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FEYERABEND Paul Contra o Metodo

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  • CONTRA O MTODO

    Esboo de uma teoria anrquica* da teoria do conhecimento

    * Comentrios acerca da acepo em que se toma, aqui, o termo anarquismo, acham-se em nota 12 da Introduo e no prprio tex-to, captulo XVI, trecho correspondente s notas 18 e seguintes.

    http://groups.google.com/group/digitalsource

  • Srie Metodologia das Cincias Sociais e Teoria da Cincia Coordenao de: Jos Jeremias de Oliveira Filho Professor Assistente Doutor da Universidade de So Paulo

  • Paul Feyerabend

    CONTRA O MTODO

    Traduo de Octanny S. da Mata Leonidas Hegenberg

    LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.

  • Copyright @ NLB, 1975 Ttulo original: Against method Publicado por NLB, 7 Carlisle Street, Londres WI

    Capa: DIA DESIGN

    Impresso no Brasil Printed in Brazil

    Ficha Catalogrfica (Preparada pelo Centro de Catalogao-na-fonte do SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ)

    1977

    Todos os direitos para a lngua portuguesa reservados LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A. Rua Baro de Lucena, 43 Botafogo ZC-02 20.000 Rio de Janeiro, RJ

    Feyerabend, Paul. F463c Contra o mtodo; traduo de Octanny S. da Mota e Leonidas Hegenberg. Rio de Janeiro, F. Alves, 1977. 488 p. ilust. (Metodologia das cincias sociais e teoria da ci-

    ncia) Do original em ingls: Against method Bibliografia

    1. Teoria do conhecimento I. Ttulo II. Srie

    77-0425 CDD 121 CDU 165

  • Para IMRE LAKATOS amigo e colega anarquista

  • Este ensaio a primeira parte de um livro a propsito do anarquismo que seria escrito por Lakatos e por mim. Cabia-me atacar a posio racionalista; Lakatos, por seu turno, reformularia essa posio, para defend-la e, de passagem, reduzir meus argu-mentos a nada. Juntas, as duas partes deviam retratar nossos lon-gos debates em torno desse tema debates que tiveram incio em 1964, prosseguiram em cartas, aulas, chamadas telefnicas, ar-tigos, at quase o ltimo dia de vida de Imre, e se transformaram em parte de minha rotina diria. A origem do ensaio explica o seu estilo: trata-se de uma carta, longa e muito ntima, escrita para I-mre e cada frase perversa que contm foi escrita antecipando frase ainda mais ferina de meu companheiro. Tambm claro que o li-vro, como se apresenta, est lamentavelmente truncado. Falta-lhe a parte mais importante, a rplica da pessoa para quem foi elabo-rado. Publico-o, entretanto, como testemunho da forte e estimu-lante influncia que Imre Lakatos exerceu sobre todos ns.

    Paul K. Feyerabend

  • ndice Analtico que , ainda, um resumo do argumento principal.

    ITENS:

    INTRODUO Pgina 17 A cincia um empreendimento essencialmente anrquico: o a-narquismo teortico mais humanitrio e mais suscetvel de esti-mular o progresso do que suas alternativas representadas por or-dem e lei.

    I Pgina 7 Isso demonstrado seja pelo exame de episdios histricos, seja pela anlise da relao entre idia e ao. O nico princpio que no inibe o progresso : tudo vale.

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  • II Pgina 37

    Cabe, por exemplo, recorrer a hipteses que contradizem teorias confirmadas e/ou resultados experimentais bem estabelecidos. possvel fazer avanar a cincia, procedendo contra-indutivamente.

    III Pgina 45

    A condio de coerncia, por fora da qual se exige que as hipte-ses novas se ajustem a teorias aceitas, desarrazoada, pois preserva a teoria mais antiga e no a melhor. Hipteses que contradizem teorias bem assentadas proporcionam-nos evidncia impossvel de obter por outra forma. A proliferao de teorias benfica para a cincia, ao passo que a uniformidade lhe debilita o poder crtico. A uniformidade, alm disso, ameaa o livre desenvolvimento do in-divduo.

    IV Pgina 65

    Qualquer idia, embora antiga e absurda, capaz de aperfeioar nosso conhecimento. A cincia absorve toda a histria do pensa-mento e a utiliza para o aprimoramento de cada teoria. E no se respeita a interferncia poltica. Ocorrer que ela se faa necessria para vencer o chauvinismo da cincia que resiste em aceitar alter-nativas ao status quo.

    V Pgina 77

    Nenhuma teoria est em concordncia com todos os fatos de seu domnio, circunstncia nem sempre imputvel teoria. Os fatos se prendem a ideologias mais antigas, e um conflito entre

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  • fatos e teorias pode ser evidncia de progresso. Esse conflito cor-responde, ainda, a um primeiro passo na tentativa de identificar princpios implcitos em noes observacionais comuns.

    VI Pgina 101

    Como exemplo dessa tentativa, trago baila o argumento da torre, de que os aristotlicos se valiam para refutar o movimento da Ter-ra. O argumento envolve interpretaes naturais idias to es-treitamente ligadas a observaes, que se faz necessrio especial esforo para perceber-lhes a existncia e determinar-lhes o conte-do. Galileu identifica as interpretaes naturais que se mostram inconsistentes com a doutrina de Coprnico e as substitui por ou-tras.

    VII Pgina 119

    As novas interpretaes naturais constituem linguagem de obser-vao original e altamente abstrata. So introduzidas e ocultadas, de sorte que no se percebe a modificao havida (mtodo da anam-nese). Encerram a idia da relatividade de todo movimento e a lei da inr-cia circular.

    VIII Pgina 139

    Dificuldades iniciais provocadas pela alterao vem-se afastadas por hipteses ad hoc que, assim, desempenham, ocasionalmente, uma funo positiva; asseguram s novas teorias espao para se desen-volverem e indicam o sentido da pesquisa futura.

    IX Pgina 151 Alm de alterar as interpretaes naturais, Galileu alterou tambm as sensaes que parecem ameaar Coprnico. Admite que

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  • tais sensaes existam, louva Coprnico por no hav-las conside-rado e afirma t-las afastado com o auxlio do seu telescpio. Contu-do, no oferece razes tericas acerca do por que procederia espe-rar que o telescpio traasse dos cus um quadro verdadeiro.

    Apndice I Pgina 169

    Apndice II Pgina 175

    X Pgina 189

    Nem a experincia inicial com o telescpio oferece essas razes. As primeiras observaes do cu feitas atravs de telescpio so vagas, imprecisas, contraditrias e pem-se em conflito com o que todos podem ver a olho desarmado. E a nica teoria que teria le-vado a distinguir entre as iluses provocadas pelo telescpio e os fenmenos reais foi refutada por testes simples.

    XI Pgina 221 De outra parte, h alguns fenmenos telescpicos tipicamente co-pernicanos. Galileu apresenta esses fenmenos como prova aut-noma em prol de Coprnico, mas a situao antes a de que uma concepo refutada a doutrina copernicana tem certa seme-lhana com fenmenos que emergem de outra concepo refutada a idia de que os fenmenos telescpicos retratam fielmente o cu. Galileu domina em razo de seu estilo e de suas mais aperfei-oadas tcnicas de persuaso, porque escreve em italiano e no em latim e porque recorre a pessoas hostis, por temperamento, s ve-lhas idias e aos padres de aprendizagem a elas relacionados.

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  • XII Pgina 227 Esses mtodos irracionais de fundamentao tornam-se necess-rios devido ao desenvolvimento desigual (Marx, Lenine) dos di-ferentes ramos da cincia. A teoria copernicana e outros elemen-tos essenciais da cincia moderna puderam sobreviver to-somente porque, no passado, a razo foi freqentemente posta de lado.

    XIII Pgina 253 O mtodo de Galileu estende-se a outros campos. Pode ser usado, por exemplo, para eliminar os argumentos que se levantam contra o materialismo e para dar fim ao problema filosfico esprito/corpo. (Os correspondentes problemas cientficos permanecem, entretan-to, intocados.)

    XIV Pgina 257 Os resultados at agora conseguidos trazem em seu bojo a suges-to de abolir a distino entre contexto da descoberta e contexto da justificao e de pr de parte a distino correlata entre termos observacionais e termos teorticos. Nenhuma dessas distines tem papel a desempenhar na prtica cientfica. Tentativas de dar-lhes fora trariam conseqncias desastrosas.

    XV Pgina 267 Enfim, a exposio feita nos captulos VI-XIII atesta que a verso do pluralismo de Mill, dada por Popper, no est em concordncia com a prtica cientfica e destruiria a cincia, tal como a conhece-mos. Existindo a cincia, a razo no pode reinar universalmente, nem a sem-razo pode ver-se excluda. Esse

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  • trao da cincia pede uma epistemologia anrquica. A compreen-so de que a cincia no sacrossanta e de que o debate entre ci-ncia e mito se encerrou sem vitria para qualquer dos lados em-presta maior fora ao anarquismo.

    XVI Pgina 283 Tambm no escapa a essa concluso a engenhosa tentativa de Lakatos, feita no sentido de erigir metodologia que (a) no emite ordens mas (b) coloca restries a nossas atividades ampliadoras de conhecimento. De fato, a filosofia de Lakatos s se afigura li-beral porque um anarquismo disfarado. E seus padres, abstrados a partir da cincia moderna, no podem ser vistos como rbitros imparciais na pendncia entre a cincia moderna e a cincia aristo-tlica, o mito, a mgica, a religio, etc.

    Apndice III Pgina 333

    Apndice IV Pgina 343

    XVII Pgina 347 Alm disso, tais padres, que envolvem uma comparao entre classes de contedo, nem sempre so aplicveis. As classes de con-tedo de certas teorias so insuscetveis de comparao, no senti-do de que nenhuma das relaes lgicas habituais (incluso, exclu-so, superposio) vige entre elas. Ocorre isso quando compara-mos os mitos cincia. Ocorre, ainda, nas mais desenvolvidas, mais gerais e, portanto, mais mitolgicas partes da prpria cincia.

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  • Apndice V Pgina 441

    XVIII Pgina 447 Dessa forma, a cincia se aproxima do mito, muito mais do que uma filosofia cientfica se inclinaria a admitir. A cincia uma das muitas formas de pensamento desenvolvidas pelo homem e no necessariamente a melhor. Chama a ateno, ruidosa e impuden-te, mas s inerentemente superior aos olhos daqueles que j se ha-jam decidido favoravelmente a certa ideologia ou que j a tenham aceito, sem sequer examinar suas convenincias e limitaes. Co-mo a aceitao e a rejeio de ideologias devem caber ao indiv-duo, segue-se que a separao entre o Estado e a Igreja h de ser complementada por uma separao entre o Estado e a cincia, a mais recente, mais agressiva e mais dogmtica instituio religiosa. Tal separao ser, talvez, a nica forma de alcanarmos a huma-nidade de que somos capazes, mas que jamais concretizamos.

    ndices de Assuntos Pgina 469

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  • Introduo

    Ordnung ist heutzutage meistens dort, wo nichts ist. Es ist eine Mangelerscheinung.

    BRECHT

    A cincia um empreendimento essencialmente anrquico:

    o anarquismo teortico mais humanitrio e mais suscetvel de estimular o progresso do que suas alternativas representadas por ordem e lei.

