22
A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa Cadernos do IDN - nº 4 1 Cadernos do IDN Nº 4 A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa António Horta Fernandes [email protected] Professor Auxiliar do Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa IDN 2007

Cadernos do IDN · sobre a política tende a desarmar a ideia de política internacional como mero jogo 1 Cfr. Carl Schmitt, La Notion du Politique, Paris, Calmann-Lévy, 1972. Para

  • Upload
    dolien

  • View
    220

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa

Cadernos do IDN - nº 4 1

Cadernos do IDN

Nº 4

A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança

Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa

António Horta Fernandes

[email protected]

Professor Auxiliar do Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da

Universidade Nova de Lisboa

IDN 2007

António Horta Fernandes

2 Cadernos do IDN - nº 4

Os Cadernos do IDN resultam do trabalho de investigação residente e não residente promovido pelo Instituto da Defesa Nacional. Os temas abordados contribuem para o debate sobre questões nacionais e internacionais. As perspectivas são da responsabilidade dos autores não reflectindo uma posição institucional do Instituto de Defesa Nacional sobre as mesmas.

Director Aníbal J. R. Ferreira da Silva Coordenação Editorial Centro Editorial Concepção Gráfica da Capa Divisão do Centro de Documentação / Gabinete de Desenho Instituto da Defesa Nacional Calçada das Necessidades, 5, 1399-017 Lisboa

Telefone +351 213 924 600 Fax +351 213 924 658 Internet http://www.idn.gov.pt Email [email protected]

Depósito Legal nº 241419/06 ISSN 1646-4397 © Instituto da Defesa Nacional, 2006 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, fotocopiada, gravada, difundida ou armazenada electronicamente sem autorização prévia do Instituto da Defesa Nacional.

A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa

Cadernos do IDN - nº 4 3

ÍNDICE

1. Introdução ................................................................................................. 5

2. A Estratégia e os Estudos para a Paz ............................................................. 6

3. A Estratégia e os Estudos de Segurança....................................................... 13

4. A Estratégia como Ética do Conflito ............................................................. 18

5. A Estratégia como Disciplina de Fins Face à Guerra e à Política ....................... 19

António Horta Fernandes

4 Cadernos do IDN - nº 4

A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa

Cadernos do IDN - nº 4 5

1. Introdução

A estratégia tem hoje um estatuto paradoxal. Os actores da cena

internacional continuam a praticá-la, mas em termos académicos parece ser uma

disciplina mal-amada ou mesmo marginalizada. Se nos cingirmos às ofertas de

Mestrado em Segurança e Defesa da Universidade Complutense, ou ainda às pós-

graduações em Relações Internacionais ministradas pelas Science Po, podemos

verificar que a própria palavra estratégia mal aparece. E isto é tanto mais gravoso

no caso francês, quanto a teoria da estratégia adquiriu neste país um refinamento

ímpar. Quiçá, julgada uma relíquia da Guerra Fria, a estratégia tem sido relegada

para os institutos superiores de ensino militar, uma solução demasiado unilateral,

porquanto a estratégia há muito que deixou de ser apenas estratégia militar. Por

outro lado, mesmo nestes institutos a estratégia sofre a concorrência das doutrinas

de operações de apoio à paz, como se estas fossem exteriores ao horizonte

estratégico, e dos estudos de segurança, um conglomerado disciplinar

manifestamente mistificador, como veremos.

No âmbito da ciência política, talvez por ser considerada demasiado

schmittiana, a estratégia não tem sido devidamente acolhida, quando a disciplina

estratégica pretende exactamente o contrário da exponenciação conflitual

schmittiana, ao dizer que apenas uma parte da política tem como ultima ratio o

conflito hostil e que mesmo essa é passível de um tratamento prudencial, num

sentido ético, dado precisamente pela estratégia.1 Além do mais, a estratégia

refere-se a manifestações subtis de hostilidade e não exclusivamente à guerra

quente e visa tanto adquirir vantagem nos conflitos quanto armar a paz.

Igualmente no âmbito das relações internacionais, a estratégia não tem

tido a melhor das recepções, provavelmente porque identificada de forma acrítica e

errónea com as teorias realistas e neo-realistas, que hoje sofrem a concorrência de

várias teorias pós-positivistas.2 Disso beneficiaram os estudos para a paz e os

estudos de segurança, que têm preenchido, em muito, o espaço da teoria da

estratégia sem que a consigam substituir.

Na verdade, o exercício prudencial da estratégia e a retroacção desta

sobre a política tende a desarmar a ideia de política internacional como mero jogo

1 Cfr. Carl Schmitt, La Notion du Politique, Paris, Calmann-Lévy, 1972. Para uma recepção muito favorável da obra de Schmitt em Portugal, cfr. Alexandre Franco de Sá, Metamorfose do Poder. Prolegómenos Schmittianos a toda a sociedade futura, Coimbra, Ariadne, 2004. Do ponto de vista estratégico, pode encontrar-se uma recepção muito crítica de Schmitt em António Horta Fernandes, O Homo Strategicus ou a Ilusão de uma Razão Estratégica?, Lisboa, Cosmos-IDN, 1998, pp. 210-212, ainda que, à altura, o autor não tenha atendido a toda a complexidade do pensamento schmittiano. 2 Em língua portuguesa, e em instância pós-positivista, está disponível uma magnífica síntese das várias escolas e correntes da teoria das relações internacionais, na obra de João Gomes Cravinho, Visões do Mundo: as relações internacionais e o mundo contemporâneo, Lisboa, ICS, 2002. Cfr. igualmente, José Pedro Teixeira Fernandes, Teoria das Relações Internacionais: da abordagem clássica ao debate pós-positivista, Coimbra, Almedina, 2004.

António Horta Fernandes

6 Cadernos do IDN - nº 4

de poder, num cenário de confrontação entre entidades soberanas, ou que actuam

inspiradas em racionais soberanos. A estratégia visa racionalizar esses choques e

não incrementá-los, pelo que logo no exercício do poder mais nu, da

excepcionalidade soberana, se faz sentir uma contra-força à discricionaridade de

facto do poder; uma contra-força que dialecticamente sai do seio desse mesmo

poder.

O excurso que de seguida empreenderemos tem muito de uma

aproximação (que quase se poderia designar de orteguiana) à estratégia por

círculos concêntricos. Lenta e paulatinamente, retomando de forma sucessiva os

argumentos principais, insistiremos no lugar decisivo da estratégia, na confluência

de vários saberes, como resposta aos desafios da cena internacional; lugar esse

que nem os estudos para a paz, nem os estudos de segurança poderão ocupar. À

estratégia enquanto ética do conflito cabe ir mais além e ajudar, na medida do

possível, a reconfigurar um espaço internacional que se quer radicalmente outro e

pós-soberano. Veremos como, no seu nicho específico, a conflitualidade hostil,

apenas a estratégia pode almejar (se é que até ela o pode) a tanto.

2. A Estratégia e os Estudos para a Paz

Relativamente aos estudos para a paz (veja-se o interessantíssimo

número temático da Revista Crítica de Ciências Sociais, com abundante

bibliografia, que lhe é dedicado3), o único ponto de contacto estrutural com a ideia

de que a estratégia é uma arte da prudência para além de toda a prudência, ou

uma ética do conflito, tese há muito por nós defendida, é a de que a paz é o ponto

de chegada e também a dimensão frontal inspiradora da estratégia. Ponto de

chegada porquanto a estratégia tem por finalidade ajudar a construir uma paz filial

e superar-se a si mesma, armando uma paz que não seja apenas mais paz

armada, logo não só provisoriamente pacífica. Fonte de inspiração, porque não é

possível o exercício propedêutico de uma paz filial caso não se parta desta como

guia de caminho. Porém, a partir daqui, tanto quanto possamos aquilatar, os

caminhos divergem, desde logo metodológica e epistemologicamente, já que os

estudos da paz parecem fazer finca-pé numa aproximação teórica moldada nas

ciências sociais, em particular, em linhas sociológicas pós-positivistas, política e

ideologicamente empenhadas, enquanto a estratégia, como ética do conflito,

sobraça linhas predominantemente filosóficas e teológicas, nomeadamente em

torno ao pensamento judaico contemporâneo e à teologia política renovada, tanto

de inspiração católica como reformada.

