João Paulo Allain Teixeira - Direito, Hermenêutica e Decisão

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    Organizadores

    João Paulo Allain TeixeiraLouise Dantas de Andrade

    Direito, Hermenêutica e Decisão

    Recife, 2014

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    D598 Direito, hermenêutica e decisão / João Paulo Allain

    Teixeira, Louise Dantas de Andrade, organizadores.

    -- Recife: APPODI, 2014.

    141 p.

    ISBN: 978- 85- 64680- 02- 9

      1. Direito. 2. Hermenêutica (Direito). I. Teixeira, João

      Paulo Fernandes Allain. II. Andrade, Louise Dantas de. III.

    Título.

    CDU 340.1

    Créditos

    Editora: APPODI

    Organização e revisão: João Paulo Allain Teixeira e Louise Dantas de Andrade

    Design da capa: Ana Catarina Lemos

    Composição do miolo: Ana Catarina Lemos

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    APRESENTAÇÃO

    Uma das características mais destacadas do direito dogmaticamente organizado na Mo-dernidade, consiste na institucionalização de padrões decisórios, com o objetivo de viabilizara tutela das demandas sociais emergentes. Os textos aqui reunidos sugerem uma multiplici-dade de olhares sobre as possibilidades decisórias no direito, compreendido como fenômenonormativo sempre suscetível à crítica. A multifacetada compreensão do fenômeno jurídicopermite o estabelecimento de uma pluralidade de perspectivas teóricas, com os peculiaresrecortes oferecidos por cada olhar, daí o amplo espectro oferecido pelo pensamento jurídicocontemporâneo.

    Os trabalhos aqui reunidos são frutos eloqüentes das inquietações contemporâneas, re- velando um mosaico de perspectivas hermenêuticas para a compreensão do papel do direitoe das instituições nos nossos dias no que se refere à armação da cidadania e dos DireitosFundamentais.

    O conjunto de textos que ora é trazido à público, é resultado de um esforço coletivo desen- volvido no âmbito da disciplina “Lógica do Procedimento Jurídico”, ministrada no Programade Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco no primeiro semestrede 2013.

    Rafaella Amaral de Oliveira traz a análise dos efeitos da adoção do modelo pós-positivistaentre nós discutindo os limites e as possibilidades de emancipação através do neoconstitucio-nalismo, modelo europeu do pós-guerra que ganha posição de destaque na doutrina nacional apartir da promulgação da Constituição Federal de 1988; Eloy Moury Fernandes apresenta um

    profícuo debate sobre a construção do raciocínio jurídico a partir de Chaim Perelman na esferapenal da jurisdição brasileira; Renata Santa Cruz Coelho enfrenta a discussão sobre a justiçae bem no debate envolvendo comunitaristas e liberais; Partindo da contribuição de ChantalMouffe, Pedro Luciano da Silva Neto empreende uma discussão sobre o papel da mulher emum modelo de “democracia agonística”; A contribuição de Dimitri de Lima Vasconcelos e João Paulo Allain Teixeira caminha no sentido de apresentar Niklas Luhmann e sua Teoriados Sistemas, estabelecendo as bases gerais do pensamento de Luhmann e seus contornosprincipais; Sob o ponto de vista da apresentação de um modelo hermenêutico de controle dadecisão penal, Renan Gonçalves Pinto Marques analisa a proposta do direito como integridadeem Ronald Dworkin; Preocupada com o fenômeno do “ativismo judicial”, Priscila Braz do

    Monte dedica-se ao tema da efetividade constitucional; Oferecendo novos contornos ao temada judicialização da política, Fábio Rodrigo de Paiva Henriques discute a ampliação do papeldo Supremo Tribunal Federal a partir das inuências do direito comparado; Discutindo a tu-tela jurisdicional dos Direitos Humanos Ivna Cavalcanti Feliciano e Marcelo Labanca Correade Araújo discutem os efeitos do novo modelo constitucional de incorporação dos tratados aodireito brasileiro com o advento da EC/45 e a Convenção de Nova. York; Em um esforço decaptura das conexões entre a ocialidade e a realidade, Avner Pinheiro Cavalcanti oferece umaleitura da “Constituição Paraestatal”; Discutindo a construção moderna do direito, Elder PaesBarreto Bringel, enfrenta as relações entre positivismo e cienticidade; nalmente RobertoWanderley Nogueira apresenta duas leituras distintas da temática inclusivista, enfatizando ostemas da aposentadoria especial para pessoas com deciência e a questão do atendimento dasnecessidades de pessoas com deciência em procedimentos político-eleitorais.

    Como se percebe, trata-se de uma relevante contribuição da pós-graduação em direitopara a compreensão de questões que mobilizam a sociedade brasileira. Por m, é sempre

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    oportuno destacar que O PPGD-UNICAP tem se consolidado como espaço privilegiado paraa compreensão das potencialidades do Direito na sedimentação de uma cultura democráticano Brasil. A tematização do Direito a partir de bases hemenêuticas e em articulação com a afirma-ção dos Direitos Fundamentais reforça e confirma o conjunto de preocupações do grupo de pesquisa“Jurisdição Constitucional, Democracia e Constitucionalização de Direitos”, que integra a estrutura doPPGD-UNICAP.

     João Paulo Allain TeixeiraLouise Dantas de Andrade

    Recife, junho de 2014

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    Sumário

    APRESENTAÇÃO 5

    O ATIVISMO JUDICIAL E A MUDANÇA DE PARADIGMA NA LÓGICA JURÍDICA: POSITIVISMO, PÓS-POSITIVISMO E NEOCONSTITUCIONALISMO

    Rafaella Amaral de Oliveira 9

    TEORIAS RELATIVAS AO RACIOCÍNIO JURÍDICO: A LÓGiCA DA DECISÃO JUDICIAL PENAL BRASILEIRA A PARTIR DE UMA ABORDAGEM EXEGÉTICA DA CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA

    DAS DEMOCRACIAS POPULARES DE CHAΪM PERELMANEloy Moury Fernandes 27

    O JUSTO, O BEM E A POLÍTICA NAS PERSPECTIVAS LIBERAIS E COMUNITARISTAS

    Renata Santa Cruz Coelho 37

    O DEBATE SOBRE O PAPEL DA MULHER NO CENÁRIO DA POLITICA CONTEMPORÂNEA SOB A PERSPECTIVA DE CHANTAL MOUFFE

    Pedro Luciano da Silva Neto 45

    A TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN: UMA APRESENTAÇÃODimitri de Lima Vasconcelos

     João Paulo Allain Teixeira 54

    UMA PROPOSTA HERMENÊUTICA DE CONTROLE DA DECISÃO PENAL

    Renan Gonçalves Pinto Marques 64

    O “CONSTITUCIONALISMO DA EFETIVIDADE” E O ATIVISMOJUDICIAL

    Priscila Braz do Monte Vasconcelos dos Santos 74

    TRAJETÓRIA DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DO ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL: AMPLIAÇÃO DO PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A PARTIR DAS INFLUÊNCIAS DO DIREITO CONSTITUCIONAL COMPARADO

    Fábio Rodrigo de Paiva Henriques 87

    O NOVO MODELO CONSTITUCIONAL A PARTIR DOS TRATADOS SOBRE DIREITOS HUMANOS: IMPLICAÇÕES NA TUTELA JURISDICIONAL DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM 

    DEFICIÊNCIAIvna Cavalcanti Feliciano

     Marcelo Labanca Corrêa de Araújo 96

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    Sumário

    CONSTITUIÇÃO PARAESTATAL – LIGAÇÃO DO OFICIAL COM O REAL

     Avner Pinheiro Cavalcanti 107

    POSITIVISMO E CIENTIFICIDADE DO DIREITO

    Elder Paes Barreto Bringel 119

    APOSENTADORIA ESPECIAL: PREDICADO DE AFIRMAÇÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

    Roberto Wanderley Nogueira 130

    PESSOA COM DEFICIÊNCIA: ELEIÇÕES INCLUSIVAS

    Roberto Wanderley Nogueira 135

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    Capítulo 1

    tacando, para tanto, a relação entre justiça e segurança jurídica; conceitos como neoconstitu-cionalismo, ativismo judicial e judicialização das relações sociais, suas causas, consequênciase críticas.

    2. MUDANÇA DE PARADIGMA NA LÓGICA JURÍDICA: POSITIVISMO, PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO E NEOCONSTITUCIONALISMO

    O Estado moderno surge no Século XVI, ao m da Idade Média, fundado no direitodivino dos reis, predominando, na prática jurídica, o direito romano, ainda não sistematizadoem códigos. Na passagem do Estado absolutista para o Estado liberal, o direito incorpora o jusnaturalismo racionalista dos Séculos XVII e XVIII, fonte de inspiração para as revoluçõesfrancesa e americana bastante inuenciadas pelo pensamento de John Locke (BARROSO,2010, p. 229).

    O jusnaturalismo tem sua origem associada à cultura grega, na qual Platão já se referiaa uma justiça inata, universal e necessária. Consiste, basicamente, no reconhecimento de que

    há um conjunto de valores e pretensões humanas legítimas que não advém de uma norma jurídica posta pelo Estado, direito este, portanto, fundado em uma ética superior, apresentan-do-se, suscintamente, em duas variantes: a de uma lei ditada por Deus ou ditada pela razão(BARROSO, 2010, p. 229).

