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LETRAS ISSN – 0102-0250 LETRAS F.L. – PUC-Campinas Vol. 28, nº 2 p. 1-128 2009

Letras: revista da Faculdade de Letras/Centro de Linguagem e Comunicação

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A Revista Letras, em seu volume 28 (número 2), apresenta textos de pesquisadores do corpo docente da Faculdade de Letras, das demais faculdades do Centro de Linguagem e Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e de outras Instituições de Ensino Superior do Brasil e do Exterior. Mantém, ao longo de sua história, a política editorial que considera, para divulgação, trabalhos originais sob a forma de artigos, entrevistas, depoimentos e resenhas sobre publicações recentes.

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LETRAS

ISSN – 0102-0250

LETRAS F.L. – PUC-Campinas Vol. 28, nº 2 p. 1-128 2009

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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia

INDEXAÇÃO / INDEXING

A Revista LETRAS é indexada nas Bases de Dados: CLASE – Citas Latinoamericanas em Ciências Sociales y Humanidades

http://www.dgbiblio.unam.mx

Qualis B - 4

COORDENAÇÃO, REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: PUC-Campinas EDITORAÇÃO: Pedro & João Editores [www.pedroejoaoeditores.com.br] IMPRESSÃO: Gráfica e Editora Compacta [(16) 3371-1404]

PELA FORMA E PELO CONTEÚDO DOS TRABALHOS PUBLICADOS NA REVISTA “LETRAS” RESPONDEM ÚNICA E EXCLUSIVAMENTE OS SEUS RESPECTIVOS AUTORES.

Letras: revista da Faculdade de Letras/Centro de Linguagem e Comunicação/Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Instituto de Letras. – v. 1, n. 1 (set. 1982) – Campinas, SP: A Faculdade, 1999 – v. 28 (2), jul-dez., 2009. Anual. Publicada semestralmente em 1983, 1985, 1990 e 2004 a 2008. ISSN 0102-0250

1. Letras-Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Faculdade de Letras.

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LETRAS Revista da Faculdade de Letras

CONSELHO EDITORIAL Ana Maria Dantas C. de Miranda Oliveira (PUC-Campinas) Antônio Suárez Abreu (FCLCAr, UNESP) Cleonice Furtado de Mendonça van Raij (PUC-Campinas) Francisco Oliveira (Universidade de Coimbra, Portugal) Helena Confortin (URI, Erechim, RS) João Hilton Sayeg Siqueira (PUC-SP) João Wanderley Geraldi (UNICAMP) Liselotte Christina Halbsgut Figueiredo (PUC-Campinas) Luiz Percival Leme Brito (UNISO, SP) Maria de Fátima Silva Amarante (PUC-Campinas) Maria José Rodrigues Faria Coracini (UNICAMP) Valdir Heitor Barzotto (USP) EDITORA Maria Inês Ghilardi Lucena EQUIPE DE REVISÃO E TRADUÇÃO Cleonice Furtado de Mendonça van Raij – Português Nair Fobé – Inglês CONSULTORES ACADÊMICOS Adair Bonini (UNISUL, SC) Anna Maria Grammatico Carmagnani (USP) Antônio Suárez Abreu (FCLCAr, UNESP) Cleonice Furtado de Mendonça van Raij (PUC-Campinas) Douglas Altamiro Consolo (UNESP, São José do Rio Preto) Elisa Guimarães (USP e Mackenzie, SP) Francisco Oliveira (Universidade de Coimbra, Portugal) Helena Confortin (URI, Erechim, RS) Ingedore Grunfeld Vilaça Koch (UNICAMP) João Wanderley Geraldi (UNICAMP) Joaquim Brasil Fontes Júnior (UNICAMP) Liney de Mello Gonçalves (PUC-Campinas) Liselotte Christina Halbsgut Figueiredo (PUC-Campinas) Luiz Percival Leme Brito (UNISO, SP) Marcos Bagno (UNB) Maria de Fátima Silva Amarante (PUC-Campinas) Maria José Rodrigues Faria Coracini (UNICAMP) Maria Luiza Martins de Mendonça (FACOMB) Nair de Nazaré Castro Soares (Universidade de Coimbra, Portugal) Susana Bornéo Funck (UCPel) Tereza de Moraes (PUC-Campinas) Valdir Heitor Barzotto (USP) Vera Lúcia Pires (UniRitter e UFSM)

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SUMÁRIO

Apresentação

CONTORNOS DE SOMBRA EM O CORPO DE HELENA DE PAULO JOSÉ MIRANDA

Delfim F. LEÃO

POR QUE OS ALUNOS DE 5ª E 8ª SÉRIES APRESENTAM DIFICULDADES PARA SE EXPRESSAREM POR MEIO DE

TEXTOS ESCRITOS? Roberta COSTELLA

Helena CONFORTIN

ENSINAR E APRENDER – CORRIGINDO FLUXOS: UM OLHAR PARA ESCRITAS CRIATIVAS

Sônia A. Festa SIGRIST

O DISCURSO DA AUTORIDADE RESSOANDO NO DIZER DOS ALUNOS-PROFESSORES DE LÍNGUA

Eliane Righi de ANDRADE

AGENCIAMENTO NEOLIBERAL NA CONSTITUIÇÃO DAS SUBJETIVIDADES: O PROFESSOR EXEMPLAR

Terezinha Rivera TRIFANOVAS

REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA E NAÇÃO: O PORTUGUÊS COMO LÍNGUA NACIONAL NO BRASIL

Lilian BORBA

O DISCURSO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA SOBRE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: REPRESENTAÇÕES DE PODER NAS

REVISTAS “LETRAS” E “TRABALHOS DE LINGUÍSTICA APLICADA”

Maria de Fátima Silva AMARANTE Elcio Barreto de ALMEIDA

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APRESENTAÇÃO

A Revista Letras, em seu volume 28 (número 2), apresenta textos de

pesquisadores do corpo docente da Faculdade de Letras, das demais faculdades do Centro de Linguagem e Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e de outras Instituições de Ensino Superior do Brasil e do Exterior. Mantém, ao longo de sua história, a política editorial que considera, para divulgação, trabalhos originais sob a forma de artigos, entrevistas, depoimentos e resenhas sobre publicações recentes.

A importância da divulgação das pesquisas e do pensamento acadêmico para que o conhecimento seja acessível a todos nos incentiva na organização dos textos aqui publicados, desde 1999, quando iniciamos o trabalho de edição desta Revista, em continuidade ao precioso trabalho dos que nos antecederam. Ressaltamos, sempre, a valiosa contribuição dos membros do Conselho Editorial, Consultores Acadêmicos, pareceristas e autores que prestigiam este veículo de textos acadêmico-científicos.

Os volumes que seguirão terão versão eletrônica, por força da contemporaneidade e de sua inserção em novos meios de divulgação. Contarão, como sempre, com a significativa colaboração dos próximos autores.

Expressamos, em nome da Instituição e do Conselho Editorial, nossa satisfação por participar do processo de construção do conhecimento da área de estudos da linguagem e de áreas que com ela interagem, esperando que os artigos aqui publicados contribuam para proveitosas reflexões sobre os diferentes tipos de discurso que circulam nos meios acadêmico e social.

Maria Inês Ghilardi Lucena

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CONTORNOS DE SOMBRA EM O CORPO DE HELENA DE PAULO JOSÉ MIRANDA

SHADOW CONTOURS IN O CORPO DE HELENA, BY PAULO JOSÉMIRANDA

Delfim F. LEÃO1

RESUMO: Este estudo aborda uma peça escrita por Paulo J. Miranda, em que é

retomado o imaginário ligado às tragédias do ciclo troiano. Em O corpo de Helena, o autor coloca em cena as dúvidas de Menelau, o marido traído, que hesita no momento de partir na expedição que há-de vingar a sua honra sobre Tróia. Esta abordagem visa explorar, em especial, a forma como as imagens da sombra e da meia-luz são usadas para representar metaforicamente a luta interior do Atrida, que alguns dos seus interlocutores confundem com insânia, e que exprime a essência do seu drama: o desejo impossível de recuperar, só para si, o corpo dedicado e impoluto de Helena.

PALAVRAS-CHAVE: Helena; Menelau; perenidade da cultura clássica;

imagética da sombra. ABSTRACT: This study deals with a play written by Paulo J. Miranda, where the

imaginary linked to the tragedies of the Troyan Cycle is brought back. In O corpo de Helena, the writer presents the doubts of Menelau, the betrayed husband, who hesitates at the moment of departing for the expedition which will revenge his honour over Troy. This approach aims at exploring the way the shadow and the light images are used to represent metaphorically the internal struggle of Atrida, mistaken by some of his interlocutors as insanity, and that expresses the essence of his drama: the impossible wish to recover, only for himself, the delicate body of Helena.

KEYWORDS: Helena; Menelau; the immortality of classical culture; shadow

imagery.

1 Universidade de Coimbra, Portugal.

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Delfim F. LEÃO

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Com o drama O corpo de Helena, publicado em 1998, P. J. Miranda propõe-se revisitar a saga da casa dos Atridas, cujas fundações parecem estar, desde a antiguidade, habitadas pelo daimon da desgraça, nutrido a regulares e abundantes fluxos de sangue derramado sem glória. Nesta obra, porém, o autor opta por deter-se na antecâmara da perdição, numa altura em que a afronta de Páris e Helena está demasiado fresca ainda para poder ser analisada segundo a frieza calculista da vingança maturada, pois a honra exige uma expiação impetuosa. De facto, remontando aos tempos em que, na Ilíada, a time ou ‘honra’ obrigara Aquiles a afastar-se do alarido do combate que granjeia glória aos homens, também agora o mesmo princípio continua a dar forma ao código guerreiro que serve de terra nutriz às férteis sementes da desgraça. A tensão dramática de O corpo de Helena resulta, precisamente, do confronto entre a exigência de lavar com sangue o ultraje desferido sobre a casa dos Atridas — para mais assente no desrespeito pelos laços de hospitalidade (e daí a necessidade de desagravar Zeus Xenios, protector dos hóspedes e suplicantes) — e a inexplicável e comprometedora indecisão de Menelau, que deveria ser o principal interessado na punição. É, de resto, o drama pessoal da insidiosa dúvida que logo marca o Atrida na abertura da peça:2

Trago uma palavra no peito — honra — que me rói a vida. Parto, não parto? Só eu sei as cores negras da decisão, a afronta aos deuses, Helena.

Este desabafo inicial serve também para dar a conhecer de imediato

um dos símbolos mais recorrentes ao longo da obra, cujos contornos procuraremos explorar nesta análise: de facto, com a expressão, «as cores negras da decisão», P. J. Miranda remete-nos para um universo a meia-luz, onde a penumbra parece entorpecer a razão. É também um mundo permeado pela solidão dos heróis, mesmo quando se descobrem apenas tristemente célebres e condenados a compor uma história onde não são agentes mas somente complementos da acção. Menelau já intuiu o destino existencial que sobre ele impende e conseguiu atingir esse grau de 2 P. J. Miranda, O corpo de Helena (Lisboa, Cotovia, 1998) 13. Todas as citações serão

feitas por esta edição. Ensaiámos uma primeira abordagem a esta obra numas notas de leitura escritas logo a seguir à publicação da peça, em Leão (1998). O mesmo drama foi objecto de uma análise mais aprofundada por Maria de Fátima Silva, num estudo publicado no ano seguinte (1999).

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Contornos de sombra em O Corpo de Helena de Paulo José Miranda

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percepção precisamente através das capacidades mânticas da noite, conforme ele mesmo revela ao inquieto irmão que o admoesta (p. 17):

Hoje, bem cedo, muito antes da deusa Aurora nos conceder a luz, compreendi que pouco importa aquilo que faça, se Helena nada fizer. É dela que o mundo vem, que o mundo volta. […] Sabes Agamémnon, o que dirão através dos tempos, “de Menelau sabemos apenas o gesto de sua amada, Helena, a mulher que dele passou para outro”. E se conduzir as naus, não perseguirei a honra, mas a história.

Agamémnon não entende nem pode entender as dúvidas de Menelau;

está ilaqueado, como o velho pai Atreu, pela obrigação da represália, que interessa tanto a deuses como a humanos, por restabelecer uma ordem conhecida que a ninguém ocorreu questionar, tanto do ponto de vista ético como social, e por na empresa vir inscrita ainda a promessa ou miragem de reforçar glórias pessoais e colectivas através da chacina de uma grande cidade, pingue de riquezas e de gentes. A insolência de Menelau consiste em questionar um destino conveniente para todos — menos para ele — e em atrever-se a duvidar da pertinência de uma expedição que nunca poderá garantir o único objectivo que poderia interessar-lhe: a recuperação do corpo “intacto” (isto é, “não tocado” por mais ninguém) de Helena, para nele espraiar o impulso imenso de uma paixão exclusiva. É esse drama que expõe perante o juízo acintoso de Ulisses/Ártemis (p. 31):

Sim, para quê, Ulisses? Talvez por Penélope corras o mundo, talvez por teu filho, talvez pelo leito que anseias ferverosamente após os combates. Mas atravessarias o mundo por uma causa perdida? Invadirias Ílion para recuperar Penélope coberta de beijos de outro, desejosa de outros desejos? Crês, também, que um corpo substitui outro corpo? Um dia! um dia, Ulisses, talvez compreendas estas palavras, não hoje.

Menelau tem razões de peso para não embarcar na viagem onde todos

parecem colher maiores vantagens do que ele. Com efeito, ao Atrida injuriado interessava apenas o que sabe ser impossível: a devolução do corpo impoluto de Helena e a certeza da exclusividade dos desejos da esposa. Porque o drama que vive é essencialmente solitário, não se mostra

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sensível ao peso social da ética guerreira. A confirmá-lo está o facto de o cenário escolhido para o desenrolar da acção representar os aposentos de Menelau, o lugar por excelência da intimidade, da penumbra cúmplice alumiada somente pela memória de uma cálida paixão.

Aliás o Coro, na sua primeira intervenção, ao mesmo tempo que identifica o «prenúncio / de morte» que acompanha a dúvida do filho de Atreu, informa também que «Menelau só já vê nas sombras, / com palavra feroz ataca / alguns companheiros de armas» (p. 15). Esse revestimento — voluntário ou compulsivo — dos sentidos num manto opaco de penumbra poderia constituir simplesmente indício de loucura provocada por uma paixão desmedida, que o próprio esposo de Helena parece atestar, mais adiante, quando afirma: «Sinto-me adoecer de razão.» (p. 25). No entanto, mais do que insânia amorosa, o refúgio na sombra é o espaço encontrado por Menelau para exprimir, por um lado, no ombro imaginário de um confidente amigo (Aquiles), as razões para as dúvidas que o assaltam e, por outro, para ensaiar uma conversa de acerto de contas com Helena, na qual exprime a hesitação entre o impulso da vingança e as derradeiras réstias da fugidia ilusão.

É novamente o Coro que, em ambos os casos, esclarece o leitor/espectador sobre a real orientação do olhar de Menelau. A primeira ocorrência registra-se logo a seguir à dura conversa entre os dois irmãos (p. 22):

Ai, Agamémnon já se vai! E nenhuma sensatez ficou, o infeliz julga que vê o valente Aquiles na sombra.