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  • Este ensaio escrito com a convico de que o anarquismo, embora no constituindo, talvez, a mais atraente filosofia poltica, , por certo, excelente remdio para a epistemologia e para a filo-sofia da cincia.

    A razo no difcil de apontar. A Histria, de modo geral, e a histria das revolues, em

    particular, sempre de contedo mais rico, mais variada, mais multiforme, mais viva e sutil do que o melhor historiador e o me-lhor metodologista poderiam imaginar1. A Histria est repleta de acidentes e conjunturas e curiosas justaposies de eventos2 e pa-tenteia a nossos olhos a complexidade das mudanas humanas e o carter imprevisvel das conseqncias ltimas de qualquer ato ou deciso do homem3. Devemos realmente acreditar que as regras ingnuas e simplistas que os metodologistas adotam como guia so capazes de explicar esse labirinto de interaes4? No claro que, em se tratando de um processo dessa espcie, s pode ter participao bem sucedida um oportunista brutal que no se prenda a filosofia alguma e que adote a diretriz que a ocasio pa-rea indicar?

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  • Tal , sem dvida, a concluso a que tm chegado observa-dores inteligentes e ponderados. Duas importantes concluses prticas decorrem da [do carter do processo histrico], escreve Lenine5, na continuao da passagem mencionada acima. Em primeiro lugar, a de que, para cumprir sua tarefa, a classe revolu-cionria [isto , a classe daqueles que desejam alterar seja uma par-te da sociedade, como a cincia, seja a sociedade em seu todo] de-ve estar em condies de dominar, sem exceo, todas as formas ou aspectos de atividade social [deve compreender e saber aplicar no apenas uma particular metodologia, mas qualquer metodolo-gia e qualquer de suas variaes imaginveis]...; e, em segundo lu-gar, deve estar preparada para saltar de uma outra, da maneira a mais rpida e mais inesperada.

    As condies externas, escreve Einstein6, que os fatos da experincia colocam [diante do cientista] no lhe permitem, ao e-rigir seu mundo conceptual, que ele se prenda em demasia a um dado sistema epistemolgico. Em conseqncia, o cientista apare-cer, aos olhos do epistemologista que se prende a um sistema, como um oportunista inescrupuloso... Um meio complexo, onde h elementos surpreendentes e imprevistos, reclama procedimen-tos complexos e desafia uma anlise apoiada em regras que foram estabelecidas de antemo e sem levar em conta as sempre cambi-antes condies da Histria.

    possvel, naturalmente, simplificar o meio em que o ci-entista atua, atravs da simplificao de seus principais fatores. Afinal de contas, a histria da cincia no consiste apenas de fatos e de concluses retiradas dos fatos. Contm, a par disso, idias, interpretaes de fatos, problemas criados por interpre-taes conflitantes, erros, e assim por diante. Anlise mais pro-funda mostra que a cincia no conhece fatos nus, pois os fa-tos de que tomamos conhecimento j so vistos sob certo n-gulo, sendo, em conseqncia, essencialmente ideativos. Se as-sim , a histria da cincia ser to complexa, catica, permeada de enganos e diversificada quanto o sejam as idias que encerra;

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  • e essas idias, por sua por sua vez, sero to caticas permeadas de enganos e diversificadas quanto as mentes dos que as inventa-ram. Inversamente, uma pequena lavagem cerebral muito far no sentido de tornar a histria da cincia mais inspida, mais simples, mais uniforme, mais objetiva e mais facilmente accessvel a tra-tamento por meio de regras imutveis.

    A educao cientfica, tal como hoje a conhecemos, tem precisamente esse objetivo. Simplifica a cincia, simplificando seus elementos: antes de tudo, define-se um campo de pesquisa; esse campo desligado do resto da Histria (a Fsica, por exemplo, separada da Metafsica e da Teologia) e recebe uma lgica pr-pria. Um treinamento completo, nesse tipo de lgica, leva ao condicionamento dos que trabalham no campo delimitado; isso torna mais uniformes as aes de tais pessoas, ao mesmo tempo em que congela grandes pores do procedimento histrico. Fa-tos estveis surgem e se mantm, a despeito das vicissitudes da Histria. Parte essencial do treinamento, que faz com que fatos dessa espcie apaream, consiste na tentativa de inibir intuies que possam implicar confuso de fronteiras. A religio da pessoa, por exemplo, ou sua metafsica ou seu senso de humor (seu senso de humor natural e no a jocosidade postia e sempre desagrad-vel que encontramos em profisses especializadas) devem manter-se inteiramente parte de sua atividade cientfica. Sua imaginao v-se restringida e at sua linguagem deixa de ser prpria7. E isso penetra a natureza dos fatos cientficos, que passam a ser vistos como independentes de opinio, de crena ou de formao cultu-ral.

    possvel, assim, criar uma tradio que se mantm una, ou intacta, graas observncia de regras estritas, e que, at certo ponto, alcana xito. Mas ser desejvel dar apoio a essa tradi-o, em detrimento de tudo mais? Devemos conceder-lhe direi-tos exclusivos de manipular o conhecimento, de tal modo que quaisquer resultados obtidos por outros mtodos sejam, de i-mediato, ignorados? Essa a indagao a que pretendo dar

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  • resposta neste ensaio. E minha resposta ser um firme e vibrante NO.

    H duas razes que fazem parecer procedente essa respos-ta. A primeira a de o mundo que desejamos explorar ser uma en-tidade em grande parte desconhecida. Devemos, pois, conservar-nos abertos para as opes, sem restringi-las de antemo. Receitas epistemolgicas podem parecer esplndidas quando comparadas a outras receitas epistemolgicas ou a princpios gerais mas quem assegurar que so o melhor meio de descobrir no uns poucos fatos isolados, mas tambm alguns profundos segredos da natureza? A segunda razo est em que a educao cientfica, tal como acima descrita (e como levada a efeito em nossas esco-las), no pode ser conciliada com uma atitude humanista. Pe-se em conflito com o cultivo da humanidade, nico procedimento que produz ou pode produzir seres humanos bem desenvolvi-dos8; como o sapato de uma dama chinesa, mutila por compres-so, cada aspecto da natureza humana que, ao ganhar relevo, po-deria tornar certa pessoa marcadamente diferente9 e coloc-la fora dos ideais de racionalidade que a moda impe para a cincia ou para a filosofia da cincia. A tentativa de fazer crescer a liberdade, de atingir vida completa e gratificadora e a tentativa correspon-dente de descobrir os segredos da natureza e do homem implicam, portanto, rejeio de todos os padres universais e de todas as tradies rgidas. (Naturalmente, implicam tambm a rejeio de larga parte da cincia contempornea.)

    Surpreende ver como raro os anarquistas profissionais se dedicarem ao exame do embrutecedor efeito das Leis da Razo ou da prtica cientfica. Os anarquistas profissionais se opem a qualquer tipo de restrio e exigem que ao indivduo seja permitido desenvolver-se livremente, desembaraado de leis, deveres e obrigaes. E, no obstante, admitem, sem pro-testo, os severos padres que cientistas e lgicos fazem pesar sobre a atividade de pesquisa e sobre cada atividade capaz de cri-ar ou de alterar o conhecimento. Ocasionalmente, as leis do m-

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  • todo cientfico, ou o que um particular autor julga serem as leis cientficas, chegam a integrar-se ao prprio anarquismo. O anar-quismo um conceito geral, baseado em uma explicao mecnica de todos os fenmenos, escreve Kropotkin10: Seu mtodo de in-vestigao o das cincias naturais exatas..., o mtodo de induo e deduo. No parece to claro, escreve um moderno professor radical de Colmbia11, que a pesquisa cientfica exija absoluta li-berdade de expresso e debates. A evidncia sugere, antes, que certos tipos de restrio no colocam empecilhos no caminho da cincia...

    H, certamente, pessoas para as quais isso no parece to claro. Comecemos, portanto, com uma apresentao geral da me-todologia anrquica e de uma correspondente cincia anrquica12. No h por que temer que a decrescente preocupao com lei e ordem na cincia e na sociedade que caracterstica desse tipo de anarquismo venha a conduzir ao caos. O sistema nervoso humano demasiado bem organizado para que isso venha a ocor-rer13. Poder, claro, vir tempo em que se faa necessrio conce-der razo uma vantagem temporria e que ser avisado defender suas regras, afastando tudo o mais. No creio, porm, que esteja-mos vivendo esse tempo.

    NOTAS

    1. A Histria como um todo e, em particular, a histria das revolues sempre mais rica de contedo, mais variada, multiforme, viva e cheia de engenho do que chegam a imaginar os grupos em que h maior refinamento e as mais conscientes vanguardas das mais avanadas classes (V. I. Lenine, Left-Wing Communism An Infan-tile Disorder, Selected Works, vol. 3, Londres, 967, p. 401).

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  • Lenine dirigia-se a partidos e vanguardas revolucionrias e no a cientistas e metodologistas; a lio, entretanto, a mesma. Cf. nota 5.

    2. Herbert Butterfield, The Whig Interpretation of History, Nova I-orque, 1965, p. 66.

    3. Ibid. p. 21. 4. Ibid. p. 25, cf. Hegel, Philosophie der Geschichte, Werke, vol. 9, ed.

    Edward Gans, Berlim, 1837, p. 9: Mas o que a experincia e a Histria nos ensinam que as naes e os governos jamais aprenderam qualquer coisa na Histria e jamais agiram de a-cordo com regras que dela poderiam ter derivado. Cada per-odo apresenta caractersticas to peculiares, atravessa condi-es to especficas que decises tero de ser tomadas, mas somente podero ser tomadas no perodo e a partir dele. Muito sagaz; penetrante e muito sagaz; NB, escreve Lenine em anotaes marginais a esse trecho. (Collected Works, vol. 38, Londres, 1961, p. 307.)

    5. Ibid. Vemos aqui, de maneira clara, como algumas alteraes podem transformar uma lio de filosofia poltica em lio de metodologia. Isso no surpreende. Metodologia e poltica so, ambas, meios de passar de um a outro estgio histrico. A -nica diferena est em que as metodologias-padro deixam de ter em conta o fato de que a Histria apresenta, constante-mente, feies novas. Vemos, tambm, que uma pessoa como Lenine, que no se intimida diante de fronteiras tradicionais e cujo pensamento no se prende ideologia de uma profisso, pode fazer advertncias teis a todos, inclusive aos filsofos da cincia.

    6. Albert Einstein, Albert Einstein: Philosopher Scientist, ed. P. A. Schilpp, Nova Iorque, 1951, pp. 683 s.

    7. Quanto deteriorao de linguagem que acompanha cada aumento de profissionalismo, cf. meu ensaio Experts in a Free Society, The Critic, novembro /dezembro 1970.

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  • 8. John Stuart Mill, 'On Liberty', The Philosophy of John Stuart Mill, ed. Marshall Cohen, Nova Iorque, 1961, p. 258.

