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ENSINO DE BIOLOGIA E O COMBATE AO RACISMO: UMA
EXPERIÊNCIA DE IMPLEMENTAÇÃO DA LEI Nº 10.639/2003
Felipe Baunilha Tomé de Lima (1); Suzany Ludimila Gadelha e Silva (1);
Escola Estadual de Ensino Médio Integrado Presidente João Goulart [email protected];
Universidade Federal da Paraíba [email protected]
RESUMO
Em 2003 foi aprovada no Brasil a Lei Federal nº 10.639 que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e
Cultura Afro-Brasileira". Este artigo relata a experiência do projeto ESCOLA CONTRA O RACISMO: Uma
experiência de aplicação da Lei nº 10.639/2003 a partir das aulas de genética desenvolvido em uma escola
da rede pública do estado da Paraíba, Brasil. O projeto buscou através do ensino de biologia debater o
racismo em parceria com ativistas do movimento negro da Paraíba e com a Universidade Federal da Paraíba.
O projeto foi implementado em 4 etapas: levantamento de referências bibliográficas, aulas sobre interação
gênica e determinação da cor da pele; oficina sobre identidade negra e racismo; construção de materiais
pedagógicos de combate ao racismo para exposição na escola. A construção do projeto visou romper com a
barreira construída historicamente entre as disciplinas das ciências da natureza e os temas transversais de
temática étnico racial além de reconhecer e valorizar os movimentos sociais como parte da comunidade
escolar e como espaço de produção de conhecimento. Ao final do projeto foi possível perceber a
identificação dos estudantes com a cultura afro brasileira, com suas características físicas e um
empoderamento com relação ao combate ao racismo. Estes são elementos fundamentais para a construção de
uma identidade negra a partir das vivências escolares.
Palavras-chave: Ensino de Biologia, Ensino Médio, Racismo, Genética.
INTRODUÇÃO
Por reconhecer que a escola é um espaço privilegiado e necessário para a discussão desses e de
outros temas diversos Movimentos Negros pressionaram o Congresso Nacional para aprovar a Lei nº
10.639/2003 que institui a obrigatoriedade para todas as redes de ensino da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira”. Segundo o documento “Adolescente e jovens para a educação entre pares: raças e etnias”
(Brasil, 2011) a escola é um espaço onde os adolescentes e jovens negros defrontam-se mais violentamente
com o racismo e discriminação racial. Mesmo com mecanismos de ações afirmativas determinados
legalmente pelo Estado brasileiro para o espaço escolar é necessário reforçá-los para que sejam realmente
efetivados, como a própria Lei nº 10.639, a Lei nº 12.711/2012 (lei de Cotas no ensino superior), a Lei
nº 7.719 /1989 (lei de criminalização do racismo) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o
ensino médio.
Este artigo relata o desenvolvimento do projeto ESCOLA CONTRA O RACISMO: Uma
experiência de implementação da Lei nº 10.639/2003 a partir das aulas de genética que buscou implementar
os pressupostos desta Lei a partir do componente disciplinar das ciências biológicas no qual poucas
experiências foram desenvolvidas. A escola em que o referido projeto foi implementado, Escola Estadual de
Ensino Fundamental e Médio Enéas Carvalho, situa-se em Santa Rita e faz parte da rede pública estadual de
ensino. Nesta cidade dos aproximadamente 120 mil habitantes (IBGE1) apenas 5,4% concluiu algum curso
superior e mais da metade da população (62 mil habitantes) não terminaram o ensino fundamental ou são
considerados sem instrução alguma. A maioria da população é negra e boa parte dela passou ou passará ao
menos 10 anos na escola. Por isso a necessidade de debater o racismo a partir do ambiente escolar de modo a
desconstruir o conceito biológico de raças humanas a partir do estudo da genética, fortalecer a auto estima
dos educandos negros e negras para a construção de suas identidades estéticas, sociais e culturais, apresentar
para o conjunto da comunidade escolar a problemática do racismo e fortalecer a relação entre escola,
universidade e movimentos sociais para uma educação significativa estimulando assim o protagonismo
estudantil.
Neste projeto a temática das relações étnico-raciais é abordada diretamente para desconstruir o
racismo, expressão social da tentativa de subjugar a população afrodescendente ocultando seu papel na
construção da nação brasileira e excluindo suas características genéticas e estéticas de um suposto padrão
estético nacional.
