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eBookLibris  A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO Guy Debord (1931-1994) Projeto Periferia A Sociedade do Espetáculo Guy Debord (1931-1994)  Tradução em português: www.terravista.pt/IlhadoMel/1540 Paráfrase em português do Brasil: Railton Sousa Guedes Coletivo Periferia www.geocities.com/projetoperiferia Editorações, tradução do prefácio e versão para eBook eBooksBrasil.com Fonte Digital base Digitalização da edição em pdf originária de www.geocities.com/projetoperiferia ©2003 — Guy Debord Índice Pág ina 1 de 140 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord 1/12/2003 http://www.ebooksbrasil.com/eLibris/socespetaculo.html

DEBORD, Guy. Sociedade Do Espetáculo

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DEBORD, Guy. Sociedade Do Espetáculo

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    A SOCIEDADE

    DO ESPETCULO

    Guy Debord (1931-1994)

    Projeto Periferia

    A Sociedade do Espetculo Guy Debord (1931-1994)

    Traduo em portugus: www.terravista.pt/IlhadoMel/1540

    Parfrase em portugus do Brasil:

    Railton Sousa Guedes Coletivo Periferia

    www.geocities.com/projetoperiferia

    Editoraes, traduo do prefcio e verso para eBook eBooksBrasil.com

    Fonte Digital base

    Digitalizao da edio em pdf originria de www.geocities.com/projetoperiferia

    2003 Guy Debord

    ndice

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  • Nota importante Prlogo para a terceira edio francesa A SOCIEDADE DO ESPETCULO Captulo I A separao consolidada Captulo II A mercadoria como espetculo Captulo III Unidade e diviso na aparncia Captulo IV O proletariado como sujeito e como representao Captulo V Tempo e histria Captulo VI O Tempo espetacular Captulo VII A Ordenao do territrio Captulo VIII A Negao e o consumo da cultura Captulo IX A Ideologia materializada Notas

    Nota Importante

    O que vem a seguir, uma parfrase

    desenvolvida em portugus do Brasil, baseada em uma traduo publicada na rede em 1997 em portugus de Portugal (www.terravista.pt/IlhadoMel/1540).

    Para quem faz questo da preciso absoluta das palavras escritas por Debord, fortemente recomendado beber da fonte original, em francs [www.geocities.com/projetoperiferia4/sefa.htm] tambm publicado em eBook pela eBooksBrasil.com

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  • A teoria revolucionria , agora, inimiga de toda a ideologia revolucionria e sabe que o

    .

    Guy Debord

    A Sociedade

    do Espetculo

    Prlogo para a terceira edio francesa

    A Sociedade do Espetculo foi publicado

    pela primeira vez em novembro de 1967, em Paris, por Buhet-Chastel. Os tumultos de 1968 o tornaram conhecido. O livro, no qual jamais mudei uma s palavra, foi reeditado seguidamente a partir de 1971 pelas ditions Champ Libre que tomaram o nome de Grard Lebovici em 1984, aps o assassinato do editor.

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  • A srie de reimpresses sucederam-se a regularmente at 1991. A presente edio, ela tambm, permaneceu rigorosamente idntica de 1967. A mesma regra nortear alis, muito naturalmente, a reedio de todos os meus livros na Gallimard. No sou destes que se corrigem.

    Uma teoria crtica como esta no tem que ser mudada; no enquanto no tiverem sido destrudas as condies gerais do longo perodo da histria de que esta teoria ter sido a primeira a definir com exatido. A continuao do desenvolvimento do perodo no fez seno confirmar e ilustrar a teoria do espectculo cuja exposio, aqui reiterada, pode tambm ser considerada como histrica em uma acepo menos elevada: testemunha o que foi a posio mais extremada por ocasio das disputas de 1968 e, portanto do que j era possvel saber em 1968. Os mais equivocados desta poca puderam aprender a partir de ento, pelas desiluses de toda sua existncia, o que significavam a negao da vida que se tornou visvel, a perda da qualidade ligada forma-mercadoria e proletarizao do mundo.

    De resto, acrescentei a seu tempo outras observaes a respeito das mais notveis novidades que o curso ulterior do mesmo processo fizeram aparecer. Em 1979, por ocasio de um prefcio destinado a uma nova traduo italiana, tratei das transformaes efetivas na natureza mesma da produo industrial, como nas tcnicas de governo, que comeava a autorizar o uso da fora espectacular. Em 1988, os Comentrios sobre a sociedade do espectculo estabeleceram

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  • claramente que a precedente diviso mundial das tarefas espectaculares entre os reinos rivais do espectacular concentrado e do espectacular difuso havia de agora em diante acabado em benefcio de sua fuso na forma comum do espectacular integrado.

    Esta fuso pode ser sumariamente resumida corrigindo-se a tese 105 que, referindo-se ao que se passara antes de 1967, distinguia ainda as duas formas anteriores segundo certas prticas opostas. O Grande Cisma do poder de classe tendo terminado em reconciliao, preciso dizer que a prtica unificada do espectacular integrado, hoje, transformou economicamente o mundo, ao mesmo tempo que transformou policialmente a percepo (A polcia no caso mesmo novidade completa).

    unicamente porque esta fuso j se tinha produzido na realidade econmico-poltica do mundo inteiro, que o mundo podia enfim proclamar-se oficialmente unificado. tambm porque a situao a que chegara universalmente o poder separado to grave que esse mundo tinha necessidade de ser unificado o mais cedo possvel; de participar como um nico bloco na mesma organizao consensual do mercado mundial, falsificado e garantido espetacularmente. E ele no se unificar, finalmente.

    A burocracia totalitria, classe dominante de substituio para a economia mercantil, nunca acreditou o suficiente em seu destino. Sabia ser forma subdesenvolvida de classe dominante, e queria ser mais. A tese 58

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  • tinha h tempos estabelecido o seguinte axioma: A raiz do espetculo est no terreno da economia tornada abundante, e de l que vm os frutos que tendem finalmente a dominar o mercado espetacular.

    esta vontade de modernizao e unificao do espetculo, ligada a todos os outros aspectos da simplificao da sociedade, que conduziu a burocracia russa a se converter repentinamente, como um s homem, presente ideologia da democracia: isto , liberdade ditatorial do Mercado, temperada pelo reconhecimento dos Direitos do homem espectador. Ningum no Ocidente fez o menor comentrio sobre o significado e as consequncias de to extraordinrio acontecimento meditico. O progresso da tcnica espetacular fica provado. S se teve que registrar semelhana de uma espcie de abalo geolgico. Data-se o fenmeno, e imagina-se t-lo compreendido bem, contentando-se na repetio de um sinal muito simples a queda-do-muro-de-Berlim , to indiscutvel quanto os outros sinais democrticos.

    Em 1991, os primeiros efeitos da modernizao apareceram com a dissoluo completa da Rssia. A se expressa, mais abertamente ainda que no Ocidente, o resultado desastroso da evoluo geral da economia. A desordem apenas sua conseqncia. Por toda parte se colocar a mesma pergunta aterradora, que ronda o mundo h dois sculos: como fazer trabalhar os pobres, ali onde a iluso se dissipou e toda fora foi abatida?

    A tese 111, reconhecendo os primeiros

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  • sintomas de um declnio russo do qual acabamos de ver a exploso final, e antevisando o desaparecimento prximo de uma sociedade mundial que, como se pode dizer agora, apagar-se- da memria do computador, enunciava este julgamento cuja justeza ser fcil perceber: a decomposio mundial da aliana da mistificao burocrtica , em ltima anlise, o fator mais desfavorvel para o desenvolvimento atual da sociedade capitalista.

    preciso ler este livro considerando que ele foi deliberadamente escrito na inteno de se opor sociedade espetacular. Nunca demais diz-lo.

    30 de junho de 1992 GUY DEBORD

    A SOCIEDADE DO ESPETCULO

    Guy Debord (1931-1994)

    As idias se aperfeioam. O sentido das palavras tambm. O plagiato necessrio. O avano implica-o. Ele acerca-se estreitamente da frase de um autor, serve-se das suas expresses, suprime uma idia falsa, substitui-a pela idia

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  • justa Guy Debord

    Guy Debord A SOCIEDADE DO ESPETCULO

    CAPTULO I A SEPARAO CONSOLIDADA

    Nosso tempo, sem dvida... prefere a imagem coisa, a cpia ao original, a representao realidade, a aparncia ao ser... O que sagrado para ele, no passa de iluso, pois a verdade est no profano. Ou seja, medida que decresce a verdade a iluso aumenta, e o sagrado cresce a seus olhos de forma que o cmulo da iluso tambm o cmulo do sagrado.

    Feuerbach Prefcio segunda edio de A Essncia do Cristianismo

    1 Toda a vida das sociedades nas quais

    reinam as condies modernas de produo se anuncia como uma imensa acumulao de espetculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaa da representao.

    2 As imagens fluem desligadas de cada

    aspecto da vida e fundem-se num curso comum, de forma que a unidade da vida no mais pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente reflete em sua prpria unidade geral um pseudo mundo parte, objeto de pura contemplao. A especializao das imagens do mundo acaba numa imagem

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  • autonomizada, onde o mentiroso mente a si prprio. O espetculo em geral, como inverso concreta da vida, o movimento autnomo do no-vivo.

    3 O espetculo ao mesmo tempo parte da

    sociedade, a prpria sociedade e seu instrumento de unificao. Enquanto parte da sociedade, o espetculo concentra todo o olhar e toda a conscincia. Por ser algo separado, ele o foco do olhar iludido e da falsa conscincia; a unificao que realiza no outra coisa seno a linguagem oficial da separao generalizada.

    4 O espetculo no um conjunto de

    imagens, mas uma relao social entre pessoas, mediatizada por imagens.

    5 O espetculo no pode ser compreendido

    como abuso do mundo da viso ou produto de tcnicas de difuso massiva de imagens. Ele a expresso de uma Weltanschauung, materialmente traduzida. uma viso cristalizada do mundo.

