Upload
resguardo-inga-de-condagua
View
9
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Analise histórico Folha de Sao Paulo
Citation preview
Queremos governo cristo: os discursos sobre a Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade na Folha de So Paulo1
PARRA MONSALVE, James Len (Comunicador Social, Mestre em Histria) 2
Ncleo de Altos Estudos Amaznicos / Universidade Federal do Par / PA
Resumo: A Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade, feita em 19 de maro de 1964, em So Paulo, foi a manifestao popular mais importante efetuada contra o governo de Joo Goulart (1961-1964), nos
dias prvios ao golpe militar. Acontecimento objeto de ampla cobertura miditica pelas suas dimenses,
converteu-se em tema recorrente de sucessivas edies da Folha de So Paulo. A trajetria desses
discursos no jornal paulista, entre 1964 e 1999, mostra como so construdos pela imprensa brasileira
efeitos de sentido sobre acontecimentos histricos. Neste caso, revela-se o jogo que diversos grupos
sociais, religiosos, militares, polticos, empresariais e miditicos ativaram no jornal depois do comcio da
Central do Brasil, organizado pelo governo Goulart em 13 de maro de 1964, no Rio de Janeiro, com o
objeto de anunciar reformas polticas, a comear pelos setores petrolero e agrrio. Com o auxlio da
Anlise do Discurso (AD) e da sua perspectiva crtica, definem-se aqui algumas das implicaes
historiogrficas e miditicas desse acontecimento.
Palavras-chave: Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade; Folha de So Paulo; Golpe Militar de
1964; Histria; Brasil
Introduo
A imprensa fonte significativa de matrias e dados para a historiografia. Desde
os diversos cantos ideolgicos ela tem sido testemunha chave de boatos e fatos, de
conspiraes e consensos, de fracassos e sucessos, de tristezas e felicidades. Cada
jornal, todo dia, recolhe amostras da disperso desse desenvolvimento histrico. Ela
atua na recordao ou no esquecimento de acontecimentos, sociedades e personagens no
tempo. Por isso, pode-se dizer que A histria que a mdia faz, conta ou no conta, tal
como frisado no tema elegido para este encontro, a 50 anos do golpe militar que
abateu a democracia constitucional brasileira em 1964.
Nesse contexto, analisa-se aqui um corpus de textos produzidos pela Folha de
1 Trabalho apresentado no GT Historiografia da Mdia, integrante do 5 Encontro Regional Sul de
Histria da Mdia Alcar Sul 2014. 2 Doutorando do Programa em Desenvolvimento Sustentvel do Trpico mido no Ncleo de Altos
Estudos Amaznicos da Universidade Federal do Par. Comunicador Social (habilitao:
jornalismo) e Mestre em Histria, com experincia e interesse nas seguintes temticas: Jornalismo,
Imprensa, Histria, Amaznia e Tecnologias de Informao e Comunicao. E-mail: [email protected].
So Paulo antes, durante e depois da nomeada Marcha da Famlia com Deus pela
Liberdade, demonstrao pblica feita na capital paulista na tarde do dia 19 de maro
de 1964. Em total foram selecionados 93 textos publicados em diversas sees do
jornal, entre os anos 1964 e 1999 (o recorte temporal da pesquisa), nos quais aparecera
enunciada a denominao completa da marcha. E mesmo que o espao da pesquisa
esteja em princpio relacionado com essa cidade, cabe dizer que as implicaes do
evento tm a ver diretamente com o Brasil e sua histria, embora desde a viso de um
jornal influente no pas.
Com esse intuito, os conceitos de formao discursiva, ideologia, discurso e
disperso so explorados na procura de fazer uma anlise que d conta da relao mdia
histria a travs da imprensa. Conjuntamente utilizar-se- o quadrado ideolgico
desenvolvido por van Dijk (1998), com o objetivo de mostrar a relao das prticas
discursivas com os grupos sociais envolvidos no acontecimento e as formas em que eles
so enunciados nos diversos textos do corpus observado.