REFERENCIAL TEÓRICO
Na cidade de Santa Rita, assim com em todo o Brasil, a escola pública é frequentada em sua maioria
pela população negra. Segundo dados do IBGE em 20102 na cidade apenas 18 mil habitantes tinham
completado o ensino médio, sendo 11 mil estudantes negros. Desse total de habitantes apenas 2,2 mil haviam
concluído o ensino superior e mais da metade da população, aproximadamente 62 mil, não tinham instrução
ou não concluíram o ensino fundamental, sendo destes aproximadamente 43 mil negros. Esses dados nos
ajudam a refletir sobre as dificuldades da população negra para manter-se estudando. Boa parte dessa
1 Dados referentes ao ano de 2012 obtidos no site do próprio Instituto. Disponível em:
http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?codmun=251370. Acesso em 18/10/2014 2 Dados referentes ao ano de 2010 obtidos no site do próprio Instituto. Disponível em:
http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?codmun=251370. Acesso em 18/10/2014
população é formada por jovens de 15 a 29 anos representando um total de aproximadamente 32 mil homens
e mulheres.
As estatísticas ficam ainda mais estarrecedoras quando comparamos estes dados com os dados
obtidos pelo Mapa da Violência (2012)3 que apontam que 89% dos homicídios ocorridos na cidade são
acometidos contra jovens negros. Somando-se aos índices de outras grandes cidades paraibanas esses
números levam a Paraíba ao 3º lugar no ranking de estados onde mais se matam jovens negros. Para
educadores é importante se questionar qual seu papel, e consequentemente o da escola pública, na
mudança desse cenário? Como contribuir para que os jovens estudantes possam se perceber,
conscientemente, nessa realidade?
De acordo com Santos (2008) a população negra teve sua identidade, sua herança étnica, destruída
desde o período da escravidão. Com o fim legal do processo de escravização das populações negras era
necessário repensar a organização do país para inseri-lo no mercado capitalista internacional e uma das
vertentes desta reorganização nacional foi o surgimento da ideologia do branqueamento. As elites brasileiras,
que acabavam de perder sua mão de obra escrava, construíram um discurso identitário nacional que suprimia
as populações negras, as contribuições das diversas etnias negras e indígenas para a formação social,
econômica e cultural do país.
Mais tarde estudiosos do tema afirmaram que essa ideologia criou o mito da democracia racial. O
documento do Ministério da Saúde (Brasil, 2011) ao tratar desse mito o define como a ideia que não haveria
no Brasil discriminação com base na raça/cor visto que este é um país essencialmente mestiço. Esse discurso
da democracia racial é a principal sustentação do racismo, que no Brasil tenta ser omitido. O mesmo
documento define o racismo como
“uma ideologia que justifica a organização desigual da sociedade ao afirmar que grupos
raciais ou étnicos são inferiores ou superiores, em vez de considera-los simplesmente
diferentes. Ele opera pela atribuição de sentidos pejorativos a características peculiares de
determinados padrões da diversidade humana e de significados sociais negativos aos grupos
que os detêm. Não se trata de uma opinião pessoal, por que as ideias preconceituosas e
atitudes racistas e discriminatórias são mantidas por gerações e, em cada tempo e lugar, elas
se manifestam de maneira diferente, por meio de piadas, da apresentação de personagens
negros e índios nos filmes, novelas, desenhos, propagandas, etc. Para Gomes (2002) “No entanto esse discurso de não discriminação não condiz com as práticas
cotidianas e institucionais pautadas pelo racismo, pelo preconceito e pelas discriminações raciais.”