    Desde que o envolver político da Idade Moderna tomou, segundo Jellinek,o caráter irremediavelmente antinômico já referido, o direito natural foi afortaleza de ideias onde procuraram asilo tanto os doutrinários da liberda-de como os do absolutismo.Seria, pois, errôneo reconhecer na teoria jusnaturalista, da Idade Média à

    Revolução Francesa, ordem de ideias votada exclusivamente à postulaçãodos direitos do Homem. A burguesia revolucionária utilizou-a para estreitar os poderes da Coroa edestruir o mundo de privilégios da feudalidade decadente.[...] foi o direito natural a mais necessária e conservadora das doutrinas...(BONAVIDES, 2013, p. 41-42)

    O direito natural moderno, assim, desenvolve-se a partir do século XVI, buscando su-perar o ambiente teológico e o dogmatismo medieval de outrora. A ênfase na natureza e narazão humanas, e não mais na origem divina, é um dos marcos da Idade Moderna, na qual odireito foi reduzido à lei, vista como expressão superior da razão. O juiz, usando a consagradaexpressão de Montesquieu, era um “boca da lei”, e a interpretação gramatical e histórica cer-ceava-lhe a criatividade em nome de uma atuação supostamente objetiva e neutra.

    Com o Estado liberal, consolida-se os ideais constitucionais em textos escritos e o êxitodo movimento de codicação simboliza o apogeu do direito natural, mas, paradoxalmente,também sua superação histórica. Os direitos naturais cultivados ao longo de mais de dois milê-nios já não traziam a revolução, mas a conservação e sendo considerados anticientícos, foramrelegados à margem da história pela onipotência do positivismo do século XIX (BARROSO,2010, p. 238).

    Destarte, com o desenvolvimento do Estado na sua fase moderna, o jusnaturalismo jánão satisfazia mais aos anseios de controle do poder estatal e de convivência pacíca entre os

    membros da sociedade. A burguesia e o terceiro estado em França, em ns do século XVIII, in-amaram-se contra o monarca, representante, único intérprete e revelador da vontade divina,deagrando a revolução que poria m às arbitrariedades despóticas.

    Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., o positivismo jurídico surgiu em razão da neces-

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    Capítulo 1

    sidade de a sociedade burguesa estabelecer garantias para a sua categoria frente ao Estado,posto que, antes da Revolução Francesa, o sistema monárquico representava uma afrontadiante de tamanha discricionariedade, não desejável aos negócios, bem como a velocidade dastransformações tecnológicas desencadeadas pela Revolução Industrial reclamavam respostasmais rápidas do direito (FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 68).

    O positivismo jurídico intentou criar uma ciência jurídica próxima às ciências exatase da natureza, fundada no método cientíco (observação e empirismo) e que idealizava oconhecimento cientíco como objetivo, ou seja, partindo do método descritivo e da distinçãoentre sujeito e objeto, desprovido, assim, de preferências ou preconceitos, considerado a únicaforma de se chegar à verdade.

    Essa foi a intenção de Hans Kelsen ao desenvolver a Teoria Pura do Direito, no sentidode puricá-lo de qualquer inuência externa, para ser estudado como princípio metodológicofundamental. Kelsen concebe o sistema jurídico, cujo conteúdo é formado exclusivamente porregras jurídicas, isento de qualquer inuência da moral quando da aplicação da norma, uma vez que admitia a relação direito-moral apenas quando da elaboração da norma pelo legislador.

    Somente as normas, identicadas como as regras jurídicas, são enunciados normativos comum pressuposto e consequência.Segundo Kelsen, o direito se reduziria à norma, emanada pelo Estado, cuja validade

    decorreria do procedimento seguido para sua criação, independente do conteúdo. O ordena-mento jurídico seria uno e completo, inexistindo lacunas que não pudessem ser supridas apartir de elementos do próprio sistema.

     As teorias positivistas defendiam que a validade do direito deveria ser determinada ex-clusivamente por considerações formais (processo legislativo adequado). Portanto, ao contrá-rio do que ocorria no período pré-moderno, a validade do direito passaria a não mais dependerde sua conformação a uma determinada ordem de valores, havendo, assim, uma separação

    rígida entre direito e moral (PIRES, 2013, p. 31).Destarte, o direito poderia ser objetivamente descrito, sem valoração crítica de seuspreceitos, cabendo ao intérprete um ato de conhecimento, realizado na revelação do sentidocontido na norma, que incidiria silogisticamente sobre os fatos do caso concreto (subsunção).Caso o texto se prestasse a mais de uma interpretação, a decisão se convertia em ato de von-tade puro e simples, e o juiz teria discricionariedade para decidir como lhe conviesse ou lheparecesse melhor (PIRES, 2013, p. 31).

    Segundo Kelsen (2003, p. 390), a interpretação resultaria na determinação de umamoldura, dentro da qual todas as soluções seriam conformes ao direito. Assim, a produção doato jurídico dentro da moldura seria livre e se traduziria em ato de vontade do aplicador.

    Desta forma, até a Segunda Guerra Mundial, o paradigma positivista do Direito preva-

    leceu na Europa, consistindo em uma cultura jurídica essencialmente legicêntrica, que trata- va a lei editada pelo parlamento como a fonte principal ou exclusiva do Direito, e não atribuíaforça normativa às constituições. Estas eram vistas basicamente como programas políticos quedeveriam inspirar a atuação do legislador, não podendo ser invocados perante o Judiciário, nadefesa de direitos (SARMENTO, 2013, p. 76-77).

    O fato é que, após a Segunda Guerra Mundial, o positivismo jurídico entrou em des-crédito em razão das consequências advindas com o surgimento de Estados totalitaristas (na-zista e fascista). O culto exacerbado à supremacia da lei foi capaz de gerar consequênciassemelhantes àquelas que fundamentaram a sua criação. A lei criada para proteger e garantira liberdade dos cidadãos também autorizou a usurpação dessa mesma liberdade pelo Estado,

    possibilitando um governo tão descontrolado e ilimitado quanto aquele despótico repudiadopelos iluministas da Revolução Francesa. A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo possibilita-

    ram a ascensão de um amplo e ainda inacabado conjunto de reexões acerca do Direito, sua

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    Capítulo 1

    função social e interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de umideário difuso que inclui algumas ideias de justiça além da lei e de igualdade material mínima,advindas da teoria dos direitos fundamentais, da teoria crítica e da redenição das relaçõesentre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, quereaproximou o direito e a ética (BARROSO, 2010, p. 242).

    Certo é que o termo pós-positivismo abarca uma série de teorias elaboradas por juristase lósofos contrários ao ideal positivista que reduzia o direito à lei e a função do intérprete ade mero técnico jurídico que buscava na lei a solução para todos os casos a que estivesse sub-metido por meio de uma atividade mecânica de subsunção silogística.

     Assim, após meados do século XX, os elementos básicos que fundamentavam o positi- vismo jurídico começaram a ser relativizados, uma vez que as Constituições contemporâneascomeçaram a contemplar princípios e valores, contrariando o paradigma jurídico proposto porKelsen quando da sustentação do positivismo jurídico para a puricação do Direito.

     A partir de Herbert L. A. Hart, as ideias positivistas trazidas por Kelsen passam a serquestionadas. Quando Hart permite a incorporação de princípios e valores morais, o positi-

     vismo sofre um abrandamento nas suas concepções, surgindo duas formas de positivismo: opositivismo exclusivo (quantitativo) e o positivismo moderado (qualitativo).O positivismo exclusivo, também conhecido como duro (hard) e inexível, é o positi-

     vismo conforme as ideias de Hans Kelsen, compreendido pela separação total entre o direitoe a moral quando da aplicação da norma jurídica. Já o positivismo moderado, defendido porHart, é o soft positivism, uma forma mais leve de se conceber a teoria positivista do Direito(BRANCO, 2011, p. 50).

    O positivismo inclusivo (Hart) admite a inuência da moral no direito quando da in-terpretação e aplicação da norma, mas de forma subsidiária. O intérprete estaria livre para seutilizar de princípios e valores morais apenas quando existissem lacunas normativas (omissão

    legislativa). Em contrapartida, o positivismo exclusivo kelsiniano não admitia a possibilidadede o intérprete se utilizar de princípios quando da aplicação da norma, visto que o ordena-mento jurídico era completo em si, não existindo lacunas que não pudessem ser supridas pelopróprio ordenamento (BRANCO, 2011, p. 51).

    Para Eduardo Ribeiro Moreira, o termo pós-positivismo é, na verdade, uma nomencla-tura de transição, porque não prevê todos os avanços que vêm sendo elaborados. O momentode transição que representa é aquele existente entre o positivismo inclusivo e o neoconstitu-cionalismo, já que a passagem entre essas teorias não ocorreu de forma imediata (MOREIRAIn DIMOULIS; DUARTE, 2008).

     Ainda não há uma conformidade conceitual em torno do pós-positivismo: diversas li-nhas de pensamento podem ser agrupadas sob essa ampla rubrica. Todas têm em comum, no

    entanto, o reconhecimento de que o positivismo jurídico e o arcabouço teórico que ele cons-truiu são insucientes para lidar com o direito tal como se apresenta hoje (PIRES In FELLETet al, 2013, p. 31).

    Desta sorte, é recorrente ouvirmos falar em pós-positivismo, “não-positivismo prin-cipiológico”, constitucionalismo da efetividade, neoconstitucionalismo e novo constituciona-lismo, enquanto diferentes denominações para um novo paradigma teórico do Direito quepretende questionar alguns postulados fundamentais do positivismo jurídico (SILVA, 2006, p.3339-3340).

     A palavra neoconstitucionalismo não é empregada no debate constitucional norte-a-mericano, tampouco no que é travado na Alemanha. Trata-se de um conceito formulado, so-

     bretudo, na Espanha e na Itália, mas que tem repercutido bastante na doutrina brasileira nosúltimos anos, principalmente após a publicação, em 2003 na Espanha, da coletânea intituladaNeoconstitucionalismo (s) organizada pelo jurista mexicano Miguel Carbonell (SARMENTOIn FELLET et al, 2013, p. 75).

