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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES FORMAS DE VIDA (Arte como matéria vivida) Camila Moreira Santana Roriz Trabalho de Projeto Mestrado em Pintura Trabalho de Projeto orientado pela Professora Auxiliar Convidada Ana Mata 2019

FORMAS DE VIDA - ULisboa · about organic life and artificial life. The differences we constantly create between what is considered organic for what would be mechanical, technological

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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE BELAS-ARTES

    FORMAS DE VIDA

    (Arte como matéria vivida)

    Camila Moreira Santana Roriz

    Trabalho de Projeto

    Mestrado em Pintura

    Trabalho de Projeto orientado pela Professora Auxiliar Convidada Ana Mata

    2019

  • DECLARAÇÃO DE AUTORIA

    Eu, Camila Moreira Santana Roriz, declaro que o presente trabalho de projeto de

    mestrado intitulado Formas de vida (Arte como matéria vivida) é o resultado da minha investigação

    pessoal e independente. O conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão devidamente

    mencionadas na bibliografia ou outras listagens de fontes documentais, tais como todas as

    citações diretas ou indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas

    acadêmicas.

    Camila Moreira Santana Roriz

    Lisboa, 30 de maio de 2019

  • RESUMO

    Na tentativa de falar sobre o meu processo experimental artístico busquei inspiração

    em algumas artistas e autoras: Donna Haraway, bióloga e filósofa, que acredita na potência do ato

    de contar histórias como uma possibilidade de reinventar maneiras de viver em um mundo

    danificado; Octavia Butler, autora de livros de Ficção Científica que trazem questionamentos

    quanto aos padrões que nos são introjetados ao longo da vida na nossa sociedade ocidental.

    Maria Lassnig, pintora que experimentou com os movimentos artísticos de sua época, mas que se

    permitiu contar as suas próprias narrativas internas. E outros artistas que continuam resistindo e

    fazendo arte mesmo com todas as adversidades que consistem em estar nesse mundo atualmente.

    Dessa forma, existe uma tentativa de falar sobre as diferentes formas de vida, além de uma

    vontade de desvendar os constantes e diversos conceitos que são criados para definirem um ser

    vivo. Trago questionamentos sobre a vida orgânica e a vida artificial. As diferenças que criamos

    constantemente entre o que é considerado orgânico para o que seria mecânico, tecnológico. A

    partir dessa ideia gerou-se uma curiosidade em pensar em formas de mutação, o ser humano

    como uma rede de reações químicas que tem como resultado final o que vemos superficialmente.

    Trago trabalhos de artistas que buscam novas visualidades, que contrapõem o que nos foi

    determinado como padrão ou normal. Durante o processo de investigação procurei caminhos

    para traduzir esse interesse teórico com um trabalho visual pensado através da essência pictórica,

    a qual foi usada durante muitos séculos como ilustração de narrativas. Uso a estrutura da pintura,

    como a composição de cores e formas, e a transporto para softwares de edição de imagens 3D e

    aplicativos de realidade virtual para realizar os meus projetos. Refiro também, a jogos eletrônicos

    como uma potente possibilidade de aprendizagem e como uma nova maneira de fazer arte.

    Palavras-Chave:

    Formas de vida; Pintura; Storytelling: Imersão; VR; Experimentação

  • ABSTRACT

    In an attempt to talk about my experimental artistic process I found inspiration from some artists

    and authors: Donna Haraway, biologist and philosopher, who believes in the power of

    storytelling as a possibility to reinvent ways of living in a damaged world; Octavia Butler, author

    of science fiction books that raise questions about patterns that are shown to us throughout our

    Western society. Maria Lassnig, is a painter who experimented with the artistic movements of her

    time but even so allowed herself to tell her own internal narratives. And other artists who

    continue to resist and make art even with all the adversities that consist of being in this world

    today. Thus, i begin with a research about the different forms of life, a desire to unveil the

    constant and diverse concepts that are created to define a living being. I made some questions

    about organic life and artificial life. The differences we constantly create between what is

    considered organic for what would be mechanical, technological. From this idea a curiosity

    emerged in thinking of forms of mutation, the human being as a network of chemical reactions

    that has as final result what we see superficially. I write about some artists who seek new

    visualities, which contrast what has been determined to us as standard or normal. During the

    process of investigation I looked for ways to translate this theoretical interest with a visual work

    thought through the pictorial essence, which has been used for many centuries as illustration of

    narratives. I use the structure of the painting, like the composition of colors and shapes, and I

    transport it to 3D image editing software and virtual reality applications to materialize my

    projects. I refer also to electronic games as a potent learning possibility and as a new way of

    making art.

    Key words:

    Life forms; Painting; Storytelling: Immersion; VR; Experimentation

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeço, primeiramente, à orientadora Ana Mata que aceitou a me auxiliar e sempre

    ofereceu a sua compreensão e suporte necessário para o êxito na conclusão deste trabalho. À

    minha mãe, ao meu pai pelo apoio que me deram sempre. À minha irmã Liza, pela força que me

    deu em um momento tão complexo em minha vida (e por ter me ajudado com a formatação

    desta tese de mestrado). Aos artistas Alpha Rats, Aun Helden, Franco Palioff e Gabriel Massan

    que cederam parte de seus tempos para conversarem comigo sobre suas práticas artísticas. Aos

    artistas que se permitem e se atrevem a desafiar o sistema de suas épocas, que são experimentais,

    fazem ruídos e brincam com o Cosmos. Definitivamente, são essas pessoas que me inspiram –

    quem tem a coragem de ser realmente como é, mesmo quando o mundo dita o contrário. Ao

    meu amigo Luquinhas que eu amo muito e a todos os amigos que sabem quem o são e que me

    deram força para concluir algo tão complexo para mim que é a escrita acadêmica e suas

    formatações.

    Dedico essa tese à Donna Haraway, à Octavia Butler, aos Antifascistas, Antirracistas,

    às pessoas que realmente se importam. Pessoas que buscam contar novas histórias e estórias para

    lidar com o problema que é estar nesse mundo em narrativas visuais e práticas do dia-a-dia.

  • “We moderns are faced with the necessity of rediscovering the life of the spirit;

    we must experience it anew for ourselves. It is the only way in which we can

    break the spell that binds us to the cycle of biological events”.

    Carl Jung

    “Plants, however, they speculated, “do not communicate” and so have no

    language. Something else is going on in the vegetative world, perhaps something

    that should be called art.”

    Donna Haraway

  • ÍNDICE

    INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 1

    1. FORMAS DE VIDA ..................................................................................................... 4

    1.1 A POTÊNCIA DA IMAGINAÇÃO E DO ATO DE CONTAR HISTÓRIAS12

    1.2 A PINTURA COMO PRIMEIRA FORMA DE NARRATIVA VISUAL ........ 19

    1.2.1 MARIA LASSNIG

    Narrativas internas ................................................................................................................. 21

    1.2.2 MARIA LASSNIG

    Vídeo como autorretrato em movimento .......................................................................... 27

    1.3 HISTÓRIAS INTERATIVAS – GAMES COMO UM POTENTE DISPOSITIVO

    DE APRENDIZAGEM ........................................................................................................... 31

    2. A IMAGEM PICTÓRICA FRAGMENTADA NO ESPAÇO DIGITAL ..... 36

    2.1 A CRIAÇÃO DE MUNDOS EM SOFTWARES 3D .......................................... 40

    2.2 VR COMO MÍDIA ARTÍSTICA ............................................................................. 47

    3. CYBERFEMINISM & POST-CYBERFEMINISMS .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52

    3.1 HACKEANDO O UNIVERSO ............................................................................... 59

    3.1.1 OS MEUS PROCESSOS ....................................................................................................... 59

    3.1.2 OS MEUS PROCESSOS COLABORATIVOS ................................................................ 65

    CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 69

    REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 71

    FONTES DAS IMAGENS ................................................................................................. 73

  • 1

    INTRODUÇÃO

    Desde os primórdios buscamos colocar a compreensão da natureza e mundo em

    catálogos e arquivos que se acumulam em determinadas instituições, para que talvez seja possível

    a comunicação, a descrição de algo por meio da língua, a busca pela compreensão, pelo

    entendimento. O primeiro desafio enfrentado ao começar esse trabalho foi organizar e faxinar a

    bagunça de um quarto caótico, o Universo, Cosmos – o puro caos indecifrável e mutante.

    A possibilidade de poder escrever sobre qualquer coisa transformou-se em

    dedicação. A escolha de uma autora e o estudo da sua obra foi fundamental para iniciar o

    processo de desenvolvimento deste trabalho. Donna Haraway, bióloga, filósofa e escritora

    tornou-se para mim uma fonte infinita de inspiração. Os seus estudos, a sua escrita seriamente

    irônica it’s all about life. Outra autora bastante inspiradora foi Octavia Butler e suas estórias inter-

    espécies em um mundo pós-apocalíptico, que nos fazem refletir sobre determinados padrões de

    funcionamento da nossa sociedade ocidental. Ler sobre os seus personagens e imaginá-los

    visualmente deu um impulso à construção do meu trabalho prático. São seres construídos, sem

    gênero definido, mutantes, que agora fazem parte das minhas narrativas. A arte possibilita criar o

    impossível, o não tangível, a maquiagem transforma o corpo e torna-se arma/instrumento para

    qualquer barreira da normatividade.

    O título do trabalho Formas de Vida (Arte como matéria vivida), vem da reflexão de que

    produzir arte em um mundo danificado é uma forma de estar e lidar com o problema de fazer

    parte desse planeta. Acredito que não há arte sem a vida, as duas acontecem juntas a todo

    momento, como uma correnteza que não cessa em um rio. Cada vez mais imagino o lugar de

    exposições de instituições, o tal do cubo branco, como uma realidade de privilégios distantes que

    se distanciam cada vez mais da vida. Ser artista não é só materializar ideias ou sensações, mas

    também viver isso na carne e alma diariamente.