Numa longa tirada, o Atrida confia ao filho de Peleu a guarda de

Agamémnon, ao mesmo tempo que reconhece o forte vínculo de admiração e sintonia que nutre por Aquiles: «De certo modo, sempre foste mais meu irmão do que Agamémnon, entre nós não havia um pai a quem agradar. Apenas confissões e temores.» (p. 23). Essa declaração de fraterna amizade, independente dos vínculos de sangue e da obrigação de disputar atenções no ânimo paterno, vai ao encontro da sensibilidade patenteada já por Menelau relativamente à questão de fundo tratada no drama: partir ou não para Tróia, repor a honra na casa dos Atridas e desagravar a ofensa feita a Zeus Xenios, ser ou não ser cúmplice nos

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cenários que alimentam ambições humanas e caprichos divinos — ou então, se preferirmos reunir todas essas cambiantes num único binómio: lutar pela afirmação da vontade individual ou ceder ao peso da convenção social. Ora, é precisamente essa tensão que as palavras dirigidas ao perfil imaginário de um Aquiles recortado na sombra vêm pôr a descoberto, facultando a chave de leitura para uma das questões essenciais desenvolvidas na peça (pp. 23-24):

A noite é imensa no mundo, é imensa a solidão que me faz cuspir este fogo. Queria ainda ser livre, escravo dos deuses, devastar as planícies pelas suas paixões, não pela minha. Dói-me esse tempo em que a coragem era simples: matar, morrer. Hoje, aqui, a coragem já não é algo de tão decisivo. Sim, Aquiles, dói-me o passado como um braço perdido. Esta noite, noite de prazer para muitos, noite de pranto para outros, noite estranha para mim. Noite de palavras, tão diferentes, dependendo de quem as ouve.

Esse passo é bem ilustrativo da importância que a noite detém

enquanto espaço potenciador de sentimentos intensos e contraditórios, dependendo de quem dá guarida às palavras que habitam o ânimo de cada um. Porém, como instância mântica potenciadora da consciência, o oráculo nocturno acentua ainda a solidão imensa que acompanhará quem ousar a iniciação no espaço da dúvida. Por isso Menelau exprime o desejo aparentemente contraditório de «ser livre, escravo dos deuses», porque é alegre e ditosa a dependência ignara dos interesses superiores que lhe ditam os passos, em aparente autonomia. A liberdade efectiva pressupõe o entendimento do objectivo último das empresas iniciadas, a percepção das suas reais motivações, em suma, a afirmação da individualidade. No entanto, essa mesma afirmação de uma personalidade independente acaba por isolar o indivíduo perante a turba que não entende a ansiedade de um espírito que se debate internamente sobre a efectiva pertinência dos inabaláveis ditames divinos. De facto, para um espírito simples é muito mais claro o caminho a seguir: «devastar as planícies pelas suas paixões, não pela minha».3

3 Como acentuará o Coro, ao encerrar o drama, glosando um mote que descreve o drama

de Menelau, depois de despertar definitivamente do torpor nocturno (p. 49): «Pior sorte do que a morte / por certo, a consciência.».

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Com efeito, esse diálogo com a sombra de Aquiles é importante na estrutura global da peça, se bem que ocorra dentro de limites relativamente delidos: Menelau identifica o amigo entre os contornos de penumbra que o rodeiam (sem o Coro especificar quais) e é a essa figura imaginária do Pelida que se dirige, de forma solitária e sem interferência de outros factores. No entanto, o imaginado encontro com Helena assume características mais tensas e menos privadas. De facto, a imagem da esposa irrompe, de certa forma, por entre o diálogo de Menelau com Ulisses/Ártemis. Aliás, desde o início, o Coro logo suspeitou que esse encontro estava ao serviço de desígnios mais complexos, conforme deixa entender ao anunciar a entrada da nova personagem: «Eis que surge um corpo, Ulisses, / procura no leito Menelau.» (p. 26). De facto, o corpo é do filho de Laertes, mas sob aqueles traços humanos acoita-se a deusa que tem vindo a urdir a tragédia recente que se abate sobre a casa dos Atridas: Ártemis. Menelau cedo intuiu o disfarce, embora começasse por identificar com Zeus a divindade que se escondia debaixo do aspecto de Ulisses. Ora a perturbar ainda mais um diálogo já de si tenso,4 surge a imagem de Helena, que se impõe entre as duas personagens; novamente, é o Coro quem identifica a situação (p. 32):

Menelau fixa a sua sombra é Helena quem julga ver!

Aos olhos do Coro, a visão continua, como no caso anterior, a ser

imaginária. Há, contudo, uma diferença fundamental: a sombra que dera forma ao perfil de Aquiles era indeterminada e confundia-se com toda a penumbra envolvente; Helena, porém, surge da própria projecção do corpo de Menelau. É, portanto, uma sombra com contornos muito mais regulares e corresponde ao negativo da imagem factual do Atrida, como se representasse, de certa forma, uma face oculta, negra, ou ainda a consubstanciação dos anseios mais íntimos. E assim poderá ser, de facto. Da união de corpos e almas, que Menelau julgava existir entre si e a esposa, nada mais resta a não ser a sombria constatação de uma ficta

4 Que obriga, de resto, Ulisses/Ártemis a deixar entrever, em tom de ameaça, a sua dupla

natureza (p. 29): «Como ousas, tu, falar assim comigo, comum mortal, acaso sabes quem sou? Julgas pelo que vês, e isso será o que te irá perder. Nem sequer falas para Ulisses, mas para aquele que te habituaste a invejar. Falas para o teu medo!».

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miragem, que o Atrida controla, em cada movimento que ensaia, embora a sinta completamente desprovida do calor envolvente de Helena. Nessa conversa que gostaria de ter com a esposa, ele dá voz aos grandes dilemas que lhe assaltam o espírito nas longas horas de indecisão (p. 32):

Serei livre apenas no teu desespero ou na tua paixão. O tempo há-de vir esbofetear-te o rosto, e verei o teu pânico na contemplação da juventude onde então meus lábios repousem. Tenha eu forças para isso, vontade, e devastarei Tróia em tua busca. Hás-de pedir-me que te ame, para que não assistas à pior das tuas mortes, a decrepitude. Ou isto ou o regresso do teu amor. É assim que me encontro, entre a vingança e a ilusão.

Menelau continua a escrever a sua história em função de Helena,

apesar da tentativa, já comentada, de se livrar desse destino marcado. Os dois pólos que contrariamente o atraem (denunciando ambos uma grande paixão) são a expectativa de vingança e o fugidio alento da ilusão. O Atrida preferiria o segundo, o regresso aos braços imaculados de Helena, desejo já de si impossível de concretizar, pelo facto de o corpo ansiado acusar a memória ainda fresca e húmida dos beijos adúlteros de Páris. Resta-lhe, portanto, a hipótese da vingança, conjugada com o auxílio de um cúmplice seguro e inelutável: o tempo e a sua capacidade para exercer justiça. A «pior das tuas mortes, a decrepitude» será também o castigo mais duro que Helena há-de enfrentar, pois nenhum dos seus amantes de circunstância será capaz de assegurar-lhe a «contemplação da juventude» por entre a máscara de rugas moldada pelos anos; de facto, a visão terna, complacente e intemporal constitui um rigoroso exclusivo de quem ama de verdade. No entanto, mesmo ao ponderar a perspectiva de vingança, Menelau continua a ser guiado por um amor intenso, como ele próprio acaba por confidenciar, pouco depois (pp. 33-34):

Tudo o que digo em nada afectará os teus cabelos, Helena, nem produzirá rugas. Soubesse Aquiles destas palavras para ti e não levaria a sério as que lhe teci. Mas não falo para ti. Falo para a tua beleza, para o meu desejo, a minha miséria, as nossas mortes. Os dias em que o meu corpo estremecia contigo findaram, mas a minha alma vibra ainda, mais sonora do que nunca. Erra todo o homem que subestime a paixão, a água onde o sangue se perde. Mas ninguém despertará para o mistério do mundo e da alma sem que

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dessa ferida se erga. Nada me espera mais, e canto como se para um filho, como se prolongasse no mundo e no tempo a minha dor, a minha carne. O que eu quero de mim és tu, Helena.

Menelau desejaria ardentemente recuperar o corpo da esposa; mas se

a evidência lhe vai revelando como é irrealizável um tal anseio, anelaria ao menos resgatar a alma que nele «vibra ainda, mais sonora do que nunca»; contudo, também para isso necessitaria de reconquistar a parte que de si já perdeu: Helena. É uma tarefa igualmente votada ao fracasso, até porque — compreende-o finalmente no termo da disputa que com a sua sombria projecção manteve — essa comunhão de almas gémeas nunca existiu de verdade (p. 35): «Seria preciso uma vida para fazermos realmente parte de nós mesmos, e não chega. Agora, convencermo-nos de que dois pedaços de desconhecido pertencem um ao outro é demasiada insensatez, mesmo para Pandora.»

Referências

LEÃO, Delfim F. “O corpo de Helena ou a insolência da dúvida”, Boletim de Estudos Clássicos 30, 1998, p. 173-180.

MIRANDA, Paulo J. O corpo de Helena. Lisboa: Cotovia, 1998.

SILVA, Maria de Fátima. “Os caminhos da honra e do amor ou O corpo de Helena de Paulo José Miranda”, Ágora 1, 1999, p. 57-74.

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POR QUE OS ALUNOS DE 5ª E 8ª SÉRIES APRESENTAM DIFICULDADES PARA SE EXPRESSAREM POR MEIO

DE TEXTOS ESCRITOS?

Why do fifth and eighth grade students show difficulty to express themselves through written texts?

Roberta COSTELLA1

Helena CONFORTIN2 RESUMO: Segundo uma vasta bibliografia pesquisada, a produção textual é um

dos maiores problemas enfrentados por alunos e professores de Língua Materna, principalmente, a partir da 5ª série do Ensino Fundamental. Diante desse dado, neste trabalho, procurou-se investigar essa dificuldade de expressão, por meio de textos escritos, nos alunos de 5ª e 8ª séries das escolas do Município de São José do Ouro, RS. A opção por este tipo de pesquisa se deu em vista da constante desmotivação do aluno para escrever e das constantes reclamações dos professores, relativamente à qualidade dos textos que os alunos produzem. Constatou-se, por meio da análise, que a superioridade qualitativa dos textos não deriva da metodologia utilizada pelos professores e, sim, da contextualização da produção textual e do ambiente sócio-cultural do aluno. Os dados conclusivos apontam para a necessidade de permanente feedback sobre os critérios de avaliação das produções textuais.

PALAVRAS-CHAVE: Produção textual; avaliação textual; professor avaliador. ABSTRACT: According to a large bibliography researched, text production has

been one of the biggest problems faced by mother tongue students and teachers, specially for fifth grade students from elementary school. This work has investigated such expression difficulty in students from the fifth to the eighth grade at the municipal schools in São José do Ouro, RS, through written texts. The choice of this type of research is due to the

1 Professora Estadual e Municipal e Membro do Conselho Municipal de Educação em São

José do Ouro, RS. Mestranda em Linguística pela UPF e Especialista em Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa pela URI. [email protected].

2 Professora titular, pesquisadora e Pró-Reitora de Ensino da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões. Orientadora da presente pesquisa. [email protected]

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fact that students are not frequently interested to write and the constant complaints from teachers on the quality of students’ written texts. Based on this, it has been noticed that the qualitative superiority of the texts do not come from the teachers’ methodology but from textual contextualization and from the student’s social-cultural environment. The conclusive data reveal the need of a constant feedback about the evaluative rules in text productions.

KEYWORDS: Text production; text evaluation; evaluative teacher. Introdução

O maior desafio para o professor de Língua Portuguesa e o ponto culminante do trabalho realizado com o aluno na disciplina é a produção textual. Viabilizar ao aluno o exercício da produção textual escrita, dando-lhe as condições ideais para tornar-se um escritor competente, um produtor de significados e não um mero reprodutor de textos, possibilitando-lhe o desencadeamento de um processo que o estimule a escrever com confiança, acaba sendo o fim último do trabalho do professor de língua materna.

O ato de escrever é uma busca, uma investigação do mundo ou de si mesmo, uma busca que deve proporcionar prazer. No entanto, parece que o aluno não se sente confiante como produtor de textos.

Já se disse de tudo: culpou-se a falta de leitura, a alienação universal, a televisão, a falta de expectativas, o fim do século, o início de um novo século, a preguiça. Isso, sem dúvida, na ânsia de descobrir a causa e corrigir as consequências. E, pelo que se vê, nada foi corrigido e o aluno continua com enormes dificuldades para comunicar-se através da escrita.

De acordo com os PCNs de Língua Portuguesa (1997), o eixo da discussão, no ensino fundamental, no que se refere ao fracasso escolar, tem sido a questão da leitura e da escrita e que os índices brasileiros de repetência das séries iniciais estão diretamente ligados à dificuldade que a escola tem de ensinar a ler e a escrever. Esclarecem, também, que a repetência expressa-se, claramente, no fim da 1ª série (ou nas duas primeiras) por dificuldade em alfabetizar e na 5ª série por não conseguir garantir o uso eficaz da linguagem, condição para que os alunos possam continuar a progredir até, pelo menos, o fim da 8ª série.

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Por que os alunos de 5ª e 8ª séries apresentam dificuldades para se expressarem por meio de textos escritos?

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Entendendo serem esses dados muito preocupantes e merecedores de muita atenção, pretende-se, com este trabalho, verificar quais são os motivos que fazem os alunos apresentarem dificuldades de se expressar através de textos escritos.

Para isso, analisa-se todo o processo de produção textual em turmas de 5ª e 8ª séries da cidade de São José do Ouro, RS, por meio da aplicação de questionários, do acompanhamento em sala de aula e da avaliação da produção final dos alunos: o texto reescrito. Para essa avaliação, propõe-se uma ficha avaliativa, criada a partir de critérios que se entende serem necessários para a elaboração de um bom texto.

A pesquisa, além dos itens que aparecem neste artigo, apresenta questões sobre as implicações da escrita em todo o ensino da língua: oralidade, leitura, variação linguística e reescrita. Também, a análise e a interpretação dos questionários foram feitas através de tabelas, a fim de comparar e analisar respostas de alunos e professores. Assim, no presente artigo, apresenta-se, resumidamente, o trabalho de pesquisa citado, focalizando na ficha avaliativa criada pela pesquisadora3.

Produção textual: caminhos e (des)caminhos

A dificuldade de escrever muito tem sido debatida por estudiosos da

Língua Portuguesa. O debate de várias questões referentes à produção textual dos alunos, nas palavras de Britto, permite um requestionamento de toda organização do ensino de língua:

Afinal, para que tem servido o ensino de português, se o estudante não “aprende” o domínio real da língua escrita? Se todos concordam que existe a doença, o mesmo não acontece com o diagnóstico. Dentro de um aparente consenso de que a performance estudantil situa-se abaixo de níveis desejados, há uma gama enorme de opiniões, que vão desde o “estudante não sabe escrever porque não lê”, até aquelas que se preocupam mais com as causas e as razões do que com a condenação pura e simples do estudante. (BRITTO, 1983, p. 117).

3 Este artigo origina-se de um trabalho apresentado por Roberta Costella, na URI –

Campus de Erechim, para a obtenção do título de Especialista em Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, sob a orientação da Professora Doutora Helena Confortin.

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Eglê Franchi, em seu livro Redação na Escola, relata que, como professora de 1º grau, tem assistido a um declínio da espontaneidade e criatividade verbais das crianças, que inicia no momento em que entram para a escola, culminando na 3ª e 4ª séries. Comenta que, “entre 9 e 12 anos, aquela criança que, ao representar a sua própria visão do mundo, vinha expressando-se livremente, torna-se mais inibida e fechada a qualquer tipo de manifestação [...].” (FRANCHI, 1984, p. 43).

