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DIPLOMACIA E DEFESA NOS BRICS: UMA BREVE ANÁLISE DA RELAÇÃO
ENTRE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA DE DEFESA NO BRASIL E NA
RÚSSIA NO SÉCULO XXI (2001 – 2015)
Pérsio Glória de Paula1
RESUMO
O presente artigo pretende realizar uma breve analise da relação entre os
desenvolvimentos da política externa e da política de defesa no Brasil e na Rússia, nos
primeiros quinze anos do século XXI. O objetivo é identificar similaridades e diferenças
nos posicionamentos e nas motivações por trás delas, assim como a relação com a
construção de um novo ordenamento internacional. Dentro desses parâmetros, será
abordada a inserção internacional dos dois países e seus respectivos momentos históricos,
objetivos e interesses. Serão abordas as políticas externas de ambos em suas perspectivas
teóricas e históricas. O processo metodológico principal para o desenvolvimento do
trabalho será a análise da bibliografia existente e a verificação historiográfica. Também
serão utilizados marcos teóricos para a identificação de paradigmas na política externa e
de diretrizes para a política de defesa, o que permitirá a elaboração de uma breve
comparação entre a construção dos processos de diplomacia e de defesa nos dois atores
selecionados.
Palavras-chaves: Brasil; Rússia; Política Externa; Política de Defesa;
Diplomacia e Defesa.
1 Pérsio Glória de Paula - Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança
(PPGEST) do Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense. E-mail:
DIPLOMACY AND DEFENSE IN THE BRICS: A BRIEF ANALYSIS OF THE
RELATIONSHIP BETWEEN FOREIGN POLICY AND DEFENSE POLICY IN
BRAZIL AND IN RUSSIA IN THE 21ST CENTURY (2001 - 2015)
Pérsio Glória de Paula
ABSTRACT
This article intends to make a brief analysis of the relationship between foreign policy
and defense policy developments in Brazil and Russia in the first fifteen years of the 21st
century. The objective is to identify similarities and differences in the positions and
motivations behind them, as well as their relationship with the construction of a new
international order. Within these parameters, the international insertion of the two
countries and their respective historical moments, objectives and interests will be studied.
For this, it will be addressed the external policies of both countries in their theoretical and
historical perspectives. The main methodological process for the development of this
work will be the analysis of the existing bibliography and the historiographic verification.
It will use theoretical frameworks for the identification of paradigms in foreign policy
and guidelines for defense policy, which will allow the development of a brief comparison
between the construction of the diplomacy and defense processes in the two selected
actors.
Keywords: Brazil; Russia; Foreign Policy; Defense Policy; Diplomacy and Defense.
1
Introdução
As relações internacionais são elemento fundamental da prática política dos
Estados modernos. Elas se inserem e abrangem a interseção entre a High Politics e a Low
Politics, e entre o Hard Power e o Soft Power, já que somam questões relevantes à áreas
como a defesa nacional e como o comércio exterior. Nesse sentido, a política externa tem
um papel fundamental, não só na manutenção das relações com outros Estados, mas
também na articulação de seus interesses econômicos, que estão cada vez mais
internacionalizados devido à globalização, e de suas necessidades estratégicas. A política
externa serve como ferramenta para os interesses nacionais dos Estados e se torna
indissociável de uma política de defesa, que também é uma necessidade resultante das
relações entre Estados, que nem sempre são pacíficas.
Com essa concepção, aqui será elaborada uma breve análise comparativa da
evolução associada da política externa e de defesa no Brasil e na Rússia. O objetivo é
expor algumas diferenças e similaridades que servirão de referencial para o entendimento
da estratégia dos dois países no cenário internacional contemporâneo. Também serão
expostas as vantagens e vulnerabilidades das escolhas feitas e dos meios utilizados pelos
dois países, além da razão pela qual certas decisões foram tomadas.
O trabalho consistirá de três etapas, desconsiderando a introdução e a conclusão.
A primeira etapa é o contexto histórico, que é a perspectiva sistêmica da década de 90 e
como ela influenciou o policy making dos países abordados. A segunda é relativa a
política externa e de defesa brasileira no século XXI, onde serão analisadas questões
como a cooperação sul-sul, a expansão de parcerias internacionais de geometria variável.
Nesse cenário será apresentado o descompasso da diplomacia com a defesa, já que houve
uma expansão na atuação diplomática civil que não foi acompanhada pelas parcerias e
cooperações na área de defesa, caracterizando o que Maria Regina de Lima (2010, p. 415)
classifica como um possível overstrecht do soft power brasileiro. A terceira etapa será
analise da política externa e de defesa da Rússia, abordando brevemente os momentos de
cooperação e crise com o ocidente, e como ela se utilizou de um alinhamento pragmático
e reversível nessa década para garantir o seu ressurgimento e soberania.
O processo metodológico principal deste trabalho será a análise da bibliografia
existente acerca da política externa e geopolítica dos dois países para realizar, então, uma
breve historiografia comparativa e analítica dos pontos de semelhança e diferenças, já que
2
o aprofundamento e os pormenores de todos os detalhes não só desvirtuariam o propósito
do trabalho, mas também demandariam uma extensão muito maior em tópicos variados.
O principal ponto de referência será a junção das estratégias de inserção adotadas e o tipo
de postura e relação adotado para com os Estados Unidos, entendido nessa obra como
centro do polo de poder atlântico e principal ator, em termos de poder absoluto, no atual
ordenamento global.