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    Capítulo 1

    Por sua vez, neoconstitucionalismo e pós-positivismo não são conceitos idênticos, poispossuem diferentes graus de amplitude teórica, visto que algumas teses losócas e metodo-lógicas do pós-positivismo extrapolam o âmbito dos questionamentos ordinariamente apre-ciados pelo neoconstitucionalismo. Indagações relacionadas à losoa do direito, tais comoracionalidade prática kantiana e as teorias sobre justiça, eminentemente pós-positivistas (não

    positivistas), estão além das discussões travadas pelos neoconstitucionalistas (SILVA, 2006, p.3340-3341)

     Ante a imprecisão terminológica para os dois termos, parece mais congruente queo pós-positivismo está relacionado à reação losóco-jurídica aos ideais positivistas, fazendorenascer alguns preceitos jusnaturalistas para o direito, sem, no entanto, buscar sua fonte delegitimação na vontade divina ou em leis da natureza emanadas de uma ética superior.

    O pós-positivismo, por meio das teorias de Robert Alexy, Ronald Dworkin, Konrad Hes-se, Habermas, entre outros, foi imprescindível para o desenvolvimento das novas teorias dehermenêutica constitucional (o neoconstitucionalismo), se é que podemos reduzir, no âmbitode inuência desse novo paradigma lógico do direito, o termo neoconstitucionalismo às teorias

    de argumentação jurídica.Em linhas gerais, o neoconstitucionalismo identica o constitucionalismo democráticodo pós-guerra, desenvolvido em uma cultura losóca pós-positivista caracterizada pela forçanormativa da constituição, pela expansão da jurisdição constitucional e por uma nova herme-nêutica. Dentre os neoconstitucionalistas, existem múltiplas vertentes (BARROSO, 2010, p.266):

    Os adeptos do neoconstitucionalismo buscam embasamento no pen-samento de juristas que se liam a linhas bastante heterogêneas, comoRonald Dworkin, Robert Alexy, Peter Häberle, Gustavo Zagrebelsky, Luigi

    Ferrajoli e Carlos Santigo Nino, e nenhum deles se dene hoje, ou já dedeniu, no passado, como neoconstitucionalista. Tanto dentre os referidosautores, como entre aqueles que se apresentam como neoconstituciona-listas, contata-se uma ampla diversidade de posições juslosócas e delosoa política: há positivistas e não-positivista, defensores da necessi-dade do uso do método na aplicação do Direito e ferrenhos opositores doemprego de qualquer metodologia na hermenêutica jurídica, adeptos doliberalismo político, comunitaristas e procedimentalistas (SARMENTO InFELLET et al, 2013, p. 75).

    Neste sentido, alguns autores identicam o neoconstitucionalismo como uma espé-

    cie de “constitucionalismo ético” ou “moral”, uma vez que a Constituição, ao incorporar osdireitos fundamentais e a deliberação democrática, teria denitivamente aberto o direito àavaliação moral com apoio na argumentação e nos princípios jurídicos (SILVA, 2006, p. 3350).

    [...] o neoconstitucionalismo se dedica à discussão de métodos ou de teo-rias da argumentação que permitam a procura racional e intersubjetiva-mente controlável da melhor resposta para os “casos difíceis” do Direito.Há, portanto, uma valorização da razão prática no âmbito jurídico. Para oneoconstitucionalismo, não é racional apenas aquilo que possa ser com-provado de forma experimental, ou deduzido more geometrico de premis-sas gerais, como postulavam algumas correntes do positivismo. Tambémpode ser racional a argumentação empregada na resolução das questõespráticas que o Direito tem de equacionar. A ideia de racionalidade jurídicaaproxima-se da ideia do razoável, e deixa de se identicar à lógica formal

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    Capítulo 1

    das ciências exatas(SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 80).

    Com as teorias pós-positivistas e as neoconstitucionalistas, houve a passagem de umparadigma jurídico centrado no conceito legalista de Estado de Direito para um novo paradig-

    ma articulado em torno da ideia de um Estado constitucional de Direito, cuja ordem jurídicaestá “impregnada” pela supremacia e pela ecácia “expansiva” das normas constitucionais.Buscando identicar as mudanças de paradigma na racionalidade jurídica, Eduardo

    Ribeiro Moreira elaborou um quadro explicativo, estabelecendo um paralelo entre as teoriastradicionais do Direito e o neoconstitucionalismo (BRANCO, 2011, p. 57-58):

    Tema Como é tratado pelas Teo-rias Tradicionais do Direito

    Como é tratado pelo Neoconsti-tucionalismo

    Sociedade Homogênea Plural e Global

    Moral Monista (sem correlação como direito no positivismo jurídi-co) ou dos Valores (absolutano jusnaturalismo)

    Construtivista, com Parâmetros deRacionalidade Prática e Pretensãode Correção, que vai guiar todo o dis-curso jurídico e romper com a ordemdaquilo que é.

    Política

    Estado de Direito (com espe-cial atenção à coerção exerci-da pelo Poder Judiciário e aos

    atos do poder público)

    Estado Constitucional (acrescentauma especial atenção para as ema-nações do poder constituinte e cons-tituído – reformas constitucionais – epara o papel desempenhado pelo Tri- bunal Constitucional. Em primeiroplano, aparece a constante vigilânciaem torno dos Direitos Fundamentais,que permitem o direito como umtodo alcançar novo status)

    Desenho Institucional dasFontes do Direito

    Lei em primeiro plano e de-mais fontes tidas como secun-dárias

    Primazia da Constituição e da Juris-prudência emanada pelo TribunalConstitucional

    Teoria da Norma Conjunto de Normas comcongurações de regras

    Primazia dos princípios preenchidospela argumentação jurídica. Existên-cia das normas políticas e dos crité-rios jurídico-procedimentais, alémde regras e princípios com morfolo-

    gia peculiar.

    Teoria da interpretação

    Regras para interpretação e,quando estas não existirem, ointérprete é livre para julgar.

    Metodologia constitucional apurada,considerando valores e criando con-ceitos como a derrotabilidade. Todainterpretação jurídica é interpreta-ção constitucional.

    Teoria do Direito Positivismo (exclusivo ouinclusivo)

    Neoconstitucionalismo

     

    No Brasil, só é possível falar em neoconstitucionalismo, efetivamente, após a promul-gação da Constituição de 1988. Já existia controle de constitucionalidade desde 1891 (con-trole difuso), porém, para a cultura jurídica de até então, as constituições eram vistas comomeras promessas políticas, desprovidas de qualquer força normativa.

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    Capítulo 1

    [...] cultura jurídica brasileira de até então, as constituições não eram vistas como autênticas normas jurídicas, não passando muitas vezes demeras fachadas. Exemplos disso não faltam: a Constituição de 1824 fa-lava em igualdade, e a principal instituição do país era a escravidão ne-gra; a de 1891 instituíra o sufrágio universal, mas todas as eleições eram

    fraudadas; a de 1937 disciplinava o processo legislativo, mas enquantoela vigorou o Congresso esteve fechado e o Presidente legislava por de-cretos; a de 1969 garantia os direitos à liberdade, à integridade física eà vida, mas as prisões ilegais, o desaparecimento forçado de pessoas e atortura campeavam nos porões do regime militar. Nesta última quadrahistórica, conviveu-se ainda com o constrangedor paradoxo da existênciade duas ordens jurídicas paralelas: a das constituições e a dos atos insti-tucionais, que não buscavam nas primeiras o seu fundamento de valida-de, mas num suposto poder revolucionário em que estariam investidas asForças Armadas.[...] Até 1988, a lei valia muito mais do que a Constituiçãono tráco jurídico, e, no Direito Público, o decreto e a portaria ainda va-liam mais do que a lei (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 85-86).

     A Constituição de 1988 inaugura uma nova fase no constitucionalismo brasileiro, con-templando um amplo e generoso elenco de direitos fundamentais (individuais, difusos, cole-tivos, políticos, sociais...), protegidos do poder de reforma ao serem elevados ao patamar decláusulas pétreas (artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV) e cuja aplicabilidade é imediata (artigo 5º,parágrafo 1º).

     Ademais, a Constituição Cidadã reforçou o papel do Poder Judiciário e do MinistérioPúblico de várias formas, dentre elas: consagrando a inafastabilidade de jurisdição (artigo 5º,inciso XXXV); criando novos remédios constitucionais (o habeas data e o mandado de injun-

    ção); ampliando os mecanismos de controle de constitucionalidade ao instituir o controle dainconstitucionalidade por omissão, bem como democratizando o acesso ao controle abstratode constitucionalidade, ao ampliar o rol de legitimados ativos para a propositura de ação diretade inconstitucionalidade (art. 103).

    Outro momento importante é o da chegada ao Brasil das teorias jurídicas pós-positi- vistas, sendo marcos relevantes a publicação da 5ª edição do Curso de Direito Constitucional,de Paulo Bonavides, e o livro A Ordem Econômica na Constituição de 1988, de Eros Rober-to Grau, que divulgaram a teoria dos princípios de autores como Ronald Dworkin e Robert Alexy, fomentando discussões importantes como a ponderação de interesses, o princípio daproporcionalidade, ecácia dos direitos fundamentais e as teorias do “mínimo existencial”, da“reserva do possível” e da “proibição do retrocesso. Não se deve olvidar também a inuência

    no meio acadêmico, após os anos 90 do século XX, do pensamento de lósofos que se voltarampara o estudo da relação entre Direito, Moral e Política, a partir de uma perspectiva pós-me-tafísica, como John Rawls e Jürgen Habermas, bem como o aprofundamento dos estudos dehermenêutica jurídica, proporcionado por uma nova matriz teórica inspirada pelo giro linguís-tico na Filosoa, que denunciou os equívocos do modelo positivista de interpretação até entãodominante, assentado na separação cartesiana entre sujeito (o intérprete) e objeto (o texto danorma) (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 89).