    6 O espetculo, compreendido na sua

    totalidade, simultaneamente o resultado e o projeto do modo de produo existente. Ele no um complemento ao mundo real, um adereo decorativo. o corao da irrealidade da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares de informao ou propaganda, publicidade ou consumo direto do entretenimento, o espetculo constitui o modelo

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  • presente da vida socialmente dominante. Ele a afirmao onipresente da escolha j feita na produo, e no seu corolrio o consumo. A forma e o contedo do espetculo so a justificao total das condies e dos fins do sistema existente. O espetculo tambm a presena permanente desta justificao, enquanto ocupao principal do tempo vivido fora da produo moderna.

    7 A prpria separao faz parte da unidade

    do mundo, da prxis social global que se cindiu em realidade e imagem. A prtica social, diante da qual surge o espetculo autnomo, tambm a totalidade real que contm o espetculo. Mas a ciso nesta totalidade mutila-a ao ponto de apresentar o espetculo como sua finalidade. A linguagem do espetculo constituda por signos da produo reinante, que so ao mesmo tempo o princpio e a finalidade ltima da produo.

    8 No se pode contrapor abstratamente o

    espetculo atividade social efetiva; este desdobramento est ele prprio desdobrado. O espetculo que inverte o real produzido de forma que a realidade vivida acaba materialmente invadida pela contemplao do espetculo, refazendo em si mesma a ordem espetacular pela adeso positiva. A realidade objetiva est presente nos dois lados. O alvo passar para o lado oposto: a realidade surge no espetculo, e o espetculo no real. Esta alienao recproca a essncia e o sustento da sociedade existente.

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  • 9 No mundo realmente invertido, o

    verdadeiro um momento do falso.

    10 O conceito de espetculo unifica e explica

    uma grande diversidade de fenmenos aparentes. As suas diversidades e contrastes so as aparncias organizadas socialmente, que devem, elas prprias, serem reconhecidas na sua verdade geral. Considerado segundo os seus prprios termos, o espetculo a afirmao da aparncia e a afirmao de toda a vida humana, socialmente falando, como simples aparncia. Mas a crtica que atinge a verdade do espetculo descobre-o como a negao visvel da vida; uma negao da vida que se tornou visvel.

    11 Para descrever o espetculo, a sua

    formao, as suas funes e as foras que tendem para sua dissoluo, preciso distinguir seus elementos artificialmente inseparveis. Ao analisar o espetculo, fala-se em certa medida a prpria linguagem do espetacular, no sentido de que se pisa no terreno metodolgico desta sociedade que se exprime no espetculo. Mas o espetculo no significa outra coisa seno o sentido da prtica total da formao econmico-social, o seu emprego do tempo. o momento histrico que nos contm.

    12 O espetculo apresenta-se como algo

    grandioso, positivo, indiscutvel e inacessvel.

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  • Sua nica mensagem o que aparece bom, o que bom aparece. A atitude que ele exige por princpio aquela aceitao passiva que, na verdade, ele j obteve na medida em que aparece sem rplica, pelo seu monoplio da aparncia.

    13 O carter fundamentalmente tautolgico

    do espetculo decorre do simples fato dos seus meios serem ao mesmo tempo a sua finalidade. Ele o sol que no tem poente no imprio da passividade moderna. Recobre toda a superfcie do mundo e banha-se indefinidamente na sua prpria glria.

    14 A sociedade que repousa sobre a

    indstria moderna no fortuitamente ou superficialmente espetacular, ela fundamentalmente espetaculista. No espetculo da imagem da economia reinante, o fim no nada, o desenvolvimento tudo. O espetculo no quer chegar a outra coisa seno a si mesmo.

    15 Na forma do indispensvel adorno dos

    objetos hoje produzidos, na forma da exposio geral da racionalidade do sistema, e na forma de setor econmico avanado que modela diretamente uma multido crescente de imagens-objetos, o espetculo a principal produo da sociedade atual.

    16 O espetculo submete para si os homens

    vivos, na medida em que a economia j os

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  • submeteu totalmente. Ele no nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si prpria. o reflexo fiel da produo das coisas, e a objetivao infiel dos produtores.

    17 A primeira fase da dominao da

    economia sobre a vida social levou, na definio de toda a realizao humana, a uma evidente degradao do ser em ter. A fase presente da ocupao total da vida social em busca da acumulao de resultados econmicos conduz a uma busca generalizada do ter e do parecer, de forma que todo o ter efetivo perde o seu prestgio imediato e a sua funo ltima. Assim, toda a realidade individual se tornou social e diretamente dependente do poderio social obtido. Somente naquilo que ela no , lhe permitido aparecer.

    18 Onde o mundo real se converte em

    simples imagens, estas simples imagens tornam-se seres reais e motivaes eficientes tpicas de um comportamento hipntico. O espetculo, como tendncia para fazer ver por diferentes mediaes especializadas o mundo que j no diretamente apreensvel, encontra normalmente na viso o sentido humano privilegiado que noutras pocas foi o tato; a viso, o sentido mais abstrato, e o mais mistificvel, corresponde abstrao generalizada da sociedade atual. Mas o espetculo no identificvel ao simples olhar, mesmo combinado com o ouvido. Ele o que escapa atividade dos homens, reconsiderao e correo da sua obra. o

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  • contrrio do dilogo. Em toda a parte onde h representao independente, o espetculo reconstitui-se.

    19 O espetculo o herdeiro de toda a

    fraqueza do projeto filosfico ocidental, que foi uma compreenso da atividade dominada pelas categorias do ver; assim como se baseia no incessante alargamento da racionalidade tcnica precisa, proveniente deste pensamento. Ele no realiza a filosofia, ele filosofa a realidade. a vida concreta de todos que se degradou em universo especulativo.

    20 A filosofia, enquanto poder do

    pensamento separado, e pensamento do poder separado, nunca pode por si prpria superar a teologia. O espetculo a reconstruo material da iluso religiosa. A tcnica espetacular no dissipou as nuvens religiosas onde os homens tinham colocado os seus prprios poderes desligados de si: ela ligou-os somente a uma base terrestre. Assim, a mais terrestre das vidas que se toma opaca e irrespirvel. Ela j no reenvia para o cu, mas alberga em si a sua recusa absoluta, o seu falacioso paraso. O espetculo a realizao tcnica do exlio dos poderes humanos num alm; a ciso acabada no interior do homem.

    21 medida que a necessidade se encontra

    socialmente sonhada, o sonho torna-se necessrio. O espetculo o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que ao cabo no exprime seno o seu desejo de dormir. O

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  • espetculo o guardio deste sono.

    22 Destituda de seu poder prtico, e

    permeada pelo imprio independente no espetculo, a sociedade moderna permanece atomizada e em contradio consigo mesma.

    23 Mas a especializao do poder, a mais

    velha especializao social, que est na raiz do espetculo. O espetculo , assim, uma atividade especializada que fala pelo conjunto das outras. a representao diplomtica da sociedade hierrquica perante si prpria, onde qualquer outra palavra banida, onde o mais moderno tambm o mais arcaico.

    24 O espetculo o discurso ininterrupto

    que a ordem presente faz sobre si prpria, o seu monlogo elogioso. o auto-retrato do poder no momento da sua gesto totalitria das condies de existncia. A aparncia fetichista de pura objetividade nas relaes espetaculares esconde o seu carter de relao entre homens e entre classes: uma segunda natureza parece dominar o nosso meio ambiente com as suas leis fatais. Mas o espetculo no necessariamente um produto do desenvolvimento tcnico do ponto de vista do desenvolvimento natural. A sociedade do espetculo , pelo contrrio, uma formulao que escolhe o seu prprio contedo tcnico. O espetculo, considerado sob o aspecto restrito dos meios de comunicao de massa sua manifestao superficial mais esmagadora que aparentemente invade a sociedade como

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  • simples instrumentao, est longe da neutralidade, a instrumentao mais conveniente ao seu automovimento total. As necessidades sociais da poca em que se desenvolvem tais tcnicas no podem encontrar satisfao seno pela sua mediao. A administrao desta sociedade e todo o contato entre os homens j no podem ser exercidos seno por intermdio deste poder de comunicao instantneo, por isso que tal comunicao essencialmente unilateral; sua concentrao se traduz acumulando nas mos da administrao do sistema existente os meios que lhe permitem prosseguir administrando. A ciso generalizada do espetculo inseparvel do Estado moderno, a forma geral da ciso na sociedade, o produto da diviso do trabalho social e o rgo da dominao de classe.

    25 A separao o alfa e o mega do

    espetculo. A institucionalizao da diviso social do trabalho, a formao das classes, constituiu a primeira contemplao sagrada, a ordem mtica em que todo o poder se envolve desde a origem. O sagrado justificou a ordenao csmica e ontolgica que correspondia aos interesses dos Senhores, ele explicou e embelezou o que a sociedade no podia fazer. Todo o poder separado foi pois espetacular, mas a adeso de todos a uma tal imagem imvel no significava seno o reconhecimento comum de um prolongamento imaginrio para a pobreza da atividade social real, ainda largamente ressentida como uma condio unitria. O espetculo moderno

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  • exprime, pelo contrrio, o que a sociedade pode fazer, mas nesta expresso o permitido ope-se absolutamente ao possvel. O espetculo a conservao da inconscincia na modificao prtica das condies de existncia. Ele o seu prprio produto, e ele prprio fez as suas regras: um pseudo-sagrado. Ele mostra o que : o poder separado, desenvolvendo-se em si mesmo no crescimento da produtividade por intermdio do refinamento incessante da diviso do trabalho na parcelarizao dos gestos, desde ento dominados pelo movimento independente das mquinas; e trabalhando para um mercado cada vez mais vasto. Toda a comunidade e todo o sentido crtico se dissolveram ao longo deste movimento, no qual as foras que puderam crescer, separando-se, ainda no se reencontraram.

    26 Com a separao generalizada do

    trabalhador daquilo que ele produz perde-se todo ponto de vista unitrio sobre a atividade realizada, perde-se toda a comunicao pessoal direta entre os produtores. Na senda do progresso da acumulao dos produtos separados, e da concentrao do processo produtivo, a unidade e a comunicao tornam-se atribuies exclusivas da direo do sistema. O xito do sistema econmico da separao significa a proletarizao do mundo.

