DIALETICA_MALANDRAGEM

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    DIALTICA DA MALANDRAGEM ANTONIO CANDIDOEm 1894 Jos Verssimo definiu as Memrias de um sargento demilcias como romance de costumes que, pelo fato de descreverlugares e cenas do Rio de Janeiro no tempo de D. Joo VI, secaracterizaria por uma espcie de realismo antecipado; emconseqncia, falava bem dele, como homem de um momento

    dominado pela esttica do Naturalismo.Praticamente nada se disse de novo at 1941, quando Mrio deAndrade reorientou a crtica, negando que fosse um precursor. Seriaantes um continuador atrasado, um romance de tipo marginal,afastado da corrente mdia das literaturas, como os de Apuleio ePetrnio, na Antigidade, ou o Lazarillo de Tormes, no Renascimento -,todos com personagens anti-hericos que so modalidades de pcaros.

    Uma terceira etapa foi aberta em 1956 por Darcy Damasceno, queabordou a anlise estilstica, tendo como pano de fundo uma excelenterejeio de posies anteriores:

    No h que considerar-se picaresco um livro pelo fato de nele haverum pcaro mais adjetival que substantival, mormente se a este livrofaltam as marcas peculiares do gnero picaresco; nem histrico seriaele, ainda que certa dose de veracidade haja servido criao detipos ou evocao de poca; menos ainda realista, quando a leituramais atenta nos torna flagrante o predomnio do imaginoso e doimprovisado sobre a retratao ou a reconstituio histrica.

    E depois de mostrar com pertinncia como so reduzidas as indicaesdocumentrias, prefere o designativo de romance de costumes. (1)

    Concordo com estas opinies oportunas e penetrantes (infelizmentemuito breves), que podem servir de ponto de partida para o presenteensaio. A nica dvida seria referente ao realismo, e talvez nem esta,se Darcy Damasceno estiver se referindo especificamente ao conceitousual das classificaes literrias, que assim designam o que ocorreuna segunda metade do sculo XIX, enquanto o meu intuito caracterizar uma modalidade bastante peculiar, que se manifesta nolivro de Manual Antnio de Almeida.

    1. Romance picaresco?

    O ponto de vista segundo o qual ele um romance picaresco, muitodifundido a partir de Mrio de Andrade (que todavia no diz bem isto),

    recebeu um cunho de aparente rigor da parte de Josu Montello, quepensa ter encontrado as suas matrizes em obras como La vida deLazarillo de Tormes (1554) e Vida y hechos de Estebanillo Gonzlez(1645). (2)

    Se fosse exato, estaria resolvido o problema da filiao e, com ele,grande parte do de caracterizao crtica. Mas na verdade JosuMontello fundou-se numa petio de princpio, tomando como provadoo que restava provar, isto , que as Memrias so um romance

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    picaresco. A partir da, supervalorizou algumas analogias fugazes eachou o que tencionava achar, mas no o que um cotejo objetivo teriamostrado. De fato, a anlise da picaresca espanhola faz ver queaqueles dois livros nada motivaram de significativo no de ManuelAntnio de Almeida, embora seja possvel que este haja recebidosugestes marginais de algum outro romance espanhol ou feito maneira dos espanhis, como ocorreu por toda a Europa no sculo XVIIe parte do XVIII. O que se pode fazer de mais garantido comparar ascaractersticas do "nosso memorando" (como diz o romancista do seupersonagem) com as do tpico heri ou anti-heri picaresco,minunciosamente levantadas por Chandler na sua obra sobre oassunto (3).

    Em geral, o prprio pcaro narra as suas aventuras, o que fecha a visoda realidade em torno do seu ngulo restrito; e esta voz na primeirapessoa um dos encantos para o leitor, transmitindo uma falsacandura que o autor cria habilmente e j recurso psicolgico decaracterizao. Ora, o livro de Manuel Antnio contado na terceira

    pessoa por um narrador (ngulo primrio) que no se identifica e variacom desenvoltura o ngulo secundrio -, trazendo-o de Leonardo Pai aLeonardo Filho, deste ao Compadre ou Comadre, depois Cigana eassim por diante, de maneira a estabelecer uma viso dinmica damatria narrada. Sob este aspecto o heri um personagem como osoutros, apesar de preferencial; e no o instituidor ou a ocasio parainstituir o mundo fictcio, como o Lazarillo, Estebanillo, Guzman deAlfarache, a Pcara Justina ou Gil Braz de Santilhana.

    Em compensao, Leonardo Filho tem com os narradores picarescosalgumas afinidades: como eles, de origem humilde e, como algunsdeles, irregular, "filho de uma pisadela e um belisco". Ainda comoeles largado no mundo, mas no abandonado, como foram o Lazarilloou o Buscn, de Quevedo; pelo contrrio, mal os pais o deixam odestino lhe d um pai muito melhor na pessoa do Compadre, o bombarbeiro que toma conta dele para o resto da vida e o abriga daadversidade material. Tanto assim que lhe falta um trao bsico dopcaro: o choque spero com a realidade, que leva mentira, dissimulao, ao roubo, e constitui a maior desculpa das "picardias".Na origem o pcaro ingnuo; a brutalidade da vida que aos poucoso vai tornando esperto e sem escrpulos, quase como defesa; masLeonardo, bem abrigado pelo Padrinho, nasce malandro feito, como sese tratasse de uma qualidade essencial, no um atributo adquirido porfora das circunstncias.

    Mais ainda: a humildade da origem e o desamparo da sorte setraduzem necessariamente, para o protagonista dos romancesespanhis e os que os seguiram de perto, na condio servil. Emalgum momento da sua carreira ele criado, de tal modo que j sesups erradamente que a sua designao proviesse da -, o termo"pcaro" significando um tipo inferior de servo, sobretudo ajudante decozinha, sujo e esfarrapado. E do fato de ser criado que decorre umprincpio importante na estruturao do romance, pois passando deamo a amo o pcaro vai-se movendo, mudando de ambiente, variando

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    a experincia e vendo a sociedade no conjunto. Mas o nosso Leonardofica to longe da condio servil, que o Padrinho se ofende quando aMadrinha sugere que lhe mande ensinar um ofcio manual; oexcelente homem quer v-lo padre ou formado em direito, e nestesentido procura encaminh-lo, livrando-o de qualquer necessidade deganhar a vida. Por isso, nunca aparece seriamente o problema dasubsistncia, mesmo quando Leonardo passa de raspo e quase como

    jogo pelo servio das cozinhas reais, o que o aproximaria vagamenteda condio de pcaro no sentido acima referido.

    Semelhante a vrios pcaros, ele amvel e risonho, espontneo nosatos e estreitamente aderente aos fatos, que o vo rolando pela vida.Isto o submete, como a eles, a uma espcie de causalidade externa, demotivao que vem das circunstncias e torna o personagem umttere, esvaziado de lastro psicolgico e caracterizado apenas pelossolavancos do enredo. O sentimento de um destino que motiva aconduta vivo nas Memrias, onde a Comadre se refere sina queacompanha o afilhado, acumulando contratempos e desmanchando a

    cada instante as combinaes favorveis.Como os pcaros, ele vive um pouco ao sabor da sorte, sem plano nemreflexo; mas ao contrrio deles nada aprende com a experincia. Defato, um elemento importante da picaresca essa espcie deaprendizagem que amadurece e faz o protagonista recapitular a vida luz de uma filosofia desencantada. Mais coerente com a vocao defantoche, Leonardo nada conclui, nada aprende; e o fato de ser o livronarrado na terceira pessoa facilita esta inconscincia, pois cabe aonarrador fazer as poucas reflexes morais, no geral levemente cnicase em todo o caso otimistas, ao contrrio do que ocorre com o sarcasmocido e o relativo pessimismo dos romances picarescos. O malandroespanhol termina sempre, ou numa resignada mediocridade, aceitacomo abrigo depois de tanta agitao, ou mais miservel do quenunca, no universo do desengano e da desiluso, que marcafortemente a literatura espanhola do Sculo de Ouro.

