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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA E LITERATURA ITALIANA PAULA PARISE PINTO Sessanta Racconti Aspectos do Surrealismo em contos de Dino Buzzati São Paulo 2007

Dissertacao Paula Parise Pinto

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Dissertacao Paula Parise Pinto

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO

    EM LNGUA E LITERATURA ITALIANA

    PAULA PARISE PINTO

    Sessanta Racconti

    Aspectos do Surrealismo em contos de Dino Buzzati

    So Paulo 2007

  • PAULA PARISE PINTO

    Sessanta Racconti

    Aspectos do Surrealismo em contos de Dino Buzzati

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Lngua e Literatura Italiana, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Letras. rea de Concentrao: Literatura Italiana Orientadora: Prof. Dr. Lucia Wataghin

    So Paulo 2007

  • AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE. Servio de Biblioteca e Documentao da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo

    Pinto, Paula Parise Sessanta racconti : aspectos do Surrealismo em contos de Dino Buzzati / Paula Parise Pinto ; orientadora Lucia Wataghin. -- So Paulo, 2007. 182 f. Dissertao (Mestrado - Programa de Ps-Graduao em Lngua e Literatura Italiana. rea de concentrao: Literatura Italiana) - Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. 1. Buzzati, Dino, 1906-1972. 2. Literatura italiana (Crtica e interpretao) . 3. Conto (Aspectos culturais; Aspectos sociais; Histria) Itlia Sculo 20. 4. Surrealismo. I. Ttulo.

    21. CDD 853

    P659

  • FOLHA DE APROVAO

    Paula Parise Pinto Sessanta Racconti: Aspectos do Surrealismo em contos de Dino Buzzati

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre. rea de Concentrao: Literatura Italiana

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. ______________________________________________________________

    Instituio: ____________________ Assinatura: ______________________________

    Prof. Dr. _____________________________________________________________

    Instituio: ____________________ Assinatura: ______________________________

    Prof. Dr. _____________________________________________________________

    Instituio:____________________ Assinatura: ______________________________

  • i

    Aos meus avs Arthur e Maria

    Aos meus pais

  • ii

    AGRADECIMENTOS

    Este trabalho s pode ser realizado graas cooperao e o incentivo de vrias

    pessoas, bem como de algumas instituies, que de alguma forma contriburam para que meus

    objetivos fossem concretizados. Assim, gostaria de direcionar meus mais sinceros

    agradecimentos:

    - Prof. Dr. Lucia Wataghin pela orientao desta pesquisa.

    - Ao Prof. Dr. Maurcio Santana Dias pelo apoio na realizao do PAE, mas sobretudo

    pelos interessantes comentrios e sugestes que enriqueceram minhas leituras.

    - Prof. Dr. Doris Ntia Cavallari pela leitura atenta e pelas sugestes apresentadas

    durante o Exame de Qualificao.

    - A Edite Mendez Pi pelo auxlio prestado junto Secretaria de Ps-Graduao do

    DLM.

    - Ao CNPQ pelo apoio financeiro concedido atravs de uma bolsa de pesquisa.

    - Ao Coseas/Crusp pela moradia, sem a qual no seria possvel minha permanncia em

    So Paulo.

    - Aos amigos do G 108, Marcos, Venncio e Fabiana, pela calorosa acolhida, pela

    cumplicidade e pelo essencial apoio humano e material durante minha estadia.

    - Ao Prof. Alvaro Biondi que gentilmente atendeu meus pedidos e me enviou os

    imprescindveis artigos solicitados.

    - A querida Maria do Rosrio Toschi, que partilhou comigo, entre outras coisas, suas

    impresses sobre Buzzati e seu precioso exemplar de Il pianeta Buzzati.

    - A Alexandre pelo amor, compreenso, zelo, assim como pela pacincia ao enfrentar

    os congestionamentos das marginais para me levar at a Cidade Universitria.

    - A Samara, amiga, leitora, crtica e revisora, com quem dividi as alegrias, as

    descobertas e as angstias da ps-graduao.

    - Ao meu irmo ngelo, sempre incentivador, pelas dicas, apoio e afeto, essenciais

    no s durante a ps-graduao, mas durante toda a minha vida.

    - Aos meus avs Arthur e Maria e aos meus pais, cujo amor, educao, carinho,

    estmulo e carter conduziram-me at aqui.

    - A Elio e Eunice, que me adotaram como filha, pelo auxlio e incentivo ao longo

    desta jornada.

    - s Sete, que torceram distncia para que tudo desse certo.

  • iii

    Era molto pi delicato e tenero di quanto si

    credesse. Era fatto di quell'impalpabile

    sostanza che volgarmente si chiama favola o

    illusione: anche se vero. Galoppa, fuggi,

    galoppa, superstite fantasia. Avido di

    sterminarti, il mondo civile ti incalza alle

    calcagna, mai pi ti dar pace.

    Dino Buzzati, Il Babau

  • iv

    RESUMO

    A proposta desta dissertao analisar em contos do livro Sessanta Racconti (1958) a

    relao entre a potica do autor e a esttica surrealista. Atravs do exame de elementos

    surrealistas especficos (acaso objetivo, humor negro, sonho, maravilhoso e fantstico)

    utilizados por Buzzati na construo dos 16 contos selecionados, buscou-se identificar

    indcios de similaridade, transposio ou releitura de modo a aprofundar o conceito de

    surrealismo buzzatiano, diverso das demais manifestaes surrealistas, mas ao mesmo tempo

    em dilogo com a esttica vinculada a Andr Breton e seguidores. Desta forma, pretende-se

    colaborar para o preenchimento de lacunas ainda existentes nos estudos sobre o autor,

    auxiliando na construo de possveis novas abordagens para anlise e traduo da obra de

    Buzzati.

    Palavras-chave: Literatura Italiana; Narrativa Contempornea; Dino Buzzati; Sessanta

    Racconti; Esttica Surrealista.

  • v

    ABSTRACT

    The aim of the present dissertation was to study the tales in the book Sessanta

    Racconti (1958) to analyze the relation between authors style within the surrealist aesthetics.

    We tried to identify similarities, transposition or review, through the study of specific

    surrealistic elements (objective hazard, black humour, dream, marvelous and fantastic) that

    was used by Buzzati to create his 16 selected tales. Thus we intend to show a idea of the

    Buzzatis surrealism, different of another surrealist manifestations, but at the same time in

    dialogue with the aesthetic model related to Andr Breton and his followers. Finally we intend

    to improve the authors researches, with suggestions for the development of new approaches

    to analysis and translations of Buzzatis works.

    Keywords: Italian Literature; Contemporary fiction; Dino Buzzati; Sessanta Racconti;

    Surrealist aesthetics.

  • vi

    SUMRIO Resumo ......................................................................................................................iv

    Abstract ........................................................................................................................v

    Introduo...................................................................................................................1

    1. SURREALISMO: DEFINIES E INDEFINIES..........................................7

    2. FRONTEIRAS INDEFINIDAS: DINO BUZZATI E O SURREALISMO ........16

    2.1. Sessanta Racconti : apresentao do corpus .........................................................22

    3. ALM DAS COINCIDNCIAS: O ACASO OBJETIVO ..................................26

    3.1. Estados, mtodos e tcnicas do Acaso Objetivo ...................................................30

    3.2. O acaso objetivo em contos de Dino Buzzati........................................................33

    3.2.1. Um encontro nada inocente: Qualche utile indicazione a due autentici

    gentiluomini (di cui uno deceduto per morte violenta) ................................................35

    3.2.2. O desejo nas nuvens: Le tentazione di SantAntonio ..........................................46

    3.2.3. Um maravilhoso acaso: Una pallottola di carta ................................................53

    4. HUMOR NEGRO: O RISO DESCONCERTANTE ...........................................58

    4.1. Linguagem, temas e meios expressivos ................................................................62

    4.2. O humor negro no universo ficcional de Dino Buzzati ........................................64

    4.2.1. Sette Piani e La fine del mondo: a revolta contra as instituies .......................65

    4.2.2. A inverso de papis em I topi e Occhio per Occhio ........................................76

    5. TRANSFORMANDO O SONHO EM ARTE .....................................................88

    5.1. Teorizao e prtica onrica ................................................................................90

    5.2. O sonho buzzatiano .............................................................................................93

    5.2.1. O trem de destino incerto: Direttissimo e Qualcosa successo..........................95

    5.2.2. Sonho, acaso objetivo e humor negro em AllIdrogeno....................................106

    6. O MARAVILHOSO E O FANTSTICO NO SURREALISMO ..................... 112

    6.1. O maravilhoso e o fantstico surrealista de Dino Buzzati ..................................122

    6.1.1. Inviti Superflui: o maravilhoso em oposio realidade ................................. 127

    6.1.2. O maravilhoso que amedronta: o caso de Una Goccia ....................................131

  • vii

    6.1.3. A viagem infinita: I sette messaggeri .............................................................. 137

    6.1.4. Releituras do fantstico tradicional - Gli amici e Grandezza dell uomo .......... 143

    6.1.5. Sonho e fantstico em La frana ......................................................................155

    Consideraes Finais .............................................................................................. 160

    Referncias.............................................................................................................. 166

    1. Dino Buzzati......................................................................................................... 166

    2. Demais Referncias .............................................................................................. 168

    Anexos ..................................................................................................................... 176

    Anexo A- Surrealismo em pinturas de Dino Buzzati ................................................ 177

    Anexo B- Arte surrealista citada ............................................................................. 180

  • 1

    INTRODUO

    Dino Buzzati (1906-1972) surge no cenrio literrio italiano juntamente com uma

    gerao de escritores que rene nomes como Arturo Loria, Massimo Bontempelli, Corrado

    Alvaro, Antonio Delfini, Tommaso Landolfi, Luigi Malerba, Alberto Savinio e Cesare

    Zavattini, os quais, nas dcadas de 30/40, cada qual ao seu modo, ousou escolher a via da

    imaginao, do mgico, do fantstico, da fbula e do surreal para representar a realidade e se

    aventurar nos mais profundos e instigantes anseios e contradies do homem contemporneo,

    deixando como legado uma fascinante produo literria, bastante heterognea, mas que ainda

    hoje permanece pouco explorada.

    Levando-se em conta o perodo histrico em questo, culturalmente marcado pelos

    confrontos ideolgicos entre intelectuais fascistas e grupos contrrios ao regime, era, de fato,

    preciso coragem para enveredar pelos caminhos do fantstico, do sonho, da loucura, do

    delrio. Com esta escolha, corria-se o risco de ser acusado de evaso da realidade e de falta de

    comprometimento com o momento histrico-social, em um panorama literrio que se

    caracterizava sobretudo por uma entusistica defesa da esttica realista (que mais tarde

    culminaria na proposta Neo-Realista) apoiada na viso crtica das relaes sociais e que fazia

    uso da literatura como um veculo esttico-ideolgico da resistncia. Assim, muitos destes

    escritores inclinados a explorar outros mundos, que pareciam distantes da realidade italiana

    da poca, no podiam ser enquadrados dentro de um fenmeno histrico-cultural ou literrio

    especfico, de maneira que foram deixados margem, considerados figuras isoladas dentro

    da Literatura Italiana - e com Dino Buzzati no foi diferente.

