I. KANT Resposta à Questão O Que é Escla

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  • 7/25/2019 I. KANT Resposta Questo O Que Escla

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    I. KANT

    Resposta questo: O que Esclarecimento?

    (Introduo, traduo e notas por Vinicius de Figueiredo)

    Introduo

    Immanuel Kant (1724-1804) um dos filsofos mais lidos e discutidos nos dias de hoje.

    Suas contribuies abrangem todos os campos do saber, estendo-se da epistemologia

    moral, passando pelo pensamento jurdico-poltico, esttico e antropolgico. Dedicou-se a

    praticamente todos os assuntos em voga em sua poca - uma poca que ele mesmo

    definiu como a do Esclarecimento, e da qual somos em grande medida ainda tributrios.

    Da por que tomar conhecimento da filosofia kantiana e de sua articulao com o seutempo constitua uma oportunidade para seguirmos de perto a formao de concepes

    que orientam nosso prprio modo de compreender a realidade e agir sobre ela. Em suma,

    voltar a Kant uma maneira de compreender melhor as idias e princpios que nos fazem

    pensar como pensamos.

    Kant nasceu em Knigsberg, cidade porturia da Prssia oriental e que hoje se

    chama Kaliningrado epertence a Rssia. Kant jamais foi rico: perdeu a me cedo, teve

    uma infncia modesta e, para concluir seus estudos universitrios, foi trabalhar como

    preceptor. Tornou-se, em seguida docente privado, at que, em 1770, assumiu o cargo de

    professor catedrtico na Universidade de Knigsberg, onde lecionou at quase o fim de

    sua vida. Teve, portanto, uma vida marcada por muito trabalho e pouco divertimento. Ao

    menos este foi o retrato que, de seus contemporneos aos dias de hoje, se fez de Kant.

    Conta-se que nosso filsofo era to sistemtico quanto sua prpria filosofia, a ponto de os

    habitantes da vizinhana onde morava acertarem o relgio quando o viam fazer sua

    caminhada vespertina, que se repetiu exatamente no mesmo horrio no curso de vrios

    anos. Esta impresso que associa rigor e idiossincrasia tem sido questionada por estudos

    biogrficos mais recentes, que, sem recusar a relao entre vida e obra, tm procurado

    assinalar que Kant tambm foi um homem de seu tempo, dado aos prazeres da mesa e

    da conversao com amigos. Em suma, um sujeito privilegiado, capaz de fazer sistema

    sem, por isso, deixar de ser mundano.

    Kant publicou inmeros escritos, que so classificados pelos estudiosos em duas

    grandes fases: a dos textos pr-crticos e a dos textos crticos, nestes ltimos residindo

    a grande novidade de seu pensamento. Alm de operar como adjetivo que marca a

    reflexo mais original de Kant para a histria da filosofia, o termo crtica figura como

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    substantivo que abre o ttulo de suas trs principais obras: Crtica da razo pura(1781),

    Crtica da razo prtica(1788) e Crtica da faculdade-de-julgar(1790). Da por que o

    exame do significado de crtica constitua um timo expediente para realizarmos uma

    breve aproximao ao centro do pensamento filosfico de Kant

    Antes de voltarmos a Kant, entretanto, recordemos o que, em linhas gerais,significa crtica. Segundo o Dicionrio Caldas Aulete, crtica, em primeiro lugar, a arte

    ou faculdade de julgar o mrito das obras literrias e artsticas. Esta acepo encontra

    eco no Dicionrio Houaiss: crtica equivale habilidade ou arte de julgar a obra de um

    autor. Mas este no o nico significado do termo. Na relao de suas acepes, h

    uma especialmente relevante para ns: crtica= discernimento, capacidade, competncia

    para criticar; juzo crtico; critrio (Caldas Aulete) ou = atividade de examinar e avaliar

    minuciosamente tanto uma produo artstica ou cientfica quanto um costume, umcomportamento; anlise, apreciao, exame, julgamento, juzo (Houaiss). Crtica, conclui-

    se da, uma atividade intelectual que consiste em julgar uma obra, um costume ou um

    comportamento com base em critrios que pretendem ser razoveis. Quando julgo uma

    obra de arte como bela, por exemplo, reno motivos que me fazem concluir pela sua

    beleza. O mesmo vale para um comportamento ou um costume; se procuro examin-los

    criticamente, devo mobilizar razes para justificar meu parecer, favorvel ou no. A

    pretenso de ser razovel e a idia de fornecer razes da prpria convico possui por

    implicao o fato de que a atividade crtica requer a presena de outros homens,

    igualmente aptos para compreender e posicionar-se em relao ao tema proposto. S h

    crtica no horizonte de um debate pblico, por referncia ao qual cada um de ns enuncia

    seus juzos, corrigindo-os atravs da comparao com o juzo alheio. Pode-se dizer que,

    menos que a verdade, a crtica busca prevenir equvocos e formar consensos. Ela

    atualiza a virtual convergncia entre eu e meu semelhante, o que representa uma

    condio do discurso e da compreenso sobre o mundo que partilhamos em comum.