    Curtido pela vida, acuado e batido, ele no tem sentimentos, masapenas reflexos de ataque e defesa. Traindo os amigos, enganando ospatres, no tem linha de conduta, no ama e, se vier a casar, casarpor interesse, disposto inclusive s acomodaes mais foscas, como opobre Lazarillo. O nosso Leonardo, embora desprovido de paixo, temsentimentos mais sinceros neste terreno, e em parte o livro a histriado seu amor cheio de obstculos pela sonsa Luisinha, com quemtermina casado, depois de promovido, reformado e dono de cinco

    heranas que lhe vieram cair nas mos sem que movesse uma palha.No sendo nenhum modelo de virtude, leal e chega a comprometer-se seriamente para no lesar o malandro Teotnio. Um antipcaro,portanto, nestas e outras circunstncias, como a de no procurar e noagradar os "superiores", que constituem a meta suprema do malandroespanhol.

    Se o protagonista for assim, de esperar que o livro, tomado noconjunto, apresente a mesma oscilao de algumas analogias e muitas

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    diferenas em relao aos romances picarescos.

    Estes so dominados pelo senso do espao fsico e social, pois o pcaroanda por diversos lugares e entra em contacto com vrios grupos ecamadas, no sendo raros os destinos internacionais, como o do"galego-romano" Estebanillo. O fato de ser um aventureiro

    desclassificado se traduz pela mudana de condio, cujo tipoelementar, estabelecido no primeiro em data, o Lazarillo de Tormes, a mudana de patres. Criado de mendigo, criado de escudeiro pobre,criado de padre, o pequeno vagabundo percorre a sociedade, cujostipos vo surgindo e se completando, de maneira a tornar o livo umasondagem dos grupos sociais e seus costumes -, coisa que prosseguiuna tradio do romance picaresco, fazendo dele um dos modelos dafico realista moderna. Embora defomado pelo ngulo satrico, o seuponto de vista descobre a sociedade na variao dos lugares, dosgrupos, das classes -, estas, vistas freqentemente das inferiores paraas superiores, em obedincia ao sentido da eventual ascenso dopcaro. Nessa lenta panormica, um moralismo corriqueiro para

    terminar, mas pouca ou nenhuma inteno realmente moral, apesardos protestos constantes com que o narrador procura dar um cunhoexemplar s suas malandragens. E em relao s mulheres, acentuadamisoginia. Embora no sejam licenciosos, como tambm no sosentimentais, os romances picarescos so freqentemente obscenos eusam vontade o palavro, em correspondncia com os meiosdescritos.

    O livro de Manuel Antnio de vocabulrio limpo, no tem qualquerbaixeza de expresso e, quando entra pela zona da licenciosidade, discreto, ou de tal modo caricatural que o elemento irregular se desfazem bom humor -, como notadamente o caso da seqncia que narrao infortnio do padre surpreendido em trajes menores no quarto daCigana. Mas vimos que tem uma certa tintura de sentimento amoroso,apesar de descrito com ironia oportuna; e a stira, visvel por todo ele,nunca abrange o conjunto da sociedade, pois ao contrrio da picarescao seu campo restrito.

    2. Romance malandro

    Digamos ento que Leonardo no um pcaro, sado da tradioespanhola; mas o primeiro grande malandro que entra na novelsticabrasileira, vindo de uma tradio quase folclrica e correspondendo,mais do que se costuma dizer, a certa atmosfera cmica e popularescade seu tempo, no Brasil. Malandro que seria elevado categoria desmbolo por Mrio de Andrade em Macunama (4) e que Manuel

    Antnio com certeza plasmou espontaneamente, ao aderir com ainteligncia e a afetividade ao tom popular das histrias que, segundoa tradio, ouviu de um companheiro de jornal, antigo sargentocomandado pelo major Vidigal de verdade.

    O malandro, como o pcaro, espcie de um gnero mais amplo deaventureiro astucioso, comum a todos os folclores. J notamos, comefeito, que Leonardo pratica a astcia pela astcia (mesmo quando elatem por finalidade saf-lo de uma enrascada), manifestando um amor

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    pelo jogo-em-si que o afasta do pragmatismo dos pcaros, cujamalandragem visa quase sempre ao proveito ou a um problemaconcreto, lesando freqentemente terceiros na sua soluo. Essagratuidade aproxima "o nosso memorando" do tricksterimemorial, atde suas encarnaes zoomrficas - macaco, raposa, jabuti -, delefazendo, menos um "anti-heri" do que uma criao que talvez possuatraos de heris populares, como Pedro Malasarte. admissvel quemodelos eruditos tenham infludo em sua elaborao; mas o queparece predominar no livro o dinamismo prprio dos astuciosos dehistria popular. Por isso, Mrio de Andrade estava certo ao dizer quenas Memrias no h realismo em sentido moderno; o que nelas seacha algo mais vasto e intemporal, prprio da comicidadepopularesca.

    Esta costela originalmente folclrica talvez explique certasmanifestaes de cunho arquetpico -, inclusive o comeo pela frasepadro dos contos da carochinha: "Em no tempo do Rei". Ao mesmouniverso pertenceria a constelao de fadas boas (Padrinho e

    Madrinha) e a espcie de fada agourenta que a Vizinha, todoscercando o bero do menino e servindo aos desgnios da sorte, a "sina"invocada mais de uma vez no curso da narrativa. Pertenceria tambmo anonimato de vrios personagens, importantes e secundrios,designados pela profisso ou a posio no grupo, o que de um lado osdissolve em categorias sociais tpicas, mas de outro os aproxima deparadigmas lendrios e da indeterminao da fbula, onde h sempre"um rei", "um homem", "um lenhador", "a mulher do soldado" etc.Pertenceria, ainda, o major Vidigal, que por baixo da fardahistoricamente documentada uma espcie de bicho-papo,devorador da gente alegre. Pertenceria, finalmente, a curiosaduplicao que estabelece dois protagonistas, Leonardo Pai e Leonardo

    Filho, no apenas contrastando com a forte unidade estrutural dosanti-heris picarescos (ao mesmo tempo nascedouros e alvos danarrativa), mas revelando mais um lao com os modelos populares.

    Com efeito, pai e filho materializam as duas faces do trickster: a tolice,que afinal se revela salvadora, e a esperteza, que muitas vezesredunda em desastre, ao menos provisrio. Sob este aspecto, omeirinho meio bobo que acaba com a vida em ordem, e seu filhoesperto que por pouco se enrosca, seriam uma espcie de projeoinvertida, no plano das aventuras, da famlia didtica de Bertoldo, queGiulio Cesare Della Croce e seguidores popularizaram a partir da Itliadesde o sculo XVI, inspirados em remotas fontes orientais. No custadizer que nos catlogos de livraria do tempo de Manuel Antnioaparecem vrias edies e arranjos da famosa trempe, como:Astciasde Bertoldo; Simplicidadesde Bertoldinho, filho do sublime e astutoBertoldo, e agudas respostas de Marcolfa, sua me; Vida deCacasseno, filho do simples Bertoldinho e neto do astuto Bertoldo. NasMemrias de um sargento de milcias, livro culto e ligado apenasremotamente a arqutipos folclricos, simplrio o pai e esperto ofilho, no havendo alm disso qualquer vestgio de adivinhaognmica, prpria da srie dos Bertoldos e d'A Donzela Teodora, outra

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    sabe-tudo muito viva em nosso populrio.

    Como no h motivo para contestar a tradio, segundo a qual amatria do livro foi dada, ao menos em parte, pelos relatos de umvelho sargento de polcia, (5) podemos admitir que o primeiro nvel deestilizao consistiu, da parte do romancista, em extrair dos fatos e

    das pessoas um certo elemento de generalidade, que os aproximoudos paradigmas subjacentes s narrativas folclricas. Assim, porexemplo, um determinado oficial de justia, chamado ou no LeonardoPataca, foi desbastado, simplificado, reordenado e submetido a umacunhagem fictcia, que o afastou da sua carne e do seu osso, paratransform-lo em ocorrncia particular do amoroso desastrado e, maislonge, do bobalho universal das piadas. Noutras palavras, a operaoinicial do ficcionista teria consistido em reduzir os fatos e os indivduosa situaes e tipos gerais, provavelmente porque o seu carter popularpermitia lanar uma ponte fcil para o universo do folclore, fazendo atradio anedtica assumir a solidez das tradies populares.