    Injustamente citado entre os escritores menores em muitos compndios de Histria

    da Literatura Italiana, o escritor, nascido na pequenina San Pellegrino, por muito tempo foi

    apenas lembrado por seu romance Il Deserto dei Tartari (1940) e por uma visvel semelhana

  • 2

    com o estilo do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), que se tornou incmoda aos olhos

    do escritor italiano. Com o passar dos anos, principalmente aps a dcada de 90, a obra de

    Dino Buzzati passou a ser gradativamente redescoberta, o que resultou em um significativo

    aumento nos estudos que pouco a pouco vm contribuindo para derrubar a noo de que a

    obra do autor peca por uma alienao social, como consta em muitos livros e manuais de

    Literatura Italiana.

    Ao analisar as narrativas do autor com os olhos de um leitor do sculo XXI, fora do

    contexto de embate ideolgico em que foram produzidos e sem a viso crtica da poca, o que

    se percebe uma profunda anlise da realidade, que aborda inclusive temas presentes tambm

    no Neo-Realismo (como os horrores da guerra e o medo generalizado que ela incutira no

    povo), mas que ao serem trabalhados atravs do uso da imaginao, do fantstico, do

    surrealismo no petrificaram o autor, lembrando aqui a analogia proposta por Italo

    Calvino1, entre o fazer literrio e o mito de Perseu. Segundo o autor, para decepar a cabea da

    Medusa (ou seja, para encarar a realidade, o mundo contemporneo), Perseu (o escritor, o

    poeta) dirige o olhar para aquilo que s pode se revelar por uma viso indireta, por uma

    imagem capturada no espelho (CALVINO, 1990, p.15-16). No se trata de negar a

    realidade, mas sim de considerar o mundo sob uma outra tica, como aquela proposta por

    Buzzati, que em vez de confrontar-se diretamente com as disputas ideolgicas e sociais (ou

    seja, em vez de olhar diretamente para a face da Medusa - como sugere a metfora de

    Calvino) opta por reconstruir atravs de um espelho (multifacetado, diga-se de passagem) as

    angstias e os temores do seu tempo.

    Mas o espelho de Buzzati no reflete apenas a vida real: o escritor vai alm e atinge

    as fronteiras da surrealidade, ao buscar conciliar realidade e imaginao, sonho e cotidiano,

    em contos freqentemente permeados por uma atmosfera onrica, em que situaes banais e

    1 Analogia bastante significativa, dado o fato de que, originalmente Neo-Realista, Calvino optara ao longo dos anos por outra via, ou seja, pelo uso da fbula e do fantstico.

  • 3

    corriqueiras se misturam a elementos irracionais, estabelecendo um constante dilogo entre o

    real e o imaginrio. E justamente atravs desse dilogo que possvel reconhecer em alguns

    contos do autor elementos que se conectam esttica surrealista.

    O Surrealismo, mesmo que de forma transfigurada e atravs de inmeras releituras,

    difundiu-se pelos quatro cantos do mundo, sendo fonte de inspirao, ainda que de forma

    diluda, para os mais diferentes meios expressivos e atraindo, direta ou indiretamente, artistas

    bastante heterogneos ao defender uma potica voltada para o inconsciente, para os sonhos,

    para os desejos mais secretos, para a liberdade. A esttica surrealista prope a unidade, ou a

    superao da contradio entre sujeito e objeto, conciliando dicotomias como vida/morte,

    real/imaginrio, dizvel/inefvel, conscincia/inconscincia, viglia/sono, divino/demonaco,

    ou polaridades como alto/baixo ou ideal/material.

    A motivao inicial para o desenvolvimento desta dissertao remonta ao ano de 2001,

    durante minha graduao, em que tive a oportunidade de realizar um trabalho de anlise e

    traduo de contos de Dino Buzzati. Em seus textos, reconheci elementos que dialogavam

    com a esttica surrealista, entre eles o maravilhoso, o fantstico, o sonho, o humor negro, o

    acaso objetivo, caractersticos do movimento centrado no nome de Andr Breton (1896-

    1966). Ao procurar subsdios tericos para as anlises e tradues, constatei que o carter

    peculiar da obra do escritor italiano dividiu os estudiosos e crticos, que ora o aproximam da

    literatura fantstica, ora do Surrealismo, no definindo, contudo, os elementos que permitem

    tal aproximao e nem os aspectos que delimitam as fronteiras entre um e outro.

    Percebida a existncia de uma lacuna no que se refere identificao dos elementos e

    forma com que estes vinculariam Buzzati ao Surrealismo, e diante do crescente interesse de

    pesquisadores por sua obra, surgiu a proposta de analisar como o autor transpe ou utiliza o

    referencial surrealista em seus contos, sobretudo no que se refere presena daqueles que so

    considerados os principais elementos na criao da surrealidade: o acaso objetivo, o sonho, o

  • 4

    humor negro, o maravilhoso e o fantstico.

    Para realizar a anlise era necessrio, antes de mais nada, selecionar - entre os diversos

    livros de contos publicados pelo autor - aquele que seria o mais adequado para o recorte

    proposto. Assim, optou-se pela coletnea Sessanta Racconti (1958), obra bastante

    significativa, considerada por muitos um grande apanhado do universo criativo do autor, j

    que rene textos anteriormente publicados e selecionados pelo prprio Buzzati, permitindo

    assim abranger com a escolha um perodo considervel de sua produo. Do livro em questo,

    tendo como critrio a presena de ao menos um dos cinco elementos surrealistas acima

    elencados, foram selecionados dezesseis contos, considerados os mais representativos ou

    ilustrativos no tocante questo do dilogo entre o autor italiano e o Surrealismo.

    Partindo do pressuposto de que exista um dilogo entre Dino Buzzati e o Surrealismo,

    resultando, segundo Alvaro Biondi (1992), em um surrealismo buzzatiano, o presente estudo

    prope reformular questionamentos referentes presena do Surrealismo na obra do escritor,

    buscando identificar no corpus selecionado de que modo o autor transpe os elementos

    surrealistas anteriormente citados, tanto na temtica quanto na prpria estruturao do espao

    narrativo. Com isso, acredita-se ser possvel identificar se h apenas um dilogo com as

    demais manifestaes surrealistas, surgidas a partir do movimento liderado por Andr Breton,

    ou se Buzzati de fato subverte suas referncias, imprimindo a elas sua marca pessoal,

    conferindo assim ao Surrealismo novos significados e configuraes.

    Desta forma, no captulo inicial pareceu pertinente apresentar um panorama geral do

    Surrealismo, discorrendo a respeito da origem, fundadores, principais representantes e

    caractersticas do movimento. Em um segundo momento, so levantadas questes referentes

    dificuldade de delimitar o termo Surrealismo, em funo da expanso para outros pases, da

    heterogeneidade e da imensa popularizao conquistada pelo movimento. Parte-se da idia de

    que no existe um nico Surrealismo, mas vrios, e assim, apresentam-se os conceitos de

  • 5

    Surrealismo stricto sensu e lato sensu, propostos por Franco Fortini (1980), diferenciao

    tambm observada em outros tericos atravs da defesa de idias semelhantes s do terico

    italiano. Ao adotar-se a idia defendida por Fortini, verifica-se a possibilidade de

    aproximao entre a obra de Dino Buzzati e a esttica surrealista, j que na obra do escritor

    italiano falta aquele que seria um dos princpios fundamentais do movimento surrealista: o

    automatismo.

    Assim, tendo em mente os conceitos do captulo anterior, no Captulo 2 a questo da

    recepo do Surrealismo na Literatura italiana introduz discusses quanto a presena deste na

    obra de Dino Buzzati, expondo as diferentes posies da crtica. Na seqncia, brevemente

    apresentada a obra da qual foi selecionado o corpus de pesquisa, destacando alguns aspectos

    gerais relativos ao Surrealismo presente em contos de Dino Buzzati.

    Os quatro captulos seguintes so reservados apresentao dos elementos surrealistas

    selecionados como objeto de pesquisa - o acaso objetivo, o humor negro, o sonho, o

    maravilhoso e o fantstico, bem como s anlises dos contos selecionados. Com o propsito

    de ilustrar mais claramente o paralelo Surrealismo/Buzzati, optou-se por colocar as definies

    e caractersticas de cada um dos elementos surrealistas antes das respectivas anlises de cada

    um deles nos contos do escritor. Assim sendo, o Captulo 3 reservado apresentao do

    conceito de acaso objetivo, que rene o conjunto de coincidncias, premonies, revelaes

    que podem ocorrer na vida humana e que passa a ser utilizado no desenvolvimento de obras

    surrealistas. Aps a definio, so analisados contos de Buzzati onde se fazem presentes

    fenmenos ligados ao acaso objetivo, que so, em poucas palavras, projees na realidade de

    um desejo ou de um temor inconsciente.

    O prximo captulo apresenta a noo de humor negro, que se originou a partir das

    idias de Freud, Hegel e Vach, e que busca explorar temas sombrios e mrbidos, mas com a

    finalidade de produzir o riso. Aps a definio, verifica-se de que modo o humor negro se faz

  • 6

    presente em quatro interessantes contos, buscando evidenciar as diferenas e similaridades

    entre a viso surrealista e a percepo buzzatiana. A seguir, aprofundada a questo dos

    sonhos como fonte de criao surrealista, seguida da anlise de contos que simulam ou

    lembram a estrutura onrica.

    O maravilhoso e o fantstico esto reunidos no Captulo 6, apresentados conforme a

    perspectiva surrealista com relao a tais aspectos, evitando-se aprofundar questes de

    gnero, tencionando apenas esclarecer qual a posio adotada pelos surrealistas diante das

    diferentes possibilidades/leituras do maravilhoso e do fantstico. Seguindo a mesma postura,

    na seqncia so apresentados seis textos do escritor italiano selecionados em funo de

    algum ponto de contato com a viso surrealista do maravilhoso e do fantstico, que se

    diferencia de concepes tradicionais, de forma que podem no corresponder ao que

    comumente se classifica como conto fantstico/maravilhoso na obra de Buzzati.

    Por fim, nas Consideraes Finais, foram resgatadas questes que constituram as

    hipteses preliminares deste estudo, bem com aquelas reveladas durante o processo de anlise

    dos contos e no paralelo com a esttica surrealista.

  • 7

    1. Surrealismo: Definies e Indefinies

    O surrealismo procurava conjugar arte, sonho e realidade na tentativa de compreender alm da realidade emprica.