    Há uma tentativa de desbravar o que é considerado como uma matéria viva,

    pensando quais são os tipos de vida que conhecemos no planeta. Aponto a vida biológica, tal

    qual nos foi ensinada e a vida artificial, um sistema mais ou menos recente que vem evoluindo

    cada vez mais. Mais do que isso, é sabido que a vida é tão múltipla que achar um único sentido é

    impossível. Por isso a importância de perceber e respeitar a sua multiplicidade. Ser vivo e estar

    vivo é um processo experimental em eterna mutação. Aqui foi procurada a possibilidade de

    pensar no ser humano como resultado visual de reações químicas e imaginá-las em movimento,

    com outras visualidades. A artista brasileira Aun Helden, que será apresentada, traz todo esse

  • 2

    estranhamento da presença de um ser mutante. Por meio da incorporação prostética ela cria

    diferentes corpos e corpas1.

    A seguir revela-se a potência no ato de contar histórias, pensando como elas podem ser

    dispositivos de mudanças no mundo em que vivemos. Donna Haraway, enfatiza sobre a nossa

    urgência de resoluções práticas e pensamentos de poucas opções. A autora questiona o

    pensamento, que tem uma certa base ocidental, de que nós humanos nos enxergarmos como

    seres excepcionais, no topo da hierarquia universal sem muitas vezes entendermos e termos a

    consciência das infinitas relações com outros seres e elementos da natureza. A hierarquia,

    claramente, não se dá apenas por outras espécies, mas também entre todos os humanos, na

    criação de padrões que nos separam e que nos exterminam em função de privilégios abundantes

    para poucos.

    As pessoas que não se encaixam nesses padrões impostos pela sociedade e mídia

    sofrem pelo sentimento de não pertencimento. Essa sensação gera uma confusão sobre suas

    próprias identidades. Estórias de Ficção Científica, como as de Octavia Butler, conseguem

    colocar como protagonistas pessoas que poderiam ser consideradas fora deste padrão

    determinado. Por meio de estórias e histórias é possível normalizar personagens que são sempre

    colocados às margens, e a partir disso empoderar essas pessoas. É possível criar

    representatividades para diversos tipos de seres fazendo com que hajam impulsos de vitalidade

    individuais. Acredito que assim seja possível mudar uma comunidade, mudar a vida de pessoas

    que nunca tiveram uma perspectiva de um futuro melhor.

    Não só através das palavras, é possível contar estórias por outras estruturas, como

    por exemplo, através de linguagens plásticas. Ao estudar sobre a história da Pintura, percebemos

    que a narrativa visual está presente em nossas vidas há milênios de anos, desde a Pré-História.

    Nos primórdios da História Ocidental, na Grécia Antiga, personagens eram pintados em vasos de

    cerâmica, representando cenas cotidianas, batalhas, mitologias e outros aspectos da cultura grega.

    Mais tarde esse tipo de pintura foi classificado como Pintura Histórica, estilo que esteve

    intimamente ligado a encomendas estatais, para retratar guerras e missões nacionais com o

    objetivo de “educar” o povo, ou contar a história pela perspectiva dos líderes governamentais.

    A artista Maria Lassnig conta um outro tipo de narrativa visual, suas histórias são

    pinturas que tem como conceito chave a tentativa e intenção de retratar algo que não vemos mas

    sim que sentimos internamente. Ao longo de mais de sessenta anos a artista tentou transformar

    em imagens as suas próprias sensações corporais. Uma narrativa que diz sobre o processo de

    envelhecer como ser humano, o tempo em pinturas amorfas.

    1 “Corpas” – termo usado pela artista Aun Helden

  • 3

    Com o avanço da tecnologia, a câmera fotográfica tornou-se acessível a uma parcela

    da população a partir do século XX, surgindo a prática do retrato das histórias privadas. Se

    durante muito tempo, a imprensa controlou quais fotografias deveriam ser publicadas, da mesma

    maneira que os pintores se pediam as narrativas do sucesso de um povo, hoje em dia, com o

    vinda da Internet, dos smartphones e das redes sociais, é possível compartilhar e trocar um número

    ilimitado de imagens, levando às pessoas a possibilidade de contar as suas próprias histórias

    publicamente.

    Nos anos de 1990, o grupo “VNS Matrix”, formado por quatro mulheres

    Australianas, deu partido ao primeiro movimento Cyber-feminista. O pensamento que este grupo

    carregava já estava sendo disseminado simultaneamente em algumas partes do mundo. Apontava

    um reflexo de uma sociedade cada vez mais global, que visava e ainda busca transformar cenários

    identificados como masculinos. Inserindo assim mulheres, pessoas de diferentes gêneros, cores,

    nacionalidades e etc., num espaço de potência e tecnologia. A minha criação surge da herança

    destes movimentos históricos.

    Com a intenção de criar outros conceitos, outros métodos, e para construir outras

    estruturas, usei o meu notebook como principal ferramenta para produção dos meus trabalhos.

    Aconteceu-me não ter um lugar fixo, e estar em um fluxo migratório constante que me limita o

    uso de espaço e certos tipos de materiais. Por isso encontrei no programa de criação de objetos e

    cenários 3D, uma possibilidade infinita criativa. Cito dois artistas Gabriel Massan e Franco

    Palioff, que trabalham com esses programas e que criam os seus próprios universos. Vejo esses

    softwares como uma tela em branco, a tinta que nunca acaba em formato de pixels coloridos. A

    disposição de cores quase infinita me permite criar inúmeras pinturas. Telas em diferentes planos,

    arquiteturas construídas digitalmente, personagens às vezes bípedes com corpos estranhos.

    Corpos fora do que é tido como padrão, com cores que não nos pertencem, seres em harmonia

    com diferentes ambientes, estórias e narrativas a serem potencialmente desenvolvidas de um

    modo plástico e mutável.

    Além disso percebi a importância de criar não apenas sozinha, mas fazendo trabalhos

    com outras pessoas, outras e outros artistas, que aceitam se envolver com o meu trabalho. São

    trocas que nos acrescentam e nos ajudam a desfazer uma estrutura de mercado de arte tão sólida

    e tão limitante, também fundada na unicidade do autor. Estas são trocas que nos potencializam e

    nos legitimam como artistas independentes de um sistema falido.

  • 4

    1. FORMAS DE VIDA

    O título da tese diz respeito ao que poderíamos chamar de vida, a complexidade que

    é estar vivo, viver e experienciar o problema de se relacionar com o mundo. Existem diferentes

    formas de vida no Universo, e por isso, é importante o questionamento sobre o que definimos

    como uma matéria ou um ser vivo. Nos diferenciamos constantemente do que seria o orgânico

    para o que seria mecânico, tecnológico. Aprendemos Biologia ao longo do Ensino Fundamental e

    esse estudo torna-se determinante para nós, elucidando-nos sobre as formas de vida existentes do

    nosso planeta. Esse tipo de aprendizado é algo tão enraizado na nossa sociedade que dificilmente

    refletimos sobre outras possibilidades e sobre o que pode ser definido como uma matéria viva.

    Vários cientistas já tentaram estipular as características necessárias para dizer o que

    poderia determinar um ser vivo. Mas há diversas problemáticas para chegar à uma única

    conclusão sobre isso. Não existe uma definição exata, mas há vários tipos de descrições que nos

    levam à múltiplos lugares. Alguém, por exemplo, poderia determinar que algo é vivo por respirar.

    É possível replicar então que existem diversas bactérias que não respiram, que recebem energia

    por outros processos como a fermentação ou a oxidação do enxofre e que mesmo não

    respirando são vivas.

    Um ser vivo pode ser algo que possui células vivas dentro de organismos, ou podem

    ser membros de colônias sociais de insetos, cujo funcionamento é cooperativo e cuja

    complexidade é emergente. Mas isso é apenas mais uma outra definição do que seria a vida.

    Livros e filmes de Ficção Científica, geram uma grande curiosidade sobre outros

    seres além da terra, criaturas que estão ainda mais longe de nós.

    Science fiction and the promise of alien life and other worlds, perhaps in combination

    with the failure of NASA and other space agencies to produce them, does seem to have

    informed the synthetic impulse in Artificial Life. Langton himself indicates that it is

    more than simply an analytic method based on putting living things together rather

    than taking them apart (40). As a synthetic approach to biology, ALife aims to do more

    than ‘simply’ recreate “the living state”. It aims to synthesise ‘any and all biological

    phenomena, from viral self-assembly to the evolution of the entire biosphere’ 2

    A autora Sarah Kember (1963), descreve aqui que talvez um dos impulsos para a criação de vidas

    artificiais no nosso mundo, seja pela falha da NASA e de outras agências espaciais, de tornarem

    real a promessa promessa de localizar vida em outros planetas. Talvez seja possível a vida

    inclusive em planetas do nosso próprio sistema solar como Marte, ou até mesmo Júpiter, mas

    ainda não há sinais de informações de uma outra civilização. E se há outros sistemas similares ao

    2 KEMBER, Sarah – Cyberfeminism and Artificial Life, p. 62.

  • 5

    nosso, a probabilidade de outras civilizações é ainda maior. Há teorias de que poderíamos-nos

    comunicar com outras civilizações através de tecnologias como radiotelescópios.

    O recebimento de uma mensagem ou sinal de vida em um outro mundo seria

    definitivamente um dos grandes eventos da história humana. Carl Sagan (1934-1996), cientista

    norte-americano, disse em um dos seus documentários que “se uma outra civilização quisesse

    comunicar conosco existiria a possibilidade deles transmitirem alguma forma de sinal. Um sinal

    feito de números primos poderia ser uma espécie de aceno, por exemplo. Afinal, esse sinal não é

    um processo astrofísico natural. Mesmo com toda a tecnologia que está cada vez mais

    desenvolvida na Terra não há evidências confiáveis de que tenhamos sido visitados ainda.” 3

    The synthesis of these phenomena need not be restricted to carbon-chain chemistry and

    may well lead ‘beyond life-as-we-know-it into the realm of life-as-it-could-be’. As a

    generator of life like behaviour, Langton outlines how Artificial Life could attempt to

    create life in vitro, an how this ‘would certainly teach us a lot about the possibilities for

    alternative life-forms within the carbon-chain chemistry domain that could have [sic] (but

    didn’t) evolve here’. It is important to draw contemporary developments in

    biotechnology and genetic engineering (such as cloning, transgenesis and

    xenotransplantation) into a more broadly defined frame of artificial life. For Langton,

    however, the creation of life in vitro requires a costly and complex infrastructure and

    would not, ultimately, provide enough new information about possible life-forms.