Todavia, não é essa a diferença principal. Muito mais importante parece

ser a pouca atenção que os estudos da paz votam à estratégia e à inquietante e

recorrente manifestação da conflitualidade hostil, que não parece poder ser

reduzida por qualquer dinâmica meramente sociológica, nem negada a sua força

ôntica. Por exemplo, os estudos da paz nada parecem ter a dizer sobre o Mal

aplicado a esta problemática específica da conflitualidade internacional. Por maior

3 Cfr. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 71, Coimbra, Junho de 2005.

A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa

Cadernos do IDN - nº 4 7

respeito que nos mereçam, também não são os estudos de género que permitem

resolver a questão da conflitualidade hostil, tendendo a centrá-la nas questões de

dominação patriarcal e da lógica adversarial, de suposta raiz androcêntrica, que

perpetuaria a guerra por outros meios, ou nem tanto. Essa linha de raciocínio pode

servir para explicar historicamente certas posturas conflituais, o que me parece

inegável, embora possa induzir igualmente a uma confusão de níveis explicativos.4

Além disso, poderá a simples figura da emancipação contribuir para mais do que

integrar uma quantidade maior de pessoas de corpo e alma no statu quo? E ainda

que essa emancipação traga um sentido de mudança, será mesmo que a figura

impositiva da emancipação, de uma autonomia a todo o custo, consegue traduzir o

novum, superiormente a uma dinâmica de acolhida, a um zelo de solicitude, por

exemplo? Seja qual for a resposta, e já se vê que as nossas interrogações não são

gratuitas, comportam antes todo um programa, parece-nos que a importância a

atribuir à recusa do outro como próximo, à recusa do acolhimento, da gratuidade,

da ironia, etc., poderão configurar uma linha de trabalho mais profícua;

curiosamente uma linha de abordagem que aponta para características (a ironia, a

gratuidade, a auto-crítica radical) que têm sido mais cultivadas pelo género

masculino.

Aquilo a que os estudos da paz não parecem atender é à complexidade do

conflito hostil e das suas manifestações, exactamente o campo historicamente

operativo da estratégia. Não se pretende aqui julgar a influência eventualmente

negativa que os estudos da paz tiveram em algumas operações de apoio à paz,

mediante racionais de estrita neutralidade no uso da força e nas capacidades de

auto-defesa, que deixaram muitas vezes os “capacetes azuis” na impossibilidade

de defender populações civis e até a si mesmos. Depois do Relatório Brahimi,

percebeu-se definitivamente que algumas dessas operações de apoio à paz teriam

de ser necessariamente bem mais musculadas (sem aspas).5 A questão reside

antes em julgar que os esforços de paz por si mesmo, em ambientes de natureza

estratégica, eles próprios não são tocados por esses ambientes ou podem ser

neutros (isentos é uma outra coisa) relativamente aos mesmos. O espectro da

conflitualidade hostil é hoje extraordinariamente vasto e existem mesmo esforços

teóricos para o alargar não apenas às zonas de limiar agónico, onde conflitualidade

e competição se confundem em níveis onticamente pastosos, mas à competição

per si.6 Noutro lugar pretendemos mostrar as deficiências e a consequências

4 Cfr. Tatiana Moura, Entre Atenas e Esparta. Mulheres, paz e conflitos armados, Coimbra, Quarteto, 2005; e ainda da mesma autora, “Novíssimas Guerras, Novíssimas Pazes”, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 71, Coimbra, Junho de 2005, pp. 77-96. Um clássico dos estudos de género em Relações Internacionais é o livro de J. Ann Ticker, Gender and International Relations, New York, Columbia University Press, 1992. 5 Cfr. Report of the Panel on United Nations Peacekeeping Operations (A/55 – S/2000/809). Este Relatório é fruto de um painel convocado no ano 2000 por Kofi Annan para fazer um balanço e aprofundar a temática das operações de apoio à paz patrocinadas pela ONU. O Relatório leva o nome do diplomata argelino Lakhdar Brahimi, que encabeçou o dito Painel. 6 É de salientar os cuidadosos esforços nesse sentido por parte de Abel Cabral Couto, revendo assim a sua conhecida posição expressa nos Elementos de Estratégia, pretendendo com isso, e no seu entender, uma aproximação mais cabal da estratégia às novas realidades contemporâneas, tendencialmente osmóticas, bem como chegar a uma abrangência sistémica para a teoria da estratégia, que não prenda os seus critérios definitórios nem à sobredeterminação política nem, sobretudo, ao nível da estratégia integral, o que limitaria assim o “ser” estratégico a uma das suas facetas, por mais importante que seja a estratégia integral. Cfr. Abel Cabral Couto, “Da Importância de uma Teoria” in Francisco Abreu, Fundamentos da Estratégia Militar e Empresarial. Obter superioridade em contextos conflituais

António Horta Fernandes

8 Cadernos do IDN - nº 4

negativas dessa abrangência, mas é um facto indesmentível que essas

manifestações subtis e insidiosas de hostilidade existem e que se as mesmas

podem servir para morigerar a violência, não deixam de ser violentas enquanto

tais.7 Assim sendo, o problema reside em identificar a amplidão do espectro da

conflitualidade hostil, limitá-lo e tratá-lo, que é o que faz a estratégia, tendo plena

consciência que não é através da paz por si mesma, sem qualquer intermediação,

que se pode chegar à paz almejada. Julgar que se está a pisar terreno pacífico

quando assim não é, pode agravar a doença.

Ora, isso é bem visível nas novas classificações, algumas com base na

própria Carta das Nações Unidas, que se fazem acerca do ciclo bélico. Em

determinadas condições, nomeadamente, se existe aquiescência ou mandato da

ONU para o efeito, ao abrigo do artigo 42º da Carta, podem realizar-se operações

de imposição da força. Trata-se de operações que aparecem muitas vezes descritas

como operações de imposição de largo espectro, para as distinguir dos terrenos do

peacekeeping musculado e outras designações menos felizes, como inducement

operations e peace enforcement de baixa intensidade, mas que ainda assim são

consideradas distintas da guerra tout court.8 É absolutamente incrível que o óbvio

não surja sempre: que essas terminologias podem servir para legitimar acções de

guerra efectiva por parte das principais potências da cena internacional e que, na

verdade, são acções de guerra quente sem mais. Percebe-se o que se pretende

proscrever, a guerra, mas esse não é o melhor dos caminhos, até porque, como

muito bem sabemos hoje os conceitos analíticos não são mero aferidores da

realidade, antes, quando interiorizados, começam pautar a conduta dos actores

sociais.9

Os estudos para a paz não parecem ter em conta, como dissemos, a

insiosidade das manifestações de hostilidade hoje em dia; não obstante, sempre se

pode objectar a partir deles que a estratégia nasce adentro da violência e que

muitas dessas mesmas manifestações foram criadas pela estratégia. Na realidade,

as coisas passaram-se assim mesmo. Contudo, aquilo a que os estudos da paz não

parecem atender é à complexidade do homem, às palavras sabiamente descritas

no Eclesiastes: “Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se

deseja debaixo do céu:/ tempo para nascer e tempo para morrer, tempo para

e competitivos, Lisboa, Sílabo, 2002, pp. [17-22], e do mesmo autor, “Posfácio” in Francisco Abreu, António Horta Fernandes, Pensar a Estratégia. Do político-militar ao empresarial, Lisboa, Sílabo, 2004, pp. 215-230. De salientar ainda que embora as posições de Abel Cabral Couto e Francisco Abreu sejam muito próximos, este último afasta-se significativamente da ideia de abrir o campo operativo da estratégia ao competitivo enquanto conflito regrado, uma vez que entende que o domínio da competição empresarial é o da luta pela sobrevivência, não poucas vezes mais feroz que algumas manifestações mais subtis de coacção na esfera clássica da estratégia. 7 Para uma leitura crítica, em instância epistemológica e ética, das posições de Abel Cabral Couto e Francisco Abreu, vide os nossos textos em Francisco Abreu e António Horta Fernandes, Op. cit. 8 Sobre as operações de apoio à paz, cfr. Vítor Rodrigues Viana, Segurança Colectiva. A ONU e as operações de apoio à paz, Lisboa, Cosmos-IDN, 2002; também, Maria do Céu Pinto, “Dimensões Críticas do Peacekeeping da ONU - Lição de Síntese apresentada por ocasião das Provas de Agregação em Política Internacional”, Braga, 2004; e ainda da mesma autora, “O Uso da Força nas Operações de Peacekeeping”, Política Internacional, nº 28, Lisboa, Julho 2005, pp. 107-125. Infelizmente, os autores referidos, na sua judiciosa análise das operações de apoio à paz são algo acríticos com a confusão terminológica que reina e sobretudo com as consequências teórico-práticas que daí derivam. 9 A este propósito são incontornáveis as conclusões de Reinhart Koselleck, aplicadas primariamente a conceitos sócio-históricos. Cfr. Reinhart Koselleck, Futuro Passado. Para una semântica de los tiempos históricos, Barcelona, Paidós, 1993, pp. 105-127.