    27 O prprio xito da produo separada

    enquanto produo do separado, experincia fundamental ligada s sociedades primitivas, desloca-se, no plo do desenvolvimento do

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  • sistema, para o no-trabalho, para a inatividade. Mas esta inatividade no em nada liberta da atividade produtiva: depende desta, uma submisso inquieta e contemplativa s necessidades e aos resultados da produo; ela prpria um produto da sua racionalidade. Nela no pode haver liberdade fora da atividade. No quadro do espetculo toda a atividade negada, exatamente pela atividade real ter sido integralmente captada para a edificao global resultante. Assim, a atual libertao do trabalho, o aumento dos tempos livres, no de modo algum libertao no trabalho, nem libertao de um mundo moldado por este trabalho. Nada da atividade roubada no trabalho pode reencontrar-se na submisso ao seu resultado.

    28 O sistema econmico fundado no

    isolamento uma produo circular do isolamento. O isolamento fundamenta a tcnica, e, em retorno, o processo tcnico isola. Do automvel televiso, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular so tambm as suas armas para o reforo constante das condies de isolamento das multides solitrias. O espetculo reencontra cada vez mais concretamente os seus prprios pressupostos.

    29 A origem do espetculo a perda da

    unidade do mundo, e a expanso gigantesca do espetculo moderno exprime a totalidade desta perda: a abstrao de todo o trabalho particular e a abstrao geral da produo do conjunto

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  • traduzem-se perfeitamente no espetculo, cujo modo de ser concreto justamente a abstrao. No espetculo, uma parte do mundo representa-se perante o mundo, e -lhe superior. O espetculo no mais do que a linguagem comum desta separao. O que une os espectadores no mais do que uma relao irreversvel com o prprio centro que mantm o seu isolamento. O espetculo rene o separado, mas rene-o enquanto separado.

    30 A alienao do espectador em proveito do

    objeto contemplado (que o resultado da sua prpria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua prpria existncia e o seu prprio desejo. A exterioridade do espetculo em relao ao homem que age aparece nisto, os seus prprios gestos j no so seus, mas de um outro que lhos apresenta.

    Eis porque o espectador no se sente em casa em parte alguma, porque o espetculo est em toda a parte.

    31 O trabalhador no produz para si prprio,

    ele produz para um poder independente. O sucesso desta produo, a sua abundncia, regressa ao produtor como abundncia da despossesso. Todo o tempo e o espao do seu mundo se lhe tornam estranhos com a acumulao dos seus produtos alienados. O espetculo o mapa deste novo mundo, mapa que recobre exatamente o seu territrio. As

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  • prprias foras que nos escaparam mostram-se-nos em todo o seu poderio.

    32 O espetculo na sociedade representa

    concretamente uma fabricao de alienao. A expanso econmica principalmente a expanso da produo industrial. O crescimento econmico, que cresce para si mesmo, no outra coisa seno a alienao que constitui seu ncleo original.

    33 O homem alienado daquilo que produz,

    mesmo criando os detalhes do seu mundo, est separado dele. Quanto mais sua vida se transforma em mercadoria, mais se separa dela.

    34 O espetculo o capital a um tal grau de

    acumulao que se toma imagem.

    CAPTULO II A MERCADORIA COMO ESPETCULO

    A mercadoria pode ser compreendida na sua essncia apenas como categoria universal do ser social total. apenas neste contexto que a reificao [o momento, dentro do processo de alienao, em que a caracterstica de ser uma coisa se torna tpica da realidade objetiva] surgida da relao mercantil adquire uma significao decisiva, tanto pela evoluo objetiva da sociedade como pela atitude dos homens em relao a ela, na submisso da sua conscincia s formas nas quais esta reificao se exprime... Esta submisso acresce-se ainda do fato de que quanto mais a racionalizao e a mecanizao do processo de trabalho aumentam, mais a atividade do trabalhador perde o seu carter de atividade, tornando-se

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  • uma atitude meramente contemplativa. Lukcs Histria e conscincia de classe

    35 Neste movimento essencial do espetculo

    que consiste em ingerir tudo o que existe na atividade humana em estado fluido para depois vomit-lo em estado coagulado, para que as coisas assumam seu valor exclusivamente pela formulao em negativo do valor vivido ns reconhecemos a nossa velha inimiga que embora parea trivial primeira vista intensamente complexa e cheia de sutilezas metafsicas, a mercadoria.

    36 pelo princpio do fetichismo da

    mercadoria, a sociedade sendo dominada por coisas supra-sensveis embora sensveis, que o espetculo se realiza absolutamente. O mundo sensvel substitudo por uma seleo de imagens que existem acima dele, ao mesmo tempo em que se faz reconhecer como o sensvel por excelncia.

    37 O mundo ao mesmo tempo presente e

    ausente que o espetculo apresenta o mundo da mercadoria dominando tudo o que vivido. O mundo da mercadoria mostrado como ele , com seu movimento idntico ao afastamento dos homens entre si, diante de seu produto global.

    38 A perda da qualidade to evidente em

    todos os nveis da linguagem espetacular dos objetos que louva e das condutas que regula,

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  • no faz outra coisa seno traduzir as caractersticas fundamentais da produo real, que repudiam a realidade: a forma-mercadoria de uma ponta a outra a igualdade consigo mesma, a categoria do quantitativo. o quantitativo que ela desenvolve, e ela no se pode desenvolver seno nele.

    39 Este desenvolvimento exclui o qualitativo

    estancando, enquanto desenvolvimento, a passagem qualitativa: o espetculo significa que ele transps o limiar da sua prpria abundncia; isto ainda no verdadeiro localmente seno em alguns pontos, mas j verdadeiro em escala universal, que a referncia original da mercadoria, referncia que o seu movimento prtico confirmou, definindo a terra como mercado mundial.

    40 O desenvolvimento das foras produtivas

    foi a histria real inconsciente que construiu e modificou as condies de existncia dos grupos humanos, enquanto condies de sobrevivncia, e alargamento destas condies: a base econmica de todos os seus empreendimentos. O setor da mercadoria foi, no interior da economia natural, a constituio de um excedente de sobrevivncia. A produo das mercadorias, que implica a troca de produtos variados entre produtores independentes, pode permanecer durante muito tempo artesanal, contida numa funo econmica marginal onde a sua verdade quantitativa estava ainda encoberta. No entanto, onde encontrou as condies sociais do grande comrcio e da

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  • acumulao dos capitais, ela apoderou-se do domnio total da economia. A economia inteira tornou-se ento o que a mercadoria tinha mostrado ser no decurso desta conquista: um processo de desenvolvimento quantitativo. O alargamento incessante do poderio econmico sob a forma da mercadoria, que transfigurou o trabalho humano em trabalho-mercadoria, em salariado, conduz cumulativamente a uma abundncia na qual a questo primeira da sobrevivncia est sem dvida resolvida, mas de um tal modo que ela deve sempre reencontrar-se; ela , cada vez, colocada de novo a um grau superior. O crescimento econmico liberta as sociedades da presso natural que exigia a sua luta imediata pela sobrevivncia, mas ento do seu libertador que elas no esto libertas. A independncia da mercadoria estendeu-se ao conjunto da economia sobre a qual ela reina. A economia transforma o mundo, mas transforma-o somente em mundo da economia. A pseudonatureza na qual o trabalho humano se alienou exige prosseguir ao infinito o seu servio e este servio, no sendo julgado e absolvido seno por ele prprio, obtendo, de fato, a totalidade dos esforos e dos projetos socialmente lcitos, como seus servidores. A abundncia das mercadorias, isto , da relao mercantil, no pode ser mais do que a sobrevivncia aumentada.

    41 A dominao da mercadoria sobre a

    economia exerceu-se, antes de mais nada de uma maneira oculta. A mercadoria, enquanto base material da vida social, permaneceu

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  • desapercebida e incompreendida, como o parente que apesar de sua condio no conhecido. Numa sociedade em que a mercadoria concreta permanece rara ou minoritria, a dominao aparente do dinheiro se apresenta como um emissrio munido de plenos poderes que fala em nome de uma potncia desconhecida. Com a revoluo industrial, a diviso do trabalho e a produo macia para o mercado mundial, a mercadoria aparece efetivamente como uma potncia que vem realmente ocupar a vida social. a que se constitui a economia poltica como cincia dominante e como cincia da dominao.

    42 O espetculo o momento em que a

    mercadoria chega ocupao total da vida social. Tudo isso perfeitamente visvel com relao mercadoria, pois nada mais se v seno ela: o mundo visvel o seu mundo. A produo econmica moderna estende a sua ditadura extensiva e intensivamente. At mesmo nos lugares menos industrializados, o seu reino j se faz presente com algumas mercadorias-vedetas, com a dominao imperialista comandando o desenvolvimento da produtividade. Nestas zonas avanadas, o espao social invadido por uma sobreposio contnua de camadas geolgicas de mercadorias. Neste ponto da segunda revoluo industrial, o consumo alienado torna-se para as massas um dever suplementar produo alienada. todo o trabalho vendido de uma sociedade, que se torna globalmente mercadoria total, cujo ciclo deve prosseguir.

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  • Para o fazer, preciso que esta mercadoria total regresse fragmentariamente ao indivduo fragmentrio, absolutamente separado das foras produtivas e operando como um conjunto. Assim, portanto, a cincia especializada da dominao se especializa: fragmentando tudo, em sociologia, psicotcnica, ciberntica, semiologia, etc., velando pela auto-regulao de todos os nveis do processo.