Tais ferramentas tericas e metodolgicas auxiliam no desvelamento de algumas
implicaes sobre o papel da imprensa no estabelecimento de distores, a partir da
seleo de fontes e fatos na produo da informao. Isto ainda mais evidente no caso
da Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade, evento que traz tona
posicionamentos de grupo e a ingerncia de setores eclesisticos e militares nos
assuntos civis.
A enunciao converteu-se assim numa lide entre os defensores da moral crist,
alguns setores empresarias e os militares, junto denominada classe mdia, contra a
cabea do governo da poca: Joo Goulart. Em reduzindo, a luta de quem estava com
Cristo e quem estava com Jango. No entanto, efeitos de sentido, veiculados na imprensa
e postos em jogo como prvia do Golpe Militar de 1964.
Elementos para uma anlise do discurso na imprensa
Ao se estudar a imprensa como fonte historiogrfica til consider-la como um
campo privilegiado de enunciao. Por tanto, campo em que tempo e espao so/esto
atrelados aos diversos contedos nela veiculados. Esta historicidade prpria da prtica
enunciativa leva ento problematizao da linguagem, como fora j apontado por
Foucault, quando sugeria o questionamento da vontade de verdade, a reconsiderao do
discurso como acontecimento e a elevao da soberania do significante ([1971], 1999,
p. 51). No mais nas pregoadas unidades da frase, da proposio ou do ato de fala,
aonde poderia se procurar o sentido, porque
O enunciado no , pois, uma estrutura (isto , um conjunto de relaes entre
elementos variveis, autorizando assim um nmero talvez infinito de modelos
concretos); uma funo de existncia que pertence, exclusivamente, aos
signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela anlise ou pela
intuio, se eles "fazem sentido" ou no, segundo que regra se sucedem ou se
justapem, de que so signos, e que espcie de ato se encontra realizado por
sua formulao (oral ou escrita). (FOUCAULT [1969], 2008, p. 98).
O enunciado est assim no limiar da anlise, caracterizado pela raridade, a
exterioridade e o acmulo, longe da totalidade, da interioridade ou da origem
procuradas num evolucionismo linear. No h ento um nico sentido ou verdade, e sim
uma histria especfica, uma regularidade materializada na descontinuidade e a
disperso dos enunciados. Da a ndole particular do que Foucault chamou de formao
discursiva:
No caso em que se puder descrever, entre certo nmero de enunciados,
semelhante sistema de disperso, e no caso em que entre os objetos, os tipos de
enunciao, os conceitos, as escolhas temticas, se puder definir uma
regularidade (uma ordem, correlaes, posies e funcionamentos,
transformaes), diremos, por conveno, que se trata de uma formao
discursiva - evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condies e
consequncias, inadequadas, alis, para designar semelhante disperso, tais
como "cincia", ou "ideologia", ou "teoria", ou "domnio de objetividade".
(FOUCAULT [1969], 2008, p.43).
Neste caso, tomada a opinio pblica como formao discursiva, que rene uma
disperso de enunciados e prticas especficas de uma sociedade no tempo e no espao,
junto ao quadro da formao ideolgica crist, que se poder fazer aqui uma anlise
dos discursos ativados na Folha de S. Paulo, com ocasio da Marcha da Famlia com
Deus pela Liberdade. Contudo, uma temporalidade, uma poca, no nem unidade,
nem horizonte, nem objeto de uma arqueologia e sim (...) um emaranhado de
continuidades e descontinuidades, de modificaes internas s positividades, de
formaes discursivas que aparecem e desaparecem. (FOUCAULT [1969], 2008,
p.198).
Por tanto, trazer aqui um perodo, relativo ditadura imposta pelo Golpe Militar
de 1964, procurar um emaranhado de disperso de enunciados, de continuidades e
descontinuidades discursivas, deixando que ele mesmo se desenrole em sua
especificidade.
preciso ainda explorar o que o discurso como elemento chave dessa anlise.