Guedes (2004) alerta para o distanciamento do tema da redação escolar daquilo que os alunos são capazes de fazer na vida, como se a inautenticidade de um texto fosse seu maior mérito. E acrescenta que na raiz de todo o problema da produção está

[...] uma prática de escrita mantida dentro de um âmbito privado, do qual foi excluído o leitor. A desconstrução dessa atitude diante da língua escrita consolidada pela história escolar desses alunos para que passem da produção de redações escolares para a produção de discursos, isto é, textos que fazem uso consciente dos recursos expressivos da língua com a finalidade de produzir deliberados efeitos de sentido sobre bem determinados leitores começa com a introdução do leitor no processo de produção de texto. (GUEDES, 2004, p. 51).

Diante disso, há uma descaracterização do aluno como sujeito,

impossibilitando-se o uso da linguagem, pois segundo Geraldi (2006), na redação escolar, não há um sujeito que diz, mas um aluno que devolve ao professor a palavra que lhe foi dita pela escola, simulando-se, assim, o uso da modalidade escrita, para que o aluno se exercite no uso da escrita, preparando-se para de fato usá-la. É a preparação para a vida, que encara o hoje como não-vida.

Britto diz ser uma das maiores dificuldades do estudante na hora da escrita, falar para ninguém ou, mais exatamente, não saber a quem se fala. A presença de “um interlocutor no discurso de um indivíduo não é algo neutro, sem valor. Ao contrário, em alguma medida, está sempre interferindo no discurso do locutor.” (1983, p. 119).

De acordo com os PCNs (1997), para formar escritores competentes precisa-se de uma prática continuada de produção de textos na sala de aula, produzindo textos variados e aproximando as condições de produção às circunstâncias nas quais se produzem esses textos. Conquistar a

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cidadania e ser intérprete do seu próprio texto é ter competência para relacionar o texto ao contexto, aos conhecimentos, aos sentimentos, aos valores, às ideologias. É ser capaz de concatenar as ideias por meio da escrita, compreendendo a função social que perpassa a língua escrita nos ambientes e nas atividades do dia a dia, pois

[...] as palavras, o mundo e o entendimento de quem escreve e de quem lê compõem o texto, que se vai organizar para dar conta desse diálogo à medida que esse diálogo vai se dando, interminável [...] é o texto que lê o mundo, que lê a palavra escrita a partir da leitura do mundo e que repõe no mundo os olhos armados pela palavra escrita, e esta movimentação descreve o processo de produção de texto [...]. (GUEDES, 2004, p. 16).

Escrita e reescrita

Há uma espécie de consenso em toda a literatura pesquisada. Uma

afirmação de que a escrita envolve um momento que pode ser considerado de pós-escritura: a revisão.

Levando em consideração que a escrita é uma construção que se processa na interação e que a revisão é um momento que demonstra a vitalidade desse processo construtivo, pensamos a escrita como um trabalho e propomos o seu ensino como uma aprendizagem do trabalho de reescritas. Consideramos um texto como um momento no percurso desse trabalho, sempre possível de ser continuado. O texto original e os textos dele decorrentes podem nos dar uma dimensão do que é a linguagem e suas possibilidades. (MAYRINK – SABINSON; FIAD, 1989, p. 55).

Possibilitar ao aluno a compreensão da importância de voltar ao texto

com intenção de melhorá-lo, nada tem de comum em voltar ao mesmo para recopiá-lo ou, como se ouve tradicionalmente, “passar o texto a limpo”.

Se o professor almeja que os alunos tenham uma atitude crítica frente aos seus próprios textos, deverá ensiná-los a revisarem seus textos, uma vez que a tarefa do professor de redação “começa a partir do texto escrito pelo aluno e que essa tarefa é a orientação da reescrita desse texto para ajudar

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seu autor a descobrir o que ele queria dizer e a reescrever aquela primeira versão para torná-lo capaz de dizer isso.” (GUEDES, 2004, p. 13).

Sob o caráter didático da revisão do texto, pensa-se que esta seja uma tarefa a ser sistematicamente ensinada ao aluno para que ele conceba sua produção como um processo passível de análise e possa, além de produzir um leitor, coordenar eficientemente os papéis de produtor, leitor e avaliador do seu próprio texto. Assim, “isso significa deslocar a ênfase da intervenção no produto final, para o processo de produção, ou seja, revisar, desde o planejamento, ao longo de todo o processo: antes, durante e depois.” (PCNs, 1997, p. 74).

Não se pode falar em revisão, sem retomar o processo de produção como um todo. Não teremos alunos produzindo textos coesos se estes não compreenderem as peculiaridades da linguagem escrita, ou então, se as atividades de produção textual lhe exigirem mais habilidades de preenchimento de espaços do que a de escolher adequadamente as palavras e, assim, proceder no texto às amarras de nível superficial.

Para que as revisões escolares sejam proveitosas, elas precisam ter, no entanto, como modelo, gêneros de textos produzidos em diferentes situações de comunicação. Como se sabe, todos os gêneros de texto têm origem em situações de comunicação específicas e marcas linguísticas próprias. Quando os professores conhecem a situação de produção e as marcas do gênero que propõem que seus alunos escrevam, podem auxiliá-los a melhorar suas produções. É a intervenção objetiva do professor consciente das características dos gêneros que ensina a escrever que leva os alunos a aprimorarem continuamente seus textos.

Aos alunos é essencial explicar que, para se produzir um texto escrito, dois fatores são fundamentais: paciência e um trabalho contínuo com as palavras. É preciso mostrar-lhes que a primeira versão de um texto sempre pode ser melhorada. Afinal, para escrever um texto, além de organizar e utilizar os conhecimentos que cada um possui (principalmente aqueles adquiridos através da leitura), precisa-se, também, de planejamento e de tantas tentativas e correções quantas forem necessárias para alcançar o resultado pretendido. O texto só estará finalizado quando o seu autor considerar que conseguiu transmitir, da melhor forma possível, todas as ideias a que se propôs.

Possenti (2000, p. 32-33) mostra, claramente, como deveria ser a produção textual na escola. Diz que basta que se verifique como escrevem escritores, jornalistas. Eles pesquisam, vão à rua, ouvem os outros, lêem

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arquivos, lêem outros livros. E somente depois escrevem, lêem, relêem e reescrevem. Também mostram para colegas ou chefes, ouvem suas opiniões e reescrevem novamente. Argumenta que a escola pode agir dessa forma, mas sem pensar somente em lista de conteúdos e avaliações objetivas.

Escrita e avaliação da produção: o papel do professor avaliador

Sabe-se que a avaliação é um processo complexo, envolvendo

aspectos que vão desde a subjetividade até as técnicas de corrigir e avaliar. Sabemos, também, que os avanços da Linguística, mais especificamente da Linguística Textual, da Análise do Discurso e da Pragmática, têm trazido contribuições outras, além daquelas somente de caráter linguístico, determinadas pela língua oficial. Tais contribuições têm se detido na textualidade, cujo enfoque é o texto como objeto inacabado e também pragmaticamente construído.

Costa Val (1993) é clara quando explicita que não se deve avaliar as partes linguísticas de um texto, mas o discurso e a textualidade. Isto porque o que as pessoas têm para dizer não corresponde a palavras nem a frases isoladas, mas, sim, ao texto.

Assim, o texto ou discurso é definido, segundo Costa Val (1993, p. 3) “como ocorrência linguística falada ou escrita de qualquer extensão, dotada de unidade sociocomunicativa, semântica e formal”. Ou seja, um texto é uma unidade de linguagem em uso, cumprindo uma função identificável num dado jogo de ação sociocomunicativa. A textualidade abrange também o contexto sociocultural em que se insere o discurso, uma vez que delimita os conhecimentos pontilhados pelos interlocutores.

Segundo Costa Val (1993), são sete os fatores responsáveis pela textualidade: coerência e coesão (centrados no texto) – que têm relação com os elementos conceituais e linguísticos do texto – intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, informatividade e intertextualidade, que têm a ver com os fatores pragmáticos envolvidos no processo (centrados no usuário).

Outra corrente é de autoria de Paulo Coimbra Guedes. Em sua obra Da redação escolar ao texto – Um manual de redação (2004), Guedes apresenta as qualidades discursivas, que, segundo ele, correspondem a um conjunto de características que determinam a relação que o texto vai estabelecer com seus leitores por meio do diálogo que trava não só

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diretamente com eles, mas também com os demais textos que os antecederam na história dessa relação. Em sua obra são tratadas as três tipologias textuais, porém, para a presente pesquisa, apenas são relevantes as qualidades discursivas presentes em dissertações. O autor apresenta quatro qualidades discursivas: objetividade, unidade temática, concretude e questionamento.

Assim, propôs-se uma ficha avaliativa para a análise dos textos dos alunos (no caso, o dissertativo), que foi desenvolvida e será utilizada no presente trabalho, tanto pela pesquisadora, quanto pela professora de Língua Portuguesa das turmas pesquisadas. A ficha divide-se em conteúdo, estrutura e expressão.

Os aspectos avaliados no conteúdo tiveram por base os elementos responsáveis pela textualidade, segundo Val (1993), e as qualidades discursivas apresentadas por Guedes (2004). Optou-se por esses critérios, pois, ao se criar a ficha avaliativa, tinha-se os mesmos objetivos dos autores mencionados: resgatar a competência discursiva do aluno, fazer com que ele escreva, com que seja o sujeito do discurso, assumindo a sua fala, não sendo apenas um reprodutor de esquemas e ideias pré-estabelecidas.

Também se observou, no conteúdo, o desenvolvimento da ideia principal, ou seja, a capacidade de o aluno desenvolver um assunto, expondo-o ou argumentando com ideias significativas. Discutir a tese, expor as ideias, defender um ponto de vista são tarefas essenciais. E, se as dissertações visam a argumentar ou a expor, o centro de nossas atenções deve voltar-se ao desenvolvimento da ideia principal.

Na estrutura observou-se: a obediência à estrutura de texto solicitada (dissertativa), a estrutura do parágrafo e a relação entre os parágrafos. A dissertação, que consiste numa série de argumentos, os quais visam a conduzir o leitor a uma conclusão ou opinião, deve apresentar introdução, desenvolvimento e conclusão.

Em um texto, todas as ideias desenvolvidas apresentam-se graficamente sob a forma de parágrafos, que devem estar interligados, complementando-se, com unidade e coerência. E, um parágrafo típico em dissertações (o expositivo-argumentativo) deve apresentar uma tese, com os dados e as observações que possam ter utilidade no convencimento do leitor.

A expressão envolveu: correção gramatical, ortografia, pontuação, apresentação gráfica e título.

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Ficha Avaliativa Proposta

Ficha Avaliativa

Conceito Ruim Regular Bom Muito Bom Conteúdo 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 4,5 5 Estrutura 0 0,3 0,6 0,9 1,2 1,5 1,8 2,1 2,4 2,7 3 Expressão 0 0,2 0,4 0,6 0,8 1 1,2 1,4 1,6 1,8 2 Desempenho 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% Nota total 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

1) Conteúdo: peso 50%

• Desenvolvimento da ideia principal. • Coesão e coerência. • Objetividade, unidade temática, concretude e questionamento. • Intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, informatividade

e intertextualidade. 2) Estrutura: peso 30%

• Obediência à estrutura de texto solicitada (dissertativa). • Estrutura do parágrafo. • Relação entre os parágrafos.

3) Expressão: peso 20%

• Correção gramatical. • Ortografia. • Pontuação. • Apresentação gráfica. • Título.

Para cada critério da ficha avaliativa (conteúdo, estrutura e expressão)

definem-se, com precisão, quatro conceitos (ruim, regular, bom e muito bom) e, para cada um, são associados valores. Cabe ao professor, a opção por um desses valores que estão dispostos em ordem crescente, de 0 a 10.

A utilização da ficha é simples. Basta que, para cada critério, faça-se um círculo em torno do valor que se adapta melhor ao texto avaliado. Por fim, deve-se somar os valores escolhidos em cada critério e obter-se-á a avaliação final.

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Procedimentos metodológicos

Como passo inicial, buscou-se pesquisar e estudar a bibliografia referente à produção textual, bibliografia essa constituída de autores preocupados com o ensino do texto escrito, desde seu encaminhamento até a sua reescritura. Na tentativa de verificar por que os alunos de 5ª e 8ª séries apresentam dificuldades para se expressarem através de textos escritos, definiu-se o universo escolar que possibilitou selecionar o material de pesquisa.

Por ser um trabalho de pesquisa de campo, trabalhou-se com alunos de duas escolas da cidade de São José do Ouro, RS (uma municipal e uma estadual), duas séries (5ª e 8ª) e quatro turmas, num total de 71 estudantes. Foram informantes, também, os quatro professores de Língua Portuguesa das respectivas turmas, totalizando, assim, 75 informantes. Não se teve nenhum critério adotado na escolha das escolas e dos professores. Escolheu-se aqueles professores de 5ª e 8ª séries que se apresentaram dispostos em colaborar com a presente pesquisa.

Para facilitar as comparações e aprofundar as constatações, analisaram-se 05 textos de cada turma, num total de 20 produções textuais. Esses textos foram analisados a partir de uma ficha avaliativa previamente elaborada, na qual foi dada ênfase ao conteúdo. Os textos produzidos pelos alunos foram obtidos através de um sorteio pela lista de presenças do Diário de Classe do professor de Língua Portuguesa.

Além disso, analisou-se o processo metodológico utilizado pelos professores para trabalhar a produção textual em sala de aula. Para se ter uma visão mais detalhada das opiniões dos alunos e dos professores entrevistados, essa análise, além do acompanhamento das aulas por parte da pesquisadora, foi feita através de dois questionários com perguntas sobre o ensino de Língua Portuguesa e, mais especificamente, sobre o encaminhamento, o desenvolvimento, a reescritura e a avaliação da produção textual. Um questionário foi aplicado aos alunos e outro, aos professores.

Os dados obtidos nos questionários foram explicitados através de tabelas e resultaram num importante material para confronto de opiniões entre os professores, os alunos e as aulas acompanhadas pela pesquisadora. Sempre que a mesma pergunta constou de ambos os questionários (questionário do aluno e questionário do professor), as

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tabelas explicitaram uma comparação entre as respostas dadas pelos alunos e pelos professores.

Para obter dados com o menor número possível de variáveis optou-se, em todas as séries e turmas, por um tipo específico de texto (dissertativo), por um mesmo assunto (Consciência Negra) o qual estava sendo trabalhado nas escolas por determinação da Secretaria de Educação do Estado, por um mesmo espaço de tempo (15 dias, no mês de novembro) e com um mesmo objetivo (atender a uma solicitação do professor de Língua Portuguesa e obter um parecer avaliativo).

Para a correção das produções textuais, forneceu-se aos professores uma ficha de avaliação formulada a partir de critérios considerados essenciais para a produção de um bom texto e que abordasse os principais aspectos: conteúdo, estrutura e expressão. Assim, de posse dos textos, pôde-se fazer uma comparação entre a avaliação do professor e a da pesquisadora.