    Poderamos, ento, dizer que a integridade das Memrias feita pelaassociao ntima entre um plano voluntrio (a representao doscostumes e cenas do Rio) e um plano talvez na maior parteinvoluntrio (traos semi-folclricos, manifestados sobretudo no teordos atos e das peripcias). Como ingrediente, um realismoespontneo e corriqueiro, mas baseado na intuio da dinmica socialdo Brasil na primeira metade do sculo XIX. E nisto resideprovavelmente o segredo da sua fora e da sua projeo no tempo.

    H tambm, claro, eventuais influncias eruditas e traos que oaparentam s correntes literrias que, naquele momento, formavamcom as tendncias peculiares ao Romantismo um desenho maiscomplicado do que parece a quem ler as classificaes esquemticas.

    Por este lado que ele se entronca em linhas de fora da literaturabrasileira de ento, que o esclarecem tanto ou mais do que ainvocao de modelos estrangeiros e mesmo de um substratopopularesco.

    De fato, para compreender um livro como as Memrias convmlembrar a sua afinidade com a produo cmica e satrica da Regnciae primeiros anos do Segundo Reinado -, no jornalismo, na poesia, nodesenho, no teatro. Escritas de 1852 a 1853, elas seguem umatendncia manifestada desde o decnio de1830, quando comeam aflorescer jornalzinhos cmicos e satricos, como O Carapuceiro, doPadre Lopes Gama (1832-34; 1837-43; 1847) e O Novo Carapuceiro, deGama e Castro (1841-42). Ambos se ocupavamm de anlise poltica e

    moral por meio da stira dos costumes e retratos de tiposcaractersticos, dissolvendo a individualidade na categoria, como tendea fazer Manuel Antnio. Esta linha que vem de La Bruyre, mastambm do nosso velho poema cmico, sobretudo do exemplo deNicolau Tolentino, manifestava-se ainda na verdadeira mania do retratosatrico, descrevendo os tipos da vida quotidiana, que, sob o nome de"fisiologia"(por "psicologia"), pupulou na imprensa francesa entre 1830e 1850 e dela passou nossa. Embora Balzac a tenha cultivado com

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    grande talento, no preciso recorrer sua influncia, como faz umestudioso recente(6), para encontrar a fonte eventual de uma modaque era po quotidiano dos jornais.

    Pela mesma altura, surge a caricatura poltica, nos primeirosdesenhos de Arajo Porto-Alegre (1837) (7), e de 1838 a 1849

    desenvolve-se a atividade de Martins Pena, cuja concepo da vida eda composio literria se aproxima da de Manuel Antnio -, com amesma leveza de mo, o mesmo sentido penetrante dos traos tpicos,a mesma suspenso de juzo moral. O amador de teatro que foi onosso romancista no poderia ter ficado margem de uma tendnciato bem representada; e que apareceria ainda, modestamente, naobra novelstica e teatral de Joaquim Manuel de Macedo, cheia deinfra-realismo e caricatura.

    Os prprios poetas, que hoje consideramos uma srie plangente decarpidores, fizeram poesia cmica, obscena e maluca, por vezes combastante graa, como Laurindo Rabelo e Bernardo Guimares, cujasprodues neste setor chegaram at ns. lvares de Azevedo foipoeta divertido, e alguns retardatrios mantinham a tradio bemhumorada da velha stira social, como o caso d'A festa de Baldo(1847), de lvaro Teixeira de Macedo, cuja linguagem enferrujada noabafa inteiramente um discernimento saboroso dos costumesprovincianos.

    3. Romance documentrio?

    Dizer que o livro de Manuel Antnio de Almeida eminentementedocumentrio, sendo reproduo fiel da sociedade em que a ao sedesenvolve, talvez seja formular uma segunda petio de princpio -,pois restaria provar, primeiro, que reflete o Rio joanino; segundo, que aeste reflexo deve o livro a sua caracterstica e o seu valor.

    O romance de tipo realista, arcaico ou moderno, comunica sempreuma certa viso da sociedade, cujo aspecto e significado procuratraduzir em termos de arte. mais duvidoso que d uma visoinformativa, pois geralmente s podemos avaliar a fidelidade darepresentao atravs de comparaes com os dados que tomamos adocumentos de outro tipo. Isto posto, resta o fato que o livro deManuel Antnio sugere a presena viva de uma sociedade que nosparece bastante coerente e existente, e que ligamos do Rio de

    Janeiro do comeo do sculo XIX, tendo Astrojildo Pereira chegado acompar-lo s gravuras de Debret, como fora representativa (8).

    No entanto, o panorama que ele traa no amplo. Restrito

    espacialmente, a sua ao decorre no Rio, sobretudo no que so hojeas reas centrais e naquele tempo constituam o grosso da cidade.Nenhum personagem deixa o seu mbito e apenas uma ou duas vezeso autor nos leva ao subrbio, no episdio do Caboclo do Mangue e nafesta campestre da famlia de Vidinha.

    Tambm socialmente a ao circunscrita a um tipo de gente livremodesta, que hoje chamaramos pequena burguesia. Fora da, h umasenhora rica, dois padres, um chefe de polcia e, bem de relance, um

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    oficial superior e um fidalgo, atravs dos quais vislumbramos o mundodo Pao. Este mundo novo, despencado recentemente na capitalpacata do Vice-Reinado, era ento a grande novidade, com a presenado rei e dos ministros, a instalao cheia de episdios entre pitorescose odiosos de uma nobreza e uma burocracia transportadas nos naviosda fuga, entre mquinas e caixotes de livros. Mas dessa nota viva esaliente, nem uma palavra; como se o rio continuasse a ser a cidadedo vice-rei Luis de Vasconcelos e Sousa.

    Havia, porm, um elemento mais antigo e importante para oquotidiano, que formava a maior parte da populao e sem o qual nose vivia: os escravos. ora, como nota Mrio de Andrade, no h 'gentede cor", no livro -, salvo as baianas da procisso dos Ourives, meroelemento decorativo, e as crias da casa de Dona Maria, mencionadasde passagem para enquadrar o Mestre de Reza. Tratado comopersonagem, apenas o pardo livre Chico-Juca, representante da franjade desordeiros e marginais que formavam boa parte da sociedadebrasileira.

    Documentrio restrito, pois, que ignora as camadas dirigentes, de umlado, as camadas bsicas, de outro. Mas talvez o problema deva serproposto noutros termos, sem querer ver a fico como duplicao -,atitude freqente na crtica naturalista que tem inspirado a maior partedos comentrios sobre as Memrias, e que tinha do realismo umaconcepo que se qualificaria de mecnica.

    Na verdade, o que interessa anlise literria saber, neste caso,qual a funo exercida pela realidade social historicamente localizadapara constituir a estrutura da obra -, isto , um fenmeno que sepoderia chamar de formalizao ou reduo estrutural dos dadosexternos.

    Para isso, devemos comear verificando que o romance de ManuelAntnio de Almeida constitudo por alguns veios descontnuos, masdiscernveis, arranjados de maneira cuja eficcia varia: (1) os fatosnarrados, envolvendo os personagens; (2) os usos e costumesdescritos; (3) as observaes judicativas do narrador e de certospersonagens. Quando o autor os organiza de modo integrado, oresultado satisfatrio e ns podemos sentir a realidade. Quando aintegrao menos feliz, parece-nos ver uma justaposio mais oumenos precria de elementos no suficientemente fundidos, emborainteressantes e por vezes encantadores como quadros isolados. Nesteltimo caso que os usos e costumes aparecem como documento,prontos para a ficha dos folcloristas, curiosos e praticantes da petitehistoire. o que ocorre, por exemplo, no captulo 17 da 1 Parte, "Dona Maria",onde reina a desintegrao dos elementos constitutivos. Temos neleuma descrio de costumes (procisso dos Ourives); o retrato fsico emoral de um novo personagem, que d nome ao captulo; e a aopresente, que o debate sobre o menino Leonardo, com participaode Dona Maria, do Compadre, da Vizinhana. Apesar de interessante,tudo nele est desconexo. A procisso descrita previamente como

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    foco autnomo de interesse no a procisso-fato, isto , umadeterminada procisso, concreta, localizada, pormenorizada e fazendoparte da narrativa. Embora se vincule ao presente, ela s apareceum instante, no fim; o que domina o captulo a procisso-uso, aprocisso indeterminada, com o carter de informe pitoresco, do tipodaqueles que geralmente se consideram como constituindo a fora deManuel Antnio, quando na verdade so o ponto fraco da suacomposio.

