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Emperrada Em 5 de novembro de 2008 Três batidas na porta rompiam com todo o silêncio daquele lugar. Três batidas fortes, curtas, secas, descompassadas e inesperadas de repente inundaram todo aquele lugar de som, sem deixar passar sequer um milímetro quadrado daquela paz sombria desprovido da pequena sinfonia rítmica que acontecia na porta. Pequena, mas tão significativa que fez com que Joana, pálida de susto, largasse o papel rabiscado e a caneta mordida de tanta preocupação na mesa onde estivera debruçada. “Eu não acredito!” foi a primeira resposta que seu cérebro conseguiu processar naquela situação: a batida na porta. Mais batidas na porta. Sim, Joana. Realmente era uma batida na porta, e isso era fato. Engraçado como ela, tão cética e racional, fez questão de negar aquelas batidas na porta. Tanto tempo esperava errado por aquele momento que agora ele simplesmente não poderia estar acontecendo. Tantas vezes tinha tentado ouvir... Algumas até forçou, mas nada acontecia. E agora, tão ocupada, não poderia estar acontecendo porque ela não tinha programado tempo para isso. Mas, Joana, tanta coisa acontece sem antes havermos dedicado tempo... Em sua maioria, quando não são as melhores, são as coisas necessárias, já dedicadas, previsto você ou não, a acontecerem na sua vida. Tudo simplesmente, ou não, acontece. É um grande engano achar que se podem alterar rotas invioláveis, mas isso não é um fatalismo, não! Desde que se vive, sabe-se que um dia a morte chega e isto não pode ser encarado como fatalismo. Fatalismo é fatalista demais pra isso. E você deveria avisar ao seu coração que essas coisas acontecem. E não é fatalismo. Natural: Aquilo que não se força, lembra? E as batidas na porta reagiram como se quisessem lembrar que ainda estão lá. Agora que já havia respondido à sua incabível reação de surpresa, restava a tarefa mais difícil: abrir a porta. De súbito, uma reação, um pouco mais plausível, tomou conta de Joana. Agora que finalmente se dera conta da situação, como abrir a porta com a casa e ela mesma daquele jeito? Tudo estava no lugar mais inconveniente possível. Havia pratos sujos do pequeno e improvisado jantar de ontem na mesinha de centro de sua sala. A casa toda parecia ter sido palco de uma conturbada revolução. Ainda havia tanto trabalho pra adiantar, aliás, atualizar, já que estava atrasado, e tanta conta pra verificar, coisa que minuciosamente fazia, que não sobrava tempo. E ela então, o cabelo totalmente desajeitado, a roupa era da noite anterior, porque tinha chegado com cansaço demais pra se importar em tirar. Numa atitude quase desesperada, Joana recolhe os papéis da mesa e os esconde dentro de sua bolsa. Em seguida, pegou emprestadas duas cadeiras da cozinha e rapidamente posicionou-as na mesa onde estava. Mas ainda faltava algum detalhe.... hum... talvez o jarro com flores de plástico que enfeita o fogão. É isso! O jarro de flores de plástico. Eis a salvação! Joana voltou à cozinha, que não ficava muito longe de onde estava já que sua casa era minúscula, e apanhou o jarro. Aproveitou a pequena viagem e tirou da última gaveta debaixo do armário de utensílios uma linda toalha bordada por sua mãe que lhe fora dada num natal um pouco distante. Pôs os adornos na mesa, onde ficaram muito bem. ... Mas estava errado. Joana sempre tentou disfarçar sua real condição. Pelo menos desta vez percebeu antes que ela não era um jarro com flores de plástico e uma linda toalha de mesa bordada. Estava bem longe disto. Era, na verdade, o papel rabiscado triste e

Emperrada

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Conto sobre os primeiros minutos do amor

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Emperrada

Em 5 de novembro de 2008

Três batidas na porta rompiam com todo o silêncio daquele lugar. Três batidas fortes, curtas, secas, descompassadas e inesperadas de repente inundaram todo aquele lugar de som, sem deixar passar sequer um milímetro quadrado daquela paz sombria desprovido da pequena sinfonia rítmica que acontecia na porta. Pequena, mas tão significativa que fez com que Joana, pálida de susto, largasse o papel rabiscado e a caneta mordida de tanta preocupação na mesa onde estivera debruçada. “Eu não acredito!” foi a primeira resposta que seu cérebro conseguiu processar naquela situação: a batida na porta.