Segundo Santos (2008)
“Levando em consideração essa análise, é fundamental compreendermos a escola pública
como uma importante instituição responsável pela sociabilidade dos seres humanos. Nela
ocorre a possibilidade de construção das identidades, da formação de valores éticos e
3 Dados referentes ao ano de 2012. Disponível em: http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_cor.pdf. Acesso
em 18/10/2014
morais. Contudo, a escola na sociedade capitalista assume um caráter homogeneizador,
prevalecendo um padrão estético e histórico vinculado à sociedade européia, o que estamos
chamando de monoculturalismo e excluindo, por exemplo, a referência negro-africana da
formação da sociedade brasileira. A garantia de acesso gratuito a todos os que querem
entrar na escola não esconde contraditoriamente o seu papel de reprodução das idéias e
valores da classe dominante.” É na escola que os adolescentes e jovens deverão passar boa parte de suas vidas, sendo a vivência
nesta instituição marcante contribuindo definitivamente para a formação das suas subjetividades. Por isso o
autor afirma que “o olhar sobre a adolescência dos sujeitos negros se faz importante. A adolescência é um
dos momentos fortes na construção da subjetividade negra”. Moreira (2011) afirma que “a sociedade
brasileira é pluricultural e, seguindo o discurso atual de educar para a igualdade de acesso e direitos, a escola
assume o papel de formar a nação, e as diferenças têm que ser dimensionadas no currículo comum”. A
escola, apesar de não ser o único espaço de aprendizado, é um espaço privilegiado para a reflexão sobre as
vivências, os aprendizados extra escolares. Gomes (2002) estudou o racismo na escola a partir da reflexão
sobre os traços físicos (cabelo, corpo, entre outros) da população negra e o impacto na construção da
subjetividade dos adolescentes negros a partir de sua vivência escolar. Uma da reflexões que a autora faz a
partir da pesquisa é
“ A trajetória escolar aparece em todos os depoimentos como um importante momento no
processo de construção da identidade negra e,lamentavelmente, reforçando estereótipos e
representações negativas sobre esse segmento étnico/racial e o seu padrão estético. O corpo
surge, então, nesse contexto, como suporte da identidade negra, e o cabelo crespo como um
forte ícone identitário. Será que ao pensarmos a relação entre currículo, multiculturalismo e
relações raciais e de gênero, levamos em conta a radicalidade dessas questões?”
A existência de movimentos negros que mantêm viva a cultura afrodescendente é fundamental para o
combate ao racismo e para a formação cultural do Brasil, que aliás é, como já dito anteriormente, um país
multicultural. Estes movimentos foram responsáveis diretos pela formulação e aprovação da Lei nº
10.639/2003, que determina desde então “incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática "História e Cultura Afro-Brasileira". Apesar dela tratar mais especificamente das disciplinas de
artes, literatura e história4 é importante que seja compreendida como uma orientação transversal para toda a
construção escolar5.
A construção desse projeto visou romper com a barreira construída historicamente entre as
disciplinas das ciências da natureza e os temas transversais de temática étnico-racial6 a partir do ensino de
4 Art. 1º § 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o
currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. 5 A resolução nº1/2004 do Conselho Nacional de Educação já inclui esta obrigatoriedade para os cursos de
licenciatura. 6 O Parecer nº 003/2004 do Conselho Nacional de Educação deixa explicito que “O termo raça é utilizado com
frequência nas relações sociais brasileiras para informar como determinadas características físicas, como cor da pele,
tipo de cabelo, entre outras, influenciam, interferem e até mesmo determinam o destino e o lugar social dos sujeitos
biologia, mais especificamente através do ensino de genética. Por isso o projeto foi desenvolvido
com as turmas de 3º ano do ensino médio, onde este componente curricular é trabalhado.
O livro didático adotado pela E.E.E.F.M. Eneas Carvalho, Ser Protagonista (2013), aborda a
questão da determinação da cor da pele de maneira estritamente biológica, sem fazer referência aos
desdobramentos sociais referentes ao tema. Em apenas 3 parágrafos, na página 73, exemplifica
como o caso de interação gênica por herança quantitativa em genética pode determinar tonalidades
de cor da pele em humanos a partir da determinação da produção da proteína melalina. Nenhum
exercício ou reflexão é feito a partir da apresentação do conteúdo. Para Alves (2012) o livro
didático deve ser
“um suporte de conhecimentos escolares proposta pelos currículos educacionais. É um
suporte de métodos pedagógicos ao conter além dos conteúdos, exercícios, atividades e
sugestões; como também veículo de um sistema de valores de ideologia de uma cultura
determinada, de uma época e uma sociedade. Neste sentido, o Manual didático é um
material produzido para o ambiente escolar, e dentro deste, pode exercer inúmeras funções
de acordo com seu uso.”