Para encerrar, fizeram-se tabelas comparativas entre as diferentes séries de uma mesma escola (5ª e 8ª) e entre as mesmas séries de diferentes escolas (5ª série municipal X 5ª série estadual e 8ª série municipal X 8ª série estadual). Diante de todos os dados apresentados, pôde-se constatar as dificuldades apresentadas pelos alunos no que se refere à produção textual de 5ª e 8ª séries da Rede Municipal e Estadual de São José do Ouro - RS.

Porém, no artigo em questão, exemplificou-se a avaliação de apenas uma produção textual por turma, excluíram-se as tabelas e fez-se um resumo sobre as respostas dadas por alunos e professores, somente sobre as principais questões referentes à produção textual e sobre o resultado comparativo entre as escolas. Análise dos dados obtidos nos questionários

Características dos alunos e professores de língua portuguesa

Ao se analisar os questionários e os dados obtidos, verificou-se que

46,5% dos alunos encontram-se entre 10 e 12 anos e a grande maioria, entre os 12 e 13 anos, num percentual de 53,52%. Todos os alunos pesquisados, que estudam na escola municipal, localizada no interior de São José do Ouro, residem em sua comunidade, ou seja, no interior da cidade e, da mesma forma, todos os alunos pesquisados que estudam na

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escola estadual, localizada no centro da cidade, residem na sede do município.

A faixa etária das professoras pesquisadas varia entre 30 e 60 anos. É um corpo docente maduro, com alguns anos de trabalho desempenhado e muita experiência em sala de aula. No que diz respeito à habilitação, duas professoras possuem Pós-Graduação em Letras e duas, Terceiro Grau Completo (Letras). Convém destacar que todas possuem 40 horas semanais e trabalham no Ensino Fundamental e Médio.

Questões sobre a escrita

O número apresentado pelos professores, quanto à periodicidade com

que solicitam a elaboração de redações, confirmado pelos alunos, é satisfatório (uma vez por semana - lembrando sempre, que não é o número de redações que vale, mas, sim, a qualidade do trabalho preparatório e realizado), desde que, a partir dos textos produzidos, os professores proponham atividades diversas. O importante é que essas atividades sejam sempre de gramática de uso.

Os alunos (a grande maioria) consideram que escrevem textos bem ou razoavelmente bem (84,51%) e acreditam no que escrevem, acham fácil escrever. Já os professores são mais exigentes e responderam que há certo grau de dificuldade no que seus alunos escrevem e justificam essa dificuldade devido ao ensino centrado na gramática, nas séries iniciais; à falta de caminhada, durante a qual os alunos aprendem a montar e desmontar textos, debruçar-se sobre sua própria criação para fazê-la melhor; à falta de leitura e as condições do próprio meio onde vivem; falta de um trabalho contínuo com a oralidade.

Quando perguntado sobre como a professora procede quando solicita uma redação, obteve-se uma total coerência quanto às respostas de professores e alunos, o que mostra, felizmente, que os alunos são expostos a outros textos antes da escrita, o que para os PCNs é fundamental para o aprendizado da escrita:

Para aprender a escrever, é necessário ter acesso à diversidade de textos escritos, testemunhar a utilização que se faz da escrita em diferentes circunstâncias, defrontar-se com as reais questões que a escrita coloca a quem se propõe produzi-la, arriscar-se a fazer como

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consegue e receber ajuda de quem já sabe escrever (PCNs, 1997, p. 66-67).

Há uma contradição quanto à questão sobre o que a professora de

português faz com as redações de seus alunos depois que as analisa. Enquanto 100% das professoras responderam que corrigem, comentam, atribuem uma nota e fazem a reescrita das produções solicitadas, os alunos se dividiram entre a resposta dada pelos professores e a resposta que diz que os professores apenas corrigem, dão nota e não fazem a reescritura.

Acredita-se que essa metodologia de corrigir, comentar e dar nota para as redações não é feita em todas as produções solicitadas pelos professores, por isso essa duplicidade na resposta dos alunos, o que é lamentável, uma vez que o aluno sempre espera uma resposta de seu professor. E, deduz-se que, se não há correção e comentário, não há reescrita.

Outra questão, dizia respeito à escritura ou não dos textos propostos aos alunos. As respostas dadas não apresentaram grandes surpresas, pois a maioria dos informantes (75%) respondeu que não redige sistematicamente as redações antes de propô-las aos alunos. Mas, segundo Guedes (2004), a participação do professor escrevendo e dando a ler seus textos sobre os mesmos temas costuma acelerar e intensificar o processo de escrita por vários motivos. Dentre eles podemos citar:

a) [...] professor deixa de representar apenas aquela leitura escolar de catação implacável de erros e passa a fazer parte de um esforço coletivo de construção de um entendimento a respeito do assunto [...]; b) [...] ao expor-se à leitura e à crítica, o texto do professor acaba revelando-se imperfeito como os dos alunos [...]; c) o professor pode usar o seu texto para provocar reações, fazer perguntas, [...] explicar as qualidades discursivas, [...] pode tratar da realidade mais próxima e dar início ao processo de intertextualidade (GUEDES, 2004, p. 75).

Sobre a auto-avaliação a respeito dos métodos e técnicas utilizados

em redação, constatou-se que uma professora respondeu que a realiza sistematicamente; duas frequentemente e, uma, ocasionalmente. Infelizmente, nem todas assinalaram a alternativa com o advérbio “sistematicamente”, pois a autoavaliação, a existência de um

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questionamento sobre a metodologia adotada, representa uma possibilidade de reflexão que, se verdadeira, pode levar à ação.

Análise das produções textuais

Neste item do trabalho, fez-se uma comparação, utilizando a ficha

produzida pela pesquisadora, entre a avaliação feita pelo professor de Português das séries pesquisadas e a avaliação feita pela pesquisadora, lembrando que, para a correção das redações, professoras e pesquisadora utilizaram a mesma tabela avaliativa, tendo como tema a Consciência Negra. Analisaram-se 20 produções textuais. No presente artigo, exemplificaremos uma de cada série e turma.

Professor avaliador – texto do aluno x professor pesquisador – texto do aluno

Para a interpretação das fichas utilizou-se o código abaixo, pois na

mesma ficha tem-se a avaliação do professor e a do pesquisador. Nota 1: avaliação do professor Nota 2: avaliação da pesquisadora

: nota da professora : nota da pesquisadora

: nota da professora e da pesquisadora Por ser a primeira dissertação produzida pelos alunos da 5ª série da

Escola Municipal e da 5ª série da Escola Estadual, a avaliação não foi tão rígida como a feita com os alunos de 8ª série de ambas as escolas.

a) Avaliação dos alunos da 5ª série da Escola Municipal Aluno: 5E - EM Nota 1: 7,6 Nota 2: 7,0

Ficha Avaliativa Conceito Ruim Regular Bom Muito Bom 1) Conteúdo 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 4,5 5 2) Estrutura 0 0,3 0,6 0,9 1,2 1,5 1,8 2,1 2,4 2,7 3 3) Expressão 0 0,2 0,4 0,6 0,8 1 1,2 1,4 1,6 1,8 2 Desempenho 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% Nota total 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

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b) Avaliação dos alunos da 5ª série da Escola Estadual

Aluno: 5D - EE Nota 1: 6,2 Nota 2: 6,4

Ficha Avaliativa Conceito Ruim Regular Bom Muito Bom 1) Conteúdo 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 4,5 5 2) Estrutura 0 0,3 0,6 0,9 1,2 1,5 1,8 2,1 2,4 2,7 3 3) Expressão 0 0,2 0,4 0,6 0,8 1 1,2 1,4 1,6 1,8 2 Desempenho 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% Nota total 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

c) Avaliação dos alunos da 8ª série da Escola Municipal

Aluno: 8C - EM Nota 1: 6,5 Nota 2: 6,2

Ficha Avaliativa Conceito Ruim Regular Bom Muito Bom 1) Conteúdo 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 4,5 5 2) Estrutura 0 0,3 0,6 0,9 1,2 1,5 1,8 2,1 2,4 2,7 3 3) Expressão 0 0,2 0,4 0,6 0,8 1 1,2 1,4 1,6 1,8 2 Desempenho 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% Nota total 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

d) Avaliação dos alunos da 8ª série da Escola Estadual

Aluno: 8A - EE Nota 1: 6,3 Nota 2: 5,9

Ficha Avaliativa Conceito Ruim Regular Bom Muito Bom Conteúdo 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 4,5 5 Estrutura 0 0,3 0,6 0,9 1,2 1,5 1,8 2,1 2,4 2,7 3 Expressão 0 0,2 0,4 0,6 0,8 1 1,2 1,4 1,6 1,8 2 Desempenho 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% Nota total 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Comparações entre escolas e séries pesquisadas

Essas comparações foram feitas com base somente nas notas atribuídas pela pesquisadora. No artigo em questão, não se explicitaram as tabelas comparativas, somente um resumo do que continham as mesmas.

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Nota-se certa uniformidade entre as notas da 5ª série Municipal e as da 5ª série Estadual. A diferença apresenta-se no critério que diz respeito ao conteúdo, no qual a Escola Municipal obteve a nota 3,3 e a Escola Estadual, 2,5. A média final alcançada foi 6,5 (EM) e 5,9 (EE). Ambas obtiveram o conceito Regular.

Há uma visível superioridade alcançada pela 8ª série da Escola Municipal, nos três critérios analisados: conteúdo, estrutura e expressão. A média final alcançada pela 8ª série municipal foi 7,1 – conceito Bom. Enquanto que a 8ª série da Escola Estadual alcançou a média 4,7 – conceito Regular. Considerações finais

Sabe-se que o maior problema apresentado com relação à produção textual, na maioria das vezes, está no julgamento que o professor faz sobre o texto do aluno, considerando sempre o que este ainda precisa aprender, no sentido de escrever bem, e não o que ele já construiu com relação à escrita até aquele momento, ou o que lhe foi possibilitado construir.

Com a adoção de uma ficha avaliativa individual, que prioriza o conteúdo e não a forma, como a criada para esta pesquisa, o professor tem a oportunidade de, a cada produção do aluno, acompanhar seu desempenho, observando em que aspectos apresenta dificuldades desde a primeira produção textual.

As notas apresentadas pelas professoras e pela pesquisadora demonstraram uma oscilação mínima, sendo que a maior diferença apresentada foi de 0,5 décimos. A concordância entre as notas, tanto de 5ª como de 8ª séries só comprova a importância de se adotar um parâmetro na avaliação das redações dos alunos, pois assim, o professor foge da excessiva subjetividade.

Dessa forma, o professor poderá avaliar, também, se a metodologia adotada vai ao encontro das necessidades apresentadas por cada aluno. A ficha mostrou ser de fácil aplicabilidade e pode, sem dúvida, ser aplicada no contexto escolar.

Os textos foram reescritos e, somente depois, avaliados através de uma correção textual-interativa (SERAFINI, 1997), ou seja, além das correções apontadas no corpo do texto, todos os professores, ao final do mesmo, escreveram um bilhete, na maior parte, de incentivo ao aluno produtor, possibilitando a concretização de um vínculo afetivo, amigável

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entre escritor e interlocutor. Assim, as baixas notas apresentadas pelos alunos da Escola Estadual não se devem à metodologia adotada pelas professoras, pois foram as mesmas adotadas pelas professoras da Escola Municipal.

Talvez, um dado considerado relevante para essa diferença de qualidade dos textos produzidos entre as escolas pesquisadas resida no fato de que, segundo o questionário aplicado, todos os alunos que estudam na Escola Municipal, localizada no interior do município de São José do Ouro, residem em sua comunidade e trabalham em casa com seus pais, agricultores. Entende-se que essa proximidade faz com que os pais acompanhem mais a vida escolar de seus filhos, almejando um constante progresso, com o anseio de ascensão social: sair do interior e ir para a cidade.

Chamaram a atenção na análise dos questionários, também, as pequenas contradições apresentadas nas questões sobre o que a professora fazia com as redações de seus alunos depois que as analisava e se os alunos reescreviam os textos.

Enquanto 100% das professoras responderam que corrigem, comentam, atribuem uma nota e fazem a reescritura das produções solicitadas, os alunos se dividiram entre as respostas dadas pelos professores e a resposta que diz que os professores apenas corrigem, dão nota e não fazem reescritura. Acredita-se que essa metodologia de corrigir, comentar e dar nota para as redações não é feita em todas as produções solicitadas pelos professores, por isso, essa duplicidade na resposta dos alunos. E, deduz-se que, se não há correção e comentário, não há reescrita.

Essa metodologia de corrigir, comentar e dar nota para as redações, após a reescrita, não sendo feita em todas as produções solicitadas pelos professores, diminui, além da busca pela eficácia e pela correção da escrita, objetivos pedagógicos importantes, como o desenvolvimento da atitude crítica em relação à própria produção e a aprendizagem de procedimentos eficientes para imprimir qualidade aos textos.

Acredita-se que, em grande parte, é no exercício da reescrita, exigida muito seriamente, e orientada a partir de critérios muito claramente explicitados, que os alunos poderão compreender que a linguagem e, consequentemente, a produção textual, são frutos de um trabalho duro de reflexão que vale a pena, já que somente talento e inspiração não garantem a produção de obras-primas, nem mesmo aos consagrados escritores.

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Roberta COSTELLA & Helena CONFORTIN

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Referências BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília, 1997. BRITTO, Luiz Percival Leme. Em terra de surdos-mudos (um estudo sobre as condições de produção de textos escolares), 1983. In: GERALDI, João Wanderley (Org.). O texto na sala de aula. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006. COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e Textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1993. FRANCHI, Eglê. E as crianças eram difíceis... A Redação na Escola. São Paulo: Martins Fontes, 1984. GUEDES, Paulo Coimbra. Da redação escolar ao texto: um manual de redação. 3. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. MAYRINK – SABINSON, Maria Laura T. & FIAD, Raquel Salek. A escrita como trabalho. 1989. In: MARTINS, Maria Helena. Questões de Linguagem. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1993. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. 5. ed. Campinas: Mercado Aberto, 2000.

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LETRAS – PUC-Campinas – vol. 28 (2) - 2009 – p.35-53

ENSINAR E APRENDER – CORRIGINDO FLUXOS: UM OLHAR PARA ESCRITAS CRIATIVAS

Teaching and learning – correcting tendencies:

a look at creative writings

Sônia A. Festa SIGRIST 1

RESUMO: O objetivo desta pesquisa, realizada com professores de Língua Portuguesa, atuantes no Ensino Fundamental na rede Estadual de São Paulo, é refletir sobre a problemática da leitura e escrita criativas através do projeto Ensinar e Aprender – corrigindo fluxos. A proposta pedagógica visa a resgatar o autoconhecimento positivo e a confiança dos alunos na capacidade de aprender, por meio de uma nova abordagem da prática docente.

PALAVRAS-CHAVE: Formação continuada; práticas pedagógicas; Projeto

Ensinar e Aprender – corrigindo fluxos. ABSTRACT: This work, done with teachers of Portuguese at Fundamental

Education of the Public School System of the State of São Paulo, aims to reflect about reading and creative writing problems in the project Ensinar e Aprender – corrigindo fluxos. The pedagogical proposal of the project aims at recovering students’ positive self-esteem and confidence in their capacity to learn by means of a new approach in teaching practice.

KEYWORDS: Continued formation; pedagogical practice; Teaching and

Learning Project – correcting tendencies. Introdução

O domínio das habilidades de leitura e escrita é fundamental para a

inserção social e para a intervenção nas esferas de poder. O domínio da linguagem continua sendo, e cada vez mais, um mecanismo de atuação 1 Mestre pela Faculdade de Educação da PUC-Campinas, sob orientação da Profa. Dra.