    9. Ibid. p. 265. 10. Peter Alexeivich Kropotkin, Modern Science and Anar-

    chism, Kropotkins Revolutionary Pamphlets, ed. R. W. Baldwin, Nova Iorque, 1970, pp. 150-2. Uma das grandes caractersti-cas de Ibsen a de que, para ele, nada valia, exceto a cincia. B. Shaw, Back to Methuselah, Nova Iorque, 1921, xcvii. Comen-tando esses fenmenos e fenmenos similares, Strindberg es-creve (Antibarbarus): Uma gerao que teve a coragem de li-bertar-se de Deus, de esmagar o Estado e a Igreja, de subme-ter a sociedade e a moralidade, continuava, porm, a curvar-se diante da Cincia, onde se impe que a liberdade reine, a ordem do dia era crer nas autoridades ou ter cortada a cabea .

    11. R. P. Wolff, The Poverty of Liberalism, Boston, 1968, p. 15. Para crtica pormenorizada de Wolff, ver nota 52 de meu ensaio Against Method, in Minnesota Studies in the Philosophy of Science, vol. 4, Minneapolis, 1970.

    12. Ao escolher o termo anarquismo, simplesmente acompanhei uso geral. Contudo, o anarquismo tal como praticado no passado e como vem sendo hoje posto em prtica por cres-cente nmero de pessoas apresenta caractersticas que no me disponho a apoiar. Pouco se preocupa com as vidas hu-manas e com a felicidade humana (salvo as vidas e a felicidade dos que pertencem a algum grupo especial); e encerra preci-samente o tipo de seriedade e dedicao puritanas que eu de-testo. (H algumas encantadoras excees, como a de Cohn-Bendit, mas so minorias). Por essas razes, eu prefiro recor-rer, agora, palavra Dadasmo. Um dadasta no feriria um in-seto j para no falar em um ser humano. Um dadasta no se deixa absolutamente impressionar por qualquer tarefa sria e percebe o instante em que as pessoas se detm a sorrir e

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  • assumem aquela atitude e aquelas expresses faciais indicado-ras de que algo importante est para ser dito. Um dadasta est convencido de que uma vida mais digna s ser possvel quando comearmos a considerar as coisas com leveza e quando afastarmos de nossa linguagem as expresses enraiza-das, mas j apodrecidas, que nela se acumularam ao longo dos sculos (busca da verdade; defesa da justia; preocupao apaixonada; etc., etc.). Um dadasta est preparado para dar incio a alegres experimentos at mesmo em situaes onde o alterar e o ensaiar parecem estar fora de questo (exemplo: as funes bsicas da linguagem). Espero que, tendo conhecido o panfleto, o leitor lembre-se de mim como um dadasta irre-verente e no um anarquista srio. Cf. nota 4 do captulo II.

    13. Mesmo em situaes ambguas nebulosas, logo se consegue uniformidade de ao e a ela se adere tenazmente. Ver Mazu-fare Sherif, The Psychology of Social Norms, Nova Iorque, 1964.

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  • I Isso demonstrado seja pelo exame de episdios histricos, seja pela anlise da relao entre idia e ao. O nico prin-cpio que no inibe o progresso : tudo vale.

  • A idia de conduzir os negcios da cincia com o auxlio de um mtodo, que encerre princpios firmes, imutveis e incondi-cionalmente obrigatrios v-se diante de considervel dificuldade, quando posta em confronto com os resultados da pesquisa hist-rica. Verificamos, fazendo um confronto, que no h uma s re-gra, embora plausvel e bem fundada na epistemologia, que deixe de ser violada em algum momento. Torna-se claro que tais viola-es no so eventos acidentais, no so o resultado de conheci-mento insuficiente ou de desateno que poderia ter sido evitada. Percebemos, ao contrrio, que as violaes so necessrias para o progresso. Com efeito, um dos notveis, traos dos recentes deba-tes travados em torno da histria e da filosofia da cincia a com-preenso de que acontecimentos e desenvolvimentos tais como a inveno do atomismo na Antigidade, a revoluo copernicana, o surgimento do moderno atomismo (teoria cintica; teoria da dis-perso; estereoqumica; teoria quntica), o aparecimento gradual da teoria ondulatria da luz s ocorreram porque alguns pensado-res decidiram no se deixar limitar por certas regras metodolgicas bvias ou porque involuntariamente as violaram.

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  • Essa maneira liberal de agir no , repito, apenas um fato da histria da cincia. g algo razovel e absolutamente necessrio para que se desenvolva o conhecimento. De maneira mais especfica, pos-svel evidenciar o seguinte: dada uma regra qualquer, por funda-mental e necessria que se afigure para a cincia, sempre haver circunstncias em que se torna conveniente no apenas ignor-la como adotar a regra oposta. Exemplificando: h circunstncias em que aconselhvel introduzir. elaborar e defender hipteses ad hoc, ou hipteses que se colocam em contradio com resultados expe-rimentais bem estabelecidos e aceitos, ou hipteses de contedo mais reduzido que o da existente e empiricamente adequada alter-nativa, ou hipteses autocontraditrias, e assim por diante1.

    H circunstncias que ocorrem com aprecivel freqn-cia em que a argumentao (ou o debate) perde sua caracterstica antecipadora para tornar-se obstculo ao progresso. Ningum sus-tentar que ensinar crianas puramente uma questo de debate (embora a argumentao possa fazer parte do ensino e dele deves-se fazer parte em maior extenso do que a habitual) e quase todos hoje admitem que um aparente resultado da razo o domnio de uma linguagem, a existncia de um mundo perceptvel ricamen-te articulado, a capacidade lgica devido, em parte, doutri-nao, e, em parte, a um processo de desenvolvimento que atua com a fora de uma lei natural. E quando os argumentos parecem produzir efeito, isto se deve mais repetio fsica do que ao seu contedo semntico.

    Tendo admitido isso, tambm devemos conceder que e-xiste a possibilidade de desenvolvimento no argumentativo, as-sim no adulto como nas (partes teorticas das) instituies, tais como a cincia, a religio, a prostituio e assim por diante. No cabe, ao certo, dar como assentado que o possvel para uma criana adquirir, ao menos estmulo, novos modos e com-portamento, adot-las sem esforo visvel est para alm do alcance de pessoas mais velhas. Antes, caberia esperar que alte-raes catastrficas do ambiente e fsico, guerras, desmorona-

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  • mento de sistemas gerais de moralidade, revolues polticas transformem o padres de reao do adulto, inclusive no que se refere a importantes padres de argumentao. Essa transforma-o ser, talvez, um processo inteiramente natural e a nica funo de um argumento racional poder corresponder ao fato de que ele faz crescer a tenso mental que precede e causa o surto comporta-mental.

    Ora, se h eventos, no necessariamente argumentos, que so causa de adotarmos padres novos, inclusive novas e mais complexas formas de argumentao, no caber aos defensores do status quo oferecer, no apenas contra-argumentos, mas tambm causas contrrias? (Virtude sem terror ineficaz, diz Robespier-re.) E quando velhas formas de argumentao se revelam causa demasiado fraca, no devero esses defensores desistir ou recorrer a meios mais fortes e mais irracionais? ( muito difcil e talvez in-teiramente impossvel combater, atravs de argumentao, os efei-tos da lavagem cerebral.) At o mais rigoroso dos racionalistas ver-se- forado a deixar de arrazoar, para recorrer propaganda e coero, no porque hajam deixado de ser vlidas algumas de suas razes, mas porque desapareceram as condies psicolgicas que se tornavam eficazes e as faziam suscetveis de influenciar terceiros. E qual a utilidade de um argumento que no consegue influenciar as pessoas?

    certo que o problema jamais se apresenta exatamente sob este aspecto. O ensino e a defesa dos padres jamais consis-tem apenas em coloc-los diante do esprito do estudioso, bus-cando torn-los to claros quanto possvel. Admite-se que os pa-dres encerrem tambm a mxima eficcia causal. Isso torna ex-tremamente difcil distinguir entre fora lgica e efeito material de um argumento. Assim como um animal bem adestrado obedece-r ao dono, por maior que seja a perplexidade em que se encon-tre e por maior que seja a necessidade de adotar novos padres de comportamento; assim tambm o racionalista convicto se curvar imagem mental de seu mestre, manter-se- fiel aos pa-dres de argumentao que lhe foram transmitidos e aceitar

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  • esses padres por maior que seja a perplexidade em que se encon-tre mostrando-se incapaz e compreender que a voz da razo a que d ouvidos apenas o efeito causal tardio do treinamento que recebeu. No est em condies e descobrir que o apelo razo, diante do qual to prontamente sucumbe, nada mais que manobra poltica.

    A partir da anlise da relao entre idia e ao tambm, possvel perceber que os interesses, as foras, a propaganda e as tcnicas de lavagem cerebral desempenham, no que tange ao desenvolver-se de nosso conhecimento e ao desenvolver-se da cincia, papel muito mais importante do que geralmente se admite. Freqentemente se d por aceito que a clara e com-pleta compreenso de novas idias precede (e deve preceder) sua formulao e sua expresso formal. (A investigao tem incio com um problema, diz Popper.) Primeiro temos uma i-dia; ou um problema; depois agimos, isto , falamos, constru-mos ou destrumos. Em verdade, entretanto, esse no o modo como se desenvolvem as crianas. Usam palavras, combinam essas palavras, com elas brincam at que apreen-dem um significado que se havia mantido para alm de seu alcance. E a atividade ldica inicial requisito bsico do ato final de compreenso. No h razo para supor que esse me-canismo deixe de agir na pessoa adulta. Cabe esperar, por e-xemplo, que a idia de liberdade s se faa clara por meio das mesmas aes que supostamente criaram a liberdade. Criao de uma coisa e gerao associada compreenso de uma idia correta dessa coisa so, muitas vezes, partes de um nico e indivisvel processo, partes que no podem separar-se, sob pena de interromper o processo. Este no orientado por um programa bem definido e, alis, no suscetvel de ver-se ori-entado por um programa dessa espcie, pois encerra as condi-es de realizao de todos os programas possveis. , antes, orientado por um vago anelo por uma paixo (Kierke-gaard). A paixo faz surgir o comportamento especfico e este, por sua vez, cria as circunstncias e idias ne-

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  • cessrias para anlise e explicao do processo para torn-lo ra-cional.

    O desenvolvimento da doutrina copernicana, desde o tem-po de Galileu at o sculo XX, perfeito exemplo da situao que desejo apresentar. Partimos de uma firme convico, contrria razo e experincia da poca. A convico se dissemina e encon-tra apoio em outras convices que so igualmente ou mais desar-razoadas (lei da inrcia: telescpio). A pesquisa toma novas dire-es, constroem-se novos tipos de instrumentos, a evidncia pas-sa a ser relacionada com as teorias segundo novas linhas, at que surja uma ideologia suficientemente rica para oferecer argumentos especficos em defesa de cada uma de suas partes e suficientemen-te plstica para encontrar esses argumentos sempre que se faam necessrios. Hoje, podemos dizer que Galileu trilhava o caminho certo, pois sua persistente busca de algo que, a certa altura, se afi-gurou uma ridcula cosmologia, veio a criar os elementos necess-rios para defend-la contra aqueles que s aceitam um ponto de vista quando ele apresentado de determinado modo e que s confiam nele quando encerra certas frases mgicas, denominadas relatos de observao. E isto no exceo o caso comum: as teorias s se tornam claras e razoveis depois de terem sido usadas, por longo tempo, vrias, partes incoerentes que as com-pem Essa operao desarrazoada, insensata, sem mtodo , as-sim, condio inevitvel de clareza e de xito emprico.