     Apesar destas mudanças importantes associadas ao neoconstitucionalismo, o uso daexpressão no Brasil é mais recente, seguindo à ampla divulgação que recebeu na doutrina a jácitada obra Neoconstitucionalismo(s), organizada por Miguel Carbonell.

    Outrossim, no Brasil, o neoconstitucionalismo foi também impulsionado pela descren-ça geral da população em relação à política majoritária, e, em especial, o descrédito no PoderLegislativo, devido aos corriqueiros escândalos de corrupção, fatos estes que fortaleceram asexpectativas de que a solução para os problemas nacionais pudesse estar na atuação mais

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    proativa do Poder Judiciário. E este sentimento é fortalecido quando a Justiça adota decisõespopulistas, como ocorreu na denição de perda do mandato por indelidade partidária e naproibição do nepotismo na Administração Pública (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p.95).

    Destarte, a percepção de que as maiorias políticas podem perpetrar ou acumpliciar-

    se com a barbárie, como ocorrera no nazismo alemão e no fascismo italiano, desencadeoua criação ou fortalecimento da jurisdição constitucional, instituindo as novas constituiçõesmecanismos potentes de proteção dos direitos fundamentais mesmo em face do legislador(SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 77).

    Neste contexto, cresceu muito a importância política do Poder Judiciário, como se estefosse o “guardião das promessas civilizatórias dos textos constitucionais” e, cada vez mais,questões polêmicas e relevantes para a sociedade saíram da arena política para a jurídica,principalmente para as cortes constitucionais, muitas vezes em razão de ações propostas pelogrupo político ou social que fora perdedor no âmbito legislativo (SARMENTO In FELLET etal, 2013, p. 79).

    Externaliza-se, então, discussões relacionadas aos limites da atividade jurisdicionalem um Estado Democrático Constitucional de Direito, principalmente, no que diz respeito àlegitimação do Poder Judiciário como último guardião dos preceitos constitucionais, sendo oargumento da violação ao princípio da separação de poderes o mais utilizado para justicar ainanição do Judiciário frente a alguns dilemas de concretização de direitos fundamentais.

    Historicamente, atribui-se a Montesquieu, em sua célebre obra O Espírito das Leis(1748), a elaboração das modernas bases do princípio da separação (tripartição) de poderes,cunhado com o objetivo de limitar a atuação dos detentores do poder estatal. São conhecidasas passagens dessa obra em que arma que “a experiência eterna nos mostra que todo homemque tem poder é sempre tentado a abusar dele; e assim irá seguindo, até que encontre limites.

    (...) Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas o podercontenha o poder” (MONTESQUIEU, 2002, p. 164-165).Montesquieu não foi original ao elaborar a teoria da separação de poderes. Bebeu na

    fonte de Aristóteles (A política) e de John Locke (modelo de constitucionalismo inglês do qualfoi admirador), divulgando e renando as ideias iniciadas por Locke, com um acréscimo prin-cipal, de que os poderes são equilibrados. Para ele, haveria um equilíbrio entre o poder legis-lativo, o poder executivo do Estado e o poder de julgar, para que “o poder contenha o poder”.É a origem do sistema de freios e contrapesos (checks and balances) para o qual cada poderdeveria, com a parcela de poder que lhe foi atribuída, limitar ou frear os demais com objetivode perpetrar o equilíbrio de forças (FERNANDES, 2010, p. 40).

    Insta observar que Montesquieu nunca defendeu uma separação absoluta entre pode-

    res: por um lado, reconhecia-se ao Executivo o direito de veto; por outro, o Legislativo exercia vigilância sobre o Executivo, votando leis e podendo exigir explicações dos Ministros; nal-mente, o Legislativo interferia na ação julgadora quando se tratava de “julgar os nobres pelaCâmara dos Pares, na concessão de anistias e nos processos políticos que deviam ser aprecia-dos pela Câmara Alta” (FERNANDES, 2010, p. 40).

    Cabe, outrossim, rememorar que o citado princípio deve ser compreendido desde assuas origens e com o propósito de quais interesses de classe buscou atender em cada momentohistórico. É certo que nunca houve uma separação estrita de funções entre os Poderes insti-tucionais, posto que todos eles possuem funções típicas e atípicas. O Poder Executivo possuicomo função típica a gestão da “coisa” pública, mas o Presidente da República, por exemplo,

    legisla toda vez que faz publicar uma medida provisória. O Poder Judiciário, por essência,detém jurisdição em todo o território nacional, mas legisla ao editar suas resoluções ou instru-ções normativas. O Poder Legislativo, por sua vez, representante indireto da soberania popular,deve criar leis que possibilitem a convivência em sociedade, mas julga seus próprios membros

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    quando vão de encontro ao decoro parlamentar, podendo cassar-lhes o mandato. Ademais, em cada momento histórico, houve a preponderância de um Poder sobre

    o outro. Quando da elaboração do conceito da tripartição de poderes por Montesquieu, oLegislativo prevaleceu sobre qualquer outro Poder, uma vez que, na França revolucionária, buscou-se elidir as arbitrariedades despóticas do monarca, representante do Executivo, e os

     juízes eram vistos com grande desconança, pois, durante o absolutismo, representaram osinteresses minoritários da nobreza e da Coroa.

     Já em épocas de grande instabilidade institucional (guerras e estados totalitaristas,entre outros), o Poder prevalecente é o Executivo, posto que detém o comando das Forças Ar-madas, podendo suplantar os demais, ordenando o fechamento do parlamento, por exemplo,e cassando o mandato político de parlamentares sem as observâncias do devido processo legal,dentre outras arbitrariedades. No entanto, em épocas de estabilidade institucional (demo-cracia...), o Poder em destaque é o Judiciário, guardião dos valores constitucionais e direitosfundamentais.

    Quando cuidamos dever abandoná-lo no museu da Teoria do Estado que-remos, com isso, evitar apenas que seja ele, em nossos dias, a contradiçãodos direitos sociais, a cuja concretização se opõe, de certo modo, comotécnica dicultosa e obstrucionista, autêntico tropeço, de que inteligente-mente se poderiam socorrer os conservadores mais perspicazes e reniten-tes da burguesia, aqueles que ainda supõem possível tolher e retardar oprogresso das instituições no rumo da social-democracia.[...] Um desses esquemas foi o da divisão de poderes, que tinha como obje-to precípuo servir de escudo aos direitos da liberdade, sem embargo de suacompreensão rigorosamente doutrinária conduzir ao enfraquecimento doEstado, à dissolução de seu conceito, dada a evidente mutilação a que se

    expunha o princípio básico da soberania [...].[...] Chegamos, de nossa parte, a essa conclusão: a teoria da divisão depoderes foi, em outros tempos, arma necessária da liberdade e arma-ção da personalidade humana (séculos XVIII e XIX). Em nossos dias éum princípio decadente na técnica do constitucionalismo. Decadente em virtude das contradições e da incompatibilidade em que se acha perantea dilatação dos ns reconhecidos ao Estado e da posição em que se devecolocar o Estado para proteger ecazmente a liberdade do indivíduo e suapersonalidade. (BONAVIDES, 2013, p. 64-86)

    No Brasil, por exemplo, quase todas as Constituições, desde o Império à República,consagraram o princípio da tripartição de poderes, no entanto, meramente em bases nomi-nais. Basta lembrar o Poder Moderador, instituído na Constituição de 1824, que concedia aoImperador Dom Pedro I poderes acimas dos demais.

    Ocorre que, o princípio da separação de poderes, que nas origens de sua formulaçãotalvez tenha sido o mais sedutor, magnetizando os construtores da liberdade contemporâneae servindo de inspiração e paradigma a todos os textos de Lei Fundamental, como garantiasuprema contra as invasões do arbítrio nas esferas da liberdade política, hodiernamente, já nãooferece o fascínio das primeiras idades do constitucionalismo ocidental.

    No neoconstitucionalismo, a leitura clássica do princípio da separação de poderes,que impunha limites rígidos à atuação do Poder Judiciário, cede espaço a outras visões mais

    favoráveis ao ativismo judicial em defesa dos valores constitucionais, dando lugar a teorias dedemocracia substantiva em detrimento de concepções estritamente majoritárias do princípiodemocrático, que legitimam amplas restrições aos poderes do legislador em nome dos direitosfundamentais e da proteção das minorias, possibilitando a sua scalização por juízes não elei-

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    tos. E ao invés de uma teoria das fontes do Direito focada no código e na lei formal, enfatiza-se a centralidade da Constituição no ordenamento, a ubiquidade da sua inuência na ordem jurídica, e o papel criativo da jurisprudência (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 80-81).

    Portanto, de fundamental importância foram as experiências traumáticas oriundas dosregimes totalitários vivenciadas pela humanidade para que o direito se aproximasse cada vez

    mais da ética, havendo uma quebra do paradigma positivista em prol de uma maior efetivaçãodos direitos humanos liderada pelo Poder Judiciário, último intérprete e guardião dos preceitosconstitucionais.

    3. ATIVISMO JUDICIAL

     A locução “ativismo judicial” foi utilizada, pela primeira vez, pelo historiador Arthur M.Schlesinger Jr. quando publicou, na revista Fortune, um artigo intitulado The Supreme Court:1947, buscando descrever a divisão existente à época. O grupo de Black e de Douglas acredi-tava que a Suprema Corte podia desempenhar um papel armativo na promoção do bem-estar

    social; já o grupo de Frankfurter e Jackson defendia uma postura de autocontenção judicial. Assim, o grupo Black-Douglas estava mais preocupado com a utilização do poder judicial emfavor de suas próprias concepções do bem social; enquanto que o grupo de Frankfurter-Jack-son, com a preservação do Judiciário na sua posição relevante, como um instrumento parapermitir que os outros Poderes realizassem a vontade popular, seja ela melhor ou pior (BAR-ROSO, 2013, p. 7-8).