O Sistema Internacional e o Fim da História
O sistema internacional, em menos de 30 anos após o fim da bipolaridade, já
apresenta sinais de que se aproxima de uma nova fase transição. O crescimento de atores
fora do círculo de poder atlântico, como os países emergentes na Eurásia, e a expansão
de novas redes e projetos de resistência ou alternatividade ao atual ordenamento, como a
União Econômica Eurasiana2 e o Belt and Road Initiative3, demonstram não só a
incapacidade da manutenção do protagonismo ocidental, mas também a insatisfação com
a homogeneização do domínio atlântico.
O Fim da História4, como apontado e celebrado por parte da elite política e
intelectual do ocidente, sobre uma suposta vitória teleológica da ideologia ocidental,
pautada no pensamento liberal e na prática democrática, sobre todas as demais, ainda não
se concretizou. Apesar de construída a crença de que os modelos ocidentais de convívio
político, com a democracia liberal, de relacionamento econômico, com a economia de
livre-mercado, de cultura de massas e de sociedades de consumo seriam naturalmente
aceitos, ainda existem resistências políticas e econômicas que demandam maior
participação, representatividade e autonomia.
A ideia de que haveria uma homogeneização mundial dos moldes ocidentais com
o fim da Guerra Fria foi bastante vívida na década passada e, de fato, ocasionou mudanças
em diversos países do globo. Essa perspectiva foi amplamente utilizada como palanque
político por partidos e movimentos ao redor do mundo, durante a década de 90, apoiados
nas indicações do Consenso de Washington.
As mudanças, no entanto, não foram só em âmbito político-econômico interno,
a política externa também foi amplamente afetada, assim como as diretrizes da defesa. É
2 A União Eurasiana é uma iniciativa de cooperação e integração regional promovida pela Rússia que conta hoje com cinco membros. 3 A Belt and Road Initiative (BRI) é uma estratégia de desenvolvimento proposta pelo governo chinês que enfoca a conectividade e cooperação entre os países da Eurásia através de rotas terrestres diretas para o transporte de mercadorias que permitirão a China
assumir um papel maior nos assuntos globais com uma rede comercial centrada na sua capacidade produção. 4 Como apresentado por Francis Fukuyama em O Fim da História e o Último Homem (1992).
3
nesse contexto histórico que estão inseridos Brasil e Rússia. Dois Estados que, hoje,
ocupam lugares de destaque nos indicadores mundiais. Brasil e Rússia são,
respectivamente, a 9ª e a 12ª maiores economias5 do mundo em termos de Produto Interno
Bruto (PIB); possuem a 5ª e a 1ª maiores extensões territoriais6 do mundo e; a 6ª e 9ª
maiores populações7 do mundo.
Além disso, esses países são membros fundadores dos BRICS, acrônimo para o
grupo de países emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. O
grupo, inicialmente BRIC, foi visionado pelo economista chefe do grupo financeiro
Goldman Sachs, Jim O’neill (2001, p. 4), em seu relatório sobre futuro da economia
global e seus principais atores. A ascensão desses novos atores, os ditos países
emergentes, no cenário internacional é para muitos o prenúncio do fim da primazia do
poder unipolar do Atlântico Norte, que, para alguns autores, teve seu ápice nos anos 90,
um período de reajuste dos ordenamentos globais. Ambos os países, Brasil e Rússia,
passaram por processos de transformação na década de 90, resultantes do colapso do
bloco oriental, que remodelou as relações econômicas, estratégicas e políticas no meio
internacional.
Desde o fim da União Soviética até a virada do milênio, a Rússia sofreu um
severo processo de sucateamento das instituições civis e militares, e uma forte
desestruturação das bases econômicas, resultado das diversas crises nos mercados
financeiros russos e mundiais somadas a transição do modelo de economia planificada
para o modelo de mercado (SEGRILLO, 2016, p. 354). A junção da desestabilização
política, fragmentação territorial e colapso econômico não só fez com que a Rússia
perdesse o status de Superpotência, passando a ser considerada um mero ator regional,
um duro golpe no prestigio internacional russo, mas também gerou uma paralisia na
capacidade de resposta da política externa russa, impedindo-a de tomar de posições mais
assertivas nas crises internacionais da década de 90, como a desintegração da Iugoslávia.
Apesar de aderir e cooperar com as agendas ocidentais e liberais, tanto em
âmbito econômico, quanto político, os interesses nacionais russos não foram atendidos
pelos novos parceiros ocidentais, e pior, mais e mais concessões eram demandadas para
se obter algum auxílio econômico contra a persistente crise russa (CONRADI, 2017,
5 Segundo dados do Banco Mundial referentes ao ano de 2016 para o valor de PIB nominal em dólares americanos. Disponível em http://databank.worldbank.org/data/download/GDP.pdf 6 Segundo dados do IBGE, desconsiderando a anexação da Criméia. Disponível em https://7a12.ibge.gov.br/vamos-conhecer-o-brasil/nosso-territorio/brasil-no-mundo.html 7 Segundo dados do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas para 2017, desconsiderando a Criméia.
4
p.83). A era Yeltsin da década de 90 é marcada, então, por negociações assimétricas com
o ocidente, congelamento, ou imobilização, da política externa e desmantelamento da
antiga esfera soviética, sepultando de vez a imagem de superpotência.