Mais batidas na porta. Sim, Joana. Realmente era uma batida na porta, e isso era fato. Engraçado como

ela, tão cética e racional, fez questão de negar aquelas batidas na porta. Tanto tempo esperava errado por aquele momento que agora ele simplesmente não poderia estar acontecendo. Tantas vezes tinha tentado ouvir... Algumas até forçou, mas nada acontecia. E agora, tão ocupada, não poderia estar acontecendo porque ela não tinha programado tempo para isso. Mas, Joana, tanta coisa acontece sem antes havermos dedicado tempo... Em sua maioria, quando não são as melhores, são as coisas necessárias, já dedicadas, previsto você ou não, a acontecerem na sua vida. Tudo simplesmente, ou não, acontece. É um grande engano achar que se podem alterar rotas invioláveis, mas isso não é um fatalismo, não! Desde que se vive, sabe-se que um dia a morte chega e isto não pode ser encarado como fatalismo. Fatalismo é fatalista demais pra isso. E você deveria avisar ao seu coração que essas coisas acontecem. E não é fatalismo. Natural: Aquilo que não se força, lembra?

E as batidas na porta reagiram como se quisessem lembrar que ainda estão lá. Agora que já havia respondido à sua incabível reação de surpresa, restava a tarefa mais difícil: abrir a porta. De súbito, uma reação, um pouco mais plausível, tomou conta de Joana. Agora que finalmente se dera conta da situação, como abrir a porta com a casa e ela mesma daquele jeito? Tudo estava no lugar mais inconveniente possível. Havia pratos sujos do pequeno e improvisado jantar de ontem na mesinha de centro de sua sala. A casa toda parecia ter sido palco de uma conturbada revolução. Ainda havia tanto trabalho pra adiantar, aliás, atualizar, já que estava atrasado, e tanta conta pra verificar, coisa que minuciosamente fazia, que não sobrava tempo. E ela então, o cabelo totalmente desajeitado, a roupa era da noite anterior, porque tinha chegado com cansaço demais pra se importar em tirar. Numa atitude quase desesperada, Joana recolhe os papéis da mesa e os esconde dentro de sua bolsa. Em seguida, pegou emprestadas duas cadeiras da cozinha e rapidamente posicionou-as na mesa onde estava. Mas ainda faltava algum detalhe.... hum... talvez o jarro com flores de plástico que enfeita o fogão. É isso! O jarro de flores de plástico. Eis a salvação! Joana voltou à cozinha, que não ficava muito longe de onde estava já que sua casa era minúscula, e apanhou o jarro. Aproveitou a pequena viagem e tirou da última gaveta debaixo do armário de utensílios uma linda toalha bordada por sua mãe que lhe fora dada num natal um pouco distante. Pôs os adornos na mesa, onde ficaram muito bem. ... Mas estava errado. Joana sempre tentou disfarçar sua real condição. Pelo menos desta vez percebeu antes que ela não era um jarro com flores de plástico e uma linda toalha de mesa bordada. Estava bem longe disto. Era, na verdade, o papel rabiscado triste e