    Ao contrrio do que algum poderia pensar primeira vista, portanto, exatamente

    ali onde no dispomos de um critrio ltimo e definitivo sobre o assunto em pauta que se

    exerce a atividade e o juzo crticos. o que ilustra o caso da apreciao de obras

    artsticas ou literrias, cujo valor freqentemente revisto, conforme a perspectiva crtica

    em voga na poca destaque aspectos at ali negligenciados ou reinterprete a

    compreenso precedente formada acerca do objeto em debate. O mesmo vale para

    polticas pblicas, costumes, legislao. O fato de que nossos juzos possam modificar-

    se, assim, no representa uma prova de que tenham sido formulados sem crtica. Ao

    contrrio, enquanto atividade reflexiva, a crtica traz consigo a necessidade de sua

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    reviso a partir de novas razes que emergem a cada considerao que se faz do

    assunto em pauta. No fosse assim, a crtica tornar-se-ia em seu contrrio; ela resultaria

    naquilo cuja verdade se espera que as pessoas aceitem sem questionar, isto , em um

    dogma.

    Tal significado do termo crticaest presente na filosofia de Kant, juntamente comuma acepo especfica, que passaremos a examinar agora. Na Crtica da razo pura,

    crtica define-se em relao ao que Kant denomina a tradio dogmticaem filosofia

    designao sob a qual, grosso modo, Kant inclui quase todos os seus predecessores.

    Pode-se advinhar o que Kant compreende por isso: dogmatismo uma atitude filosfica

    caracterizada pela ausncia da crtica em relao ao que podemos conhecer atravs da

    razo. Em filosofia, o dogmatismo corresponde ao intuito de apresentar verdades ltimas

    sobre as questes mais essenciais ao homem, tais como a imortalidade da alma, aorigem do mundo (incluindo nisto o tema da liberdade) e a existncia de Deus, sem,

    todavia, indagar-se preliminarmente se, de fato, podemos avanar enunciados terico-

    especulativos sobre esses objetos. isto o que a crtica cuida de examinar, ao instituir o

    que est a nosso alcance conhecer. Ao fim deste exame, Kant conclui pela ilegitimidade

    dos enunciados dogmticos acerca do que se encontra para alm da experincia, isto , o

    supra-sensvel. A resposta negativa de Kant representa o fim da metafsica tradicional: ao

    contrrio do que haviam pretendido os filsofos dogmticos, no h como fornecer, com

    base apenas na razo, um conhecimento de matiz terico sobre a alma, a liberdade e

    Deus. Por outro lado, isso no significa que a razo no possa pensar tais objetos. Ao

    contrrio, Kant, especialmente na Crtica da razo prtica, mostra que esses temas so

    imprescindveis para nossa razo em sua dimenso prtica e moral. Crtica, aqui, significa

    correo de rumo, sem a qual os princpios que pautam nossa ao prtica

    permaneceriam refns de um pseudo saber terico, cujo acesso seria privilgio de

    poucos.

    Este acerto de contas com a filosofia dogmtica parte de um projeto mais amplo,

    que, conforme o que anunciado no Prefcio da Crtica da razo pura, anima no apenas

    os demais escritos de nosso autor, como tambm o movimento cultural em que o prprio

    Kant cuidou de inserir sua filosofia. Pois o que, no nvel do conhecimento, resulta na

    crtica do dogmatismo, encontra paralelo, no campo das instituies religiosas e da

    poltica, na recusa de princpios cuja enunciao queira isentar-se do livre e pblico

    exame da razo. Recordemos que Kant testemunhou a passagem do Antigo Regime ao

    mundo burgus, cujo iderio foi elaborado pelos assim chamados partidrios do

    Esclarecimento. Sua divisa corresponde conclamao de que faamos uso do nosso

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    prprio entendimento, sem subordinar nossa razo orientao de um entendimento

    alheio. Nada mais consoante com a transio a que aludimos acima: se, como diz Kant,

    sua poca no era ainda esclarecida, mas de esclarecimento, porque, no momento em

    que escrevia, a formao de um pblico leitor apto a formular juzos sobre toda sorte de

    assuntos ainda era muito recente. O elogio feito no texto abaixo traduzido a Frederico II(1712-1786), dspota esclarecido da Prssia, explica-se pela convico de que cabe ao

    governante administrar com firmeza seu Estado sem, todavia, dirigir a conscincia de

    seus sditos. Kant defende que o governante s tem a ganhar, quando permite que seus

    atos sejam objeto de uma avaliao crtica da parte de seus sditos, desde que estes

    enunciem seus juzos mobilizando sua razo, no seus interesses particulares. a idia

    de esfera pblica o que ressalta de nosso texto idia cuja articulao com o princpio

    geral da crtica, caro ao pensamento de Kant, confirma que este ltimo expresso doideal de emancipao que animou a cultura do sculo XVIII.