    Ora, quando procuramos descrever e compreender de maneira geral processos dessa espcie, somos obrigados, natu-ralmente, a recorrer s formas de expresso existentes, que no tomam em conta aqueles processos e precisam, pois, ser detur-padas, mal-empregadas, afeioadas a novos moldes, para se ade-quarem a situaes imprevistas (sem um constante mau uso da linguagem no pode haver descoberta ou progresso). Alm disso, como as categorias tradicionais so a bblia do pensamento co-mum (inclusive do pensamento comum cientfico) e da prtica de todos os dias, [essa tentativa de compreender] apresenta,

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  • em verdade, regras e formas de pensamento falso e ao errnea falso e errnea, entenda-se, do ponto de vista do senso comum (cientfico)2 Dessa maneira, o pensamento dialtico surge como uma forma de pensamento que reduz ao nada as pormenorizadas de-terminaes de compreenso3, inclusive a lgica formal.

    (De passagem, importa assinalar que o freqente uso de pa-lavras como progresso, avano, aperfeioamento, etc. no sig-nifica afirme eu estar de posse de um conhecimento especial acer-ca do que seja bom e do que seja mau nas cincias, nem significa pretenda eu impor esse conhecimento aos leitores. Cada qual ler as palavras a seu modo e de acordo com a tradio a que esteja filiado. Assim, para um empirista, progresso significar transio para uma teoria capaz de permitir que a maioria de seus pressupostos bsicos seja objeto de testes empricos diretos. Alguns acreditam que a essa espcie pertence a teoria quntica. Aos olhos de outros, progresso poder significar unificao e harmonia, talvez at mesmo s expensas da adequao emprica. Dessa maneira enca-rava Einstein a teoria geral da relatividade. E minha tese a de que o anarquismo favorece a concretizao do progresso em qualquer dos sentidos que a ele se decida emprestar. Mesmo uma cincia que se paute pelo bem ordenado s alcanar resultados se admitir, ocasionalmente, procedimentos anrquicos.)

    claro, portanto, que a idia de um mtodo esttico ou de uma teoria esttica de racionalidade funda-se em uma concepo demasiado ingnua do homem e de sua circunstncia social. Os que tomam do rico material da histria, sem a preocupao de empobrec-lo para agradar a seus baixos instintos, a seu anseio de segurana intelectual (que se manifesta como desejo de clareza, preciso, objetividade, verdade), esses vem claro que s h um princpio que pode ser defendido em todas as circunstncias e em todos os estgios do desenvolvimento humano. o princpio: tudo vale.

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  • preciso, agora, passar a examinar e a explicar esse princ-pio abstrato, analisando-o em ternos pormenorizados e concretos.

    NOTAS

    1. Um dos poucos pensadores a compreender esse trao do e-

    volver do conhecimento foi Niels Bohr: ... ele nunca tentar esboar um quadro completo, mas acompanhar paciente-mente todas as fases de desenvolvimento de um problema, a partir de algum paradoxo manifesto, para gradualmente che-gar a sua elucidao. Em verdade, jamais encarar os resulta-dos obtidos como outra coisa que no pontos de partida de outros estudos. Especulando acerca das perspectivas de uma linha de investigao, afastar as habituais consideraes de simplicidade, elegncia e mesmo de coerncia, observando que tais qualidades somente podem ser adequadamente aps (grifo meu) o evento...' L. Rosenfeld, in Niels Bohr. His Life and Work as seen by his Friends and Colleagues, ed. S. Rosental, Nova Iorque, 1967, p. 117. Ora a cincia jamais um processo completo; est, portanto, sempre antes do even-to.Conseqentemente, a simplicidade, a elegncia ou a coe-rncia jamais constituem condies necessrias da prtica (ci-entfica).

    2. Herbert Marcuse, Reason and Revolution, Londres, 1941, p. 130. 3. Hegel, Wissenschaft der Logik, vol. I, Meiner, Hamburgo, 1965,

    p. 6.

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  • II Cabe, por exemplo, recorrer a hipteses que contradizem te-orias confirmadas e/ou resultados experimentais bem esta-belecidos. possvel fazer avanar a cincia, procedendo contra-indutivamente.

  • Examinar o princpio em pormenor concreto significa tra-ar as conseqncias das contra-regras que se opem a algumas regras comuns do empreendimento cientfico. Para ter idia dessa forma de operao, consideremos a regra segundo a qual a ex-perincia ou so os fatos ou so os resultados experimentais que medem o xito de nossas teorias, a regra segundo a qual uma concordncia entre a teoria e os dados favorece a teoria (ou no modifica a situao), ao passo que uma discordncia ameaa a teo-ria e nos fora, por vezes, a elimin-la. Essa regra elemento im-portante de todas as teorias da confirmao e da corroborao. a essncia do empirismo. A contra-regra a ela oposta aconselha-nos a introduzir e elaborar hipteses que no se ajustam a teorias firmadas ou a fatos bem estabelecidos. Aconselha-nos a proceder contra-indutivamente.

    O procedimento contra-indutivo d surgimento s seguin-tes indagaes: a contra-induo mais razovel do que a indu-o? H circunstncias que lhe favoream o uso? Quais os argu-mentos em seu favor? Quais os argumentos a ela contrrios? Ser, talvez, cabvel preferir sempre a induo e no a contrainduo? E assim por diante.

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  • Essas indagaes sero respondidas em duas fases. De in-cio, examinarei a contra-regra que nos impele a desenvolver hip-teses que no se ajustam a teorias aceitas e confirmadas. E exami-narei posteriormente a contra-regra que nos leva a desenvolver hipteses que no se ajustam a fatos bem estabelecidos. Os resul-tados resumem-se nos termos abaixo indicados.

    No primeiro caso, ocorre que a evidncia capaz de refu-tar uma teoria , freqentes vezes, to-somente desvelada com o auxlio de uma alternativa incompatvel: o conselho (que re-monta a Newton e , ainda, hoje, amplamente acolhido) segun-do o qual s cabe recorrer a alternativas quando as refutaes j hajam desacreditado a teoria ortodoxa um conselho que pe o carro adiante dos bois. Alm disso, algumas das mais im-portantes propriedades formais de uma teoria manifestam-se por contraste e no por fora de anlise. O cientista que deseja ampliar ao mximo o contedo emprico das concepes que sustenta e que deseja entender aquelas concepes to clara-mente quanto possvel deve, portanto, introduzir concepes novas. Em outras palavras, o cientista deve adotar metodologia pluralista. Compete-lhe comparar idias antes com outras idias do que com a experincia e ele tentar antes aperfeioar que afastar as concepes que forem vencidas no confronto. Pro-cedendo dessa maneira, manter as teorias acerca do homem e do cosmos que se encontram no Gnese ou no Pimandro e as elaborar e utilizar a fim de avaliar o xito da evoluo e de outras concepes modernas 1. Concluir, talvez, que a teoria da evoluo no to bem fundada quanto geralmente se admi-te e que deve ser complementada ou inteiramente substituda por uma aperfeioada verso do Gnese. O conhecimento, concebido segundo essas linhas, no uma srie de teorias coe-rentes, a convergir para uma doutrina ideal; no um gradual aproximar-se da verdade. , antes, um oceano de alternativas mutuamente incompatveis (e, talvez, at mesmo incomensurveis), on-de cada teoria singular, cada conto de fadas, cada mito que seja parte do todo fora as demais partes a manterem articulao

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  • maior, fazendo com que todas concorram, atravs desse processo de competio, para o desenvolvimento de nossa conscincia. Nada jamais definitivo, nenhuma forma de ver pode ser omitida de uma explicao abrangente. Plutarco ou Digenes Larcio e no Dirac ou von Neumann so os modelos para a apresentao dessa espcie de conhecimento, onde a histria de uma cincia se faz poro inseparvel da prpria cincia essencial para seu posterior desenvolvimento, assim como para emprestar contedo s te-orias que encerra em qualquer momento dado. Especialistas e lei-gos, profissionais e diletantes, mentirosos e amantes da verdade todos esto convidados a participar da atividade e a trazer con-tribuio para o enriquecimento de nossa cultura. A tarefa do ci-entista no mais a de buscar a verdade ou a de louvar ao Deus ou a de sistematizar observaes ou a de aperfeioar as previ-ses. Esses so apenas efeitos colaterais de uma atividade para a qual sua ateno se dirige diretamente e que tornar forte o ar-gumento fraco, tal como disse o sofista, para, desse modo, garantir o movimento do todo.

    A segunda contra-regra que favorece as hipteses desajus-tadas das observaes, dos fatos e dos resultados experimentais no neces-sita de especial defesa, pois no h uma nica teoria digna de inte-resse que esteja em harmonia com todos os fatos conhecidos que se situam em seu domnio. No h, pois, que indagar se as teorias contra-indutivas devem ser admitidas em cincia; a questo , antes, a de saber se as atuais discrepncias entre a teoria e os fatos devem ser aprofundadas ou reduzidas, de saber o que se h de com elas fazer.

    Para responder a essa indagao, basta lembrar que os rela-tos de observao, os resultados experimentais, os enunciados factuais ou encerram pressupostos teorticos ou os afirmam, por fora da maneira como so usados. (Para aprofundar esse ponto, ver o exame das interpretaes naturais, nos captulos VI e seguin-tes.) Assim, costume dizer a mesa marrom , quando a con-templamos em circunstncias normais, com nossos sentidos em equilbrio, e dizer a mesa parece ser marrom quando as

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  • condies de luz deixam a desejar ou quando nos sentimos inse-guros quanto a nosso poder de observao e isso expressa a convico de que h circunstncias comuns em que nossos senti-dos se mostram aptos a ver o mundo como ele realmente e de que h circunstncias, igualmente comuns, em que nossos senti-dos se enganam. Expressa a convico de que algumas de nossas impresses sensoriais so corretas e outras no so. E damos tambm como certo que o meio material que se interpe entre ns e o objeto no exerce influncia deturpadora e que a entidade fsi-ca de que o contato depende a luz veicula um quadro ver-dadeiro. Trata-se, em todos os casos, de pressupostos abstratos e altamente discutveis que do forma nossa concepo do mun-do, sem se tornarem acessveis a uma crtica direta. Em geral, nem sequer nos damos conta desses pressupostos e s lhes reconhe-cemos os efeitos quando nos defrontamos com uma cosmologia inteiramente diversa: os preconceitos so descobertos graas a contraste e no graas a anlise. O material de que o cientista dis-pe, inclusive suas mais elaboradas teorias e suas tcnicas mais re-finadas, estrutura-se de modo exatamente idntico. Encerra, tam-bm, princpios que no so conhecidos e que, se conhecidos, se-riam de verificao extremamente difcil. (Em conseqncia, uma teoria poder conflitar com a evidncia no porque deixe de ser correta, mas porque a evidncia est adulterada.)

    Ora como nos seria possvel examinar algo de que nos estamos valendo o tempo todo? Como analisar para lhes apon-tar os pressupostos os termos em que habitualmente expres-samos nossas observaes mais simples e diretas? Como agin-do como agimos descobrir a espcie de mundo que pressupo-mos?