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conformado, esperando para ser resgatado do vórtice negro que era a sua bolsa. Ah, e uma calculadora quase pifando também. Flores de plástico são falsas demais, até para ela, tão acostumada a camuflagens. Qual a graça de ver uma flor sempre bonita, sempre intacta, sempre posando para uma linda fotografia? Flor não é modelo de beleza. Está longe disso. A beleza, quando muito usada, é logicamente gasta. Se uma flor de verdade não tem seu momento de esplendor de tonalidades e forma eternizado, por que sua cópia fajuta tem que ser perfeitamente imortal? As flores nascem, adquirem o brilho da vida que as cercam e esperam o momento certo de exalar este perfume em si mesmas, pois são inteligentes para perceber que beleza sempre é utópico demais. Depois de maduras, esperam pela pisada distraída, pelo vento ou chuva forte, ou pelo murchar natural da vida, que toma a beleza como indulgência e a recolhe. Enfim... Qualquer intempérie que se encarregue de fazer perdurar a vida, mostrando suas diversas formas. Pular uma etapa dessas seria desastroso. Quem for capaz de olhar para uma flor esmagada no meio da rua e reconhecê-la bela em seu estado de detrito, guarda em si o significado da beleza, aquele que o dicionário não comporta, já que não se limita a páginas. A beleza verdadeira não se deterioriza, porque nunca foi fabricada e/ou precisou de um corpo para isso. É inabalável e não se preocupa com reconhecimento. Está impregnada e além da vida para ser submissa a detalhes alheios à existência. Tão bonita uma flor é, quanto bonita é a indiscutível metamorfose da vida, em suas mais diversas etapas. Pétalas róseas, cores pulsantes, seu jeito tímido e sensual... Vão. O que fica são suas entrelinhas. Isso Joana bem sabia, mas nunca tinha posto em prática. Satisfez-se em pelo menos lembrar que sabia. E esboçou um sorriso de meio contentamento quando percebeu que as flores de plástico estavam imundas. “Eu não sou uma beleza fajuta” retrucou para si mesma, com um tom repreensivo de “Eu não posso ser uma beleza fajuta”.

Tão verdadeira Joana sempre foi consigo mesma, que a verdade, em suas mãos, assumia a forma de um revólver, o qual ela fazia questão de usar para silenciar suas necessidades sentimentais. Pela primeira vez ela usou a arma da verdade em seu favor, tornando refém qualquer impulso de inverdade que seu sensor auto-repressivo apontasse. Assim ela se sentia completa: reinando absoluta como rainha do discernimento moral. Esse título ela fazia questão de ostentar justamente quando percebia que não era nada disso, como agora, por exemplo. Seu próprio sensor apontava que ser perfeito era obrigação de todo mundo, ao passo que jamais se deve chegar à perfeição. Eis um terreno delicado demais para andar com pés descalços. Para explanar o tema: Em uma pista enorme e absolutamente lisa, sem nenhum obstáculo, a tendência é pisar no acelerador e chegar rápido; em uma pista esburacada toda a cautela é pouca para não prejudicar o veículo. Acelerar é correr o risco de perder o controle, tudo que Joana detestava. Aí está a utilidade dos buracos, das ribanceiras, nas lacunas, rombos, cortes e rasgos: Atritar-se com a velocidade em que estamos trafegando. Isso Joana também sabia, só não tinha posto em prática. A vida sempre lhe teve um ar teórico para exercícios de aplicação. Ela sabia que a vida não era um filme, mas imaginava que teria que ser. Sabia que não acharia sem procurar, mas esperava cair do céu. Sabia que o impreciso é muito mais alucinante, mas preferia divertir-se com o óbvio. Joana sempre titubeou no caminho que conhecia por não saber usar as próprias pernas para andar. Só andava segura depois de refeitos, feitos novamente e feitos de novo todos os cálculos, e estes tivessem dado um resultado satisfatório para seu ego. É que ela não poderia se dar a inadmissível chance de se arrepender. Isso não, Fora de cogitação! Era errado demais pra ela. Se soubesse do grande patrimônio que ela perde agindo assim... Mas tudo bem, a vida é dela. Já foi um grande passo para si mesma notar que era falso arrumar a mesa.