Em parte, esse processo de imobilização deve-se muito também à Guerra na
Chechênia, que se mostrou como o ápice da instabilidade política nos Oblasts e nas
repúblicas integrantes da Federação Russa. Nesse período, a capacidade de enfrentar o
avanço da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e de outras organizações
e instituições internacionais no Leste Europeu e na antiga zona de influência e territorial
soviética, se tornara uma tarefa hercúlea e que se arrastaria por todo início do século XXI
(DUGIN, 2015, p. 136).
Por essa breve “hegemonia” estadunidense e pela disseminação da “ideologia do
Fim da História”, houve um forte movimento, tanto na Rússia, quanto nos países que
ainda não haviam abraçado os paradigmas liberais, para implementação de políticas que
permitissem a abertura econômica ao capital, produtos e empresas estrangeiras. Assim
como no Brasil, na Rússia foi construída a ideia de que a abertura econômica significava
a entrada no sistema internacional e era necessária para se criar credibilidade e respeito
frente aos países ocidentais, denominado por Cervo (2007) como a normalização do
Estado. Ou aceitava-se a globalização nos moldes ocidentais, ou não haveria globalização
alguma. Houve então a “liberalização à força”, que culminou na crise da moratória russa
em 1998. Ao longo da década, as bases econômicas no país não suportaram a saída brusca
e imediata do modelo planificado, muito menos a concorrência internacional, o que
impossibilitou que o país adquirisse liquidez para saldar as dívidas no prazo estipulado,
dívidas que, em grande parte, foram adquiridas justamente para promover o processo
liberalização.
Apesar dos ideais liberais ainda serem endossados pelas instituições
internacionais e países ocidentais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e os
Estados Unidos (EUA), seus defensores na Rússia perderam a força do momento, o que
permitiu a ascensão de Vladimir Putin, então o primeiro-ministro recém apontado,
desconhecido do grande público, que assumiu quando Yeltsin renunciou à presidência
(CONRADI, 2017, p.117).
Após ganhar as eleições em março de 2000, Putin iniciou a introdução de um
modelo econômico-administrativo mais pragmático e voltado para a reestruturação da
soberania russa, o que alinhou a política externa com os interesses nacionais. Nessa
perspectiva, evitando o conflito direto, os novos paradigmas estratégicos russos
5
permitiram um ressurgimento gradual, intercalando momentos de cooperação e
momentos de tensão com o ocidente, possibilitando que a Rússia se fortalecer, até que
pudesse reafirmar seus interesses nacionais, mesmo contra a potência unipolar.
A década de 90 no Brasil também foi turbulenta. A economia era a pauta
principal, o país ainda sofria com os efeitos das elevadas taxas de inflação herdadas da
década anterior e com uma substancial diminuição nos postos de trabalho, um dos efeitos
colaterais da abertura econômica que provocou a falência de diversas empresas que não
se adaptaram à concorrência internacional. Essas condições, associadas a entrada dos
grupos com raízes neoliberais no poder, fomentaram transformações consideráveis à
política externa, que se adaptou para garantir os objetivos econômicos do país e se ajustar
ao novo ordenamento mundial. Esse ajustamento teve como princípio a autonomia pela
participação, rompendo com o distanciamento em relação ao centro do sistema
internacional realizado durante o período militar (LAMPREIA, 1999, p 90.).
Esse novo paradigma possuía três pilares centrais de atuação: A integração
regional, que era considerada um “destino” no Brasil, especialmente em âmbito do
Mercosul, até então o segundo maior mercado e maior importador de bens
industrializados brasileiros; O multilateralismo, já que o país não possuía excedentes de
poder, era necessário assegurar a legitimidade dos pleitos e coerência das ações através
da concertação multilateral , que tinham custos de transação reduzidos e eram uma fonte
de legitimidade; e por último, a renovação de credenciais, que era a mudança para uma
postura cooperativa frente aos regimes internacionais, visando melhorar a imagem e
credibilidade do país que era considerado violador de direitos humanos, campeão de
desflorestamento e possível fabricante de armas nucleares. Esses pilares também
sustentaram os novos paradigmas econômicos, que necessitavam de amplo apoio
internacional, seja para garantir a entrada de investimentos estrangeiros ou para garantir
a inserção das “campeãs nacionais” no mercado internacional, implementadas durante o
governo FHC, na lógica de autonomia pela integração (VIGEVANI, 2003, p. 39).
No entanto, autores mais críticos, como Amado Cervo (2007, p. 82), expõem o
caráter subserviente da política externa do período, ao realizar um alinhamento ideológico
com o dito Consenso de Washington. Essa crítica se embasaria no abandono de programas
e setores estratégicos em prol da aproximação com os Estados Unidos e com o Ocidente
para a obtenção de ganhos econômicos. Essa política teria um caráter destrutivo, onde se
destruiria as estruturas históricas da economia, transferindo, assim, sua responsabilidade
e renda para o exterior, tendo o processo como exemplo a atuação do BNDES, que estava
6
à frente do processo de privatização e oferecia financiamentos preferencialmente a
empresas estrangeiras (SILVA, 2016, p. 6).