    Mas se recuarmos at o captulo 15 da mesma parte, veremos coisadiversa. Trata-se da "Estralada", a divertida festa de aniversrio daCigana, que Leonardo Pai atrapalha, pagando o capoeira Chico-Jucapara estabelecer a desordem e denunciando tudo previamente aoVidigal, que intervm e torna pblico o pecado do Mestre deCerimnias.

    Neste captulo surge mais de um elemento documentrio, inclusive acapoeiragem, associada ao retrato fsico e moral do capoeira e a umaseqncia de fatos. Mas a o documento no existe em si, como nocaso anterior: parte constitutiva da ao, de maneira que nuncaparece que o autor esteja informando ou desviando a nossa atenopara um trao da sociedade. Dentro das normas tradicionais decomposio, a que obedece Manuel Antnio, o segundo caso estcerto; o primeiro, seno errado, imperfeito, por motivos de naturezaestrutural.

    A fora de convico do livro depende pois essencialmente de certospressupostos de fatura, que ordenam a camada superficial dos dados.Estes precisam ser encarados como elementos de composio, nocomo informes proporcionados pelo autor, pois neste caso estaramosreduzindo o romance a uma srie de quadros descritivos dos costumes

    do tempo.O livro de Manuel Antnio correu este risco. O critrio sugerido acimapermite l-lo de modo esclarecedor, mostrando que talvez se tenha idoconsolidando como romance medida que deixava de ser uma coleode tipos curiosos e usos pitorescos, que predominam na metadeinicial. possvel e mesmo provvel que a redao tenha sido feitaaos poucos, para atender publicao seriada; (9) e que o senso daunidade fosse aumentando progressivamente, medida que a linhamestra do destino do "memorando" se consolidava, emergindo dapoeira anedtica. Por isso, a primeira metade tem mais o aspecto decrnica, enquanto a segunda mais romance, fortalecendo a anterior,preservando o colorido e o pitoresco da vida popular, sem situ-la,

    todavia, num excessivo primeiro plano.Esta dualidade de etapas (que so como duas ordens narrativascoexistentes) fica esclarecida se notarmos que na primeira metadeLeonardo Filho ainda no se desprendeu da nebulosa dos demaispersonagens e que o romance pode ser considerado como tendo ele eo pai por principais figurantes. Os fatos relativos a um e outro, maisaos personagens que esto agregados diretamente a eles, corremcomo paralelas alternadas, enquanto a partir do captulo 28 a linha do

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    filho domina absolutamente e a narrativa, superando as descriesestticas, amaina a incluso freqente de usos e costumes,dissolvendo-os na dinmica dos acontecimentos.

    Sendo assim, provvel que a impresso de realidade comunicadapelo livro no venha essencialmente dos informes, alis relativamente

    limitados, sobre a sociedade carioca do tempo do Rei Velho. Decorrede uma viso mais profunda, embora instintiva, da funo, ou"destino" das pessoas nessas sociedades; tanto assim que o realadquire plena fora quando parte integrante do ato e componentedas situaes. Manuel Antnio, apesar da sua singeleza, tem umacoisa em comum com os grandes realistas: a capacidade de intuir,alm dos fragmentos descritos, certos princpios constitutivos dasociedade -, elemento oculto que age como totalizador dos aspectosparciais.

    4. Romance representativo

    A natureza popular das Memrias de um sargento de milcias um dos

    fatores do seu alcance geral e, portanto, da eficincia e durabilidadecom que atua sobre a imaginao dos leitores. Esta reage quasesempre ao estmulo causado por situaes e personagens de cunhoarquetpico, dotados da capacidade de despertar ressonncia. Masalm deste tipo de generalidade, h outro que o refora e ao mesmotempo determina, restringindo o seu sentido e tornando-o maisadequado ao mbito especfico do Brasil. Noutras palavras: h no livroum primeiro estrato universalizador, onde fermentam arqutiposvlidos para a imaginao de um amplo ciclo de cultura, que secompraz nos mesmos casos de tricksters ou nas mesmas situaesnascidas do capricho da "sina"; e h um segundo estratouniversalizador de cunho mais restrito, onde se encontram

    representaes da vida capazes de estimular a imaginao de umuniverso menor dentro deste ciclo: o brasileiro.

    Nas Memrias, o segundo estrato constitudo pela dialtica da ordeme da desordem, que manifesta concretamente as relaes humanas noplano do livro, do qual forma o sistema de referncia. O seu carter deprincpio estrutural, que gera o esqueleto de sustentao, devido formalizao esttica de circunstncias de carter socialprofundamente significativas como modos de existncias que por issocontribuem para atingir essencialmente os leitores.

    Esta afirmativa s pode ser esclarecida pela descrio do sistema derelaes dos personagens, que mostra: (1) a construo, na sociedade

    descrita pelo livro, de uma ordem comunicando-se com uma desordemque a cerca de todos os lados; (2) a sua correspondncia profunda,muito mais que documentria, a certos aspectos assumidos pelarelao entre a ordem e a desordem na sociedade brasileira daprimeira metade do sculo XIX.

    Veremos ento que, embora elementares como concepo de vida ecaracterizao dos personagens, as Memrias so um livro agudocomo percepo das relaes humanas tomadas em conjunto. Se noteve conscincia ntida, fora de dvida que o autor teve maestria

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    suficiente para organizar um certo nmero de personagens segundointuies adequadas da realidade social.

    Tomemos como base o personagem central do livro, Leonardo Filho,imaginando que ocupa no respectivo espao uma posio tambmcentral; direita est sua me, esquerda seu pai, os trs no mesmo

    plano. Com um mnimo de arbtrio podemos dispor os demaispersonagens, mesmo alguns vagos figurantes, acima e abaixo destalinha equatorial por eles formada. Acima esto os que vivem segundoas normas estabelecidas, tendo no pice o grande representante delas,major Vidigal; abaixo esto os que vivem em oposio ou pelo menosintegrao duvidosa em relao a elas. Poderamos dizer que h, destemodo, um hemisfrio positivo da ordem e um hemisfrio negativo dadesordem, funcionando como dois ms que atraem Leonardo, depoisde terem atrado seus pais. A dinmica do livro pressupe umagangorra dos dois plos, enquanto Leonardo vai crescendo eparticipando ora de um, ora de outro, at ser finalmente absorvidopelo plo convencionalmente positivo.

    Sob este aspecto, pai, me e filho so trs ndulos de relaes,positivas (plo da ordem) e negativas (plo da desordem), sendo queos dois primeiros constituem uma espcie de prefigurao do destinodo terceiro. Leonardo Pataca, o pai, faz parte da ordem, como oficial de

    justia; e apesar de ilegtima, sua relao com Maria da Hortalia habitual e quase normal segundo os costumes do tempo e da classe.Mas depois de abandonado por ela, entra num mundo suspeito porcausa do amor pela Cigana, que o leva s feitiarias proibidas doCaboclo do Mangue, onde o major Vidigal o surpreende para met-lona cadeia. Ainda por causa da Cigana promove o sarilho em sua festa,contratando o desordeiro Chico-Juca, o que motiva nova intervenode Vidigal e expe a vergonha pitoresca de um padre, o Mestre deCerimnias. Mais tarde a Cigana passa a viver com Leonardo Pataca,at que finalmente, j maduro, ele forme com a filha da Comadre,Chiquinha, um casal estvel, embora igualmente desprovido de bnoreligiosa, como (repitamos) podia ser quase normal naquele tempoentre as camadas modestas. Assim, Leonardo Pai, representante daordem, desce a sucessivos crculos da desordem e volta em seguida auma posio relativamente sancionada, tangido pelas intervenespachorrentas e brutais do major Vidigal -, personagem que existiu edeve ter sido fundamental numa cidade onde, segundo um observadorda poca, "h que evitar sair sozinho noite e ser mais atento suasegurana do que em qualquer outra parte, porque so freqentes osroubos e crimes, apesar de a polcia ser l to encontradia comoareia do mar". (10)

    A vida de Leonardo Filho ser igualmente uma oscilaao entre os doishemisfrios, com maior variedade de situaes.