Mesmo com toda a importância para a construção do conhecimento escolar o livro didático utilizado
não contribui para uma reflexão crítica do que é estudado, omitindo um debate necessário. Segundo
Guimarães (2000), a democracia racial estaria pautada em alguns pontos e um deles é justamente a questão
da simplificação do debate ao gradiente de cor e até mesmo o embranquecimento que era desejado por parte
da sociedade brasileira do começo do século XX. Deste debate, destacamos os seguintes pontos que
interessam a esse trabalho:
“[No Brasil] (a) a “cor” e a “aparência” são mais importantes do que a “raça”; (b) a noção
de cor é ambígua, existindo um contínuo de cor; (c) a polaridade branco/negro organiza o
gradiente de cor e de prestígio social; (d) o embranquecimento, que antes significava tão
somente substituição da população negra pela branca ou, quando muito, miscigenação
biológica, passa a significar ascensão social e aculturação dos negros e mulatos; (e) de que
não existem, propriamente falando, grupos raciais ou comunidade negra (...)” É possível então trabalhar a partir do ensino de genética uma outra forma de encarar o debate sobre
cor da pele e suas consequências sociais. Para tanto é fundamental o diálogo entre escola e movimentos
sociais negros para que os estudantes tenham uma referencia de pessoas negras em posições de destaque, na
qualidade de também formadores do conhecimento no Brasil. Para Gomes (2002)
“O discurso pedagógico, ao privilegiar a questão racial, não gira somente em torno de
conceitos, disciplinas e saberes escolares. Fala sobre o negro na sua totalidade, refere-se ao
seu pertencimento étnico, à sua condição socioeconômica, à sua cultura, ao seu grupo
geracional, aos valores de gênero etc. Tudo isso se dá de maneira consciente e inconsciente.
no interior da sociedade brasileira. [...] O Movimento Negro o utiliza com um sentido político e de valorização do
legado deixado pelos africanos”
Muitas vezes, é por intermédio desse discurso que estereótipos e preconceitos sobre o corpo
negro são reproduzidos.” Neste sentido a mesma autora chama atenção para as formas de expressão do racismo a partir de
características biológicas
“O racismo, sendo um código ideológico que toma atributos biológicos como valores e
significados sociais, impõe ao negro uma série de conotações negativas que o afetam social
e subjetivamente. [...]o cabelo e a cor da pele podem sair do lugar da inferioridade e ocupar
o lugar da beleza negra, assumindo uma significação política. Esse é mais um dos motivos
pelos quais consideramos que a escola deve superar os preconceitos em relação à estética
negra.” Partindo destas premissas o projeto buscou debater com os estudantes a relação entre características
biológicas, racismo e identidade negra a partir da afirmação da cultura negra como um dos pilares da
formação da nação brasileira. Isto pois segundo Santos (2008)
“A população negra, ao recuperar sua identidade, no sentido de se perceber com sujeito
transformador e construtor da realidade, deixa de ser menos receptora das diretrizes
dominantes e se transforma em agente histórico. Percebemos, então, que a identidade
étnico-racial constituída não se configura apenas como uma referência de afirmação, auto-
estima, mas constitui-se num instrumento de organização e mobilização. [...] É uma
resposta política à situação de opressão na qual a população negra, descendente de
africanos escravizados, se encontrou ao longo da história do Brasil”
A reconstrução de pertencimento e de herança de uma cultura, da construção da identidade é um
ponto fundamental para municiarmos nossos jovens contra o racismo e a discriminação racial. Para a
juventude a construção da identidade se dá necessariamente pela sua construção estética, a partir de suas
características físicas. São estas características que muitas vezes são negadas pelos jovens negros por se
constituírem motivo de piada, de depreciação do seu valor dentro da sociedade. Isto pois, como argumenta
Gomes (2002)
“Essa maneira particular de relacionar-se com o corpo, com a subjetividade e à cultura dá-
se em um determinado contexto social, histórico e político. E é esse contexto, juntamente
com a experiência individual, que vai compor o complexo terreno da identidade negra.”