Outro ponto seria a característica regressiva, que, entre os exemplos, estaria a
adesão e ratificação do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), pois essa teria sido
pouco valorizado pelas autoridades brasileiras e colocava o Brasil em uma situação
estratégica precária frente às potências nucleares. Esse período da política externa ganhou
o apelido pejorativo de “Diplomacia dos pés descalços”8.
Apesar da coerência das críticas, é preciso levar em consideração que muitos
avanços foram obtidos com o auxílio da política externa, em especial na esfera
econômica, reflexo do novo enfoque monetarista da administração pública brasileira,
como a estabilização da moeda e expansão dos segmentos beneficiados pelos programas
das “Campeãs Nacionais”, como apontado pelo próprio Cervo (2007, p 81):
Os impactos do Estado normal sobre a formação nacional são percebidos de
três maneiras, uma positiva e duas negativas. O choque da abertura despertou
empresários brasileiros do setor público e privado, acomodados que andava ao
abrigo de um protecionismo exacerbado a que havia conduzido o paradigma
anterior. O mercado interno, amplo e reservado, lhes bastava antes. Com a
abertura, para fazer face à inundação de produtos estrangeiros, foram forçados
a modernizar suas plantas e métodos. A resposta foi positiva, e, desse modo, o
choque da abertura contribuiu para elevar a produtividade sistêmica da
economia brasileira [...]. (CERVO, 2007, p. 81).
Dessa forma, assim como no caso da Rússia, é notável uma assimetria entre o
que era demandado e o que era oferecido nas negociações com o centro do sistema
unipolar. Com a troca de governo, na posse de Lula da Silva, em 2003, a política externa
brasileira mudaria, e, assim como as prioridades político-econômicas, o tipo de inserção
internacional também.
É nessa principal similaridade, a assimetria de forças em relação ao principal
polo de poder, que estão inseridas as entradas do Brasil e da Rússia no século XXI. Apesar
da miríade de fatores que fomentam a transição de governos e regimes, outro ponto de
junção é a mudança de paradigmas no começo do milênio. A transição do governo Lula
para uma autonomia pela diversificação (VIGEVANI, 2007, p. 283) em detrimento da
autonomia pela participação, e do governo Putin que deixou de lado o alinhamento
incondicional e, em um primeiro momento, adotou um pragmático ocidentalismo
moderado (DONALDSON et al, 2014, p. 363).
8 O termo foi cunhado devido ao episódio em que o chanceler brasileiro, Celso Laffer, teve que retirar os sapatos para inspeção, ao
chegar em um aeroporto nos Estados Unidos, devido ao acirramento da Guerra ao Terror
7
É também nessa transição que os rumos das duas nações convergem para tirar
do papel a ideia de um bloco de emergentes, que teria maior capacidade de fixar seus
pleitos por transformações no sistema internacional. Esse bloco já era visionado desde
1996, segundo Amorim (2011), pelo ministro das relações exteriores russo, mas só tomou
forma após a virada do milênio com o acrônimo BRIC e a articulação oficial dos BRICS,
com a adesão da África do Sul em 2011 (AMORIM, 2011).
O Brasil no século XXI: Descompasso entre diplomacia e defesa?
A política externa brasileira no século XXI fica marcada por uma mudança
paradigmática, reflexo na mudança do papel estatal, que deixava de ser o Estado Normal
neoliberal e passava para o paradigma do Estado Logístico, mudando os rumos da
diplomacia brasileira, como apresentado por Cervo (2007, p. 66):
Existe, por outro, o efeito operacional. O paradigma inclui determinado modo
de proceder, no caso, de fazer política exterior ou de controlar as relações
internacionais. A análise paradigmática há de colher as determinações internas
e os condicionamentos externos, os fins da política, o peso da ideia de nação a
construir e da cosmovisão. Tomado como referencial, como se fosse uma
espécie de tabela de indicadores, o paradigma vigente permite avaliar o
desempenho dos dirigentes e da sociedade organizada. (CERVO, 2007, p. 66).
O efeito desse paradigma na política externa não foi um enfrentamento brusco
com o centro do sistema, o qual o Brasil ainda era dependente, mas sim com a busca por
novos parceiros na periferia, tais como Índia e China, assim como a oposição à Área de
Livre Comércio das Américas (ALCA), que seria um processo irreversível de
dependência para a economia e sociedade brasileira (SILVA, 2016, p. 7).
Dessa forma, a busca pela autonomia se dá pela diversificação de parceiros e
oportunidades, ainda que a participação nos regimes não tenha sido deixada de lado, o
enfoque da política externa foi a redução da dependência e vulnerabilidade em relação ao
centro do sistema capitalista. A cooperação Sul-Sul entrou na agenda externa brasileira
como principal elemento de redução da assimetria com o Norte, gerando uma ampliação
nas relações diplomáticas e comerciais com países da África e da Ásia, em especial,
África do Sul e Índia, com o IBAS, e a China, que aumentava exponencialmente suas
importações e exportações do Brasil. (VIGEVANI, 2007, p. 282)
Somada a essa aproximação com o Sul global, a política externa também
resgatou os princípios do desenvolvimento, através da não indiferença, e ampliou os
8
aspectos da integração regional. A integração regional, que no governo anterior era
estritamente econômica, ganha outras vertentes. Enfatizam-se as dimensões físicas,
sociais, produtivas e políticas. O Mercosul adquiriu um escopo político social antes
inexistente, assim como foram lançadas as bases para a criação da União das Nações Sul-
Americanas (UNASUL), fundada em 2008, um marco para a integração e cooperação
política no continente (SILVA, 2016, passim).