    Se analisarmos o sistema de relaes em que est envolvido, veremosprimeiro a atuao dos que procuram encaminh-lo para a ordem: seupadrinho, o Compadre; sua madrinha, a Comadre. Atravs deles, entraem contacto com uma senhora bem posta na vida, Dona Maria, que se

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    liga por sua vez a um prspero intrigante, Jos Manuel, acolitado pelocego que ensina doutrina s crianas, o Mestre de Reza; que se ligasobretudo sobrinha Luisinha, herdeira abastada e futura mulher deLeonardo, depois de um primeiro casamento com o dito Jos Manuel.Estamos no mundo das alianas, das carreiras, das heranas, da gentede posio definida; em nvel modesto, o Padrinho barbeiro e a Vizinha;em nvel mais elevado, Dona Maria. Todos esto do ladopositivo que apolcia respeita e cujas festas o major Vidigal no vai rondar.

    Vista deste ngulo, a histria de Leonardo Filho a velha histria doheri que passa por diversos riscos at alcanar a felicidade, masexpressa segundo uma constelao social peculiar, que a transformaem histria do rapaz que oscila entre a ordem estabelecida e ascondutas transgressivas, para finalmente integrar-se na primeira,depois de provido da experincia das outras. O cunho especial do livroconsiste numa certa ausncia de juzo moral e na aceitao risonha do"homem como ele ", mistura de cinismo e bonomia que mostra aoleitor uma relativa equivalncia entre o universo da ordem e o da

    desordem; entre o que se poderia chamar convencionalmente o bem eo mal.

    Na construo do enredo esta circunstncia representadaobjetivamente pelo estado de esprito com que o narrador expe osmomentos de ordem e de desordem, que acabam igualmentenivelados ante um leitor incapaz de julgar, porque o autor retirouqualquer escala necessria para isto. Mas h algo mais profundo, queampara as camadas superficiais de interpretao: a equivalncia daordem e da desordem na prpria economia do livro, como se podeverificar pela descrio das situaes e das relaes. Tomemos apenasdois exemplos.

    Leonardo gosta de Luisinha desde menino, desde o belo episdio do"Fogo no Campo', quando v o seu rostinho acanhado de roceiratransfigurado pela emoo dos rojes coloridos. Mas como ascircunstncias (ou, nos termos do livro, a "sina") a afastam dele para ocasamento convencional com Jos Manuel, ele, sem capacidade desofrer (pois ao contrrio do que diz o narrador no tem a fibra amorosado pai), passa facilmente a outros amores e encantadora Vidinha.Esta lembra, pela espontaneidade dos costumes, a moreninha"amigada" com o tropeiro, que amenizou a estadia do mercenrioalemo Schlichthorst no Rio daquele tempo, cantando modinhassentada na esteira, junto com a me complacente(11).

    Luisinha e Vidinha constituem um par admiravelmente simtrico. A

    primeira, no plano da ordem, a mocinha burguesa com quem no hrelao vivel fora do casamento, pois ela traz consigo herana,parentela, posio e deveres. Vidinha, no plano da desordem, amulher que se pode apenas amar, sem casamento nem deveres,porque nada conduz alm da sua graa e da sua curiosa famlia semobrigao nem sano, onde todos se arrumam mais ou menosconforme os pendores do instinto e do prazer. durante a fase dosamores com Vidinha, ou logo aps, que Leonardo se mete nas

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    encrencas mais srias e pitorescas, como que libertado dos projetosrespeitveis que o padrinho e a madrinha tinham traado para a suavida.

    Ora, quando o "destino"o reaproxima de Luisinha, providencialmenteviva, e ele retoma o namoro que levar direto ao casamento,

    notamos que a tonalidade do relato no fica mais aprovativa e, pelocontrrio, que as seqncias de Vidinha tm um encanto mais clido.Como Leonardo, o narrador parece aproximar-se do casamento com adevida circunspeco, mas sem entusiasmo.

    Nessa altura, comparamos a situao com tudo o que sabemos dosseres no universo do livro e no podemos deixar de fazer umaextrapolao. Dada a estrutura daquela sociedade, se Luisinha podevir a ser uma esposa fiel e caseira, o mais provvel que Leonardosiga a norma dos maridos e, descendo alegremente do hemisfrio daordem, refaa a descida pelos crculos da desordem, onde o esperaaquela vidinha ou outra equivalente, para juntos formarem um casalsuplementar, que se desfar em favor de novos arranjos, segundo oscostumes da famlia brasileira tradicional. Ordem e desordem,portanto, extremamente relativas, se comunicam por caminhosinumerveis, que fazem do oficial de justia um empreiteiro dearruaas, do professor de religio um agente de intrigas, do pecado doCadete a mola das bondades do Tenente-Coronel, das unies ilegtimassituaes honradas, dos casamentos corretos negociatas escusas.

    "Tutto nel mondo burla'-, cantam Falstaff e o coro, para resumir asconfuses e peripcias no final da pera de Verdi. "Tutto nel mondo burla", parece dizer o narrador das Memrias de um sargento demilcias, romance que tem traos de pera bufa. Tanto assim (echegamos ao segundo exemplo), que a concluso feliz preparada por

    uma atitude surpreendente do major Vidigal, que no livro aencarnao da ordem, sendo manifestao de uma conscinciaexterior, nica prevista no seu universo. De fato, a ordemconvencional a que obedecem os comportamentos, mas a que nofundo permanecem indiferentes as conscincias, aqui mais do queem qualquer outro lugar o policial na esquina, isto , Vidigal, com a suasisudez, seus guardas, sua chibata e seu relativo fair-play.

    Ele delegado de um mundo apenas entrevisto durante a narrativa,quando a Comadre sai a campo para obter a soltura de LeonardoPataca. Como todos sabem, vai pedir a proteo do Tenente-Coronel,membro da guarda caricata de velhos oficiais, que cochilam numa salado Palcio Real. O Tenente-Coronel por sua vez busca o empenho do

    Fidalgo (que vive com o seu capote e os seus tamancos numa casa friae mal guarnecida), para que este fale ao Rei. O Rei, que no aparecemas sobrepaira como fonte de tudo, que falar com Vidigal,instrumento da sua vontade. Mais do que um personagem pitoresco,Vidigal encarna toda a ordem; por isso, na estrutura do livro umfecho de abboda e, sob o aspecto dinmico, a nica fora reguladorade um mundo solto, pressionando de cima para baixo e atingindo umpor um os agentes da desordem. Ele prende Leonardo Pai na casa do

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    Caboclo e o Mestre de Cerimnias na da Cigana. Ele ronda o baile dobatizado de Leonardo Filho e intervm muitos anos depois na festa deaniversrio de seu irmo, conseqncia de novos amores do pai. Elepersegue Teotnio, desmancha o piquenique de Vidinha, atropela o

    Toma-Largura, persegue e depois prende Leonardo Filho, fazendo-osentar praa na tropa. O seu nome faz tremer e fugir.

    Sendo assim, quando a Comadre resolve obter o perdo do afilhado a Vidigal que pensa recorrer, por meio de uma nova srie demediaes muito significativas dessa dialtica da ordem e dadesordem que se est procurando sugerir. Modesta socialmente,enredeira e complacente, refora-se procurando a prspera DonaMaria, que seria empenho forte para o representante da lei, sempreaccessvel aos proprietrios bem situados. Mas Dona Maria virahabilmente o leme para outra banda e recorre a uma senhora decostumes que haviam sido fceis, como se dizia quando eles aindaeram difceis. E com a pura ordem de um lado, encarnada em DonaMaria, e de outro a desordem feita ordem aparente, encarnada em sua

    pitoresca xar Maria Regalada, que a Comadre parte para assaltar acidadela rspida, o Tutu geral, o desmancha prazeres do Major.