    Computers, on the other hand, provide a relatively cheap and efficient medium for the

    creation of life ‘in silico’. The main proviso here is that life has to be understood or

    defined in purely informational terms. Once this is established, then it is simply a case of

    stating that ‘the computer is the tool for the manipulation of information’ and that it is

    capable of supporting ‘informational universes within which dynamic populations of

    informational “molecules” engage in informational “biochemistry”. 4

    A curiosidade nos leva à ciência, a ciência nos leva às experiências e à experimentação

    do que já conhecemos. Ao explorar com o que já é de conhecimento nosso, existe a tendência de

    pensar a mutação, a mistura de conhecimentos existentes, para entender melhor como o nosso

    corpo e nossas reações químicas funcionam, como outros corpos, animais, plantas, seres diversos

    se relacionam nessa cadeia interconectada. Mas, além da ciência, há diversas áreas além da moral,

    da ética e das religiões que bloqueiam muitos tipos de experimentos biológicos. No final da

    citação acima destacada, Kember exemplifica que uma maneira mais simples e barata de

    manipular essas informações seria pelo meio computacional. É importante entender, ou tentar

    definir, como a vida acontece e como podemos relacionar a vida humana, por exemplo, com um

    computador.

    3 SAGAN, Carl, - Episódio 03 - A Harmonia dos Mundos Dublado HD,

    Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oCIZIoD8XOc [Consulta em 18.03.2019] 4 KEMBER, Sarah – Cyberfeminism and Artificial Life, p. 62.

    http://www.youtube.com/watch?v=oCIZIoD8XOc

  • 6

    The question of whether or not they are really alive depends of course on shifting and

    ever contestable definitions of life; to create artificial life in software, hardware and

    wetware. Alife is the enaction, through biotechnology, of a creationist and

    posthumanist fantasy. More than a bad case of anthropomorphism, alife exemplifies a

    global metaphysics centred on autonomy, artificiality and network systems which are

    more than the sum of their parts. The configuration of human and machine here is not

    merely instrumental but imaginatively instrumental – it (arguably) works, but more by

    (biological) association than by logic. Complex systems such as minds, machines and

    cultures are no longer deemed to be under control: programmable, analysable, reducible

    to their component parts. Rather, they are self-organising and emergent, and it is these

    designations of distributed agency and potentiality which – much more than the

    master/slave rhetoric of AI – constitute the zeitgeist. 5

    Existe um equívoco ao colocar a máquina como algo externo ao ser humano.

    Vivendo em uma sociedade cada vez mais limpa de fios é importante entender que essas

    máquinas já fazem parte de nós. As reações químicas do corpo humano e eletrônicas do corpo

    máquina acontecem da mesma forma; por trocas de informações. Talvez a história de um

    personagem criado em softwares ou dentro dos computadores seja quase equivalente ao que

    vivemos na vida física externa. Usar essas ferramentas que vivem no sistema de um computador

    pode ser usar ferramentas consideradas geradoras de vida.

    ‘How does life arise from the nonliving? What are the potentials and limits of living

    systems? How is life related to mind, machines and culture?’ (Bedau et al. 2001: 263).

    [...] The problems which are highlighted almost exactly reproduce the humanist

    bioethics articulated within genomic discourse: the sanctity of the biosphere; the

    sanctity of human life; responsibility towards new forms of artificial life and the risk

    entailed in exploring the possibilities of artificial life.6

    É possível usar muitas metáforas para definir o que chamamos de vida. Ao pensar no

    próprio corpo humano (o ser provido de razão, emoção e consciência), percebemos que para

    existir vida é necessário toda uma cadeia de ações e reações que interagem entre si e com o meio

    ambiente à sua volta. A vida acontece nas diversas interações que existem entre diferentes

    elementos e seres, ela é ativada por meio de conexões e ligamentos. Os órgãos no corpo humano,

    por exemplo, não possuem vida se não receberem a informação de que cada um necessita.

    Entidades vivas não apenas coordenam informações, elas coordenam fluxos de matéria e energia.

    “Sob condições cósmicas muito gerais, as moléculas da vida são geradas por elas

    mesmas, elas remontam-se espontaneamente. Devido aos bilhões de anos de evolução é

    concebível que pode haver algum impedimento como algum código genético, mesmo isso sendo

    muito improvável.”7

    5 Ibid., p. 8. 6 Ibid., p.79. 7 Trecho do documentário de SAGAN, Carl – Possibilidade de Civilizações Extraterrestres (em português).

    Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jSBR13D2fsw [Consulta:18.03.2019]

    http://www.youtube.com/watch?v=jSBR13D2fsw

  • 7

    Existe o pensamento de que o nosso corpo é um templo. Designá-lo assim é colocá-lo

    em um lugar sagrado, atribuí-lo ao que não pode ser tocado ou ao que não pode ser

    transformado ou modificado. Kember, argumenta sobre a sacralidade que envolve a biosfera e a

    vida humana articulada por discursos conservadores que envolvem diferentes áreas. Acredito que

    há uma espécie de medo que circunda esse pensamento, o qual gera uma imposição colocada em

    massa pela resistência reacionária da não mudança biológica. Um discurso matador de vidas, pois

    existe uma diversidade de gêneros muito grande no mundo em que vivemos. E isso não é

    respeitado muitas vezes por quem vive uma cisheteronormatividade que predomina a nossa

    sociedade. Muitas pessoas não precisam lidar com o estranhamento causado por quem vive uma

    outra visualidade. Existem pessoas que não entendem o que é sentir-se fora do padrão e portanto

    não aceitam o que seria considerado diferente do que elas vivem nos seus cotidianos. Dessa

    forma, discursos de ódio são criados por quem receia o que pode ser mudado na nossa sociedade.

    A life cannot be contained and reduced by a rationalist assessment of its strong claim to

    synthesise life-as-it-could-be. Life-as-it-could-be is the science fact and fiction of the

    present neo-biological age characterised by the convergence between natural and

    artificial systems.8

    Essa convergência de sistemas naturais e artificiais se relacionam o tempo inteiro na

    sociedade atual em que vivemos. “A vida como poderia ser”9 ilustrada em qualquer livro de

    Ficção Científica do século XX, já está presente no tempo em que vivemos. A biologia e a

    tecnologia estão cada vez mais interligadas, vivendo juntas numa transferência de dados

    ininterruptos.

    O corpo humano é o resultado visual de um processo biológico organizacional. De

    uma forma geral não é comum pensar constantemente em tipos de mutações visuais. A moda,

    cirurgias plásticas ou a maquiagem artística, por exemplo, possibilita na superfície de um

    determinado corpo o estranhamento, ela pode criar individualidades. Mas, talvez, é válido pensar

    também que no momento em que vivemos em alguns casos padrões são criados por estarmos em

    uma sociedade capitalista que produz tudo em massa.

    É possível fabricar uma subjetividade política, por meio de moléculas bioquímicas

    que formam o nosso tecido limítrofe corpóreo. A nossa linguagem visual é o resultado das

    transferências de informações que trocamos uns com os outros. A pele é o limite quando

    estamos em um determinado plano físico, o limite da nossa corporeidade. Criarmos mutações

    visuais (por meio da pele, da vestimenta, da maquiagem e etc.) pode ser uma importante

    subversão à normatividade cotidiana. O artista multimídia Stelarc dizia que o nosso corpo é

    8 KEMBER, Sarah – Cyberfeminism and Artificial Life p. 8 9 Life-as-it-could-be citado por KEMBER, Sarah – Op. cit., p.8

  • 10 STERLARC, Psycho Cyber, 1997

    A qual entrevistei para construir esse trabalho 11

    8

    obsoleto. No momento atual em que vivemos o corpo está cada vez mais se dissolvendo em

    pixels. Ele passa pelo processo visual digital, por uma ressignificação. Se o resultado é a imagem, o

    corpo não é mais o limite. Há uma citação de Stelarc que é muito pertinente em relação à esse

    assunto:

    “We would like to believe human nature is this sort of a constant spiritual absolute

    entity but in fact what it needs to be human is constantly being constructed.”10

    Ao falar da força que existe em modificarmos e desafiarmos a estética normativa,

    percebemos o estranhamento que nos causa ao vermos o trabalho da artista brasileira Aun

    Helden11 (1997), que surge neste estudo como ponto exemplar para mostrar como um artista

    pode recolocar a principal questão aqui primeiramente enunciada: o que chamamos de vida.

    Aun cria performances nas quais se transforma e descodifica esse visual normativo

    binário humano. Ao vermos os seus trabalhos (com nossas manias humanas por definições), nos

    deparamos com um bicho ou uma bicha, que não sabemos bem como podemos chamá-la,

    poderia ser um, ou uma alienígena ou uma mutação de insetos com o corpo humano. É

    interessante pensar na potência que o efeito visual traz, pois afinal vivemos por meio de

    intercâmbios químicos nos quais seus resultados são rastros imagéticos.

    Fig 1 – Performance de Aun Helden, São Paulo, 2018

  • 13 Trecho da entrevista com Aun Helden. 14 Ibid.

    9

    Aun Helden, fala sobre o seu trabalho de um ponto de vista brasileiro/latino-

    americano, pois “principalmente quando falamos em termos de gênero e sexualidade não há

    como descontextualizar o lugar de onde a sua “corpa”12 está vivendo. Buscamos nomenclaturas

    para nos definirmos e definirmos o outro, ou a outra. As palavras “bixa” e “travesti” são palavras

    brasileiras e latino-americanas que contextualizam a existência de corpos que vivem aqui. ”13

    Ela explica o nascimento do seu trabalho a partir de uma das nomenclaturas

    essenciais que usamos ao determinar um sujeito, como o ou a apontamos. “O meu trabalho

    começou a nascer, talvez, quando eu tive um contato assertivo com a palavra “bixa”. “Bixa” é

    uma palavra que significa muito para o meu trabalho porque é nela que eu comecei a dar valor ao

    estranhamento, ao estranho, a estranha, a entranha. ” 14

    O que pode causar estranhamento é o ponto de partida de Aun Helden ao pensar na

    normatividade de um construtivismo biológico, uma resistência anatômica. Essas dúvidas surgem

    a partir do que é considerado anormal. A possibilidade de ver e rever o nosso próprio corpo com

    outro olhares.