O termo 'discurso', como aqui usado, deriva-se dos estudos do discurso, especialmente
da denominada Anlise Crtica do Discurso (ACD). Nessa linha analtica ele designa
menos um campo de investigao delimitado do que certo modo de apreenso da
linguagem; modo no considerado como uma estrutura arbitrria, mas como a
atividade de sujeitos inscritos em contextos determinados. (MAINGUENEAU, 1998,
p. 43, sublinhado no original).
Dito em outras palavras,
O discurso, bem menos do que um ponto de vista, uma organizao de
restries que regulam uma atividade especfica. A enunciao no uma cena
ilusria onde seriam ditos contedos elaborados em outro lugar, mas um
dispositivo constitutivo da construo de sentido e dos sujeitos que a se
reconhecem. (MAINGUENEAU, 1997, p. 50).
A prtica discursiva nem mesmo comparvel transmisso de informao, j
que existe ali um processo complexo de constituio de sujeitos e criao de sentidos.
Tambm no convm fundament-la na ideia de comunicao, pois a linguagem serve
tambm para no comunicar; lembre-se que a relao de sujeitos e sentidos produz
efeitos mltiplos e variados, Da a definio de discurso: o discurso efeito de sentidos
entre locutores. (ORLANDI, 2010, p. 21). Uma prtica privilegiada na formao de
sujeitos e objetos, por tanto, no apenas de representao do mundo, mas de
significao do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado.
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 91).
Em relao com os aspectos histricos e relacionais do discurso tambm
adequado introduzir o noo de 'intertextualidade' ou propriedade que tm os textos de
trazer fragmentos de outros textos, que so delimitados explicitamente ou misturados e
que podem ser assimilados, contraditos, ironizados, etc., frisando sua historicidade; este
conceito enfatiza a heterogeneidade, diversidade e contradio que esto embutidos na
composio textual; ele () aponta para a produtividade dos textos, para como os
textos podem transformar textos anteriores e reestruturar as convenes existentes
(gneros, discursos) para gerar novos textos. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 135).
Salienta-se tambm a relao que o discurso guarda com as ideologias. Em
princpio, a 'ideologia' pode ser vista como uma noo vaga e controversa, como falsa
conscincia ou crenas erradas que servem aos grupos dominantes, mas, no sentido aqui
posto, ela pode representar um sistema de crenas ou, de maneira geral, um conceito
mais flexvel com o qual caracterizar no s quelas dominantes seno tambm s de
oposio, de resistncia. Ao respeito, entendidas Como sistemas de ideias de
movimentos e grupos sociais as ideologias no s fazem sentido para compreender o
mundo (desde o ponto de vista do grupo), mas tambm como uma base para as prticas
sociais dos membros do grupo. (DIJK, [s.d.], no paginado, friso no original).
Outra caracterstica importante de se assinalar que algumas ideologias chegam
at se 'naturalizar', sendo ento no mais visveis como ideologias e enxergadas mais
bem como 'senso comum'. Esta naturalizao poderia ser explicada no processo de
construo do sujeito e na noo de 'formaes discursivas ideolgicas' dominantes
(FAIRCLOUGH, 1995, p. 42). E, se o discurso e a linguagem constituem prticas
sociais especialmente expressivas das ideologias, esta noo , sem dvida, de utilidade
metodolgica na hora de analisar as dinmicas grupais, a partir das quais so
desenvolvidos os contedos publicados na imprensa. Ainda que antes de se fazer aqui
uma anlise, considera-se necessrio descrever sucintamente o jornal objeto de estudo.