    A cena digna de um tempo que produziu Martins Pena. Toda a gentelembra de que modo, para surpresa do leitor, Vidigal declarado"babo" e se desmancha de gosto entre as saias das trs velhotas.Como resistisse, enfronhado na intransigncia dos oficiaisconscienciosos, Maria Regalada o chama de lado e lhe segredaqualquer coisa, com certeza alusiva a alguma relao apetitosa nopassado, quem sabe com possibilidades de futuro. A fortaleza daordem vem abaixo ato contnuo e no apenas solta Leonardo, mas d-lhe o posto de sargento, que aparecer no ttulo do romance e com oqual, j rformado na segunda linha, casar triunfalmente comLuisinha, enfeixando cinco heranas para dar maior solidez suaposio no hemisfrio positivo.

    Posio de tal modo firme, que poder, como sugerimos, baixareventualmente ao mundo agradvel da desordem, agora com oexemplo supremo do major Vidigal, que cedeu ao pedido de uma damagalante apoiada por uma dama capitalista, em suave conluio dos doishemisfrios, por iniciativa de uma terceira dama, que circulalivremente entre ambos e poderia ser chamar, como Belladona nopoema de Eliot, "the lady of situations". Ordem e desordem searticulam portanto solidamente; o mundo hierarquizado na aparnciase revela essencialmente subvertido, quando os extremos se tocam e

    a habilidade geral dos personagens justificada pelo escorrego quetraz o major das alturas sancionadas da lei para complacnciasduvidosas com as camadas que ele reprime sem parar.

    H um trao saboroso que funde no terreno do smbolo essasconfuses de hemisfrios e esta subverso final de valores. Quando asmulheres chegam sua casa (Dona Maria na cadeirinha, as outras seesbofando ao lado), o major aparece de chambre de chita e tamancos,num desmazelo que contradiz o seu aprumo durante o curso da

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    narrativa. Atarantado com a visita, desfeito em risos e arrepios deerotismo senil, corre para dentro e volta envergando a casaca douniforme, devidamente abotoada e luzindo em seus gales, mas comas calas domsticas e os mesmos tamancos batendo no assoalho. Eassim temos o nosso rspido drago da ordem, a conscincia tica domundo, reduzido a imagem viva dos dois hemisfrios, porque nessemomento em que transgride as suas normas ante a seduo da antigae talvez de novo amante, est realmente equiparado a qualquer dosmalandros que perseguia: aos dois Leonardos, a Teotnio, ao Toma-Largura, ao Mestre de Cerimnias. Como este, que, ao aparecercontraditoriamente de solidu e ceroulas no quarto da Cigana,misturava em signos burlescos a majestade da Igreja e as douras dopecado, ele agora farda da cintura para cima, roupa caseira dacintura para baixo -, encouraando a razo nas bitolas da lei edesafogando o plexo solar nas indisciplinas amveis.

    Este trao d o sentido profundo do livro e do seu balanceiocaprichoso entre ordem e desordem. Tudo se arregla ento num plano

    mais significativo que o das normas convencionais; e ns lembramosque o bom, o excelente padrinho, se "arranjou" na vida perjurando,traindo a palavra dada a um moribundo, roubando aos herdeiros o ouroque o mesmo lhe confiara. Mas este ouro no serviu para ele se tornarum cidado honesto e, sobretudo, prover Leonardo? "Tutto nel mondo burla".

    burla e srio, porque a sociedade que formiga nas Memrias sugestiva, no tanto por causa das descries de festejos ouindicaes de usos e lugares; mas porque manifesta num plano maisfundo e eficiente o referido jogo dialtico da ordem e da desordem,funcionando como correlativo do que se manifestava na sociedadedaquele tempo. Ordem dificilmente imposta e mantida, cercada detodos os lados por uma desordem vivaz, que antepunha vintemancebias a cada casamento e mil unies fortuitas a cada mancebia.Sociedade na qual uns poucos livres trabalhavam e os outrosflauteavam ao Deus dar, colhendo as sobras do parasitismo, dosexpedientes, das munificincias, da sorte ou do roubo mido.Suprimindo o escravo, Manuel Antnio suprimiu quase totalmente otrabalho; suprimindo as classes dirigentes, suprimiu os controles domando. Ficou o ar de jogo dessa organizao bruxuleante fissuradapela anomia, que se traduz na dana dos personagens entre lcito eilcito, sem que possamos afinal dizer o que um e o que o outro,porque todos acabam circulando de um para outro com umanaturalidade que lembra o modo de formao das famlias, dosprestgios, das fortunas, das reputaes, no Brasil urbano da primeirametade do sculo XIX. Romance profundamente social, pois, no porser documentrio, mas por ser construdo segundo o ritmo geral dasociedade, vista atravs de um dos seus setores. E sobretudo porquedissolve o que h de sociologicamente essencial nos meandros daconstruo literria.

    Com efeito, no a representao dos dados concretos particularesque poduz na fico o senso da realidade; mas sim a sugesto de uma

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    certa generalidade, que olha para os dois lados e d consistncia tantoaos dados particulares do real quanto aos dados particulares do mundofictcio. No esquema abaixo, sejam OD o fenmeno geral da ordem eda desordem, como foi indicado; AB os fatos particulares quaisquer dasociedade joanina do Rio; A'B' os fatos particulares quaisquer dasociedade descrita nas Memrias:

    OD, dialtica da ordem e da desordem, um princpio vlido degeneralizao, que organiza em profundidade tanto AB quanto A'B',dando-lhes inteligibilidade, sendo ao mesmo tempo real e fictcio -,dimenso comum onde ambos se encontram, e que explica tanto umquanto outro. A'B' no vem diretamente de AB, pois o sentimento darealidade na fico pressupe o dado real mas no depende dele.Depende de princpios mediadores, geralmente ocultos, queestruturam a obra e graas aos quais se tornam coerentes as duassries, a real e a fictcia.

    Neste ponto, percebemos que a estrutura do livro sofre a tenso dasduas linhas que constituem a viso do autor e se traduzem em duasdirees narrativas, interrelacionadas de maneira dinmica. De umlado, o cunho popular introduz elementos arquetpicos, que trazem apresena do que h de mais universal nas culturas, puxando para alenda e o irreal, sem discernimento da situao histrica particular.De outro lado, a percepo do ritmo social puxa para a representaode uma sociedade concreta, historicamente delimitada, que ancora olivro e intensifica o seu realismo infuso. Ao realismo incaracterstico econformista da sabedoria e da irreverncia popular, junta-se o realismoda observao social do universo descrito.

    Talvez fosse possvel dizer que a caracterstica peculiar das Memriasseja devida a uma contaminao recproca da srie arquetpica e dasrie social: a universalidade quase folclrica evapora muito dorealismo; mas, para compensar, o realismo d concreo e eficciaaos padres incaractersticos. Da tenso entre ambos decorre umacuriosa alternncia de erupes do pitoresco e de redues a modelossocialmente penetrantes, evitando o carter accessrio de anedota, odesmando banal da fantasia e a pretenciosa afetao, quecomprometem a maior parte da fico brasileira daquele tempo.

    5. O mundo sem culpa

    Diversamente de quase todos os romances brasileiros do sculo XIX,mesmo os que formam a pequena minoria dos romances cmicos, as

    Memrias de um sargento de milcias criam um universo que pareceliberto do peso do erro e do pecado. Um universo sem culpabilidade emesmo sem represso, a no ser a represso exterior que pesa otempo todo por meio do Vidigal e cujo desfecho j vimos. Osentimento do homem aparece nele como uma espcie de curiosidadesuperficial, que pe em movimento o interesse dos personagens unspelos outros e do autor pelos personagens, formando a trama dasrelaes vividas e descritas. A esta curiosidade corresponde uma

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    viso muito tolerante, quase amena. As pessoas fazem coisas quepoderiam ser qualificadas como reprovveis, mas fazem tambmoutras dignas de louvor, que as compensam. E como todos tmdefeitos, ningum merece censura.

    A madrinha levanta um falso contra Jos Manuel, mas para ajudar a

    causa simptica dos namorados; alm disso Jos Manuel um patife.A compensao vem com a reao dele por intermdio do Mestre deReza -, Dom Baslio de fancaria -, que consegue destruir a calnia. Ascoisas entram nos eixos, mas ns perguntamos se no teria sidomelhor deixar a calnia de p...