    A resposta clara: no podemos descobrir o mundo a partir de dentro. H necessidade de um padro externo de crtica: precisamos de um conjunto de pressupostos alternativos ou uma vez que esses pressupostos sero muito gerais, fazendo sur-gir, por assim dizer, todo um mundo alternativo necessita-

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  • mos de um mundo imaginrio para descobrir os traos do mundo real que supomos habitar (e que, talvez, em realidade no passe de outro mundo imaginrio). A primeira fase da crtica que dirigiremos contra os conceitos e processos comuns, o primeiro passo na crtica aos fatos h de consistir, portanto, em uma tentativa de romper o crculo vicioso. Temos de inventar um sistema concep-tual novo que ponha em causa os resultados de observao mais cuidadosamente obtidos ou com eles entre em conflito, que frus-tre os mais plausveis tericos e que introduza percepes que no integrem o existente mundo perceptvel2. Esse passo tam-bm de carter contra-indutivo. A contra-induo, portanto, sempre razovel e abre sempre uma possibilidade de xito.

    Nos sete captulos seguintes essa concluso ser desen-volvida em pormenor e ilustrada com exemplos retirados da His-tria. Com o que disse, terei, talvez, dado a impresso de que prego uma nova metodologia em que a induo substituda pe-la contra-induo e onde aparecem teorias vrias, concepes metafsicas e contos de fadas, em vez de aparecer o costumeiro binmio teoria/observao3. Essa impresso seria, indubitavel-mente, errnea. Meu objetivo no o de substituir um conjunto de regras por outro conjunto do mesmo tipo: meu objetivo , antes, o de convencer o leitor de que todas as metodologias, in-clusive as mais bvias, tm limitaes. A melhor maneira de concretizar tal propsito apontar esses limites e a irracionalida-de de algumas regras que algum possa inclinar-se a considerar fundamentais. No caso da induo (inclusive a induo por fal-seamento), isso equivale a evidenciar at que ponto o processo contra-indutivo encontra apoio em argumentaes. Tenha-se sempre em mente que as demonstraes e a retrica usada no expressam profundas convices minhas. Apenas mos-tram como fcil, atravs de recurso ao racional, iludir as pessoas e conduzi-las a nosso bel-prazer. Um anarquista

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  • como um agente secreto que participa do jogo da Razo para so-lapar a autoridade da Razo (Verdade, Honestidade, Justia e as-sim por diante)4.

    NOTAS

    1. Para esclarecer o papel de Pimandro na Revoluo Coperni-cana, cf. nota 12 do captulo VIII.

    2. Entre em conflito ou ponha em causa tm o propsito de ser mais gerais do que contradiz. Afirmo que um conjunto de idias ou aes conflita com um sistema conceptual se incompatvel com ele ou se faz o sistema parecer absurdo. Pa-ra mincias, cf. captulo XVII, adiante.

    3. Dessa maneira, o Professor Ernan McMullin interpretou al-guns de meus primeiros artigos. Ver A Taxonomy of the Re-lations between History and Philosophy of Science, Minnesota Studies 5, Minneapolis, 1971.

    4. Dada, diz Hans Richter (in Dada: Art and Anti-Art) no se limitava a no ter programa; era contra todos os programas . Isso no exclui a habilidosa defesa dos programas, para mos-trar o carter quimrico de todas as defesas, ainda que racio-nais . Cf., tambm, captulo XVI, texto correspondente s no-tas 21, 22, 23. (De idntica maneira, um ator ou teatrlogo poderia apresentar todas as manifestaes externas de pro-fundo amor para desmascarar a impostura do amor profun-do. Exemplo: Pirandello.) Espero que essas observaes afas-tem o temor que a senhorita Koertge manifesta de que eu a-penas pretendia iniciar um novo movimento, onde os lemas proliferem ou tudo vale substituam os lemas do falseamen-to, do indutivismo ou da programao de pesquisas.

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  • III A condio de coerncia, por fora da qual se exige que as hipteses novas se ajustem a teorias aceitas, desarrazoada, pois preserva a teoria mais antiga e no a melhor. Hipteses que contradizem teorias bem assentadas proporcionam-nos evidncia impossvel de obter por outra forma. A prolifera-o de teorias benfica para a cincia, ao passo que a uni-formidade lhe debilita o poder crtico. A uniformidade, alm disso, ameaa o livre desenvolvimento do indivduo.

  • No presente captulo, oferecerei argumentos pormenoriza-dos, em prol da contra-regra que nos impele a introduzir hipte-ses incompatveis com teorias bem assentadas. Os argumentos sero indiretos. Levantar-se-o mediante crtica da exigncia de que as hipteses novas devam ajustar-se quelas teorias. A essa exigncia denominarei condio de coerncia1.

    Prima facie, a condio de coerncia pode ser apresentada em poucas palavras. sabido (e foi minuciosamente demonstrado por Duhem) que a teoria de Newton incongruente com a lei da queda dos corpos, de Galileu, e com as leis de Kepler; que a termodinmi-ca estatstica inconsistente com a segunda lei da teoria fenomeno-lgica; que a tica ondulatria incompatvel com a tica geomtri-ca; e assim por diante2. Note-se que estamos falando de incoerncia lgica, podendo ocorrer que as diferenas de previso se mostrem muito pequenas para que um experimento as possa apontar. Note-se tambm que estamos asseverando no a incoerncia de, digamos, a teoria de Newton e a lei de Galileu, mas, antes, a incoerncia de al-gumas conseqncias da teoria de Newton, no domnio de validez da lei de Galileu com a lei de Galileu. Neste ltimo caso, a

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  • situao particularmente clara. A lei de Galileu afirma que a ace-lerao dos corpos em queda livre uma constante, enquanto a aplicao da lei de Newton superfcie da Terra indica uma acele-rao que no constante, mas que decresce (embora impercepti-velmente) quando aumenta a distncia em relao ao centro da Terra.

    Mais abstratamente: consideremos uma teoria T que descre-ve adequadamente a situao que se apresenta no domnio D. T est em concordncia com um nmero finito de observaes (de classe, digamos, F) e em concordncia com essas observaes den-tro da margem de erro M. Qualquer alternativa que se ponha em contradio com T, fora de F e dentro dos limites M, encontrar apoio naquelas mesmas observaes e ser, portanto, aceitvel, se T se mostrou aceitvel. (Admitirei que F so as nicas observaes feitas.) A condio de coerncia muito menos tolerante. Elimina uma teoria ou uma hiptese no porque esteja em desacordo com os fatos; elimina-a quando ela se pe em desacordo com outra teo-ria, com uma teoria, acentuemos, de cujas instncias confirmadoras partilha. E dessa maneira transforma em medida de validade uma parte da teoria existente que ainda no foi submetida a teste. A ni-ca diferena entre essa medida e uma teoria mais recente apenas o tempo de existncia e o contato maior que temos com a teoria usa-da como ponto de referncia. Se a teoria mais recente fosse a mais antiga, a condio de coerncia operaria em seu favor. A primeira teoria adequada tem o direito de prioridade sobre teorias posterio-res igualmente adequadas3. Sob esse aspecto, o efeito da condio de coerncia similar ao efeito dos mais tradicionais mtodos de deduo transcendental, de anlise de essncias, de anlise fenome-nolgica, de anlise lingstica. Contribui para a preservao do que antigo e familiar, no porque seja portador de qualquer inerente vantagem no porque esteja melhor fundamentado na observa-o do que a alternativa de sugesto recente ou porque seja mais elegante mas apenas por ser mais antigo e familiar. Essa no

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  • a nica situao em que, a mais aprofundado exame, surge sur-preendente semelhana entre o empirismo de nossos dias e algu-mas escolas filosficas por ele atacadas.

    Ora, parece-me que essas breves consideraes embora levem a uma interessante crtica ttica da condio de coerncia e aos primeiros fragmentrios elementos de apoio contra-induo no chegam, ainda, ao cerne da questo. Mostram que uma alternativa para o ponto de vista aceito, alternativa que apresente os mesmos casos corroboradores, no pode ser elimi-nada atravs de arrazoado factual. No demonstram que a alter-nativa seja aceitvel; e menos ainda mostram que deva ser utilizada. lamentvel, diria um defensor da condio de coerncia, que o ponto de vista aceito no tenha completo fundamento emprico. Acrescentar teorias novas de carter igualmente insatisfatrio no melhorar a situao; nem h muito sentido no tentar substituir as teorias aceitas por algumas de suas possveis alternativas. A substituio no se operar com facilidade. Talvez imponha domnio de um formalismo novo e talvez exija que problemas familiares sejam acomodados a pautas novas. Manuais tero de ser reescritos, precisaro sofrer revises os currculos universit-rios e os resultados experimentais sero reinterpretados. E qual o resultado de tal esforo? Outra teoria que, do ponto de vista emprico, no oferece qualquer vantagem em relao que subs-tituiu. O nico aprimoramento real, continuaria o defensor da condio de coerncia, o que deriva do acrscimo de fatos novos. Esses fatos novos ou corroboraro as teorias em vigor ou nos foraro a modific-las, indicando, com preciso, os pontos em que apresentam deficincias. Em ambos os casos, daro lugar a progresso real e no a alteraes arbitrrias. O procedimento conveniente h de ser, portanto, o de confrontar a concepo aceita com tantos fatos relevantes quanto possvel. A excluso de alternativas torna-se, pois, simples questo de oportuni-dade: invent-las no traz qualquer ajuda e chega a ser prejudicial ao progresso, pois absorve tempo e ateno que

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  • poderiam ser devotados a propsitos melhores. A condio de co-erncia afasta essas discusses estreis e fora o cientista a concen-trar-se em fatos que, ao final, so os nicos reconhecidos juzes de uma teoria. assim que o cientista militante justifica o apego a uma nica teoria, com excluso das alternativas empiricamente cabveis4.

    Vale a pena voltar a realar o ncleo razovel desse argu-mento. As teorias no devem ser modificadas, a menos que haja razes prementes para a modificao. A nica razo premente pa-ra alterar uma teoria a discordncia com fatos. O exame de fatos incompatveis com a teoria conduz, portanto, a progresso. Exame de hipteses incompatveis no leva ao mesmo resultado. Conse-qentemente, convm agir de forma a fazer crescer o nmero de fatos relevantes. No convm agir de maneira a fazer crescer o nmero de alternativas factualmente adequadas, mas incompat-veis. Talvez se desejasse acrescentar que o aperfeioamento for-mal, traduzido em maior elegncia, simplicidade, generalidade e coerncia, no deve ser excludo. Mas, uma vez ocorridos esses aperfeioamentos, parece que somente resta ao cientista a coleta de fatos que ele utilizar para fins de teste.