Folha de noite, manh e tarde em So Paulo
Publicada primeiramente como Folha da Noite, o dirio comeou sua circulao
o sbado 19 de fevereiro de 1921, data em que comunicava sua poltica editorial, o seu
programa:
Toda e qualquer obstinao a proposito do que ha de mais incerto e inconstante
referimo-nos aos interesses pblicos sob o pretexto de coherencia de idas, de programma ou de tradies, sempre nos pareceu repugnar s
verdadeiras intelligencias e ser incompativel com a mutabilidade perenne dos
problemas sociaes e politicos, que a propria essencia da sua natureza.
(...) Em synthese: chamamos, ns outros, a isso opportunismo, vontade de acertar, levar em conta a fallibilidade humana. Outros, nisso querem ver
irresoluo, versatilidade, incoherencia. Seja como fr; no abriremos mo de
um direito que nos cabe. Sempre ao lado do povo, ou melhor, da nossa Patria
opportunismo eis o nosso programma.3
3 O NOSSO PROGRAMA. Folha da Noite, So Paulo, p. 1, 19 fev. 1921.
Oportunismo para agir conforme s circunstncias, aproveit-las em sua
mutabilidade e sua falibilidade; essa a orientao inicial do nascente jornal,
definindo desse modo uma prtica no dogmtica, sem obstinao sobre os interesses
pblicos. Junto com esses princpios o jornal mostra nessa edio sua ndole utilitarista
e comercial.4 Foi criado em contraposio ao O Estado de So Paulo, jornal de
tendncia conservadora e tradicionalista, publicado desde 1875.
A Folha da Noite foi se consolidando nos anos posteriores com a chegada da
Folha da Manh (1925) e da Folha da Tarde (1949). Os trs fusionaram-se finalmente
com o nome de Folha de So Paulo (1960), quando estabeleceram a divisa Um jornal a
servio do Brasil, com a preocupao de defender eficazmente os interesses do Estado
e do pas.5
Segundo a Associao Nacional de Jornais, a Folha de So Paulo foi o maior
jornal do Brasil por circulao paga, em 2012, com uma mdia de 297 mil 650
exemplares publicados diariamente, mantendo-se nos primeiros lugares desse ranking
durante a ltima dcada.6 A trajetria at aqui apresentada d uma ideia da influencia
nacional desse jornal, consolidada por mais de 90 anos de publicao. Por sua posio
ento um dirio que controla grande parte da agenda informativa e de opinio no Brasil.
Nesse contexto, a Folha de S. Paulo converte-se em sujeito de opinio pblica
privilegiado, com poder sobre o que contar ou no contar, sobre a palavra dita e no
dita, em relao com os acontecimentos objeto da sua agenda. Com as continuidades,
descontinuidades e transformaes que isso representa dentro de sua prtica pblica. ,
a voo de pssaro, a descrio da fonte de enunciao do corpus emprico selecionado.
Resta agora o estudo e discusso do sistema de disperso em que emergem esses
discursos no jornal.
4 As materias que trataremos nesta folha, que circular com grande tiragem em todo o Brasil, Portugal e
colonias, sero sempre de muita utilidade para os commerciantes, estudantes etc. pois visaro colocar
o commercio em guarda contra tantas interpretaes erroneas e indicar-lhe em fim o caminho para
certas operaes de utilidade para o seu negocio. TOME UMA ASSIGNATURA. Folha da Noite, So Paulo, p. 8, 19 fev. 1921. Inicialmente Olival Costa era o Diretor e Pedro Cunha o Gerente.
5 UM S NOME para os nossos trs jornais. Folha de So Paulo, So Paulo, p. 3, 1 jan. 1960.
6 ASSOCIAO NACIONAL DE JORNAIS. Maiores jornais do Brasil. ANJ. Disponvel em:
http://www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/jornais-no-brasil/maiores-jornais-do-brasil. Acesso em:
10 fev. 2014.
