeto; por isso, o homem dá forma também segundo as leis da beleza.

Precisamente por isso, só na elaboração do mundo objetivo o homem se prova realmente como ser genérico. Esta produção é a sua vida genérica operativa.130 Por ela, a natureza aparece como obra sua e sua realidade. O objeto do trabalho é, portanto, a objetivação da vida genérica do homem, na medida em que ele se duplica não só intelectualmente, como na consciência, mas também operativamente (werktãtig), realmente, e contempla--se131 por isso num mundo criado por ele. Por isso, na medida em que arranca ao homem o objeto da sua produção, o trabalho alienado arranca-lhe a sua vida genérica, a sua real objetividade genérica, e transforma sua vantagem sobre o animal na desvan­tagem de lhe ser retirado o seu corpo inorgânico, a natureza.

Do mesmo modo, na medida em que reduz a autoatividade, a atividade livre, a um meio, o trabalho alienado faz da vida genérica do homem um meio para a sua existência física.

A consciência que o homem tem do seu gênero transforma--se, portanto, pela alienação, de modo que a vida genérica se torna um meio para ele.

Assim, o trabalho alienado faz: 3) do ser genérico do homem — tanto a natureza quanto a

sua capacidade espiritual genérica (Gattungsvermõgen) - uma

Seria razoável também a tradução de werktâtiges Gattungsleben por "vida genérica

criadora". ( N . do R.) Passagem de difícil tradução. E m alemão, o termo é anschaut, de ansehen. A dificul­dade reside em que este verbo inclui uma ação ativa de contemplação, no sentido que se aproxima de perscrutar •- ainda que esta opção seja um exagero. (N . do R.)

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essência 1 3 2 alienada a ele, num meio da sua existência indivi­dual. Ele aliena do homem o seu corpo próprio, bem como a natureza fora dele, bem como a sua essência espiritual, a sua essência humana)00

4) Uma conseqüência imediata disto, de que o homem está alienado do produto do seu trabalho, da sua atividade vital, do seu ser genérico, é a alienação do homem do homem. Quando o homem se confronta a si próprio, enfrenta-o o outro homem. O que vale para a relação do homem com o seu trabalho, com o produto do seu trabalho e consigo próprio, vale para a relação do homem com o outro homem, tal como para o trabalho e o objeto de trabalho do outro homem.

Em geral, a proposição de que ao homem está alienado o seu ser genérico significa que um homem está alienado do outro, tal como cada um está alienado da sua essência (Wesen) humana.

A alienação do homem, em geral toda a relação em que o homem está para consigo mesmo, primeiro se realiza, se exprime, na relação em que o homem está para com o outro homem.

Portanto, na relação do trabalho alienado, cada homem considera o outro segundo a medida e a relação na qual ele próprio se encontra como trabalhador.

[XXV] Partimos de um factum nacional-econômico, a alienação do trabalhador e da sua produção. Expressamos o conceito desse factum, o trabalho alienado, exteriorizado. Ana-

1 3 2 Seguimos, até o momento, a opção, da edição portuguesa, de traduzir Wesen por ser. Contudo, neste parágrafo, parece-nos que a t radução mais fiel seria traduzir as três vezes em que comparece Wesen por essência. Mas, ao leitor, fica o alerta da possibilidade de uma tradução ligeiramente diferente, alternando "ser" por "essência". (N . do R.)

1 3 3 N o manuscrito figura ainda, riscado: "Nós partimos do trabalho alienado de si próprio e analisamos apenas esse conceito". ( N . Ed.)

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Usamos esse conceito, portanto analisamos um mero factum nacional-econômico.134

Vejamos agora, além disso, como o conceito de trabalho alienado, exteriorizado, tem de expressar-se e apresentar-se na realidade.

Se o produto do trabalho me é alienado, me confronta como poder alienado, a quem pertence ele então?

Se a minha própria atividade não me pertence, é uma ati­vidade alienada, forçada, a quem pertence ela então?

A um outro ser que não eu. Quem é esse ser? Os deuses? Certamente, nos primeiros tempos, a principal

produção, como p. ex. a construção de templos etc, no Egito, índia, México, aparece tanto ao serviço dos deuses quanto o produto pertence aos deuses. Todavia, sozinhos os deuses nunca foram os senhores do trabalho. Tampouco a natureza. E que contradição não seria também que, quanto mais o homem submete a natureza pelo seu trabalho, quanto mais os milagres dos deuses são tornados supérfluos pelos milagres da indústria, tanto mais o homem devesse renunciar à alegria na produção e à fruição do produto por amor a esses poderes.

O ser alienado, z quem o trabalho e o produto do trabalho pertencem, a serviço do qual está o trabalho e para fruição do qual o produto do trabalho é, só pode ser o próprio homem.

Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, é um poder alienado frente a ele, então isso só é possível por­que ele pertence a outro homem fora o trabalhador. Se a sua atividade é para ele tormento, então deve ser fruição para um outro e alegria de viver de um outro. Não os deuses, não a

1 3 4 N o manuscrito figura ainda, riscado: "Nós não pressupusemos o conceito da pro­priedade privada". (N . Ed.)