Elizabeth Adorno de Araújo.

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Sônia A. Festa SIGRIST

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social fundamental. Por isso, se a escola pretende realizar a formação de cidadãos atuantes e críticos, necessita cuidar especialmente da criação de oportunidades para que as habilidades mencionadas sejam satisfatoriamente desenvolvidas.

O que se verifica na produção de textos dos alunos do Ensino Fundamental e Médio é a falta de informações, sua desarticulação e, principalmente, o uso daquilo que é considerado senso comum, e, apesar da circulação de grandes quantidades de informações, muitos alunos não sabem usufruir delas. A quantidade e a qualidade das informações presentes dentro do texto, bem como sua organização, são fundamentais.

Segundo Kock (2004, p.41), “a informatividade diz respeito, por um lado, à distribuição da informação no texto, e, por outro, ao grau de previsibilidade/redundância com que a informação nele contida é veiculada”.

Um gênero textual que atende às suas estruturas, como exemplo o da dissertação argumentativa, não necessariamente necessita de padrões rígidos como os ensinados. O aluno que consegue inovar, inventar, discernir ou descobrir, visualizar o problema/assunto sob outro(s) ponto(s) de vista, fazer diferente, reestruturar ideias pode ter o seu texto considerado criativo, uma vez que criatividade é uma capacidade humana de gerar soluções ou novas alternativas; logo é uma habilidade passível de ser aprendida, desenvolvida e aperfeiçoada. Deve ser, portanto, gerenciada e considerada como processo e produto, depende de conhecimento e traz respostas novas adaptáveis a fim de que o homem seja capaz de resolver um problema da realidade. Conforme Antunes (2003, p.8), “a criatividade é um conceito associado a diferentes atributos ligados à originalidade, à variedade, à espontaneidade, à facilidade em ver e entender de maneiras diferentes as coisas do mundo”.

A criação deve partir de um problema/proposta em busca de uma solução. É preciso estimular. O professor deve atribuir confiança, respeito e admiração pelo ‘novo’. Autorizar a liberdade sem prejuízo para a coerência.

A preocupação com a escrita criativa e a crença de que o professor pode ser um dos agentes motivadores, que conduz o aluno a escrever com autonomia, incentivando-o à criatividade na produção de textos, levaram-nos a procurar, nesta pesquisa, caminhos que pudessem

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ajudar-nos a responder tais buscas e inquietações. Entendemos que o avanço na compreensão da leitura e da escrita leva a efeitos progressivos quanto à conquista da cidadania e da qualidade de vida e sabemos ser necessário muito investimento pedagógico.

Diante desse panorama, entendemos que a produção de textos precisa ser privilegiada na formação dos alunos do Ensino Fundamental e Médio. O professor da área de Linguagem desenvolve esse tipo de trabalho, embora saibamos que, numa compreensão mais ampla, em relação à escrita, isso envolve toda a formação do aluno, sendo os professores de outras disciplinas também responsáveis.

A pesquisa aqui apresentada pretendeu investigar: a. o perfil e as expectativas de professores de Linguagem atuantes

no projeto Ensinar e Aprender – corrigindo fluxos – Ciclo II; b. se o trabalho com o projeto Ensinar e Aprender: corrigindo

fluxos – ciclo II, contribui para a criação de textos significativos.

c. o conceito de criatividade na redação abordado em sala de aula.

Para tanto, acompanhamos as capacitações oferecidas aos

professores da área de Linguagem pela Diretoria de Ensino – Região de Sumaré, SP. Os professores responderam a três questionários distintos, nos três momentos das capacitações que ocorreram durante o ano de 2005.

Na prática em sala de aula, sempre procuramos enfatizar, aprofundar e valorizar o trabalho com a escrita, embora seja muito desgastante para o professor, principalmente de português, passar horas lendo produções de textos e pensando no que e como fazer para levar seus alunos à criatividade na escrita.

O trabalho na Diretoria de Ensino – Região de Sumaré, SP, junto à Oficina Pedagógica, acompanhando capacitações e projetos oriundos da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, através do programa Bolsa Mestrado2, proporcionou-nos conhecer o projeto EA –

2 O Programa Bolsa Mestrado integra o Programa de Formação Continuada de

Educadores – Teia do Saber – e tem por finalidade propiciar aos profissionais da educação a continuidade de estudos, em cursos de pós-graduação stricto sensu

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Ensinar e Aprender: corrigindo fluxos – Ciclo II – do Ensino Fundamental, iniciado em São Paulo, por volta de 1998, e na Diretoria de Ensino – Região de Sumaré, SP, em 2000. A maneira de se trabalhar e vivenciar o projeto é diferenciada da tradicional, bem como a avaliação. Há trocas de experiências, trabalhos em grupos, alunos se ajudam mutuamente utilizando suas próprias experiências e linguagens.

Iniciamos a investigação buscando indicadores que permitissem verificar o perfil dos professores da área de Língua Portuguesa que trabalham o projeto nas escolas. O estudo privilegiou, como público alvo, professores de português, atuantes nas classes de aceleração das 8ª séries do Ensino Fundamental, compostas por alunos com defasagens de idade/série/conteúdo, ou reprovados no ciclo II, isto é, na 8ª série regular.

Elaboramos questionários aplicados, no início de cada capacitação, aos professores, atuantes na Rede Estadual de Ensino, efetivos no cargo ou em caráter temporário - OFA (Ocupante de Função Atividade).

Ao mesmo tempo em que percebíamos a disposição dos professores para participar também havia a desconfiança, evidenciando-se a insatisfação desses quanto à falta de retorno de resultados de pesquisas científicas para os pesquisados.

Acompanhamos o projeto em algumas escolas, através de visitas, observações e contatos com professores, durante o ano de 2005, sendo que em 2006, apenas observamos as capacitações, que ocorreram com um número reduzido de professores, somente os que nunca trabalharam no projeto.

O objetivo geral foi avaliar a trajetória de uma capacitação de professores de português que atuam no projeto Ensinar e Aprender – corrigindo fluxos – ciclo II, com o foco para o desenvolvimento da criatividade na redação.

Para a realização desta pesquisa, foram utilizados os recursos da abordagem qualitativa. Limitamo-nos a um grupo de sujeitos que produzem o fenômeno a ser estudado. Métodos qualitativos fornecem

(mestrado e doutorado) na área da educação e/ou da licenciatura do educador, em Instituições de Ensino Superior, públicas ou particulares. Disponível no site: www.educacao.sp.gov.br/bolsamestrado.

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dados muito significativos e densos, mas também muito difíceis de analisarem. Conforme Pádua, 1996, “quando se quer aprender a dinâmica de um processo, a abordagem qualitativa é a indicada” (p. 32).

Tivemos, também, acesso a dados estatísticos sobre o desenvolvimento do projeto na Diretoria de Ensino de Sumaré, referentes aos anos 2000 a 2006, tendo como base o número de alunos iniciantes, concluintes, transferidos, evadidos e quantidade de turmas, para análise.

Os questionários foram elaborados e aplicados nas capacitações, sendo que alguns critérios de análise e categorização de dados foram estabelecidos conforme a necessidade.

A formação do professor: preparo ou despreparo?

O conhecimento faz-se prático a partir da experiência, da vivência,

da renovação, a cada trabalho, a cada dia, somando-se teorias a práticas anteriores. Então, a formação inicial dos professores não deve se limitar a “ensinar” truques para reprodução em sala de aula. Não deve ser apenas a de formar um profissional mecanizado, mas, sim, fornecer subsídios para se adquirir autonomia e capacidade de progredir no conhecimento teórico e nas relações sociais e psicológicas que ocorrem no ambiente escolar.

O professor, atualmente, não tem segurança a respeito do que deve saber, do que deve ensinar e de como deve ensinar, causando um ‘mal estar docente’. O seu trabalho está sujeito durante todo o tempo às críticas. Ele deve adaptar-se ao novo cenário que traz mudanças para a educação e exige novas posturas do professor na sua prática, mas para o qual nem sempre ele está preparado.

O treinamento ou credenciamento dos professores, o envio dos livros didáticos, a criação dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), os ciclos, a progressão continuada, correção de fluxo e as avaliações externas fazem parte das políticas educacionais voltadas para metodologias à procura de ensino específico e suas formas estritas, exatas, de ensinar seguindo os parâmetros curriculares.

Nos últimos anos, o avanço tecnológico impõe-se de tal forma que obriga a escola a uma constante renovação e faz com que os professores busquem e ‘aceitem’ mudanças, muitas vezes impostas por instâncias superiores, causando assim o ‘mal estar docente’,

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provocando por vezes negatividade e passividade diante de projetos e métodos que devem ser desenvolvidos.

Atribuem-se cada vez mais responsabilidades ao professor. Manter a disciplina em sala de aula é uma delas. É facilitadora da aprendizagem e sua ausência, na maioria das vezes, deve-se a problemas sociais e emocionais. O professor precisa analisar situações para preparar sua aula de acordo com um conteúdo que possa atingir a todos. Muitas vezes, ele se torna um professor oralizante, aquele que explica o texto oralmente, com vícios orais, faz resumos na lousa. O aluno não lê textos originais, em contrapartida, nas avaliações (internas e externas) cobra-se a linguagem culta.

Borges (2000, p 54) afirma que a profissão de professor, num mundo em que “tudo o que é sólido desmancha no ar”, traz como necessidade urgente a reflexão sobre a Formação Inicial versus Formação Continuada, implicando uma redefinição de papéis entre Escola versus Universidade, revisando cursos de Formação de Professores nos quais sejam discutidos os atuais problemas da escola pública e o compromisso da busca de soluções para tais problemas.

Novas formas de ensinar e aprender

Muito se tem discutido a respeito das novas formas de ensinar e

novas formas de aprender. O desafio é constante. A escola deve buscar uma aprendizagem realmente significativa e assumir um novo papel, reduzir o isolacionismo, repensar a fragmentação do conhecimento, resgatando a sua função social.

Dominar e transmitir conteúdos prontos é pouco, no contexto atual. Espera-se um professor ousado, que produza propostas de trabalho objetivando criar condições para que seu aluno desenvolva conceitos incorporando-os no dia a dia, formule e construa hipóteses, tenha a habilidade da resolução de problemas, questione como fazer e tome posições diante de situações novas. Deve, ainda, o professor, instigar a reflexão e oportunizar estímulo para seu aluno enfrentar desafios e lutar por ideais, incentivar o respeito, a cooperação, a solidariedade, deve desenvolver a razão e a sensibilidade. Para tanto, há necessidade de mudança de atitude interna, valorizando a experiência do aluno, incentivando-o a conhecer, a relacionar fatos, a servir-se de conhecimentos já adquiridos e estruturados como estímulo à busca de

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novos conhecimentos e sua ressignificação. É preciso que a escola se torne um espaço democrático para que haja uma efetiva mudança de comportamento e de cultura.

Nos anos 1990, intensificam-se os processos de inclusão, ainda que substancialmente apenas em nível formal. O lugar do aluno é na escola. O que fazer com ele, de que forma ensinar, como trabalhar o ensino de massa?

O aumento da demanda de alunos, advindo da migração e de propostas de que lugar de criança é na escola - uma escola despreparada que somente abriga crianças e não as motivam a estudarem - trouxe a necessidade de estudo e análise dessa demanda, das necessidades da escola, dos professores, da pedagogia e dos métodos aplicados. Dessa forma, as Universidades também tiveram que rever seus conteúdos e métodos clássicos aplicados até então, para também atenderem à demanda da Escola para Todos.

Projetos foram criados e adaptados como medidas para diminuir altos índices de evasão e reprovação, uma vez que a escola necessitava de inovação e modernização que atendesse a demanda, visando à oportunidade de acesso e permanência do aluno na escola. Faz-se necessário, portanto, a elevação da qualidade e da participação dos professores. Então, na década de 1990, “explode” o discurso sobre a qualidade de ensino.

Diversas iniciativas instauram-se a fim de enfrentar a situação e, dentre elas, instaura-se como um dos desafios a efetivação da Progressão Continuada, que propõe a realização de atividades de reforço e recuperação contínua, reclassificação, aceleração dos estudos, acompanhamento escola-família, entre outras propostas.

Programas de correção de fluxo, classes de aceleração, classes de reforço entre outros, são lançados como forma de trabalhar a exclusão; essa, porém, é internalizada uma vez que o aluno permanece na instituição escolar mesmo sem aprendizagem, e, a partir da realidade da baixa aprendizagem, acontecem as propostas da Progressão Continuada e da Recuperação de Ciclo.

O regime de progressão continuada exige um novo tratamento para o processo de avaliação na escola, transformando-o num instrumento-guia essencial para a observação da progressão do aluno. Ele sinalizará as heterogeneidades do desenvolvimento de habilidades e

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conhecimentos entre os alunos, orientando-os e aos seus professores quanto ao perfil de sua progressão pelos anos escolares. 3

Surge, então, um material pedagógico diferenciado, uma ajuda diferenciada para lidar com diferentes alunos. A idéia teórica consiste na reorganização das escolas juntando séries, retirando-se o poder de retenção da avaliação e introduzindo-se inovações pedagógicas como forma de compensar os efeitos das diferenças socioeconômicas. É sobre as características desse programa que passamos a discorrer agora.

Classe de Aceleração – Correção de Fluxo

Introduzimos aqui informações com relação ao projeto de correção

de fluxo no que diz respeito ao segundo ciclo do Ensino Fundamental. Assegurar o acesso, a permanência e a aprendizagem dos alunos,

através da inclusão, é uma das metas da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, visando à melhoria de qualidade de ensino.

Excluem-se da escola os que não conseguem aprender, excluem-se do mercado de trabalho os que não têm capacidade técnica porque antes não aprenderam a ler, escrever e contar e excluem-se, finalmente, do exercício da cidadania esses mesmos cidadãos, porque não conhecem os valores morais e políticos que fundam a vida de uma sociedade livre, democrática e participativa. (Vicente Barreto, citado no CENPEC, 2000, Impulso Inicial, p. 9)

No Brasil, ainda não se consegue manter na escola todos os que a

ela têm acesso, uma vez que a mesma, na maioria das vezes, não oferece nem mantém ensino de boa qualidade. A reprovação afasta nosso jovem do conhecimento e é uma das causas da evasão. No século XXI, ainda há um grande número de cidadãos que sequer consegue preencher uma ficha de recrutamento no departamento de pessoal de uma empresa. Se possuímos diariamente meios de informações sofisticados, como aceitar o fato da existência de um cidadão sem o domínio do código escrito da língua materna?

3 http://www.ceesp.sp.gov.br/Indicações/in_22_97.htm. Acesso em 26/02/2007.

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A retenção é uma forma de penalizar, reforça o fracasso da escola, gera novas reprovações e causa baixa estima no aluno, fazendo com que o mesmo se julgue responsável pela não-aprendizagem. O estereótipo de que o aluno reprovado por evasão ou não aprendizagem não avança mais no conhecimento é um desafio a ser enfrentado. Conforme Hashimoto (2001):

Não considerar o rótulo que já veio com a criança é fundamental para o trabalho prosseguir. Desistir da criança, colocá-la num quadro de incapacidade e inabilidade é reforçar a idéia de que a escola só serve para a minoria que se adapta a seus modelos. Para que sociedade essa escola está formando crianças? (p.104).