    Munidos destas indicaes, podemos abrir uma ampla frente de problemas que

    concernem desde questes sobre a filosofia e a poca de Kant, at o significado que a

    aposta efetuada por ele e os partidrios do Esclarecimento na esfera pblica como

    instncia crtica possui para os dias de hoje. Eis uma relao, nada exaustiva: 1) Em que

    medida podemos falar de um dogmatismo poltico, assim como, na Crtica da razo

    pura, Kant nos fala do dogmatismo filosfico? 2) Quais condies que Kant institui para o

    uso pblico da razo, que, segundo o texto abaixo, torna o Esclarecimento quase

    inevitvel? 3) Conforme o mesmo texto, a liberdade de usar publicamente a razo parece

    depender da existncia de um governante como Frederico II; isso, todavia, no subordina

    a perspectiva de emancipao enunciada por Kant ao acaso de sermos sditos de um

    dspota esclarecido? 4) com base em que argumentos a esfera pblica e a liberdade de

    opinio que ela implica podem ser defendidas como um elemento indispensvel para as

    democracias contemporneas? 5) A idia de um pblico universal, apresentada por Kant,

    resiste constatao de que a opinio pblica muitas vezes veicula interesses

    particulares? Noutros termos, a esfera pblica, nos dias de hoje, responde aos ideais de

    emancipao que Kant e o Esclarecimento viram nela?

    Bibliografia

    1) Principais obras de Kant:

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    KANT, I. Kants Werke, Ed. Kniglich Preussischen Akademie der Wissenschaften, Berlin,

    Georg Reimer, 1902 em diante

    KANT, I. Crtica da faculdade do juzo. (Trad. V. Rohden e A. Marques). Rio de Janeiro:

    Forense Universitria, 1993.KANT, I, Crtica da razo prtica. (Traduo V. Rohden). So Paulo: Martins Fontes,

    2003.

    KANT, I. Crtica da razo pura. (Traduo: Valrio Rohden e Udo Moosburguer), in: Os

    pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1980.

    KANT, I. (2008) Crtica da razo pura. (Traduo: M. P. dos Santos e A. F. Mouro),

    Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian.

    KANT, I. (1984) Idia de uma histria universal de um ponto de vista cosmopolita.(Traduo: R. Terra & R. Naves). So Paulo: Brasiliense.

    2) Obras introdutrias filosofia de Kant:

    CRAMPE-CASNABET, M. (2000) Kant: uma revoluo filosfica. Rio de Janeiro: Jorge

    Zahar Editor.

    FIGUEIREDO, V. (2005). Kant & aCrtica da razo pura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

    Editor.

    PASCAL, G. (2001) O pensamento de Kant. Petrpolis: Vozes.

    REGO, P. C. (2006) Kant: a revoluo copernicana na filosofia, in: V. Figueiredo (org.)

    Seis filsofos na sala de aula. So Paulo: Berlendis Editores, pp. 149-191.

    WOOD, A. (2008) Kant. Porto Alegre: Artmed.

    A Sociedade Kant Brasileira (SKB) possui uma publicao semestral intitulada Studia

    Kantiana, em que o leitor encontrar inmeros artigos sobre diversos aspectos da

    filosofia kantiana. O site da SKB, no qual se encontram informaes sobre o andamento

    das pesquisas sobre Kant :

    http://www.ufrgs.br/kantcongress/sociedadekant/

    3) Obras de interesse sobre o Esclarecimento e a esfera pblica:

    ADORNO, T. E HORKHEIMER, M (1985) Dialtica do esclarecimento. Rio de Janeiro:

    Jorge Zahar.

    CASSIRER, E. (1992)A filosofia do Iluminismo(Trad. lvaro Cabral). Campinas: Editora

    da Unicamp.

    EAGLETON, T. (1991)A funo da crtica. So Paulo: Martins Fontes.

    FOUCAULT, M. (2000). O que so as Luzes?, in: Ditos e escritos (vol. II). Rio de

    Janeiro: Forense Universitria, pp. 334-351.

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    HABERMAS, J. (1984) Mudana estrutural da esfera pblica. Rio de Janeiro: Tempo

    Brasileiro.

    HABERMAS, J. (2002) Discurso filosfico da modernidade. So Paulo: Martins Fontes.

    HOBSBAWM, E. J. (1997)A era das revolues: 1789-1848. So Paulo: Paz e Terra.

    KOSELLECK, R. (1999) Crtica e crise. (Trad. Luciana V-B. Castelo-Branco.) Rio deJaneiro: Contraponto.

    PERES, D. T. (2004) Metafsica e poltica. Salvador: EDUFBA/ So Paulo: UNESP.

    TERRA, R. (1995)A poltica tensa Idia e realidade na filosofia da histria de Kant. So

    Paulo: Iluminuras.

    Nota sobre a presente traduo

    O opsculo traduzido abaixo foi publicado originariamente em dezembro de 1784,

    com o ttulo original Beantwortung zu der Frage: Was ist Aufklrung?, no Mensrio

    Berlinense. O peridico, dirigido entre 1783 e 1796 por J. E. Biester (1749-1816) e F.

    Gedike (1754-1803), contava com vrios colaboradores ligados ao Esclarecimento -

    dentre os quais, alm do prprio Kant, Humboldt, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson.

    O texto de Kant que serviu de base para a presente traduo encontra-se no

    volume VIII da edio das obras completas de Kant pela Academia Real de Cincias deBerlim: KANT, I. Kants Werke, Ed. Kniglich Preussischen Akademie der Wissenschaften,

    Berlin, Georg Reimer, 1902 em diante , pp. 33-42. No corpo de nossa traduo, assinalamos a paginao da

    edio da Academia entre colchetes com a abreviao [AK]. Nas notas, as demais obras

    de Kant tambm so reportadas edio da Academia, exceo feita obra Crtica da

    razo pura, cuja paginao corresponde edio de 1781 [A].