    43 Embora na fase primitiva da acumulao

    capitalista a economia poltica no visse no proletrio seno o operrio que deveria receber o mnimo indispensvel para a conservao da sua fora de trabalho, sem nunca ser considerado nos seus lazeres, na sua humanidade, esta posio de ideias da classe dominante inverte-se assim que o grau de abundncia atingido na produo das mercadorias exige um excedente de colaborao do operrio. Este operrio, completamente desprezado diante de todas as modalidades de organizao e vigilncia da produo, v a si mesmo, a cada dia, do lado de fora, mas aparentemente tratado como uma grande pessoa, com uma delicadeza obsequiosa, sob o disfarce do consumidor. Ento o humanismo da mercadoria toma a cargo os lazeres e humanidade do trabalhador, muito simplesmente porque a economia poltica pode e deve dominar, agora, tambm estas esferas, enquanto economia poltica. Assim, a negao da humanidade agora a negao da totalidade da existncia humana.

    44

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  • O espetculo uma permanente guerra do pio para confundir bem com mercadoria; satisfao com sobrevivncia, regulando tudo segundo as suas prprias leis. Se o consumo da sobrevivncia algo que deve crescer sempre, porque a privao nunca deve ser contida. E se ele no contido, nem estancado, porque ele no est para alm da privao, a prpria privao enriquecida.

    45 A automao o setor mais avanado da

    indstria moderna e ao mesmo tempo o modelo que define sua prtica. Mas necessrio que o mundo da mercadoria supere esta contradio: a instrumentao tcnica que suprime objetivamente o trabalho deve, ao mesmo tempo, conservar o trabalho como mercadoria, e manter o trabalho como a nica instncia de nascimento da mercadoria. Para que a automao, ou qualquer outra forma menos extrema de aumento da produtividade do trabalho, no diminua efetivamente o tempo de trabalho social necessrio escala de sociedade, indispensvel criar novos empregos. O setor tercirio os servios o imenso prolongamento das linhas e etapas do exrcito da distribuio e do elogio das mercadorias atuais; pela mobilizao de foras supletivas que encontra oportunamente na prpria facticidade das necessidades relativas de tais mercadorias, a necessria organizao da retaguarda do trabalho.

    46 O valor da troca no pode formar-se

    seno como agente do valor de uso, mas a sua vitria pelas suas prprias armas criou as

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  • condies da sua dominao autnoma. Mobilizando todo o uso humano e apoderando-se do monoplio da sua satisfao, ela acabou por dirigir o uso. O processo de troca identificou-se a todo o uso possvel e reduziu-o sua merc. O valor de troca o condottiere do valor de uso, que acaba por conduzir a guerra por sua prpria conta.

    47 Esta constante da economia capitalista,

    que a baixa tendencial do valor de uso, desenvolve uma nova forma de privao no interior da sobrevivncia aumentada, a qual no est, por isso, mais liberta da antiga penria, visto que exige a participao da grande maioria dos homens, como trabalhadores assalariados, no prosseguimento infinito do seu esforo; e que cada qual sabe que necessrio submeter-se-lhe ou morrer. a realidade desta chantagem, o fato do uso sob a sua forma mais pobre (comer, habitar) j no existir seno aprisionado na riqueza ilusria da sobrevivncia aumentada, que a base real da aceitao da iluso em geral no consumo das mercadorias modernas. O consumidor real toma-se um consumidor de iluses. A mercadoria esta iluso efetivamente real, e o espetculo a sua manifestao geral.

    48 O valor de uso, que estava implicitamente

    compreendido no valor de troca, deve estar agora explicitamente proclamado na realidade invertida do espetculo, justamente porque a sua realidade efetiva corroda pela economia mercantil superdesenvolvida; e porque uma pseudojustificao se torna necessria falsa

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  • vida.

    49 O espetculo a outra face do dinheiro: o

    equivalente geral abstrato de todas as mercadorias. Mas se o dinheiro dominou a sociedade enquanto representao da equivalncia central, isto , do carcter permutvel dos bens mltiplos cujo uso permanecia incomparvel, o espetculo o seu complemento moderno desenvolvido, onde a totalidade do mundo mercantil aparece em bloco como uma equivalncia geral ao que o conjunto da sociedade pode ser e fazer. O espetculo o dinheiro que se olha somente, pois nele j a totalidade do uso que se trocou com a totalidade da representao abstrata. O espetculo no somente o servidor do pseudo-uso, j, em si prprio, o pseudo-uso da vida.

    50 O resultado concentrado do trabalho

    social, o momento da abundncia econmica, torna-se aparente e submete toda a realidade aparncia, que agora seu produto. O capital no apenas o centro invisvel que dirige o modo de produo: a sua acumulao estende-o at periferia, sob a forma de objetos sensveis. Toda a vastido da sociedade o seu retrato.

    51 A vitria da economia autnoma

    representa, ao mesmo tempo, a sua derrota. As foras desencadeadas por ela suprimem a necessidade econmica que foi a base imutvel das sociedades antigas. Quando ela a substitui pela necessidade do desenvolvimento econmico infinito, ela no pode fazer outra coisa a no ser

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  • substituir a satisfao das primeiras necessidades, sumariamente reconhecidas, por uma fabricao ininterrupta de pseudo-necessidades que se reduzem nica pseudo-necessidade da manuteno do seu reino. A economia autnoma separa-se para sempre da necessidade profunda, na prpria medida em que sai do inconsciente social que dela dependia sem o saber. Tudo o que consciente se usa. O que inconsciente permanece inaltervel. Mas uma vez liberto, no cai por sua vez em runas? (Freud).

    52 Quando a sociedade descobre que ela

    depende da economia, a economia, de fato, depende dela. Esta potncia subterrnea, que cresceu at aparecer soberanamente, tambm perdeu o seu poderio. L onde estava o a(1) econmico deve vir o je(1). O sujeito no pode emergir seno da sociedade, isto , da luta que est nela prpria. A sua existncia possvel est suspensa nos resultados da luta de classes, que se revela como o produto e a produtora da fundao econmica da histria.

    53 A conscincia do desejo e o desejo da

    conscincia so um mesmo projeto que, sob a sua forma negativa, quer a abolio das classes, isto , a posse direta pelos trabalhadores de todos os momentos da sua atividade. O seu contrrio a sociedade do espetculo onde a mercadoria se contempla a si mesma num mundo que ela criou.

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  • CAPTULO III UNIDADE E DIVISO NA APARNCIA

    Na frente filosfica, desenrola-se no pas uma nova e animada polmica a propsito dos conceitos um divide-se em dois e dois fundem-se em um. Este debate uma luta entre os que so a favor e os que so contra a dialtica materialista, uma luta entre duas concepes de mundo: a concepo proletria e a concepo burguesa. Os que sustentam que um divide-se em dois a lei fundamental das coisas, mantm-se do lado da dialtica materialista; os que sustentam que a lei fundamental das coisas que dois fundem-se em um, so contra a dialtica materialista. Os dois lados traaram entre si uma ntida linha de demarcao e seus argumentos so diametralmente opostos. Esta polmica reflete, no plano ideolgico, a aguda e complexa luta de classes que se desenrola na China e no mundo. Bandeira Vermelha, Pequim, 21 de Setembro

    de 1964

    54 O espetculo, da mesma forma que a

    moderna sociedade, est ao mesmo tempo unido e dividido. Ele edifica a sua unidade sobre o dilaceramento. A contradio, quando emerge no espetculo, contradita pela inverso do seu sentido; de modo que a diviso mostrada unitria, enquanto que a unidade mostrada est dividida.

    55 A luta de poderes, que se constituram

    para a gesto do mesmo sistema socio-econmico, se desenrola como a contradio oficial, mas que pertence de fato unidade real; tanto em escala mundial como no interior de

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  • cada nao.

    56 As falsas lutas espetaculares das formas

    rivais do poder separado so, ao mesmo tempo, reais no que diz respeito ao desenvolvimento desigual e conflitual do sistema, aos interesses relativamente contraditrios das classes ou subdivises de classes que reconhecem o sistema, e definem sua prpria participao no seu poder. O desenvolvimento da economia mais avanada constitui o afrontamento de certas prioridades com outras. A gesto totalitria da economia por uma burocracia de Estado e a condio dos pases que se encontraram colocados na esfera de colonizao ou da semicolonizao so consideravel e particularmente definidas por modalidades da produo e do poder. Estas diversas aposies podem exprimir-se no espetculo, segundo critrios completamente diferentes, como formas de sociedades absolutamente distintas. Mas segundo sua realidade efetiva de setores particulares, a verdade da sua particularidade reside no sistema universal que as contm: no movimento nico que faz do planeta seu campo, o capitalismo.

    57 No somente pela sua hegemonia

    econmica que a sociedade portadora do espetculo domina as regies subdesenvolvidas. Domina-as enquanto sociedade do espetculo. L onde a base material ainda est ausente, a sociedade moderna j invadiu espetacularmente a superfcie social de cada continente. Ela define o programa de uma classe dirigente e

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  • preside sua constituio. Do mesmo modo que apresenta os pseudobens a cobiar, ela oferece aos revolucionrios locais os falsos modelos de revoluo. O prprio espetculo do poder burocrtico, que detm alguns dos pases industriais, faz precisamente parte do espetculo total, como sua pseudonegaco geral e seu suporte. Se o espetculo, olhado nas suas diversas localizaes, revela especializaes totalitrias da palavra e da administrao sociais, estas acabam por fundir-se, ao nvel do funcionamento global do sistema, numa diviso mundial das tarefas espetaculares.

    58 A diviso das tarefas espetaculares, que

    conserva a generalidade da ordem existente, conserva principalmente o plo dominante do seu desenvolvimento. A raiz do espetculo est no terreno da economia tornada abundante, e de l que vm os frutos que tendem finalmente a dominar o mercado espetacular, apesar das barreiras protecionistas ideolgico-policiais, e de qualquer espetculo local com pretenso autrquica.

    59 O movimento de banalizao que, sob as

    diverses cambiantes do espetculo, domina mundialmente a sociedade moderna, domina-a tambm em cada um dos pontos onde o consumo desenvolvido das mercadorias multiplicou na aparncia os papis a desempenhar e os objetos a escolher. As sobrevivncia da religio e da famlia que permanece a forma principal da herana do poder de classe , e, portanto, da represso

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  • moral que elas asseguram, podem combinar-se como uma mesma e nica coisa, com a afirmao redundante do gozo deste mundo, este mundo no sendo justamente produzido seno como pseudogozo que traz consigo a represso. A aceitao beata daquilo que existe pode juntar-se como uma mesma e nica coisa revolta puramente espetacular: pelo simples fato de que a prpria insatisfao se tornou uma mercadoria desde que a abundncia econmica se achou capaz de estender sua produo tratando de tal matria-prima.