    E assim contanto que os fatos existam e a eles se possa chegar, independentemente de se ter ou no em conta alternativas da teoria a ser submetida a teste. A esse pressuposto, do qual depende, de ma-neira decisiva, a validez do argumento precedente, denominarei pressuposto da autonomia relativa dos fatos, ou princpio da autono-mia. No assevera esse princpio que a descoberta e a descrio de fatos sejam independentes de todo teorizar. Assevera, porm, que possvel chegar aos fatos integrados ao contedo emprico de uma teoria, sejam ou no consideradas as alternativas dessa teoria. No me consta que esse importantssimo pressuposto haja sido formula-do, explicitamente, como um postulado do mtodo emprico. To-davia, ele est claramente presente em todas as investigaes relati-vas a questes de confirmao e testes. Todas as investigaes dessa

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  • ordem utilizam modelo em que uma nica teoria confrontada com uma classe de fatos (ou enunciados de observao) que se presumem, de alguma forma, dados. Penso que esse retrato sim-plifica em demasia a situao real. Os fatos e as teorias esto mui-to mais intimamente ligados do que o admite o princpio da auto-nomia. No apenas ocorre que a descrio de cada fato singular depende de alguma teoria (que, naturalmente, pode diferir da teoria a ser submetida a teste), como tambm ocorre existirem fatos que so desvelados apenas com o auxlio de alternativas da teoria a ser submetida a teste e que se tornam inacessveis to logo essas alter-nativas se vem excludas. E isso leva a sugerir que a unidade me-todol6gica a que devemos referir-nos, ao discutir questes relati-vas a testes e a contedo emprico, se constitui de todo um conjunto de teorias, parcialmente superpostas, factualmente adequadas, mas mutuamen-te inconsistentes. No presente captulo, s apresentaremos um breve esboo desse modelo de teste. Antes de faz-lo, entretanto, desejo examinar um exemplo que mostra claramente a funo das alter-nativas na descoberta de fatos crticos.

    Sabe-se, hoje, que a partcula browniana mquina de mo-vimento perptuo de segunda espcie e que sua existncia refuta a segunda lei fenomenolgica. O movimento browniano coloca-se, pois, no domnio dos fatos relevantes para a lei. Ora, poderia essa relao entre o movimento browniano e a lei ter sido descoberta de maneira direta, isto , poderia ter sido descoberta por meio de exame das conseqncias observacionais da teoria fenomenolgica que no fizesse uso de uma teoria alternativa do calor? Essa inda-gao abre-se, de imediato, em duas: (1) poderia a relevncia da par-tcula browniana ter sido descoberta dessa maneira? (2) poderia ter sido demonstrado que ela realmente refuta a segunda lei?

    A resposta primeira pergunta : no o sabemos. im-possvel dizer o que teria ocorrido se a teoria cintica no fosse introduzida no debate. Suponho, entretanto, que, em tal caso, a partcula browniana teria sido encarada como algo extra-

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  • vagante muito semelhana de como foram considerados ex-travagantes os surpreendentes efeitos relatados pelo falecido pro-fessor Ehrenhaft5 e no lhe teria sido atribuda a posio deci-siva que lhe est reservada na doutrina contempornea. A resposta segunda pergunta simplesmente: No. Consideremos o que se tornaria necessrio fazer, em face da descoberta de inconsistncia entre o fenmeno do movimento browniano e a segunda lei. Im-por-se-ia: (a) medida do movimento exato da partcula para determi-nar a alterao de sua energia cintica plus a energia despendida para vencer a resistncia do fluido; e (b) medida precisa de tempe-ratura e de transferncia de calor no meio circundante, para asse-gurar que toda perda ocorrida se v, de fato, compensada pelo a-crscimo de energia da partcula em movimento e pelo trabalho executado contra o fluido. Essas medies colocam-se fora das possibilidades experimentais6: nem a transferncia de calor nem a trajetria da partcula pode ser medida com a desejada preciso. Conseqentemente, impossvel uma refutao direta da segun-da lei, refutao que to-somente levaria em conta a teoria feno-menolgica e os fatos concernentes ao movimento browniano. impossvel a refutao em virtude da estrutura do mundo em que vivemos e das leis vlidas nesse mundo. Alis, como se sabe, a real refutao surgiu por caminho muito diverso. Surgiu via teoria ci-ntica e a partir do uso que dela fez Einstein para calcular as pro-priedades estatsticas do movimento browniano. Ao longo desse procedimento, a teoria fenomenolgica (T) viu-se incorporada ao contexto mais amplo da fsica estatstica (T) de modo a violar-se a condio de coerncia; depois disso, preparou-se um experimento crucial (investigaes de Svedberg e Perrin)7.

    Parece-me que esse exemplo tpico da relao que se estabeleceu entre as teorias ou os pontos de vista muito gerais e os fatos. A relevncia e o carter refutador dos fatos deci-sivos s podem ser verificados com o auxlio de outras teorias que, embora factualmente adequadas8, no esto em concor-dncia com a concepo a ser submetida a teste. Assim sendo,

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  • a inveno e articulao de alternativas talvez tenham de preceder a apresentao dos fatos refutadores. O empirismo, pelo menos em algumas de suas mais sofisticadas verses, exige que o conte-do emprico de todo conhecimento por ns conseguido seja au-mentado o quanto possvel. Conseqentemente, a inveno de alternati-vas para a concepo que est em debate constitui parte essencial do mtodo emprico. Inversamente, a circunstncia de a condio de coerncia eliminar alternativas mostra, agora, que ela est em discordncia no s com a prtica cientfica, mas tambm com o empirismo. Afastando testes valiosos, reduz o contedo emprico das teorias autorizadas a permanecer (e estas, como acima referi, sero, ge-ralmente, as teorias que primeiro se viram formuladas); e, em es-pecial, reduz o nmero de fatos que evidenciariam as limitaes daquelas teorias. Este ltimo resultado de determinada aplicao da condio de coerncia de interesse muito restrito. Pode muito bem ocorrer que a refutao das incertezas, em mecnica quntica, pressuponha exatamente uma incorporao da atual teoria em um contexto mais amplo que no esteja em concordncia com a idia de complementaridade e. que, portanto, sugira experimentos no-vos e decisivos. E pode tambm ocorrer, se bem sucedida, que, a insistncia, por parte da maioria dos fsicos de hoje, em defender as condies de coerncia, impea, para sempre, as incertezas de se verem refutadas. Dessa maneira, a condio, ao final, dar mar-gem a uma situao em que certo ponto de vista se petrifique em dogma, sendo posto, em nome da experincia, em posio intei-ramente inacessvel a qualquer crtica.

    Vale a pena examinar, com maior mincia, essa defesa, apa-rentemente emprica, de um ponto de vista dogmtico. Admita-mos que os fsicos hajam acolhido, consciente ou inconscien-temente, a idia da singularidade da complementaridade e que se recusem a examinar alternativas. De incio, possvel que esse procedimento se mostre inofensivo. Afinal de contas, um homem e mesmo uma escola influente s podem fazer umas

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  • tantas coisas de cada vez e melhor que explorem uma teoria considerada interessante do que uma teoria julgada sem atrati-vos. Admitamos, ainda, que a explorao da teoria escolhida tenha levado a xitos e que a teoria haja esclarecido, de maneira satisfatria, circunstncias que, h longo tempo, se mostravam ininteligveis. Isso empresta apoio emprico a uma idia que ini-cialmente s parecia possuir uma vantagem: era interessante e provocadora. A adeso teoria ver-se- reforada e a atitude frente a alternativas ser de menor tolerncia. Ora, se verdade tal como se sustentou no captulo anterior que muitos fatos s se manifestam luz de teorias alternativas, recusar-se a examinar essas alternativas resultar em afastar, ao mesmo tempo, fatos potencialmente refutadores. Mais particularmente: resultar em afastar fatos cuja descoberta patentearia a comple-ta e irreparvel inadequao da teoria9. Tornados inacessveis esses fatos, a teoria estar aparentemente livre de imperfeio e se afigurar que toda evidncia aponta, com determinao ca-tegrica, no... sentido... de que todos os processos que envol-vem... interaes desconhecidas se conformam lei quntica fundamental10. Isso reforar ainda mais a crena no carter nico da teoria aceita e na futilidade de explicao que procure caminho diverso. Firmemente convencido de que h uma nica microfsica adequada, o fsico tentar valer-se dos termos dessa teoria para explicar fatos a ela antagnicos e no dar grande ateno circunstncia de essas explicaes se mostrarem, oca-sionalmente, um tanto imprprias. Logo a seguir, os desenvol-vimentos havidos passam a ser de conhecimento geral. Livros cientficos de cunho popular (e isso inclui muitos livros a pro-psito de filosofia da cincia) divulgam amplamente os postu-lados bsicos da teoria; ocorrem aplicaes em campos remo-tos, auxlio financeiro dado ao ortodoxo e negado aos rebel-des. Mais do que nunca, a teoria parece possuir largo funda-mento emprico. A possibilidade de considerar alternativas torna-se reduzidssima. Parece assegurado o xito final dos

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  • pressupostos bsicos da teoria quntica e da idia de complemen-taridade.

    Com base em nossas consideraes, tambm se torna evi-dente que o xito aparente no pode ser visto como sinal de verdade e de correspondncia com o natureza. Muito ao contrrio, surge a suspeita de que a ausncia de dificuldades maiores se deva a uma reduo do contedo emprico, provocada pela simples eliminao de alterna-tivas e dos fatos passveis de se verem descobertos com o auxlio de tais alternativas. Em outras palavras, surge a suspeita de que o pre-tenso xito se deva circunstncia de que a teoria, ficando projetada para a-lm de seu ponto de partida, transformou-se em rgida ideologia. Essa ideo-logia tem xito no porque bem se afeioe aos fatos, mas porque no se especificam fatos que pudessem constituir-se em teste e porque alguns desses fatos so afastados. O xito inteiramente artificial. Tomou-se a deciso de, haja o que houver, aderir a al-gumas idias e o resultado foi, muito naturalmente, o de essas i-dias sobreviverem. Se, por exemplo, a deciso for esquecida ou adotada apenas implicitamente, se ela se tornar lei comum em F-sica, ocorrer que a prpria sobrevivncia parecer erigir-se em apoio independente que reforar a deciso e lhe emprestar car-ter explcito fechando, dessa maneira, o crculo. assim que a evidncia emprica pode ser criada atravs de um procedimento que cita como justificao a prpria evidncia que produziu.