    Fig. 2 – Performance de Aun Helden, São Paulo, 2019

    12 “Corpa” – Termo usado pela artista como feminino de corpo.

  • 10

    A dúvida, e a confusão sobre o que se é, é fundamental para o trabalho de Aun Helden

    porque é nela que surge esse campo de incorporação prostética. Ela busca novos caminhos,

    passeia pelo seu próprio corpo. Troca elementos corporais como a boca, nariz, orelha e os

    compõem de uma outra forma. Inventa novas formas de respirar, novas formas de posicionar o

    seu orgão sexual. A construção do corpo pela linguagem é uma possibilidade de hackeamento15, de

    hackear o sistema que forma o nosso mundo normativo binário (homem e mulher).

    A artista tenta hackear o corpo, e dar significado à estranheza de ser “bixa” no Brasil.

    Ela cita a artista Grada Kilomba a qual diz que a liberdade é uma luta constante. O seu trabalho é

    a criação de imagens e potências. “Criar corpas que são constantes e fugir do construtivismo, do

    cimento, do que é intacto. E eu achei na incorporação prostética esse caminho.” 16

    Fig. 3 – Performance de Aun Helden, São Paulo, 2019

    15 Definition - What does Hacking mean?

    Hacking generally refers to unauthorized intrusion into a computer or a network. The person engaged in hacking activities is known as a

    hacker. This hacker may alter system or security features to accomplish a goal that differs from the original purpose of the system.

    Hacking can also refer to non-malicious activities, usually involving unusual or improvised alterations to equipment or processes. Disponível em: https://www.techopedia.com/definition/26361/hacking [Consulta: 13.02.2019] 16 Ibid.

    http://www.techopedia.com/definition/26361/hacking

  • 11

    A figura que eu crio, é uma personagem de mim mesma. Ela vem com essa carga

    imagética forte, porque é uma estranheza densa, uma estranheza que carrega muita dor,

    muita dúvida. Enxergo esse ser como uma peste. Os meus estudos começaram no

    teatro antes de eu me envolver com pensadores de gênero e sexualidade. No teatro,

    Artaud por exemplo, coloca o teatro como uma peste. E eu também coloco o meu

    trabalho como uma peste. O que é essa peste? Um distúrbio orgânico, tem a força de

    uma epidemia. A minha imagem é construída para ser uma epidemia. Quando eu estiver

    performando e existindo daquela forma, ela se torna uma epidemia porque ela se torna

    contagiosa. Epidemia é uma doença que se alastra, feita de atravessamentos e que é

    atravessada também. Isso é tão forte para mim, porque quando eu estou daquela forma,

    quando eu estou incorporada prostéticamente e transformada, os meus orgãos estão

    com outro tipo de locução, com outro tipo de potência. Ao mesmo tempo isso se torna

    muito forte pra mim e muito sensível também. Estou sendo atravessada, é muito denso,

    fazer isso no Brasil. Eu tenho essa consciência, quando eu estou, por exemplo, na rua

    me questiono quantas pessoas tem essa consciência de possibilidade de corpo? E

    quantas pessoas querem ter essa possibilidade de corpo?17

    Aun Helden busca pelo corpo liberto e questiona qual é a imagem desse corpo. Uma

    imagem que não é sólida, que além de não ser binária, pode ser uma criatura de um outro mundo,

    uma mutação entre o ser humano e insetos, por exemplo. A sua vontade é de criar um ser que

    foge dessa essencialização de gênero. Talvez uma de suas criações possa ter traços do nosso

    sistema visual, “como um cabelo longo que se associa ao feminino, ou uma barriga de grávida

    que carrega a fertilidade, ou até mesmo pelos que são associados à figura masculina”18, mas a

    principal questão que a artista carrega é a de pensar em um caminho que possamos saber lidar

    com o desconforto que é causado pelo próprio corpo, pois a zona confortável não faz nada para

    se modificar, como ela mesma diz. E claro que existe a importância de buscar espaços que caibam

    esses corpos. O seu trabalho tenta encontrar táticas, meios e formas, não apenas para a sua corpa,

    mas para todas as outras corpas.

    O seu trabalho, enfim, é sobre o desnaturalizar de ideias construídas socialmente,

    questionando porque certos comportamentos e visões de mundo são naturalizadas de

    determinadas maneiras. Por que o homem precisa se comportar de tal forma e a mulher de outra?

    Como mesmo diz Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Para finalizar

    Aun conclui um pouco mais sobre o seu trabalho:

    O que faço é atravessar ideias históricas que precisam ser desconstruídas e precisam ser

    abertas a novas possibilidades de existência. Não quero poder jamais pensar que o que

    eu estou fazendo é um modelo ético e estético de corpo. Porque não é sobre isso. O

    que faz sentido para mim, pode fazer sentido para outras pessoas, mas é como eu falei;

    “a liberdade não tem imagem, ela não tem forma sólida”. A gente precisa se entregar à

    esse estranhamento, à essa Bixa, à esse ser, que é um ser estranha, da entranha, que gera

    dúvidas. Tanto que eu utilizo no meu trabalho essa figura geradora, eu tiro exatamente

    daí, desse gerar.19

    17 Ibid. 18 Ibid. 19 Ibid.

  • 12

    1.1 A POTÊNCIA DA IMAGINAÇÃO E DO ATO DE CONTAR HISTÓRIAS

    Each time a story helps me remember what I thought I knew, or introduces me to new

    knowledge, a muscle critical for caring about flourishing gets some aerobic exercise.

    Such exercise enhances collective thinking and movement in complexity. Each time I

    trace a tangle and add a few threads that at first seemed whimsical but turned out to be

    essential to the fabric, I get a bit straighter that staying with the trouble of complex

    worlding is the name of the game of living and dying well together on terra, in

    Terrapolis. We are all responsible to and for shaping conditions for multispecies

    flourishing in the face of terrible histories, and sometimes joyful histories too, but we

    are not all response-able in the same ways.20

    Donna Haraway é uma bióloga, filósofa e escritora. Nasceu em 1944 em Denver nos

    Estados Unidos. Em seu livro “Stay with the trouble” ela escreve sobre a resistência de lidar com

    o problema que é viver no mundo em que vivemos. Somos seres complexos convivendo em um

    Universo complexo. Segundo Haraway, a História nos mostra que não há ideologias, fórmulas,

    religiões que possam trazer algum tipo de harmonia universal. Por isso, ela propõe novas

    elaborações para experimentarmos com outras possibilidades de vida. Sua posição política

    feminista diz muito sobre as suas obras. Em uma de suas falas, Haraway cita a importância de

    criarmos novas estórias e vê isso como um processo transformador de realidades:

    The tentacular ones make attachments and detachments; they ake cuts and knots; they

    make a difference; they weave paths and consequences but not determinisms; they are

    both open and knotted in some ways and not others. sf is storytelling and fact telling; it

    is the patterning of possible worlds and possible times, material-semiotic worlds, gone,

    here, and yet to come. I work with string figures as a theoretical trope, a way to think-

    with a host of companions in sympoietic threading, felting, tangling, tracking, and

    sorting. I work with and in sf as material-semiotic composting, as theory in the mud, as

    muddle.21

    Estar no mundo em que vivemos e participar presentemente da realidade coletiva é

    estar no problema. A autora não diz que devemos esperar por um futuro melhor, também não

    possui uma atitude derrotista achando que não é possível viver bem no nosso planeta. Mas, sim,

    coloca a força de uma mudança na nossa própria responsabilidade como seres humanos, como

    seres que habitam esta terra e vivem no presente criando novas perspectivas, novas histórias.

    Estórias de ficção científica ganham um espaço em suas escritas e ela enxerga estórias

    desse gênero quase como profecias. Um exemplo bem interessante disso é o que Carl Sagan,

    descreve em A Harmonia dos mundos22. Ele conta um pouco a história de Johannes Keppler.

    20 HARAWAY, Donna – Staying with the Trouble, p. 29 21 Ibid., p. 31 22 SAGAN, Carl, - Episódio 03, A Harmonia dos Mundos, disponível em:

    https://www.youtube.com/watch?v=N9C0MpJvymU [Consulta: 05.12.2018]

    http://www.youtube.com/watch?v=N9C0MpJvymU

  • 13

    Nascido em 1613, foi um astrônomo, astrólogo e matemático alemão. Sagan diz que “ele

    conseguiu uma descrição exata do sistema solar a partir da união da sua imaginação e da

    observação do universo.”23

    A mãe de Johannes Keppler chamada Katharina Guldenmann, era curandeira e

    preparava poções extraídas de ervas. Mais tarde, foi julgada por bruxaria pela nobreza local. Ela

    foi presa e seu filho se sentiu culpado por isso. “Um dos motivos foi que ele havia escrito uma

    das primeiras estórias de Ficção Científica, com a intenção de explicar e popularizar a Ciência. O

    título do livro era Somminum ou Sonho em português. Ele imaginou uma viagem à lua com

    astronautas pousando na superfície lunar, olhando para cima e vendo girar lentamente sobre suas

    cabeças, o planeta Terra. De acordo com Carl Sagan, “parte das acusações de bruxaria de sua mãe

    era porque, em seus sonhos, Kepler usava os feitiços de Katharina para sair da Terra.”24

    Carl ainda fala que o astrônomo “acreditava realmente que um dia o homem lançaria

    naves com velas adaptadas aos ventos celestiais do firmamento, repletas de exploradores que em

    seu dizer não temeriam a vastidão do espaço. Ele foi o primeiro a combinar uma imaginação

    intrépida com medições precisas para avançarmos rumo ao Cosmos. Tudo mudou depois de sua

    existência. ”25

    Mesmo diante de todo o avanço da ciência muitas questões sobre o nosso sistema

    nervoso ainda não foram respondidas. Acredito que esse exemplo de como Kepler imaginou,

    naquela época, algo tão intocável – e como essas visualizações foram materializadas depois de

    muitos anos – é algo a ser pensado sobre nós mesmos e sobre o modo como estamos conectados

    com o Universo e com a nossa história civilizacional.