    Desse modo, o termo ganhou expressão e foi utilizado como rótulo para qualicar aatuação da Suprema Corte durante os anos em que foi presidida por Earl Warren, entre 1954e 1969, período este marcado por uma profunda e silenciosa mudança de práticas políticasnos Estados Unidos da América, sem que, contudo, tenham o Congresso ou o Presidente da

    República emanados quaisquer atos. Mudança, pois, conduzida por uma jurisprudência pro-gressista em matéria de direitos fundamentais (BARROSO, 2013, p. 8). A partir de então, por força de uma intensa reação conservadora, a expressão ativismo

     judicial assumiu, nos Estados Unidos, uma conotação negativa, depreciativa, equiparada aoexercício impróprio do poder judicial, dos quais são exemplos: a declaração de inconstitucio-nalidade de atos de outros Poderes que não sejam claramente inconstitucionais; a rejeiçãoà aplicação de precedentes; o legislar pelo Judiciário; o distanciamento das metodologias deinterpretação normalmente aplicadas e aceitas; e os julgamentos em função dos resultados(BARROSO, 2013, p. 8).

    É bem verdade que o ativismo judicial precedeu a criação do termo, e, nas suas ori-gens, era essencialmente conservador. De fato, foi na atuação proativa da Suprema Corte

    que os setores mais reacionários encontraram amparo para a segregação racial (Dred Scott v.Sanford, 1857) e para a invalidação das leis sociais em geral (Era Lochner, 1905-1937), cul-minando no confronto entre o Presidente Roosevelt e a Corte, com a mudança da orientação jurisprudencial contrária ao intervencionismo estatal (West Coast v. Parrish, 1937). A situaçãose inverteu no período que foi de meados da década de 50 a meados da década de 70 do séculopassado. Todavia, depois da guinada conservadora da Suprema Corte, notadamente no períododa presidência de William Rehnquist (1986-2005), coube aos progressistas a crítica severa aoativismo judicial que passou a desempenhar (BARROSO, 2013, p. 8).

    Portanto, o termo ativismo judicial, frequentemente, associado a uma postura proativae progressista em matéria de efetivação de direitos humanos por parte do Judiciário, também

    pode se referir a uma postura mais conservadora, mitigadora dos avanços sociais temidos pelasclasses dominantes.Desta feita, William P. Marshall (2002, p. 104 apud PAULA, 2009, p. 122) identica

    sete tipos-ideais de ativismo, a saber:

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    a) ativismo contra-majoritário: marcado pela relutância em relação às decisões dos po-deres diretamente eleitos. Ocorre, por exemplo, quando a Suprema Corte declara a inconstitu-cionalidade de leis que ampliam direitos sociais aos trabalhadores por supostamente colidiremcom a liberdade de exercício da atividade econômica.

     b) ativismo não-originalista: caracterizado pelo não reconhecimento de qualquer origi-

    nalismo na interpretação judicial, sendo as concepções mais estritas do texto legal e as consi-derações sobre intenção do legislador completamente abandonadas. No Brasil, são exemplos,as decisões do Supremo Tribunal Federal em casos como o da imposição de delidade partidá-ria e o da vedação do nepotismo.

    c) ativismo de precedentes: o qual consiste na rejeição aos precedentes anteriormenteestabelecidos.

    d) ativismo formal (ou jurisdicional): marcado pela resistência das cortes em aceitar oslimites legalmente estabelecidos para sua atuação.

    e) ativismo material (ou criativo): resultante da criação de novos direitos e teorias nadoutrina constitucional.

    f) ativismo remediador: marcado pelo uso do poder judicial para impor atuações posi-tivas aos outros poderes governamentais ou controlá-los como etapa de um corretivo judicial-mente imposto. Mais uma vez, o exemplo brasileiro é a atuação do Supremo Tribunal Federalnos casos sobre greve no serviço público ou sobre criação de município, bem como no de polí-ticas públicas insucientes, de que têm sido exemplo as decisões sobre direito à saúde.

    g) ativismo partisan: o qual consiste no uso do poder judicial para atingir objetivos es-pecícos de um determinado partido ou segmento social.

    Para Luís Roberto (BARROSO, 2013, p. 8), a ideia de ativismo judicial está associada auma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e ns cons-titucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes, sendo que,

    em muitas situações, sequer há confronto, mas mera ocupação de espaços vazios. A judicialização, para o autor, é um fato, uma circunstância do desenho institucional brasileiro, ao passo que o ativismo é uma atitude, a escolha de um modo especíco e proativode interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente, instala-seem situações de retração do Poder Legislativo, em que há crise de representatividade entre aclasse política e a sociedade civil, impedindo que determinadas demandas sociais sejam aten-didas de maneira efetiva (BARROSO, 2013, p. 9).

    O oposto do ativismo é a autocontenção judicial, conduta pela qual o Judiciário procu-ra reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes, seja evitando aplicar diretamente aConstituição a situações que não estejam no seu âmbito de incidência expressa, aguardando opronunciamento do legislador ordinário, seja utilizando critérios rígidos e conservadores para

    a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos ou, ainda, abstendo-se de in-terferir na denição das políticas públicas (BARROSO, 2013, p. 9).

     A judicialização, por sua vez, signica que questões relevantes do ponto de vista polí-tico, social ou moral estão sendo decididas, em caráter nal, pelo Poder Judiciário, havendo,pois, transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias po-líticas tradicionais (Legislativo e o Executivo). Esse fenômeno não é tipicamente brasileiro,mas mundial, alcançando até mesmo países que tradicionalmente seguiram o modelo inglês(democracia de Westminster), com soberania parlamentar e ausência de controle de constitu-cionalidade (BARROSO, 2013, p. 5).

    Cabe, no entanto, fazer um adendo, haja vista, em 2005, ter sido aprovada a Consti-

    tutional Reform Act, por pressões da comunidade europeia, que recomendou formalmentemudanças no Poder Judiciário Inglês. Foi criada uma corte constitucional independente doParlamento, que outrora exercia, por meio dos Lordes Judiciais (Law Lords), a função jurisdi-cional máxima. Assim, não é de todo correto falar que inexiste controle de constitucionalidade

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    no modelo inglês, mas sua abrangência é reduzida se comparado aos outros modelos de juris-dição constitucional.

    Para o Judiciário esse problema é agravado pelas crescentes pressões quesofre com o aumento da demanda de seus serviços, dado o caráter cada vez mais contratual de todas as relações sociais, com a erosão dos sistemasconvencionais e tradicionais de poder e solução de conitos, a complexi-dade cada vez maior do campo de atuação do sistema judiciário, o surgi-mento de novos sujeitos sociais que reivindicam direitos e uma tendênciacrescente à morosidade dos processos judiciais cujas razões não são sem-pre óbvias.[...] espera-se que o Judiciário seja o ponto de partida da regeneração dosistema social, de luta contra a desigualdade social e o patrimonialismo.[...] Reproduz-se, assim, dentro do Judiciário, a tentação que ocorria ante-riormente em nível político-ideológico de violação de princípios de repre-sentação em nome das exigências de transformação social. (SORJ, 2001,

    p. 110-115)

    Bernardo Sorj, por seu turno, informa que a judicialização é a transferência do conitosocial para o Judiciário, ao contrapor este conceito ao de juridicação da sociedade, elaboradopor Habermas, como processo pelo qual as relações sociais seriam colonizadas pela crescenteatividade reguladora do Estado (colonização da vida social por normas burocráticas). Para oautor, a sociedade brasileira seria pouco juridicada, havendo, assim, um âmbito de liberdadesfundamentais respeitadas pelo Estado, mas bastante judicializada, com crescimento das de-mandas sociais levadas à análise do Judiciário (SORJ, 2001, p. 118).

    Sorj (2001) acrescenta que a judicialização reete um problema de fundo da socieda-de democrática de m de século e do novo milênio, que é a diculdade do sistema de repre -sentação, em particular dos partidos políticos, de transformar-se em articuladores dos novossujeitos sociais.

    Destarte, as causas da judicialização são diversas, dentre elas, o reconhecimento daimportância de um Judiciário forte e independente, como elemento essencial para as demo-cracias modernas; certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representa-tividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral; o intuito de se evitar desgaste políticona deliberação de temas divisivos, nos quais existe desacordo moral razoável, como uniõeshomoafetivas e legalização do aborto, evitando-se com isso que certos atores políticos do Le-gislativo e do Executivo se exponham frente aos grupos sociais, uma vez que os membros do

    Poder Judiciário não precisam passar pelo crivo do voto popular (BARROSO, 2013, p. 6). Ademais, a transformação do papel do Judiciário reete uma série de problemas so-ciais, tais como: uma crise de valores associada aos processos de perda de conança no futuroda humanidade e aos desaos das novas tecnologias que exigem a intervenção de especialistase que mobilizam problemas éticos que o sistema político tem diculdades de elaborar; crise decomunicação intra-societária devido às múltiplas identidades culturais da pós-modernidade;a globalização e as ideologias privatizantes que igualaram o Estado a uma empresa e a desmo-ralização dos poderes Executivo e Legislativo que transferiu a um órgão não eletivo, o Judiciá-rio, as expectativas de proteção e exemplaridade, fato perigoso em um regime democrático; aconstrução de um direito global, fruto de atos e acordos internacionais, que pode fazer com

    que o Judiciário considere que em certa medida seu poder emana de fora do campo do sistemapolítico nacional; aumento da morosidade e dos custos das demandas judiciais, dicultando,assim, o acesso à Justiça aos mais desfavorecidos; entre outros (SORJ, 2001, p. 111-114).