A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa

Cadernos do IDN - nº 4 9

plantar e tempo para arrancar o que se plantou,/ tempo para matar e tempo para

curar, tempo para destruir e tempo para edificar,/[…] tempo para amar e tempo

para odiar, tempo para a guerra e tempo para a paz.” (Ecl 3, 1-8);10 até porque o

horizonte da sageza parece ser algo estranho ao mundo das ciências sociais de

matriz sociologista, não obstante a profissão de fé nesse sentido, de autores tão

incontornáveis como Boaventura de Sousa Santos.11 Desse modo, a linha de

partida dos estudos para a paz, por mais que queira calcorrear as pisadas das

vítimas, acaba por ser insuficiente. Falta-lhe uma dimensão verdadeiramente

anamnética, uma atenção à história em instância memorial e não apenas à

sociologia histórica para aprofundar os agravos que geram a violência. Mais que

solidários com as vítimas e primariamente compassivos pelas mesmas, são

solidários com a sociologia que denuncia as condições sociais dessas vítimas. Ora,

apenas a solidariedade compassiva com as vítimas pode produzir efeitos, daí que

os estudos para a paz acabem finalmente por serem curtos. Curtos quando

esquecem a complexa dinâmica do homem e a sua condição ôntica enquanto

criatura finita propensa ao mal, para além da eventual inescrutabilidade última

desse mesmo mal, sendo desse modo constantemente traídos pelo que julgam ser

uma paz fácil. Curtos igualmente a partir das suas próprias premissas, quando

pretendem partir sem mais da paz, recusando a intermediação, ao pretender criar

um espaço pacífico a partir de fontes insuficientes, porque não radicalmente

solidários com as vítimas e insolidários com o inaudito da violência, e como tal

nada revolucionários no que à paz diz respeito. Qualquer dia pode ser o último dia,

a estreita porta por onde entra o Messias, dizia Benjamin, na tese XVIII/B do seu

célebre Sobre o Conceito de História (Über den Begriff der Geschichte), mais

conhecido pelo nome de Teses sobre Filosofia da História,12 mas de escatologia, de

apocalíptica e mesmo de ética falam pouco os estudos para a paz. Ou melhor,

parecem primacialmente propugnar por uma vertente política empenhada (em

instância sociológica), analiticamente mediada a favor da paz, quando só o fulgor

da paz de Isaías, de uma paz pura, comporta os genes verdadeiramente

revolucionários para um mundo pós-conflitual. Caso contrário, caso estejamos

profundamente enganados e a estratégia não passe por uma ética do conflito e

quanto muito seja uma racionalização do conflito que evite apenas a disrupção sem

sentido de recursos humanos e materiais em nome da violência pura, temos de

procurar outra via de intermediação, ou então esperar o Messias aqui e agora sem

10 Poder-se-ia citar ainda outra passagem, mais enigmática ainda, se tal pode ser. Referimo-nos a (Ecl 10,11). A passagem citada foi extraída da nova versão da Bíblia dita dos Capuchinhos. Cfr. Bíblia Sagrada, 4ª ed., Lisboa-Fátima, Difusora Bíblica, 2003. 11 Boaventura de Sousa Santos perora longamente sobre um senso comum emancipado e reencantado, sobre o fim das dicotomias entre a ciência e os restantes saberes, mas na prática não se nota nenhum indício de uma linguagem de sabedoria ou profética, antes o jargão analítico mais duro em forma pós-moderma. Não é por acaso que a menção ao pensamento judaico contemporâneo e à correspondência entre alguns dos seus autores, mesmo aqueles ligados à Escola de Frankfurt é a maior das ausências entre as referências de um tal discurso. Tanto em Introdução a uma Ciência Pós-Moderna, 2ª ed., Porto, Afrontamento, 1989, como em Pela Mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade, 3ª ed., Porto, Afrontamento, 1994, encontram-se algumas referências a Adorno ou Horkheimer, mas apenas no que concerne às suas obras mais epistemológicas ou sociológicas. Estamos em crer que Boaventura de Sousa Santos economizaria muito tempo e argumentos se incidisse directamente nessas fontes. Para uma visão sinóptica dessas fontes, cfr. Manuel Reyes Mate, Memoria de Occidente. Actualidad de pensadores judíos olvidados, Barcelona, Anthropos, 1997. 12 Cfr. Walter Benjamin, “Tesis de Filosofía de la Historia” in […], Discursos Interrumpidos, Madrid, Taurus, 1973, p.191.

António Horta Fernandes

10 Cadernos do IDN - nº 4

que a intervenção da estratégia possa ir preparando, ou ir fazendo já de prenúncio

escatológico, ou ainda simplesmente ser cépticos quanto a um homem pós-

conflitual. Em qualquer dos casos, não nos parecem ser os estudos para a paz a

solução quando se teima em não ver as formas insidiosas de hostilidade. Nesse

sentido, as palavras que seguem, um acto relativo de contrição ao que talvez

tenham sido esperanças demasiado altas na estratégia enquanto propedêutica a

uma paz filial, de modo algum querem dizer de uma proximidade última da nossa

parte com muito do que se faz nos estudos para a paz. Quanto muito, essas

palavras revelam a tal concordância estrutural, ao mesmo tempo que um enorme

continente de diferenças quanto ao essencial.

Antes, porém, do dito acto de contrição, é importante clarificar que o

mesmo procede das investigações e objecções que António Paulo Duarte tem

colocado relativamente às nossas teses, particularmente no que diz respeito ao

ciclo bélico. Aquilo que António Paulo Duarte tem escrito,13 não infirma a

importância do tratamento estratégico da guerra, nem da sua impossibilidade, pois

a grande maioria das guerras são estrategicamente definidas, antes chama a

atenção para a irredutibilidade última a toda a estratégia que se anicha no

fenómeno bélico propriamente dito. Isto é, a guerra comporta uma fenomenologia

e uma ontologia, se assim o quisermos, que transborda sempre no seu cerne de

qualquer racionalização e tem em todos os escalões em que se repercute, desde o

técnico-táctico ao estratégico, uma enorme dose de sem-sentido, de caótica, para

os seus diversos actores, que tantas vezes foi reproduzida na literatura de ficção

sobre guerras.14 O camaleão clausewitziano que é a guerra, está lá, adquire vida

própria e quantas das vezes não manieta a própria estratégia, ou não fosse a

guerra uma das figuras por excelência do Mal. A guerra teria assim uma

irredutibilidade última a nível da acção que seria não só especificamente bélica qua

bélica, mas especificamente política, não no que diz respeito à teleologia política,

mas ao momento cinético radical por excelência da acção política, ao seu exercício

puro e soberano, ao momento de excepção, aquele a que as vidas nuas estão

expostas.15 Assim sendo, pode compreender-se que nem mesmo a ética do conflito

serve para morigerar essa irredutibilidade última. A ruptura com essa belicosidade

desagregadora só a paz pura a pode fazer. Só a partir de um continente de paz

pura aí se pode chegar. A ética do conflito só pode ser rigorosamente uma

propedêutica, o que já não é pouco. É certo que a obra de Ledig também nos diz

que no encontro pessoal muitas vezes os inimigos se humanizam,16 o que vem ao

13 Cfr. António Paulo Duarte, “Os (De)Limites da Estratégia. Assomos reflexivos a propósito de um debate estratégico” in Francisco Abreu e António Horta Fernandes, Op.cit., pp. 124-138; e ainda, do autor, A Era Santos Costa: política de defesa e estratégia militar durante o Estado Novo, Dissertação de Doutoramento policopiada, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 2004, pp. 21-60. 14 Cfr. Gert Ledig, Os Órgãos de Estaline, Lisboa, Ulisseia, 2005; e Ernst Jünger, A Guerra como Experiência Interior, Lisboa, Ulisseia, 2005. 15 Tomamos o termo vida nua de Giorgio Agamben, que para ele significa precisamente essa singular vida exposta e abandonada do homo sacer, o homem que pode ser morto sem ser sacrificado e sem que tal seja considerado homicídio. O homem exposto ao poder excepcional detido por todas as soberanias. Para a questão do soberano face ao homo sacer, cfr. Giorgio Agamben, O Poder Soberana e a Vida Nua. Homo Sacer, Lisboa, Presença, 1998; Estado de Exepción. Homo Sacer II, 1, Valencia, Pre-Textos, 2004: e ainda, Lo que Queda de Auschwitz. El archivo y el testigo. Homo Sacer III, Valência, Pre-Textos, 2000. 16 Cfr. Gert Ledig, Op.cit., pp. 63-64. Nessa passagem, o Comandante Sostchenko, uma das poucas personagens que na obra são nomeadas, depois de ser baionetado por um soldado

A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa

Cadernos do IDN - nº 4 11

encontro da tese levinisiana da prioridade inultrapassável do outro à qual não

posso escapar, o outro a quem eu tenho de dar o pão que tiro da minha boca, o

outro que me arranca tanto de mim que às tantas quero destruí-lo, a julgar que

assim me desembaraço dele (o que como sabemos é errado pois até na morte o

outro me obsidia).17 Pois bem, todo esse potencial amável primigénio que até na

guerra se pode vislumbrar e que a estratégia poria em execução, não é suficiente,

porque tal é a densidade do maligno e da recusa do outro na guerra, que para

resgatar esse fundo primigénio de amabilidade, tem de ser feita uma ruptura

praxista de dimensões verdadeiramente metafísicas com esse maligno, através da

recuperação da paz pura e do amor. Mas então, o que fica para a estratégia? Em

primeiro lugar, nem toda a conflitualidade hostil é esta guerra paroxística, e

quando o é, a estratégia é a tal medianeira, o tal lenho crístico, a tal propedêutica

à paz filial, a tal ética que no seio do inaudito pretende virar esse inaudito contra si

mesmo. O problema é que a estratégia nasceu no campo da violência e ainda que

transforme os seus racionais para agir a partir da paz crística, não pode ser negado

que o faz não enquanto pura paz mas enquanto acção adentro da violência, luz ou

réstia de luz onde se pensava que já não existiria nenhuma e portanto como

gestão ética dessa violência. Mas assim sendo, mesmo que o objectivo último seja

a inactivação de si mesma e da violência não pode recusar a violência de antemão

sob pena de não a tratar, para já não falar da sofisticação dos meios violentos que

o estratega faz sem estar a pensar em nenhuma paz filial.