    Jorge Luis Borges

    Dentre os diversos movimentos de vanguarda que surgiram no sculo XX, o

    Surrealismo, mais do que qualquer outro movimento, foi marcado pela heterogeneidade, j

    que, alm de atrair um grande nmero de artistas fascinados pelas suas enormes

    possibilidades e pelo seu maravilhoso potencial, tambm abarcou diversos campos da arte:

    literatura (poesia, prosa e teatro), pintura, escultura, fotografia, cinema e at intervenes

    artsticas2. Assim sendo, embora os escritores e artistas surrealistas partilhassem de objetivos,

    temas e/ou assuntos comuns, a arte surrealista tomou diferentes formas, variando bastante ao

    longo dos anos, congregando expresses de naturezas as mais variadas.

    Desempenhando uma visvel e larga influncia na literatura e nas artes, especialmente

    durante a primeira metade do sculo passado (pelo menos na Europa e Amrica), depois se

    expandindo e penetrando, mesmo que de forma vulgarizada, vastos setores da cultura de

    massa, como a publicidade e a fico cientfica (FORTINI, 1980, p.8), o Surrealismo deixou

    um extenso legado e vrios ecos (mais ou menos deformados), difundindo-se por diversos

    pases e conquistando relevante popularidade3.

    Como movimento de vanguarda, ideologicamente organizado, o Surrealismo possui

    sua trajetria marcada cronologicamente, tendo sua origem vinculada ao movimento Dad4.

    Durante algum tempo, Dadasmo e Surrealismo coexistiram, mas o primeiro movimento aos

    poucos foi se esvaziando, j que muitos dos seus seguidores aderiram ao Surrealismo, a

    comear por Breton, que se refere aos dois como duas ondas que cobrem uma outra,

    2 Manifestao artstica que provoca ao direta e inesperada no cotidiano da cidade ou outro local determinado pelo artista. 3 Fato que talvez se deva fama alcanada pela obra de alguns de seus seguidores, como Dal, por exemplo.

  • 8

    alternadamente, pois contm em si uma enorme capacidade de energia e de transformao.

    Quanto ao termo Surrealismo, esse foi empregado pela primeira vez pelo escritor

    Guillaume Apollinaire (1880-1918), que se serviu dele, em 1917, para descrever dois

    momentos de inovao artstica: o bal de Jean Cocteau, Parade (descrito pelo escritor como

    sur-realism, ou seja, alm do realismo) e a sua pea de teatro Les Mamelles de Tirsias

    (1918), cujo subttulo era Um drama surrealista. E foi justamente se referindo criao de

    Apollinaire, em declarada homenagem ao autor, que no ano de 19245 Andr Breton e seu

    amigo Philippe Soupault publicam o Primeiro Manifesto do Surrealismo, documento capital

    da primeira fase do movimento (FORTINI, 1980, p.18) que formalmente expe as definies

    fundamentais do Surrealismo, o qual, segundo Cludio Willer, uma afirmao do que vinha

    sendo feito desde 1919, com as primeiras experincias de escrita automtica, que resultariam

    em Les Champs Magntiques6, de Breton e Soupault (WILLER, 2004). O manifesto

    propunha basicamente a restaurao dos sentimentos humanos: trata-se de resolver a

    contradio at agora vigente entre sonho e realidade pela criao de uma realidade absoluta,

    uma supra-realidade e do instinto como ponto de partida para uma nova linguagem artstica.

    No Primeiro Manifesto podem ser encontrados os princpios fundamentais da potica

    surrealista, como a defesa da imaginao, do sonho, do automatismo e do maravilhoso, ou

    seja, uma produo literria ou artstica sem a interveno do controle da razo ou da

    conscincia, considerando o acesso ao inconsciente uma forma de encontrar as respostas que a

    razo humana incapaz de fornecer. A valorizao do mundo onrico, do irracional e do

    inconsciente baseia-se nos estudos de Sigmund Freud (1856-1939) e na psicanlise, de modo

    4 Movimento de vanguarda que ridicularizava a confiana total na civilizao ocidental, predominante nos primeiros anos do sculo XX, e destacava a fragilidade de um mundo que se julgava perfeitamente organizado, congregando vrios escritores e artistas, que protestavam contra a doutrinao e a favor da negao e da destruio de tudo que era estabelecido: a ordem, as instituies, a esttica sedimentada. Entre esses artistas, estavam: Max Ernst, Tristan Tzara, Marcel Duchamp, Francis Picabia, Marcel Janco, Jean Arp, Richard Huelsenbeck e o prprio Andr Breton. 5 No mesmo ano, o grupo surrealista tambm inaugura um Escritrio de Pesquisas Surrealistas com o objetivo de desenvolver novas tcnicas e experimentaes surrealistas. 6 Considerada por muitos a primeira obra surrealista de fato desenvolvida em escrita automtica por Andr Breton e Philippe Soupault.

  • 9

    que o onrico passa a ser elemento constitutivo da arte no como uma fantasia alegrica, mas

    como uma expresso direta do inconsciente, permitindo ao artista explorar nas artes o

    imaginrio e os impulsos ocultos da mente. O carter anti-racionalista do Surrealismo tinha

    como inspirao o romantismo francs e alemo, o simbolismo, a pintura metafsica italiana7

    e o carter irreverente e dessacralizador do Dadasmo, o que contrastava com as tendncias

    construtivas e formalistas na arte, que floresceram na Europa aps a Primeira Guerra Mundial.

    Posicionando-se como um movimento de vanguarda, o Surrealismo surge como uma

    atitude radical de ruptura com os modelos artsticos e se mostra contrrio institucionalizao

    da arte, ou seja, avesso aos mecanismos de produo, circulao e recepo dos objetos de

    arte implantados e mantidos pela sociedade ocidental. Os surrealistas visavam acabar com a

    diviso entre gnio-criador e espectador/leitor passivo, de modo que a arte poderia ser

    produzida por qualquer indivduo, sendo acessvel a todos, como pregava um panfleto

    distribudo em 1925: O surrealismo est ao alcance de todos os inconscientes. A arte no

    era apenas o que fora canonizado como belas artes, de forma que os surrealistas buscavam

    fazer literatura da no-literatura, fugindo dos grandes temas, escolas ou modelos, porm

    sem negar a qualidade e at mesmo a influncia de alguns dos seus antecessores, como Swift,

    Rimbaud, Poe e Sade, por exemplo, lembrados por Breton ainda no Primeiro Manifesto.

    Os surrealistas no tencionavam apenas uma transformao nas artes, mas tambm

    uma mudana do prprio homem ocidental, cujo convvio em sociedade implicou a perda de

    capacidades que em outros tempos o conectavam magia, ao sonho, ao maravilhoso, a outras

    dimenses que ultrapassam a realidade ordinria e perceptvel atravs dos instrumentos da

    lgica.

    importante lembrar que o forte desejo por mudanas sociais e culturais, bem como o

    esprito revolucionrio e inconformista do Surrealismo resultaram no engajamento poltico de

    alguns membros, principalmente com as idias comunistas, vistas como uma nova alternativa 7 Principalmente a obra do pintor Giorgio de Chirico (1888-1978).

  • 10

    de organizao social. Contudo, a idia de colocar o movimento a servio de uma causa

    poltica revolucionria acabou por afastar muitos dos membros-fundadores do movimento,

    contribuindo, a longo prazo, para a dissoluo do mesmo.

    Por meio do automatismo, os surrealistas tentavam plasmar, tanto por meio de formas

    abstratas como por representaes figurativas, as imagens do subconsciente. Assim, os

    sonhos, os mitos, a fantasia, as vises, as alucinaes tornam-se fonte de criao para uma

    srie de tcnicas inovadoras como a livre associao e a anlise dos sonhos (ambos mtodos

    da psicanlise freudiana), a escrita automtica, a hipnose, a"colagem" etc., desenvolvidas com

    a finalidade de liberar o potencial imaginativo e criativo do subconsciente, buscando uma

    compreenso mais ampla do real, uma forma de capturar a realidade em sua totalidade,

    descobrindo os seus sentidos ocultos.

    No Surrealismo, real e imaginrio se confundem; no existe um limite entre o sonho e

    a realidade, pelo contrrio, o que se percebe a fuso destes estados ditos contraditrios em

    uma espcie de realidade absoluta, que vem a constituir a surrealidade. Alm disso, o sonho e

    o estado de viglia, segundo Breton, seriam vasos comunicantes, sendo que o primeiro

    poderia inclusive vir a auxiliar na resoluo das questes fundamentais da vida, libertando os

    desejos reprimidos em viglia.

    A crtica racionalidade burguesa em favor do maravilhoso, do fantstico e dos

    sonhos congrega no grupo surrealista artistas de segmentos variados sob o mesmo rtulo. Na

    literatura, alm de Breton, aderiram ao Surrealismo Louis Aragon (1897-1982), Max Jacob

    (1876-1944), Philippe Soupault (1897-1990), Michel Leiris (1901-1990), Georges Bataille

    (1897-1962) etc. Nas artes plsticas, Ren Magritte (1898-1967), Andr Masson (1896-1987),

    Joan Mir (1893-1983), Max Ernst (1891-1976), Salvador Dal (1904-1989), entre outros. Na

    fotografia, Man Ray (1890-1976), Brasa (1899-1984), Dora Maar (1907-1997). No cinema,

    Luis Buuel (1900-1983). Estes artistas, fazendo ou no uso da escrita e da pintura

  • 11

    automtica, desenvolveram, atravs de jogos e experimentaes coletivas, tcnicas

    expressivas bastante diferenciadas como frottage, collage, assemblage, grattage, fumage,

    foto-montagem, dripping, alternativas para unir sonho e realidade de forma homognea.

    O esprito crtico do movimento baseado na articulao arte/inconsciente e

    arte/poltica expresso na revista La Rvolution Surraliste8 que, a comear pelo ttulo,

    demonstra o carter revolucionrio e subversivo do grupo e j revela uma inteno clara de

    interveno prtica na sociedade. Em 1929, Breton publica o Segundo Manifesto do

    Surrealismo, onde revela o surgimento de dissidncias no grupo, j que a aproximao ao

    marxismo e ao Partido Comunista gerou relaes controversas, resultando, no ano de 1930, no

    afastamento de alguns membros que no concordavam com a estreita ligao de Breton com

    Trotski e com os rumos polticos que o movimento tomara.

    A dcada de 30 tambm foi marcada pela grande expanso do Surrealismo, com a

    organizao de diversas manifestaes pela Europa e uma nova publicao, o Minotaure. No

    ano de 1936 ocorre a primeira Exposio Internacional Surrealista, na Gr Bretanha;

    contudo, com a chegada da Segunda Guerra Mundial, o grupo acaba se dispersando. Aps o

    trmino do conflito, ocorrem duas grandes exposies surrealistas em Paris, na Galeria

    Maeght e na Galeria Daniel Cordier, aparentemente indicando uma revitalizao do

    Surrealismo, mas que no se mostrou duradoura.