    No Brasil, conforme Barroso (2013, p. 7), a judicialização decorre, sobretudo, de dois

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    fatores: o modelo de constitucionalização abrangente e analítica adotado; e o sistema de con-trole de constitucionalidade vigente entre nós, que combina a matriz americana (em que todo juiz e tribunal podem pronunciar a invalidade de uma norma no caso concreto) e a matrizeuropeia, que admite ações diretas ajuizáveis perante a corte constitucional. Nesse contexto,a judicialização é um fato inelutável decorrente do desenho institucional vigente, e não uma

    opção política do Judiciário que, uma vez provocado pela via processual adequada, deve sepronunciar sobre a questão nos termos emanados do princípio do non liquet. Todavia, o modocomo venha a exercer essa competência é que vai determinar a existência ou não de ativismo judicial.

    São exemplos de judicialização no cenário brasileiro: a instituição de contribuição dosinativos na Reforma da Previdência (ADI 3105/DF); pesquisas com células-tronco embrioná-rias (ADI 3510/DF); interrupção da gestação de fetos anencefálicos (ADPF 54/DF); restriçãoao uso de algemas (HC 91952/SP e Súmula Vinculante nº 11); legitimidade de ações arma-tivas e quotas sociais e raciais (ADI 3330); vedação ao nepotismo (ADC 12/DF e Súmula nº13); a questão da importação de pneus usados (ADPF 101/DF); a proibição do uso do amianto(ADI 3937/SP), dentre vários outros.

    Entretanto, Sorj ao analisar a judicialização das relações sociais sob uma perspectivamais ampla, enumera, além dos já citados, outros fatores responsáveis pelo fenômeno comoa pressão de instituições internacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional...)representantes dos interesses do capital estrangeiro; as privatizações que delegaram ao setorprivado uma série de serviços públicos transformando o cidadão em consumidor e pressiona-ram o Estado a desregulamentar e a exibilizar normas trabalhistas e previdenciárias; a criseda federação brasileira, com amplas disparidades socioeconômicas entre os diversos Estados;entre outros fatores que tornam o Judiciário um escoadouro para todos os grupos afetadospelas reformas estatais que o procuram para proteger-se invocando princípios constitucionais(SORJ, 2001, p. 117-119).

    Portanto, a judicialização das relações sociais decorre de uma ampla gama de fatores jurígenos e não jurígenos, de forma mais precisa, de vários fatores sociais que independem dequalquer ato volitivo de membros do Poder Judiciário, ao passo que o ativismo judicial decorrede um ato de vontade do magistrado quer seja ele mais comprometido com as mudanças per-quiridas pela sociedade, seja ele mais conservador.

    4. CRÍTICAS AO NEOCONSTITUCIONALISMO, AO ATIVISMO JUDICIAL E ÀJUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS

    Criticar o neoconstitucionalismo e o ativismo judicial, necessariamente, é reetir, pro-

    fundamente, sobre a jurisdição constitucional. Anal, a sua expansão a que se assistiu no pós-segunda guerra, como forma de limitar as arbitrariedades dos Poderes Executivo e Legislativo,desencadeou todo esse processo do novo constitucionalismo.

    É bem verdade que já se ouvira falar em ativismo judicial desde os primeiros anos doSéculo XIX, quando a Suprema Corte norte-americana avocou-se a controlar os atos do PoderLegislativo no histórico caso Marbury versus Madison, mesmo o termo tendo sido cunhado jáno Século XX.

    Nesse ínterim, as críticas que se fazem ao neoconstitucionalismo e ao ativismo judi-cial, em essência, são críticas à jurisdição constitucional. Luís Roberto Barroso (2013), porexemplo, opõe-se à expansão da intervenção judicial na vida brasileira sob três perspectivas:crítica político-ideológica; crítica quanto à limitação do debate e crítica quanto à capacidadeinstitucional.

     A crítica política cinge-se a questionar a legitimidade democrática da jurisdição cons-titucional e a suposta maior eciência na proteção dos direitos fundamentais por parte do Ju-

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    diciário, tendo por fundamento os escritos de Jeremy Waldron, um dos maiores críticos dessaperspectiva, cuja tese central é a de que nas sociedades democráticas nas quais o Legislativonão seja “disfuncional”, as divergências acerca dos direitos devem ser resolvidas no âmbito doprocesso legislativo e não do processo judicial(BARROSO, 2013, p. 10).

    Outrossim, por não serem agentes públicos eleitos, os juízes e membros dos tribunais

    quando sobrepõem suas vontades (decisões) às dos representantes do Poder Legislativo, ex-põem o que Alexander Bickel denominou de diculdade contra majoritária, pois, supostamen-te, contraditam a vontade da maior parcela da população que elegeu os membros do parlamen-to, ao declarar, por exemplo, a inconstitucionalidade de uma lei.

     Alexander Bickel cunhou o termo: Quando a Suprema Corte declara in-constitucional um ato legislativo ou um ato de um membro eleito do Exe-cutivo, ela se opõe à vontade de representantes do povo, o povo que estáaqui e agora; ela exerce um controle, não em nome da maioria dominante,mas contra ela (BARROSO, 2013, p. 10).

    No entanto, a crítica política perde um pouco de consistência se considerarmos quea vontade majoritária pode sufocar as minorias. Alexis de Tocqueville, desde o Século XIX, jáalertava, em sua obra “A democracia na América”, para o perigo da tirania da maioria. Assim,o Judiciário teria sido escolhido pelo Poder Constituinte originário, ao instituir a jurisdiçãoconstitucional, como defensor dos interesses das minorias sociais, que em uma democracia,poderiam nunca ter sua vontade concretizada, como, por exemplo, na questão do casamentohomoafetivo.

     A crítica ideológica, por sua vez, refere-se ao fato de que a judicialização seria umareação das elites tradicionais contra a democratização, a participação popular e a política ma-

     joritária, visto que o Poder Judiciário sempre foi representado por integrantes de uma minoriaprivilegiada socioeconômica e intelectual da população, sendo, pois, uma instância conserva-dora da distribuição de poder e riqueza na sociedade.

    No que tange à crítica quanto à capacidade institucional, reconhecem-se as limitaçõesdo magistrado que, muitas vezes, não é o árbitro mais qualicado a dirimir questões técnicas ecientícas de grande complexidade por falta de conhecimento especíco, como por exemplo,denir o início e o m da vida, nas questões sobre pesquisa com células-tronco e aborto defetos anencefálicos, ou o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre aprestação de um serviço público.

     A terceira crítica engendrada por Barroso diz respeito à limitação do debate. A lin-

    guagem jurídica é de difícil compreensão para a população em geral e a judicialização estariaproporcionando uma elitização do debate político, excluindo aqueles que não dominam essalinguagem e não têm acesso aos locais de discussão jurídica (tribunais, universidades...), fatoque pode gerar apatia nas forças sociais, que depositariam suas expectativas em juízes provi-denciais. Institutos como audiências públicas, amicus curiae e direito de propositura de açõesdiretas por entidades da sociedade civil, apenas atenuariam o problema. Por conseguinte, atransferência do debate público para o Judiciário politizaria os tribunais, emergindo paixõesem um ambiente que deveria ser presidido pela razão (BARROSO, 2013, p. 11).

    Por seu turno, Daniel Sarmento (In FELLET et al, 2013, p. 96) esboça três críticas aoneoconstuticionalismo (judiciocracia; oba-oba constitucional e panconstitucionalização) quenão deixam de ser críticas à expansão da judicialização, do ativismo judicial e da jurisdiçãoconstitucional.

     A judiciocracia seria a ditadura do Poder Judiciário, a ditadura de toga em contraposi-ção à ditadura de farda (a imposta pelo Poder Executivo). Neste ponto, a crítica de Sarmento

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    se aproxima da crítica político-ideológica de Barroso, uma vez que contesta o caráter antide-mocrático de as decisões políticas serem transferidas para a arena judicial, cujos integrantesnão passam pelo crivo do voto popular.

    Destarte, o neoconstitucionalismo estaria proporcionando aos juízes um poder cons-tituinte permanente, pois lhes permitiria moldar a Constituição de acordo com as suas prefe-

    rências políticas e valorativas, em detrimento daquelas do legislador eleito, diante da vaguezae abertura de boa parte das normas constitucionais mais importantes. Este fato, inclusive,inuenciou inúmeras correntes de pensamento ao longo da história a rejeitarem a jurisdiçãoconstitucional, ou pelo menos o ativismo judicial no seu exercício, dos revolucionários fran-ceses do século XVIII, passando por Carl Schmitt, na República de Weimar, até os adeptos doconstitucionalismo popular nos Estados Unidos de hoje (SARMENTO In FELLET et al, 2013,p. 98).

    [...] Sob o ângulo normativo, favorece-se um governo à moda platô-nica, de sábios de toga, que são convidados a assumir uma posiçãopaternalista diante de uma sociedade infantilizada. Justica-se oativismo judicial a partir de uma visão muito crítica do processo po-lítico majoritário, mas que ignora as inúmeras mazelas que tambémaigem o Poder Judiciário, construindo-se teorias a partir de visõesromânticas e idealizadas do juiz. Só que, se é verdade que o processopolítico majoritário tem seus vícios - e eles são muito graves no ce-nário brasileiro -, também é certo que os juízes não são semi-deuses,e que a esfera em que atuam tampouco é imune à política com “p”menor. [...]Esta idealização da gura do juiz não se compadece com algumas

    notórias deciências que o Judiciário brasileiro enfrenta. Dentreelas, pode-se destacar a sobrecarga de trabalho, que compromete acapacidade dos magistrados de dedicarem a cada processo o tempoe a energia necessários para que façam tudo que o que demandamas principais teorias da argumentação defendidas pelo neoconstitu-cionalismo. E cabe referir também às lacunas na formação do ma-gistrado brasileiro, decorrentes sobretudo das falhas de um ensino jurídico formalista e nada interdisciplinar que ainda viceja no país,que não são corrigidas nos procedimentos de seleção e treinamentodos juízes (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 100-101).