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Então devolveu tudo para a cozinha, onde montou o pensamento de não ser boa o suficiente para abrir a porta. E tinha lá seus resquícios de razão. O que foi que tinha feito de realmente bom na vida? O que Joana fez que tivesse valido a pena ter feito para unicamente ela? Ela nem conseguia contar nos dedos de uma mão os momentos, de fato, inesquecíveis. Primeiro beijo? Fazia questão de esquecer! Tinha jurado a si mesma que seu primeiro beijo seria mágico, envolvente, de fazer as pernas ficarem fracas e o coração se debater dentro do peito. Não poderia ter sido mais deprimente de sua parte ter beijado só porque suas amigas estavam a obrigando, e um menino que ela conheceu minutos antes do ato. Passar no vestibular? Comprar sua própria casa? Ser o orgulho da família? Eram medalhas de ouro falso que seu pescoço nunca se contentou em exibir por não serem propriedades dela, já que era tudo em função de um reconhecimento alheio cada vez mais criterioso em sua mente. Pelo que suas entranhas clamavam, sua doença de aprovação emudecia. Foi quando pôs o jarro e a toalha em seus lugares. Toda aquela análise a tinha sobrecarregado. Virou-se para a pia e apoiou seu corpo e tudo mais que pudesse ir junto. Manteve, por segundos, a cabeça abaixada em sinal de autocontemplação. Ao término deste pedacinho de tempo, deparou-se com um espelho improvisado na incidência da luz na porta de sua geladeira. Olhava atentamente parada o reflexo que ela provocava no espelho. Não queria mover nenhum músculo. Estava confrontando a imagem e a matéria, fazendo-as, a priori, conversar. Não poderia perder tempo com movimentos desnecessários àquele acerto de contas tardio, que chamou a atenção de tudo ali presente. A única coisa que usava o movimento como aliado eram os olhos, que registravam tudo para que depois nenhuma das duas partes venha se queixar de injustiças. Os olhos eram o mediador.

E o confronto começara. Joana estava cansada de carregar-se, de se servir de apoio, de peso, de fardo.

Suas limitações corpóreas impossibilitavam que ela suportasse mais de si do que deveria. Era visivelmente injusto agüentar mais coisas do que um coração carente. Já é pesado demais... E suas lamúrias então. Preço alto demais para alguém que vive bem. Preço ainda baixo para alguém que estagnou a vida, reconhecera. Não queria vestir a máscara dos arlequins, mas seu interior fazia com tanta sobriedade e magnetismo, que a empurrava para dentro do que acabou por se tornar um monumental buraco negro, seu coração. Um buraco podre, quase um aterro sanitário era o que ecoava em seu peito esquerdo. Um buraco onde o lodo, oriundo das lágrimas, fazia cair qualquer curioso mal avisado que se atrevesse a chegar mais perto.

O reflexo, contudo, não ficou por baixo. Fez questão plena e absoluta de transmitir tudo quanto podia. E o que ele podia não era pouco, mas também não era tudo. Retrucou rapidamente as réplicas da matéria com uma imagem torta, oblíqua, embaçada. Todos os traços pareciam se perder no resto da imensidão branca da geladeira, assim como ela se perdia em meio ao universo. É que o universo traz tantas possibilidades, que era melhor ficar quieta para não se perder nelas. Aquele esboço de reflexo tinha atingido, e no alvo mesmo, seu ego. Olhar para aqueles pés maltratados de tanto se enfiarem em sapatos, mais parecidos com açoites do que sapatos, era torturante. Sempre foram os pés que a carregava, e se eles estavam visivelmente estragados, logo concluira que esteve em caminhos que a estragavam. Nada imoral a seus valores, simplesmente injustos com seus pés, partes de seu corpo. O corpo que não pedia muito além de um simples olhar distraído da parte da dona. Suas pernas, inchadas de tanto esforço relutante e abnegação, faziam o par perfeito com seus pés. A roupa, meu deus, era de ontem! Como ela pôde ter se despercebido dessa forma? Os braços, ah, esses

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tremiam, e como tremiam. Tremiam em conjunto com sua mão, praticamente esmagando na pia. Não Tremiam por Joana ser gorda. Se o motivo fosse esse, seria fácil de resolver. É que dentro de seu corpo tudo estava explodindo, pegando fogo. Ela escondia naquele momento uma reviravolta de emoções, um choque de acontecimentos, começando assim um processo catastrófico de automutilação. Ainda assim, seu rosto restava intacto. A mesma cara de pedra. As mesmas rugas precipitadas. Só uma coisa chamava mais atenção do que aquela mórbida cena: seus olhos.