Queremos um governo cristo
A 19 de maro de 1964, com o apoio especial do governo do Estado, da
Federao das Indstrias do Estado de So Paulo (FIESP), da Sociedade Rural
Brasileira e da Igreja catlica, congregaram-se centos de milhares de pessoas na ento
denominada Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade.7 Em total, foram 59 as
entidades8 que promoveram diretamente a demonstrao. E ela mesma foi uma contesta
ao comcio realizado em 13 de maro desse ano na Central do Brasil, no Rio de Janeiro,
e na qual o Presidente Goulart anunciava uma srie de reformas polticas a se concretar
no seu governo.
O nome dado manifestao demonstrava o peso da Igreja catlica na sua
organizao. No entanto, discursos associados s ideias crists iam junto s arengas
contra o governo federal em cabea de Jango, como era conhecido o ento Presidente.
Segundo a Folha de S. Paulo, o movimento cvico levou meio milho de pessoas rua
para defender a Constituio, dentro do mesmo esprito que ditou a Revoluo de 329
(Imagem 1).
Imagem 1. Primeira pgina da Folha de S. Paulo, maro 20 de 1964
Fonte: Acervo Folha de So Paulo
7 A DERROTA INGLRIA de uma poltica de conciliaes. Folha de So Paulo, So Paulo, Folhetim, p.
5, 4 jan. 1984. 8 ENTIDADES DA MARCHA esto alertas. Folha de So Paulo, So Paulo, Edio da Tarde, p. 3, 20
mar. 1967. 9 SO PAULO PAROU ontem para defender o regime. Folha de So Paulo, So Paulo, p. 1, 20 mar.
1964.
S um dia antes dessa edio, isto , o dia da marcha, o mesmo jornal anunciava
o desembarco do General Nelson de Melo em Congonhas com o objeto de acompanhar
o evento, que era definido tambm como parte do movimento nacional de unidade
crist.10 Este carter cvico-militar-cristo da manifestao daquele 19 de maro vai se
consolidar nas sucessivas edies do jornal, ativando efeitos de sentido prprios da
formao ideolgica crist, junto a motivaes militares, comerciais, industriais e
polticas desse momento. A viagem feita anteriormente por Goulart China, as reformas
estatais por ele definidas e o fantasma do triunfo da revoluo cubana, levantavam
certamente preocupaes por parte desses setores. Foi ento quando os discursos
cristos exploraram-se ao mximo ante a previso de uma perda de poder decorrente das
reformas polticas que atingiam tambm ao capital nacional e internacional,
especialmente com a encampao das refinarias particulares que iriam voltar para a
petroleira estatal.
Desse modo, sucederam-se manchetes, relativos marcha, como um
acontecimento de transcendncia histrica para o pas. Antes do golpe foi chamada
como Marcha pela Liberdade e expuseram-se cartazes com divisas como Queremos
governo cristo e Cristo contra o comunismo,11 as quais salientavam claramente o
carter ideolgico cristo dado ao movimento poltico-militar que procurava o
derrubamento do governo. J nos dias posteriores ao golpe, as manchetes apelidavam-na
como Marcha da vitria que festejava a redemocratizao do pas.12
No comeo, o jornal aproveitou-se dos efeitos de sentido que uma manchete na
primeira pgina trazia ao se referir a So Paulo como cidade importante para o grande
capital brasileiro, mas tambm colocando o santo prottipo do cristo, de aquele
cidado romano que depois de perseguir cristos iria se converter para pregar o
evangelho cristo. Posto assim, era uma nova epstola dirigida pelo santo aos
10
HOJE A MARCHA em defesa da constituio. Folha de So Paulo, So Paulo, 2 edio, p. 7, 19 mar.
1964. 11
SANTOS BISA O sucesso da Marcha pela Liberdade. Folha de So Paulo, So Paulo, p. 21, 26 mar.
1964. 12
AMPARO COMEMORA 135 anos com Marcha da Vitoria. Folha de So Paulo, So Paulo, p. 5, 08
abr. 1964.
brasileiros, desta vez a travs da Folha de S, Paulo. Se o santo parou para defender o
regime, os cristos brasileiros deveriam faz-lo de igual modo. Deveriam implorar por
um governo cristo contra um comunista.