    60 Ao concentrar na vedeta, a imagem de um

    possvel papel a desempenhar, a representao espetacular do homem vivo, concentra, pois, esta banalidade. A condio de vedeta a especializao do viver aparente, o objeto da identificao com a vida aparente sem profundidade, que deve compensar as infinitas subdivises das especializaes produtivas efetivamente vividas. As vedetas existem para figurar tipos variados de estilos de vida e de estilos de compreenso da sociedade, livres de se exercerem globalmente. Elas encarnam o resultado inacessvel do trabalho social, ao arremedar subprodutos deste trabalho que so magicamente transferidos acima dele como sua finalidade: o poder e as frias, a deciso e o consumo, que esto no comeo e no fim de um processo indiscutido. L, o poder governamental que se personaliza em pseudovedeta; aqui, a vedeta do consumo que se faz plebiscitar inserindo pseudopoder sobre o

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  • vivido. Mas, assim como estas atividades da vedeta no so realmente globais, elas no so variadas.

    61 O agente do espetculo posto em cena

    como vedeta o contrrio do indivduo, o inimigo do indivduo, tanto em si prprio como, evidentemente, nos outros. Passando no espetculo como modelo de identificao, renunciou a toda a qualidade autnoma, para ele prprio se identificar com a lei geral da obedincia ao curso das coisas. A vedeta do consumo, mesmo sendo exteriormente a representao de diferentes tipos de personalidade, mostra cada um destes tipos como tendo igualmente acesso totalidade do consumo e encontrando a, de igual modo, a sua felicidade. A vedeta da deciso deve possuir o stock completo daquilo que foi admitido como qualidades humanas. Assim, entre estas, as divergncias oficiais so anuladas pela semelhana oficial, que o pressuposto da sua excelncia em tudo. Khruchtchev tornara-se general para decidir a batalha de Kursk, no no campo de batalha, mas no vigsimo aniversrio, quando ele se achava senhor do Estado. Kennedy permanecera orador, ao ponto de pronunciar seu elogio sobre o prprio tmulo, visto que Thodore Sorensen continuava, nesse momento, a redigir para o sucessor os discursos naquele estilo que tanto tinha concorrido para fazer reconhecer a personalidade do desaparecido. As pessoas admirveis nas quais o sistema se personifica so bem conhecidas por no serem aquilo que so; tornaram-se

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  • grandes homens ao descer abaixo da realidade da mais pequena vida individual, e cada qual o sabe.

    62 A falsa escolha na abundncia

    espetacular, escolha que reside na justaposio de espetculos concorrenciais e solidrios, como na justaposio dos papis a desempenhar (principalmente significados e trazidos por objetos), ao mesmo tempo exclusiva e imbricada, desenvolve-se numa luta de qualidades fantasmagricas destinadas a apaixonar a adeso trivialidade quantitativa. Assim renascem falsas aposies arcaicas, regionalismos ou racismos encarregados de transfigurar em fantstica superioridade ontolgica a vulgaridade dos lugares hierrquicos no consumo. Deste modo, recompe-se a interminvel srie dos afrontamentos irrisrios, mobilizando um interesse subldico, que vai desde desporto competitivo at as eleies. L onde se instalou o consumo abundante, uma oposio espetacular principal entre a juventude e os adultos vem no primeiro plano dos papis falaciosos: porque em parte alguma existe o adulto senhor da sua vida, e a juventude, a mudana do que existe, no de modo nenhum propriedade destes homens, que so agora jovens, mas do sistema econmico, o dinamismo do capitalismo. So as coisas que reinam e que so jovens; que se deitam fora e se substituem a si prprias.

    63 a unidade da misria que se esconde

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  • sob as aposies espetaculares. Se formas diversas da mesma alienao se combatem sob as mscaras da escolha total, porque elas esto todas identificadas com contradies reais recalcadas. Conforme as necessidades do estado particular da misria, que ele desmente e mantm, o espetculo existe sob uma forma concentrada ou sob uma forma difusa. Nos dois casos, ele no mais do que uma imagem de unificao feliz, cercada de desolao e de pavor, no centro tranquilo da infelicidade.

    64 O espetacular concentrado pertence

    essencialmente ao capitalismo burocrtico, embora possa ser importado como tcnica do poder estatal sobre economias mistas mais atrasadas, ou em certos momentos de crise do capitalismo avanado. A prpria propriedade burocrtica efetivamente concentrada, no sentido de que o burocrata individual no tem relaes com a posse da economia global a no ser por intermdio da comunidade burocrtica, a no ser enquanto membro desta comunidade. Alm disso, a produo menos desenvolvida das mercadorias apresenta-se, tambm, sob uma forma concentrada: a mercadoria que a burocracia detm o trabalho social total, e o que ela revende sociedade a sua sobrevivncia em bloco. A ditadura da economia burocrtica no pode deixar s massas exploradas nenhuma margem notvel de escolha, visto que ela teve de escolher tudo por si prpria, e que toda outra escolha exterior, quer diga respeito alimentao ou msica, j a escolha da sua destruio completa. Ela

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  • deve acompanhar-se de uma violncia permanente. A imagem imposta do bem, no seu espetculo, recolhe a totalidade do que existe oficialmente e concentra-se normalmente num nico homem, que a garantia da sua coeso totalitria. Com esta vedeta absoluta, deve cada um identificar-se magicamente, ou desaparecer. Pois trata-se do senhor do seu no-consumo, e da imagem herica de um sentido aceitvel para a explorao absoluta, que na realidade a acumulao primitiva acelerada pelo terror. Na medida em que cada chins deve aprender Mao, e assim ser Mao, ele no tem mais nada para ser. L onde domina o espetacular concentrado domina tambm a polcia.

    65 O espetacular difuso acompanha a

    abundncia das mercadorias, o desenvolvimento no perturbado do capitalismo moderno. Aqui, cada mercadoria considerada isoladamente est justificada em nome da grandeza da produo da totalidade dos objetos, de que o espetculo um catlogo apologtico. Afirmaes inconciliveis amontoam-se na cena do espetculo unificado da economia abundante; do mesmo modo que diferentes mercadorias-vedetas sustentam, simultaneamente, os seus projetos contraditrios de ordenao da sociedade, onde o espetculo dos automveis implica uma circulao perfeita, que destri a parte velha da cidade, enquanto o espetculo da prpria cidade tem necessidade de bairros-museus. Portanto, a satisfao j problemtica, que reputada pertencer ao consumo do conjunto, est

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  • imediatamente falsificada pelo fato do consumidor real no poder receber diretamente mais do que uma sucesso de fragmentos desta felicidade mercantil, fragmentos dos quais a qualidade atribuda ao conjunto est evidentemente ausente.

    66 Cada mercadoria determinada luta para

    si prpria, no pode reconhecer as outras, pretende impor-se em toda a parte como se fosse a nica. O espetculo , ento, o canto pico deste afrontamento, que a queda de nenhuma lion poderia concluir. O espetculo no canta os homens e as suas armas, mas as mercadorias e as suas paixes. nesta luta cega que cada mercadoria, ao seguir a sua paixo, realiza, de fato, na inconscincia algo de mais elevado: o devir-mundo da mercadoria, que tambm o devir-mercadoria do mundo. Assim, por uma astcia da razo mercantil o particular da mercadoria gasta-se ao combater, enquanto a forma-mercadoria tende para a sua realizao absoluta.

    67 A satisfao, que a mercadoria abundante

    j no pode fornecer pelo uso, acaba sendo procurada no reconhecimento do seu valor enquanto mercadoria: com o uso da mercadoria bastando-se a si mesmo; e, para o consumidor, basta a efuso religiosa para com a liberdade soberana da mercadoria. As ondas de entusiasmo por um dado produto, apoiado e relanado por todos os meios de formao, propagam-se, assim, a grande velocidade. Um estilo de roupa surge de um filme; uma revista

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  • lana clubes que por sua vez lanam panplias diversas. O gadget(2) exprime os fatos de tal forma que, no momento em que a massa das mercadorias cai na aberrao, o prprio aberrante se tornar uma mercadoria especial. Nos porta-chaves publicitrios, por exemplo, que no mais so comprados, h dons suplementares que acompanham os objetos de prestigio vendidos ou resultantes da troca em sua prpria esfera. Nestes penduricalhos pode-se reconhecer a manifestao do abandono mstico transcendncia da mercadoria. Aquele que coleciona porta-chaves que acabam de ser fabricados para colecionadores acumula as indulgncias da mercadoria, um sinal glorioso da sua presena real entre os seus fiis. O homem reificado proclama a prova da sua intimidade com a mercadoria. Como nos arrebatamentos dos convulsionrios ou miraculados do velho fetichismo religioso, o fetichismo da mercadoria atinge momentos de excitao fervente. O nico uso que ainda se exprime aqui o uso fundamental da submisso.

    68 Sem dvida, a pseudo-necessidade

    imposta no consumo moderno no se ope a nenhuma necessidade ou desejo autntico, que no seja, ele prprio, modelado pela sociedade e pela sua histria. Mas a mercadoria abundante est l como a ruptura absoluta de um desenvolvimento orgnico das necessidades sociais. A sua acumulao mecnica liberta um artificial ilimitado, perante o qual o desejo vivo fica desarmado. A potncia cumulativa de um

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  • artificial independente conduz em toda parte falsificao da vida social.