Não, eles não podem esconder. E os olhos de Joana não escondiam mesmo. Era apavorante a sensação de olhar para aqueles olhos agora. Estavam vermelhos, aniquilavam tudo que vissem pela frente. Tão difíceis de descrever... Se Deus existe, com certeza aquilo era a fúria de Deus. Em seu estado mais cru, sem nenhuma preocupação com amarras. Nada se atreveria a parar aquela força. Aterrorizava olhar muito. Era como se mil navalhas, em um ataque de adrenalina, dançassem freneticamente dentro de seu corpo, ou se seus vasos sangüíneos hospedassem um cardume de piranhas famintas, e os olhos exprimissem a dor, e se era dor... Que dor! O mar se rasgaria, a terra toda se flagelaria e não representavam tortura com mais destreza do que aqueles dois centros de raiva. Os pingos de aflição que saiam de lá eram agonizantes, como agonizante é morrer afogado em um mar de larva que mata muito lentamente. Era o desespero de uma criança presa em um labirinto fruto de sua própria brincadeira, sem a menor chance de resgate. Eram dos olhos obcecados por vingança... E daquela bem sangrenta. A sensação era de ser obrigado a abraçar o sol e sentir cada chama de sua esfera entranhando na pele. A palavra mais apropriada seria carnificinação, mas ela nem existe, e mesmo se a inventassem, faltaria o sentido que só seria compreendido fitando aquele olhar amargurado, irremediável, onipotente... Dada a proporção do desastre. Parecia possuída por uma legião de necessidades suprimidas, desejos abafados e vontades revoltadas e indignadas. Era possível ouvir o barulho de taças brindando. Eram seus demônios particulares.

Joana focava todo esse olhar na geladeira. Foi quando chegou a hora do arrebatamento, e toda a moléstia cessou. Fez-se

silêncio em respeito ao que Joana havia se tornado depois daquilo, escombros ensimesmados. É, pois ela se quebrou. A gravidade, em sinal de respeito, puxava o resto da poeira que ainda planava no ar, para o chão. Era agora uma calculadora que se espatifou ao cair. Um frasco de perfume que não conseguiu mais suportar seu hóspede com a queda. Poupemo-nos de mais detalhes.

Contudo, o olhar da fúria onipotente gradativamente foi tomando conotação de uma fúria mais covarde, depois de uma compaixão, e ainda depois de uma compaixão incessante e gratuita.

Havia se reconhecido como a flor, em seu estado mais orgânico, rebaixada ao estado de dejeto, a qual pensava há pouco. Viu os detritos de si mesma como uma flor estraçalhada. O mais estranho é que viu, entre um talo quebrado e uma pétala murcha, o pulsar da beleza, aquela que é inabalável. Mais estranho ainda foi perceber que a beleza inabalável em questão era a dela mesma. Que estranho era para Joana reconhecer sua beleza! Precisava de toda aquela cena de terror para que sua beleza brotasse espontaneamente aos seus olhos?

... Sim! Ainda com os olhos profundamente conectados à geladeira, Joana, de repente,

percebeu que havia algo que a geladeira não conseguia refletir. Algo incabivelmente maior do que ela mesma. Joana acabou de descobrir algo que espelho nenhum consegue reproduzir, tamanha sua veracidade. Era a sua cor, sim, a sua cor! Até o espelho se deu conta disso, e depois de quase ganhar o jogo, acabou por reconhecer sua infortunada