    Como vimos, o Compadre "se arranja" pelo perjrio. Mas o narrador sconta isto depois que a nossa simpatia j lhe est assegurada peladedicao que dispensou ao afilhado. Para ns, ele to bom que otrao sinistro no pode compromet-lo. Tanto mais quanto o ouro maladquirido nada tem de maldito e se torna uma das heranas que vogarantir a prosperidade de Lenardo.

    Um dos maiores esforos das sociedades, atravs da sua organizao edas ideologias que a justificam, estabelecer a existencia objetiva e ovalor real de pares antitticos, entre os quais preciso escolher, e quesignificam lcito ou ilcito, verdadeiro ou falso, moral ou imoral, justo ouinjusto, esquerda ou direita poltica e assim por diante. Quanto maisrgida a sociedade, mais definido cada termo e mais apertada a opo.Por isso mesmo desenvolvem-se paralelamente as acomodaes detipo casustico, que fazem da hipocrisia um pilar da civilizao. E umadas grandes funes da literatura satrica, do realismo desmistificadore da anlise psicolgica o fato de mostrarem, cada um a seu modo,que os referidos pares so reversveis, no estanques, e que fora daracionalizao ideolgica as antinomias convivem num curioso lusco-

    fusco.Pelo que vimos, o princpio moral das Memrias parece ser,exatamente como os fatos narrados, uma espcie de balanceio entreo bem e o mal, compensados a cada instante um pelo outro sem

    jamais aparecerem em estado de inteireza. Decorre a idia de simetriaou equivalncia, que, numa sociedade meio catica, restabeleceincessantemente a posio por assim dizer normal de cadapersonagem. Os extremos se anulam e a moral dos fatos toequilibrada quanto as relaes dos homens.

    De tudo se desprende um ar de facilidade, uma viso folgada doscostumes, que pode ou no coincidir com o que ocorria "no tempo do

    Rei", mas que fundamenta a sociedade instituda nas Memrias, comoproduto de um discernimento coerente do modo de ser dos homens. Oremorso no existe, pois a avaliao das aes feita segundo a suaeficcia. Apenas um personagem de segundo plano, o velho Tenente-Coronel, tem a conscincia pesada pelo malfeito de seu filho, o Cadete,em relao me do "memorando"; e esta conscincia pesada ficadivertida por contraste.

    Se assim for, claro que a represso moral s pode existir, como ficoudito, fora das conscincias. uma "questo de polcia" e se concentra

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    inteiramente no major Vidigal, cujo deslizamento cmico para asesferas da transgresso acaba, no fim do romance, por baralhardefinitivamente a relao dos planos.

    Nisto e por tudo isto, as Memrias de um sargento de milciascontrastam com a fico brasileira do tempo. Uma sociedade jovem,

    que procura disciplinar a irregularidade da sua seiva para se equiparars velhas sociedades que lhe servem de modelo, desenvolvenormalmente certos mecanismos ideais de contenso, que aparecemem todos os setores. No campo jurdico, normas rgidas eimpecavelmente formuladas, criando a aparncia e a iluso de umaordem regular que no existe e que por isso mesmo constitui o alvoideal. Em literatura, gosto acentuado pelos smbolos repressivos, queparecem domar a ecloso dos impulsos. o que vemos, por exemplo,no sentimento de conspurcao do amor, to freqente nos ultra-romnticos. o que vemos em Peri, que se cobe at negar asaspiraes que poderiam realiz-lo como ser autnomo, numarenncia que lhe permite construir em compensao um ser alienado,

    automtico, identificado aos padres ideais da colonizao. N'OGuarani, a fora do impulso vital, a naturalidade dos sentimentos, socorre como caracterstica dos viles ou, sublimados, no quadroexuberante da natureza -, isto , as foras que devem ser dobradaspela civilizao e a moral do conquistador, das quais D. Antnio deMariz um paradigma e o ndio romntico um homlogo ou um aliado.(Lembremos o "ndio tocheiro. O ndio filho de Maria , afilhado deCatarina de Mdicis e genro de D. Antnio de Mariz", do Manifestoantropfago, de Oswald de Andrade). Represso mutiladora dapersonalidade ainda o que encontramos noutros romances deAlencar, os chamados urbanos, como Lucola e Senhora, onde a mulheropressa da sociedade patriarcal confere ao enredo uma penumbra de

    foras recalcadas. Em meio de tudo, a liberdade quase ferica doespao ficcional de Manuel Antnio, livre de culpabilidade e remorso,de represso e sano interiores, colore e mobiliza o firmamento doRomantismo, como os rojes do "Fogo no Campo"ou as baianasdanando nas procisses.

    Graas a isto, se diverge do superego habitual de nossa novelstica,efetua uma espcie de desmistificao que o aproxima das formasespontneas de vida scial, articulando-se com elas de modo maisfundo. Faamos um paralelo que talvez ajude.

    Na formao histrica dos Estados Unidos houve desde cedo umapresena constritora da lei, religiosa e civil, que plasmou os grupos e

    os indivduos, delimitando os comportamentos graas fora punitivado castigo exterior e do sentimento interior de pecado. Da umasociedade moral, que encontra no romance expresses como A Letraescarlate, de Nathanael Hawthorne, e d lugar a dramas como o dasfeiticeiras de Salem.

    Esse endurecimento do grupo e do indivduo confere a ambos grandefora de identidade e resistncia; mas desumaniza as relaes com osoutros, sobretudo os indivduos de outros grupos, que no pertencem

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    mesma lei e, portanto, podem ser manipulados ao bel-prazer. Aalienao torna-se ao mesmo tempo marca de reprovao e castigo dorprobo; o duro modelo bblico do povo eleito, justificando a suabrutalidade com os no-eleitos, os outros, reaparece nessascomunidades de leitores quotidianos da Bblia. Ordem e liberdade -isto , policiamentos internos e externos, direito de arbtrio e de aoviolenta sobre o estranho -, so formulaes desse estado de coisas.

    No Brasil, nunca os grupos ou os indivduos encontraram efetivamentetais formas; nunca tiveram a obsesso da ordem seno como princpioabstrato, nem da liberdade seno como capricho. As formasespontneas da sociabilidade atuaram com maior desafogo e por issoabrandaram os choques entre a norma e a conduta, tornando menosdramticos os conflitos de conscincia.

    As duas situaes diversas se ligam ao mecanismo das respectivassociedades: uma que, sob alegao de enganadora fraternidade,

    visava a criar e manter um grupo idealmente mono-racial e mono-religioso; outra que incorpora de fato o pluralismo racial e depoisreligioso sua natureza mais ntima, a despeito de certas ficesideolgicas postularem inicialmente o contrrio. No querendoconstituir um grupo homogneo e, em consequncia, no precisandodefend-lo asperamente, a sociedade brasileira se abriu com maiorlarguesa penetraao dos grupos dominados ou estranhos. E ganhouem flexibilidade o que perdeu em inteireza e coerncia.

    O sentido profundo das Memrias est ligado ao fato de no seenquadrarem em nenhuma das racionalizaes ideolgicas reinantesna literatura brasileira de ento: indianismo, nacionalismo, grandeza

    do sofrimento, redeno pela dor, pompa do estilo etc. Na suaestrutura mais ntima e na sua viso latente das coisas, este livroexprime a vasta acomodao geral que dissolve os extremos, tira osignificado da lei e da ordem, manifesta a penetrao recproca dosgrupos, das idias, das atitudes mais dspares, criando uma espcie deterra-de-ningum moral, onde a transgresso apenas um matiz nagama que vem da norma e vai ao crime. Tudo isso porque, nomanifestando estas atitudes ideolgicas, o livro de Manuel Antnio talvez o nico em nossa literatura do sculo XIX que no exprime umaviso de classe dominante.