    Carl Jung (1875-1961) refere em uma entrevista26 que as faculdades especiais da

    psique não estão inteiramente limitadas pelo espaço e tempo. De acordo com o psiquiatra e

    psicoterapeuta suíço, podemos ter sonhos ou determinadas perspectivas do futuro. Ele prossegue

    e diz que se a psique não é obrigada a viver no tempo e no espaço apenas, então ela não está

    sujeita àquelas leis, o que indica uma continuação prática da vida, uma espécie de existência

    psíquica além do tempo e do espaço.

    Ao pensar na história de Kepler, podemos imaginar se quem sabe ele não tenha

    viajado no tempo para dar-nos aquelas informações. Essa ideia pode ser uma brincadeira, mas a

    vida é tão misteriosa que realmente isto torna-se um questionamento. Sem dúvida existe uma

    23 SAGAN, Carl Johannes Kepler, Série Cosmos de Carl Sagan, disponível em:

    https://www.youtube.com/watch?v=9wgKPMNb_pM [Consulta: 15.11.2018] 24 Ibid. 25 Ibid. 26 Carl Jung: Entrevista legendada em português, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JK_Jnor6w88

    [Consulta: 25 jan. 2019]

    http://www.youtube.com/watch?v=9wgKPMNb_pMhttp://www.youtube.com/watch?v=JK_Jnor6w88

  • potência enorme na imaginação da mente humana. Não há como não lembrar do que Pierre Lévy

    (1956), filósofo francês, fala sobre o que é o virtual: é exatamente o que não é físico, o que é

    imaterial e o que chamamos de significação. O mundo da significação é o mundo virtual, ele

    começa com a linguagem. Uma informação semântica é virtual, não é possível tocá-la pois ela

    está na nossa mente, na nossa imaginação.

    “These are the times we must think; these are the times of urgencies that need stories.”27

    Donna Haraway fala sobre essa urgência em contarmos novos tipos de histórias, de

    materializar significações. Ao pensar no meu próprio contexto de vida, como brasileira, é

    perceptível o modo como é aprendida a História aqui. Contam situações que ocorreram ao longo

    dos séculos anteriores e posteriores a Cristo, sob uma perspectiva colonizadora, eurocêntrica,

    falocêntrica e linear. Quando somos alfabetizados pelos nossos professores, acreditamos que o

    que é dito por eles e pelos nossos pais é a verdade absoluta. As dúvidas são encobertas pelas

    próprias mentiras em que eles próprios acreditaram. E isso vai sendo passado de geração em

    geração, e a história da humanidade vai sendo construída assim então.

    Para que isso mude, é possível considerar certos “rituais de cura”. Vivendo em uma

    sociedade tão complexa quanto a nossa, a possibilidade de compartilhar experiências e percursos

    é uma maneira de nos ajudar a ter mais consciência e empatia pelas diferentes vidas. Torna-se

    importante um relacionar com outras pessoas que buscam outras perspectivas. É importante

    entender que neste mundo existem várias histórias diferentes – e não apenas uma única história

    da humanidade. O que nos foi dado é algo dito sob a perspectiva do colonizador, como se fosse

    uma linha reta e contínua, em um estado permanente de evolução – e isso precisa ser contestado.

    Há certos anos atrás, formas de mídias como a televisão, revistas e o cinema (com

    seus filmes hollywoodianos) mostravam padrões de beleza que sempre se repetiam. As mulheres

    brancas, loiras, altas e magras surgiam como um ideal de beleza. Todas essas estruturas

    começaram a ser remodeladas a partir da Internet. Esta foi a primeira mídia que tornou possível

    trocas simultâneas globalmente. Infelizmente, a resistência reacionária existe e mostrou-se

    também pelo mesmo meio.

    É de extrema urgência rever e questionar essa estrutura que foi construída socialmente

    com seus devidos interesses. Enxergarmos outras possibilidades de Storytelling e renovar os

    padões tóxicos que matam vidas diariamente. No Brasil, por exemplo, há alguns anos atrás nas

    27 HARAWAY, Donna – Staying with the Trouble, p. 37

    14

  • 15

    novelas globais, os autores e autoras escalavam personagens brancos para interpretarem sempre

    pessoas com alto poder aquisitivo, as pessoas de cor eram indicadas para serem funcionárias

    dessas pessoas brancas. Em uma determinada cena de violência, o personagem negro morador de

    alguma favela ilustrava algum criminoso. Esse tipo de história que alcança toda uma massa cria

    falsos estereótipos, incentivando um grande preconceito por toda uma massa e gerando também

    uma violência policial que extermina inocentes diariamente. Efeitos de mudança podem estar em

    novas formas de discurso, pela criação de novos termos e conceitos conseguimos não cair em

    velhos manifestos.

    A mensagem, ou a ideia de querer contar estórias, como forma de viver bem nesse

    mundo é interessante, pois não é mais uma ideologia ou uma utopia de que o mundo só vai

    melhorar a partir de um ponto e determinadas regras. É uma sugestão, ou uma possibilidade

    criada por várias pessoas. Podemos ver isso como uma das formas de subvertermos as limitações

    de perspectivas colocadas pela sociedade ao nascermos e ao nos desenvolvermos.

    Searching for compositionist practices capable of building effective new collectives,

    Latour argues that we must learn to tell “Gaia stories.” If that word is too hard, then we

    can call our narrations “geostories,” in which “all the former props and passive agents

    have become active without, for that, being part of a giant plot written by some

    overseeing entity.28

    Bruno Latour (1947), antropólogo e filósofo francês, percebe a potência que há nessa

    prática. Ele vê isso como uma forma efetiva de mudar realidades, de não entrarmos no grande

    ciclo vicioso da história eurocêntrica. De acordo com ele, vivemos em um momento no qual há

    uma grande necessidade de aprendermos a narrar, a pensar fora do grande conto clássico da

    História Ocidental.

    Um exemplo de vida de grande valor a ser contado é o de Maria Izabel Nascimento

    Muller,29 uma escritora brasileira de contos de fada. Ela, como mulher negra, nunca se viu

    representada nos contos de estórias ao longo de sua infância, e por isso, resolveu narrar os seus

    próprios. “Os Contos de Fadas na Realidade Afro-baiana” é o nome do livro que Maria Izabel

    escreveu. A autora se inspirou em clássicos da literatura infantil e adaptou esses contos com

    personagens negros em cenários Bahianos, como o Pelourinho e a Chapada Diamantina. Ela

    criou uma Rapunzel Rastafári, Fadas do Acarajé e também um Príncipe Jamaicano.

    Isso é alterar o que é dito e ditado como natural, transformar os discursos tóxicos

    construídos culturalmente. O que ela faz é bastante revolucionário e necessário, é uma forma de

    28 HARAWAY, Donna, Staying with the Trouble, p. 38 29 https://g1.globo.com/bahia/noticia/com-rapunzel-rastafari-e-fadas-do-acaraje-baiana-lanca-livro-inspirado-em-

    contos-de-fadas-classicos-com-personagens-negros.ghtml [Consulta: 30.10.2018]

  • 16

    mudar padrões e pensamentos para toda uma geração vindoura de pessoas que quase não

    possuem uma representatividade em livros infantis. O que interfere na auto-estima e todo o

    desenvolvimento de crianças e adolescentes.

    Octavia Butler (1947-2006), foi uma escritora americana reconhecida pelos seus

    livros de Ficção Científica. Estes foram capazes de mudar a sua própria realidade. Ela era uma

    mulher negra vivendo em um tempo e em um lugar no qual havia concretamente uma separação

    que designava poderes e privilégios a quem tinha a pele clara. Pessoas de cor não conseguiam ter

    oportunidades e lutavam para sobreviver em uma sociedade completamente racista. Ela

    definitivamente lutou por meio da escrita e contou histórias sobre diferentes sociedades, sobre

    diferentes seres, se permitiu e acreditou na sua capacidade intelectual de mudar não apenas a sua

    vida, mas a vida de muitas outras pessoas. Tornou-se por isso um símbolo de resistência e

    brilhantismo.

    Em uma entrevista30 ela se define como uma pessoa esperançosa, talvez essa

    esperança tenha a ver com a distopia que ela escreve em sua trilogia Xenogenesis/Lilith´s Brood. A

    autora conta em três livros uma estória de Ficção Científica na qual ela discute sobre a

    consciência do que é o próprio ser humano. Pensa a humanidade com as suas ganâncias,

    preconceitos e atributos que só levam a auto-aniquilação. Nessas histórias, ela escreve que a

    humanidade só poderá existir por meio de uma troca genética com uma espécie extraterrestre

    denominada Oankali. Fala de um corpo que virá a ser mutante, no qual os seus processos

    químicos permitem uma nova visualidade, um novo processo de desenvolvimento (nascer,

    reproduzir e morrer). É uma outra espécie que permite uma fluidez e novas formas de

    subjetividade. Em sua imaginação, ela cria a espécie Oankali como uma comunidade que possui

    outras formas de comunicação, curas, sexualidade e política, criando uma mistura entre o que é

    real e o que poderia ser, pensando, na verdade, como nos poderíamos misturar. Como

    poderíamos-nos reinventar e contar novas histórias.

    Ao ler esse livro me permiti sofrer a minha própria mutação visual, criando avatares

    inspirados por outros possíveis seres. Por meio da maquiagem e outros materiais além da edição

    digital, usei a minha imaginação.