    O movimento aos poucos foi se esvaziando, sobrevivendo, mesmo que sem o mesmo

    impacto, at dezembro de 1965, quando ocorreu a 11 (e ltima) Exposio Internacional do

    Surrealismo, na Galeria LOeil, em Paris. Com a morte de Andr Breton no ano seguinte, o

    Surrealismo se desfaz de vez enquanto movimento organizado, deixando contudo um extenso

    legado e repercutindo por quase toda a arte do sculo XX, uma vez que se difundiu pela

    Europa, Estados Unidos, Mxico, Cuba, Japo e Amrica do Sul, servindo de fonte de

    inspirao para artistas bastante dspares que seguiram a seu modo a esttica e/ou as tcnicas 8 Foram publicados 11 fascculos, entre 1924 e 1929.

  • 12

    surrealistas.

    Tendo em vista tais consideraes, interessante observar que o que num primeiro

    momento pertencia a um dos ramos dos chamados movimentos da cultura e da sociedade

    moderna passa a trafegar em outras esferas, garantindo assim ao Surrealismo tambm um

    relevo particular na histria da cultura contempornea. Tal amplitude, marcada pela

    heterogeneidade, permite abordar o Surrealismo atravs de diferentes aspectos, mas tambm

    dificulta a construo de definies e a identificao dos elementos que delimitam as

    fronteiras do Surrealismo. A este respeito, Ricardo Gulln (1982, p.77-78) observa que, ao

    ampliar o sentido da palavra Surrealismo, esta se torna cada vez mais imprecisa, agregando,

    com diferentes propsitos, conceitos variados como absurdo, existencialismo, angstia,

    realismo mgico, etc.

    Como lembra Theodor Adorno (2003, p.135; 137), nenhuma arte tem a obrigao de

    entender a si mesma, de modo que no preciso seguir todas as concepes programticas,

    repetidas por todos os divulgadores e comentadores para compreender ou caracterizar o

    Surrealismo, pois no possvel encaixar sua multiplicidade em alguns poucos parmetros,

    reduzindo-o a um par de categorias sofrveis.

    Assim sendo, o Surrealismo produziu muitas divergncias tericas, de modo que tanto

    tericos surrealistas como no-surrealistas teceram numerosas e variadas consideraes a

    respeito das fronteiras do Surrealismo. Andr Breton, mentor do movimento, paradoxalmente

    define o Surrealismo, no Primeiro Manifesto, como:

    SURREALISMO - sub. masc. Automatismo psquico puro pelo qual se prope exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra forma, o funcionamento real do pensamento. Ditado seja o pensamento, na ausncia de todo o controle exercido pela razo, fora de toda a preocupao esttica ou moral.

    ENCICL. Filos. O Surrealismo repousa sobre a crena na realidade superior de certas formas de associaes desprezadas antes dele, na onipotncia do sonho, no desempenho desinteressado do pensamento. Tende a demolir definitivamente todos os outros mecanismos psquicos e a substituir-se a eles na resoluo dos principais problemas da vida (BRETON, 1965, p. 37).

  • 13

    Porm, declara mais tarde que no seria possvel tomar um texto surrealista como

    exemplo perfeito de automatismo verbal, j que no h automatismo absoluto porque sempre

    subsiste um mnimo de controle para favorecer a composio do poema (BRETON, 1932

    apud LIMA, 1995, p.50). Ao conceito de automatismo foram agregados outros elementos

    como o maravilhoso, o acaso objetivo, o humor negro, que contriburam para a multiplicidade

    de manifestaes e de meios de difuso do Surrealismo, resultando em sua expanso por

    diversos segmentos e numa infinidade de teorias e tcnicas a respeito da prtica surrealista,

    que levam constatao de que no h uma nica definio exata nem fechada para o termo

    Surrealismo.

    Contudo, entre os tericos consultados, h uma tendncia em tentar administrar os

    paradoxos do Surrealismo atravs de diferenciaes, como as propostas por Franco Fortini

    (1980, p.10), por exemplo, que estabelece a diviso entre Surrealismo stricto sensu e lato

    sensu. O autor busca definir o Surrealismo a partir de dois sentidos, um restrito, que se refere

    atividade de certas pessoas reunidas em grupo de formao bastante varivel em torno do

    maior terico do movimento, Andr Breton, seguindo princpios semelhantes aos de uma

    ordem religiosa ou de um partido poltico; e outro, o dito lato, que rene uma procura de

    fenmenos muito mais extensa no tempo e no espao, menos homognea, que compartilha

    muitos elementos com o Surrealismo historicamente datado, mas que dele no deriva

    necessariamente. Fortini ainda reconhece que no Surrealismo mais restritivo, necessariamente

    convivem, por via de regra, trs aspectos (o ideolgico-cultural, o das investigaes e criaes

    e o tico-poltico), enquanto que no sentido lato pode faltar algum desses elementos, mas no

    faltar a criao artstica nem literria.

    Conceitos semelhantes so defendidos por Marcel Raymond (1997, p.246): No

    sentido mais restrito, o Surrealismo um processo de escritura, no sentido amplo, uma atitude

    filosfica [...] uma mstica, uma potica, e uma poltica; por Juan Cirlot (1953, p.33), que

  • 14

    diferencia Surrealismo ortodoxo, el del grupo de Pars y de su jefe Andr Breton do

    Surrealismo heterodoxo, que rene la creacin de los surrealistas de los distintos grupos

    diseminados por el mundo, o que actan libre y aisladamente, manteniendo un indudable

    contacto espiritual con las directrices del movimiento.

    Srgio Lima (1995, p. 23-24; 70) no apia Cirlot na escolha do termo ortodoxo, mas

    defende a abordagem do Surrealismo por mltiplos aspectos, no o reduzindo a uma escola e

    muito menos a uma forma plstica ou retrica, nem a um modelo estanque a ser seguido, j

    que, segundo o autor, o Surrealismo em sua essncia um processo de mais conscincia e de

    revelao do humano em seus sensos mais extremos e mais intensos.

    Tendo em vista a diferenciao proposta pelos autores, pode-se afirmar que o

    Surrealismo, em seu sentido restrito, pode ser compreendido como aquele caracterizado por

    formulaes orgnicas e sistemticas, e que, fundado em Paris, teve atuao histrica

    relevante entre 1924 data da publicao do Primeiro Manifesto Surrealista e o incio da

    Segunda Guerra Mundial (1939), enquanto que o Surrealismo, numa viso lato sensu, seria

    hbrido, capaz de fundir-se com outras poticas e de ampliar as possibilidades estticas

    postuladas pelo Surrealismo classificado como ortodoxo, histrico ou stricto sensu.

    Desta forma, certos temas e imagens obsessivamente utilizadas em obras de um

    Surrealismo mais restrito, como por exemplo, o sexo e o erotismo; o corpo, suas mutilaes e

    metamorfoses; a mulher, o manequim e a boneca; a violncia, a dor e a loucura; as

    civilizaes primitivas, o mundo da mquina, o acaso objetivo, o maravilhoso, o fantstico, o

    sonho, o humor negro, passam a ser traduzidos em obras sem qualquer compromisso formal

    com o movimento fundado por Breton. So produes que, mesmo no pertencendo ao

    mbito do movimento, integram o que pode se configurar como Surrealismo lato sensu, que

    se expandiu alm das fronteiras espao-temporais referentes ao Surrealismo do tipo restrito,

    resultando no em um nico, mas em vrios Surrealismos, como observa Cirlot (1953, p. 33).

  • 15

    A idia da existncia de um Surrealismo lato sensu permite amenizar inmeras

    divergncias tericas relativas presena e recepo do Surrealismo fora da circunstncia

    parisiense originria, j que, de fato, se observa uma grande dificuldade em definir quem ou

    no surrealista fora do crculo que congrega os participantes diretos do movimento, como

    lembra Floriano Martins (2002, p.14):

    Ao compararmos verses de no to inmeros estudiosos do Surrealismo nos deparamos com um mesmo senso de desigualdades conceituais. Discute-se sempre a preponderncia do aspecto moral sobre o esttico. Contudo, em momento algum Salvador Dal e Louis Aragon passam a ser nomes compreendidos como extra-surrealismo. O mesmo se pode dizer de Paul luard e Braulio Arenas e francamente, uma grande lista de artistas e poetas que poderiam estar ligados ao que Octavio Paz chama de afinidades momentneas com a linguagem, as idias e ainda os tiques da poesia surrealista. Quem seria verdadeiramente surrealista?

    Assim, tendo-se em mente que a liberdade defendida pelo Surrealismo implicou em

    uma imensa heterogeneidade, a noo lato sensu permite verificar a existncia de vrios

    Surrealismos, possibilitando reconhecer o dilogo, o vnculo ou os ecos da esttica surrealista

    na obra de autores que em nenhum momento declararam-se explicitamente surrealistas, mas

    que coincidem ou coincidiram - s vezes - com a ideologia e/ou com a expresso potica do

    movimento.

  • 16

    2. Fronteiras indefinidas: Dino Buzzati e o Surrealismo

    Nel mondo complesso e multiforme di Buzzati pensavo come poteva inserirsi il mio comprendonio critico.

    Riccardo Bacchelli

    No captulo anterior discutiu-se a diferenciao entre Surrealismo stricto sensu (ou

    ortodoxo), vinculado a Breton e seu grupo e a um momento histrico determinado; e

    Surrealismo lato sensu (ou heterodoxo), mais amplo e variado, congregando manifestaes de

    diferentes pocas e de diversos pases. Esta discusso ser retomada neste captulo, de modo a

    caracterizar a conexo entre Surrealismo e Literatura Italiana.

    Conforme Paul Ilie (1982, p.96-97), nas caracterizaes que pertencem ao Surrealismo

    mais amplo, desaparecem certas condies exteriores, tais como a orientao nacional do

    movimento, sua reconhecida trajetria como tal movimento, a fidelidade aos princpios

    estticos propostos por um nico lder. O autor ainda coloca que um movimento determinado

    se manifesta de forma divergente em pases distintos. No obstante suas caractersticas em

    comum, estas novas formas surgem em virtude do peculiar contexto literrio e histrico de

    cada pas, o que leva a crer que cada diferenciao nacional mostra rasgos prprios, porm o

    modo surrealista se revela em sua totalidade, atravs de caractersticas que podem ser

    compartilhadas com outros modos nacionais ou que dialogam com a esttica surrealista

    defendida pelo grupo liderado por Breton.