Daqui se conclui que mesmo que a estratégia recuse ultimamente a

violência e a queira inactivar, o que seria difícil a partir da sua própria

epistemologia e ontologia clássica, algo nos levou a partir sem mais delongas do

horizonte da paz crística para alimentar a estratégia; mesmo assim a estratégia

não pode negar que o seu campo operativo é a conflitualidade hostil e por isso é

que é uma arte da prudência mas, para além de toda a prudência e como tal, é

ultimamente impotente face ao paroxismo da guerra quente, das manifestações

desta no terreno. Face à brutalidade última do combate, por exemplo, a gestão

virtuosa do mesmo até pode parecer uma atitude cínica que desrespeita os limites

humanos que aí se jogam. A ruptura com o paroxismo tem de ser outro

paroxismo: a paz pura, a imobilização da guerra. Desta forma podem antecipar-se

todas as críticas à eticização da estratégia, além das que nos foram publicamente

feitas.18 É que, no limite, além de absurda, essa eticização pode ser entendida

alemão, durante uma ofensiva soviética a um sector da frente de Leninegrado, em 1942, é recolhido acto contínuo pelo soldado alemão que o feriu e que olhando o rosto do inimigo não consegue “acabar o trabalho”. Talvez o soldado alemão não tenha podido resistir ao olhar interpelador do outro, ao peso que pendia sobre a sua própria consciência, às últimas réstias de humanidade, ou simplesmente a isso tudo sem ser objectivamente nada disso; um espaço sem justificações, em aberto, como parece querer o próprio narrador, que não nos oferece nenhuma justificação em particular. 17 Neste ponto são magistrais as reflexões de Levinas acerca da impossibilidade de soltar lastro do imperativo “não matarás!”, pois o assassinado continuará sempre a torturar com o seu olhar o criminoso. “ Interdição [de matar] que não equivale, por certo, à impossibilidade pura e simples e que supõe mesmo a possibilidade que ela precisamente proíbe; mas, na realidade, a interdição aloja-se já nessa mesma possibilidade, em vez de a supor; não se lhe junta a posteriori, mas olha-me do próprio fundo dos olhos que eu quero extinguir e fixa-me como o olho que na tumba olhará Caim”. Cfr. Emmanuel Levinas, Totalidade e Infinito, Lisboa, Edições 70, [s.d.], p.211. 18 As críticas à nossa posição estão sintetizadas na obra já referenciada, Pensar a Estratégia, que reproduz um debate, inicialmente, epistolar, entre nós e Francisco Abreu, com os comentários críticos de Viriato Soromenho-Marques, António Paulo Duarte, José Manuel

António Horta Fernandes

12 Cadernos do IDN - nº 4

como um desrespeito à ética e aos combatentes, parecendo que estamos a zombar

deles mediante propostas nefelibatas. Porém, não devemos confundir o todo com

as partes, porquanto nem tudo é guerra paroxística, como já se disse, e sobretudo

a eticização do conflito é o único mediador efectivo adentro do mesmo para lhe pôr

cobro. Assim o exigem as vítimas e os vencidos que somos todos quando

hostilizamos o outro. Mas também são essas vítimas que exigem uma ruptura

maior, exigem a pura paz de Isaías. Eventualmente achámos que o trabalho da

estratégia como ética do conflito, com o potencial amável disponível, poderia

demolir quase todos senão todos os obstáculos a essa paz, à vinda do Messias, que

seria já de outra ordem e não da ordem estratégica. Quiçá essa outra ordem tenha

de actuar mais cedo, mesmo sem a chegada do Messias, porque a estratégia é

afinal uma demolidora mais débil.19

O que esta auto-correcção não pode é ser tomada por pacifismo, pois é

exactamente contra a ideia de uma paz pura extemporânea que se ergue a

mediação possível da ética do conflito. Se o Messias pode irromper a qualquer

momento, como dizia muito humanamente Benjamin, ainda assim cabe-nos ler os

sinais e não ser intempestivos pacifistas. Parece difícil, mas parece ser o caminho

possível mais remunerador para não continuar a comungar com a barbárie.

Quão longe estamos da ilusão pacifista que, do nosso ponto de vista,

parece assoberbar os estudos para a paz, dá a medida da distância entre a

estratégia e esses mesmos estudos, ao mesmo tempo que mostra como tais linhas

de investigação de modo algum podem substituir a estratégia, na pretensão de que

tenhamos razão quanto ao cerne desta última, porque caso assim não seja, por

uma muito maior maioria de razão os estudos estratégicos são incontornáveis. Em

suma, e não dizemos isto apenas em função da disciplina ser tida como a mesma,

é provável que aquilo que nos aproxima das teses clássicas sobre a estratégia, ou

mesmo daquelas mais vibrantes que pretendem estender o seu defeniens, é muito

mais do que aquilo que nos aproxima dos estudos para a paz, embora essa recusa

estrutural do inaudito pudesse fazer pensar em outras coincidências e até no

carácter serôdio e ultrapassável da estratégia; tal não acontece.

Fonseca e posfácio de Abel Cabral Couto. A estratégia enquanto ética do conflito é aí atacada de vários pontos de vista, mas quer-nos parecer que explícita ou implicitamente, o ponto que acima desimplicitámos estava na mente de todos como um indicador da fragilidade da argumentação caso não fosse devidamente reconhecido. Temos de confessar que, mesmo nas respostas aos comentadores, não fomos suficientemente claros e firmes sobre este ponto, até porque não nos tínhamos inteirado do vespeiro ontológico que a guerra representa e que para um deles, António Paulo Duarte, se lhe afigurava, com inteira justiça, como um repto incontornável. Em posteriores debates, de natureza epistolar, procurámos ainda responder ao desafio lançado por António Paulo Duarte, sem nunca abdicar da majoração estratégica integral sobre a guerra, mas parece-nos agora óbvio que tal não é possível. 19 Tomamos aqui a vinda do Messias um pouco na pluralidade de sentidos, nem todos decifrados, com que é evocada em Benjamin e não como aceitação literal da parousía, um assunto deveras complexo para ser teológico, arrumado numas quantas invocações para efeitos da defesa de uma tese. Sempre se pode, no entanto, dizer (fazendo, ademais, justiça à dinâmica política e não puramente teológica que o conceito tem para o filósofo alemão) que o messianismo rasga o véu das aparências deste mundo para lhe outorgar a verdadeira figura (pascal) e não, qual gnose, para fundar uma nova configuração cósmica heteróclita. Sobre isto, cfr. Giorgio Agamben, Le Temps qui Reste. Un commentaire de l’Épître aux Romains, Paris, Rivages Poche, 2004, p. 48; ou ainda, Dietrich Bonhoeffer, Resistencia y Sumisión, Salamanca, Sígueme, 1983, p. 148, onde o teólogo alemão diz sem rebuço algum que «la esperanza cristiana de la resurrección se distingue de la esperanza mitológica en que remite al hombre, de una manera totalmente nueva y más apremiante que el Antiguo Testamento, a la vida sobre la tierra».

A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa

Cadernos do IDN - nº 4 13

3. A Estratégia e os Estudos de Segurança

Numa obra intitulada A Segurança da Europa Ocidental: uma arquitectura

euro-atlântica multidimensional, obra essa, a todos os títulos, significativa e que

faz uma judiciosa apresentação e análise, em língua portuguesa (na esteira dos

trabalhos de Ana Paula Brandão), do mais relevante que se tem feito nos estudos

de segurança a nível internacional, José Pedro Teixeira Fernandes cita um artigo de

António Paulo Duarte e nosso acerca dos conceitos estratégicos, comentando que

“apesar de algum esforço de adaptação aos novos tempos do pós Guerra Fria e

mostras de alguma abertura a uma realidade multidimensional, a conceptualização

(realista) tradicional mantém-se presa ao carácter estatocêntrico e

transpersonalista do conceito, sendo a abertura conceptual normalmente feita com

uma subordinação, implícita ou explícita, das novas dimensões à dimensão

militar”.20 Pois bem, a título exemplificativo da referida concepção tradicional, cita

parte da argumentação que nesse artigo expedimos ao aplicar o conceito de

segurança ao universo estratégico.

Começámos este apartado por essa citação, porquanto ela mostra bem o

absoluto desnorteamento que perpassa pelos estudos de segurança, o que não é

obviamente imputável à menor qualidade dos autores,21 antes à falta de um

referencial substantivo por parte dos próprios estudos de segurança.