    Dispomos, em portugus, de duas outras tradues do opsculo kantiano:KANT, I. (1974) Resposta pergunta: que Esclarecimento?, in: Textos seletos. Ed.

    bilnge. Trad. de Floriano de Souza Fernandes. Petrpolis: Vozes, p. 100-1167.

    KANT, I. (2008) Resposta pergunta: que Esclarecimento?. Traduo de Luiz Paulo

    Rouanet. Braslia: Casa das Musas.

    Para a elaborao de parte das notas da presente traduo, foram consultadas as

    seguintes obras:

    KANT, I. (1985) Rponse la question: Quest-ce que le lumires? (Traduo e notas

    de Heinz Wismann), in: KANT, I. Oeuvres philosophiques. Paris: Gallimard.

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    MAESTRE, A. (1993), Estudio Preliminar, in: ERHARD, J. B. e outros Que Ilustracin?

    Madrid: Editorial Tecnos, pp. XI-L.

    No seu artigo, Kant faz referncia a dois textos de poca, ambos publicados no

    Mensrio Berlinense. Uma dessas referncias figura na primeira nota do ensaio: o escrito

    de J. F. Zllner. A segunda figura na ltima nota: o escrito de M. Mendelssohn. Indicamos,abaixo, a referncia completa de ambos :

    ZLLNER, J. F. (1783) Ist es rathsam, das Ehebndnis nicht ferner durch die Religion zu

    sanktionieren? , in: Berlinische Monatsschrift, III, pp. 107-116.

    M. MENDELSSOHN (1784), ber die Frage: was heisst Aufklrung? , in: Berlinische Monatsschrift, IV, pp. 193-200.

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    Resposta questo: o que esclarecimento?

    [AK 35]

    Esclarecimento a sada do homem da menoridade pela qual o prprio culpado1.

    Menoridade a incapacidade de servir-se do prprio entendimento sem direo alheia. O

    homem o prprio culpado por esta incapacidade, quando sua causa reside na falta, no

    de entendimento, mas de resoluo e coragem de fazer uso dele sem a direo de outra

    pessoa. Sapere aude! Ousa fazer uso de teu prprio entendimento! Eis o lema do

    Esclarecimento.

    Inrcia e covardia so as causas de que uma to grande maioria dos homens,

    mesmo depois de a natureza h muito t-los libertado de uma direo alheia (naturaliter

    maiorennes2), de bom grado permanea toda vida na menoridade, e porque seja to fcil

    a outros apresentarem-se como seus tutores. to cmodo ser menor. Possuo um livro

    que faz as vezes de meu entendimento; um guru espiritual, que faz as vezes de minha

    conscincia; um mdico, que decide por mim a dieta, etc.; assim no preciso eu mesmo

    dispender nenhum esforo. No preciso necessariamente pensar, se posso apenas

    pagar; outros se incumbiro por mim desta aborrecida ocupao. Que, junto grande

    maioria dos homens (incluindo a o inteiro belo sexol) o passo rumo maioridade, j em si

    custoso, tambm seja considerado muito perigoso, para isso ocupam-se cada um dos

    tutores, que de bom grado tomaram para si a direo sobre eles. Aps terem emburrecido

    seu gado domstico e cuidadosamente impedido que essas dceis criaturas pudessem

    dar um nico passo fora do andador, mostram-lhes em seguida o perigo que paira sobre

    elas, caso procurem andar por prpria conta e risco. Ora, este perigo nem to grande,

    pois atravs [AK 36] de algumas quedas finalmente aprenderiam a andar; mas um

    exemplo assim d medo e geralmente intimida contra toda nova tentativa.

    1 Nota do Tradutor:A razo por que o artigo de Kant inicie pela definio de Esclarecimento explicatambm seu ttulo, a data a que este ttulo faz referncia e o contexto que lhe deu origem. Em setembro de1783, J. E. Biester publicou sob pseudnimo um artigo no Mensrio Berlinense, do qual era o editor, em quepropunha abolir a exigncia de que os matrimnios fossem sancionados pela Igreja. O argumento deBiester era simples: homens ilustrados poderiam perfeitamente dispensar o cerimonial religioso. Em artigopublicado no mesmo peridico em 5 de dezembro de 1783, J. F. Zllner responde a Biester, pedindocautela no assunto; afinal, dizia ele na concluso do texto, nem se sabe ainda ao certo o que Esclarecimento. Kant, dentre outros, decide entrar no debate com este texto, publicado em dezembro de

    1784, juntamente com a resposta de outro clebre intelectual do perodo, M. Mendelssohn, que mencionado em nota ao fim de nosso opsculo. Para as referncias aos textos relacionados nesta nota, verbibliografia.2 Nota do TradutorNaturalmente maiores.

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    portanto difcil para cada homem isoladamente livrar-se da menoridade que nele

    se tornou quase uma natureza. At afeioou-se a ela e por ora permanece realmente

    incapaz de servir-se de seu prprio entendimento, pois nunca se deixou que ensaiasse

    faz-lo. Preceitos e frmulas, esses instrumentos mecnicos de um uso, antes, de um

    mau uso racional de suas aptides naturais, so os entraves de uma permanentemenoridade. Tambm quem deles se livrasse, faria apenas um salto inseguro sobre o

    fosso mais estreito, visto no estar habituado a uma liberdade de movimento desta

    espcie. Por isso so poucos os que conseguiram, atravs do exerccio individual de seu

    esprito, desembaraar-se de sua menoridade e, assim, tomar um caminho seguro.