Mas, com posterioridade ao golpe, veio o sentido mais poltico daquela
manchete de primeira, falando nela como a Marcha da Vitria, dando conta das
Marchas pela vitoria da revoluo no interior.13 Isto , um dos sentidos acabou-se
impondo com o estabelecimento do governo militar, nomeado de revolucionrio e
redemocratizador. Desta maneira, enxerga-se o vis ideolgico do jornal ao suprimir
elementos positivos dos partidrios do governo Goulart, em quanto frisa esses
elementos nos setores envolvidos no golpe militar, salienta aspectos negativos daqueles
e tira nfase desses aspectos nos golpistas. Uma linha que o jornal sustentou
sistematicamente durante toda a ditadura (mais detalhadamente no Quadro 1).
Quadro 1. Quadrado ideolgico da Folha de S. Paulo sobre a Marcha
PRTICA
GRUPO Frisar (+) Suprimir/tirar nfase (-)
Ns -A Marcha em defesa da constituio -O sucesso da Marcha pela Liberdade -Queremos governo cristo
-Cristo contra o comunismo
-Largo foi pequeno
-Marcha foi da vitoria -Marcha festeja redemocratizao do pas
- E, a 31 de maro uniu-se ao movimento
revolucionario
-Hoje, o Pas espera que o sistema
revolucionario prossiga em sua obra
restauradora e de verdadeira democratizao
-Todo o pas comemorou a revoluo
-Foi de So Paulo que partiu o primeiro
brado de alerta, o primeiro protesto objetivo
-(...) de maior repercusso e espontaneidade
histrica da ptria contempornea
-Ela foi um ato de F, numa hora de Trevas
-(...) defendendo o pas da invaso pela
Rssia, para salvar a honra de nossas
mulheres
-(...) articulao poltica e militar nesta
vitria
-(...) na luta por segurana, tranquilidade, ordem e progresso
-Somos contra os que esto contra a lei e por ela faremos julg-los, sejam quais forem suas
vestes -Esta soluo uma das conquistas da
Revoluo -(...) opor um dique ao caos prestes a instalar-
se
-(...) originou a Revoluo de 31 de Maro
-Contra um quadro catico, veio a revoluo
-(...) uma democracia genuinamente
brasileira
-(...) abatendo a ditadura sindicalista que se
formava
-Dulce acha o povo despreparado para eleger
Presidente
-No cometeremos o pecado da omisso
-Missa por trabalho e salrio pode levar 100
mil praa da S
-A fome no Nordeste revolta marchadeiras -Porque o sistema falhou
-Eu tambm estou envergonhado de minha
participao
-Dos chefes aos quais ele se havia entregue
ele reclama sua liberdade
Eles -Comicio do dia 13 foi o estopim da -Reformas, sim; comunismo, no
13
MARCHAS PELA VITORIA da revoluo no interior. Folha de So Paulo, So Paulo, p. 8, 30 abr.
1964.
Revoluo
-Reformas sim, Jango no
-Atribui o atentado a descontentes com a
comemorao do segundo aniversrio da
Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade -(...) anarquia e irresponsabilidade vigentes
-(...) o movimento para o caos
-(...) maus brasileiros desvairados e
aventureiros
-(...) visando destruir as nossas instituies
nacionais
-(...) dissolver a sociedade em que vivemos
-(...) idias da fora brutal e materialista -Corrupo e subverso
-(...) a ameaa do comunismo
-Cordeiro de Farias negou a existencia da
chamada Marcha do Silencio, pois no se conhecem sequer os nomes dos seus
organizadores -(...) alaridos das cassandras comunistas,
aves agoureiras da traio, travestidas de
aguias da democracia
-As ambiguidades do Passeio Democrtico
Fonte: elaborao prpria a partir de textos da Folha de S. Paulo
Como mostrado no quadrado ideolgico (Quadro 1), a Folha de So Paulo
alinhou-se no grupo dos golpistas com suas prticas discursivas. O repertrio de
enunciados publicados pelo jornal vai caracterizar os seus inimigos como um catico
grupo comunista de maus brasileiros desvariados e aventureiros, de aves agoureiras
da traio, travestidas de guias da democracia, visando destruir as nossas instituies
nacionais. Culpa-o tambm por estar fora da lei e como causa mesma da reao
(revoluo) que eles empreenderam como obra restauradora e de verdadeira
democratizao.