Desde logo, nunca reduzimos a estratégia a uma dimensão militar, pelo

contrário, tem sido sempre nosso mester ampliar o espaço de aplicação da área de

tratamento da conflitualidade hostil, de acordo com as melhores práticas

conceptuais sobre esse domínio do saber e claro está olhando à realidade histórica

do evolver estratégico. Já o autor referido, na sequência, aliás, das abordagens

críticas que no domínio dos estudos de segurança as correntes pós-positivistas

fazem à versão realista, tende em toda a obra colar acriticamente o militar e a

estratégia, algo inexplicável, uma vez que a literatura estratégica de ponta vem

dizendo o contrário há, pelo menos, cinquenta anos. É certo que, muitos dos

autores inovadores da teoria da estratégia, Beaufre, Abel Cabral Couto, Luttwak,

menos Poirier, e cremos que não de todo Charnay, têm aqui e ali estado próximos

de uma matriz realista. Mas nenhum deles alguma vez reduziu a estratégia à

estratégia militar. Primeiro, porque a própria estratégia é uma disciplina autónoma,

na qual as matrizes pesadas da teoria das relações internacionais (e

epistemologicamente muito mais pobres, mas esse é outro assunto!) não são

harmonizáveis facilmente com as teorias estratégicas. Depois, porque nada obsta a

que no domínio da conflitualidade hostil e da guerra, em particular, se possam

pensar outras formas de coacção que não a militar. Agora, o que nenhum dos

20 Cfr. José Pedro Teixeira Fernandes, A Segurança da Europa Ocidental: uma arquitectura euro-atlântica multidimensional, Lisboa, FCG, 2002, p.146. O artigo por si citado, da autoria de António Paulo Duarte e António Horta Fernandes, denomina-se “Da Hostilidade à Construção da Paz. Para uma revisão crítica de alguns conceitos estratégicos”, Nação e Defesa, nº 91, Lisboa, Outono 99, pp. 95-127. 21 José Pedro Teixeira Fernandes tem continuado a publicar bons trabalhos sobre relações internacionais, nomeadamente uma obra sobre a teoria das relações internacionais, de acordo com uma matriz pós-positivista, a que já fizemos referência.

António Horta Fernandes

14 Cadernos do IDN - nº 4

autores referidos faz, é inflacionar o conceito de estratégia aplicando-o a outros

domínios que não o da conflitualidade. Referimo-nos apenas à conflitualidade,

porquanto Poirier, de forma mais precipitada, e Abel Cabral Couto, este último

desde o fim dos anos noventa, e de forma muito mais cautelosa, como atrás

mostrámos, tentam alargar o domínio da estratégia às fronteiras, porosas, entre a

hostilidade e a competição, procurando desenvolver uma visão sistémica de todo o

universo agónico.

Pelo que conseguimos perceber, o que custa aos autores não-realistas dos

estudos de segurança é o suposto encarniçamento dos teóricos da estratégia na

conflitualidade nas relações internacionais e no que parece ser a sua aceitação

acrítica de um tal estado de coisas. Mas essa é uma pressuposição

verdadeiramente disparatada. Os teóricos da estratégia não fazem qualquer

declaração manifestando uma aceitação do status quo, dizem apenas que se

cingem à sua área e, no caso de Poirier, é mesmo visado o alargamento conceptual

da estratégia com o intuito de sobrepor as formas mais pacíficas de conflitualidade

às mais belicosas.22 Aquilo para que chamam a atenção os estrategistas é de que

os conflitos hostis existem há séculos e séculos, requerendo um tratamento

específico não compaginável com posturas extemporâneas, que não tenham em

conta essa especificidade e complexidade, por mais bem intencionadas que possam

ser. Ademais, no nosso caso particular, não só não nos move nenhuma veia

realista, um pressuposto erróneo de José Pedro Teixeira Fernandes e que não é

deduzível de nenhuma passagem do trabalho que comenta, como a estratégia está

ao serviço da edificação de uma paz pura, numa perspectiva personalista e não

estatocêntrica.23

José Pedro Teixeira Fernandes chega a dizer que segurança e defesa são

conceitos que se chegam a aproximar muito, no âmbito de uma concepção realista

das relações internacionais, acabando por, de alguma forma, se confundirem.24 Se

assim é para o realismo, de modo algum isso acontece para os teóricos da

estratégia. Aliás, é exactamente através desse ponto que podemos verificar quanto

a segurança é um conceito não apenas polissémico e dado a equívocos, algo a que

José Pedro Teixeira Fernandes aquiesce, mas também que muito tem de fogo

fátuo, por falta de substantividade.

O conceito de defesa recobre o espaço da estratégia na sua funcionalidade

de interdição, visando preservar a autonomia de decisão, que permite criar um

22 A estratégia é, para Poirier, política em acto, o estrategista francês afirma-o reiteradamente. O conceito de estratégia, consubstanciado na estratégia integral, traduz, portanto, a dimensão estratégica de toda a política, conduzida sempre em meio conflitual. A estratégia é uma metodologia da acção política, extensível a todos os objectivos políticos que emergem num meio conflitual, entendido num sentido muito amplo, ocupando predominantemente o espaço do "comércio pacífico" e concorrencial entre os estados, contra o qual se ergue a guerra potenciadora das tensões negativas. O conflito resulta de tensões positivas e negativas da relação face ao outro, sendo a guerra atirada para a sua conceptualização mais clássica de violência armada. A estratégia integral abrange assim todas as manifestações de conflitualidade, predominantemente a nível económico e cultural, quando se trata de realizar objectivos positivos, e no modo de interdição militar, quando geralmente se querem "realizar" objectivos negativos. Cfr. Lucien Poirier, Stratégie Théorique II, Paris, Economica, 1987, pp. 75, 100-101, 107, 138, 178. 23 Os Estados continuam a ter um papel determinante como actores da cena internacional, mas também nenhum dos estrategistas referidos nega que existam outros actores estratégicos de corpo inteiro, nem sequer as suas teorizações previam uma qualquer fixação illo tempore nos Estados, mesmo quando estamos a falar de obras produzidas e influenciadas pela Guerra Fria. 24 Cfr. José Pedro Teixeira Fernandes, Op.cit., p.78.

A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa

Cadernos do IDN - nº 4 15

mínimo de liberdade de acção necessário ao exercício do projecto político de uma

determinada entidade. Neste sentido, a ideia de um conceito estratégico de defesa

nacional, e de uma política de defesa nacional para recobrir todo o espectro da

estratégia integral de um Estado, nada mais representa que uma certa mitologia

branca que nasce predominantemente na conjuntura do pós-Segunda Guerra

Mundial, com o intuito de reforçar, no campo das intenções, a postura de não-

agressividade proclamada em tal conjuntura. O dealbar da Guerra Fria, e os

processos de descolonização apenas reforçaram ainda mais a necessidade de uma

tal postura, no sentido de deixar ideologicamente ao outro o lugar do agressor e de

procurar ganhar, ou pelo menos não perder, as simpatias dos novos estados-

nações. Não obstante, nunca a grande manobra estratégica de uma entidade

política se coibiu de fazer cumprir objectivos ofensivos, apesar das intenções

proclamadas em contrário, pelo que não há nenhuma razão em termos conceptuais

para que se tome a defesa como preenchendo todo o âmbito da estratégia, mesmo

no caso em que seja “realmente” verídica uma política de não-agressão, e a

mesma não seja apenas uma refinada estratégia declaratória. A defesa é assim um

modo substantivo de fazer estratégia, podendo requerer os diversos meios postos

à disposição do actor estratégico e não apenas os militares.

Com a segurança não se passa o mesmo. O problema com a segurança é

que esta tem um carácter meramente adjectival no que diz respeito ao universo

agónico hostil. Estamos em crer que o terá também em outras áreas, que em si

mesmas nada têm a ver com a estratégia (isto é, o campo da conflitualidade hostil

entre distintos actores políticos - ou eventualmente de outra natureza, campo no

qual as fronteiras clássicas entre o interno e o externo se tornam porosas).

Julgamos que a segurança qualifica a acção, a manobra, seja ela qual for, tanto no

âmbito estratégico, como no ambiental, por exemplo (mas nesse caso não nos

interessa enquanto não tiver relevância conflitual), mas não é a segurança que

produz a acção. No campo estratégico a segurança não representa nenhum modo

de acção.