    A essa altura, uma teoria emprica do tipo descrito (e lembremos sempre que os princpios bsicos da atual teoria quntica e, em particular, a idia de complementaridade esto desagradavelmente prximos de constituir esse tipo de teoria) torna-se quase indistinguvel de um mito de segunda classe. Pa-ra nos darmos conta disso, basta lembrar um mito como o da feitiaria e da possesso demonaca, desenvolvido por telogos catlico-romanos e que, no continente europeu, dominou o pensamento dos sculos XV, XVI e XVII. Esse mito um sis-tema explicativo complexo, que encerra numerosas hipteses

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  • auxiliares, destinadas a abranger casos especiais, de sorte que fa-cilmente alcana alto grau de confirmao baseado em observa-es. O mito foi ensinado por longo tempo; seu contedo recebe o reforo do medo, do preconceito e da ignorncia, ao mesmo tempo que de um exerccio clerical zeloso e cruel. Suas idias pe-netram o idioma comum; infeccionam todas as formas de pensa-mento e atingem muitas decises de relevante significao para a vida humana. O mito proporciona modelos para a explicao de qualquer concebvel evento concebvel, entenda-se, para os que aceitaram o mito 11. Assim sendo, seus termos-chave ver-se-o fi-xados de maneira clara; e a idia (que talvez tenha, originalmente, levado a esse procedimento) de que so cpias de entidades isen-tas de alteraes e que a alterao de significado, se ocorrer, se de-ver a erro humano essa idia passar a apresentar-se como plausvel. Essa plausibilidade fala em favor de todas as manobras utilizadas para a preservao do mito (inclusive a eliminao de oponentes). O aparelhamento conceptual da teoria e as emoes ligadas sua aplicao, insinuando-se em todos os meios de co-municao, em todas as aes e, afinal, em toda a vida da comuni-dade, passam a garantir o xito de mtodos tais como o da dedu-o transcendental, da anlise de uso, da anlise fenomenolgica meios de emprestar maior solidez ao mito (o que mostra, assi-nalemos de passagem, que todos esses mtodos, caractersticos de escolas filosficas antigas e modernas, apresentam um trao co-mum: tendem a preservar o status quo da vida intelectual). Tambm os resultados de observao falaro em favor da teoria, de vez que formulados com observncia de seus termos. E surge a impresso de se haver, finalmente, alcanado a verdade. Torna-se evidente, ao mesmo tempo, que se perdeu todo contato com o mundo e que a estabilidade atingida, a aparncia de verdade absoluta, no passa do resultado de um conformismo absoluto12. Com efeito, como ser possvel submeter a teste ou aprimorar a verdade de uma teoria, se ela elaborada de maneira tal que qualquer acontecimento concebvel

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  • pode ser descrito e explicado nos termos de seus princpios? A -nica maneira de estudar esses princpios que a tudo abrangem seria compar-los com um conjunto de outros princpios igualmente abran-gentes mas a possibilidade desse procedimento est, desde o in-cio, afastada. O mito no tem, pois, relevncia objetiva; continua a existir apenas como resultado do esforo da comunidade de cren-tes e de seus orientadores, sejam estes sacerdotes ou vencedores do Prmio Nobel. Esse , a meu ver, o mais forte argumento con-tra qualquer mtodo que estimule a uniformidade, quer seja esse mtodo emprico ou no. Cada mtodo dessa espcie , em ltima anlise, um mtodo decepcionante. D foras a um conformismo sombrio e fala de verdade; leva deteriorao das capacidades in-telectuais, do poder de imaginao e fala de introviso profunda; destri o mais precioso dom da juventude o enorme poder de imaginao e fala em educar.

    Resumindo: Unanimidade de opinio pode ser adequada para uma igreja, para as vtimas temerosas ou ambiciosas de algum mito (antigo ou moderno) ou para os fracos e conformados segui-dores de algum tirano. A variedade de opinies necessria para o conhecimento objetivo. E um mtodo que estimule a variedade a nico mtodo compatvel com a concepo humanitarista. (Na medida em que a condio de coerncia restringe a variedade, ela encerra um elemento teolgico, elemento que se traduz na adora-o dos "fatos", que um trao caracterstico de quase todo empi-rismo13.)

    NOTAS

    1. A condio de coerncia remonta pelo menos a Aristte-les. Desempenha papel importante na filosofia de Newton

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  • (embora Newton a violasse constantemente). acolhida pela maioria dos filsofos da cincia do sculo XX.

    2. Pierre Duhem, La Thorie Physique: Son objet, Sa Structure, Paris, 1914, captulo IX e X. Em seu Objective Knowledge. Oxford, 1972, pp. 204-5, Karl Popper cita-me para apoiar a afirmao de que foi dele, originalmente, a idia segundo a qual as teori-as podem corrigir uma lei relativa a observaes ou a fen-menos que elas, supostamente, devem explicar . Comete ele dois equvocos. O primeiro consiste em admitir que as refe-rncias que a ele fao constituem prova histrica de sua prio-ridade, quando no passam de manifestaes de cordialidade. O segundo equvoco est em olvidar que a idia referida j ocorre em Duhem, em Einstein e, especialmente, em Boltz-mann, que antecipou todas as observaes filosficas de The Aim of Science, Ratio, i, pp. 24 ss., e de Einstein e Duhem. Com respeito a Boltzmann, cf. meu artigo na Encyclopaedia of Philosophy, ed. Paul Edwards. Com respeito a Duhem, cf. Objec-tive Knowledge, p. 200.

    3. C. Truesdell, A Program Toward Rediscovering the Rational Mechanics of the Age of Reason, Archives for the History of Exact Sciences, vol. I, p. 14.

    4. Evidncia mais minuciosa a propsito da existncia dessa atitude e de sua influncia sobre o desenvolvimento das ci-ncias encontra-se em Thomas Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, Chicago, 1962. A atitude extremamente comum no campo da teoria quntica. Tiremos vantagem das teorias bem sucedidas de que dispomos e no percamos tempo a imaginar o que ocorreria se utilizssemos outras teorias pa-rece constituir a diretriz orientadora de quase todos os fsi-cos de nossa poca (cf., por exemplo, W. Heisenberg, Physics and Philosophy, Nova Iorque, 1958, pp. 56 e 144) e dos filso-fos cientficos (p. ex., N. R. Hanson, Five Cautions for the Copenhagen Critics, Philosophy of Science, n.. 26, 1959, pp. 325

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  • ss.). A atitude se manifesta nos artigos e nas catas de Newton (endereadas a Hooke, Pardies e outros) acerca da teoria das cores e se manifesta, ainda, em sua metodologia geral (cf. mi-nhas referncias em Classical Empiricism. The Methodological Heritage,of Newton, ed. Butts, Oxford, 1970).

    5. Tendo, em variadas condies, testemunhado esses fenme-nos, reluto muito mais do que a comunidade cientfica atual em afast-los, em d-los como simples Dreckeffekt. Cf. tradu-o que fiz de conferncias pronunciadas por Ehrenhaft, em Viena, no ano 1947, e que me disponho a fornecer mediante solicitao postal. Era melhor professor que a maioria dos ou-tros e deu a seus alunos muito melhor idia acerca do carter precrio do conhecimento fsico. Ainda recordo quo interes-sadamente estudamos a teoria de Maxwell (no manual de A-braham-Becker, em Heaviside, freqentemente mencionado nas exposies de Ehrenhaft, e nos trabalhos originais do prprio Maxwell) e a teoria da relatividade, com o objetivo de refutar sua asseverao segundo a qual a Fsica terica era desprovida de sentido; e quo surpresos e desapontados nos sentimos ao descobrir que no havia cadeia dedutiva direta a conduzir da teoria ao experimento e que muitas dedues ofe-recidas eram assaz arbitrrias. Demo-nos conta, ainda, de que quase todas as teorias apiam sua solidez em um reduzido nmero de casos paradigmticos, sendo necessrio compro-meter-lhes a estrutura para que passem a abranger os casos restantes. lamentvel que os filsofos da cincia s rara-mente se ocupem de casos de fronteira, como faziam Ehre-nhaft ou Velikovsky, preferindo ver-se reconhecidos pelos donos da cincia (e na prpria rea de naufrgio) a alcanar mais profunda percepo do empreendimento cientfico.

    6. Para mincias, ver Zs. Physik, vol. 81 (1933), pp. 143 ss.

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  • 7. Para essas investigaes (cujos antecedentes filosficos esto em Boltzmann), cf. A. Einstein, Investigations on the Theory of Brownian Motion, ed. R. Frth, Nova Iorque, 1956, onde esto reunidos os artigos importantes de Einstein e h uma biblio-grafia preparada por R. Frth. A propsito do trabalho expe-rimental de J. Perrin, ver Die Atome, Leipzig, 1920. Acerca da relao entre a teoria fenomenolgica e a teoria cintica de von Smoluchowski, ver Experimentell nachweisbare, der -blichen Thermodynamik widersprechende Molekularphnomene, Physikalische Zs., xiii, 1912, p. 1069, bem como a breve nota de Karl R. Popper, Irreversibility, or Entropy since 1905, British Journal for the Philosophy of Science, viii, 1957, p. 151, que resume os argumentos de importncia essencial. A despeito das significativas descobertas de Einstein e da esplndida apresentao que von Smoluchowski fez de suas conseqncias (Oeuvres de Marie Smoluchowski, Cracvia, 1927, vol. ii, pp. 226 ss., 316 ss., 462 ss. e 530 ss.), a presente situao da termodinmica extremamente confusa, especi-almente em razo da continuada permanncia de algumas dis-cutveis idias acerca da reduo. Para ser mais especfico, di-rei que se faz freqentemente a tentativa de determinar o e-quilbrio da entropia de um complexo processo estatstico a-travs de referncia (refutada) lei fenomenolgica, aps o que so inseridas flutuaes ad hoc. Quanto a esse ponto, cf. minha nota On the Possibility of a Perpetuum Mobile of the Second Kind, Mind, Matter and Method, Minneapolis, 1966, p. 409, e meu artigo In Defence of Classical Physics , Studies in the History and Philosophy of Science, I, n.. 2, 1970.

    De passagem, importa mencionar que, em 1903, quando Einstein iniciou seus trabalhos no campo da Ter-modinmica, havia evidncia a sugerir que o movimento browniano no poderia ser um fenmeno molecular. Ver

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  • F. M. Exner, Notiz zu Browns Molekularbewegung", Ann. Phys., n.. 2, 1900, p. 843. Exner afirmava que o movimento era de ordens de magnitude abaixo do valor a esperar com ba-se no princpio da eqipartio.

    8. A condio de adequao factual ser afastada no captulo V. 9. A teoria quntica pode ser adaptada para, assim, contornar

    numerosas dificuldades. uma teoria aberta, no sentido de que inadequaes claras podem merecer explicaes ad hoc, a-travs da introduo de operadores convenientes (ou de apro-priados elementos) na hamiltoniana, em vez de se reexaminar toda a estrutura. Uma refutao do formalismo bsico teria, pois, de evidenciar que no h ajustamento da hamiltoniana ou dos operadores usados capaz de levar a teoria a ajustar-se a um de-terminado fato. Claro est que um enunciado geral dessa es-pcie s poder decorrer de uma teoria alternativa, que h de ser suficientemente pormenorizada para permitir a realizao de testes decisivos. Isso foi explanado por D. Bohm e J. Bub, Reviews of Modern Physics, n.. 38, 1966, pp. 456 SS. As observa-es que refutam uma teoria nem sempre so descobertas com o auxlio de uma teoria alternativa; muitas vezes, j so conheci-das. Assim, a anomalia do perilio de Mercrio era conhecida muito antes da criao da teoria geral da relatividade (que, por sua vez, no foi criada com o intuito de resolver aquele pro-blema). A partcula browniana era conhecida muito antes de aparecerem as verses mais refinadas da teoria cintica. Sem embargo, a explicao que as observaes recebem, graas ao auxlio de uma teoria alternativa, leva-nos a v-las sob nova luz: verificamos que conflitam com uma concepo geralmen-te aceita. Suspeito que todos os falseamentos, inclusive o repetido Caso do Corvo Branco (ou do Cisne Negro), se baseiam em descobertas deste ltimo tipo. Para um interessantssimo debate em torno da noo de novidade,

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  • que surge em conexo com o ponto discutido, ver seo 1.1. do artigo de Elie Zahar, Why Did Einstein s Programme su-persede Lorentzs?, British Journal for the Philosophy of Science, ju-nho, 1973.

    10. L. Rosenfeld, Misunderstandings about the Foundations of the Quantum Theory , Observation and lnterpretation, ed. Kor-ner, Londres, 1957, p. 44.

    11. Para descries minuciosas, cf. Ch. H. Lea, Materials for a His-tory of Witchcraft, Nova Iorque, 1957, bem como H. Trevor-Roper, The European Witch Craze, Nova Iorque, 1969, onde h muitas referncias bibliografia antiga e moderna.