    O oba-oba constitucional faz referência ao fato de que a assunção de princípios, taiscomo o da dignidade da pessoa humana e o da razoabilidade, para fundamentar as decisões ju-diciais em detrimento da aplicação de regras jurídicas, ante a amplitude terminológica, estariamascarando decisionismos. Tanto as regras quanto os princípios são importantes para o bomfuncionamento do sistema jurídico porque, dentre outras razões, proporcionam maior previ-sibilidade e segurança jurídica; não demandam tanto esforço de argumentação do intérprete, vez que se aplicam de forma mecânica e não importariam em transferir poder do Legislativopara o Judiciário. Sob esse aspecto, o autor indaga a quem beneciaria uma hermenêutica jurídica mais exível e conclui advertindo que o neoconstitucionalismo, com sua uidez me-

    todológica, pode acabar tornando-se um belo rótulo para justicar mais do mesmo: patrimo-nialismo, desigualdade, “jeitinho” (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 108).Finalmente, em sua derradeira crítica ao neoconstitucionalismo, intitulada de pan-

    constitucionalização, ou seja, todo direito passa a ser direito constitucional, desde o direito

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    Capítulo 1

    penal até a lei mais banal do ordenamento pátrio, Sarmento aborda que o excesso de consti-tucionalização do Direito é antidemocrático, posto que se tudo ou quase tudo já está decididopela Constituição, e o legislador é um mero executor das medidas já impostas pelo constituin-te, nega-se, por conseqüência, a autonomia política ao povo para, em cada momento da suahistória, realizar as suas próprias escolhas (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 109).

    Portanto, se o Poder Constituinte originário previu todas as hipóteses que deveriamser elevadas ao status constitucional, engessou as gerações futuras e tomou todas as decisõespolíticas em nome delas, possibilitando, em realidade, o excesso de constitucionalização umgoverno dos mortos sobre os vivos.

    5. CONCLUSÕES

     Ao longo do trabalho foram discutidas questões como a mudança de paradigma na lógi-ca jurídica com a superação do positivismo jurídico; as novas práticas constitucionais advindasdo pós-guerra e o ativismo judicial.

    Discutiu-se que o princípio da separação de poderes não pode ser um entrave à con-cretização de direitos sociais. Deve ser interpretado não como limite ao Poder Judiciário, mastendo por base sua origem histórica e a que se propôs, sendo que, na atualidade, sua interpre-tação stricto sensu perdeu fundamento.

    Outrossim, o neoconstitucionalismo e o pós-positivismo não deram uma carta brancaao intérprete da norma para sobrepor sua vontade a do legislador ou a do administrador públicoem todas e quaisquer ocasiões. Sempre que estejam em discussão os direitos fundamentais ouos procedimentos democráticos, o Judiciário deve acatar as escolhas legítimas realizadas pelasociedade quando elegeu seus representantes. Isso deve ser feito não só por razões ligadas àlegitimidade democrática, como também em atenção às capacidades institucionais dos órgãos

     judiciários e sua impossibilidade de prever e administrar os efeitos sistêmicos das decisões.O fato de a última palavra acerca da interpretação da Constituição ser do Judiciá-rio não o transforma no único, tampouco no principal, foro de debate e de reconhecimentoda vontade constitucional a cada tempo. A jurisdição constitucional não deve suprimir nemoprimir a voz das ruas, o movimento social, os canais de expressão da sociedade, visto que asoberania é popular (BARROSO, 2013, p. 35).

     O Poder Judiciário tem um papel importante na concretização da Constituição brasi-leira, tendo em vista a violação de direitos de certos segmentos da população, do arranjo ins-titucional desenhado pela Carta de 88, e da séria crise de representatividade do Poder Legis-lativo. Destarte, justica-se o ativismo judicial, pelo menos em certas searas, como a tutela dedireitos fundamentais, a proteção das minorias e a garantia do funcionamento da democracia.

    Mas, em outras situações, seria mais prudente uma postura de autocontenção judicial, reco-nhecendo-se que outros órgãos do Estado, que não o Judiciário, estão mais capacitados paraassumir uma posição de protagonismo na implementação da vontade constitucional.

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    Capítulo 1

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    TEORIAS RELATIVAS AO RACIOCÍNIO JURÍDICO:A LÓGiCA DA DECISÃO JUDICIAL PENAL BRASILEIRA A PARTIR DE UMA

    ABORDAGEM EXEGÉTICA DA CONCEPÇÃO DE JUSTIÇADAS DEMOCRACIAS POPULARES DE CHAΪM PERELMAN

    Capítulo 2

    Eloy Moury Fernandes1

    1. INTRODUÇÃO

     A existência de uma lógica jurídica pode parecer uma utopia. Pois tudo o que é do ho-mem, por ele criado, não permite a utilização de fórmulas lógicas formais, como nas ciênciasda natureza. Um conjunto de premissas podem se repetir em situações distintas, mas no novocaso em que se apresentem, podem ser associadas a um elemento humano distinto daqueleque ocorria na primeira situação. Ademais, no direito não se conclui, como se faz ao se colocarao lado dois números, nem mesmo resulta no mesmo alcança o mesmo resultado toda vez quese repetirem as mesmas circunstâncias. Em direito não se conclui. Se decide. O juiz não podeser apenas a boca da lei, como pretendeu Montesquieu. Assim, embora realize a chamada qua-licação jurídica de um fato a pré-existência de absolutamente das regras do jogo, toda decisãoimplica num elemento humano de escolha. Caso contrário a decisão jurídica estaria longe doser humano e de outros elementos variantes ao longo do tempo, do espaço e das circunstân-cias humanas particulares. Como a moral. A leitura de Perelman nos permitiu tratar, aindaque supercialmente do tema de decisão judicial e as linhas que se seguem têm por nalidaderealizar uma análise pouco profunda dos elementos dessa ideia inicial de lógica jurídica, con-cebida pelo autor, aplicados à decisão judicial. Em especial à decisão penal condenatória, soba ótica da legislação vigente por ocasião da aplicação da pena de privação de liberdade e de suasubstituição pelas denominadas penas alternativas – à privativa de liberdade. O objetivo é ini-ciar um enquadramento racional da lógica que rege a tomada da decisão judicial no momentode aplicação da conseqüência mais relevante do processo penal condenatório, a partir de partedas observações de Chaim Perelman, em seu LOGICA JURÍDICA.

     Ao nal, será objetivada a demonstração, a partir dos critérios atualmente vigentes no

    ordenamento jurídico brasileiro de aplicação da consequência penal condenatória no Brasil.Estabelecendo alguma relação com as teorias levantadas pelo Autor estudado e suas teorias so- bre a lógica jurídica. Em que tipo de métodos de tomada de decisões, de raciocínio ou mesmode argumentação, enquadra-se a tomada de decisão penal condenatória no Brasil.

     2. DA IDEIA DE RACIOCÍNIO COMUM AO RACIOCÍNIO JURÍDICO. PODE EXISTIRUMA LÓGICA JURÍDICA?

     A obra a partir da qual serão tecidas grande parte das observações que se seguem fo-ram as observações que se seguem, trata-se do livro Lógica Jurídica.

     Antes de tratar do raciocínio, tomando-o como tanto substantivo – resultado, como

    1 Mestrando da Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Ciências Criminais pela UFPE (2003).Graduado pela Universidade Católica de Pernambuco (2000).

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    Capítulo 2

    ponto de chegada da racionalidade, ou mesmo como meio a este resultado mental, vejamosalgumas conclusões depreendidas sobre a lógica e sua aplicação no campo jurídico.

    Citando outros autores, como Ulrich Klug e o Professor Kalinowski, Chaïm Perelman,nos deixa claro que o termo lógica somente pode ser associado à lógica formal. Aquela dasciências do ser. Inaplicável, pois, às ciências do homem.

    Se para Kalinowski, a lógica deve ser vista como “instrumento de toda atividade do sa- ber, de aplicação tanto no domínio da vida cotidiana, como em qualquer ciência”, em artigo de1959, “Y-a-t-il une logique juridique?” (existe uma lógica jurídica?) publicado na Revista “Lo- gique et Analyse” (Lógica e Análise) (Logique et Analyse, nº. 5, pp. 48/53, apud PERELMAN,2000), o mesmo autor nega ser possível a existência de uma lógica jurídica. Pois será sempreexclusivamente formal. Como concebida.

    Mais adiante, o mesmo Kalinowski, citado por Perelman, arremata dizendo somenteexistir uma lógica:

    (…) a lógica pura e simples, tout court, utilizada no sentido teórico ou nor-mativo. Por outro lado, entre as diversas aplicações de leis ou regras lógicasuniversais não se pode deixar de vericar aquelas feitas para a aplicaçãoem qualquer campo jurídico. É extremamente interessante e útil a análisedas diferentes aplicações das leis e regras logicas universais nos diversoscampos do direito, assim como o exame das razões pelas quais elas sãoaplicadas. Todavia, não tem qualquer sentido o estudo de uma lógica jurí-dica no sentido próprio da palavra. Uma tal lógica simplesmente não existe(KALINOWSKI, p.53. apud PERELMAN, 2000).

    Mas essa postura deve-se somente caso considerarmos como lógica jurídica uma meraaplicação da lógica formal ao direito. Sem qualquer consideração concreta à atividade intelec-tual do jurista.