    Que um pblico se esclarea a si mesmo, porm, bem possvel; e isso at

    quase inevitvel, se lhe for concedida liberdade. Pois, mesmo dentre os tutores

    estabelecidos do vulgo, sempre se encontraro alguns livre pensadores, os quais, aps terem sacudido de si o jugo da menoridade, difundiro

    volta de si o esprito de uma avaliao racional do prprio valor e a vocao de cada um

    de pensar por si mesmo. H, nisto, uma peculiaridade: o pblico, que antes se encontrava

    submetido por eles a este jugo, em seguida obriga-os a permanecer sob ele, quando

    incitado por aqueles dentre seus tutores que so incapazes de todo esclarecimento. To

    prejudicial cultivar preconceitos, pois terminam voltando-se contra aqueles que foram

    seus autores, quer tenham sido eles prprios, quer seus antecessores. Por isso um

    pblico pode chegar ao esclarecimento apenas lentamente. Uma revoluo pode, talvez,

    produzir a queda do despotismo pessoal e da opresso vida e ambiciosa, mas jamais

    uma reforma verdadeira do modo de pensar; antes, novos preconceitos serviro, assim

    como os antigos, como amarras grande multido destituda de pensamento.

    Para este esclarecimento, no exigido nada mais seno liberdade; e, alis, a

    mais inofensiva de todas as espcies, a saber, aquela de fazer em todas as

    circunstncias uso pblicoda sua razo. S que ouo clamarem de todos os lados: no

    raciocineis! [Ak 37] O oficial diz: no raciocineis, mas exercitai! O conselheiro fiscal diz:

    no raciocineis, mas pagai! O sacerdote: no raciocineis, mas crede! (Somente um nico

    senhor no mundo diz: raciocinai tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes; mas

    obedecei!)3Por toda parte, o que se v limitao da liberdade. Porm, qual limitao

    liberdade contrria ao esclarecimento? Qual no o , sendo-lhe, antes, favorvel?

    3 Nota do Tradutor: O senhor a que se faz aluso neste passo Frederico II (1712-1786), rei daPrssia de 1740 at sua morte, nomeado e enaltecido por Kant na concluso do texto. O elogio deve-se a

    que Frederico, prximo dos partidrios do Esclarecimento, foi um dspota esclarecido. Aps sua morte, aasceno ao trono de Frederico Guilherme (1744-1797) representou um recrudescimento significativo naliberdade de opinio, atingindo o prprio Kant, advertido que foi pela publicao de A religio nos simpleslimites da razo(1793).

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    Respondo: o usopblicode sua razo deve sempre ser livre, e ele apenas pode difundir o

    esclarecimento entre os homens; o uso privado da mesma pode, contudo, ser

    estreitamente limitado, sem todavia por isso prejudicar sensivelmente o progresso do

    esclarecimento. Conpreendo, porm, sob o uso pblico de sua prpria razo aquele que

    algum faz dela como instrudo4

    diante do inteiro pblico do mundo letrado. Denominouso privado aquele que ele pode fazer de sua razo em determinado posto ou encargo

    pblico a ele confiado . Ora, em alguns ofcios, que concernem ao interesse da coisa

    pblica5, um determinado mecanismo faz-se necessrio, atravs do qual alguns membros

    da repblica precisam comportar-se de modo puramente passivo, para que, atravs de

    uma unanimidade artificial, sejam orientados pelo governo a fins pblicos, ou ao menos

    para impedirem a destruio destes fins. Aqui, evidentemente, no permitido raciocinar;

    antes, deve-se obedecer. Porm, to logo esta parte da mquina se considera comomembro de uma inteira repblica, sim, at mesmo da sociedade civil universal6, portanto,

    na qualidade de algum instrudo, que se dirige por meio de escritos a um pblico em

    sentido prprio, pode naturalmente raciocinar, sem que, por isso, prejudique os ofcios a

    que em parte est ligado como membro passivo7. Asssim, seria muito prejudicial, se um

    oficial, que recebesse alguma ordem de seus superiores, quisesse abertamente raciocinar

    em servio sobre a conformidade ou o benefcio desse comando; ele deve obedecer. Mas

    no se pode recusar-lhe devidamente que faa observaes sobre os erros no servio

    4 Nota do Tradutor: O termo alemo utilizado por Kant, e que vertemos por instrudo, Gelehrter.

    Para Kant e seus contemporneos, este termo tambm abrigava outras acepes, tais como sbio,erudito, douto. Nossa opo por instrudo baseia-se em que, neste texto, Kant no designa, comGelehrter, uma classe especfica de homens, singularizados por um saber ou competncia especial. Aocontrrio: Gelehter todo homem que, sabendo ler e escrever, est apto a inscrever-se em um debatepblico.5 Nota do Tradutor: Vertemos aqui por coisa pblica e, logo abaixo, por repblica a expresso

    gemeines Wesen, seguindo a opo adotada para ela por R. Terra e R. Naves na traduo brasileira deIdia de uma histria universal de um ponto de vista cosmopolita(ver biblio.).6 Nota do Tradutor: A sociedade civil universal exprime um ideal