    30 Octavia Butler - Transcending Barriers. Entrevista disponível em:

    https://www.youtube.com/watch?v=KG68v0RGHsY [Consulta: 15.11.2018]

    http://www.youtube.com/watch?v=KG68v0RGHsY

  • 17

    Fig. 4 – Camila Roriz, Avatar Cybimili 1, 2018, disponível em: https://instagram.com/camilaroriz

  • 18

    Fig. 5 – Camila Roriz, Avatar Cybimili 2, 2018, disponível em: https://instagram.com/camilaroriz

    Fig. 6 – Camila Roriz, Avatar Cybimili 3, 2018, disponível em: https://instagram.com/camilaroriz

  • 19

    1.2 A PINTURA COMO PRIMEIRA FORMA DE NARRATIVA VISUAL

    A pintura foi desde os seus primórdios uma forma de narrativa ilustrada por meio de

    pontos, linhas, manchas, cores e etc. Uma tentativa de registrar momentos, seres e crenças através

    de materiais que os humanos de cada época tinham ao seu dispor. Desde a Pré-História sabemos

    que o homem e a mulher tem essa necessidade de se expressar e contar histórias e estórias, talvez

    para os seus contemporâneos, talvez como uma forma de ritual de passagem do tempo ou como

    forma de uma herança para os seus descendentes.

    May more than four thousand years ago in ancient Mesopotamia like this

    box inlaid with scenes of war and peace or this peace of stone that celebrates a Military

    Victory. Both of these were made in the era of the famous Epic of Gilgamesh, the first

    Epic Literature that comes down to us in writing about the great King of Uruk modern

    Iraq. One-third human and two-thirds God of superhuman strentgh. These pictures

    reminds us that we are a storytelling species. Stories of great events like these victories

    had been memorized and recited and passed down to one generation to the next not

    unchanged but morphing, and merging, and being elaborated all the time long before.

    They were compiled into within epics let alone picture and what functions did stories

    serve they carried vital information that the people of one generation knew they needed

    to pass on to the next how the world arose, how people perished in a great flood what

    the God's expected of humans, how heroes and Wise men and seers behaved, how the

    tribes won victories and suffered calamities. The stories of the earliest literature embodied

    the rules and taboos of society. They were the primary material for the education of the

    children and they were a way for entire peoples to preserve a body of common

    experience and wisdom. In Greece we have only small fragments of greek wall painting

    but we have thousands of painted vases, some of them terrificaly vivid episodes from the

    narratives like this one of King Phineas the blind prophet in the story of the Argonauts,

    here who's tormented by harpies who fly in to steal his food everyday.31

    Fig. 7 – Padrão de Ur, Século 26 a. C., Painel ilustrando uma guerra.

    31 John Joseph Walsh Jr – Lecture 1 – Introduction to History Painting. Disponível em

    https://www.youtube.com/watch?v=FbZ_MOWLMu8 [Consulta: 13.03.2019]

    http://www.youtube.com/watch?v=FbZ_MOWLMu8

  • 20

    Fig. 8 – Estela da vitória de Naram-Sin, Susa, Irã, 2254-2218 a. C., arenito cor-de-rosa

    O historiador de arte norte-americano John Joseph Walsh Jr. conta-nos como nós,

    desde sempre, fomos contadores de história. Um dos pontos de seu discurso – aqui citado na sua

    introdução de uma série de palestras dadas na Universidade de Yale, em 2013 – é o contar as

    narrativas de algumas pinturas escolhidas por ele. O historiador diz que “a pintura como narrativa

    era algo como se fosse escrever uma ópera, na qual o material cru da peça seria convertido em

    poesia, música ou algo mais conciso como uma expressão de uma essência de uma história. Esse

    ato é algo como escolher imagens que ilustram histórias. ”32

    Ele conta também que durante o Renascimento o estilo pictórico conhecido como

    “Pintura de História” era oficialmente considerado como a mais alta categoria de arte, e isso foi

    perdurando ao longo de quatrocentos anos. Era reconhecido como o trabalho mais importante

    que um pintor poderia fazer, como também a encomenda mais prestigiosa e a mais bem paga. A

    demanda por essas pinturas era feita pela nobreza, com seus próprios interesses que nos fazem

    também entender como nossa cultura foi construída. O olhar dessas pessoas que coordenavam as

    imagens que o artista tinha que fazer, consequentemente, era o que ditava a imagem que chegava

    até o povo. Essa foi a forma imagética segundo a qual a sociedade ocidental foi educada.

    32 Ibid.

  • 21

    Só no século XIX que esse tipo de pintura foi perdendo o lugar, sendo trocado por

    pinturas que estavam mais relacionadas com o cotidiano, como a categoria de natureza morta, ou

    as pinturas de paisagem ou retrato, por exemplo.

    De acordo com a História da Arte Ocidental a “Pintura de Paisagem”, como tema

    amplo (embora haja muitos exemplos isolados) surgiu por volta do séc. XV na Holanda,

    seguindo para a Itália e assim se legitimando ao longo dos séculos. Há vários tipos de

    reproduções de imagens de paisagem e, sem dúvida, estas reproduções foram cruciais para

    remodelar a forma como vemos e interpretamos o nosso meio ambiente e as imagens desse

    ambiente. A paisagem na arte nos instiga a pensar sobre o lugar onde nascemos e crescemos,

    instiga-nos a pensar na nossa identidade. Essa reflexão, e a percepção que criamos a partir do

    mundo natural, é uma das grandes razões pela proliferação de imagens de paisagens dentro da

    nossa cultura.

    No mundo ocidental a paisagem é completamente associada à Natureza, mas a sua

    construção por meio da ilusão da perspectiva é artificial. É interessante pensar na ideia da

    natureza a atravessar pinturas, vídeos e trabalhos de arte. Essa constante ideia de explorar a falsa

    beleza natural pode estar relacionada com o paradigma digital em que vivemos atualmente, no

    qual o computador possibilita experimentar diversas simulações cognitivas.

    Existem outros tipos de narrativas pictóricas, existem imagens em contraste com a

    ideia antiga das pinturas de história ou de paisagem, ou seja, existem narrativas construídas

    através de meios internos ao corpo. É apresentado aqui um exemplo: é sentido no trabalho da

    artista Maria Lassnig uma outra narrativa, uma história sensorial que diz mais sobre as sensações

    corporais ao que é abstrato, ao que é a subjetividade individual. Esta é uma força cósmica, um ser

    e existir neste mundo como ser consciente.

    1.2.1 MARIA LASSNIG

    Narrativas Internas

    Maria Lassnig, (1919-2014) foi uma artista austríaca. Ela usava uma expressão para

    designar o seu próprio trabalho: Körperbewusstseinsmalerei, ou “Pintura de Consciência Corporal”.

    Este é um conceito chave para entender como Lassnig buscava pintar as sensações e a

    consciência do corpo, para além da mera representação visual.

    Os primeiros trabalhos de consciência corporal feitos por Lassnig foram realizados

    em 1949, pouco tempo depois de sua graduação em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes de

  • 22

    Viena. Na época ela usava o termo “Experiências Instrospectivas” para codificar trabalhos que

    eram feitos sob essa perpectiva. Ela queria passar para a tela o que ela sentia, ou melhor, o que o

    seu corpo sentia e não exatamente como o corpo é visto. Em uma entrevista ela fala sobre

    quando percebeu, ou teve consciência disso pela primeira vez:

    I do remember when it occurred to me the first time, when I got the idea of painting

    the way I feel at a given moment. It was in my studio in Klagenfurt. I was sitting in a

    chair and felt it pressing against me. I still have the drawings where I depicted the

    sensation of sitting. The hardest thing is to really concentrate on the feeling while

    drawing. Not drawing a rear end because you know what it looks like, but drawing the

    rear end feeling.33

    Nesse momento de sua vida, Lassnig estava cansada de tentar retratar a natureza tal

    qual ela é. Ela percebeu que deveria se expressar por meio de algo que estava mais sobre o seu

    domínio. O que ela poderia representar melhor do que o seu próprio corpo? A partir disso a

    artista começou a observar como o seu corpo reagia fisicamente às mais diversas situações.

    Segundo Lassnig, a consciência é expressa em sensações de pressão ou tensão, em sensações de

    plenitude ou vazio. Como por exemplo, se sentar e perceber a pressão que o traseiro faz sobre a

    cadeira.

    Maria Lassnig propôs determinadas estratégias para passar essa ideia aos seus

    trabalhos da forma mais fiel possível. Ela escreve sobre isso em um fragmento do texto de uma

    exposição na qual participou em Nova Iorque, em 1970:

    1) realistic associations of memory should be switched off or used, i.e. whether I paint

    the leg or the hand realistically, as I saw it, or whether I paint it as a staff, the way I feel

    it, or as a wire, string, sausage, or not at all.

    2) I only partially screen myself from the outside world, i.e. when I sit in front of a table

    with apples on it, whether I really see it and paint it, while only allowing myself to cling

    to it like a pair of pliers, into the optical table.

    3) in a picture, I combine memory’s realistic associations with freely invented

    sensations, for example the body. painted like a fire screen, to which realistic

    pudenda are affixed.34

    Nesse mesmo texto ela chega a falar que o rosto é a parte mais difícil de ser retratada

    seguindo esse conceito. Nos vemos todos os dias no espelho, o que dificulta desassociarmos a

    imagem que vemos das nossas sensações. Por isso, o rosto é a parte que acaba sempre sendo

    retratada de forma mais realista. Two Ways of Being (Double Self-Portrait), é uma pintura na qual

    Lassnig cria duas figuras, uma é uma espécie de uma alienígena e a outra é a forma mais realista

    33 WERNEBURG, Brigitte – “I Need the Real Body" Entrevista com Maria Lassnig, disponível em:

    http://db-artmag.com/en/53/feature/real-bodys-interview-with-maria-lassnig [Consult: 20.05.2017] 34 LASSNIG, Maria – The pen is the sister of the brush : diaries 1943-1997, Hans Ulrich Obrist (ed.). Tradução

    Howard Fine e Catherine Schelbert. Göttingen : Steidl ; Zu ̈rich ; London : Hauser & Wirth, cop. 2009, p. 28

    http://db-artmag.com/en/53/feature/real-bodys-interview-with-maria-lassnig

  • 23

    do seu rosto (fig.9). O que ela mostra aqui é que essa figura esquisita, que não se parece nada com

    ela visivelmente, ainda é ela. O interessante desta imagem é uma espécie de comparação entre

    dois tipos de pintura enquanto, ao mesmo tempo, reflete sobre a superficialidade de uma

    imagem, ou daquilo que se vê.