Os novos caminhos dos estudos de segurança, no domínio das relações

internacionais, apontam cada vez mais para uma visão integrada, que cubra tanto

o domínio da conflitualidade quanto o da segurança das pessoas a distintos níveis,

que não ressaltam dessa mesma conflitualidade, embora possam vir a ser usados

como arma (o caso dos recursos hídricos). No que diz respeito ao corpo clássico

das relações internacionais, os novos objectivos de segurança são muito mais o

desarmamento, a prevenção dos conflitos, a limitação dos danos, a cooperação e a

democracia. Este elenco aproxima os estudos de segurança dos estudos para a

paz, mas a paz, pelo menos, é um aferidor substantivo. Agora, de maneira

nenhuma esses objectivos podem ser colocados em reacção crítica aos estudos

estratégicos ou à insuficiência destes. Uma tese como a da estratégia enquanto

ética do conflito desafia radicalmente tais desideratos. Além do mais, os objectivos

pacificadores anunciados inserem-se num mundo ainda inexoravelmente marcado

pelas relações de hostilidade e como tal são os estudos estratégicos, mesmo os

que não marcados por uma visée ética, a desafiar, não os objectivos, mas os

estudos de segurança, uma vez que esses objectivos não só podem ser usados

António Horta Fernandes

16 Cadernos do IDN - nº 4

como refinadas armas estratégicas como e mais importante, a racionalização que a

estratégia faz do conflito confere-lhe um lugar privilegiado para se pronunciar

sobre as armadilhas e complexidades que possam surgir na realização, pela qual

todas anelam, de tão nobres objectivos. Se, ultimamente, o que almejamos todos

é uma paz efectiva, social e mesmo ontologicamente justa, e não um curto

intervalo entre duas guerras, ou entre conflitos insurgentes, com a omnipresença

de manifestações de coacção cada vez mais insidiosas, então parece-nos que os

estudos de segurança têm pouco a dizer. Se estar seguro é estar em paz, o esforço

começa exactamente aí, em configurar a paz e depois armá-la, algo que só se

pode edificar com instrumentos substantivos.25

Existe uma outra via possível para dar alguma substantividade, muito

relativa, é certo, ao conceito de segurança, mas para isso é preciso um exercício

exegético de banda larga sobre o conceito, que as leituras pragmáticas do mesmo

que temos vindo a encontrar não conseguem responder. Com essa exegese evita-

se, adicionalmente e tanto quanto possível, as aporias que advêm de uma

extensão conceptual excessiva da segurança. Realmente existe uma enorme

diferença entre o ambiente agónico hostil, que gera uma racionalidade social que

dita fins específicos face ao conflito, e o âmbito sanitário, ambiental, criminal, etc.,

pelo que a ideia de um conglomerado conceptual não é a melhor. Mas para isso

deve ser encarado de corpo inteiro um quadro definitório da estratégia e não,

como expressa José Pedro Teixeira Fernandes, julgar como pouco importante um

tal objectivo porque redutor. Pelo contrário, é essa postura que leva à

apresentação de conceitos operatórios e pragmáticos infelizes, como aquele que o

nosso autor vai buscar a Fischer e no qual se misturam sincreticamente e sem

qualquer discernimento realidades completamente distintas, desde a não-

eventualidade de um ataque militar à resposta a necessidades humanas básicas,

sejam a habitação ou a nutrição.26

Sem querer aqui ser mais que sucinto quanto a uma exegese do conceito

de segurança, já intentada, precisamente no artigo em que somos comentados e

com que se abriu este apartado, não podemos deixar de verificar que a linha de

trabalhos sobre a segurança, incluindo o de José Pedro Teixeira Fernandes, tende a

perseverar numa ideia estática de segurança: a de segurança como um estado ou

condição. Evidentemente que para atingir a segurança se requer um esforço a

diferentes níveis, uma vez que a segurança não aparece já feita e pronta a

desfrutar. Os estudos de segurança são claros quanto a isso nas várias áreas a que

se propõem aplicar o conceito. Mas no essencial o estar seguro é o fruto desses

esforços. Quer-nos parecer que as coisas poderiam ser observadas exactamente ao

contrário, mediante uma concepção dinâmica, em que a segurança seja tida como

um acontecer-fazer e não apenas como um estado ou condição. Um actor estaria

25 Observe-se a complexidade do assunto, tendo em conta que se as mais refinadas formas de coação e concomitantes estratégias podem ser tidas, justamente e à primeira vista, como um exponenciar da violência, não é menos certo que essas formas não só permitem pensar num modo em que as manifestações brutais de coacção são inaceitáveis e devem ser temperadas, como mediante o exercício estratégico se consegue ir paulatinamente virando a coação contra si mesma. Mas esse universo de complexidade é precisamente aquele em que a estratégia, com o seu saber adquirido, tem uma importante palavra a dizer, contrariamente aos estudos de segurança. 26 Cfr. José Pedro Teixeira Fernandes, Op.cit., p. 172.

A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa

Cadernos do IDN - nº 4 17

seguro quando realmente estivesse a realizar de forma desejada os objectivos a

que se propunha, fossem eles quais fossem, e não simplesmente quando já os

tivesse realizado. Quanto mais não seja, a aceleração e a complexidade de vida

num mundo globalizado exigem-no.

A segurança poderia ser definida, no domínio da conflitualidade hostil,

como um acontecer/fazer (fazer porque dinâmico e acontecer porque sujeito à

dimensão de pathos de quem se vê envolvido em riscos) que permite realizar

efectivamente a manobra estratégica de um dado actor ou entidade política (e

eventualmente, mas no campo estratégico temos muitas dúvidas, de outra

natureza), vencendo as constrições do ambiente estratégico (ameaças e ricos). A

segurança não tem apenas assim uma dimensão negativa, mas também uma

dimensão positiva de realização de objectivos político-estratégicos. Objectivos

esses que não são só defensivos, e aí está outra diferença decisiva em relação ao

conceito de defesa, mas podem ser ofensivos, porquanto o essencial de estar

seguro é estar a realizar com êxito a manobra estratégica pretendida, seja

derrotando pura e simplesmente o adversário com vista a alcançar o objectivo

previsto, seja alcançando uma paz possível (e as duas coisas andam a par), ou

ainda contribuindo para um longo trabalho de morigeração da hostilidade, que tem

o seu ancoradouro último numa paz filial. Relativamente a este último desiderato é

inegável que, mesmo no âmbito estratégico, o conceito de segurança responde

cada vez mais a uma lógica cooperativa, como acto simultaneamente negativo e

positivo, isto é, defensivo e ofensivo, mas no sentido em que o ofensivo releva de

um esforço conjunto que pretende actuar sobre as dinâmicas que engendram as

ameaças e os riscos.27

Não se pense, porém, que deste modo se dilui substantivamente o objecto

da estratégia, a saber: a hostilidade; uma vez que a estratégia tem de atender

cada vez mais a esse campo híbrido entre a hostilidade e a competição, que

designamos por quase-estratégia, e acima de tudo porque à estratégia cabe

abranger o conjunto de fenómenos que imediata ou indirectamente tenham a ver

com a hostilidade, desde os mais óbvios aos mais insidiosos. Contudo, mais

27 É nesta perspectiva que Lucien Poirier, em Stratégie Théorique III, também se deixa seduzir pela segurança, observada de forma colectiva, sistemática, na perspectiva dos Estados e de outros actores emergentes da cena internacional, sem ser, contudo, estatocêntrica, porque predominantemente sistémica e como sabemos os sistemas tendem a ter propriedades que superam o mero agregado das partes. Pensando numa perspectiva regional europeia em primeiro lugar, Poirier diz que a segurança cooperativa se baseia na incapacidade militar residual de cada um dos protagonistas, na sua suficiência insuficiente, que não permite a esses protagonistas alimentar projectos bélicos com a esperança de ganhos militares significativos. Ora, uma segurança cooperativa estendida a objectivos estratégicos não hostis, isto é, objectivos não-militares passíveis de uma conflitualidade benigna e até estimulante, tem por base esta insuficiência suficiente ao mesmo tempo que a alimenta, em ordem à manutenção da estabilidade. O estrategista francês não esquece, no entanto, a hostilidade possível, que no caso remete à defesa e ao militar, uma vez que a estabilidade nunca está assegurada; fazendo inteira justiça ao adágio estratégico: “preparar para o provável, precaver contra o pior”. Cfr. Lucien Poirier, Stratégie Théorique III, Paris, Economica, 1996, pp. 277-308. Poirier só não responde a como pensar na segurança estratégica que seja ofensiva e de expansão, dando a ideia que só agigantando as preocupações defensivas para além da esfera normal tal se consegue, no intuito de assegurar a manutenção da estabilidade contra qualquer perturbador interno (p. 303, da obra em apreço). O pior é que não existe uma ordem moral neutra sobre o que é a estabilidade e nada obsta a que, de forma capciosa, o adquirir vantagem passe por mera estabilidade. Infelizmente, Poirier tende a de-hostilizar a maior parte dos objectivos que caem debaixo da alçada da estratégia (quase todos os que não são militares), embora nalguns escritos chegue a falar de estratégia integral de violência limitada. Para uma crítica circunstanciada dos pontos de vista de Poirier, cfr. António Horta Fernandes, O Homo Strategicus ou a Ilusão de uma Razão Estratégica?, pp. 73-82.