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natureza, só o próprio homem pode ser esse poder alienado sobre o homem.

Reflita-se ainda sobre a proposição anteriormente apresen­tada de que a relação do homem consigo próprio só é para ele objetiva, real, pela sua relação com o outro homem. Portanto, se ele se comporta para com o produto do seu trabalho, para com o seu trabalho objetivado, como um objeto alienado, hostil, poderoso, independente dele, então comporta-se para com ele de tal modo que um outro homem alienado, hostil a ele, poderoso e independente dele é o senhor desse objeto. Se ele se comporta para com a sua atividade própria como uma atividade não livre, então comporta-se para com ela como atividade ao serviço, sob a dominação, a coação e o jugo de um outro homem.

Toda a autoalienação do homem, de si e da natureza, aparece na relação que ele oferece a ele c à natureza para com outros homens diferenciados dele. Por isso, a autoalienação religiosa aparece necessariamente na relação do leigo com o padre, ou também, porque aqui se trata do mundo intelectual, com um mediador etc. No mundo real prático, a autoalienação só pode aparecer através da relação real prática com outros homens. O meio pelo qual a alienação procede é ele próprio uni meio prático. Pelo trabalho alienado o homem gera, portanto, não só a sua relação com o objeto e o ato da produção como homens alienados e hostis a ele; gera também a relação na qual outros homens estão com a sua produção e o seu produto e a relação em que ele está com esses outros homens. Tal como faz da sua própria produção a sua desrealização, o seu castigo, tal como faz do seu próprio produto a perda, um produto que não lhe pertence, assim ele gera a dominação daquele que não produz sobre a produção e sobre o produto. Tal como aliena de si a sua própria atividade, assim também atribui ao alienado a atividade que não lhe é própria.

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Consideramos até aqui a relação apenas pelo lado do trabalhador; mais tarde considerá-la-emos pelo lado do não trabalhador.

Portanto, através do trabalho alienado, exteriorizado, o tra­balhador gera a relação de um homem alienado ao trabalho e postado (stehenderí) fora deste trabalho. A relação do trabalhador com o trabalho gera a relação daquele para com o capitalista -ou como se queira chamar ao senhor de trabalho.

A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado, a conseqüência necessária do trabalho exteriorizado, da relação exterior do trabalhador com a natureza e consigo próprio.

A propriedade privada resulta, portanto, por análise, a partir do conceito de trabalho exteriorizado, i . é, do homem exteriorizado, do trabalho alienado, da vida alienada, do ho­mem alienado.

E certo que obtivemos o conceito de trabalho exteriori­zado (da vida exteriorizado) a partir da economia nacional como resultado do movimento da propriedade privada. Mas a análise desse conceito mostra que, se a propriedade privada aparece como fundamento, como causa do trabalho exterio­rizado, ela é antes uma conseqüência do mesmo, assim como também originariarnente os deuses não são a causa, mas o efeito do extravio do entendimento humano (mensehlichen Verstandesverirrung). Mais tarde essa relação converte-se em ação recíproca.

Unicamente no ponto culminante do desenvolvimento da propriedade privada se evidencia de novo o seu segredo, a saber: por um lado, que ela é o produto do trabalho exteriorizado e, por outro, que ela é o meio através do qual o trabalho se exterioriza, a realização dessa exteriorização.

Esse desenvolvimento lança luz sobre diversos conflitos até aqui não resolvidos.

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1) A economia nacional parte do trabalho como a alma pro­priamente dita da produção e, todavia, dá ao trabalho nada e à propriedade privada tudo. Proudhon, a partir dessa contradição, concluiu a favor do trabalho contra a propriedade privada.135

Mas nós vemos que essa aparente contradição é a contradição do trabalho alienado consigo próprio, e que a economia nacional apenas exprimiu as leis do trabalho alienado.

Vemos por isso também que salário e propriedade privada são idênticos: porque o salário, donde o produto, objeto do trabalho, paga o próprio trabalho, é apenas uma conseqüência necessária da alienação do trabalho, bem como porque no salário o trabalho também não aparece como autofinalidade, mas como servidor do salário. Adiante desenvolveremos isto e agora apenas tiramos algumas conseqüências. |[XX]VI|

Uma elevação violenta do salário (abstraindo de todas as ou­tras dificuldades, abstraindo de que ela, como uma anomalia, só violentamente se haveria de manter) nada seria, portanto, senão um melhor assalariamento do escravo, e não teria conquistado para o trabalhador nem para o trabalho a sua determinação e dignidade humanas.

A própria igualdade dos salários, como Proudhon exige,136

apenas transforma a relação do trabalhador de hoje com o seu trabalho na relação de todos os homens com o trabalho. A sociedade é então apreendida como um capitalista abstrato.

Salário é uma conseqüência imediata do trabalho alienado e o trabalho alienado é a causa imediata da propriedade privada. Por isso, com um, o outro lado também tem de cair.