METODOLOGIA E RESULTADOS
O projeto foi desenvolvido com 2 turmas de 3º ano do ensino médio do turno da manhã,
abrangendo um público direto de 57 estudantes matriculados nas turmas 3ºA e 3ºB e um público
indireto de difícil quantificação. Podemos dividir sua implementação em 4 etapas: pesquisa
bibliográfica, aulas expositivas de genética, oficina com o Movimento Negro, reflexão coletiva e
produção de material para exposição.
PESQUISA BIBLIOGRÁFICA
Foi realizada uma busca por artigos ou projetos que relatassem a experiência de
implementação da Lei relacionada às disciplinas da matriz curricular de ciências da natureza e suas
tecnologias. Apesar de não encontrar muitos materiais ligados às ciências da natureza, os livros7
disponíveis na biblioteca escolar para subsidio dos professores sobre a questão racial foram de grande
valia. Todos adquiridos com recursos do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação
(FNDE). Estes não foram utilizados como referencia bibliográfica direta no projeto mas foram
fundamentais para uma maior compreensão das possibilidades de trabalho escolar com questões
étnico raciais.
A consulta aos dispositivos legais que regulamentam a Lei n 10.639/2003 também foi
importante para compreender o processo de construção das propostas de implementação da Lei na
escola.
Outra fonte de informações muito importante para o desenvolvimento do projeto foi o dialogo
constante com integrantes dos movimentos negros da Paraíba. Essa interação entre escola e
movimentos sociais foi de suma importância para o desenvolvimento do projeto já que os próprios
integrantes do movimento acabaram por fazer parte de uma das etapas do projeto, a construção de
uma oficina sobre o racismo.
A pesquisa foi fundamental para compreender que para além do elemento racional de
compreensão da determinação da cor da pele há um processo subjetivo que precisa ser trabalhado
com os estudantes: a construção da identidade negra. Por isso a importância da utilização da oficina
sobre o que é ser negro no Brasil como estratégia pedagógica em parceria com integrantes do
Movimento Negro.
INICIANDO O DEBATE – AS AULAS DE GENÉTICA
O conteúdo de genética é componente curricular do ensino médio geralmente ministrado no
3º ano. Os conceitos básicos de genética foram lecionados nos dois primeiros bimestres sendo o
terceiro bimestre reservado para os temas relacionados com o princípio da segregação independente
de genes alelos localizados em cromossomos homólogos diferentes. É a partir deste conteúdo da
7 Os mesmos se encontravam num armário fechado na biblioteca e só tive acesso a essa informação graças a
gentileza e disponibilidade do servidor que cumpre sua função neste setor. Apesar de não ser bibliotecário o mesmo
me mostrou as caixas de livros que haviam chegado para dar subsidio de formação aos professores e estavam
engavetados.
genética que podemos discutir a interação gênica, caso em que dois ou mais genes interagem para a
determinação de algumas de nossas características incluindo a determinação da cor da pele.
Foram cerca de 12 aulas expositivas e interativas sobre o conteúdo envolvendo leitura
coletiva do livro didático e resolução de exercícios sobre o tema. Nestas aulas buscou-se evidenciar
que:
I. A característica 'cor da pele' é um fenótipo determinado geneticamente por uma
modalidade de interação gênica chamada 'herança quantitativa';
II. O conceito de raça biológica não pode nem deve ser utilizado para seres humanos;
III. Características físicas típicas de populações afrodescendentes são naturais e fazem parte
da construção da nação brasileira tanto quanto as características da população branca
europeia e da população indígena brasileira.
A problematização de características genéticas diferentes que delimitam fenótipos
diferenciados na espécie humana não são problematizados no livro didático. Contudo em sala de aula
algumas expressões populares foram problematizadas como fontes de discriminação racial: ovelha negra,
cabelo de negro (ruim), mercado negro, lápis cor da pele (bege), denegrir, não sou tuas nega.
Parte das aulas foi dedicada à trabalhar o tema do fenótipos e genótipos relacionados com os
tipos de cabelo, desmistificando a ideia de que existem cabelos 'bons' ou 'ruins'. A estética faz parte
da identidade para qualquer ser humano e na juventude, fase em que consolidamos nossa
identidade, a estética ganha certa centralidade. Ela diz respeito a certo mecanismo de integração
social diretos e indiretos entre os jovens, em especial na escola.