    É de dizer também que muitas vezes Lassnig pintou corpos sem cabelo e que, e por

    isso, muitas pessoas achavam que suas pinturas estavam incompletas. Mas a sua intenção, na

    verdade, era não retratar fragmentos do corpo que não são possíveis de serem sentidos. O cabelo

    como matéria morta é incapaz de sentir efeitos de tensão ou pressão, por exemplo.

    Fig. 9 – Maria Lassnig, Two Ways of Being (Double Self-Portrait), 2000, óleo sobre tela, 100 x 125 cm

    Foram sessenta anos fazendo trabalhos sobre a concepção de Consciência Corporal.

    Em um determinado momento, a abstração do início de sua carreira se une à figuração de uma

    fase posterior. Meditando sobre as suas sensações, os corpos modelados pela artista se deformam

  • 24

    na tela, como seres amorfos que se assemelham a “gênese humanóide”35.

    A fig. 10 ilustra um pouco isso. A artista ainda cria elementos pertencentes ao ser

    humano, mas nos remete a algo ainda em formação. Como um feto no corpo da mãe36 e a

    transformação corporal que acontece ao longo de seu desenvolvimento até o seu nascimento e o

    mais tardar da vida. Corpo sempre em transformação. Sensações que por vezes nos mastigam e a

    forma de retratar isso é a não-forma, é a mistura disso tudo, é a figura que não parece mais o

    corpo humano.

    Fig. 10 – Maria Lassnig, T Selbstportrait als Einäugige, 1997, óleo sobre tela, 126 x 101 cm

    Nos anos 80, os avanços da ciência e tecnologia começaram a impactar nossos

    corpos e nossas vidas. Lassnig, sempre sintonizada com o seu próprio tempo, começou a realizar

    35 “It is important, nevertheless, to realize that there were women painting the figure, however

    outnumbered they were: for example, Maria Lassnig, who for sixty years has painted what she calls

    “body awareness” painting”. GODFREY, Tony – Painting Today, 2009, p. 51 36 Face Development in the Womb - Inside the Human Body, disponível em:

    https://www.youtube.com/watch?v=wFY_KPFS3LA [Consulta: 01.06.2017]

    http://www.youtube.com/watch?v=wFY_KPFS3LA

  • 25

    pinturas com elementos tecnólogicos integrados ao corpo. Um exemplo é a pintura Kleines

    Sciencefiction-Selbstporträt de 1995 (Fig. 11), um retrato de uma figura de essência humanóide com

    uma espécie de óculos de realidade virtual. Como hoje sabemos, usamos acessórios como os

    smartphones que são considerados nossas extensões. Marshall McLuhan em uma de suas teorias tão

    centrais no pensamento da relação do humano com a máquina, diz que “todas as tecnologias são

    extensões de nossos sistemas físico e nervoso para que possamos aumentar o nosso poder e

    velocidade. ”37 Essas extensões afetam todo o nosso complexo psíquico e social imprimindo

    grandes implicações para o futuro da linguagem.

    Fig. 11 – Maria Lassnig, Kleines Sciencefiction-Selbstporträt, óleo sobre tela, 1995.

    37 MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem. trad. Décio Pignatari. Editora

    Cultrix: São Paulo. 1964 p. 56

  • 26

    Da mesma forma que Lassnig busca pintar as suas sensações e transformá-las em

    narrativas internas, procuro o mesmo nas minhas pinturas (mesmo que inconscientemente).

    Tento criar o que eu sinto sobre o que está dentro de nós, dos nossos orgãos. Imagino os seres

    que não podemos ver a olho nu. De uma certa forma não é nada realista, é uma imaginação fluida

    na qual eu crio imagens abstratas. Ao improvisar, às vezes relaciono esses fluxos enérgeticos com

    meios externos como plantas e outros elementos. Há também algo relacionado às emoções,

    como tensões e outras características que fazem parte de ser Humano. Por isso muitas vezes, uma

    boca tencionada pode aparecer no meio de manchas e outras figuras. É importante dizer que

    sempre me incomodei com a forma quadrada das molduras que são colocadas em galerias e

    museus. Busquei então, marcenarias que poderiam criar a forma da moldura acompanhando a

    pintura e não o contrário como é convencionalmente feito.

    Fig. 12 – Camila Roriz, Sheila-lá, tinta acrílica sobre tela e molduras criadas em marcenaria, 2018

  • 27

    Entranhas dependuradas, carne e tripas no açougue da pele que nos segura. genitálias que

    se inflam e transformam-se em mais uma reserva que se auto-alimenta. células ao léo. Pintura

    quebrada pela moldura que se transformou em outra que já foi. Separadas, se buscam mas não se

    encontrarão.38

    1.2.2 MARIA LASSNIG

    Vídeo como autorretrato em movimento

    Maria Lassnig começou a explorar a linguagem audio-visual quando estava morando

    em Nova Iorque na década de setenta. Começou fazendo desenhos em forma de narrativas para

    serem animados. Uma de suas primeiras animações foi Art Education, um filme realizado em 1976.

    Com um humor ácido, Lassnig faz uma crítica à História da Arte e aos seus protagonistas –

    pintores homens brancos. Uma de suas críticas é o facto da história ser construída de uma forma

    machista. A mulher ao longo de quase toda a História da Arte teve o papel de musa, ou de

    modelo nu de inúmeros retratos, nunca como artista ou alguém que foi capaz de propagar ideias,

    como também tão expressivamente criticaram as Guerrila Girls na década de 1980. Em seus

    vídeos, Lassnig sai um pouco da atmosfera do seu próprio corpo e alcança um cunho mais

    político e didático.

    Text for Art Education

    Animated film, 16mm, color, sound, 16 minutes

    Exegesis of famous paintings, e.g. by Vermeer, Michelangelo, etc.

    1)Vermeer van Delft and his model:

    Painter: You move too much,

    shift to the right a bit,

    no, that’s too much, to the left, no that’s too much,

    oh, please, you’re moving too much.

    Why don’t you look left,

    no that’s too much, oh, please,you’re moving too much.

    Why don’t you look more cheerful?

    Now what do you want?

    Model: First show me that you love me!

    Painter: I don’t have time for that now!

    Model: Show me anyway!

    Painter: I have to change the blue! Model: I have time to pose for you, to darn socks, to cook.

    Painter: Oh, please, just sit down! You’re not a good model, you don’t even have any

    cleavage, and you are too old!

    Model: Bah!

    38 Texto de minha autoria.

  • 28

    Painter: Back to work, you’re a good model!

    2) Nobleman, in front of the window, to his lady:

    Oh lady bright, can it be right?

    Your window open to the night?

    Oh lady dear, oh have no fear.

    why and what are you dreaming here?

    Strange is your pallor, strange your dress.

    strange you will be soon a mess.

    and this in solemn silentness! My love do sleep, oh may you sleep

    with me be sure in sleep so deep

    Oh angel mine. oh have no fear,

    will whole night stand on the ladder here.

    will stand as long as hold will be the ladder,

    and in the cold will hold my bladder.

    By the way, want some icecream?

    No, No?

    (Old American poem, transformed by Maria Lassnig)*

    3) Michelangelo’s creation of Adam:

    God: Adam, get up, you’re created!

    Adam: Am I finished. am I done? I’m too white!

    G: I can make you spotted or striped?

    A: What about black?

    G: Black is not in the bible!

    You could be also head, or all body? No?

    A: No. But I’m cold, can I have more hairs?

    G: O.K.? No? I could change you back?

    A: Song as ape: I am the Adam from the Bronx

    please send me back from where I come

    oh tell me who I am and where

    11am I a man with all the hair?

    Should I go up the family tree?

    Or do I go down the pedigree?

    Would you adopt me as my father?

    Or am I your father, rather, rather?

    I think I belong to nobility cause the first people are my lineague!

    G: No, Darwin is not in the bible, either!

    But I’ve some other model on the assembly line, choose!

    You could look like that or like that!

    A: Oh, no, no. It’s better so. But you like an old Hippie!

    Is this your wife under your armpit? Why is she not god?

    G: She is my secretary and the others are my FBI.

    A: (Laughes) You know, you are only my imagination, you’re not

    real. You’re Michelangelo’s invention!

    Different voices: God looks like me! God looks like me!

    If god is an invention, everybody can be god!

    A: You’re a mechanical god. G: And you’re a wise-cracking worm.

    A: You’re not real. you’re only a dream, only a dream...

    G: But the dream is real too!

    If you dream once of god, than god is real.

    Lift the stone and you will find me, cleave the wood and I’m there.39

    39 LASSNIG, Maria – The pen is the sister of the brush : diaries 1943-1997, p. 68-67

    LASSNIG, Maria – Art Education. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9QToiW7oboU

    [Consulta: 20.05.2017]

    http://www.youtube.com/watch?v=9QToiW7oboU

  • 29

    Em SELFPORTRAIT, 1970, Lassnig traz para um filme animado, como diz o

    próprio título – um autorretrato. Ela expõe sentimentos e conflitos interiores. Fala sobre a

    multiplicidade do eu e da difícil relação com o outro. A representação da vida através da

    experiência corporal.

    Text for the Animated Film SELFPORTRAIT

    To give a picture of my mind when it goes through breakwater of

    life, to show the ups and downs, oh, why did I make this picture? To

    veil or to reveil my face, to reveal my heart, my heart feeling? Or not

    to become a woodhead, a machine, a camera, a respirationsmachine?

    Oh, to get communication is so hard (perhaps with marsmen it’s

    easier?).

    With a little change I could be as beautiful as Greta Garbo, or a lion

    as Bette Davis! So we are walking through life, looking for the better

    half, yes, ä, no, oh it’s not possible. Caressed, no wiped out, I didn’t

    mind, depressed, no supressed, I didn’t mind, I still love mankind,

    stamped, I didn’t mind, stran–gled, I didn’t mind and I still love

    mankind. But I’m tired, I’m tired but rest is only for the dead.

    I wanted to be the liberty of Austria, but there I got a bad cold—

    Hatchi! It was too early. When my mother died I became she, she

    was so strong. I wanted to be aware, be aware, be aware!