    Neste contexto pode ser enquadrado o Surrealismo na literatura italiana, manifestando-

    se de uma forma mais ampla, no se restringindo escrita automtica ou seguindo risca a

    proposta surrealista, mas ao mesmo tempo adotando uma postura de visvel dilogo com

    elementos, temtica e esttica utilizadas pelo movimento surrealista. Sobre o Surrealismo

    italiano, Alvaro Biondi (1992, p. 81) declara:

  • 17

    [...] non ci fu in Italia un movimento surrealista, come poetica proclamata, come azione culturale di gruppo, come sfida alle idee letterarie dominanti; ci fu per anche in Italia una letteratura che pu essere detta surrealista, ci furono cio opere che anticiparono il Surrealismo francese e poi altre che ebbero i caratteri stilistici del Surrealismo.

    Contudo, no prefcio da coletnea Italia Magica, Gianfranco Contini (1988) ressalta

    que o Surrealismo italiano, com relao ao francs, preferiu isolare l eccezione attraverso i

    filtri dell ironia e sintetizar um magico senza magia, um surreale senza surrealismo que

    remete mais a modelos autctones do que estrangeiros, recuperando la vena magica che

    percorre tutta l Italia rinascimentale e s narrativas burlescas dos scs. XV e XVI, opinio

    que ilustraria as observaes de Ilie (1982) quanto s diferenciaes que adquire o

    Surrealismo em funo do contexto literrio/histrico especfico de cada pas.

    Quanto questo da no existncia de um movimento surrealista italiano, Silvana

    Cirillo (2006, p.11) reconhece algumas premissas que poderiam ter permitido que o

    Surrealismo esplodesse in Italia come era stato per il futurismo, porm, segundo a autora,

    il corso della storia decise diversamente, de maneira que a ascenso do regime fascista, com

    sua rgida censura tica e cultural, com seus modelos humanos, comportamentais e artsticos a

    serem defendidos, jamais poderia tolerar

    l'intrusione di un movimento letterario, artistico e filosofico quale quello surrealista che si fondava sulla rivoluzione e sull'internazionalismo comunista, che inseguiva libert e eguaglianza attraverso la psicanalisi, che inneggiava al desiderio e irrideva il bisogno e il produttivismo, che difendeva i folli e i sognatori, che se la rideva delle istituzioni, dei superomismi da facciata, del bello stile, dei primati, e sognava di cambiare l'uomo (con Freud) e il mondo (con Marx)[...] (CIRILLO, 2006, p.19)

    De fato, o Surrealismo na Itlia no surge como um movimento organizado, esplode

    tardi e solo a fuochi isolati (CIRILLO, 2006, p.19), principalmente entre a gerao de

    escritores que surge nas dcadas de 30/40, cujo gosto pela narrativa genericamente

    classificada como fantstica revela uma afinidade com a esttica surrealista: infanzia,

    follia, grottesco, gioco, sogno, tutte le meraviglie e gli orrori del surreale saranno punti di

    riferimento costante per i racconti di Landolfi, Zavattini, Alvaro, Morovich, Savinio, De

  • 18

    Libero o il Buzzati di certi racconti. (Idem, 2006, p. 11)

    Uma das figuras mais representativas desta gerao narrativa que dialoga com o

    Surrealismo Dino Buzzati (1906-1972), considerado por muitos estudiosos uma figura

    isolada no panorama literrio italiano do sc. XX. Buzzati sempre se mostrou indiferente

    ideologia, influncia de grupos e correntes literrias; nunca assinou um manifesto nem

    acreditou no engajamento intelectual para a revoluo, no manifestando abertamente

    nenhuma preocupao panfletria com o senso coletivo ou com a contestao e a revoluo

    dos costumes como forma de libertao do homem da represso e dos tabus. Pode ser

    chamado de artista multimdia, j que alm de escritor foi pintor, desenhista, poeta,

    escreveu peras lricas e peas de teatro e atuou como jornalista e correspondente do Corriere

    della Sera, um dos mais importantes jornais italianos. Publicou seu primeiro livro em 1933,

    um romance breve chamado Brnabo delle montagne9, no qual j possvel identificar

    algumas das temticas que iro se tornar recorrentes na obra do autor, sobretudo a montanha,

    com sua imensido, seu silncio, sua atmosfera mgica, fabulosa e o tema da espera, da

    grande ocasio que possa vir a conferir algum significado vida do protagonista.

    As narrativas do autor costumeiramente so construdas a partir de dados ou de fatos

    inerentes crnica, de situaes da vida cotidiana, aparentemente normais, que parecem levar

    a um desenvolvimento do tipo realista, mas que de repente se transformam em situaes

    onricas, fantsticas, freqentemente surreais. O que se percebe um evidente dilogo entre o

    real e o imaginrio, permeado muitas vezes por uma atmosfera de angstia, de opresso diante

    das reviravoltas, das fatalidades iminentes, das peas pregadas pelo destino.

    Em um primeiro momento, a obra de Buzzati foi condenada a um isolamento e at

    mesmo ao desprezo por parte da crtica italiana, que tinha tendncia a esquematizar sua obra e

    a avaliar sua produo como algo entre a crnica e a fbula. Aqueles que se detinham um

    9 Resultou em um filme homnimo de 1994, dirigido pelo diretor italiano Mario Brenta.

  • 19

    pouco mais no mundo de Buzzati buscavam apenas comparar sua obra com a de Kafka10, j

    que o escritor italiano tambm aborda em alguns de seus contos a opresso burocrtica das

    instituies e a fragilidade do homem comum frente aos problemas cotidianos, temas

    presentes na obra do escritor tcheco.

    Em muitos dos compndios de Histria da Literatura Italiana o nome de Buzzati

    apenas citado entre os escritores menores, onde ele lembrado quase que exclusivamente

    pelo romance Il deserto dei Tartari (1940), sem dvida sua obra mais famosa, traduzida em

    mais de 30 pases e que deu origem, inclusive, ao filme homnimo de 1976, dirigido por

    Valerio Zurlini. Apesar da pouca simpatia da crtica italiana, a importncia da obra do autor

    foi evidenciada primeiramente pela crtica francesa11, junto a qual o escritor conserva um

    prestgio inalterado desde 1949 (ano da traduo em francs de Il deserto dei Tartari), que se

    evidencia nos constantes estudos e pesquisas sobre sua obra em lngua francesa.

    Porm, percebe-se ao longo dos anos uma gradativa transformao no que se refere

    receptividade da obra de Dino Buzzati por parte da crtica italiana, de modo que sua posio

    perifrica dentro dos estudos literrios tende a ser modificada em virtude de um considervel

    aumento de estudos e pesquisas sobre o autor, principalmente aps a dcada de 9012. Estes

    estudos revelam novos elementos e colaboram para a construo de um perfil completo da sua

    produo, no s como escritor, mas tambm em outras reas de atuao (jornalismo, desenho

    e pintura) e que consequentemente vm, aos poucos, reconhecendo o papel de destaque de

    Buzzati no cenrio cultural italiano. Recentemente, no ano de 2006, numerosos eventos foram

    organizados com o intuito de celebrar o centenrio de nascimento de Dino Buzzati,

    10 A esse respeito, Buzzati manifestou-se certa vez com a seguinte declarao: Da quando ho cominciato a scrivere, Kafka stato la mia croce. Non c stato mio racconto, romanzo, commedia dove qualcuno non ravvisasse somiglianze, derivazioni, imitazioni o addirittura sfrontati plagi a spese dello scrittore boemo. Alcuni critici denunciavano colpevoli analogie anche quando spedivo un telegramma o compilavo un modulo Vanoni. 11 Buzzati foi, inclusive, tema de nove volumes dos Cahiers, de 1977 a 1994. 12 Com a fundao da Associazione Internazionale Dino Buzzati em Feltre (BL) no ano de 1988, os estudos sobre Buzzati ganharam vulto. Dentre alguns trabalhos publicados pela associao destaca-se: DINO BUZZATI: LA LINGUA, LE LINGUE. Feltre-Belluno, 26-29 settembre 1991. Dino Buzzati: la lingua, le lingue. Atti del Convegno Internazionale. Milano: Arnoldo Mondadori e a Revista Studi buzzatiani publicada a partir de 1996.

  • 20

    contribuindo para a confirmao do crescente prestgio do escritor no s em territrio

    italiano.

    Retomando a questo do Surrealismo, ao revisar os estudos crtico-literrios e de

    historiografia literria relativos vinculao de Dino Buzzati a esta esttica, percebe-se uma

    enorme divergncia entre eles; de maneira que poucos estudos vo alm da sua constatao e

    no ousam explicitar como o Surrealismo reflete na obra do autor. Autores como Briosi

    (1977), Salinari e Ricci (1983), Giudice e Bruni (1988) citam o surreal como uma

    caracterstica buzzatiana, mas deixam claro que o surrealismo de Buzzati diverso daquele

    proposto por Breton, j que apresenta elementos comuns aos do Surrealismo italiano, bem

    menos inovador e contestador e que, portanto, pode ser considerado manifestao lato sensu.

    J Spagnoletti (1994, p.384) no reconhece a existncia de um Surrealismo italiano, e

    afirma que Buzzati fica restrito aos meandros do fantstico:

    [...] Non si pu parlare di un Surrealismo italiano le cui premesse sarebbero state proposte da Savinio e da Chirico, bens (a seconda degli scrittori) di tendenze antirealistiche, di attenzione al mistero, trattato in chiave favolosa, o ironico-grottesca; come nel caso di Dino Buzzati [...].

    Porm, mesmo Spagnoletti, que discorda da idia do surreal em Buzzati, ao analisar os

    contos, fala em universi proibiti, fatti di brividi inconsueti, di speranze e messaggi

    dellignoto, di faccende sub e ultra-umane e inclusive em spreco di sollecitazioni surreali

    (SPAGNOLETTI, 1994, p.385), observaes bastante contraditrias que ilustram a enorme

    dificuldade em explicitar de que modo se estabelece a relao entre Buzzati e o Surrealismo.

    Biondi, ao propor a diviso Surrealismo italiano e Italia Magica, enquadraria Buzzati

    entre estas duas correntes, pois o crtico reconhece a existncia de um Surrealismo de um tipo

    particular, buzzatiano, j que o elemento onrico presente em Buzzati busca desvendar os

    mistrios da realidade e no os segredos do eu - interior.

    Por outro lado, a relao entre Buzzati e o Surrealismo notria em sua produo

    pictrica, como possvel reconhecer em quadros como Toc Toc (1957), La balena volante

  • 21

    (1957), Il ritratto del califfo Mash Er Rum e delle sue 20 mogli (1958), La casa dei misteri -

    Alle cinque (1965), Santa ingenuit (1966), Il babau (1967), Grande cane in piazza in una

    giornata di sole (1969), entre outros.