    Deste modo, Perelman preferiu apontar como objeto de sua obra Lógica Jurídica, to-mando-a como a forma de denominação dos estudos destinados à análise da forma de pensa-mento dos juristas em especial e, mesmo os autores citados, que negam a existência de umaLógica Jurídica autonomamente considerada em relação à lógica formal, ao se referirem a elao fazem valendo-se da mesma expressão, deixando clara não apenas a sua existência, comotambém dedicando obras sobre o tema sob esta mesma denominação.

    Superada a crise de identidade de uma lógica jurídica e partindo para o trato da lógica jurídica propriamente dito, o autor inicia a sua obra cuidando do raciocínio.

    Sendo o raciocínio uma atividade da mente e o, ao mesmo tempo, o produto destaatividade, Perelman (2000), classica o raciocínio em analítico e dialético. Sendo o primeiro

    aquele que parte de premissas necessárias (verdadeiras) e, graças a inferências válidas resul-tam em conclusões igualmente válidas. Transferindo às conclusões a necessidade e a verdadedas premissas. O que retira qualquer poder de interferência da matéria sobre a validade dainferência. Anal, mesmo retirada dos mais diversos domínios do pensamento, a forma deraciocínio analítico lhe garantirá a validade.

    E a lógica formal é a lógica que estuda exatamente as inferências válidas, graças ex-clusivamente à sua forma. Exigindo-se apenas a substituição das premissas, pelos mesmostermos.

     Já o raciocínio dialético, já analisado por Aristóteles nos Tópicos, na Retórica  e nasre futações sofísticas, segundo Perelman, refere às deliberações e às controvérsias. E não a de-

    monstração cientícas, como o raciocínio analítico.Se Aristóteles conceituou o silogismo como a argumentação lógica perfeita, lastreadaem premissas verdadeiras, denominou como silogismo dialético ou entinema o raciocínio se-gundo o qual, se repetidas as causas, igualmente se repetirão as consequências. Prescindindo

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    da repetição de todas as premissas.

    3. DOS ARGUMENTOS DA DECISÃO JUDICIAL

    Para Perelman, a estrutura argumentativa que leva à decisão parece bem diferente

    de um mero silogismo pelo qual bastam aspremissas para a imediata e necessariamente con-sequente conclusão. Ou seja, dos argumentos da decisão não se passa automaticamente daspremissas à decisão. Retirando-se assim a obrigatoriedade da conclusão a partir das premissas.

     A estrutura argumentativa que leva à decisão, para Perelman (03), é bem diferente domero silogismo. Pois a decisão implica em opção. Poder decidir de um modo e escolher por umoutro diverso daquele.

    Enquanto no silogismo as premissas levam à mesma conclusão, no momento de de-cisão as premissas levam a algumas opções. E o decidir exatamente escolher dentre essasopções.

    Tentar um argumento a somente um esquema formalmente válido, apenas põe em

    evidência a sua insuciência. Embora não seja isso que lhe retire o valor. E é exatamente nessereducionismo que a lógica jurídica não deve cair. A decisão jurídica deve vir obrigatoriamenteacompanhada de argumentos, interferência. (PERELMAN, 2000, p. 04/05).

    Nas palavras de Kalinowski, “é inútil tentar estudar uma lógica jurídica no sentido pró-prio do termo, pois ela não existe” (KALINOWSKI apud PERELMAN, 2000).

    Deste modo, a lógica jurídica seguiria uma estrutura particular, para dar sentido à am- biguidade e a constantemente vericar se a sociedade chegou a discernir novas diferenças esimilitudes (LÉVI apud PERELMAN, 2000).

    Perelman ainda critica a lógica jurídica de K. Engisch, segundo a qual a lógica jurídicanos diz o que deveríamos fazer, apontando que devem ser substituídas as expressões verdadei-

    ros e correto por equitativos e razoáveis.4. DAQUILO QUE É PERMITIDO AO JULGADOR NA HORA DA DECISÃO

    Em seu Lógica Jurídica, ainda reete o autor no sentido de que, se o raciocínio jurídicosempre será contaminado por controvérsias, esses desacordos sobre a solução dever ser sanadocom a autoridade da maioria ou dos tribunais superiores. Cujas decisões normalmente coinci-dem. Sendo nisso que o raciocínio jurídico se distingue do raciocínio das ciências dedutivas,nas quais é bem mais fácil chegar-se a um acordo sobre as técnicas de cálculo e de medição.E é justamente a presença necessária da controvérsia no raciocínio jurídico que inviabiliza asua conceituação como correto ou incorreto, de modo impessoal (PERELMAN, 2000, p. 08).

     Assim, por melhores que sejam as razões de uma tese jurídica, o autor dela (legislador, juiz administrador) deve arcar com as responsabilidades decorrentes de seu cometimento pes-soal com a sua decisão. Assim, todas as decisões tomadas sob a lógica jurídica de raciocínio,deverão levar em conta os argumentos da tese divergente e assumir as consequências da to-mada da decisão diversa da outra. Pois sempre há algo de pessoal na decisão tomada sob umalógica jurídica (PERELMAN, 2000, p. 08-09).

    Mesmo que originado no divino ou quase divino, o direito sempre suscitou controvér-sias entre seus intérpretes.

    De modo que a justiça da solução está menos ligada ao processo, mas a confrontaçãode opiniões opostas e de uma decisão subsequente, baseada por uma autoridade. Se essas au-

    toridades se opõem, impõe-se a decisão da autoridade superior, ou a decisão tomada por ummaior número de pareceres abalizados. Mas, ainda assim, essa maioria ou autoridade, jamaisirá conferir à decisão tomada a qualidade de ser a única possível, ou mesmo justa, ao caso,como nas demais formas de raciocínio dedutivo formal tradicional (PERELMAN, 2000, p. 09).

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    Capítulo 2

     Assim, para Perelman, mesmo entre os romanos, talmudistas ou glosadores da Escolade Borgonha, o “direito se elabora através das controvérsias e das oposições dialéticas, dasargumentações em sentido diverso”. Sendo muito raro que, a exemplo das demonstrações ma-temáticas, o direito redundasse numa conclusão impositiva (PERELMAN, 2000, p. 10).

    Para se chegar a uma solução era necessário colocar a controvérsia diante de uma

    tradição, atestada por uma autoridade, civil ou religiosa, coloca-lo em evidência a semelhança(similitude) a um caso a ser julgado com uma decisão anterior aceita, ou subsumi-lo em umtexto legal que tratava de caso da mesma espécie. Nestes casos (a simili ou subsunção), admi-tia-se como justa a solução conforme a regra da justiça, que exige tratamento igual aos casossemelhantes (PERELMAN, 2000, p. 10).

    O Juiz ciente de suas responsabilidades, decide tranquilo quando faz decisão ser umacontinuação e complemento de um conjunto de decisões que se insere em uma ordem jurídicaconstituída pelos precedentes e, se foro caso, pelo legislador (PERELMAN, 2000, p. 11).

    Na ideia de lógica jurídica lastreadas nos precedentes é que se funda a tradição inglesado commom law (PERELMAN, 2000, p. 11).

     Ao argumentum a simili prendem-se dois outros argumentos. O argumentum a fortio- ri e o argumentum a contrario.O argumentum a fortiori  funda-se não na decisão anterior propriamente dita, mas

    sobre a razão alegada na decisão anterior. Defendendo-se que as razões que levaram à decisãoanterior impõe-se com força ainda maior no caso atual. Ex: se é punido alguém que com gol-pes, feriu outro homem, deve-se com mais força punir aquele que com golpes causou a mortede outrem.

    Quando Jesus diz que Deus não deixa os pássaros morrerem de fome e, tampoucodeixará os homens, usa o argumentum a fortiori. Não sendo um raciocínio puramente formal,mas que pressupõe que os homens mereçam maior interesse que os pássaros (PERELMAN,

    2000, p. 11).O argumento a fortiori permite ao Juiz justicar a decisão.O argumento a contrario aplica um precedente. Enquanto que no a simili se aplica

    uma regra. Argumentos a contrario armam a aplicação ou não de uma regra a outra espécie do

    mesmo gênero, do que foi aplicado para uma espécie particular. A arte de distinguir é indissociável do raciocínio jurídico. Se os argumentos a simili e

    a fortiori permitem a extensão do alcance de uma decisão já tomada a casos posteriores. Já noargumento a contrario este alcance é delimitado, de modo a impedir a exclusão da aplicaçãoda regra de justiça aos casos assim diferentes.

    Foi para o que serviram os denominados Equity Courts (organizados na Inglaterra, no

    século XIV e tinham a nalidade de remediar as situações em que não se via como adequada a jurisprudência ou a rígida regra do precedente), ou tribunais de equidade. Que, evoluindo da regra do stare decisis (que determinava aplicação da jurisprudência anterior se não houvesserazão de distinguir).

     Assim, conclui-se que:

    1. O direito busca eminentemente conciliar as regras do raciocínio jurídico com a justiça ou, ao menos, com a aceitabilidade social das decisões e essa aceitabilidade denota umcompromisso, não com um ideal perfeito e imutável de justiça ou de correção. Mas com umcompromisso de satisfazer destinatários determinados. Especialmente aqueles que detém opoder. Contemporaneamente representado pelo capital econômico;

    2. Um raciocínio puramente formal, no direito, é evidentemente insuciente, poisse contentaria em controlar a correção das inferências, sem qualquer juízo sobre o valor daconclusão (decisão). Retornando à ideia já tratada de que uma decisão não pode se resumir a

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    Capítulo 2

    mera subsunção do fato à norma, escrita ou mesmo não escrita.

    Uma breve incursão na tradição escolástica: A tradição escolástica, presente nos escritos de São Tomás, opunha, na aristotélica, os

    raciocínios dialéticos e os raciocínios analíticos. Para Aristóteles, a prudência sem uma essên-

    cia à qual se denir, pode apenas nos remeter ao