    cosmopolita, por referncia ao qual o agente se considera a si mesmo e aos demais na condio de seresracionais e, por isso, capazes de enunciar juzos sem, ao faz-lo, restringir-se s circunstncias e interessesparticulares que singularizam sua inscrio concreta. Em Idia de uma histria universalde um ponto devista cosmopolita, publicada quase contemporaneamente a O que o Esclarecimento?, o cosmopolitismo apresentado como a perspectiva normativa sob a qual os acontecimentos humanos devem ser perfiladosem uma histria (cf. Idia, Ak, vol. VIII, 31, trad. p. 24). Em outro escrito, publicado em 1792 e intituladoSobre o dito: o que vale em teoria no vale na prtica, Kant auxilia a compreender melhor tal conceito, aoafirmar que h trs perspectivas sob as quais se considerar um assunto: 1) como homem privado; 2) comohomem poltico ; 3) como homem do mundo ou cidado do mundo em geral (I. Kant, Theorie und Praxis, Ak, vol. VIII, p 277; ver biblio.) 7 Nota do Tradutor: O Esclarecimento, como diz Kant no incio deste pargrafo, depende daliberdade de usarmos publicamente a razo. Compreender no que consiste este uso, assim, capital paracompreender todo o argumento de Kant neste texto. Kant explica o que seja o uso pblico, opondo-o ao uso

    privado da razo: cada um deles remente a mbitos diferentes. Quando o agente se reporta sociedadecivil universal, formada por todos os homens na condio de seres racionais, enuncia seus juzos sob umaperspectiva universal (ver nota precedente); quando se considera parte do mecanismo, usa sua razoprivadamente. Uso pblico da razo e cosmopolitismo figuram, desse modo, interligados.

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    militar e as exponha apreciao de seu pblico. O cidado no pode recusar-se a arcar

    com os impostos que lhe so cobrados; uma censura impertinente de tais taxas, na

    ocasio em que deve pag-las, pode at mesmo ser punida como um escndalo (que

    poderia ocasionar insubordinaes generalizadas). Apesar disso, o mesmo indivduo no

    age contra o dever de um cidado, quando, na condio de instrudo, exprimepublicamente seus pensamentos contra a impropriedade [AK 38] ou mesmo injustia de

    tais imposies. Do mesmo modo, um sacerdote est obrigado a professar seu sermo

    para seus catecmenos ou para a comunidade conforme o credo da igreja a que serve,

    pois foi sob essa condio que a foi admitido. Entretanto, na condio de instrudo,

    possui completa liberdade, antes possui a misso de compartilhar com o pblico todos os

    seus pensamentos cuidadosamente refletidos e bem intencionados sobre as imperfeies

    neste credo e as propostas voltadas para uma melhor orientao da religio e da Igreja.Nisto no h nada que pudesse ser reprovado a sua conscincia. Pois o que ele ensina

    por conta de sua funo enquanto dignatrio da Igreja, isso ele expe como algo em vista

    do que no possui livre poder para ensinar conforme bem entender, mas tem de faz-lo

    segundo a instruo e em nome de um outro. Dir: nossa igreja ensina isto e aquilo, e eis

    os argumentos de que se serve. Em seguida, junto a sua parquia, ir extrair todos os

    benefcios prticos de preceitos que ele mesmo no subscreveria com inteira convico,

    preceitos, porm, que pode empenhar-se em expor, pois no inteiramente impossvel

    haver alguma verdade envolta neles - desde que, porm, no se depare com nada que

    colida com sua religio interior. Pois, caso conclusse estar diante de uma contradio

    deste tipo, no poderia exercer com boa conscincia sua funo; teria de renunciar a ela.

    Logo, o uso que um ministro encarregado do ensino faz de sua razo junto a sua

    parquia to-somente um uso privado: porque, por maior que possa ser, esta apenas

    uma reunio domstica, em relao qual ele, enquanto sacerdote, no livre, nem pode

    s-lo, pois se encarrega de uma tarefa alheia. Em contrapartida, enquanto homem

    instrudo que fala atravs de escritos para o pblico propriamente dito, isto , o mundo, o

    eclesistico usufrui no uso pblico de sua razo de uma liberdade ilimitada de servir-se de

    sua prpria razo e em seu prprio nome. Pois que os tutores do povo (em coisas

    espirituais) devam ser eles mesmos tambm menores um absurdo, que favorece a

    perpetuao dos absurdos.

    Mas no deveria ser justificado a uma sociedade de eclesisticos, algo como um

    snodo, ou uma alta classe (como a si mesma se intitula entre os holandeses), obrigar-

    se uns para com os outros quanto a um credo, de modo a conduzir e perpetuar uma

    tutoria superior sobre cada um de seus membros e, atravs deles, sobre o [AK 39] povo?