    12. A anlise do uso, para considerar apenas um exemplo, pres-supe a existncia de certas regularidades concernentes ao u-so. Quanto mais as pessoas diferem, no que concerne a idias fundamentais, mais difcil se torna desvelar essas regularida-des. Conseqentemente, a anlise do uso operar melhor em uma sociedade fechada, que se mantenha unida graas a um poderoso mito como se deu com a sociedade dos filsofos de Oxford, que existia h cerca de vinte anos. Os esquizofrnicos sustentam, muito freqentemente, crenas to rgidas, amplas e desligadas da realidade quanto as melhores filosofias dogm-ticas. Note-se, contudo, que essas crenas lhes ocorrem natu-ralmente, ao passo que por vezes, um filsofo crtico dedica toda sua vida tentativa de encontrar argumentos que criem um estado de esprito semelhante.

    13. interessante notar que so quase idnticas as trivialida-des que levaram os protestantes Bblia e as trivialidades que levam os empiristas e outros fundamentalistas ao que lhes serve de fundamento, a saber, a experincia. Assim, em seu Novum Organum, Bacon pede que todas as noes preconcebidas (aforismo 36), todas as opinies (aforismo 42 ss.) e mesmo as palavras (aforismo 59, 121) sejam conjuradas e a elas se renuncie com firme e solene

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  • resoluo e delas deve a compreenso libertar-se completa-mente, de sorte que o acesso ao reino do homem, reino que se fundamenta nas cincias, possa assemelhar-se a um acesso ao reino dos cus, onde s se concede entrada s crianas (afo-rismo 68). Em ambos os casos, a disputa (que considerao de alternativas) se v criticada; em ambos os casos somos convidados a afast-la; e, em ambos os casos, nos prometem imediata percepo, aqui, de Deus, e l, da Natureza. Para in-formao acerca do pano de fundo teortico de tal similarida-de, cf. meu ensaio Classical Empiricism, in The Methodological Heritage of Newton, ed. R. E. Butts, Oxford e Toronto, 1970. Para informao acerca dos fortes laos entre o puritanismo e a cincia moderna, ver R. T. Jones, Ancients and Moderns, Cali-frnia, 1965, captulos 5-7. Exame exaustivo dos numerosos fatores que influenciaram o surgimento do moderno empiris-mo encontra-se em R. K. Merton, Science, Technology and Society in Seventeenth Century England, Nova Iorque, Howard Fertig, 1970 (verso-livro do artigo de 1938).

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  • IV Qualquer idia, embora antiga e absurda, capaz de aperfei-oar nosso conhecimento. A cincia absorve toda a histria do pensamento e a utiliza para o aprimoramento de cada te-oria. E no se respeita a interferncia poltica. Ocorrer que ela se faa necessria para vencer o chauvinismo da cincia que resiste em aceitar alternativas ao status quo.

  • Estas consideraes encerram a discusso da primeira parte da contra-induo, que diz respeito inveno e elabora-o de hipteses incompatveis com um ponto de vista ampla-mente corroborado e de aceitao geral. Foi assinalado que o exame desse ponto de vista reclama com freqncia, uma teoria alternativa, incompatvel com a vigente, de sorte que a adver-tncia (newtoniana) feita no sentido de que se adiem as alterna-tivas at que a primeira dificuldade se tenha manifestado equi-vale a colocar o carro adiante dos bois. O cientista interessado em conseguir o mximo contedo emprico, desejando com-preender tantos aspectos de sua teoria quantos possvel, adota-r metodologia pluralista, comparar as teorias com outras teo-rias e no com experincias, dados ou fatos e tentar antes aperfeioar do que afastar concepes que aparentemente no resistem competio l. E isso porque as alternativas de que ele necessita para manter o processo da competio tambm so colhidas no passado. Em verdade, cabe retir-las de onde quer que seja possvel encontr-las de mitos antigos e preconcei-tos modernos; das lucubraes dos especialistas e das fantasias dos excntricos. Toda a histria de uma disciplina utilizada na

    67

  • tentativa de aprimorar seu estgio mais recente e mais avanado. A separao entre a histria de uma cincia, sua filosofia e a cin-cia mesma desaparece no ar, o mesmo acontecendo com a separa-o entre cincia e no-cincia2.

    Essa posio, conseqncia natural dos argumentos acima expostos, sofre ataques freqentes no atravs de recurso a contra-argumentos, que seriam fceis de repelir, mas atravs de recurso a questes retricas. Se qualquer metafsica admiss-vel, escreve a Dra. Hesse, ao fazer resenha de um anterior en-saio meu3, pe-se a questo de saber por que no recuamos para explorar a crtica objetiva da cincia moderna que est presente no aristotelismo ou mesmo no vodu? insinuando que uma crtica dessa espcie seria de todo risvel. Tal insinuao, infeliz-mente, presume sejam os leitores muito ignorantes. Muitas vezes se conseguiu progresso graas a uma crtica do passado, exata-mente do tipo que ela rejeita. Depois de Aristteles e Ptolomeu, a idia de que a terra se move estranha, antiga e inteiramente ridcula4 concepo pitagrica foi jogada ao monte de entu-lhos da histria, s vindo a ser revivida por Coprnico e sendo por ele utilizada como arma para frustrao dos que a negavam. Os escritos mgicos desempenhavam importante papel nessa re-vivescncia, ainda no perfeitamente compreendida5, e foram es-tudados nada menos que pelo grande Newton6. Esses desenvol-vimentos no surpreendem. Jamais se consegue estudar todas as ramificaes de uma idia e no h concepo a que se te-nha dado a ateno por ela merecida. Teorias so substitudas por verses mais de acordo com as inclinaes da poca e so abandonadas muito antes de terem tido ocasio de exibir suas virtudes. Alm disso, doutrinas antigas e mitos primitivos s se afiguram bizarros e desprovidos de sentido porque seu contedo cientfico ou no conhecido ou adulterado por fillogos e antroplogos no familiarizados com os mais sim-ples conhecimentos fsicos, mdicos ou astronmicos7. Vo-du, a pice de resistance da Dra. Hesse, um caso em pauta. Ningum o conhece e todos a ele se referem como

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  • um paradigma de atraso e confuso. Sem embargo, o vodu conta com uma base material firme, embora ainda no suficientemente compreendida, e um estudo de suas manifestaes poderia enri-quecer-nos e, talvez, levar-nos a rever nosso conhecimento acerca de fisiologia8.

    Exemplo ainda mais interessante o do ressurgimento da medicina tradicional, na China comunista. Partimos de um ponto conhecido9: um grande pas, de grandes tradies, submetido ao domnio ocidental e explorado segundo as formas costumeiras. Uma gerao nova reconhece ou julga reconhecer a superioridade material e intelectual do Ocidente e a estende cincia. A cincia importada, ensinada e afasta todos os elementos da tradio. Tri-unfa o chauvinismo cientfico: O compatvel com a cincia deve permanecer, o no compatvel com a cincia deve perecer10. Ci-ncia, nesse contexto, significa no apenas um mtodo especfico, mas todos os resultados que o mtodo at ento produziu. O in-compatvel com esses resultados deve ser eliminado. Mdicos da velha espcie, por exemplo, devem ser ou impedidos de exercitar a profisso ou reeducados. A medicina das ervas, a acupuntura, a aplicao da moxa e a doutrina que as justifica so coisas do pas-sado, que no mais devem ser tomadas a srio. Essa foi a atitude adotada at aproximadamente 1954, quando a condenao de e-lementos burgueses do Ministrio da Sade deu comeo a uma campanha em prol do retomo medicina tradicional. No h d-vida de que a campanha teve inspirao poltica. Encerrava pelo menos dois elementos, a saber. (1) identificao da cincia ociden-tal a cincia burguesa e (2) recusa, por parte do partido, de permi-tir que a cincia fugisse superviso poltica11 e recusa de conce-der privilgios especiais aos praticantes da arte mdica. Apesar disso, a campanha propiciou a reao necessria para vencer o chauvinismo cientfico da poca e para tornar possvel a plu-ralidade (hoje, dualidade) de concepes. (Este um ponto importante. Ocorre freqentemente que certas partes da cin-cia se tornem rgidas e intolerantes, de sorte que a diversi-

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  • ficao h de ser assegurada por meios externos e atravs de re-cursos polticos. Claro est que no se pode garantir o xito do procedimento ver o caso Lysenko. Isso, entretanto, no afasta a necessidade de a cincia sujeitar-se a controles no-cientficos.)

    Ora, o dualismo referido e politicamente assegurado con-duziu a descobertas interessantssimas e muito perturbadoras, as-sim na China como no Ocidente, e levou ao reconhecimento de que h efeitos e meios de diagnstico a que a medicina moderna incapaz de chegar e para os quais no fornece explicao12. Paten-tearam-se considerveis lacunas da medicina ocidental. E no cabe esperar que o enfoque cientfico habitual venha, ao final, a pro-porcionar uma resposta. No caso da medicina das ervas, esse en-foque abre-se em duas fases13. Em primeiro lugar, a mistura de er-vas analisada, para determinao de seus constituintes qumicos. Em seguida, so determinados os efeitos especficos de cada qual desses constituintes e, com base nisso, explicado o efeito do com-posto sobre um particular rgo. Essa forma de proceder descarta a possibilidade de que o composto herbceo, considerado em seu todo, altera o estado de todo o organismo e de que seja esse novo estado da totalidade do organismo (e no uma especfica parte da mistura de ervas) o responsvel pela cura do rgo enfermo. Aqui, tal como em outros casos, o conhecimento decorre de uma plura-lidade de concepes antes que de determinada aplicao da ideo-logia preferida. Reconhecemos que a pluralidade h de ser assegu-rada por entidades no-cientficas, suficientemente poderosas para sobrepujar as instituies cientficas de maior prestgio. Exemplos seriam a Igreja, o Estado, o partido poltico, o descontentamento popular ou o dinheiro; o elemento com maior possibilidade de a-fastar o cientista daquilo que sua conscincia cientfica lhe diz dever perseguir ainda o dlar (ou, mais recentemente, o marco alemo).

    Os exemplos de Coprnico, da teoria atmica, do vodu e da medicina chinesa mostram que at mesmo a teoria mais

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  • avanada e aparentemente mais precisa no invulnervel, po-dendo ser alterada ou inteiramente destruda com o auxlio de i-dias que a vaidade da ignorncia j tenha lanado nos cestos de resduos da Histria. Essa a via pela qual o conhecimento de hoje pode, amanh, passar a ser visto como conto de fadas; essa a via pela qual o mito mais ridculo pode vir a transformar-se na mais slida pea da cincia.

    O pluralismo das teorias e das doutrinas metafsicas no apenas importante para a metodologia; tambm parte essencial da concepo humanitria. Educadores progressistas tm sempre tentado desenvolver a individualidade de seus discpulos, para as-segurar que frutifiquem os talentos e convices particulares e, por vezes, nicos que uma criana possua. Contudo, uma educa-o desse tipo tem sido vista, muitas vezes, como um ftil exerc-cio, comparvel ao de sonhar acordado. Com efeito, no se faz necessrio preparar o jovem para a vida como verdadeiramente ela ? No significa isso dever ele absorver um particular conjunto de concep-es, com excluso de tudo o mais? E, se um trao de imaginao nele permanecer, no encontrar a