António Horta Fernandes

18 Cadernos do IDN - nº 4

decisivo ainda é tomar a estratégia como ética do conflito, uma phronesis, uma

sabedoria praxista, que mantém a prudência para além de toda a prudência,

configurando sucessivos juízos éticos situacionais direccionados a um fim. Esses

juízos configuram critérios ponderativos de avaliação justa, enquanto avaliação

judiciosa que não é desfigurada por uma violência inaudita, a qual impossibilitaria

inclusivamente qualquer racional posterior de ganhos e perdas. Em todo o caso, é

inegável que a tonalidade da estratégia enquanto ética do conflito remete

ultimamente para a reabsorção da hostilidade, visando uma armação segura da

paz, visando a síntese política superior, historicamente sempre provisória e não

poucas vezes, sem o aval estratégico, fautora de novas hostilidades. É esta

ultrapassagem da estratégia através de si mesmo que permite enquadrar o

conceito de segurança, na sua dimensão cooperativa para além dos próprios

racionais estratégicos, o que demonstra, aliás, que se a estratégia se usa para se

auto-ultrapassar por fins éticos é porque já possui ab initio uma carga ética.

Todavia, como se trata de uma ultrapassagem sempre provisória, historicamente

contingente, pelo menos, enquanto o pecado resistir, ou de outra forma, enquanto

o Mal ofuscar, não é possível escapar ao privilégio estratégico da segurança no

âmbito das relações internacionais, não obstante toda a cooperatividade possível.

Isto, por outro lado, só denota que, mesmo numa abordagem dinâmica, são

limitadas as perspectivas operacionais do conceito de segurança. A segurança é

também aqui um qualificativo da acção, apenas acompanhando mais de perto os

instrumentos que a permitem efectivar e nesse caso refazendo, mais in loco e in

situ, estados de alma, que por sua vez possam estimular acções substantivas de

carácter decisivo.

Em última análise, um estado de coisas adjectival pode muito bem ser

possível, mas só o é num reino escatológico, no caso vertente, instaurada a paz de

Isaías. Esse é verdadeiramente o nosso fito. Infelizmente, quando pensávamos

poder reencontrar aí os estudos de segurança é de temer que nos tenhamos

enganado. É de crer que os estudos de segurança compartilhem com os estudos

para a paz o mesmo preconceito sociologista que os faz desconfiar destas coisas

últimas; afinal tão primeiras e quiçá as únicas a realmente terem o potencial para

romper com o instalado, que os estudos para a paz e os estudos de segurança

tanto e tão justamente criticam.

4. A Estratégia como Ética do Conflito

Não cabe aqui pelejar com outros autores nomeadamente Abel Cabral

Couto, de que nos consideramos discípulos, ou Francisco Abreu, um brilhante

discípulo de Abel Couto, sobre a “essência” da estratégia, nem sequer fazer uma

ampla deambulação pelas distintas posições sobre o assunto por parte das

principais figuras da escola estratégica portuguesa. Trata-se de um debate amplo,

já documentado em termos públicos,28 e que terá certamente novos

28 Cfr. Francisco Abreu e António Horta Fernandes, Op.cit.. Para uma panorâmica da escola estratégica portuguesa, situando-a historicamente, cfr. António Horta Fernandes, “O

A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa

Cadernos do IDN - nº 4 19

desenvolvimentos críticos. Não é, portanto, face a alguns desses estrategistas que

aqui nos posicionamos, uma vez que se há neste excurso um referente crítico, ele

não é composto propriamente por aqueles que pensam a natureza da estratégia.

Assim sendo, cabe-nos expor algumas reflexões sobre a natureza da

estratégia, que se escoram na ideia de estratégia como ética do conflito e mostrar

por que razão a estratégia é uma disciplina incontornável no âmbito das relações

internacionais e da ciência política. Alguns pensarão que se nós já estivermos

certos, considerando a estratégia como ética do conflito, então muito maior

presença disciplinar terá a estratégia se não houver conflito para eticizar. Não

estamos obviamente de acordo, mas o certo é que, em qualquer dos casos,

tenhamos ou não razão, a estratégia reforça o protagonismo que lhe é devido.

Poder-se-ia objectar, a partir dos estudos para a paz, ou dos estudos de

segurança, ou doutra qualquer posição mais crítica para com a estratégia, que ou a

estratégia se salvaria por esta via, aparentemente mais filosófica e de acordo com

os argumentos em voga, ou seria a própria estratégia que deveria ser enviada para

o museu de antiguidades, pelo que os estrategistas clássicos ou não-eticistas não

deveriam ficar felizes com a eventual capitulação da estratégica enquanto ética do

conflito. Erro redondo, seria, no entanto, assim julgar, porque a estratégia como

ética do conflito não pretende afinar pelo diapasão da moda, antes parte da

incontornabilidade do exercício estratégico em si mesmo, seja qual for o seu

desfecho, seja ou não possível crismar a estratégia como ética.

5. A Estratégia como Disciplina de Fins Face à Guerra e à Política

O que distingue, de forma consensual entre os estrategistas, técnica e

tendencialmente, a hostilidade (campo operativo da estratégia) da guerra, para

além desta incluir instrumentalmente manobras anti-hostis por mor de hostilidade

e manobras não hostis sobre aliados, mas sempre num horizonte estratégico de

hostilidade, é o facto do recurso à violência armada ser o horizonte valorativo de

utilidade marginal da guerra, mas não da estratégia, que antes se afere pela

procura da paz possível, de acordo com os ditames políticos e com a síntese

política superior, sempre mais ampla que a da estratégia havendo, portanto, na

guerra, um franco acentuar das manifestações de violência organizada per si, e da

violência tout court como horizonte último. Além disso, na medida em que prepara

e conduz a acção hostil, ao mesmo tempo que arma a paz, a estratégia segue

nisso a política enquanto função contínua, distinguindo-se adicionalmente da

guerra pelo seu carácter durativo. É claro que nem sempre assim foi. A estratégia

começou por ser estratégia operacional, conduta da guerra, mas evoluiu no sentido

durativo que hoje a caracteriza.29

Pensamento Estratégico Português após o 25 de Abril” in José Freire Nogueira e João Vieira Borges, org., O Pensamento Estratégico Nacional, Lisboa, Cosmos-IDN, 2006, pp. 179-186. 29 Viriato Soromenho-Marques vê a estratégia como filha da era do iluminismo e, já nesses seus começos, como uma disciplina que visa a racionalização política da violência, não se confundindo com esta, e desde logo não redutível ao âmbito militar. Cfr. Viriato Soromenho-Marques, “Duas questões sobre Estratégia. A propósito do debate entre António Horta Fernandes e Francisco Abreu” in Francisco Abreu e António Horta Fernandes, Op.cit., pp. 150-154. Sobre o nascimento da estratégia, numa perspectiva mais canónica, cfr. Hervé Coutau-

António Horta Fernandes

20 Cadernos do IDN - nº 4

Por outro lado, se bem que a estratégia sirva a política, preparando

determinada comunidade política ou organização de carácter político para a

conflitualidade eventual, conduzindo essa mesma conflitualidade (quando a mesma

se torna efectiva) dentro de um âmbito político que não se esgota nela quanto aos

fins e objectivos, e criando condições para a paz política estrategicamente possível,

ainda assim a estratégia não é mero instrumento da política. À estratégia cabe

tratar todas as formas que imediata ou mediatamente tenham a ver com a

hostilidade, isto é, todas as potenciais razões de hostilização de outra vontade

política quando confrontada com os objectivos políticos próprios que colidam ou

possam colidir com o outro. Contudo, esse tratamento não está isento de

finalidades próprias, ainda que incompletas e a necessitarem de completude

política superior. A confrontação, seja bélica ou nem tanto, cria uma racionalidade

social específica face ao conflito, uma racionalidade social estratégica de fins

próprios mas incompletos, fins esses que apontam ab initio, e sem que ocorra

qualquer raciocínio intencional no sentido de usar a estratégia como ponderação

ética, para uma ética do conflito, uma defesa de humanidade que se opõe antes de

nada ao inominável. Isto acontece, porque a confrontação hostil gera um potencial

de violência muito distinto da normal processualidade da vida dos homens,

ultimamente irredutível a todo o tratamento possível, mesmo no domínio

estratégico; domínio, apesar de tudo, onde ainda predomina a face de Caim, mas

também o contraponto personalista que logo ocorre, no intuito de assegurar a

sobrevivência num universo minimamente credível (em ordem a uma subsequente

vida humanamente plena) e, por conseguinte, de evitar uma delapidação insana de

recursos humanos e materiais.30 Daí que a estratégia seja arte ou ciência, ou

melhor, a sageza de ponderar e agir prudentemente sobre e na conflitualidade

hostil. Se assim não fosse (a estratégia como configuração ética que a obriga a

remeter para a síntese política superior evacuando o seu próprio solipsismo),

porque retroage sobre a política, poder-se-ia assistir a uma sobre-estrategização

da sociedade, isto é, a sobredeterminação estratégica de todos os objectivos

sociais ou comunitários, impor-se-ia com ou sem a concordância da política, e não