    69 Na imagem da unificao feliz da

    sociedade pelo consumo, a diviso real est apenas suspensa at prxima no-completa realizao no consumvel. Cada produto particular que deve representar a esperana de um atalho fulgurante para aceder, enfim, terra prometida do consumo total, , por sua vez, apresentado cerimoniosamente como a singularidade decisiva. Mas como no caso da difuso instantnea das modas de nomes aparentemente aristocrticos que se vo encontrar usados por quase todos os indivduos da mesma idade, o objeto do qual se espera um poder singular no pde ser proposto devoo das massas seno porque ele foi tirado de um nmero de exemplares suficientemente grande para ser consumido massivamente. O carcter prestigioso deste qualquer produto no lhe vem seno de ter sido colocado por um momento no centro da vida social, como o mistrio revelado da finalidade da produo. O objeto, que era prestigioso no espetculo, torna-se vulgar no instante em que entra na casa do consumidor ao mesmo tempo que na casa de todos os outros. Ele revela demasiado tarde a sua pobreza essencial, que retira da misria da sua produo. Mas j um outro objeto que traz a justificao do sistema e a exigncia de ser reconhecido.

    70 A prpria impostura da satisfao deve

    denunciar-se ao substituir-se ao seguir a

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  • mudana dos produtos e das condies gerais da produo. Aquilo que afirmou, com o mais perfeito descaramento, a sua prpria excelncia definitiva muda no s no espetculo difuso, mas tambm no espetculo concentrado, onde apenas o sistema deve continuar: Estaline, enquanto mercadoria fora de moda, denunciado por aqueles mesmos que o impuseram. Cada nova mentira da publicidade tambm a confisso da sua mentira precedente. Cada derrocada de uma figura do poder totalitrio revela a comunidade ilusria que a aprovava unanimemente e que no era mais do que um aglomerado de solides sem iluses.

    71 O que o espetculo apresenta como

    perptuo fundado sobre a mudana, e deve mudar com a sua base. O espetculo absolutamente dogmtico e, ao mesmo tempo, no pode levar a nenhum dogma slido. Para ele nada pra; o estado que lhe natural e, todavia, o mais contrrio sua inclinao.

    72 A unidade irreal que o espetculo

    proclama a mscara da diviso de classe sobre a qual repousa a unidade real do modo de produo capitalista. O que obriga os produtores a participar na edificao do mundo tambm o que disso os afasta. A mesma coisa que relaciona os homens libertos nas suas limitaes locais e nacionais tambm aquilo que os distancia. O que obriga ao aprofundamento do racional tambm o que alimenta o racional da explorao hierrquica e da represso. O que constitui o poder abstrato

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  • da sociedade constitui a sua no-liberdade concreta.

    CAPTULO IV O PROLETARIADO COMO SUJEITO E COMO

    REPRESENTAO

    Direito igual a todos os bens e aos gozos deste mundo, destruio de toda a autoridade, negao de todo freio moral, essas coisas foram, no fundo, a razo de ser da insurreio de 18 de maro e a carta magna da temvel associao que lhe forneceu um exrcito.

    Inqurito parlamentar sobre a insurreio de 18 de Maro

    73 O movimento real, que suprime as

    condies acima, governa a sociedade desde a vitria econmica da burguesia, e de forma visvel desde que essa vitria se traduziu polticamente. O desenvolvimento das foras produtivas arrebentou com as antigas relaes de produo e toda ordem esttica se desfaz em p. Tudo o que era absoluto tornou-se histrico.

    74 Lanados na histria, devendo participar

    no trabalho e nas lutas que a constituem, os homens se vem obrigados a encarar suas relaes de uma maneira desiludida. Esta histria no tem um objeto distinto daquele que realiza por si mesma, embora a ltima viso metafsica inconsciente da poca histrica tenha encarado o progresso na produo, atravs do qual a histria se desenrolou, como o prprio objeto da histria. O sujeito da histria

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  • no pode ser seno o vivente produzindo-se a si mesmo, tomando-se senhor e possuidor do seu mundo que a histria, e sendo consciente de seu papel.

    75 Como uma nica corrente, a luta de

    classes se desenvolveu ao longo da poca revolucionria, inaugurada pela ascenso da burguesia, e pelo pensamento da histria, a dialtica, o pensamento que no pra a procura do sentido do sendo, mas que se eleva ao conhecimento da dissoluo de tudo o que ; e no movimento dissolve toda a separao.

    76 Hegel no interpreta o mundo, mas a

    transformao do mundo. Interpretando somente essa transformao, Hegel no mais do que o acabamento filosfico da filosofia. Ele quer compreender um mundo que se faz por si mesmo. Este pensamento histrico no outra coisa seno a conscincia que sempre chega tarde demais, e que enuncia a justificao post festum. Assim, ela no ultrapassa a separao seno no pensamento. O paradoxo, que consiste em restringir o sentido e a definio de toda a realidade ao seu acabamento histrico, resulta do simples fato do pensador das revolues burguesas dos sculos XVII e XVIII no ter procurado na sua filosofia outra coisa seno a reconciliao com seu resultado. Mesmo enquanto filosofia da revoluo burguesa, ela no exprime todo o processo desta revoluo, mas somente sua ltima concluso. Neste sentido, ela uma filosofia no da revoluo, mas da restaurao (Karl Korsch, Teses sobre

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  • Hegel e a revoluo). Hegel fez, em ltima instncia, o trabalho do filsofo, a glorificao do que existe, mas o que existia para ele j no podia ser outra coisa seno a totalidade do movimento histrico. A posio exterior do pensamento, sendo de fato mantida, no podia ser encoberta seno pela sua identificao a um projeto prvio do Esprito, heri absoluto que fez o que quis e que quis o que fez, e cuja plena realizao coincide com o presente. Assim, a filosofia que morre no pensamento da histria j no pode glorificar seu mundo seno renegando-o, porque para tomar a palavra -lhe necessrio supor acabada esta histria total qual ela tudo reduziu, encerrando a sesso do nico tribunal onde pode ser pronunciada a sentena da verdade.

    77 Quando o proletariado manifesta, pela

    sua prpria existncia em atos, que este pensamento da histria no foi esquecido, o desmentido da concluso a confirmao do mtodo.

    78 O pensamento da histria no pode ser

    salvo seno na forma de um pensamento prtico; e a prtica do proletariado como classe revolucionria no pode ser menos que sua conscincia histrica operando sobre a totalidade do seu mundo. Todas as correntes tericas do movimento operrio revolucionrio saram de um afrontamento crtico com o pensamento de Hegel, de Marx, assim como de Stirner e Bakunine.

    79

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  • O carter inseparvel entre teoria de Marx e o mtodo hegeliano por si s inseparvel do carter revolucionrio desta teoria, isto , da sua verdade. nisto que esta primeira relao foi geralmente ignorada ou mal compreendida, ou ainda denunciada como o fraco daquilo que se tornava falaciosamente uma doutrina marxista. Bernstein, em Socialismo terico e Social-democracia prtica, revela perfeitamente esta ligao do mtodo dialtico e da tomada de partido histrico ao deplorar as previses pouco cientficas do Manifesto de 1847 sobre a iminncia da revoluo proletria na Alemanha: Esta auto-sugesto histrica, to errada que qualquer visionrio poltico que aparecesse poderia encontrar melhor, seria incompreensvel num Marx, que poca tinha j seriamente estudado economia, se no se estivesse permeada pelo produto de um resto da dialtica antittica hegeliana, da qual Marx, tanto quanto Engels, nunca soube desfazer-se completamente. Naqueles tempos de efervescncia geral, isso foi-lhe ainda mais fatal.

    80 A inverso que Marx efetua, atravs de

    um salvamento por transferncia do pensamento das revolues burguesas, no consiste em substituir trivialmente pelo desenvolvimento materialista das foras produtivas o percurso do Esprito hegeliano, indo ao seu prprio encontro no tempo, a sua objetivao sendo idntica sua alienao, e as suas feridas histricas no deixando cicatrizes. A histria tornada real j no tem fim. Marx arruinou a posio separada de Hegel perante o

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  • que acontece, e a contemplao dum agente supremo exterior, qualquer que ele seja. A teoria j no tem a conhecer seno o que ela faz. , pelo contrrio, a contemplao do movimento da economia, no pensamento dominante da sociedade atual, que a herana no-reivindicativa da parte no-dialtica na tentativa hegeliana de um sistema circular: uma aprovao que perdeu a dimenso do conceito, e que j no tem necessidade dum hegelianismo para se justificar, porque o movimento que se trata de louvar j no seno um setor sem pensamento do mundo, cujo desenvolvimento mecnico domina efetivamente o todo. O projeto de Marx o de uma histria consciente. O quantitativo que sobrevm ao desenvolvimento cego das foras produtivas simplesmente econmicas deve transformar-se em apropriao histrica qualitativa. A crtica da economia poltica o primeiro ato deste fim de pr-histria: De todos os instrumentos de produo, o maior poder produtivo a prpria classe revolucionria.

    81 O que liga estreitamente a teoria de Marx

    ao pensamento cientfico a compreenso racional das foras que se exercem realmente na sociedade. Mas ela fundamentalmente um alm do pensamento cientfico, onde este no conservado seno sendo superado: trata-se de uma compreenso da luta, e de nenhum modo da lei. Ns s conhecemos uma cincia: a cincia da histria, diz A Ideologia Alem.

    82 A poca burguesa, que pretende fundar

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  • cientificamente a histria, negligencia o fato de que esta cincia disponvel teve, antes de mais nada, de ser ela prpria fundada historicamente com a economia. Inversamente, a histria no depende radicalmente deste conhecimento seno enquanto esta histria permanece histria econmica. Quanto do papel da histria na prpria economia o processo global que modifica os seus prprios dados cientficos de base pde ser, alis, neglicenciado pelo ponto de vista da observao cientfica, o que mostra a vaidade dos clculos socialistas que acreditavam ter estabelecido a periodicidade exata das crises; e desde que a interveno constante do Estado logrou compensar o efeito das tendncias crise, o mesmo gnero de raciocnio v neste equilbrio uma harmonia econmica definitiva. O projeto de superar a economia, o projeto de tomar posse da histria, se ele deve conhecer e trazer a si a cincia da sociedade, no pode, ele mesmo, ser cientfico. Nesse ltimo movimento, que cr dominar a histria presente atravs de um conhecimento cientfico, o ponto de vista revolucionrio permaneceu burgus.