Surge, então, importante questionamento: o que e como ensinar,

uma vez que, com a maneira tradicional, não se conseguiu atingir o objetivo. É preciso, porém, confiar no fato de que esses alunos são capazes de aprender. “O professor criativo descobrirá, ao detalhar seu plano, como corporificar essas orientações nas atividades cotidianas, sejam elas de debates, estudos do meio, exposições ou discussões”. (CASTANHO, 2000, p.99)

A partir do sucesso com o material do Ciclo I, Ensinar pra valer! Aprender pra valer! – ciclo I, a Secretaria de Estado da Educação do Paraná desenvolveu o Projeto de Correção de Fluxo com os alunos multirrepetentes da 5ª a 8ª séries, obtendo bons resultados. A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo adotou o mesmo projeto desenvolvido no Estado do Paraná (a seleção de conteúdos adotada tem inclusive, como referência central, o currículo básico para a escola pública do Estado do Paraná), e passou a aplicá-lo em São Paulo, em algumas escolas como projeto-piloto.

A metodologia do projeto de correção de fluxo, cujo material intitula-se Ensinar e Aprender: corrigindo fluxo - ciclo II, oferece alternativas de trabalho propiciando a intervenção do professor para que o aluno adquira condições de aprendizagem e possa assim prosseguir seus estudos.

Trata-se de um projeto diferenciado de trabalho, estruturado numa proposta pedagógica que pretende resgatar a confiança dos alunos na capacidade de aprender, tendo por objetivos atender aqueles que apresentam problemas com defasagem de conteúdo e idade, orientar os

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alunos a estabelecerem objetivos usando de clareza e objetividade, fazer cronogramas, planejamentos diários, semanais e mensais, usar concentração, ter organização e o hábito de exercitar sempre. Tem por base o método construtivista4, integrando as áreas do conhecimento por meio das atividades contextualizadas.

O programa de correção de fluxo escolar tem como metas comuns: a) permanência dos alunos na escola; b) aprendizagem dos alunos; c) formação da cidadania. Propõe um contrato pedagógico com alunos e pais de alunos em relação à frequência, ao envolvimento nas aulas e ao compromisso coletivo com a aprendizagem. Foi direcionado a atender crianças da rede pública com idades diferentes das que cursam a série regular, pois as que têm idade maior se sentem discriminadas e perdem o estímulo, a exemplo de jovens com 14 anos na 5ª série do Ensino Fundamental II, sendo que na trajetória normal deveriam ter de 11 a 12 anos. Alunos com defasagens de idade/série e/ou conteúdo, com mais de 12 anos na 5ª série, deverão cursar a 6ª, na classe de projeto. Estes não frequentarão a 7ª série regular sendo reclassificados com base na LDB 9394/96, artigo 23, para a 8ª série. Termina-se, então, o Ensino Fundamental Ciclo II em dois anos. Não é Suplência (Educação de Jovens e Adultos), é correção de fluxo5 visando a atender defasagens reais.

Deve o professor, para com essas turmas de alunos multirrepetentes, assumir o compromisso com a aprendizagem, estruturando

4 Construtivismo é uma das correntes teóricas empenhadas em explicar como a

inteligência humana se desenvolve partindo do princípio de que o desenvolvimento da inteligência é determinado pelas ações mútuas entre o indivíduo e o meio, mediante construções de estruturas mentais.

5 Medida política e estratégica utilizada para adequar a série à idade dos alunos no ensino fundamental. Tal política deve resultar, em determinado espaço de tempo, em um fluxo regularizado, com a maioria dos alunos matriculados nas séries correspondentes à sua idade, e em condições de aprenderem e serem aprovados para a série seguinte. O objetivo da correção é acabar com a distorção idade-série, considerado um dos maiores problemas enfrentados na educação pública brasileira. Um dos principais elementos aplicados no processo de correção do fluxo escolar é a aceleração de aprendizagem. Ela é uma estratégia pedagógica de solução emergencial e intensiva para os alunos defasados. http://www.educabrasil.com.br/eb/dic/ dicionario.asp?id=170. Acesso em 25/4/2007.

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uma proposta pedagógica significativa e relevante que recomponha, mediante aprendizagem bem-sucedida, o autoconceito positivo e a confiança desses alunos na escola, nos professores e na própria capacidade de aprender – condições básicas para a continuidade dos estudos com chances de sucesso. (CENPEC, 2000, Impulso Inicial, p.12)

O ambiente/espaço deve estimular a curiosidade em um processo

vivo, dinâmico e significativo. O projeto não propõe o trabalho de recuperação de conteúdos, mas, sim, o de priorizar determinados conteúdos relevantes.

As habilidades da leitura e escrita fazem parte do ensino/aprendizagem de todas as disciplinas, embora tradicionalmente a disciplina de Língua Portuguesa centralize o ensino, introduzindo o cidadão na sociedade letrada.

O projeto é sequencial, daí a importância da frequência diária do aluno. Material de apoio

A elaboração do material de apoio teve o objetivo de contribuir

com o trabalho do professor em sala no dia a dia, e, como explicitado,

tem se mostrado adequado, mas não é mágico. As atividades propostas não garantem automaticamente o sucesso dos alunos: a mediação dos professores é fundamental, detendo-se na análise das mesmas e na sua adequação à classe, planejando a distribuição do tempo, organizando os agrupamentos dos alunos de forma que uns ajudem os outros, fazendo as intervenções necessárias para que todos progridam. (CENPEC, 2000, Impulso Inicial, p.21)

Para buscarmos entender melhor a quem se destina o material,

esclarecemos aqui alguns tipos de classes que o utilizam: a) AC – Classe de Aceleração • 6ª série – ciclo II: alunos oriundos da 4ª série - ciclo I e que apresentam defasagens de idade/série/conteúdo;

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• 8ª série – ciclo II: alunos oriundos da 6ª série AC e que trabalham a continuidade do projeto. b) RC – Recuperação de Ciclo • Classes compostas por alunos retidos nas 8ªs séries – ciclo II, do ensino regular. Lembramos que a Progressão Continuada permite a retenção uma vez apenas, na 4ª série – ciclo I e na 8ª série - ciclo II, por defasagem de conteúdo e/ou frequência. O aluno que freqüenta a classe de RC não poderá ser retido novamente, a não ser por frequência. c) MU – Multisseriada (ou Mista) Classe composta por: • Alunos oriundos da 7ª série – ciclo II, regular, que apresentam defasagem de idade/série/conteúdo; • Alunos retidos na 8ª série – ciclo II, regular, por defasagem de conteúdo e/ou frequência; • Alunos oriundos da 6ª série AC– ciclo II.

A voz dos professores: nas capacitações...

Os professores em geral descrevem como resultados positivos, no

que diz respeito à aprendizagem, comprovando a importância do(a): • Resgate da auto-estima, de alguns alunos: motivação para alunos e professores; • Trabalho em grupo e atribuição de tarefas: geram integração e responsabilidades para alguns alunos; • Reflexão, antes e depois das atividades práticas: valoriza a presença e a participação do aluno, levando-o à organização e à motivação; • Estabelecimento de regras com a classe e a postura do professor: levam discentes e docentes à auto-motivação; • Importância da reunião com pais e efetiva participação desses: trazem resultados positivos de avanços na aprendizagem.

Os resultados positivos prevalecem em turmas de 6ª AC, classes

pequenas e professores dedicados – aqueles que realmente escolheram trabalhar com essas turmas.

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O sucesso da aplicação desse projeto depende, em grande parte, da equipe escolar. Quando o trabalho coletivo é desenvolvido com compromisso e afinco, geralmente, a aprendizagem de fato se dá. É preciso acabar com os preconceitos, tanto da equipe escolar, quanto dos próprios alunos e acreditar em algo que pode resultar positivamente, quebrar barreiras da exclusão e não permitir que algumas turmas de alunos e/ou do próprio grupo de professores direcionem um olhar negativo para um trabalho sério. A equipe escolar deve investir na auto-estima dos alunos e dos professores, dando apoio total e lembrar sempre que: o professor não tem autonomia para não ensinar.

Considerações finais

É preciso investir no educador, oferecer momentos de reflexão, dar

oportunidade para que o mesmo analise sua própria prática e a transforme a partir de um processo de conscientização. Isso implica valorização do profissional, e, principalmente, melhora da auto-estima, o que faz desse ‘ser’ uma pessoa mais feliz e capaz. A Formação Continuada faz-se necessária e seu desafio pedagógico é trabalhar questões regionais de ensino, trocas de conhecimento e experiências, tomadas de atitudes e soluções. Deve ser um auxílio à formação dos profissionais quanto às mudanças bruscas da realidade, visando a garantir melhor qualidade na formação de cidadãos participativos, críticos, criativos, capazes de conhecer a realidade e transformá-la nas suas relações pessoais, sociais, políticas e culturais.

É preciso ter consciência do que precisa ser mudado, pois mudar por mudar pode levar a fracassos. A Formação Continuada é um momento adequado para discussões e valorização do trabalho pedagógico. Deve ser valorizado o trabalho em equipe, a autonomia, a teoria, adequando-os à prática. As trocas de experiências e aprendizagens mútuas podem levar o professor a ministrar aulas menos simplistas e insignificantes. Aulas significativas podem fazer a diferença para a maioria dos alunos contribuindo para uma participação mais efetiva da escola, e, segundo Wanderlei Geraldi, professor da Faculdade de Educação da Unicamp: “a aula deve ser um acontecimento”.

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Contamos, nesta pesquisa, com o acompanhamento das capacitações de professores que atuam no projeto Ensinar e Aprender – corrigindo fluxo – ciclo II, destinado aos alunos de ciclo II – 5ª a 8ª série – da rede pública que apresentam defasagem idade/série/conteúdo e necessitam de um trabalho diferenciado que recupere a aprendizagem básica e adequada à faixa etária. Tem por objetivo que o aluno adquira habilidades e possa frequentar as séries seguintes, do Ensino Médio, com igualdade de condições de aprendizagem.

A proposta pedagógica visa a resgatar o autoconceito positivo e a confiança dos alunos na capacidade de aprendizagem, através de uma nova abordagem da prática docente e de um ambiente escolar desafiador. A metodologia variada tenta integrar as diversas áreas do conhecimento com atividades diferenciadas significativas e contextualizadas. O material oferece alternativas de atuação e intervenção objetivando condições de o aluno atingir nível de aprendizagem, desenvolvimento e autonomia correspondente às necessidades e à faixa etária: aprender fazendo.

O professor das turmas de Ensino Regular, muitas vezes, não consegue atender às dificuldades individuais dos seus alunos, uma vez que trabalha com a homogeneidade. Muitos tiveram uma formação tradicional. Pudemos apreender que esse projeto torna-se original (diferente) na medida em que tenta fugir ao senso-comum, já que é direcionado a alunos que não conseguiram atingir os objetivos da leitura e escrita com competência leitora, no ensino tradicional. O material do projeto propõe trabalhar com a heterogeneidade, a inclusão das diferenças, sendo o aluno convidado a participar de maneira mais atraente. No caso das narrativas, proposta trabalhada na 6ª série, o contador de histórias trabalha com sua família e traz ‘causos’ diferentes, engraçados e experienciados (mesmo que sejam somente na ficção, eles são narrados de maneira a usar a verossimilhança) experienciando, assim, a narrativa oral partindo para a escrita.

Após análise dos questionários, respondidos pelos professores, das observações em capacitações e visitas em algumas escolas, apontamos como aspectos positivos do programa:

• Metodologia – maior interesse e estímulo aos alunos, aulas dinâmicas, interesse pelas disciplinas;

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• Desenvolvimento da expressão oral e corporal; • Alunos com defasagens idade/série/conteúdo são reclassificados diminuindo o tempo da escola e contribuindo para que estudem com colegas de idades afins.

Ainda, dentre os obstáculos apontados - como determinantes da

baixa qualidade da aprendizagem desses alunos, foram ressaltados como preponderantes, pelos professores:

• A indisciplina geral; • A frequência insatisfatória dos alunos; • A resistência por parte de alguns alunos e professores quanto à Metodologia; • A não participação de muitos pais; • A falta de material de apoio ao projeto nas escolas como: aparelho de som, materiais de papelaria e outros. Esta pesquisa não nos causou nenhuma estranheza mediante nossa

prática e experiência na vida escolar. O retrato da escola pública continua desgastado e, apesar das tentativas de inovações, a escola está ‘sem sabor’ tanto para profissionais e funcionários da educação quanto para alunos e comunidade. Os projetos não são discutidos com a comunidade, os alunos e os professores, não há envolvimento da maioria, gerando, assim, o isolamento do docente atuante, sendo este o maior questionamento dos professores, nas capacitações. Professores pedem ajuda e sugerem que deveriam fazer parte do projeto, com devidas capacitações, dicas de como trabalhar a autoestima do aluno.

“Nós trabalhamos sozinhos na escola, com este projeto” é a fala de uma professora no momento da segunda capacitação, referindo-se ao descaso do grupo de educadores e da direção da própria escola. “A direção, na maioria das vezes, está ausente”, voz de uma professora, durante a capacitação. Outra ainda fala da dificuldade de trabalhar sozinha. Quando a equipe é comprometida, o trabalho tem efeito positivo. A maioria dos alunos que participa do projeto é constituída por aqueles que apresentam problemas indisciplinares, como alguns alunos que desafiaram a justiça e têm liberdade assistida sendo devolvidos à escola e obrigados a frequentar a sala de aula. A

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indisciplina também é, na maioria das vezes, causada pela ausência do saber, do conhecimento, isto é, o aluno não tem habilidade de leitura e escrita e usa a indisciplina como forma de proteção para que não percebam que o problema real é a ignorância do conhecimento.

As discussões, nas capacitações, em muitos momentos, giraram em torno de problemas comportamentais. Muitos alunos com defasagem de idade estão nessas classes/turmas por causa da indisciplina de anos anteriores, e sofreram uma retenção no final do ciclo II. Salas superlotadas para este tipo de trabalho. Poucos alunos participam, têm vergonha de falar, questionar, posicionar-se quando se trata de aprendizagem.

Muitos professores observam a necessidade de a escola pública contratar especialistas da área da psicologia para trabalhar tanto os alunos quanto os professores que estão desorientados frente ao problema social. Nas turmas mais disciplinadas, nas quais a defasagem diz respeito ao conteúdo, os professores avaliam o projeto de forma positiva, pois percebem que muitos alunos progridem na produção escrita. Há avanço na escrita dos textos e, isso ocorre, principalmente, a partir do segundo semestre, pois os que ‘nada querem’ desistem já no primeiro semestre.

Algumas de nossas observações nos permitem inferir que o projeto EA é visto como negativo por muitos dos próprios professores nas escolas; geralmente, as turmas são discriminadas por alunos de classes regulares, pelo fato de os alunos das classes de aceleração serem oriundos de uma aprendizagem desigual, ampliando a diferença, gerando preconceitos e baixa estima e, consequentemente, a exclusão social dos mesmos. Apesar da Metodologia democrática, das aulas dinâmicas e diferenciadas, o projeto é discriminatório. Muitos alunos se sentem discriminados e querem frequentar uma sala de aula normal, regular, com livros didáticos iguais aos dos alunos das mesmas séries. Eles temem a desigualdade. Por vezes, essas salas ocupam o espaço físico distante das outras salas regulares. As atividades são diferenciadas e os alunos de classes regulares conhecem essas turmas como “classe de projeto”.

A escola não transforma, não revoluciona a sociedade, mas se ela conseguir cumprir com os deveres básicos da leitura e da escrita estará contribuindo, em grande parte, com a sua função social.