poucas vezes com o aval ou mesmo o estímulo desta. Assim, na medida em que a

Bégarie, Traité de Stratégie, Paris, Economica, 1999, cap. III. Não podemos negar que simpatizamos com o quadro genético que o filósofo português esboça, embora tenhamos algumas dúvidas sobre a precocidade histórica de uma proto-estratégia integral. Por outro lado, a sua ideia vem ao encontro de uma outra, por nós defendida, que a estratégia, no seu todo, nasce no momento histórico moderno em que os actores se apercebem que a sofisticação da violência exige doravante um contraponto de raiz ética firme. A estratégia seria esse contraponto, já vislumbrada num sentido amplo, mas muito menos estruturada enquanto tal. Claro está que Viritato Soromenho-Marques, caso aquiesça à proposta genética, discorda totalmente da eticização da estratégia. De qualquer forma, esta proposta genética precisa de ter o respaldo empírico, isto é historiográfico, que, por ora, não tem. 30 Definimos racionalidade social estratégica da seguinte forma: socialidade em face do conflito (no senso forte de hostilidade e animoadversidade), escorada numa unidade fundada num reconhecimento ideológico de base, o qual não garante mais do que um equilíbrio instável, por força da dialéctica de convergência/divergência de interesses dos diferentes membros dessa socialidade, porquanto o conflito é sempre contra alguém, uma outra socialidade formada de forma similar; pelo que se geram relações conflituais assimétricas e não correlativas inter e intra-socialidades. No fundo, trata-se aqui da velha questão do inimigo interno e da “traição à pátria” que no seio de sociedades abertas, ou marcadas pela globalização, perde todo o seu sentido pejorativo de forma a ser encarada mais realisticamente como inevitabilidade de polaridade nem sempre negativa. Está bom de ver que, neste caso, os órgãos directores políticos que assumem a última ponderação nada mais são que uma emanação dessa socialidade. Claro que historicamente nem sempre foi assim, e quanto mais recuarmos no tempo mais os órgãos directores da estratégia tendem a determinar, quase em exclusivo, a conduta social face ao conflito.

A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança Um Ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa

Cadernos do IDN - nº 4 21

estratégia retroage, reorganiza e ajuda a redistribuir as configurações de poder,

mantendo uma relação dialéctica e recursiva com a política, gerando uma

racionalidade social específica face ao conflito hostil, pode falar-se com

propriedade de uma racionalidade social estratégica de fins próprios que, por sua

vez, alimenta essa retroacção.31

Por conseguinte, na medida em que a estratégia se assume como uma

ponderação eticamente prudente face ao conflito, num espaço social que dita fins

específicos (incompletos) enquanto estratégicos, em função dos quais os objectivos

que realiza são tanto político quanto estratégicos qua estratégicos, essa mesma

estratégia não é apenas uma disciplina instrumental referida a uma realidade

também somente instrumental, mas igualmente uma disciplina de fins. É por esta

via (dos fins específicos incompletos) que os objectivos estratégicos chegam a ser

objectivos políticos, mas objectivos incompletos e logo subordinados, porque antes

(um antes da cronologia histórica e da prévia consideração meramente técnica) a

estratégia é somente uma área de tratamento de objectivos políticos que suscitam

hostilidade. Isto é, em termos estritamente técnicos e instrumentais, a estratégia

refere-se a esta hostilidade e não aos objectivos políticos per si, que continuam a

ser políticos, permanecendo mesmo quando o tratamento acaba (pelo que, neste

primeiro momento, apenas nesse sentido se pode falar de objectivos políticos que

caem debaixo da alçada da estratégia e por isso são objectivos estratégicos).

O que deve, no entanto, ficar bem claro é que a reabsorção da hostilidade

pela dimensão política superior remete para a relativização dessa hostilidade e

para a consecução de aspirações políticas que, de modo algum, se esgotam nos

objectivos políticos passíveis de hostilidade. Quando a política se tende a estreitar

estrategicamente é à própria estratégia que cabe uma quota-parte na correcção do

exercício político, o que evidencia ultimamente uma qualquer espécie de bem

comum.

Pode, contudo, objectar-se que, colocando a estratégia ao nível que nos

apartados anteriores já referimos, um nível proto-escatológico, a estratégia parece

que transborda naturalmente da política e inverte a sua relação com o enquadrante

superior. Na realidade, assim não acontece. No passado, foi já dada uma primeira

resposta a essa possível objecção, considerando a estratégia ao nível dos

objectivos e interesses, mas sem tocar o nível superior (político) das aspirações.32

No entanto, aí a dominante argumentativa estava ainda centrada no

desenvolvimento de um percurso da estratégia a culminar numa ética do conflito e

não em partir do horizonte da ética desde do início, pelo que a resposta, ainda que

no essencial correcta, está excessivamente focada numa dialéctica

política/estratégia sem mais. Falava-se já numa esperança pascal, num “a haver”

nos limites da parousía, ao mesmo tempo que se reconhecia que a própria

comunidade política era curadora de valores e aspirações sobre-políticas, mesmo

pensando num Estado rawlsiano33. Mas o mais importante talvez tenha ficado por

31 Cfr. Jean-Paul Charnay, Critique de la Stratégie, Paris, L’Herne, 1990, p. 77; e também, António Horta Fernandes, Op.cit., pp. 87 e 326. 32 Cfr. António Paulo Duarte e António Horta Fernandes, “Da Hostilidade à Construção da Paz…”, pp. 123-125. 33 Mesmo um Estado rawlsiano não pode abdicar de pressupostos pré-políticos ou supra-políticos na configuração de uma democracia liberal, tal como o pensador norte-americano a vê

António Horta Fernandes

22 Cadernos do IDN - nº 4

dizer: é que a comunidade política enquanto política não é apenas curadora de

aspirações meta-políticas, a própria política poderá ser vista como diaconia, serviço

a outras dimensões comunitárias, que se expressam politicamente, na medida em

que o homem é um ser-para-o-outro, mas onde surge sempre a figura do terceiro,

o outro de outrem, remetendo para uma obra de justiça que equilibra a afecção e

inflexão tendencialmente hegemónica para cada outro em particular. Nesse

sentido, a estratégia pode ter propósitos tão elevados, pois a própria política

também os tem e a estratégia de modo algum ultrapassa a política, antes

estabelece uma relação de diaconia específica com a política que esta enquadra

numa sororidade maior, a qual naturalmente também a ultrapassa.34

em O liberalismo Político, Lisboa, Presença, 1996. As considerações de Rawls sobre o sentido estritamente político dos pressupostos que configuram uma sociedade liberal constitucional e consensual não passaram despercebidas ao crivo crítico tanto de Habermas, quanto de Ricoeur, que defendem que esses pressupostos são inescapavelmente meta-políticos. Podem encontrar-se os textos de Habermas, do debate com Rawls, numa excelente edição crítica, em castelhano, desse debate. Cfr. Jürgen Haberlas y John Ralws, Debate Sobre el Liberalismo Político, Barcelona, Paidós, 1998. Para a crítica de Ricoeur a Rawls, cfr. Paul Ricoeur, O Justo ou a Essência da Justiça, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, pp. 61-104. Já Richard Rorty, muito próximo das teses de Rawls, tinha defendido, seguindo de perto o próprio Rawls, que a ideia do véu da ignorância em A Theory of Justice não visava tanto uma fidelidade kantiana quanto uma fidelidade à história e tradições arreigadas na vida pública liberal norte-americana e ocidental em geral, pelo que a sua ideia (de Rawls) de equilíbrio reflexivo bastava para dirimir a questão dos pressupostos. No fundo, Rorty admite de alguma maneira esses pressupostos como transbordando da política, mas consonante com o seu nervo neo-pragmatista não lhe quer dar mais realce filosófico que aquele que realmente julga terem e que pensa ser escasso em comparação com o prioritário relevo político democrático. Cfr. Richard Rorty, “The Priority of Democracy to Philosophy” in […], Objectivity, Relativism and Truth. Philosophical Papers volume 1, Cambridge, Cambridge University Press, 1991, pp. 175-196. Para uma crítica inteligente, sintetizando várias outras, do que significa a despolitização do político em Rawls para se poder encontrar um consenso de sobreposição, que acaba por privatizar todas as diferenças «metafísicas» em relação aos bens sociais, esvaziando uma parte essencial da dinâmica política democrática, a confrontação plural, cfr. Chantal Mouffe, O Regresso do Político, Lisboa, Gradiva, 1996, pp. 58-72. 34 Como pode depreender-se do exposto também não estamos precisamente com Michael Walzer, quando este diz que, embora o político configure uma esfera da justiça determinante, pois é a actividade reguladora dos bens em geral, sendo utilizado para defender de todas as esferas distributivas e para impor a concepção comum do que são bens e para que servem, o seu poder é sempre predominante junto aos limites mas não no interior das restantes esferas da justiça. Cfr. Michael Walzer, As Esferas da Justiça, Lisboa, Presença, 1999, p. 32. A concepção que defendemos é muito mais insurgente com o político, requer a sua presença reguladora enquanto serviço, mas desnucleando-o tanto quanto possível, retirando-lhe projecção própria.