    Este fato evidenciado pelo seu estilo, que se afasta da linguagem

    preferida no romance de ento, buscando uma tonalidade que se temchamado de coloquial. Pelo fato de ser um principiante semcompromissos com a literatura estabelecida, alm de resguardado peloanonimato, Manuel Antnio ficou vontade e aberto para asinspiraes do ritmo popular. Esta costela trouxe uma espcie desabedoria irreverente, que pr-crtica, mas que, pelo fato de reduzirtudo amplitude da "natureza humana", se torna afinal maisdesmistificadora do que a inteno quase militante de um Alencar -,mareada pelo estilo de classe. Sendo neutro, o estilo encantador de

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    Manuel Antnio fica translcido e mostra o outro lado de cada coisa,exatamente como o balanceio de certos perodos. "Era a comadreuma mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona, ingnua ou tolaat um certo ponto, e finria at outro". "O velho tenente-coronel,apesar de virtuoso e bom, no deixava de ter na conscincia umsofrvel par de pecados". Da a equivalncia dos opostos e a anulaodo bem e do mal, num discurso desprovido de maneirismo. Mesmo emlivro to voluntariamente crtico e social quanto Senhora, o estilo deAlencar acaba fechando a porta ao senso da realidade, porque tende linguagem convencional de um grupo restrito, comprometido com umacerta viso do mundo; e ao faz-lo, sofre o peso da sua data, fica presodemais s contingncias do momento e da camada social, impedindoque os fatos descritos adquiram generalidade bastante para setornarem convincentes. J a linguagem de Manuel Antnio,desvinculada da moda, torna amplos, significativos e exemplares osdetalhes da realidade presente, porque os mergulha no fluido dopopulrio -, que tende a matar lugar e tempo, pondo os objetos que

    toca alm da fronteira dos grupos. pois no plano do estilo que seentende bem o desvinculamento das Memrias em relao ideologiadas classes dominantes do seu tempo -, to presente na retrica liberale no estilo florido dos "beletristas". Trata-se de uma libertao, quefunciona como se a neutralidade moral correspondesse a umaneutralidade social, misturando as pretenses das ideologias no balaioda irreverncia popularesca.

    Esta se articula com uma atitude mais ampla de tolerncia corrosiva,muito brasileira, que pressupe uma realidade vlida para l, mastambm para c da norma e da lei, manifestando-se por vezes noplano da literatura sob a forma de piada devastadora, que tem certa

    nostalgia indeterminada de valores mais ldimos, enquanto agride oque, sendo hirto e cristalizado, ameaa a labilidade, que uma dasdimenses fecundas do nosso universo cultural.

    Essa comicidade foge s esferas sancionadas da norma burguesa e vaiencontrar a irreverncia e a amoralidade de certas expressespopulares. Ela se manifesta em Pedro Malasarte no nvel folclrico eencontra em Gregrio de Matos expresses rutilantes, quereaparecem de modo peridico, at alcanar no Modernismo as suasexpresses mximas, com Macunama e Serafim Ponte Grande. Elaamaina as quinas e d lugar a toda a sorte de acomodaes (ounegaes), que por vezes nos fazem parecer inferiores ante uma viso

    estupidamente nutrida de valores puritanos, como a das sociedadescapitalistas; mas que facilitar a nossa insero num mundoeventualmente aberto.

    Com muito menos virulncia e estilizao que os dois livros citados, ode Manuel Antnio pertence a um entroncamento dessa linha, que temvrias modalidades. Nem de espantar que s depois do Modernismoencontrasse finalmente a glria e o favor dos leitores, com um ritmode edies que nos ltimos vinte e cinco anos ultrapassa uma por ano,

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    em contraste com o anterior, de uma cada oito anos.

    Na limpidez transparente do seu universo sem culpa, entrevemos ocontorno de uma terra sem males definitivos ou irremediveis, regidapor uma encantadora neutralidade moral. L no se trabalha, no sepassa necessidade, tudo se remedeia. Na sociedade parasitria eindolente, que era a dos homens livres do Brasil de ento, haveriamuito disto, graas brutalidade do trabalho escravo, que o autorelide junto com outras formas de violncia. Mas como ele visa ao tipoe ao paradigma, ns vislumbramos atravs das situaes sociaisconcretas uma espcie de mundo arquetpico da lenda, onde orealismo contrabalanado por elementos brandamente fabulosos:nascimento aventuroso, numes tutelares, drages, escamoteao daordem econmica, inviabilidade da cronologia, ilogicidade dasrelaes. Por isso, tomemos com reserva a idia de que as Memriasso um panorama documentrio do Brasil joanino; e depois de tersurgido que so antes a sua anatomia espectral, muito mais

    totalizadora, no pensemos nada e deixemo-nos embalar por essafbula realista composta em tempo de allegro vivace.

    _________________(1) Jos Verssimo, "Um velho romance brasileiro", Estudos brasileiros, 2 srie,Rio de Janeiro, Laemmert, 1894, pp. 107-124; Mrio de Andrade, "Introduo",Manuel Antnio de Almeida, Memrias de um sargento de milcias. Bibliotecasde literatura brasileira, I, So Paulo, Martins, 1941, pp. 5-19; Darcy Damasceno,"A afetividade lingstica nas Memrias de um sargento de milcias", Revistabrasileira de filologia, vol. 2, tomo II, Dezembro 1956, pp. 155-177,especialmente pp. 155-177, especialmente pp. 156-158 (a citao da p. 156).

    (2) Josu Montello, "Um precursor: Manuel Antnio de Almeida", A literatura no

    Brasil, Direo de Afrnio Coutinho, vol. II, Rio de Janeiro, Editorial SulAmericana S.A., 1955, pp. 37-45.

    (3) Frank Wadleigh Chandler, La novela picaresca en Espaa, Trad. do inglspor P.A. Martn Robles, Madrid, La Espaa Moderna, s.d. (Trata-se de apenasuma parte da obra original de Chandler, The Literature of Roguery, 3 vols., New

    York, Houghton Miffin, 1907). Ver tambm Angel Valbuena y Prat, "Estudiopreliminar", La novela picaresca espaola, 4 ed., Madrid, Aguilar, 1942, pp.11-79. Trata-se de uma edio dos principais romances picarescos espanhisutilizada neste ensaio.

    (4) " desse modo que Manuel Antnio de Almeida caracteriza o personagemLeonardo, que resulta num heri sem nenhum carter, ou melhor, que

    apresenta os traos fundamentais do esteretipo do brasileiro. Manuel Antniode Almeida o primeiro a fixar em literatura o carter nacional brasileiro, talcomo ter longa vida em nossas letras (...) Creio que se pode saudar emLeonardo o ancestral de Macunama." Walnice Nogueira Galvo, "No tempo dorei", in Saco de gatos. Ensaios crticos, So Paulo, Duas Cidades, 1976, p. 32.Este belo ensaio, um dos mais penetrantes sobre o nosso autor, saiuinicialmente com o ttulo "Manuel Antnio de Almeida" no "SuplementoLiterrio" de O Estado de S. Paulo, 17.3.1962.

  • 7/30/2019 DIALETICA_MALANDRAGEM

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    (5) Marques Rebelo, Vida e obra de Manuel Antnio de Almeida, 2 ed., SoPaulo, Martins, 1963, pp. 38-39 e 42.

    (6) Alan Carey Taylor, "Balzac, Manoel Antonio de Almeida et les dbuts duralisme au Brsil", resumo de comunicao, Le rel dans la littrature et lelangage, Actes du Xe. Congrs de la Fdration des Langues et LittraturesModernes, publis par Paul Vernois, Paris, Klincksieck, 1967, pp. 202-203.

    (7) Herman Lima, Histria da caricatura no Brasil, 4 vols., Rio de Janeiro, JosOlympio, 1963, vol. I, pp. 70-85.

    (8) Astrojildo Pereira, "Romancistas da cidade: Macedo, Manuel Antnio e LimaBarreto", O romance brasileiro (De 1752 a 1930), Coordenao etc. de AurlioBuarque de Holanda, Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1952, pp. 36-73. Ver p. 40.

    (9) Marques Rebelo, ob.cit., pp. 40-41.

    (10) T.von Leithold e L. von Rango. O Rio de Janeiro visto por dois prussianosem 1819. Trad. e anotaes de Joaquim de Sousa Leo Filho, So Paulo, EditoraNacional, 1966, p. 166.

    (11) C. Schlichthorst,O Rio de Janeiro como .

    1824-1826

    (Huma vez e nuncamais) etc. Trad. de Emy Dodt e Gustavo Barroso, Rio de Janeiro, Getlio Costa,s.d., pp. 77-80.

    _______________"Dialtica da Malandragem (caracterizao das Memrias de um sargento demilcias)" in: Revista do Instituto de estudos brasileiros, n 8, So Paulo, USP,1970, pp. 67-89.