    83 As correntes utpicas do socialismo,

    embora elas prprias fundadas historicamente na crtica da organizao social existente, podem ser justamente qualificadas de utpicas na medida em que recusam a histria isto , a luta real em curso, assim como o movimento do tempo para alm da perfeio inaltervel da sua imagem de sociedade feliz , mas no porque eles recusassem a cincia. Os

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  • pensadores utpicos so, pelo contrrio, inteiramente dominados pelo pensamento cientfico, tal como ele se tinha imposto nos sculos precedentes. Eles procuram o acabamento desse sistema racional geral: eles no se consideram de nenhum modo profetas desarmados, porque crem no poder social da demonstraro cientfica, e mesmo, no caso do saint-simonismo, na tomada do poder pela cincia. Como, diz Sombart, quereriam eles arrancar pela luta, aquilo que deveria ser provado? Contudo, a concepo cientfica dos utpicos no se estende ao conhecimento de que os grupos sociais tm interesses numa situao existente, que eles tem foras para mant-la, e, igualmente, formas de falsa-conscincia correspondentes a tais posies. Ela permanece, portanto, muito aqum da realidade histrica do desenvolvimento da prpria cincia, que se encontrou em grande parte orientada pela procura social resultante de tais fatores, que seleciona no s o que pode ser admitido, mas tambm o que pode ser procurado. Os socialistas utpicos, ao ficarem prisioneiros do modo de exposio da verdade cientfica, concebem esta verdade segundo a sua pura imagem abstrata, tal como a tinha visto impor-se um estgio muito anterior da sociedade. Como o notava Sorel, segundo o modelo da astronomia que os utpicos pensam descobrir e demonstrar as leis da sociedade. A harmonia por eles visada, hostil histria, decorre duma tentativa de aplicao sociedade da cincia menos dependente da histria. Ela tenta fazer-se reconhecer com a mesma inocncia experimental do newtonismo, e o

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  • destino feliz, constantemente postulado, desempenha na sua cincia social um papel anlogo ao que cabe inrcia na mecnica racional (Materiais para uma teoria do proletariado).

    84 O lado determinista-cientfico no

    pensamento de Marx foi justamente a brecha pela qual penetrou o processo de ideologizao, enquanto vivo, e ainda mais na herana terica deixada ao movimento operrio. A chegada do sujeito da histria ainda adiada, e a cincia histrica por excelncia, a economia, que tende cada vez mais a garantir a necessidade da sua prpria negao futura. Mas, deste modo, repelida para fora do campo da viso terica a prtica revolucionria que a nica verdade desta negao. Assim, importa estudar pacientemente o desenvolvimento econmico e nele admitir ainda, com uma tranquilidade hegeliana, a dor, o que no seu resultado permanece cemitrio das boas intenes. Descobre-se que agora, segundo a cincia das revolues, a conscincia chega sempre cedo demais, e dever ser ensinada. A histria no nos deu razo, a ns e a todos os que pensavam como ns. Ela mostrou claramente que o estado do desenvolvimento econmico do continente estava, ento, ainda bem longe de estar amadurecido..., dir Engels em 1895. Durante toda a sua vida, Marx manteve o ponto de vista unitrio da sua teoria, mas o enunciado da sua teoria colocou-se no terreno do pensamento dominante ao precisar-se, sob a forma de crticas de disciplinas

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  • particulares, principalmente a crtica da cincia fundamental da sociedade burguesa, a economia poltica. esta mutilao, ulteriormente aceita como definitiva, que constitui o marxismo.

    85 A carncia na teoria de Marx

    naturalmente a carncia da luta revolucionria do proletariado da sua poca. A classe operria no decretou a revoluo permanente, na Alemanha de 1848; a Comuna foi vencida pelo isolamento. A teoria revolucionria no pde, pois, atingir ainda a sua prpria existncia total. Reduzir-se a defend-la e a precis-la na separao do trabalho douto, no British Museum, implicava uma perda na prpria teoria. So precisamente as justificaes cientficas tiradas do futuro do desenvolvimento da classe operria, e a prtica organizacional combinada com estas justificaes, que se tornaro obstculos conscincia proletria num estgio mais avanado.

    86 Toda a insuficincia terica na defesa

    cientifica da revoluo proletria pode ser reduzida, tanto no contedo assim como na forma do enunciado, a uma identificao do proletariado com a burguesia, do ponto de vista da tomada revolucionria do poder.

    87 A tendncia a fundar uma demonstrao

    da legalidade cientfica do poder proletrio, com o argumento de experimentaes repetidas do passado, obscurece, desde o Manifesto, o pensamento histrico de Marx, ao faz-lo

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  • sustentar uma imagem linear do desenvolvimento dos modos de produo, impulsionando lutas de classes que terminariam, por sua vez, numa transformao revolucionria de toda sociedade ou pela mtua destruio das classes em luta. Mas na realidade observvel da histria, do mesmo modo que o modo de produo asitico, como Marx algures o constatava, conservou sua imobilidade apesar de todos os afrontamentos de classes. As jacqueries de servos nunca venceram os bares, nem as revoltas de escravos da Antiguidade foram vencidas pelos homens livres. O esquema linear perde de vista, antes de tudo, o fato de que a burguesia a nica classe revolucionria que jamais venceu; ao mesmo tempo que ela a nica para a qual o desenvolvimento da economia foi causa e consequncia do seu poder sobre a sociedade. A mesma simplificao conduziu Marx a negligenciar o papel econmico do Estado na gesto de uma sociedade de classes. Se a burguesia ascendente pareceu franquear a economia do Estado, somente na medida em que o Estado antigo se confundia com o instrumento de uma opresso de classe numa economia esttica. A burguesia desenvolveu o seu poderio econmico autnomo no perodo medieval de enfraquecimento do Estado, no momento de fragmentao feudal de poderes equilibrados. Mas o Estado moderno que, pelo mercantilismo, comeou a apoiar o desenvolvimento da burguesia, e que finalmente se tornou o seu Estado na hora do laisser faire, laisser passer, vai revelar-se ulteriormente dotado de um poder central na gesto calculada

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  • do processo econmico. Marx pde, no entanto, descrever no bonapartismo este esboo da burocracia estatal moderna, fuso do capital e do Estado, constituio de um poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma fora pblica organizada para a sujeio social, onde a burguesia renuncia a toda a vida histrica que no seja a sua reduo histria econmica das coisas, e se presta a ser condenada ao mesmo nada poltico que as outras classes. Aqui, esto j colocadas as bases sociopolticas do espetculo moderno, que, negativamente, define o proletariado como nico pretendente vida histrica.

    88 As duas nicas classes que correspondem

    efetivamente teoria de Marx, as duas classes puras s quais leva toda a anlise no Capital, a burguesia e o proletariado, so igualmente as duas nicas classes revolucionrias da histria, mas a ttulos diferentes: a revoluo burguesa est feita; a revoluo proletria um projeto, nascido na base da precedente revoluo, mas dela diferindo qualitativamente. Ao negligenciar a originalidade do papel histrico da burguesia encobre-se a originalidade concreta deste projeto proletrio, que nada pode atingir seno ostentando as suas prprias cores e conhecendo a imensidade das suas tarefas. A burguesia veio ao poder porque a classe da economia em desenvolvimento. O proletariado no pode ele prprio ser o poder, seno tornando-se a classe da conscincia. O amadurecimento das foras produtivas no pode garantir um tal poder, mesmo pelo desvio

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  • da despossesso crescente que traz consigo. A tomada jacobina do Estado no pode ser um instrumento seu. Nenhuma ideologia lhe pode servir para disfarar fins parciais em fins gerais, porque ele no pode conservar nenhuma realidade parcial que seja efetivamente sua.

    89 Se Marx, num perodo determinado da

    sua participao na luta do proletariado, esperou demasiado da previso cientfica, ao ponto de criar a base intelectual das iluses do economismo, sabe-se que a tal no sucumbiu pessoalmente. Numa carta bem conhecida, de 7 de Dezembro de 1867, acompanhando um artigo onde ele prprio critica O Capital, artigo que Engels devia fazer passar na Imprensa como se emanasse de um adversrio, Marx exps claramente o limite da sua prpria cincia: ... A tendncia subjetiva do autor (que lhe impunham talvez a sua posio poltica e o seu passado), isto , a maneira como ele apresenta aos outros o resultado ltimo do movimento atual, do processo social atual, no tem nenhuma relao com a sua anlise real. Assim Marx, ao denunciar ele prprio as concluses tendenciosas da sua anlise objetiva, e pela ironia do talvez relativo s escolhas extracientficas que se lhe teriam imposto, mostra ao mesmo tempo a chave metodolgica da fuso dos dois aspectos.

    90 na prpria luta histrica que preciso

    realizar a fuso do conhecimento e da ao, de tal modo que cada um destes termos coloque no outro a garantia da sua verdade. A constituio

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  • da classe proletria em sujeito a organizao das lutas revolucionrias e a organizao da sociedade no momento revolucionrio: aqui que devem existir as condies prticas da conscincia, nas quais a teoria da prxis se confirma tomando-se teoria prtica. Contudo, esta questo central da organizao foi a menos considerada pela teoria revolucionria na poca em que se fundava o movimento operrio, isto , quando esta teoria possua ainda o carcter unitrio vindo do pensamento da histria (e que ela se tinha justamente dado por tarefa desenvolver at uma prtica histrica unitria). , pelo contrrio, o lugar da inconsequncia para esta teoria, ao admitir o retomar de mtodos de aplicao estatais e hierrquicos copiados da revoluo burguesa. As formas de organizao do movimento operrio desenvolvidas sobre esta renncia da teoria tenderam por sua vez a interditar a manuteno de uma teoria unitria, dissolvendo-a em diversos conhecimentos especializados e parcelares. Esta alienao ideolgica da teoria j no pode, ento, reconhecer a verificao prtica do pensamento histrico unitrio que ela traiu, quando uma tal verificao surge na luta espontnea dos operrios; ela pode somente concorrer para reprimir-lhe a manifestao e a memria. Todavia, estas formas histricas aparecidas na luta so justamente o meio prtico que faltava teoria para que ela fosse verdadeira. Elas so uma exigncia da teoria, mas que no tinha sido formulada teoricamente. O soviete no era uma descoberta da teoria. E a mais alta verdade terica da Associao Internacional dos

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  • Trabalhadores, era j a sua prpria existncia na prtica.