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    Afirmo que isto inteiramente impossvel. Um tal contrato, que seria concludo para

    afastar definitivamente do gnero humano todo novo esclarecimento, absolutamente

    nulo e sem validade, e isso, mesmo se fosse homologado pelo poder supremo, pelos

    parlamentos e pelos mais solenes tratados de paz. Uma poca no pode aliar-se e

    conjurar para impor a poca seguinte um estado no qual lhe seja impossvel alargar seusconhecimentos (principalmente conhecimentos to caros a si), purificar-se dos erros e, de

    modo geral, prosseguir no esclarecimento. Isso seria um crime contra a natureza humana,

    cuja determinao originria reside exatamente nesta progresso; e os descendentes

    esto, portanto, completamente justificados a rejeitar aquelas resolues como absurdas

    e injuriosas. A medida de tudo o que pode ser decidido como lei para um povo reside na

    pergunta: pode um povo impor a si mesmo uma tal lei?8Sim, isso seria possvel por um

    perodo determinado e breve, na expectativa de uma lei melhor, a fim de introduzir umacerta ordem; perodo em que se deixaria livre cada cidado, especialmente o sacerdote,

    na qualidade de homem instrudo, para fazer publicamente, isto , atravs de escritos,

    suas consideraes sobre as imperfeies da instituio vigente. A ordem estabelecida,

    porm, permaneceria em curso, at que a compreenso da natureza dessas questes

    tivesse se estendido e se consolidado publicamente, a ponto de a unificao de suas

    vozes (ainda que no de todas) pudesse levar ao trono uma proposta em defesa

    daquelas parquias que, a partir de um exame aprofundado, concordassem em torno de

    uma reorientao religiosa, sem, todavia, obstar quelas que se contentassem com o

    estado de coisas precedente. Mas absolutamente ilcito firmar um acordo em torno de

    uma constituio religiosa permanente, que se pretendesse publicamente inquestionvel

    por todos, mesmo durante o curso da vida de um homem e, desse modo, por assim dizer

    aniquilar uma poca na marcha da humanidade rumo ao melhor e torn-la estril,

    prejudicando desta maneira a posteridade. Um homem na verdade pode, no que

    concerne a sua pessoa - e mesmo assim, somente por algum tempo , adiar o

    esclarecimento quanto ao saber que lhe incumbe; mas renunciar a ele, seja no que

    concerne a sua pessoa, seja tanto mais no que concerne posteridade, significa lesar os

    venerveis direitos da humanidade e deit-los abaixo. Mas o que nem um povo pode

    decidir sobre si mesmo [AK 40], menos ainda um monarca pode decidir sobre o povo;

    8 Nota do Tradutor: A idia de que s legtima uma lei que o povo poderia outorgar a si mesmo

    revela a proximidade (embora tambm existam diferenas) que a concepo poltica de Kant dasformulaes apresentadas por J.-J. Rousseau em Do contrato social. Kant foi leitor de Rousseau desde adcada de 1760, apoiando-se nele para formular o princpio da autonomia moral, exposto na Crtica darazo prtica(ver biblio.). Em nosso opsculo, tanto quanto em textos ulteriores de Kant, como a Doutrinado Direito (1797), assistimos transposio deste princpio da autonomia individual para o mbito dapoltica, concebida sob o signo da progresso da espcie humana rumo realizao de suas disposiesmorais mais elevadas.

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    pois sua autoridade legislativa reside exatamente no fato de que ele unifica em sua

    vontade a a inteira vontade do povo. Caso se contente em cuidar para que toda melhoria,

    presumida ou verdadeira, concorde com a ordem pblica, pode deixar, no resto, que seus

    sditos faam por si mesmos o que acharem necessrio para a salvao de suas almas;

    sua incumbncia no esta, mas sim a de evitar que eles, pela violncia, se impeamuns aos outros de trabalhar por sua determinao e promoo segundo todas as suas

    capacidades. Faz mesmo prejuzo a sua majestade ele imiscuir-se nisto, quando submete

    vigilncia de seu governo os escritos por meio dos quais seus sditos procuram purificar

    suas idias, quer o faa a partir de sua prpria compreenso superior no que se expe

    objeo: Caesar non est supra grammaticos9 quer, e em maior grau, quando rebaixa

    seu poder supremo, a ponto de sustentar em seu Estado o despotismo espiritual de

    alguns tiranos sobre o resto de seus sditos.Se, ento, for perguntado: vivemos agora em uma poca esclarecida? A resposta

    ser: no, mas em uma poca de esclarecimento. No atual estado de coisas, falta ainda

    muito para que os homens, tomados em seu conjunto, estejam em condies, ou possam

    vir a dispor de condies, de servirem-se de seu prprio entendimento sem a direo

    alheia de modo seguro e desejvel em matria de religio. Mas dispomos de sinais claros

    de que agora se encontra aberto para eles o campo em que podem trabalhar nisto

    livremente e de que diminuem paulatinamente os obstculos do esclarecimento geral ou

    da sada da menoridade pela qual eles prprios so culpados. Desse ponto de vista, esta

    poca a poca do esclarecimento, ou o sculo de Frederico.

    Um prncipe, que no considera indigno de si dizer que possui o dever de nada

    prescrever aos homens em matria de religio, mas de deix-los em total liberdade a este

    respeito, que, portanto, recusa que lhe associem o soberbo nome da tolerncia, ele

    mesmo esclarecido e merece ser louvado pelo mundo e pela posteridade em

    reconhecimento, como aquele que primeiro livrou o gnero humano da menoridade ao

    menos por parte do governo e fez cada um livre para servir-se de sua prpria razo em

    tudo o que concerne conscincia. Sob ele venerveis eclesisticos podem, na qualidade

    de homens instrudos e sem dano a seu dever funcional, submeter livre e publicamente

    prova seus juzos e ponderaes, num ou noutro ponto distantes do credo estabelecido; o

    que vale com mais forte razo para quem no estiver limitado por um dever funcional.