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A teoria do projeto EA encanta. A proposta de trabalho sugere pequenos projetos com temas diversos além de contemplar os gêneros textuais. Podemos afirmar que o projeto é paradoxal na medida em que oferece um trabalho diferenciado. Professores recém-formados apresentam menor resistência quanto às inovações e acreditam que essa metodologia será o trabalho do futuro, mas é preciso ter estrutura física, humana e psicológica, que caminhem lado a lado. Ao professor não são dadas informações nem respaldos suficientes.

Questionamos se o projeto já cumpriu o seu objetivo inicial, que era contornar o problema da defasagem idade/série/conteúdo. Conseguiu? Talvez em parte, mas ainda temos defasagens idade/série/conteúdo nas escolas paulistas, em grande número.

No Estado do Paraná, o projeto EA teve suas atividades concluídas em 2002, uma vez já cumprido o seu objetivo: o de sanar as dificuldades.

Em São Paulo, especificamente na Diretoria de Ensino – Região de Sumaré, o projeto deixou de ser aplicado em 2007. Porém, em 2009, após a Nova Proposta da Secretaria da Educação de São Paulo, o Projeto voltou às escolas, nas salas de reforço do Ensino Fundamental e Médio, em Português e Matemática. Nada fora reformulado, apenas a capa.

Iniciamos este trabalho enfatizando, na introdução, a ideia de que a criatividade na escrita se dá com as associações e as combinações de conhecimentos possuídos que trarão novas abordagens, mas que também exige bom senso e experiência de leitura, portanto, o conhecimento de mundo e o repertório são essenciais para o desenvolvimento dessa habilidade: o da escrita criativa.

Existe a ideia de que a criatividade na escrita é importante e pode ser trabalhada na escola. E por que não a partir de textos paradoxais? Fugir ao senso comum leva à criatividade tanto o autor quanto o leitor. Mas a maneira como os professores fazem o trabalho se dá de forma empírica, baseados apenas na experiência e não no estudo, e impressionista, por não terem tido oportunidade de contato e orientações mais específicas sobre as técnicas criativas. É possível melhorar a escrita de textos dos alunos e neste trabalho citamos apenas uma prática interessante – o exercício do paradoxo – que muitos desconhecem, ou se conhecem, não o é de maneira aprofundada.

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É possível melhorar a criatividade nos textos dos alunos, mas para isso é necessário que, além das informações, do repertório adquirido na escola e fora dela, o aluno tenha ambiente propício, material adequado e, os professores possam ter acesso – na sua formação ou extensão – a procedimentos que visem a facilitar a tarefa de desenvolver a criatividade nos alunos.

De qualquer forma, registramos que o desenvolvimento da qualidade de ensino na escola pública implica muitos fatores intra e extraescolares. O fato de a experiência relatada ter sido encerrada merece muita reflexão e análise. Há uma importante problemática social envolvida no processo analisado.

No presente trabalho, delimitamos o objeto de estudo a uma pequena parte da problemática envolvida no projeto “Ensinar e Aprender – corrigindo fluxos”. Esperamos que novas pesquisas deem continuidade à presente investigação, desvendando novos meandros da experiência relatada. Referências ANTUNES, Celso. A criatividade na sala de aula, fascículo 14, 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

BORGES, Abel S. A formação continuada dos professores da rede de ensino público do Estado de São Paulo. In MARIN, Alda Junqueira (org). Educação Continuada: Reflexões, alternativas. Campinas, SP: Papirus, 2000. p. 39-61

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.174p.

CASTANHO, Maria Eugênia L.M. A Criatividade na Sala de Aula Universitária. In VEIGA, Ilma Passos Alencastro e CASTANHO, Maria Eugênia L.M. (orgs). Pedagogia Universitária: A aula em foco. Campinas, SP: Papirus, 2000. p. 75-89.

CENPEC, Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. Ensinar e Aprender: construindo uma proposta. Impulso Inicial, v. 1, 2 e 3, São Paulo: CENPEC; Curitiba: SEED/PR, 2000.

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HASHIMOTO, Cecília Iacoponi. Dificuldades de Aprendizagem: concepções que permeiam a prática de professores e orientadores. ALMEIDA, Laurinda Ramalho e PLACCO, Vera M. N. de Souza. In O Coordenador pedagógico e o espaço da mudança. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2001.

KOCH, Ingedore G.V. Introdução à lingüística textual: trajetória e grandes temas. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

PÁDUA, Elisabete M. M. de. Metodologia da Pesquisa: abordagem teórico-prática. Campinas, SP: Papirus, 1996.

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LETRAS – PUC-Campinas – vol. 28 (2) - 2009 – p.55-64

O DISCURSO DA AUTORIDADE RESSOANDO NO DIZER DOS ALUNOS-PROFESSORES DE LÍNGUA

The discourse of authority resounding through the speech of

undergraduate language teachers

Eliane Righi de ANDRADE1

RESUMO: Este artigo pretende discutir algumas representações do discurso de autoridade que emergem no dizer de alunos-professores de línguas, tentando relacioná-las a alguns discursos hegemônicos vigentes na educação atual. Esses discursos constituem a subjetividade dos professores em formação e influenciarão, portanto, seu modo de ensinar e aprender.

PALAVRAS-CHAVE: discurso científico; autoridade; alunos-professores de

língua; subjetividade ABSTRACT: This article intends to discuss some representations of the discourse

of authority which emerge from the speech of undergraduate language teacher, trying to relate them to some scientific discourses which are hegemonic nowadays in the educational environment. These discourses constitute the teachers’ subjectivity and, therefore, will influence their way of teaching and learning.

KEYWORDS: scientific discourse; authority; undergraduate language teachers;

subjectivity Introdução

Ao lidar com as formas de subjetivação, ou seja, os modos como um

indivíduo se constitui sujeito e os discursos que o permeiam, percebemos que há, em um determinado momento histórico-social, a predominância de certos discursos sobre esses modos de ser do sujeito no mundo. O discurso das ciências tem desempenhado um desses papéis marcantes na atual constituição psíquica do sujeito, pois ele se coloca como um discurso 1 Doutora pela UNICAMP em Linguística Aplicada e membro do grupo de pesquisa Vozes

(in)fames, desenvolvido na mesma universidade.

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de autoridade, legitimando, em geral, um modo de pensar a vida, a educação e, em nosso caso específico como professores de línguas, o próprio ensino-aprendizagem dessas línguas.

Nosso objetivo, nesse trabalho, é refletir sobre como esses discursos outros atuam na formação do professor, trazendo um exemplo de representação do discurso da autoridade que identificamos no dizer de um professor em formação, o qual constitui sua subjetividade e, portanto, permeará suas práticas pedagógicas em sala de aula.

Dessa forma, podemos abrir espaço para a discussão de questões que também fazem parte do processo educativo, pois circulam no imaginário dos professores em formação, afetando seu modo de se ver no mundo social e ensinar.

O discurso científico como um discurso de autoridade

A influência do discurso científico sobre as subjetividades aparece, a

partir da modernidade, com o desenvolvimento das ciências, em contraposição a um enfraquecimento do discurso religioso e do poder soberano. Segundo Lebrun (2004), numa abordagem psicanalítica, o discurso da ciência tende a uma constituição binária, que remete, sobretudo, ao registro do imaginário (relação dual entre o “eu” e o “espelho”), uma vez que procura eliminar o terceiro elemento das relações (a lei2, o Outro), elemento este que é responsável pela emergência do sujeito, à medida que o insere no registro do simbólico.

Com a tentativa de “anulação” do simbólico, instaura-se a ideia de que não há limites para o que as ciências podem fazer, com o auxílio das técnicas. E se, por um lado, há a valorização do tecnológico, há, por outro, a desconsideração do papel constitutivo da linguagem no sujeito, já que a tendência é reduzir a língua(gem) a um papel instrumental, estabelecendo uma relação de univocidade, com a correspondência entre objeto real e signo. Isso implica uma visão de língua “objetiva”, “livre” da equivocidade que lhe é constitutiva.

2 A lei, aqui, representa o ingresso do sujeito na ordem do simbólico via linguagem,

cultura (elementos que nomeamos de Outro pelo viés teórico da psicanálise), o que significa que ele passa a ser interditado, castrado, pois é impossível se dizer por completo, em qualquer língua, encontrando-se sempre em falta.

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Se pensarmos na consequência desse processo para a constituição dos discursos, os enunciados se apresentariam como independentes de sua enunciação: a fala se firmaria por seu caráter de exterioridade e repetibilidade, na busca por uma total consistência lógica; e, por essa consistência, autorizaria a si mesma. Na tentativa, pois, de se apagar a enunciação, engessa-se a língua em seus sentidos coletivos, sem a possibilidade da emergência do sujeito em sua singularidade, mas de formas de subjetivação que reproduzem o igual, que homogeneízam o sujeito.

Portanto, no que diz respeito à constituição das subjetividades, nesse contexto marcado pela autoridade do discurso científico, as referências simbólicas se encontram embaralhadas, produzindo o efeito de “atolamento no imaginário”, segundo Lebrun (op. cit., 114), e, como consequência desse atolamento, a supervalorização das imagens e o apagamento da necessidade do sujeito de se inserir no simbólico, pois estaria descompromissado com o laço que o ataria a ele.

Considerando a influência do discurso científico sobre o contexto educacional atual3, particularmente o brasileiro, podemos apontar que há a predominância de determinadas formações discursivas, notadamente provenientes das ciências psi4, que vão orientar a construção de políticas e objetivos para a educação, a execução de certas práticas concernentes ao ensino-aprendizagem (inclusive de línguas) e, ainda, determinar o aparato tecnológico a ser utilizado para alcançar os objetivos propostos.

A “autoridade”, de certa forma, é delegada ao discurso dos experts que “falam” pelas ciências (embora a enunciação, nesse caso, seja desprezada na constituição dos sujeitos, relevando, à condição principal da formação das subjetividades, os próprios enunciados constitutivos dos discursos). Os especialistas assumem, na instituição Escola, o papel de produtores, gerenciadores e fiscalizadores das políticas almejadas no âmbito pedagógico e administrativo, enquanto cabe aos professores o papel de implantador dessas medidas, junto aos alunos. 3 A característica de um discurso científico predominante na educação não acontece

somente no sistema educativo brasileiro. Walkerdine (1998), por exemplo, levanta essa mesma questão no sistema educacional inglês.

4 Consideramos, neste estudo, as ciências psi aquelas derivadas diretamente da psicologia e da psicanálise, cujos desenvolvimentos teóricos foram introduzidos em outras áreas de estudo, principalmente da educação: psicolinguística, psicopedagogia, psicologia da educação, didática etc.

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Silva (1998) comenta que há a centralidade ou hegemonia de um determinado tipo de discurso pedagógico (o construtivista), baseado nas ciências psi. Esse discurso apresentado como libertário, autônomo e emancipatório, ou seja, que se propõe transformador, está em plena sintonia com o modo de governar atual (o neoliberalismo), o qual evoca certos modos de comportamentos (o consumismo exarcebado, por exemplo) e, portanto, certas subjetividades.

O discurso científico trabalharia, assim, com a homogeneização das subjetividades, ratificada por um certo discurso democrático5 prêt-à-porter, o qual se funda no princípio de igualdade, mas que se volta, na prática, para a “mesmidade” - entendida como uniformização - e para a anulação das diferenças. Essa simplificação contribui, muitas vezes, para a extinção do que poderíamos chamar “lugar de exceção”.

Ao trazer os fundamentos do modelo democrático para a educação, Dufour (2005, p.143) aponta que a simetria entre aluno e professor que se impõe nesse modelo funciona como uma forma violenta de dominação social, pois tende a um “totalitarismo”, já que onde não há autoridade ou onde essa não responde a seu papel no processo de “transmissão geracional”, existe um risco muito grande das novas gerações, por não serem inseridas no mundo pela autoridade, sujeitarem-se a regimes totalitaristas. Anna Arendt (2007 [1954]6) expressa sua preocupação nesse sentido, discutindo as implicações para o campo da educação:

O sintoma mais significativo da crise, a indicar sua profundeza e seriedade, é ter ela se espalhado em áreas pré-políticas tais como a criação dos filhos e a educação, onde a autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita como uma necessidade natural, requerida obviamente tanto por necessidades naturais, o desamparo da criança, como por necessidade política, a continuidade de uma civilização estabelecida que somente pode ser garantida se os que são recém-chegados por nascimento forem guiados através de um

5 A democracia como um mecanismo de governar pode ser atrelada ao conceito de

governamentalidade desenvolvido por Foucault (2003, p.303), o qual apresenta três ideias básicas que caracterizam qualquer forma de governo: o conjunto de procedimentos, análises e táticas institucionais para controlar a população; o desenvolvimento de um conjunto de saberes a partir de tais procedimentos; e, finalmente, a formação de um Estado dito administrativo, que se utiliza do sistema interno e externo de técnicas e táticas de governo, para governar a si e sua população.

6 A data entre colchetes refere-se à primeira edição da obra.

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mundo preestabelecido no qual nasceram como estrangeiros. (ARENDT, 2007, p.128)

No artigo do qual faz parte tal citação, a autora sugere, ainda, a

relação possível entre coerção (fruto dos regimes totalitários) e igualdade (nos regimes ditos democráticos), quando, em ambos os casos, o terceiro elemento (a autoridade, representada pelo simbólico) enfraquece ou, mesmo, desaparece. Trata-se, pois, da “negação geracional”, processo descrito por Dufour (2005) como a caracterização do processo de dessimbolização que se instaura no sujeito pós-moderno, o que se relaciona à visão do discurso autoritário das ciências, discutido brevemente pelo viés psicanalítico de Lebrun (2004).

No ideário da escola para todos, estaria embutido, numa visão reducionista, o discurso dos mesmos conteúdos para todos, dos mesmos interesses, das mesmas necessidades e, consequentemente, da generalização de um “modelo” de educação, e essas representações viriam a constituir o imaginário do sujeito-professor em formação.

Propomo-nos, a seguir, a compartilhar alguns resultados de análise sobre um recorte discursivo, selecionado de um corpus maior constituído de entrevistas realizadas com alunos-professores de um curso de Letras-Licenciatura inglês/português7, a fim de discutirmos como a “autoridade” se representa e se apresenta no discurso desses futuros professores, gerando um modo de educar e ensinar permeado por essas vozes outras (interdiscurso) que também o constituem como sujeito.

As representações de autoridade do professor em formação

No recorte, a seguir, em que o aluno-professor (P) relata sua

experiência como professor eventual de língua inglesa, numa escola pública, temos um exemplo de como esse professor cria uma ilusória representação de que o conhecimento é algo totalizante, passível de ser conquistado como um todo, o que parece se relacionar à sua forma de conceber a autoridade:

7 O recorte faz parte do corpus analisado na tese de Doutorado (2008), intitulada “Entre o

desejo e a necessidade de aprender línguas”, de minha autoria, defendida no IEL-UNICAMP.

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P: eu acho que a gente não quer um monte de múmia dentro da sala de aula/ mas um limite.../ não tem mais limite!// E aí eu fico.../ eu fico olhando se o professor tem que fazer.../ você tem que fazer psicologia/ mas é no primeiro ano da faculdade?/ Por quê/ como faz?/ O que eu tô fazendo?/ Tô lendo um monte de livro de apoio/ um monte de livro que o Marcos8 me indicou/ eu tô lendo... sobre didática/ sobre psicologia/ peguei um sobre terapia educacional.../ Eu tô lendo/ porque eu vou... eu vou... entrar numa sala de aula/ matar o pouco que eles conseguem me dizer que eles têm/ Não posso fazer isso (...)