    Alm disso, a presena do Surrealismo no livro Poema a Fumetti se confirma atravs

    de imagens que evocam outros surrealistas: De Chirico (a arquitetura13 e as torres

    monolticas14), Picabia (figuras sobrepostas em transparncia)15, Magritte (o diavolo

    custode16, lembrando o quadro Le Therapeute, de 1937), Dal (o telefone17 e o piano

    derretido18, evocando Telfono-langosta (1936) e La persistencia de la memoria (1931). Alm

    das referncias visuais, h aquelas que remetem diretamente a textos e idias de Breton, como

    os Grandes Transparentes19, que aparecem nas pginas 73/93 e as Mlusines20, que Buzzati

    recorda ao final do livro. Convm tambm lembrar que Dino Buzzati, durante uma entrevista,

    deu a seguinte declarao a Yves Panafieu: Dei moderni ammiro molti del genere surrealista,

    a cominciare da De Chirico dei primi tempi, che senzaltro stato un genio.... (PANAFIEU,

    1973, p.33).

    Sem dvida, indcios que comprovam a existncia de um dilogo entre Buzzati e o

    Surrealismo, sendo que tambm plausvel estender essa observao a alguns de seus contos,

    nos quais possvel reconhecer a presena de elementos pertencentes potica surrealista,

    como o acaso objetivo, o humor negro, o sonho, o fantstico e o maravilhoso, que sero

    estudados nos prximos captulos desta dissertao.

    A respeito do dilogo que se estalece em alguns contos entre o escritor italiano e a

    esttica surrealista, ningum o descreve de modo to imagtico quanto Valerio Volpini (1967,

    13 BUZZATI, Dino. Poema a Fumetti. Milano: Arnaldo Mondadori, 1991. p.33, 99 14 Ib., p.53, 71 15 Ib., p.21, 39 16 Ib., p. 95 17 Ib., p. 33, 51 18 Ib., p. 145,163 19Criticando o antropocentrismo, Breton postula a existncia de seres incgnitos, mimticos, que no so percebidos pelo sistema sensorial humano. O dever do poeta aproximar-se da estrutura destes seres hipotticos. 20 Espcie de sereias, figuras mitolgicas francesas que aparecem em Nadja (1928) e em Arcane 17 (1945).

  • 22

    p. 382):

    Per poco che la narrazione si complichi e le figure si sovrappongano ingenerando deformazioni macabre, ecco tornare a mente i photomontages di Max Ernst; per poco che simpreziosisca astrattizzandosi dellaltro in un gesto o sublimandosi in una parola o allegorizzandosi in un oggetto o in un paesaggio, e ci ricorderemo di Salvador Dali.

    importante reconhecer que nas narrativas de Buzzati h um equilbrio entre clareza e

    mistrio, entre razo e sonho, que expressa a duplicidade e a ambigidade do que pode ser

    considerado real. A aparente normalidade cotidiana presente nos textos, permeada por

    situaes estapafrdias, acontecimentos inexplicveis, imagens e elementos incomuns,

    fantsticos, onricos, resulta numa mistura de duas searas contraditrias, que acabam por se

    mesclar gerando uma unicidade, que pode ser vista como surreal, j que no se trata

    unicamente de puro sonho nem de pura realidade, mas sim da fuso destas duas dimenses. E

    esta caracterstica reverbera uma das idias defendidas por Andr Breton ainda em seu

    Primeiro Manifesto: Acredito na resoluo futura destes dois estados, to contraditrios na

    aparncia, o sonho e a realidade, numa espcie de realidade absoluta, de surrealidade, se

    assim se pode dizer. (BRETON, 1965, p. 23-24).

    2.1. Sessanta Racconti: apresentao do corpus

    Sessanta Racconti (1958) uma seleo realizada pelo prprio autor de alguns dos

    seus contos mais significativos anteriormente publicados em I sette messaggeri (1942), Paura

    alla Scala (1949) e Il crollo della Baliverna (1957) de modo que, ao abranger diferentes

    momentos de sua produo, o livro pode ser considerado um resumo do mundo potico

    buzzatiano. A riqueza das narrativas da coletnea, alm de colecionar elogios por parte da

    crtica, tambm conferiu ao autor italiano o Premio Strega de 1958, um dos mais importantes

    prmios literrios da Itlia, que em 2006 chegou sua 60 edio, premiando ao longo de sua

    histria autores como Alberto Moravia, Cesare Pavese, Primo Levi e Umberto Eco.

  • 23

    Praticamente todos os temas da produo literria de Dino Buzzati esto presentes no

    livro, merecendo destaque:

    - o medo: seja ele do desconhecido (Qualcosa era successo), do terrorismo e da

    poltica (Paura alla Scala), da guerra (All Idrogeno) ou fundamentado na

    superstio (Il cane che ha visto Dio);

    - o amor pela montanha (Notte d'inverno a Filadelfia);

    - a solido (Vecchio facocero);

    - a problemtica da religio (L'uomo che volle guarire; I Santi).

    Partindo quase sempre do cotidiano, as narrativas podem tanto aderir realidade, bem

    como transfigur-la, tornando-a surreal atravs de anomalias, de acontecimentos estranhos, de

    efeitos surpreendentes, mantendo porm uma naturalidade que faz com que a coisa mais

    absurda venha a ser aceita como plausvel. O elemento sobrenatural presente em muitos dos

    contos no um modo de evaso da realidade: pelo contrrio, se trata, sim, de um instrumento

    extremamente eficaz para decifr-la; uma lente que a deforma, mas que expande e revela seus

    contedos mais latentes, mergulhando nos mais profundos anseios e temores do homem

    contemporneo.

    Dino Buzzati considerado por muitos um escritor pessimista e em Sessanta Racconti

    seu pessimismo tambm marca presena em alguns contos, onde uma viso angustiante da

    condio humana no d espao para mensagens de consolo ou de alvio. Porm, tambm

    possvel encontrar no livro o encantamento; a fantasia; o lirismo de situaes ou seres

    inusitados; a mgica descoberta dos mistrios que se escondem nos recantos mais

    inesperados; a nostalgia da infncia e das histrias h muito esquecidas; a beleza hipntica

    que se revela aos olhares mais atentos; as surpresas que se confundem ao cotidiano.

    E h tambm a questo da surrealidade presente em diversos contos, que abre a

    possibilidade de uma discusso a respeito da existncia de um surrealismo buzzatiano, que

  • 24

    parece definir suas peculiaridades atravs da linguagem utilizada pelo autor, que

    aparentemente simples, adequada, linear e muito prxima da linguagem falada. Com

    referncia relao entre a linguagem e a surrealidade, Claudio Toscani (1992, p.13) observa

    que:

    Nel contesto dei racconti, all'interno del gioco delle trame e delle soluzioni, anche la parola pi usuale o, addirittura, pi frusta, diventa segno di ambiguit, di mistero, di illusione, di paura. Buzzati dimostra che non occorre un'intricata complessit di stile per ottenere sorprendenti risultati creando situazioni surreali.

    Assim, os contos de Buzzati se mostram diversos de muitas manifestaes

    notoriamente surrealistas, j que, mesmo sem utilizar o automatismo ou a escrita automtica,

    o autor consegue estabelecer um dilogo com a esttica defendida por Breton, principalmente

    no que se refere ao uso, nas narrativas, de elementos como o acaso objetivo, o humor negro, o

    sonho, o maravilhoso e o fantstico, que merecem uma ateno especial, j que alm de

    ocuparem um papel relevante nas discusses referentes ao Surrealismo, so freqentemente

    observados em manifestaes que se configuram surrealistas em uma perspectiva lato sensu,

    justificando a sua escolha para nortear as anlises do corpus de pesquisa desta dissertao.

    Cada um desses elementos surrealistas pode ser encontrado em Sessanta Racconti,

    sendo que, inclusive, foi possvel verificar a presena de mais de um deles em um mesmo

    texto. Assim, tendo como critrio de seleo a presena desses elementos, foram escolhidos

    dezesseis contos, que permitiram a construo de um corpus representativo do universo

    literrio do autor e tambm do paralelo com o Surrealismo, cujas relaes sero aprofundadas

    nos captulos a seguir.

    Visando organizar a apresentao das anlises realizadas, optou-se por intercalar em

    cada um dos captulos a seguir a apresentao e a definio de cada um dos elementos da

    esttica surrealista a trs narrativas21 de Sessanta Racconti, consideradas as mais

    representativas e agrupadas conforme a presena de cada um dos elementos. Esta

    21 Com exceo do Captulo 4 (quatro contos) e do Captulo 6 (seis contos).

  • 25

    apresentao busca atender proposta inicial da pesquisa, que era determinar de que modo

    Dino Buzzati transpe estes especficos elementos surrealistas, tanto na temtica quanto na

    prpria estruturao do espao narrativo, verificando em que medida existem semelhanas ou

    releituras da esttica surrealista em contos do autor italiano.

  • 26

    3. Alm das coincidncias: O acaso objetivo

    O acaso no passa de nossa ignorncia das causas.

    Philippe Soupault

    Em 1914, Giorgio de Chirico pinta o retrato do poeta Guillaume Apollinaire onde ao

    fundo, em segundo plano, uma sombra est atrs de uma coluna com um pequeno crculo

    branco marcando algum lugar sobre a cabea, como um alvo. Dois anos mais tarde, ao

    engajar-se como voluntrio na Primeira Guerra Mundial, Apollinaire atingido gravemente

    na cabea exatamente no mesmo lugar mostrado no quadro. Victor Brauner pinta em 1931 o

    quadro Autoportrait loeil nucl (Auto-retrato de olho enucleado). Sete anos depois, ao

    tentar intervir em uma briga entre Oscar Domnguez e Esteban Francs, o estilhao de uma

    garrafa fura o olho direito do pintor, reproduzindo com exatido fotogrfica seu auto-retrato.

    Por precauo, Brauner nunca mais pintou um quadro seu faltando pedaos do corpo.

    Benjamin Pret, em uma cela da priso de Rennes, vislumbra na janela o nmero 22, sendo

    ento posto em liberdade no dia 22 de julho. Todos esses acontecimentos exemplificam um

    dos principais campos de investigao surrealista: o acaso objetivo, cuja prtica inicia-se

    ainda na dcada de 20, porm sendo teorizado apenas nos anos 30 pelo prprio Breton.

    Carter fundamental da existncia, tradicionalmente definido como conjunto de causas

    imprevisveis e independentes entre si, como um acontecimento independente da vontade

    humana que evidencia a imprevisibilidade da vida, da antiguidade aos dias de hoje, em

    diferentes reas do saber, o conceito de acaso suscitou inmeras interrogaes a respeito de

    sua natureza, tornado-se objeto de interesse no s de filsofos e pesquisadores, mas tambm

    de poetas, msicos e pintores capazes de fazer dele um instrumento de criao artstica, como

  • 27

    se observa no grupo surrealista.