    Este esprito de liberdade expande-se tambm ao exterior, mesmo l onde tem de lutar

    com obstculos externos de um governo que no se compreende a si mesmo. Pois esse

    ltimo defronta-se com um exemplo de que, em regime de liberdade, no h o mnimo a

    9 Nota do Tradutor: Csar no est acima dos gramticos.

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    temer no que respeita paz pblica e a unidade da repblica. Pouco a pouco, os homens

    se desembaraam de sua brutalidade; basta cessar a arte de mant-los intencionalmente

    nela.

    Tratei do principal ponto do esclarecimento, isto , da sada dos homens da

    menoridade da qual so os prprios culpados, principalmente em matria de religio; poisno que concerne s artes e cincias nossos senhores no possuem interesse de exercer

    a tutela sobre seus sditos. Alm disso, aquela menoridade dentre todas a mais

    prejudicial, como tambm a mais desonrosa. Mas o modo de pensar de um chefe de

    Estado, que favorece o esclarecimento em matria religiosa vai alm e percebe que,

    mesmo em relao a sua legislao, no h perigo em admitir que seus sditos faam

    uso pblico de sua prpria razo e que apresentem ao mundo seus pensamentos sobre

    como tornar melhor sua redao, mesmo se isso for acompanhado de uma crtica francada legislao estabelecida; temos disso um exemplo ilustre, que faz com que nenhum

    monarca preceda aquele que reverenciamos10.

    Mas tambm somente aquele que, ele mesmo esclarecido, no teme as sombras,

    mas possui disposio um numeroso e bem disciplinado exrcito para assegurar a

    ordem pblica, pode dizer o que um estado no monarquico no pode se permitir:

    raciocinai quanto quiserdes e sobre o que quiserdes; apenas obedecei!11Aqui as coisas

    humanas revelam um curso estranho e no esperado, como tambm, quando o

    consideramos em larga escala, quase tudo nele paradoxal. Um grau maior de liberdade

    civil parece vantajoso liberdade de espritodo povo, e lhe coloca, entretanto, barreiras

    instransponveis; um grau menor da mesma, em contrapartida, proporciona

    a este o espao para expandir-se conforme todas as suas capacidades. Logo, se a

    10 Nota do Tradutor:Conforme a nota do Prefcio da Crtica da razo pura(I. Kant, Crtica da razopura, A XII) o exame crtico da razo concerne no apenas aos enunciados da metafsica, mas tambmqueles da religio e da legislao. A rigor, portanto, todo enunciado que possua uma pretenso normativa

    tem de submeter-se ao tribunal da crtica, caso pretenda obter o respeito de nossa razo. Mas o queconcluir, caso o monarca no deseje ver as razes de sua poltica discutidas publicamente? Percebe-se,assim, um aparente crculo no argumento de Kant: embora o Esclarecimento represente um passoindispensvel para a moralidade dos homens (afinal, determinao originria da humanidade reside nestaprogresso moral, diz Kant um pouco acima), o processo histrico em que ele se realiza se v subordinadoao aparecimento circunstancial de um governante esclarecido. Kant apresenta uma soluo para estadificuldade no outro texto a que j fizemos aluso, intitulado Idia de uma histria universal de um ponto devista cosmopolita. A relao entre necessidade, contingncia e finalidade tambm ser objeto da Crtica dafaculdade-de-julgar, de 1790. (Ver bibliografia).11 Nota do Tradutor: Raciocinai quanto quiserdes e sobre o que quiserdes; apenas obedecei! Olema que Kant associa a Frederico II traz luz uma dificuldade que foi recorrentemente discutida pelosintrpretes, a saber: at que ponto o Esclarecimento, no qual Kant lana suas fichas, no se v, na prtica,limitado pelos interesses do monarca? Nessa direo, vrios estudos historiogrficos (dentre outros, E. J.

    Hobsbawn; ver bibliografia) salientam o carter conservador da modernizao conduzida por dspotasesclarecidos como Frederico II e Catarina da Rssia (1729-1796). Sem desmerecer tais anlises, pode-seinterpretar o passo em pauta como a simples observao de que a liberdade de usar publicamente a razono traz riscos tranquilidade civil.

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    natureza desenvolveu sob este duro invlucro o germe de que cuida to delicadamente,

    isto , o pendor e a vocao ao pensamento livre, este paulatinamente reincide sobre o

    modo de sentir do povo (o que pouco a pouco torna este mais apto a agir livremente) e

    finalmente tambm at sobre os princpios do governo, o qual descobre ser propcio para

    si mesmo [AK 42] tratar o homem, que mais que uma mquina, conforme suadignidade12.

    Knigsberg, Prssia

    30 de setembro de 1784

    12 Nota do Autor: Nas Notcias hebdomadrias de Bschingde 13 de setembro, leio hoje, dia 30 do

    mesmo ms, o anncio do Mensrio Berlinense deste ms, no qual foi includa a resposta do Sr.Mendelssohn mesma pergunta. Ela ainda no chegou s minhas mos; tivesse chegado, eu teria retido apresente resposta, que agora s pode figurar aqui como ensaio sobre at que ponto o acaso pode trazer oacordo de pensamentos.