O país passa a adotar um multilateralismo da reciprocidade, em detrimento do
multilateralismo utópico, entre países centrais e emergentes. Cervo (2007, passim) aponta
o enfrentamento das dependências estruturais, em especial a financeira, a empresarial e a
tecnológica, visando fim de atenuá-las, como um dos objetivos de inserção do país em
âmbito de cooperação Sul-Sul.
Foi dentro dessa iniciativa que o Brasil participou de um dito revisionismo soft
das instituições internacionais, com o questionamento de tratados do regime internacional
e o pleito pela ampliação do Conselho de Segurança da ONU, assim como um leve
desalinhamento com as posturas dos Estados unidos, mas não à ponto de afetar as relações
entre os dois países (LIMA, 2010, p. 409). Um exemplo desse desalinhamento foi a
interferência bem-sucedida do Brasil, em conjunto com a Turquia, no Acordo Nuclear
com o Irã, evitando novas sanções aprofundamento das tensões (LIMA, 2010, p. 410).
Havia também a ideia de que reforçar a América do Sul como o polo de poder e
plataforma político-econômica de realização dos interesses brasileiros (CERVO, 2007,
passim). A América do Sul seria o pilar de sustentação de um polo geopolítico e regional,
que, associado ao multilateralismo da reciprocidade, se tornaria uma das bases para uma
multipolaridade benigna
Esse novo arranjo permitiu ao Brasil a intensificação das relações com parceiros
chaves. A convergência de interesses em processos semelhantes permitiu a reunião e a
concertação de outras potências emergentes e regionais para a formação de novos grupos
de diálogos. O mais notório é o BRICS, formulado em cima da visão de O’Neill (2001,
passim), que criou um ponto em comum a todos os singulares membros, a situação de
emergente. Naturalmente, por iniciativa destacada de Brasil e Rússia, que possuíam o
interesse em comum de reduzir as assimetrias em relação ao centro de poder ocidental, o
BRICS, não só tomou corpo, como tomou vida.
Hoje, a iniciativa financia projetos de infraestrutura, educação e modernização
produtiva nos países membros e em seus parceiros, servindo como uma espécie de
contraproposta ao ordenamento assimétrico e à globalização unipolar. Essa trajetória foi
9
mantida durante o governo Dilma, apesar de uma visível diminuição da atuação brasileira
no cenário internacional, especialmente após o caso Snowden, em 2013, que já apontava
as vulnerabilidades defensivas do país, assim como a insatisfação e atuação dos Estados
Unidos contra a formação e fortalecimento do bloco de emergentes.
Contudo, se a política externa apresentou mudanças vigorosas e positivas,
devido aos novos paradigmas e à ampla capacidade do Soft Power brasileiro, a política
de defesa não usufruiu de policy shifts parecidos. Apesar do novo engajamento em
missões de paz, da institucionalização de um Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS),
na UNASUL, e da expansão na diversificação de parceiros para aquisição de
equipamentos militares, não se pode falar que houve uma busca ativa por uma autonomia
pela diversificação na política de defesa, como houve na política externa, apenas uma
expansão de meios. Essa situação de estagnação nos princípios atuantes da política de
defesa se dá em razão de diversos fatores, alguns dos quais são elucidados pela baixa
articulação entre o meio militar e as diretrizes diplomáticas, pela inserção histórica do
Brasil na esfera de defesa e segurança hemisférica estadunidense e pelo ainda baixo
interesse da sociedade civil nos assuntos de defesa. (LIMA, 2010, p. 414).
Em uma aproximação mais realista do cenário internacional, a dissociação das
políticas externas e de defesa pode ter graves efeitos na inserção externa do país, uma vez
que seria virtualmente impossível manter os ganhos do soft power sem uma sólida e
coerente base de hard power. Ou seja, o desalinhamento entre política externa e defesa
pode ter efeitos nocivos nos interesses e objetivos nacionais à longo prazo. O Brasil
estaria especialmente vulnerável à essa situação, já que a política de defesa não
acompanhou os ganhos na política externa, mesmo com as expansões dos meios, boa
parte das doutrinas, das perspectivas e dos cenários visionados nas Forças Armadas ainda
sofrem de grande influência e dependência dos equipamentos ocidentais, das doutrinas
da OTAN e da ideologia de defesa hemisférica.
Tais fatores caracterizam limitações na atuação da diplomacia de defesa, que fica
subordinada e restringida em sua atuação dentro do escopo aceito pelas diretrizes
ocidentais, o que acaba por ampliar a assimetria do país em relação aos países do centro
de poder unipolar, em descompasso com a política externa que visa, justamente, reduzir
tal assimetria. Maria Regina (2010, p. 415) alerta que tal situação gera a possibilidade de
retrocessos, já que o encapsulamento da política de defesa limitaria a política externa,
gerando um overstrecht do soft power, que não seria suficiente, por si só, para manter os
10
avanços do aumento da influência brasileira no globo sem um aparato de hard power em
consonância. (LIMA, 2010, p. 415).
Esse processo de retrocesso já é visível com a diminuição da atuação brasileira
no cenário internacional. Uma tendência iniciada no segundo governo de Dilma Rousseff
e intensificada com a mudança brusca de governo em 2016 que abalou o funcionamento
institucional brasileiro.