    Porm, entre os surrealistas, o paradoxal se faz presente no s em sua ideologia, uma

    vez que se negavam a ser produtores de arte ao mesmo tempo em que a produziam, mas

    tambm em sua potica, de modo que no h como negar tal qualidade tambm expresso

    acaso objetivo. Ao excluir-se o contexto matemtico do clculo das probabilidades, onde so

    estudadas relaes lgicas entre eventualidades abstratas, o termo acaso empregado para

    designar as relaes observveis/perceptveis entre fenmenos concretos. Contudo, o acaso

    objetivo no deve ser confundido com o acaso em sua acepo e compreenso comuns, uma

    vez que Breton, em suas teorizaes a respeito do tema, busca delimitar exatamente a

    percepo surrealista do acaso, afastando-a das definies clssicas, buscando interpretar e

    conciliar Engels e Freud: o acaso seria a forma de manifestao da necessidade exterior que

    abre caminho no inconsciente humano (CHNIEUX-GENDRON, 1992, p. 92). A primeira

    parte da frase se refere posio de Engels com relao causalidade, tida como uma

    necessidade objetiva, citada em Les Vases Communicants, enquanto que a segunda parte

    remete noo de desejo inconsciente de Freud. Em outras palavras, o acaso objetivo vem a

    ser a projeo do desejo da pessoa envolvida num objeto, num smbolo ou num ato

    revelatrio. Para Cludio Willer, o acaso objetivo se manifesta como:

    [...] o encontro entre duas sries causais diferentes, uma delas externa, a outra interna, uma natural, a outra humana, provocando acontecimentos sob o signo da espontaneidade, da indeterminao, do imprevisvel ou at mesmo do inverossmil (WILLER, 2002, p.3)

    O acaso objetivo se refere s coincidncias de fatos e de "sinais" que, embora

    obviamente aleatrios, independentes de qualquer vontade e de qualquer controle da

    conscincia, apresentam estruturalmente uma lgica e uma coerncia que incita a perceb-las

    como uma mensagem, como correspondncias inesperadas entre fatos materiais e mentais,

    como o encontro de uma pessoa na qual se acaba de pensar, por exemplo. Seria o modo como

    o simblico se projeta magicamente no real, manifestando-se pelo conjunto das premonies,

  • 28

    dos encontros inslitos e das coincidncias atordoantes que se manifestam, de tempos em

    tempos, na vida humana. O conceito de acaso objetivo no definido essencialmente no plano

    artstico, seja literrio ou pictrico, o que no impediu os Surrealistas de encontrar meios de

    torn-lo um mtodo de criao e aplic-lo em suas produes.

    Assim sendo, tratando-se de um conceito abstrato, convm explicar especificamente

    seu mecanismo dentro da produo artstica surrealista, e para tanto, deve-se esclarecer que o

    acaso objetivo constitui-se do conjunto signo/fato, ou seja, necessrio que um signo sem

    significao aparea cronologicamente primeiro, seguido de um fato considerado casual que

    mantm uma relao com o signo anterior. Como Jacqueline Chnieux-Gendron (1992, p.95)

    explica, o fato d sentido ao signo, correspondendo a certas caractersticas evocadas pelas

    palavras ou pelos signos picturais, no seu significado como no seu significante. Claro que as

    conexes estabelecidas entre o signo e o fato ulterior no so fruto de um processo linear, as

    relaes causais tornam-se retorcidas e os fenmenos resultantes podem obedecer a

    mecanismos de condensao, deslocamento, substituio e retoques (BRETON, 1992,

    p.181-182). Estes mecanismos remetem aos estudos de psicanlise realizados por Freud, que

    os surrealistas passam a aplicar em relao s manifestaes do acaso objetivo.

    A condensao foi o termo empregado por Freud para designar um dos principais

    mecanismos do funcionamento do inconsciente. Refere-se utilizao de uma metfora,

    consiste ou no uso de uma mesma imagem para representar mais de uma coisa ou situao ou,

    ainda, na criao de uma imagem ou figura mista, composta com partes de duas ou mais

    entidades ou situaes, como a gaveta aberta de penteadeira (imagem comum em Dal) que

    simboliza a presena do inconsciente ou uma metfora arquitetnica para a memria, uma

    caixa de Pandora de desejos e impulsos inaceitveis. (HARRIS, 1995, p.37; 70).

    O deslocamento, por sua vez, se expressa por uma metonmia, uma substituio de

    uma imagem ou situao que expressa um desejo inconsciente por uma outra imagem, que

  • 29

    guarda relao com a primeira, mas , em si mesma, inocente, como a colher sapato22 citada

    por Breton em L Amour Fou, que realiza o jogo de palavras cinzeiro - Cinderela (cendrier

    cendrillon), idia que surgira durante um despertar do autor. Quanto substituio, utiliza-se

    uma nova imagem ou palavra em substituio ao sentido ocultado ou de forma aglutinada ao

    sentido original, como o nome Nadja, que em russo [...] o comeo da palavra esperana23, e

    porque s o comeo dela (BRETON, 2007, p. 66). Nadja no nada mais do que um

    pressentimento, algum a quem Breton procura incessantemente pelas ruas de Paris, mas cujo

    nome anuncia e explica o porqu da srie de encontros e desencontros no livro homnimo.

    J os retoques surgiriam depois de formulado o conjunto signo/fato e se referem ao

    trabalho de dar ao objeto/texto uma aparncia lgica - incluindo, remodelando ou eliminando

    algum elemento - atravs de uma srie de imagens visuais aparentemente desconexas (uma

    vez que sua ligao est ao nvel do inconsciente) como se observa nas colagens de Max Ernst

    ou as "colagens pintadas a mo"24 de Ren Magritte, que se apropriam de diferentes imagens

    e as descontextualizam, de modo que estas passem a fazer parte de uma nova ordem,

    impactante por seu aspecto enigmtico.

    Assim sendo, certos fatos do acaso objetivo so claros, outros requerem ser decifrados

    e at mesmo suscitados, o que resulta na atmosfera mgica presente em alguns textos

    surrealistas. Essa atmosfera mgica surge muitas vezes atravs do maravilhoso, que para

    Breton corresponde manifestao do desejo de nos (de se) mostrar que aquilo que nos

    parece fantstico apenas aquele conjunto de sinais que chegam das zonas obscuras e que

    falam, no de um alm transcendente, mas imanente (DUROZOI; LECHERBONNIER,

    1976, p. 168). Segundo Chnieux-Gendron (1992, p.93), para os surrealistas, perceber o

    objeto (ou o ser ou o fato) encontrado na sua relao com o prprio desejo do observador-

    22 Em 1934, Breton passeava com Giacometti numa feira quando compra ao acaso uma colher cujo formato lembrava um sapato feminino. Vrios meses antes ele havia tentado persuadir Giacometti a fazer um cinzeiro - Cinderela (cendrier cendrillon). 23 Nadezhda. 24 De acordo com as palavras do prprio Max Ernst (1891-1976) a propsito das pinturas de Magritte.

  • 30

    ator perceber um desnvel entre o previsto e o dado, de modo que justamente esse

    desnvel que garante a eficcia do maravilhoso. Contudo, sobre o desejo evocado, Flvia

    Nascimento (2006, p.9) explica que este possui uma natureza ambivalente, j que em vez de

    revelar o maravilhoso, pode tambm assumir uma configurao trgica quando o que ocorre

    objeto de algum temor (e no de desejo) por parte do sujeito, exemplo encontrado em Les

    Dernires Nuits de Paris, de Philippe Soupault, onde o trgico encarnado pela morte que se

    difunde por toda a narrativa.

    Convm ressaltar ainda que os surrealistas buscam, atravs do acaso objetivo,

    desvendar os mistrios do cotidiano, revelando uma teia de relaes, um tecido de

    coincidncias, sinais e correspondncias, deixando contudo intacto outro mistrio: a

    conjuno entre destino e liberdade, uma vez que para que a relao entre signo/fato se realize

    necessria a cumplicidade da vontade do partcipe em reconhecer o maravilhoso ou o

    trgico que se projeta no real.

    3.1. Estados, mtodos e tcnicas do acaso objetivo

    Na maioria das vezes, fora os casos particularmente evidentes, se faz necessrio

    provocar a sorte para que o acaso objetivo se consolide. Assim sendo, at mesmo antes da

    teorizao em torno da expresso acaso objetivo, os artistas surrealistas fazem do acaso

    uma prtica, na qual experienciam estados, mtodos e tcnicas que vm a favorecer a

    manifestao do acaso objetivo.

    Michel Carrouges (1950, p.241-263) identifica alguns estados em que os indcios que

    conduzem ao acaso objetivo se multiplicam. Entre eles destaca-se:

    - A espera (lattente): ao mesmo tempo uma postura de crena na iminncia do

    excepcional e de vigilncia/ateno aos sinais do acaso objetivo:

    ce n'est pas une vaine impression subjective, cest dj un acte intrieur, cest un desserrement de notre lien avec les courroies de transmission du dterminisme.[...]

  • 31

    cest le sixime sens qui nous fait percevoir le signaux du hasard objectif (CARROUGES, 1950, p. 242).

    - O automatismo e o sonho: conduzem para as regies do acaso objetivo, no somente

    devido s vises transfigurantes ou alm da imaginao por eles evocados, mas tambm

    porque fazem com que o indivduo reconhea, na vida cotidiana e em si mesmo, vestgios de

    uma existncia muito diferente e que se encontra misteriosamente conectada com a vida real.

    Dentre as tcnicas para a realizao ou provocao do acaso objetivo, talvez a mais

    conhecida seja a deambulao ou errncia25, que fora um motivo literrio da modernidade

    por excelncia durante a segunda metade do sculo XIX, com o flneur de Baudelaire

    (NASCIMENTO, 2006, p.9). Como observa Anderson da Costa (2004, p. 125), durante uma

    deambulao o acaso objetivo uma possibilidade sempre presente para que situaes

    extraordinrias aconteam. Para Flvia Nascimento (2006, p.9), a errncia vincula-se ao

    mistrio urbano que possui uma estreita ligao com o crescimento demogrfico da cidade

    e o poder do anonimato sobre as imaginaes, sendo que nas grandes cidades o ndice de

    imprevisibilidade cotidiana acentua-se em um cenrio onde as possibilidades se ampliam.

    Desta forma, a deambulao torna-se uma tcnica surrealista posta a servio da escritura

    literria, sendo possvel constatar o seu uso em Nadja, em O Campons de Paris (1926), que

    rene relatos de passeios ao acaso realizados por Aragon em companhia de Breton e Marcel

    Noll e ainda em Les Dernires Nuits de Paris (1928) de Philippe Soupault. Paris um

    pequeno mundo em que [...] sinais fantasmagricos cintilam atravs do trfego; tambm

    ali se increvem na ordem do dia inconcebveis analogias e acontecimentos entrecruzados.

    esse espao que a lrica surrealista descreve. (BENJAMIN, 1986, p.27).