    91 Os primeiros sucessos da luta da

    Internacional levavam-na a libertar-se das influncias confusas da ideologia dominante que nela subsistiam. Mas a derrota e a represso que ela cedo encontrar fizeram passar ao primeiro plano um conflito entre duas concepes da revoluo proletria, ambas contendo uma dimenso autoritria, pela qual a auto-emancipao consciente da classe abandonada. Com efeito, a querela tornada irreconcilivel entre os marxistas e os bakuninistas era dupla, tendo ao mesmo tempo por objeto o poder na sociedade revolucionria e a organizao presente do movimento, e ao passar dum ao outro destes aspectos, as posies dos adversrios invertem-se. Bakunine combatia a iluso de uma abolio das classes pelo uso autoritrio do poder estatal, prevendo a reconstituio de uma classe dominante burocrtica e a ditadura dos mais sbios, ou dos que sero reputados como tal. Marx, que acreditava que um amadurecimento inseparvel das contradies econmicas e da educao democrtica dos operrios reduziria o papel de um Estado proletrio a uma simples fase de legalizao de novas relaes sociais, impondo-se objetivamente, denunciava em Bakunine e seus partidrios o autoritarismo duma elite conspirativa que se tinha deliberadamente colocado acima da Internacional, e que formulava o extravagante desgnio de impor sociedade a ditadura irresponsvel dos mais

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  • revolucionrios, ou dos que se teriam a si prprios designado como tal. Bakunine recrutava efetivamente os seus partidrios sob tal perspectiva: Pilotos invisveis no meio da tempestade popular, ns devemos dirigi-la, no por um poder ostensivo mas pela ditadura coletiva de todos os aliados. Ditadura sem faixa, sem ttulo, sem direito oficial, e quanto mais poderosa menos ter aparncias de poder. Assim se opuseram duas ideologias da revoluo operria, contendo cada uma delas uma crtica parcialmente verdadeira, mas perdendo a unidade do pensamento da histria e instituindo-se, a si prprias, em autoridades ideolgicas. Organizaes poderosas, como a social-democracia alem e a Federao Anarquista Ibrica, serviram fielmente uma e outra destas ideologias; e em toda parte o resultado foi grandemente diferente do que era desejado.

    92 O fato de olhar a finalidade da revoluo

    proletria como algo imediatamente presente constitui, ao mesmo tempo, a grandeza e a fraqueza da luta anarquista real (porque nas suas variantes individualistas, as pretenses do anarquismo permanecem irrisrias). Do ponto de vista do pensamento histrico da moderna luta de classes, o anarquismo coletivista retm unicamente sua concluso, e sua exigncia absoluta desta concluso traduz-se igualmente no seu desprezo deliberado pelo mtodo. Assim, sua crtica da luta poltica permaneceu abstrata, enquanto sua escolha da luta econmica no se afirmou, ela prpria, seno em funo da iluso

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  • de uma soluo definitiva arrancada de uma s vez nesse terreno, no dia da greve geral ou da insurreio. Os anarquistas tm um ideal a realizar. O anarquismo a negao ainda ideolgica do Estado e das classes, isto , das prprias condies sociais da ideologia separada. a ideologia da pura liberdade que iguala tudo e que afasta toda a ideia do mal histrico. Este ponto de vista da fuso de todas as exigncias parciais deu ao anarquismo o mrito de representar a recusa das condies existentes no conjunto da vida, e no em torno de uma especializao crtica privilegiada, mas esta fuso, ao ser considerada no absoluto, segundo o capricho individual, antes da sua realizao efetiva condenou tambm o anarquismo a uma incoerncia demasiado fcil de constatar. O anarquismo no tem seno a redizer e a repor em jogo, em cada luta, a sua simples concluso total, porque esta primeira concluso era desde a origem identificada com a concretizao integral do movimento. Bakunine podia pois escrever em 1873, ao abandonar a Federao do Jura: Nos ltimos nove anos desenvolvemos no seio da Internacional mais ideias do que o necessrio para salvar o mundo, [como] se as ideias por elas mesmas pudessem salv-lo, e desafio quem quer que seja a inventar uma nova. O tempo j no est para ideias, mas para fatos e atos. Sem dvida, esta concepo conserva do pensamento histrico do proletariado a certeza de que as ideias devem tornar-se prticas, mas ela abandona o terreno histrico ao supor que as formas adequadas a esta passagem prtica j esto encontradas e no variaro mais.

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  • 93 Os anarquistas, que se distinguem

    explicitamente do conjunto do movimento operrio pela sua convico ideolgica, vo reproduzir entre si esta separao das competncias, ao fornecer um terreno favorvel dominao informal, sobre toda a organizao anarquista, pelos propagandistas e defensores da sua prpria ideologia, especialistas, via de regra, medocres na medida em que sua atividade intelectual se reduz principalmente repetio de algumas verdades definitivas. O respeito ideolgico da unanimidade na deciso favoreceu antes de mais nada a autoridade incontrolada, na prpria organizao, dos especialistas da liberdade; e o anarquismo revolucionrio espera do povo liberto o mesmo gnero de unanimidade, obtida pelos mesmos meios. De resto, a recusa de considerar a oposio das condies entre uma minoria agrupada na luta atual e a sociedade dos indivduos livres alimentou uma permanente separao dos anarquistas no momento da deciso comum, como o mostra o exemplo de uma infinidade de insurreies anarquistas na Espanha, limitadas e esmagadas no plano local.

    94 A iluso, sustentada mais ou menos

    explicitamente no anarquismo autntico, a iminncia permanente de uma revoluo que dever dar razo ideologia, e ao modo de organizao prtico derivado da ideologia, ao realizar-se instantaneamente. O anarquismo conduziu realmente, em 1936, uma revoluo social e o esboo, o mais avanado de todos os

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  • tempos, de um poder proletrio. Nesta circunstncia, preciso ainda notar, por um lado, que o sinal de uma insurreio geral tinha sido imposto pelo pronunciamento do exrcito. Por outro lado, na medida em que esta revoluo no se concluiu nos primeiros dias, pela existncia de um poder franquista em metade do pas, apoiado fortemente pelo estrangeiro no momento em que o resto do movimento proletrio internacional j estava vencido, e pela sobrevivncia das foras burguesas ou de outros partidos operrios estatalistas no campo da Repblica, o movimento anarquista organizado mostrou-se incapaz de alargar as meias-vitrias da revoluo, e at mesmo de defend-las. Os seus reconhecidos chefes tornaram-se ministros e refns do Estado burgus que destrua a revoluo para perder a guerra civil.

    95 O marxismo ortodoxo da II Internacional

    a ideologia cientfica da revoluo socialista, que identifica toda sua verdade ao processo objetivo na economia e ao progresso dum reconhecimento desta necessidade na classe operria educada pela organizao. Esta ideologia reencontra a confiana na demonstrao pedaggica que tinha caracterizado o socialismo utpico, mas dotado de uma referncia contemplativa do curso da histria: porm, tal atitude perdeu tanto a dimenso hegeliana de uma histria total como perdeu a imagem imvel da totalidade presente na crtica utpica (no mais alto grau, em Fourier).

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  • de tal atitude cientfica, que no podia fazer mais que relanar simetricamente escolhas ticas, que procedem as tolices de Hilferding quando este afirma que o fato de reconhecer a necessidade do socialismo no d uma indicao sobre qual atitude prtica adotar. Porque uma coisa reconhecer uma necessidade, e outra pr-se ao servio desta necessidade (Capital financeiro). Aqueles que no reconheceram que o pensamento unitrio da histria, para Marx e para o proletariado revolucionrio, no era em nada distinto de uma atitude prtica a adotar, deviam normalmente ser vtimas da prtica que tinham simultaneamente adotado.

    96 A ideologia da organizao social-

    democrata submetia-a ao poder dos professores que educavam a classe operria, e a forma de organizao adotada era a forma adequada a esta aprendizagem passiva. A participao dos socialistas da II Internacional nas lutas polticas e econmicas era certamente concreta, mas profundamente no crtica. Ela era conduzida, em nome da iluso revolucionria, segundo uma prtica manifestamente reformista. Assim, a ideologia revolucionria devia ser despedaada pelo prprio sucesso daqueles que consigo a traziam. A separao dos deputados e dos jornalistas no movimento arrastava para o modo de vida burgus aqueles mesmos que eram recrutados entre os intelectuais burgueses. A burocracia sindical constitua corretores da fora de trabalho, vendendo como mercadoria ao seu justo preo aqueles mesmos que eram recrutados a partir das lutas dos

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  • operrios industriais e deles extrados. Para que a atividade de todos eles conservasse algo de revolucionrio, teria sido necessrio que o capitalismo se encontrasse oportunamente incapaz de suportar economicamente este reformismo que politicamente ele tolerava na sua agitao legalista. A incompatibilidade que a sua cincia garantia era a cada instante desmentida pela histria.

    97 Esta contradio, cuja realidade

    Bernstein, por ser o social-democrata mais afastado da ideologia poltica e o mais francamente ligado metodologia da cincia burguesa, teve a honestidade de querer mostrar e o movimento reformista dos operrios ingleses, ao prescindir da ideologia revolucionria, tinha-o mostrado tambm no devia, contudo, ser demonstrada sem rplica seno pelo prprio desenvolvimento histrico. Bernstein, embora cheio de iluses quanto ao resto, tinha negado que uma crise da produo capitalista viesse miraculosamente obrigar os socialistas ao poder que no queriam herdar da revoluo seno por esta legtima sagrao. O momento de profunda perturbao social que surgiu com a pr