2) Da relação do trabalho alienado com a propriedade privada, segue-se ainda que a emancipação da sociedade da pro-

Cf. P.-J. Proudhon, Quest-ce que lapropriêté?.., III, § § 4 a 8. (N . Ed.) Cf. nota 33, supra. ( N . Ed.)

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priedade privada etc, da servidão, se exprime na forma política da emancipação dos trabalhadores não como se se tratasse apenas da emancipação deles, mas antes porque na sua emancipação está contido todo o humano [allgemein101 menschliche) - este, todavia, está aí contido porque toda a servidão humana está envolvida na relação do trabalhador com a produção e todas as relações de servidão são apenas modificações e conseqüências dessa relação.

Tal como encontramos por análise o conceito de propriedade privada a partir do conceito do trabalho alienado, exteriorizado, assim todas as categorias nacional-econômicas podem ser de­senvolvidas com a ajuda desses dois fatores, e reencontraremos em cada categoria, p. ex., a mesquinharia (Schacher), a concor­rência, o capital, o dinheiro, apenas uma expressão determinada e desenvolvida dessas primeiras bases.

Contudo, antes de considerar essa configuração, procuremos ainda resolver dois problemas.

1) Determinar a essência universal da propriedade privada tal como decorreu enquanto resultado do trabalho alienado na sua relação com a propriedade verdadeiramente humana e social;

2) Aceitamos a alienação do trabalho, a sua exteriorização, como um factum e analisamos esse factum. Como, perguntamos agora, pode o homem exteriorizar tanto (zu), alienar tanto seu trabalho? Como está essa alienação fundada na essência do desenvolvimento humano? já ganhamos muito para a solução do problema na medida em que transformamos a pergunta

1 3 7 Com muita freqüência, allgemein é traduzido por universal. O que é correto. Mas há uma sutil diferença entre allgemein e universelL o primeiro literalmente significa "todos da aldeia" e, o segundo, vindo do latim universalis: significa todo o existente, o universal. Aqui , nesta passagem, Marx emprega allgemein menschliche no sentido de que na emancipação dos trabalhadores está contida a emancipação de todos os membros da humanidade. (N . do R.)

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pela origem da propriedade privada na pergunta pela relação do trabalho exteriorizado com o curso de desenvolvimento da humanidade. Pois quando se fala de propriedade privada crê-se ter de lidar com uma coisa fora do homem. Quando se fala do trabalho, tem imediatamente de lidar-se com o próprio homem. Essa nova posição da pergunta é inclusive já a sua solução.

ad 1. Essência universal da propriedade privada e sua relação com a propriedade verdadeiramente humana.

O trabalho exteriorizado resolveu-se para nós em duas partes componentes, que se condicionam reciprocamente ou que são apenas expressões diversas de uma e a mesma relação, a apropriação aparece como alienação, como exteriorização, e a exteriorização como apropriação, a alienação como a verdadeira aquisição do direito de cidade [Einhürgerungm].

Consideramos um lado, o trabalho exteriorizado no que se refere ao próprio trabalhador, i . é, a relação do trabalho exteriori­zado consigo próprio. Como produto, como resultado necessário dessa relação, encontramos a relação de propriedade do não trabalhador (Nichtarbeiters) com o trabalhador e o trabalho. A propriedade privada, enquanto a expressão material, resumida, do trabalho exteriorizado, abrange ambas as relações: a relação do trabalhador com o trabalho e com o produto do seu trabalho e com o não trabalhador, e a relação do não trabalhador com o trabalhador e o produto do seu trabalho.

Ora, vimos que, com respeito ao trabalhador, o qual se apropria da natureza pelo trabalho, a apropriação aparece como alienação, a autoatividade como atividade para um outro e como atividade de um outro, a vitalidade como sacrifício da vida, a produção do objeto como perda do objeto para um poder aliena-

1 3 8 Literalmente, aquisição do direito à nacionalidade, nacionalização. Aqui é empregada por Marx no sentido de que a a l i enação torna o ind iv íduo membro integrante, partícipe, da totalidade social mediada pela propriedade privada. ( N . do R.)

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do, para um homem alienado; deste modo, consideremos agora a relação deste com o trabalho e com o homem trabalhador alienado, para com o trabalho e o seu objeto.

Em primeiro lugar, é de observar que tudo o que aparece no trabalhador como atividade de exteriorização, de alienação, aparece no não trabalhador como estado de exteriorização, de alienação.

Segundo, que o comportamento real, prático, do trabalhador na produção e para com o produto (disposição de ânimo 1 3 9) aparece no não trabalhador que o enfrenta como comportamento teórico.

[XXVII] Terceiro. O não trabalhador faz contra o traba­lhador tudo o que o trabalhador faz contra si próprio, mas não faz contra si próprio o que faz contra o trabalhador.

Consideremos mais pormenorizadamente essas três relações.

1 3 9 E m alemão Gemütszustand. Preferimos disposição de ânimo para diferenciar Gemüt de Geist, este ú l t imo literalmente "espírito". ( N . do R.)

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