    Caminhar a esmo pelas ruas de Paris representava para os surrealistas uma busca por

    uma cidade atemporal, talvez at fantasmagrica, numa reflexo irnica e um tanto radical

    25 Passeios em grupo ou sozinho sem uma rota ou ponto de chegada pr-definidos. Era comum sortear-se uma cidade a esmo e se deslocar at ela conversando o tempo todo, permitindo apenas os desvios voluntrios para poder comer ou dormir. As deambulaes tambm eram feitas em um simples passeio pela cidade, caso de Nadja.

  • 32

    sobre a crise da Europa moderna aps a 2 Guerra Mundial (ABREU, 2004, p. 65). Neste

    sentido, de certa forma, pode-se afirmar que a busca surrealista se aproxima bastante da do

    detetive da literatura policial:

    [...] um esforo de desvendamento, de iluminao e revelao, a partir de acontecimentos fortuitos no espao urbano. A principal caracterstica da cidade moderna seu mistrio, que se manifesta em todas as esferas da vida urbana e at mesmo em seus acontecimentos mais banais e insignificantes. Do esclarecimento desse mistrio pelo detetive da narrativa policial emerge uma ordem urbana perdida, da mesma forma que da busca surrealista se esperava que emergisse a explicao das estruturas mais ntimas da psique humana. (ABREU, 2004, p. 66-67).

    Outra tcnica utilizada era a dos jogos surrealistas, que poderiam ser de

    escrita/desenho, de fluxo de pensamento ou de perguntas e respostas. O fluxo de pensamento

    consistia em escrever tudo o que se passasse pela cabea no momento da prtica, buscando

    ignorar coeso e coerncia textuais. J no jogo de perguntas e respostas, cada participante

    escrevia uma pergunta e uma resposta ao acaso, em papis separados, sem vnculo obrigatrio

    de sentido. Ento as perguntas iam sendo sorteadas e respondidas, tambm ao acaso. Mas a

    mais popular de tais experimentaes surrealistas so mesmo os jogos de escrita /desenho

    chamados cadavre exquis, que consistiam em compor um texto, uma frase ou um desenho em

    conjunto, sem que nenhum dos participantes pudesse levar em conta as colaboraes

    precedentes. A folha era passada dobrada e ao desdobr-la, verificava-se, com surpresa, uma

    relao inesperada entre as palavras ou figuras desenhadas. A frase clssica Le cadavre -

    exquis - boira - le vin - nouveau deu nome ao jogo e ilustra seu funcionamento. s vezes

    eram estipulados ordenamentos ou seqncias a serem seguidos, como por exemplo, nos

    jogos de escrita, onde o primeiro participante deveria escrever um substantivo, o seguinte um

    adjetivo, o prximo um verbo e assim por diante. O mesmo se aplicava aos jogos de desenho

    onde o primeiro participante deveria desenhar uma cabea, o seguinte um pescoo, e assim

    sucessivamente. Os resultados finais de todos esses jogos eram surpreendentemente

    verossmeis, imprevisveis e at mesmo divertidos, evidenciando conexes fruto do acaso, de

    modo a permitir a emergncia do irracional e do inconsciente.

  • 33

    Os surrealistas tambm faziam uso dos chamados engodos, comportamentos

    mgicos26 descritos por Breton em L Amour Fou, como deixar a porta aberta a espera da

    mulher desejada (aumentando a possibilidade para que ocorra o encontro), abrir por acaso um

    livro em alguma pgina para encontrar algum indcio ou resposta esperada, deslocar objetos

    de modo a estabelecer entre eles relaes inslitas buscando uma revelao.

    Como possvel deduzir diante da descrio de tais tcnicas, o grupo surrealista no

    se incomodava ou temia o acaso, pelo contrrio, criou meios para encontr-lo j que esse

    permite que as coincidncias se tornem tambm respostas, ou melhor, sinais de

    reconhecimento: sinais de uma vida maravilhosa que viria a revelar-se por intermitncias, no

    curso da vida cotidiana (CARROUGES, 1968, p.271). Neste sentido, o acaso objetivo, mais

    que o encontro das causalidades interna e externa, o ponto de interseco de duas

    disponibilidades: a de um indivduo e da floresta de indcios27 que se torna a realidade.

    3.2. O acaso objetivo em contos de Dino Buzzati

    possvel observar em alguns contos de Dino Buzzati a presena de estados ou

    manifestaes que pertencem aos domnios do acaso objetivo, tais como a espera, os

    pressentimentos, os encontros e a deambulao, todos amplamente utilizados pelos

    surrealistas, de forma que Buzzati ci porta a vedere o soltanto intravedere la quantit di segni

    e di possibilit che ci circonda (DANSTRUP, 1992, p. 138).

    Assim sendo, o acaso objetivo se apresenta nas narrativas do autor italiano seguindo

    geralmente trs formas: a primeira congrega uma srie de coincidncias, premonies, sonhos

    e sensaes28 que inicialmente parecem no possuir uma conexo lgica e que surgem no

    decorrer do texto; a segunda se caracteriza atravs do encontro inusitado de uma pessoa, lugar

    26 Cf. Durozoi e Lecherbonnier (1976, p. 172) utilizao de um objeto como intercessor entre duas pessoas ou dois seres que procuram se comunicar. 27 Expresso empregada por Breton em L Amour Fou 28 Como no conto AllIdrogeno, analisado no Captulo 5.2.2.

  • 34

    ou objeto, e uma terceira alternativa que seria uma espcie de unio das primeiras, onde h a

    coincidncia e o encontro, por exemplo. Todas essas possveis configuraes possuem uma

    mesma finalidade, que a de conduzir a personagem e/ou o leitor a uma revelao,

    concretizao ou projeo de um desejo, uma verdade, uma culpa, um segredo ou uma

    mudana, algo que a personagem muitas vezes nega conscientemente, mas que permanece

    latente em seu interior e que exposto no decorrer da narrativa atravs do acaso objetivo.

    Nos contos de Dino Buzzati percebe-se o uso do acaso objetivo de acordo com as

    caracterizaes pertencentes ao surrealismo heterodoxo, como coloca Jorge Dubatti (2002,

    p.37):

    Frente a la verificacin del azar objetivo en la realidad, los surrealistas trasladan el azar a la obra de arte, y lo hacen de dos maneras: como produccin inmediata del azar: el poeta libra su conciencia a las asociaciones sin control, para que las conexiones entre los objetos y las imgenes del poema surjan involuntariamente. A esta modalidad correspondera el surrealismo ortodoxo. Como produccin mediada del azar: simula el azar, lo provoca matemticamente. Ya no rige una espontaneidad ciega en el manejo del material, sino por el contrario un clculo esttico muy preciso. A esta segunda forma responde el surrealismo heterodoxo.

    De fato, o autor italiano no faz uso de livre-associaes descontroladas, mas cria um

    enredo em que posiciona estrategicamente as manifestaes do acaso objetivo durante a

    narrativa de modo a resultar na revelao ou projeo do desejo, culpa, sonho ou outro

    material do inconsciente na realidade. Muitas vezes cabe personagem reconhecer ou no que

    se encontra diante de algo pertencente ao acaso objetivo, uma vez que, mesmo diante de uma

    imensido de indcios, pode ela ainda negar tal materialidade; todavia ao leitor ficar clara a

    sua presena.

    Para as anlises a seguir foram selecionados contos onde a presena do acaso objetivo

    pode ser verificada, mesmo que de modo sutil, desempenhando um papel fundamental no

    desenrolar da narrativa, contruindo o cenrio para uma revelao ou reviravolta do enredo.

  • 35

    3.2.1. Um encontro nada inocente: Qualche utile indicazione a due autentici gentiluomini (di cui uno deceduto per morte violenta)

    Neste conto (p.197-203), que possui uma boa pitada de humor negro, o acaso objetivo

    se d atravs do encontro inusitado de um criminoso (em uma situao totalmente inesperada

    para ele) com uma de suas vtimas - que ansiava por tal acontecimento.

    O autor italiano estrutura o pargrafo inicial seguindo seu estilo bem caracterstico,

    cujo formato remete crnica jornalstica, de modo que o leitor conhea a identidade do(s)

    protagonista(s) e as coordenadas espao-temporais logo nas primeiras linhas. Este tipo de

    estrutura, na opinio de Nella Giannetto (1994, p.16), se revela um instrumento eficaz para a

    obteno do efeito de sntese, to apreciada pelo autor.

    Assim sendo, ao dar incio leitura do texto, o leitor ir de se deparar com uma srie

    de informaes sobre o protagonista do conto:

    Un uomo sui 35 anni, di nome Stefano Consonni, vestito con una certa ricercatezza e con un pacchettino bianco nella mano sinistra, passando alle dieci di sera, add 16 gennaio, per la via Fiorenzuola, a quell'ora deserta, ud intorno a s improvvisamente come un sonoro ronzio di mosconi che sussurrassero.

    Curiosamente, no conto em questo, o efeito de sntese tambm parece ocorrer entre

    uma possvel conexo entre o ttulo e estas informaes do primeiro pargrafo, como se as

    indicaes que os autentici gentiluomini29, nomeados no ttulo (que durante a narrativa

    percebe-se no serem homens de fato e nem to gentis assim), buscam durante a narrativa

    estivessem sendo fornecidas pelo narrador ainda nas primeiras linhas do texto.

    Alm disso, tambm se estabelece uma complementariedade de informaes entre o

    texto e o ttulo, uma vez que revelado ao leitor que a morte de um desses autentici

    gentiluomini fora violenta, informao que vem a ganhar sentido no decorrer da narrativa,

    quando se revela a causa da morte de uma das personagens em questo.

    29 Essa suposio s surgir aps o trmino da leitura, pois como ser visto mais adiante, a expresso qualche utile indicazione surgir outras vezes na narrativa, se referindo a um pedido de informao ao protagonista.

  • 36

    A respeito do nome da personagem pode-se afirmar que ele estrategicamente

    empregado, pois como observa Stefano Lazzarin (2003, p.39; 56) l onomastica buzzatiana

    non mai frutto del capriccio o del caso, ma sempre attentamente meditata, spesso alusiva,

    ricca di sensi molteplici [...] , sendo que o nome das personagens imprezionisce il texto ; lo

    rende pi arduo podendo, entre outros aspectos, fornecer pistas interpretativas ao leitor ou

    possuir uma forte carga simblica. No conto em questo, o nome Stefano Consonni (com

    sono) sugere ao leitor algo a respeito da personalidade da personagem: algum que se

    encontra em um estado alterado, cuja percepo dos eventos possivelmente no seja clara. E

    essa informao - sugerida pelo nome ainda nas primeiras linhas - acompanhada de outros

    dados a respeito da personagem: sua idade, seu modo de ve