São séculos de determinação de padrões estéticos de beleza a partir da cultura europeia
branca. Segundo Gomes (2002)
“As múltiplas representações construídas sobre o cabelo do negro no contexto de uma
sociedade racista influenciam o comportamento individual. Existem, em nossa sociedade,
espaços sociais nos quais o negro transita desde criança, em que tais representações
reforçam estereótipos e intensificam as experiências do negro com o seu cabelo e o seu
corpo. Um deles é a escola”.
A desconstrução desse padrão deve partir da escola que deve ser um espaço para a
construção da pluralidade cultural, social e estética. Essa desconstrução não passa apenas por
aspectos racionais mas esse é um primeiro passo para problematizar e colocar um outro ponto de
vista para os estudantes.
FORTALECENDO A IDENTIDADE, FALANDO DE IGUAL PRA IGUAL - OFICINA
PEDAGÓGICA: O QUE É SER NEGRO NO BRASIL
Em parceria com o Curso de Direito da UFPB – Campus Santa Rita e com integrantes do
Movimento Negro desenvolveu-se uma oficina pedagógica sobre o que é ser negro no Brasil. A
oficina foi realizada no campus da UFPB com dois intuitos: promover uma atividade fora da escola
para dinamizar a interação entres os adolescentes das duas turmas e apontar, simbólica e
fisicamente, que a universidade também é espaço pra jovens negros de escola pública.
Na oficina “Ser negro no Brasil hoje” foram utilizados recursos audiovisuais produzidos por
artistas negros brasileiros e problematizou situações cotidianas em que ocorre racismo estimulando os
estudantes a refletir sobre suas vivências. Foi o momento em que se sentiram à vontade para falar sobre
casos de racismo que já haviam vivenciado ou presenciado demonstrando interesse em relacionar o
debate com suas vidas. Este processo é fundamental pois como argumenta Santos (2008)
“à população negra, diante do processo histórico brasileiro e das relações interétnicas no
interior das instituições oficiais de ensino, lhe foi expropriada a identidade. Suas referências
históricas, sua contribuição à construção da sociedade brasileira foram ocultadas e/ou
descaracterizadas, gerando com isso uma auto-imagem negativa e impondo barreiras à sua
organização e mobilização.”
A repercussão da oficina entre os estudantes foi bastante impactante a julgar pelos
depoimentos de alguns deles verbalizados ou produzidos nos processo de avaliação da oficina e do
projeto. Alguns exemplos são:
“Bom veio me informar sobre a minha origem, acabar com meu preconceito com as pessoas
negras. [...] Achei legal por que eu vim aprender sore a cultura afro brasileira, sobre negros
e que todos tem a característica da cor negra e de outras cores em seu DNA”(estudante do 3º
ano A);
“Achei super interessante pois aprendi os direitos que nós negros temos e que podemos usar
contra o racismo e o preconceito”(estudante do 3º ano A);
“Achei divertido e descontraído as aulas que tivemos fora da escola por que além de
desenvolver o que a gente sabe nós pudemos compartilhar e ouvir fatos que aconteceram com
a gente por causa da nossa cor...” ”(estudante do 3º ano B).
O resultado da oficina reforça o descrito no Parecer nº03/2004 do Conselho Nacional de
Educação que indica que uma prática antirracista deve ser planejada a partir de uma pedagogia e de
metodologias que sejam sensíveis às experiências vivenciadas pelos jovens negros e não negros
dentro e fora da escola pois “a educação das relações étnico raciais impõe aprendizagens entre
brancos e negros, troca de conhecimentos, quebra de desconfianças, projeto conjunto para a
construção de uma sociedade justa, igual, equânime”. O Parecer indica ainda que
“Para obter êxito, a escola e seus professores não podem improvisar. Têm que desfazer
mentalidade racista e discriminadora secular, superando o etnocentrismo europeu,
reestruturando relações étnico-raciais e sociais, desalienando processos pedagógicos. Isto
não pode ficar reduzido a palavras e a raciocínios desvinculados da experiência de ser
inferiorizados vivida pelos negros, tampouco das baixas classificações que lhe são
atribuídas nas escalas de desigualdades sociais, econômicas, educativas e políticas”.