Apesar de ainda não haver indicações claras de movimentação em relação a uma
mudança ou continuidade de paradigmas, há uma visível redução da atividade brasileira
no cenário internacional que coloca em risco o status e influência obtido nos anos
anteriores, pois a não-formulação de uma política externa implica em uma dupla
orfandade na inserção internacional, já que também não há embasamento para sustentar
essa inserção na política de defesa.
A Rússia no Século XXI: Fim da hibernação?
A posse de Putin como presidente interino no dia primeiro de janeiro de 2000
chocou não só os russos, mas também o mundo. A renúncia de Yeltsin não era uma ação
prevista, nem imaginada. O então presidente dos EUA, Bill Clinton, só foi informado
alguns dias antes do anúncio televisivo em que anunciava Putin como seu sucessor.
Yeltsin havia assegurado as autoridades americanas que Putin seria uma renovação
benéfica e necessária na conjuntura política do país e que também estaria compromissado
com o desenvolvimento da democracia e continuidade das reformas (CONRADI, 2017,
p. 110).
No entanto, para os Estados Unidos, Putin era uma figura misteriosa, não havia
informações sobre seu passado, além de que era um antigo oficial da KGB que ascendeu
rapidamente na carreira política. Começara em um cargo na prefeitura de São Petersburgo
e logo se tornou diretor da FSB, órgão de inteligência que sucedeu a KGB. Pouco depois,
foi apontado como primeiro-ministro, em 1998, pelo então presidente, Boris Yeltsin, que
já havia substituído os ocupantes desse cargo cinco vezes em menos de um ano
(CONRADI, 2017, p. 113).
Quando Putin assumiu a posição de Primeiro Ministro, em 1998, era um total
desconhecido do público russo e da comunidade internacional. Fato que mudaria com a
renovação do conflito na Chechênia, ainda 1998, onde Putin tomou proeminência pelo
manejo das questões segurança e integridade territorial, a oportunidade perfeita para se
destacar no cenário político. A resolução do conflito na Chechênia fez sua popularidade
11
disparar, o que garantiu sua vitória nas eleições de março de 2000 (CONRADI, 2017, p.
114). O plano de Yeltsin de implantar um sucessor foi exitoso e, em primeira instância,
sua promessa aos Estados Unidos, de que ele continuaria com as posturas de reformas e
“normalização” de seu governo, também pareciam ser verdadeiras.
Analisar a política externa russa durante a Era Putin é também analisar as suas
necessidades internas e principalmente a relação com o ocidente, o principal vetor de
mudanças, influências e chamariz econômico na política russa da década de 90 e também
principal ameaça na percepção geopolítica russa. Por essa razão, a relação com o ocidente
é conturbada, já que há a alternância entre momentos de cooperação em situações de win-
win e posturas mais rígidas, quando existe a ameaça aos interesses e à soberania nacional
russa. Por isso, pode-se dizer que a postura da política externa russa no período é
pragmática, e aqui podemos dividi-la em quatro etapas, que serão brevemente explicadas,
em conjunto com a respectiva política de defesa e relação com o ocidente.
As quatro etapas são: O alinhamento pragmático, durante o período de Guerra
ao Terror; O afastamento, com as tensões geradas pelo alargamento da OTAN e União
Europeia; O reset e a sobrecarga, no período Obama-Medvedev, e; A postura desafiante
com a intervenção na Ucrânia. Com essa divisão também poderão ser abordas as questões
das políticas de defesa russa, que tem forte influência e consonância sobre a política
externa, como veremos adiante.
A primeira etapa, aqui chamada de alinhamento pragmático, ficou marcada pela
convergência de interesses sistêmicos e situacionais russos e estadunidenses nos campos
da defesa e segurança. Nos interesses sistêmicos, ambos os países tinham interesse na
expansão do regime de não-proliferação nuclear, assim como no controle de misseis
balísticos. As iniciativas de Putin nesses seguimentos resultaram na aproximação com os
Estados Unidos e geraram confiança no ocidente, de onde a Rússia necessitava de aporte
financeiro (DONALDSON et al, 2014, p. 365).
Em âmbito situacional, a Guerra ao Terror, começada após os atentados de 11
de setembro de 2001, funcionou como um imã para os dois países. Os Estados Unidos,
que buscava apoio para combater o terrorismo global e realizar a intervenção no
Afeganistão, pode contar com o auxílio russo que, além de se alinhar com os
posicionamentos americanos no Conselho de Segurança, facilitou a obtenção de uma base
na Ásia Central, essencial para as atividades militares no Afeganistão, assim como rotas
logísticas e de suprimentos para as tropas americanas através de seu território. (ZHEBIT,
2003, p. 161)
12
Em troca, os russos receberam auxílio financeiro e o mais importante,
legitimidade para a continuação do conflito na Chechênia, que sofria críticas do ocidente
por violações dos Direitos Humanos. A guerra, que já estava em favor da Rússia, entrou
no rol das ações antiterroristas. (DONALDSON et al, 2014, p. 370). As operações na
Chechênia, no entanto, só foram oficialmente terminadas em 2009, com a rendição dos
grupos jihadistas. Essa convergência mostra também a relação intrínseca da política
externa com a política de defesa, que à época tinha como principal objetivo o
apaziguamento das províncias rebeldes no Cáucaso.