    “In all faces is shown the face of faces, vailed and in a riddle,

    howbeit unveiled it is not seen, until above all faces a human enters

    into a certain secret and mystic silence, where is no knowing or

    concept of a face. This darkness and mist is a state beyond all the

    knowledge. Below which face cannot be found except veiled. But

    that very darkness reavealed the face to be there beyond all veils.

    How needful to enter the darkness and to admit the coincidences of

    opposites all the grasp of reasons and there to seek the Truth where

    impossibility met us.” (Nikolaus von Cusa)40

    O vídeo Cantata foi realizado em 1992. Nele Lassnig narra a sua própria história de

    vida em forma de canção tradicional austríaca. Ela se traveste em diferentes personagens

    conforme vai contando as diferentes épocas em que viveu. Para falar sobre o momento em que

    morou em Nova Iorque, por exemplo, ela se veste de Estátua da Liberdade. Imagens de seus

    desenhos animados ilustram o fundo do vídeo enquanto ela canta. Alguns anos antes de ter

    realizado esse trabalho, Lassnig tornou-se a primeira mulher a dar aula de pintura em um país de

    língua germânica, pela Faculdade de Belas-Artes de Viena.41 Da mesma forma, em 1988, foi a

    primeira mulher a ganhar o Grand Austrian State Prize. É interessante pensar que ela cria esse

    vídeo em uma altura que já era uma artista reconhecida. É como se ela mesmo estivesse atestando

    o seu reconhecimento, depois de várias rejeições e dificuldades ao longo de anos trabalhando

    como uma mulher artista.

    40 LASSNIG, Maria – The pen is the sister of the brush : diaries 1943-1997, p. 30

    LASSNIG, Maria – SELFPORTRAIT Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FD3bPit0eNU

    [Consulta: 20.09.2018] 41 KENNEDY, Randy – Maria Lassnig, Painter of Self From the Inside Out, Dies at 94, disponível em:

    https://www.nytimes.com/2014/05/09/arts/design/maria-lassnig-painter-of-self-from-the-inside-outdies-at-

    94.html [Consulta: 10.09.2018]

    http://www.youtube.com/watch?v=FD3bPit0eNUhttp://www.nytimes.com/2014/05/09/arts/design/maria-lassnig-painter-of-self-from-the-inside-outdies-at-

  • 30

    Cantata

    1) Green buds unfurl, bright blossoms bloom, and ever-young Earth sloughs off winter’s gloom,

    but I sit and daydream in a spring morning’s haze, reliving lovely

    departed days.

    2) I was an infant, newly born, not yet bred,

    when a first salty drop wet the top of my head;

    while mother, confined to her postpartum bed,

    gazed down at her babe and her tear freshly shed.

    3) My parents’ home was awful, dramatic:

    crockery careened from cellar to attic.

    Eyewitness to scenes of marital strife,

    I shrieked, “Dear Mama, save your life!”

    All siped life’s pain: marriage ain’t maple syrup;

    gall dripped like rain, heart unable to cheer up.

    4) Long-suffering nuns taught me writing and reading;

    teased by my classmates, who spurned me unheeding;

    a dimwitted schoolgirl, the dolt of her class,

    because I was such a virtous lass. 5) God never made me a beauty, let’s face it,

    but He gave me the gift with a pencil to trace it;

    like a latter-day Du ̈rer or some other big cheese,

    all I portrayed proved easy to please.

    6) Poor mother, at times, a remorseful matron,

    imagined me meant for wife’s duties and bed.

    But with fingers entwined in the strings of her apron,

    I heard Fate’s whispered warning, “Maria, don’t wed!”

    7) So to the academy I duly was sent, where I painted far better than many a gent;

    I believed in fine art and art’s power to be

    a boon to mankind and to set all men free.

    8) The godess of love withheld her sweet favor, though beau vied with beau for my approbation;

    alas! in the end, each cad proved a traitor,

    so I boldly decided to leave my home nation.

    9) In Paris, that city of culture and silk,

    art and love were but baleful vales of spilt milk.

    Free to choose among Pop or Op or Tachism,

    I found, all around, abounding art fascism.

    10) Drawn to America, where women are strong,

    where gals fight for right and avenge every wrong;

    all genders are peers in the land of opportunity,

    where ladies and queers vex the macho community.

    11) But madame the minister, kind, clever and true,

    invited me home to my native ground,

    where women rank high, as is their due: a professor can soon make her students renowned.

    12) Now having ascended maturity’s peak.

    I gaze back and down into life’s lengthy dale

    and feel less wise than cautious or meek:

    life leaves us no choice, tell us no other tale.

    13) Yes, I have aged and my feet have grown longer,

    but my love for this world is still growing stronger;

    my temperament’s mellowed, my mouth has grown grave,

    and not love, but TV, is all that I have.

    14) But my life, it ain’t over, not while I’m still learning

    and greeting each dawn with awe, silence and yearning;

    I still ski, ride my motorbike early and often,

    and nothing but art keeps me out of the coffin.

    Refrain: Art, Art thou art thrice greatest! Thou makest me

  • 31

    younger, awakest and slakest my aesthestic hunger.42

    É interessante perceber os diferentes processos de Lassnig, tratando-se de imagens em

    movimento nota-se que há um planejamento maior da artista, por meio da escrita ela cria o

    roteiro dos seus vídeos. Ao contrário de suas pinturas, nas quais ao criá-las o acaso e suas

    sensações corporais são seus guias. Ao analisar os seus textos, é percebível que o conteúdo destes

    são diários intímos. A artista expõe os seus pensamentos e sentimentos sobre o mundo por meio

    de roteiros que se transformam em vídeos animações.

    1.3 HISTÓRIAS INTERATIVAS – GAMES COMO UM POTENTE DISPOSITIVO DE

    APRENDIZAGEM

    World games require inventive, sympoietic collaborations that bring together such

    things as computer game platforms and their designers, indigenous storytellers, visual

    artists, carvers and puppet makers, digital-savvy youngsters, and community activists.43

    Como já foi citado no capítulo 1.1, a autora Donna Haraway fala de possibilidades

    para se viver bem nesse mundo. Uma delas é o ato de criar world games, a criação desses jogos é

    uma tentativa de entrar em contato com culturas de povos nativos do mundo e assim contá-las

    por meio de jogos eletrônicos. É uma estratégia colaborativa entre desenvolvedores de jogos,

    designers, nativos que queiram contar as suas histórias, artistas e outros. O ser humano sempre

    usufruiu dos materiais que tinha ao seu redor para experimentos, mas depois de um certo

    momento (provavelmente durante a revolução industrial), as coisas começaram a chegar para nós

    cada vez mais de uma forma pronta.

    Assim houve uma explosão de novos materiais e objetos que facilitavam o dia-a-dia

    das pessoas, no sentido em que podia se perder menos tempo realizando certos processos.

    Culturalmente, isso foi-nos formatando e nos deixando cada vez menos conscientes de como as

    coisas chegam até nós, de como são feitas, dos processos, da origem dos ingredientes de uma

    refeição, ou dos materiais de uma casa.

    Poderíamos começar a refletir sobre esses processos a partir de certos

    acontecimentos, como desastres naturais e guerras, por exemplo. A Terra está passando por um

    42 Maria Lassnig : the pen is the sister of the brush : diaries 1943-1997 / edited by Hans Ulrich Obrist ;

    transl. from the german by Howard Fine with Catherine Schelbert. Göttingen : Steidl ; Zu ̈rich ;

    London : Hauser & Wirth, cop. 2009. ISBN 978-3-86521-739-4. [p. 121-122-123]

    Maria Lassnig – Kantate, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=4sDSZ9GwnCE

    [Consult: 10.09.2018] 43 HARAWAY, Donna. Staying with the trouble, p. 86

    http://www.youtube.com/watch?v=4sDSZ9GwnCE

  • 32

    processo de degradação e não reagimos em relação a isso. Além dos sinais que o indicam, que são

    legitimados pela ciência, cotidianamente percebemos que o sistema é completamente falho.

    Com um bombardeamento de notícias diárias nas redes sociais e outras mídias,

    passamos a processar as coisas de uma maneira mais automática, não sabemos mais dizer se

    determinadas notícias são realmente fatos. Essa é uma outra forma de questionar o que é a nossa

    vida. A autora norte-americana Susan Sontag (1933-2004), por exemplo, questiona44 a nossa

    própria empatia em relação à dor dos outros.

    Qual é a nossa reação quando vemos imagens de desastres e pessoas sofrendo nas

    redes sociais ou na televisão? Ainda nos choca ver a dor do outro? No livro Regarding the pain of

    others a autora cria uma série de questionamentos que tem esse objetivo de nos fazer refletir sobre

    como essas imagens são processadas por nós. Principalmente trazer uma consciência e uma

    reflexão sobre o que está acontecendo no mundo, ou como reagir diante de certos fatos.

    Enfim, é necessário retroceder, repensar a própria época em que vivemos. Mas, ao

    mesmo tempo, poder usar os recursos tecnológicos ao nosso favor. Isso é uma estratégia para se

    viver bem nesse mundo. A imagem já não nos choca mais, os nossos sentidos precisam ser

    ativados de outras maneiras. A aprendizagem precisa ser remodelada, é necessária a ativação

    sensorial do nosso corpo para aprendermos, pois o corpo também possui memória.

    Então, o que Haraway nos propõe é que podemos retroceder e adquirir consciência

    sobre o mundo através de histórias de povos nativos e, ao mesmo tempo, unir todos esses

    ensinamentos em um video-game. Ela cita o jogo “Never Alone”. Um dos fatos mais interessantes

    deste jogo é que ele é narrado em Inupiaq, língua de nativos do Alaska. O jogo possui legendas

    em inglês mas é interessante ser narrado na língua do povo que conta a história.

    44 Em seu livro Regarding the pain of others

  • 33

    Fig. 13 – Screenshot do video-game Never Alone.

    Never Alone (Kisima Ingitchuna) is the first game developed in collaboration with the

    Inupiat, an Alaska Native people. Play as a young Inupiat girl and an arctic fox as they

    set out to find the source of the eternal blizzard which threatens the survival of

    everything they have ever known.”69 No one acts alone; connections and corridors are

    practical and material, even if also fabulous, located in what Anglophones tend to

    dismiss as the spirit world. The girl Nuna’s personal courage and s