Iseno, objetividade, disperso e vis ideolgico
Dentro do jornalismo iseno e objetividade so valorados como princpios
norteadores da prtica informativa. No primeiro caso, procurando se afastar da tomada
de partido nos acontecimentos objeto de cobrimento. No segundo, atingindo um nvel
de despersonalizao da escrita que responda, por sua vez, as perguntas bsicas do texto
informativo: quem, qu, onde, quando e como.
Contudo, numa perspectiva do jornalismo como prtica discursiva, e,
especificamente, no caso aqui pesquisado, esses princpios so deixados de lado em
favor de vieses ideolgicos que invertem a viso do jornalismo como um exerccio
transparente e veraz. No por acaso que a Folha de S. Paulo tenha publicado textos
contra a democracia durante toda a ditadura militar. De fato, ela foi um dos apoios mais
importantes para o regime militar ao servir de porta-voz dos seus partidrios e lembrar
por vrios anos consecutivos a Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade como um
ponto chave do mesmo.
No entanto, uma sequncia dessas no se deu como uma continuidade ordenada
de textos que tivessem uma coerncia prpria. A pesquisa revela ainda um sistema de
disperso que teve altas e baixas, inclusive, vozes discordantes do regime militar, as
quais afloraram mais frutiferamente no ano 1984. Um possvel esboo desse sistema de
disperso, assim como do vis ideolgico, proclamado em textos contra a democracia,
pode se enxergar na imagem 2.
Imagem 2. Vis ideolgico e disperso discursiva sobre a MFDL na Folha de S. Paulo (1964-1999)
Fonte: elaborao prpria
Considerando o carter temporal (T), nos meses em que apareceram matrias
sobre a marcha, alm do vis ideolgico (VI: - democracia, + democracia) e o destaque
dado pelo jornal aos textos publicados ( destaque maior, menor e mnimo),
construiu-se uma matriz que apresenta parcialmente o conjunto disperso dos discursos
sobre o evento de 19 de maro de 1964 na Folha de S. Paulo, publicados entre 1964 e
1999. Isso demonstra a descontinuidade no cobrimento do tema, atrelado a diferentes
matrias e conjunturas objeto de interesse por parte do jornal. Embora esse conjunto de
disperso concentre-se nos discursos por uma menor democracia no Brasil ao comeo e
durante a ditadura, encontram-se alguns discursos divergentes nos anos 1965 e 1968, em
uma tendncia que s ia se inverter a partir de 1983, quando os discursos mudaram-se
em prol duma maior democracia. Nesse sentido, em 26 de janeiro de 1984 o jornal
anunciava em primeira pgina e com grande destaque, ad portas dos 20 anos do golpe
militar, a multitudinria manifestao de pessoas nas ruas da cidade aclamando pela
volta das eleies diretas de Presidente (Imagem 3).
Imagem 3. Primeira pgina da Folha de S. Paulo, janeiro 26 de 1984
Fonte: Acervo Folha de So Paulo
Consideraes finais
A imprensa, fonte estimvel historiografia, vista desde uma tica discursiva,
revela as contradies e as descontinuidades prprias de uma prtica no isenta de
vieses ideolgicos e de interesses de grupo. Nesse contexto, a anlise feita aos textos
selecionados sobre a Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade, mostrou o papel da
Folha de S. Paulo como veculo de opinio pblica favorvel ao golpe de estado e
ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1983. Para isso o jornal explorou efeitos de
sentido e intertextos relativos ideologia crist e o seu papel perante a destruio da
sociedade e das instituies brasileiras pelo comunismo, encarnado no governo
constitucional de Joo Goulart (1961-1964).