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derrota. Agora sim Joana estava diante de si mesma, pois conseguia enxergar a sua cor pessoal, aquela que colore o interior. Não era a cor de seu vestido, ou de sua pele, ou de seu cabelo, era a cor do seu espírito, aquela que nenhum arco-íris comporta e nem a milésima combinação de cores chegaria perto. Era a sua cor, o seu infinito pessoal. Ah, e dela mesma! Sim, porque não acreditava que dentro de si reinasse uma cor tão peculiar quanto a sua. E ela continuava observando-a, admirando-a, contemplando-a até achar que absorveu tudo quanto aquele tipo de luz podia lhe oferecer. Nossa, agora ela tem luz dentro dela! Melhor ainda. Nossa, agora ela sabe que tem luz dentro dela! Uma luz... Em Joana! A que foi predestinada a iluminar uma rua dentre as tantas outras ruas deste mundo. A que precisava ser acesa para que Joana pudesse atentar para o monumento homérico que era. Se percebesse antes, Joana teria entrado em estado de contemplação e perderia boa parte de sua vida se reconhecendo. Ainda bem que viu no momento certo, que foi quando precisava. Ela, tomada de uma felicidade incrédula, mal acreditou quando se deu conta de que era a cor que a faria entender a pintura que havia visto há dias, mas não tinha assimilado bem. Entendeu também, por que sua música predileta dizia tanto sem falar nada. Sempre buscava saber o porquê disso. Agora ela sabia. Era a cor que completaria a sua obra de arte. Agora ela sabia. O raio de luz que todos vêem passar e se perguntam de onde veio. Agora ela sabia. A labareda que não se continha mais naquela chama. Agora, ela sabia! Deparou-se, finalmente com sua unicidade.

Joana ficou radiante. Agora seus olhos, já mais calmos, viram o que bastava para seu ceticismo tão inconveniente. Simplesmente viram por olhar, por estarem distraídos, por não esperarem ver mais nada além dos destroços dela mesma. Sua cor se fez presente assim que achou que Joana não daria mais conta de si, e com uma entrada triunfante, diga-se de passagem. Ela não se encarava mais como um detrito ambulante. Não era arquiteta, mas diagnosticava o que via como um edifício mal planejado. Restava apenas enveredar por outra linha de raciocínio; tentar uma construção que ela consiga administrar melhor; Agradecer ao furacão que pôs tudo pra baixo e trouxe um dos mais valiosos presentes: o recomeço. Isso, Joana estava disposta a fazer como ninguém jamais teria feito. Carregando a si mesma com o coração. Deixando com que ele conduzisse. Com muito medo, mas deixando. É que a mente já teve sua chance, e até que conseguiu cuidar dela direitinho. Mas agora ela queria atravessar o limite da razão, do óbvio, do lógico. Não podia fazer isso com uma mente tão bem trabalhada, era pedir demais. Agora, era a vez do coração, que o fez com uma destreza impressionante, de quem sabe o que fazer, mas só faz quando lhe pedem. Joana voltou, não a si, mas a outra pessoa. Agora estava minuciosamente cardiomontada, se é que isso existe. Bom te ver assim, Joana.

Ainda estava habituando-se a seu novo eu, afinal de contas, pode ser todo o dia que você decide mudar, mas não todo o dia que você recebe a chance de mudar. E precisava fazer isso logo, afinal tem alguém batendo à sua porta... Ai meu deus, a porta!

Ela esqueceu! Passou tanto tempo se definindo, que esqueceu! Assim que recobrou a consciência, Joana rapidamente debruçou-se sobre a meia

parede que dividia a sala da cozinha e que ficava em frente à porta para ver se conseguia reconhecer dois pés contra a luz na brecha que o fim da porta fazia com o chão. Forçando um pouco o alcance do olho, viu sim! Pés parados, de quem ainda estava lá.

Ufa, que alívio, hein Joana!

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Seu corpo, agora encostado na parede em sinal de conforto, começou a reunir

forças ali mesmo para tentar abrir a porta. É que a tarefa da nova Joana era esquecer os seus medos! Juntou tudo quanto pôde para fazer valer o seu desejo antigo de conseguir abrir a porta, inclusive uma coisa jamais usada: a esperança de dar certo. Levantou-se quase que heroicamente e virou-se na direção da porta, pois até então tinha estado de costas. Foi quando a cola que usou para se reestruturar quase cedeu novamente. Os pés não estavam mais lá.