No entanto, o estabelecimento desses canais de cooperação era limitado aos
assuntos de interesse mútuo e, quando necessário, os Estados Unidos e seus aliados
ocidentais não hesitavam em agir unilateralmente, como foi o caso de 2003 na invasão do
Iraque e a contínua expansão da União Europeia e OTAN no espaço pós-soviético. (Dugin
2015, p.75)
Com a erosão do alinhamento, que agora ameaçava as necessidades estratégicas
e de segurança da Rússia, a política externa sofre uma mudança em razão das
necessidades da defesa. A segunda etapa, que começa com a invasão do Iraque pelos
Estados Unidos, em 2003, entendida como uma ação unilateral, já que foi vetada pelo
Conselho de Segurança. Apesar disso, essa etapa teve seus principais fatores de
afastamento relacionados com a expansão da OTAN e da União Europeia, com o apoio
ocidental às revoluções coloridas nas antigas repúblicas soviéticas, e, em especial, com a
proposta americana de construir uma rede de escudos antimísseis na Polônia
(DONALDSON & NOGEE & NADKARNI, 2014, p. 381).
É nesse período, que se estende até 2008, que a Rússia busca ativamente a
diversificação de parcerias para contrapor uma crescente atuação unilateral americana,
assim como, há a quebra no alinhamento e paralisia da política externa orientada pelos
ocidentalistas na Rússia. O resultado é o aprofundamento de relações com países da Ásia
e América do Sul, em especial a China, a Índia e o Brasil, sendo comparável ao
pensamento brasileiro de autonomia pela diversificação. Foi por essa mudança de
posicionamento que a Rússia, junto ao Brasil, tomou a iniciativa para propor as
negociações entre os países emergentes que futuramente formariam os BRICS
(AMORIM, 2011). A diversificação representava para Rússia, não só uma redução da
dependência em relação ao ocidente, mas também uma forma de se obter apoio para frear
futuras investidas unilaterais estadunidenses que ameaçassem os interesses estratégicos
russos.
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A terceira etapa é marcada por um reajustamento das relações entre Estados
Unidos e Rússia, assim como aprofundamento da diversificação. Com a posse de
Medvedev em 2008, havia a expectativa de retomada da ocidentalização da política
externa, por conta das fortes conexões do novo presidente com grupos econômicos
ligados ao ocidente. As tensões com a Guerra da Geórgia, que estourou apenas 8 meses
após a posse de Medvedev, pareciam indicar o contrário. A guerra, que durou somente
cinco dias, foi a primeira demonstração de força fora do território russo desde o fim da
União Soviética, provava que a política de defesa russa estava sendo levada à sério, e que
o espaço pós-soviético era uma necessidade estratégica que valia o custo de uma
intervenção militar. Uma linha na areia que servia de aviso ao avanço ocidental. A
intervenção, no entanto, teve efeitos negativos nas relações com ocidente, o que gerou o
antagonismo do governo Bush e congelou o aprofundamento das parcerias com a União
Europeia (DONALDSON & NOGEE & NADKARNI, 2014, p. 397).
Apesar da estabilização econômica no período anterior, ainda existia um forte
interesse de admissão na Organização Mundial do Comércio por parte de segmentos da
economia russa, assim como havia uma dependência macroeconômica nos mercados
europeus, principais importadores de produtos russos. É nesse âmbito que acontece o
reset, com a posse de Obama, em 2009, nos Estados Unidos. Mais uma vez, a
convergência de interesses permitiu a aproximação dos dois países.
Essa política ficou marcada como o Reset, pois o ministro das Relações
Exteriores russo, Sergei Lavrov foi presenteado, pela então secretária de
Estado, Hillary Clinton, com um botão escrito Reset, para que ele apertasse,
simbolizando um reinicio nas relações russo-americanas contemporâneas. Um
fato curioso, é que a tradução em russo no botão, na verdade, significava
sobrecarregar, o que gerou um certo desconforto com o ministro russo que
prontamente apontou o erro (PAULA, 2016, p. 60)
O Reset foi recebido, inicialmente, com desconfiança pelo governo russo e com
falta de apoio pelo senado americano. Basicamente, ainda se propagava a imagem da
Rússia como uma ameaça à ordem hegemônica, agressora e expansionista dentro dos
círculos midiáticos ocidentais. Contudo, uma nova Guerra Fria não soava de forma
interessante, nem para os Estados Unidos e nem para a Rússia, naquele momento. A crise
internacional e interna, somada as custosas operações no Afeganistão e no Iraque,
dissuadiram a administração Obama de perseguir políticas que desencadeassem uma nova
corrida armamentista e, consequentemente, mais gastos militares e erosão do apoio
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político dos aliados europeus, que já não viam com bons olhos as políticas bélicas do
governo anterior. (DONALDSON & NOGEE & NADKARNI, 2014, p. 399)
Para a Rússia, a confrontação com o ocidente significaria uma possível
desestabilização macroeconômica interna, podendo resultar em uma grave crise, já que
ainda dependia da exportação dos recursos energéticos para manter seu crescimento e
modernização. Assim, a Rússia dependia do ocidente para efetuar a modernização de sua
economia e consequentemente de suas capacidades tecnológicas (DONALDSON &
NOGEE & NADKARNI, 2014, p. 400).