S em setembro de 1983 que emerge uma inverso discursiva no tratamento
dessa temtica para se concentrar em discursos em prol da democracia e das eleies
presidenciais diretas. Assinala-se tambm a fragilidade da iseno e da objetividade
como princpios da prtica jornalstica ao desvelar vieses ideolgicos alm da mera
transmisso de informao, como colocado pelos estudos mais tradicionais da
comunicao.
Nessa ordem de ideias, optou-se pela Anlise Crtica do Discurso como recurso
terico e metodolgico para o estudo de um corpus de 93 textos, extrados da Folha de
S. Paulo dentre os anos 1964 e 1999. Conceitos como enunciao, ideologia, formao
discursiva, discurso e disperso foram fundamentais para descobrir a funo desse
jornal no golpe e posterior ditadura militar desses anos. Finalmente, considera-se esse
arcabouo terico-metodolgico de interesse especial para as pesquisas historiogrficas,
ao se manter a suspeita sobre a iseno e a veracidade nos discursos jornalsticos da
imprensa.
Referncias
A DERROTA INGLRIA de uma poltica de conciliaes. Folha de So Paulo, So
Paulo, Folhetim, p. 5, 4 jan. 1984.
AMPARO COMEMORA 135 anos com Marcha da Vitoria. Folha de So Paulo, So
Paulo, p. 5, 08 abr. 1964.
ASSOCIAO NACIONAL DE JORNAIS. Maiores jornais do Brasil. ANJ.
Disponvel em: http://www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/jornais-no-brasil/maiores-
jornais-do-brasil. Acesso em: 10 fev. 2014.
DIJK, T. A. van. Ideology: a multidisciplinary approach. New York: Sage, 1998.
______. Ideology and discourse: a multidisciplinary introduction. Barcelona:
Universidade Pompeu Fabra, [S.d.].
ENTIDADES DA MARCHA esto alertas. Folha de So Paulo, So Paulo, Edio da Tarde, p. 3, 20 mar. 1967.
FAIRCLOUGH, Norman. Critical discourse analysis: papers in the critical study of
language. New York: Longman, 1995.
______. Discurso e mudana social. Trad. Izabel Magalhes. Braslia: Editora da
Universidade de Braslia, 2001.
FOUCAULT [1969], Michel. A arqueologia do saber. 7 ed. Trad. Luiz Felipe Baeta
Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2008.
________ [1971]. A ordem do discurso : aula inaugural no Collge de France
pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 5. ed.
So Paulo: Edies Loyola, 1999.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendncias em anlise do discurso. Trad. Freda
Indurky. 3. ed. Campinas: Pontes, Ed. Universidade Estadual de Campinas, 1997.
______. Termos-chave da anlise do Discurso. Trad. Mrcio Vencio Barbosa; Maria
Emlia Amarante Torres Lima. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
'MARCHAS' PELA VITORIA da revoluo no interior. Folha de So Paulo, So
Paulo, p. 8, 30 abr. 1964.
O NOSSO PROGRAMA. Folha da Noite, So Paulo, p. 1, 19 fev. 1921.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Anlise de discurso : princpios e procedimentos. 9. ed.
Campinas: Pontes Editores, 2010.
SO PAULO PAROU ontem para defender o regime. Folha de So Paulo, So Paulo,
p. 1, 20 mar. 1964.
SANTOS BISA O sucesso da Marcha pela Liberdade. Folha de So Paulo, So
Paulo, p. 21, 26 mar. 1964.
TOME UMA ASSIGNATURA. Folha da Noite, So Paulo, p. 8, 19 fev. 1921.
UM S NOME para os nossos trs jornais. Folha de So Paulo, So Paulo, p. 3, 1 jan.
1960.