Joana paralisou. Todo o resto também. Joana, como foi que você perdeu essa chance? Como foi que você conseguiu

perder essa chance? Incrível como você sempre põe tudo a perder com essa mania de perfeição que sempre te deixa mais imperfeita. Como você quer ser digna de amor sem se dar chance? Como você quer se sentir amada, refugiada e protegida, sem querer outra pessoa onipresente na sua vida? Você não pode agir como se não precisasse de alguém pra cuidar de você, porque simplesmente todos precisam. Essa necessidade só se tornará cada vez mais progressiva, por que você não entende? Como você tem a frieza de negar ajuda para si mesma? Chega de achar que você consegue sozinha. Um líder só é líder quando há, no mínimo, mais alguém que lute com ele. É dessa pessoa que você precisa. Não finja que já tem, porque é mentira, e você não precisa mentir para mim, pois eu sei quem você é. Nunca vi alguém perdendo tanto tempo com o dilema de abrir ou não a porta. Você não se cansa de ser sempre a donzela enclausurada no topo da torre? Qual é a graça de esperar, idiota? Não seja mais hipócrita! Reconheça sua necessidade e lute! Isso tudo porque você percebeu que estavam chamando por você na porta? Quantas outras vezes você achou que era pra você e o que você fez? Exatamente a mesma coisa! Chega!

- Chega! ... e o silêncio reverberou. Joana chorou. Não Joana, por favor, não... não... não... não chore! Eu não quis te fazer chorar.

Eu só queria que você fosse mais tolerante e paciente consigo mesma. Tolerante e paciente não quer dizer perder oportunidades pensando. É não se importar tanto, porque outras oportunidades virão. O problema é o que você sempre faz delas. Olhe pra mim... Isto! Não se queixe por ser melhor ou pior do que você é. Aceite-se e aproveite cada milímetro de si; cada atenuante, cada encanto, cada negligência. Da próxima vez, abra a porta sendo exatamente quem você é, sem querer ser mais nada. Imprecisa, ilapidada, inacabada, principiante, defeituosa, torta, verborrágica, medrosa, mas nada além de você! Não desvie sua mente um minuto sequer do perfume que suas pétalas exalam. Perceba-o, é a única coisa que você pode fazer para se melhorar. Só pensarão que você é o que você pensar que é. Não perca a moral da história dos escombros! Você mesma percebeu que há uma beleza pulsante em você, não deixe de cativá-la. Sabe do que você precisa? Mesmo? Férias! Sim, boas férias! Não há melhor jeito de se afastar da vida quando não conseguimos encará-la mais como algo proveitoso. Férias... sim! Conhecer

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novos lugares... Novas pessoas... Descobertas, é disso que você precisa! Descubra-se simplesmente descobrindo. Isso, enxugue seu rosto. Não quero mais te ver assim. Não se esqueça de que o ponto final só vem depois que a frase está completa. Hora de continuar completando.

Em reconforto que lentamente tomava conta do seu corpo, Joana foi recobrando a consciência de estar neste mundo, de estar ali. Optou por recuperar seus movimentos sem brusquidão, apoiando e poupando o máximo que pudesse seu corpo. É que as recentes feridas doíam, mas mantinha exposta relutantemente a feição de controle, como quem sente um ferro em brasa encostar em cada chaga aberta de seu corpo e faz questão de manter-se indiferente a tudo. E até que estava certa. Não dar vazão a qualquer sentimento, seja de dor ou de conforto, significa economizá-lo para uma situação em que mereça ser gasto. Foi a primeira lição que seu coração lhe deu, e ela entendeu sem precisar que repetisse.