AVALIANDO O PERCURSO E PRODUZINDO CIDADANIA
A avaliação dos educandos não foi reduzida aos conhecimentos técnicos e teóricos
aprendidos nas aulas de genética, procurou-se desenvolver o processo avaliativo de maneira que pudesse
captar os conhecimentos biológicos adquiridos mas também as competências e habilidades previstas
nos Planos Curriculares Nacionais (PCN) de ciências naturais.
Desta forma, de volta às aulas de genética, os estudantes foram orientados a produzir materiais
com os conhecimentos adquiridos durante o desenvolvimento do projeto. Cada grupo construiu
algum material textual ou visual que retratasse a relação entre genética, cor da pele, identidade negra
e racismo. Durante duas semanas os grupos utilizaram o tempo das aulas de genética para construir
estes materiais. Ao final as produções foram expostas na escola para que o conjunto da comunidade
escolar pudesse ter conhecimento do projeto e também do debate sobre o racismo. Importante destacar
a criatividade e capacidade artística desenvolvida nos trabalhos. A avaliação do material produzido
foi realizada com base nos conceitos utilizados, capacidade de articulação dos conceitos com a
realidade vivida, capacidade de ler vários gêneros textuais e capacidade argumentativa. Foi
registrada uma melhora considerável no rendimento da turma bem como houve uma diminuição
considerável no número de faltas (em relação aos dois primeiros bimestres do ano).
CONCLUSÃO
Todo esse processo é fundamental para a construção de uma identidade negra a partir das
vivências escolares. Foi perceptível uma maior identificação dos estudantes com a cultura afro
brasileira, com suas características físicas e um empoderamento com relação ao combate ao
racismo. Como escreveu Santos (2008)
“A identidade negra surge da dinâmica conflituosa entre a visão dominante eurocêntrica,
que nega os referenciais negros, e a busca pela valorização desses referenciais por esse
segmento da população. Ou seja, de um sentimento de perda, negação, constrói-se uma auto
imagem positiva e altiva da pessoa negra. É uma resposta política à situação de opressão na
qual a população negra, descendente de africanos escravizados, se encontrou ao longo da
história do Brasil.”
Foi a construção na prática dos PCN que orientam que o “ensino de biologia deve subsidiar o
julgamento de questões polêmicas”. Dentre as maiores dificuldades encontradas nesse processo de
construção do projeto a grande quantidade de dias letivos sem aula e a defasagem conceitual
herdada de um longo ensino fundamental e médio foi crucial.
Este projeto na escola deu inicio a outra forma de construir o processo educativo,
ressignificando o conceito de comunidade escolar ao incluir os movimentos sociais como
formadores e espaço de formação do conhecimento e ressaltou um importante aspecto sobre a vivência
dos estudantes como parte fundamental do planejamento educacional que segundo Gomes (2002) é
“um dos caminhos para a ampliação do estudo da questão racial no campo da educação, na
tentativa de compreender a sua relação com o universo simbólico, pode ser a construção de
um olhar mais alargado sobre a educação como processo de humanização, que inclua e
incorpore os processos educativos não-escolares.”
Abriu caminhos através das ciências da natureza para a implementação da Lei 10.639/2003. Como
indica Moreira (2011)
“Estamos vivenciando uma nova realidade na história da educação brasileira. A ênfase aos
conteúdos sobre a história da África e dos afro-descendentes exige mudanças na estrutura e
nas concepções que permearam e ainda permeiam a formação acadêmica de nossos
professores, considerando que a Academia ainda privilegia a cultura ocidental europeia em
detrimento das demais. [...] No ensino de biologia, a abordagem cultural, social e racial é
também relevante no cumprimento da Lei 10.639/03.”
Para os cerca de 50 estudantes participantes direto do projeto e para todos aqueles que
através da exposição tiveram acesso às reflexões propostas buscou-se evidenciar que é possível
abordar e produzir conhecimento a partir da vivência de cada um, dentro e fora da escola, baseado na
educação para as relações raciais. E que a escola tem o papel de refletir e incorporar estas vivências no
seu fazer pedagógico. Fortalecer a identidade negra nos estudantes através do estudo e reflexão
sobre a importância da cultura negra na construção da nação brasileira é fundamental para
formarmos cidadãos com capacidade crítica e com empoderamento, que saibam tanto conviver com
a diversidade quanto combater todas as formas de discriminação racial, a começar pela
discriminação das características físicas da população negra.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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