A última etapa do período analisado é referente ao retorno das tensões entre a
Rússia e o ocidente e também ao aprofundamento das relações com a China e os parceiros
asiáticos. Na política de defesa, vemos o aumento exponencial das atividades russas, com
as intervenções na Ucrânia e na Síria marcando o fim das limitações de atuação impostas
pela subordinação à assimetria com o ocidente. Essa etapa pode ser chamada de
enfrentamento, pois a Rússia busca ativamente seus interesses estratégicos, abandonando
as limitações regionais e atuando simultaneamente em diferentes partes do globo, como
no Leste Europeu e no Oriente Médio.
O desenvolvimento dessa situação se dá, mais uma vez, pelo antagonismo entre
os interesses estratégicos russos e os avanços ocidentais. Novamente, as necessidades
geoestratégicas se sobressaem frente a perspectiva diplomático-econômica, já que há uma
nova ameaça à estabilidade geopolítica russa, dessa vez contra antigos aliados no Oriente
Médio, com a Primavera Árabe na Líbia e na Síria, e contra uma zona de influência
histórica russa, a Ucrânia.
A deterioração das relações começa na Líbia. Apesar da aprovação russa à
resolução que permitia a intervenção na Líbia, por parte da OTAN, para proteção
humanitária, a atuação direta da OTAN contra Gaddafi e apoio aos rebeldes foram ações
consideradas ilegais e traiçoeiras pelos russos. Esse acontecimento, somado à uma série
de descontentamentos russos, em especial, os relativos às tentativas de aproximação com
a Europa, culminaram em uma postura mais assertiva quando a primavera árabe chegou
na Síria, vetando propostas similares as elaboradas para a Líbia no Conselho de
Segurança. Medvedev, que conseguiu seu principal objetivo, a adesão à OMC, abdicou
de concorrer à uma reeleição em favor de Putin, que mais uma vez, atuava para impedir
o avanço ocidental no campo geoestratégico (DUGIN, 2015, passim).
A assertividade russa chegou ao seu ápice durante o golpe na Ucrânia, que depôs
o presidente Yanukovytch, semanas antes de assinar a entrada do país à União Eurasiana,
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uma das principais inciativas regionais da Rússia. Em seu lugar, assumia um governo
provisório formado por políticos ligados as oligarquias econômicas que desejavam a
adesão à União Europeia. A entrada da Ucrânia na União Europeia era um fator
problemático para Rússia, já que existe um alto grau de integração entre a economia dos
dois países, no entanto, o fator mais preocupante estava relacionado a base de Sevastopol,
sede da Frota do Mar Negro russa, na Criméia. A Rússia possuía permissão para utilização
da base somente até meados de 2014. Havia não somente o temor da não renovação da
licença para estadia da marinha russa em Sevastopol, mas também, a possibilidade de o
governo provisório aderir à OTAN, o que garantiria o acesso da base às forças navais
americanas. Essa seria uma humilhação definitiva para Rússia, que utilizava a base desde
o reinado de Catarina, a Grande. (CONRADI, 2017, p. 263)
A estratégia de Putin, ao intervir na Ucrânia, não necessariamente visava o
conflito, mas sim, o congelamento dos movimentos ucranianos em direção ao ocidente,
almejando excluir permanentemente a possibilidade de uma adesão ucraniana à OTAN
ou à UE, além de garantir a autonomia para o Leste do país, que possui laços econômicos
estreitos com a Rússia. Para Putin, a derrota nesses objetivos significaria uma perda
pragmática irreparável para a estratégia e situação geopolítica da Rússia, o que afetaria
diretamente a soberania russa no futuro. A vitória, por outro lado, significaria um duro
golpe na influência estadunidense na Europa e no seu posicionamento global, mais que
tudo, seria a marca do início da transição da ordem unipolar para uma ordem pós-
americana (LO, 2015, p. 178).
Conclusões
É observável uma primazia da política de defesa sobre a política externa apesar de
existir uma forte articulação entre as duas esferas. Ao contrário do caso brasileiro, a
autonomia russa se dá cada vez mais pela sua capacidade em alternar o uso do soft power
e do hard power. Apesar de haver um enfraquecimento do alcance do soft power pela
militarização da diplomacia, ele ainda continua sendo uma ferramenta importante na
formulação estratégica russa, que cada vez mais se orienta para parceiros não-ocidentais.
Apesar das diferenças situacionais e regionais da inserção da Rússia e do Brasil
no cenário internacional, é possível vislumbrar uma aproximação nos interesses
sistêmicos dos dois países: Os interesses de afirmação de suas esferas de influência em
nível regional e o de redução das assimetrias com o centro do sistema.
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As políticas externas dos dois países, nesse sentido, buscam “objetivos gerais”
semelhantes através de meios e convergências diferentes. A concertação entre os países
ganhou força devido à essa similaridade de objetivos, resultando na formação do BRICS
e no apoio mútuo aos pleitos e posturas nos fóruns multilaterais.
A deficiência brasileira em transmitir os avanços na política externa para sua
política de defesa tem gerado um esgotamento das capacidades de avanço em sua agenda
externa, além da possibilidade de retrocesso. Enquanto a plena utilização e primazia da
política de defesa e do hard power pela Rússia têm garantido a manutenção de seus
interesses geopolíticos, além de demonstrar a retomada do status de Grande Potência,
com atuação de alcance global.
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