Mas e quanto à próxima chance? Enquanto caminhava lentamente até a cadeira, procurava resgatar o que sobrou da vida, retomando tudo que estava fazendo até antes do acontecido. Recompôs o lugar de trabalho redesorganizando todo o seu material. É que a bagunça tinha um ar caseiro que a fazia se sentir mais à vontade. Olhou com um olhar de esperança pra tudo aquilo que seus olhos pudessem captar. Um olhar triste, de esperança escondida, mas se sabia que estava lá, em algum lugar daquele olhar. Cansada de tanta relutância, deixou escapar de seus lábios um sorriso de quem acaba de se lembrar que já sabia. E sabia mesmo. Sabia tudo que fez, até onde fez, por que fez, para quem fez... O fato é que antes não podia controlar. E agora?

Mas e quanto à próxima chance? Nossa, com que amor empunhava a calculadora... Parecia o grande prêmio de sua vida. E quem sabe, talvez possa até ter sido seu grande amor, do tipo alma gêmea. Quem sabe, essa situação não passou de uma ceninha de ciúme da sua calculadora por ter sido escanteiada? Joana não sabia. Mas sabia que gostava muito de segurá-la. Sentia-se vida novamente. Ela só tinha que apertar uns botões para o resultado sair bem na sua mão. Era como se sentisse que a vida pudesse ser resolvida da mesma forma. E quem sabe podia mesmo, não é?

Mas e quanto à próxima chance? Joana se tirou do molho quase insuportável que a sugava. Há muito tempo não tinha consciência do que é ser um humano. Não um humanóide, esse termo ela dominava muito bem, mas um humano. E agora, por mais improvável que parecesse, ela achava o significado naquela bagunça de papéis na sua frente. Seria esse o seu triste fim? Não parecia um triste fim pra ela.

Certo, mas e quanto à próxima chance? Toque de campainha. Nossa, a campainha! Como ela pôde esquecer! É claro que qualquer pessoa, ao chegar a uma casa, tocaria a campainha para se

certificar de que existe alguém em casa ou não. Naturalmente ele deve ter procurado um botão para apertar perto da porta e leu o aviso de que a campainha estava no muro de cercadinho, por erro de entendimento do eletricista. É isso!

E, com a mesma ansiedade e delicadeza de quem vai conhecer o mundo pela primeira vez, Joana se dispôs de pé, como quem finalmente vai saber onde finalmente está o ponto final da história. Com um ar intrigante e moderado, porém triunfante, timidamente levantou seu pé direito e o colocou na direção da porta. Era agora! Caminhava e deixava-se impulsionar por seu coração. Estava totalmente à mercê dele naquele instante. E como era lindo sentir o perfume tenro exalado por seus passos... De

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uma inocência grandiosa. Recolhia enquanto andava as migalhas de pão que usava pra marcar o caminho caso esquecesse, pois tinha medo de esquecer o caminho até a porta que ela tanto queria que abrisse. Foi quando o vento sutilmente soprou e a fez perceber a vida. Sim, há vida naquela casa, há vida nela.

Vento, por favor, permeie todo esse espaço com vida, a que só você traz. Colocou as mãos na madeira fria e suja da porta. Precisava sentir qualquer

vestígio de energia possível de ser sentida assim, e sentiu. Joana preparou rapidamente todas as defesas que podia. Logo depois de todas as defesas estarem ordenadamente enfileiradas e prontas para qualquer confronto, ela recolheu tudo e jogou fora com um sereno ar de tranqüilidade. Sabia que não iria precisar de mais nada além de ela mesma e de sua visita.

Rodou a maçaneta. Tinha colocado força demais para abrir por pensar que pudesse estar emperrada. Mas nunca foi tão fácil abrir uma porta. Mais fácil até do que ela calculava anteriormente. Sentiu-se desconsertava pelo pequeno vexame.

A partir daquele momento, Joana não precisava deduzir mais nada. Já tinha certeza do que se trataria o recital de imagens e sentidos que presenciaria em frações de segundo.

Expôs toda a Joana que pudesse abrir a porta naquele momento. É que ela precisava estar muito evidente para que a visita não perdesse nenhum detalhe. Transfigurou-se para seu estado mais íntimo e entranhado que conseguisse. Joana crua seria adequado, mas Joana pura caberia muito melhor como descrição.

E era ela mesma abrindo a porta. E tudo se revelou. E Joana sorriu.