Observamos que o dizer desse aluno-professor remonta a um modelo

de ensinar e aprender a ser seguido e repetido, o qual atribui a seu professor Marcos. Esse representa o discurso da autoridade, do especialista, que não é colocado em questão, pois o entrevistado lhe imputa, em seu dizer, uma posição de poder-saber. Por outro lado, P cobra, em seu fazer pedagógico e em sua conduta de professor, a responsabilidade pelo respeito ao conhecimento do aluno, marca forte do discurso construtivista sobre as teorias de ensino-aprendizagem, embasadas nas ciências psi. A culpa por um “não-fazer” corretamente e a impotência diante dos alunos gera uma incerteza permanente, fruto de um conflito interno, deflagrado nos seguintes dizeres de P: por quê/ como faz?/ O que eu tô fazendo? Esse mal-estar revela o desamparo constitutivo do sujeito, que se vê sempre em falta e necessita de algo que preencha essa sensação de impotência. Daí a busca incessante por “leituras-mercadorias” na tentativa de cobrir essa falta, satisfazer a angústia permanente do sujeito faltante – aquele que se encontra sempre em falta.

Refletindo mais profundamente sobre a autoridade a partir desse recorte, até que ponto é possível e necessário exercer a autoridade no processo educativo e não confundi-la com o autoritarismo? Até que ponto o aluno-professor questiona a lei (a ordem do simbólico), essa autoridade na qual estamos todos imersos, mas se submete à sua existência para um melhor convívio social, inclusive em sala de aula?

Percebemos, por sua narrativa, que P vive, em sua breve prática como professor, um conflito entre exercer a “autoridade” (que é posta, muitas vezes, nas visões modernizadoras de ensino, como uma violência ao aprendiz) e a igualdade, entendida como um processo em que haveria a 8 Nome fictício de um dos professores do curso.

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ilusória simetria aluno-professor. P se divide entre a necessidade do “limite” por parte do aluno (não tem mais limite), desejando estabelecer uma relação de autoridade e respeito, e o medo do autoritarismo (a gente não quer um monte de múmia dentro da sala de aula). Há, portanto, em sua constituição subjetiva, o conflito entre o discurso dito tradicional e o moderno-liberal, representado, entre outras vertentes teóricas, pela posição construtivista na pedagogia. Seria possível, então, exercer a autoridade sem autoritarismo?

Segundo Arendt (2007, p.129), a autoridade se instaura por uma ordem hierárquica, “cujo direito e legitimidade ambos [os elementos da relação] reconhecem e na qual ambos têm seu lugar estável predeterminado”. Assim, ela não se baseia em uma ordem de igualdade - na qual o ensino democrático moderno parece, por vezes, se valer –, pois a autoridade é incompatível com a persuasão. Por outro lado, se há o uso da força a autoridade também fracassou.

O aluno-professor expõe, ainda, nesse recorte, o desejo de “possuir” um conhecimento que é “reservado” aos especialistas – a didática, a psicologia, a terapia educacional – por meio do qual acredita, ilusoriamente, ser possível controlar os alunos (restaurar sua autoridade) e resgatar seu interesse (o pouco que eles conseguem me dizer que eles têm), como se o processo educativo e a aprendizagem fossem processos controláveis e conscientes, cujas “variáveis” pudessem ser mensuráveis e previsíveis (como num experimento científico). Dessa forma, recai sobre o professor (ou aluno) a eventual “culpa” pelo “fracasso” (o professor que não ensinou direito, não estudou o suficiente sobre aquele assunto, não buscou formas agradáveis de ensinar, não motivou o aluno etc.).

Nessas relações de poder-saber que se estabelecem em forma de agenciamentos, os alunos resistem, não aceitando as regras impostas (não tem mais limite) e negando a autoridade do professor. Portanto, paradoxalmente, são essas próprias relações que criam espaços para a resistência. O professor também resiste a esse agenciamento (Não posso fazer isso), o que revela que ambos são achacados, de formas diferentes, pelo discurso pedagógico moderno que vincula e reforça o desaparecimento da autoridade (reforça a simetria entre os sujeitos envolvidos) e a ideia do aluno assumir sua aprendizagem, fazendo suas próprias escolhas (o que remete, ainda, à ideia de uma certa autonomia, difundida pelo discurso neoliberal), aprendizagem essa livre de traumas (que poderiam estar relacionados a “atitudes autoritárias” do professor).

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Ao enfatizar, ainda, que o indivíduo deve suprir suas “próprias” necessidades e desejos, delineia-se uma economia psíquica marcadamente narcisista (BIRMAN, 2005).

Embora os mecanismos de controle do poder e do saber estejam disseminados por todas as instâncias da vida humana, há sempre fissuras em seu funcionamento, o que revela, além de sua falibilidade, a impossibilidade de sua plenitude. Talvez, quando P diz que o professor mata o pouco que eles têm, ele se refira, de alguma forma, àquele algo que permitiria aos alunos serem diferentes, mas que o discurso (pseudo-científico) da escola, paradoxalmente, homogeneíza, tornando “as mentes e os corpos dóceis” e, assim, mais facilmente controláveis para administrar. Dessa forma, o que o professor “mata” é a possibilidade de “espaços” para se singularizar e para que o aluno também o faça, dentro da própria ordem simbólica, atuando, consequentemente, como reprodutor do discurso atual da liberdade (autonomia) e da igualdade no aprender e no ensinar, que se restringe ao campo do imaginário (já que essa igualdade é impossível!).

Considerando, ainda, o recorte em análise, é possível relacionar os dizeres de P com os estudos de Foucault (2002[1971]), em A ordem do discurso. Isso porque percebemos que a aluna-professora esforça-se, na busca por conhecimentos específicos, a pertencer a uma “ordem de discurso”, sujeitando-se a ela, sem a qual não pode assumir um “lugar” no discurso da educação, lugar no qual possa falar e ser ouvida. Esse lugar de poder é representado, em seu imaginário, como já discutimos, pelo discurso dos especialistas, pedagogos e do próprio professor citado, que, pela orientação sugerida nas leituras, parece, também, de alguma forma, filiado a um discurso pedagógico embasado nas ciências psi, que P reproduz em seu dizer. Nele, a atenção volta-se ao “como” ensinar (nesse caso, não há referência sequer à própria língua a ser ensinada, no caso, a língua inglesa), comentário que remete, novamente, a um reducionismo na educação e no papel do professor, negando a ele o trabalho da transmissão geracional, entendida aqui como a introdução das gerações mais jovens no mundo simbólico (DUFOUR, 2005, p.138-9).

Considerações finais

A partir da discussão sobre o modo com o discurso da autoridade

aparece no dizer de professores em formação, percebemos que há um

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conflito desse sujeito em relação à sua conduta como educador em sala de aula. Se, por um lado, o professor em formação tem sido bombardeado pelos discursos pedagógicos em que o aluno é o centro do processo educativo, falta, por outro, o reconhecimento da sociedade de que é necessário ao aluno ser instituído, antes, no mundo social através de referências simbólicas, sem as quais ele não terá condições de se fazer sujeito e realizar seu processo de singularização. Nesse caso, as relações educativas são um modo de construir esses laços sociais.

Assim, o aluno-professor aparece em uma relação de conflito identitário, pois sua subjetividade se configura entre esses dois extremos: entre o papel de autoridade do mestre e o da autonomia do aluno. Isso aparece no trecho destacado do recorte: porque eu vou... eu vou... entrar numa sala de aula/ matar o pouco que eles conseguem me dizer que eles têm/ Não posso fazer isso.

Para P, exercer a autoridade de professor parece se confundir com o uso do autoritarismo, daí a palavra “matar” ser bastante significativa nesse trecho. Essa violência, de cunho simbólico, aparece aí sugerida. Mas tal violência, diferentemente do que é apresentado na superfície de seu dizer, parece recair sobre o próprio professor, que, a cada dia, morre em sua função simbólica. Ao dizer que não posso fazer isso, P também questiona a injunção social que lhe impinge uma conduta. Nesse caso, o aluno, ainda que de maneira modesta, pode ter voz (eles conseguem dizer algo), coisa que ele, futuro professor, não parece conseguir fazer. Um grande sentimento de não poder falhar o persegue (ele é agenciado para sentir essa “impotência” e culpa), mas o sujeito não se dá conta de que o desamparo é constitutivo; por isso, procura tamponar a sensação de “estar em falta”, com as leituras (sobre) e receitas de ensino, as quais oferecem, imaginariamente, sempre respostas ao “como fazer”, pois o discurso pedagógico não admite, jamais, essa falta e impossibilidade.

O dilema de P, na educação, entretanto, não é particular. Reflete os modos de subjetivação do contexto (pós)moderno em que o profissional está inserido e no qual se constitui, ou seja, os inúmeros discursos em que seu dizer é produzido. Assim, o discurso da igualdade pode, muitas vezes, gerar um apagamento das diferenças que acontecem na situação real de sala de aula.

Precisamos, portanto, como professores, confrontarmo-nos com o frustrante, com o imprevisível – que, por sua natureza, não tem como ser descrito, só experienciado – e com a diferença, por diversos olhares e

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perspectivas. Diferença que é invocada, muitas vezes, como “monstruosidade” (ELLSWORTH, 2001, p. 72) por certos discursos pedagógicos generalizantes, os quais tiveram como suporte, entre outros discursos cientificistas, o discurso econômico neoliberal. Tais discursos podem, portanto, velar e camuflar a diferença constitutiva do sujeito professor e do aluno e promover a homogeneização das subjetividades.

Referências

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LETRAS – PUC-Campinas – vol. 28 (2) - 2009 – p.65-80

AGENCIAMENTO NEOLIBERAL NA CONSTITUIÇÃO DAS SUBJETIVIDADES: O PROFESSOR EXEMPLAR

Neoliberalism agency on the subjectivity constitution: The exemplary

teacher

Terezinha Rivera TRIFANOVAS1

RESUMO: Empreende-se a análise discursiva dos e-mails trocados entre coordenadores e professores com o objetivo de problematizar as implicações advindas do discurso de gestão de ensino de qualidade na constituição do sujeito da pós-modernidade ou modernidade tardia, refletindo sobre as práticas discursivas que normatizam as tecnologias do eu.

PALAVRAS-CHAVE: tecnologias do eu; agenciamento; gestão de ensino de

qualidade. ABSTRACT: From a discursive perspective we undertake an analysis of the e-

mails exchanged between coordinators and teachers in order to discuss the implications originated from the managerial discourse of quality teaching on the subject’s constitution of post-modernity or late modernity, pondering about discursive practices which regulate technologies of the self.

KEYWORDS: technologies of the self; agency, quality teaching management.

Embora se verifique grande movimentação ao redor do segmento de ensino a distância, é importante considerar não só os esforços em direção ao desenvolvimento de programas, cursos, softwares ou propostas legislativas para o ensino mediado por multimídias, mas também a necessidade de problematizar as implicações advindas desses avanços tecnológicos na constituição do sujeito da pós-modernidade ou modernidade tardia, refletindo sobre como as práticas discursivas normatizam as tecnologias do eu. Apresentamos, neste estudo, uma 1 Este artigo é parte da dissertação de mestrado defendida pela autora no Instituto de

Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) sob orientação da Profa. Dra. Maria José Rodrigues Faria Coracini.

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análise discursiva e documental dos e-mails trocados pelos coordenadores e professores de um curso semi-presencial oferecido por uma empresa multinacional a seus funcionários. Pressupondo que o discurso pedagógico está totalmente permeado pelo discurso empresarial, de bases neoliberais, que considera a fórmula “gestão de qualidade” a resposta para o ensino de qualidade e concentrando na função sujeito do professor inserido nesse contexto de gestão de ensino e aprendizagem de inglês, fazemos a hipótese de que o agenciamento neoliberal advindo da gestão de qualidade tem consequências na constituição das subjetividades em que pese a construção do professor exemplar. A fim de levarmos a cabo esta proposta, faz-se necessária uma apresentação concisa acerca das teorias de discurso, sujeito e linguagem.

Discurso, sujeito e linguagem

O final dos anos 60 até a metade dos anos 80 foi um período marcado

por grande efervescência cultural na Europa, ocasionada, dentre outros motivos, pelas releituras, por parte de inúmeros estudiosos, das teorias de Marx, Freud, Saussure e Nietzsche. Tais releituras incidiram, particularmente, nos estudos dos fenômenos da linguagem e da teoria do sujeito (linguistic turn), caracterizando uma crítica às propostas da fenomenologia (GREGOLIN, 2004:28) e propiciando o desenvolvimento do arcabouço pós-estruturalista que embasaram o nascimento da teoria de Análise de Discurso que problematiza os efeitos de sentidos na relação entre sujeitos. Dessa forma, a Análise de Discurso se edifica sobre dois importantes pilares ao criticar tanto a ilusão da transparência da linguagem e primado do sentido, quanto a ilusão do sujeito logocêntrico, cartesiano, consciente do seu dizer. Assim, a Análise de Discurso é concebida como um dispositivo que coloca em relação o campo da língua e o campo da sociedade pela história (GADET, 1969 [1990, p.8])2.

Alguns conceitos norteadores da Análise de Discurso dizem respeito à análise da configuração discursiva, introduzindo noções de polissemia e de efeitos de sentido. Etimologicamente, a palavra discurso tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr para diversas partes, de pôr em movimento, de tomar várias direções. O discurso é assim palavra em

2 A primeira data refere-se à data da publicação original e a segunda, à data da edição

consultada.

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movimento, prática de linguagem. Com o estudo do discurso observa-se o homem falando (ORLANDI, 2001, p.15). Entende-se, pois, o discurso a partir do funcionamento dos efeitos de sentido entre locutores e outros discursos (interdiscurso) e da configuração das condições de produção; todos esses elementos contribuem para se pensar a equivocidade e a opacidade constitutiva da linguagem.

Diante do fato de o discurso ser interpenetrado por outros discursos é que se pode considerar a heterogeneidade discursiva constitutiva (AUTHIER-REVUZ, 1998), ou interdiscurso, como inerentemente dialógica. A heterogeneidade discursiva consiste de fragmentos de múltiplos discursos com aparições esporádicas em determinados pontos de emergência; é também a manifestação da memória discursiva, ou seja, inúmeras vozes anteriores e exteriores se entrelaçam numa rede de sentidos quase apagando suas origens. Se o interdiscurso é esse entrelaçamento de discursos disseminados e que aparecem explícita ou implicitamente na superfície discursiva (heterogeneidade discursiva mostrada, AUTHIER-REVUZ, op. cit.), o intradiscurso é a materialidade linguística, é o fio discursivo que se materializa, constituindo o próprio texto.

Nas teorias de discurso, é essencial observar as condições de produção do discurso, isto é, toda a circunstancialidade sociopolítico-histórica ao redor do ato enunciativo. Essa contextualização está consideravelmente atrelada às formações discursivas propostas por Foucault (1969 [2005, p.130]), entendidas como sendo o discurso em formação, sempre em mobilidade, instável, mapeando em um dado momento histórico-social as possibilidades de expressão. Coracini (2007, p.9) afirma que essa rede conforma e é conformada por valores, crenças, ideologias, culturas que permitem aos sujeitos ver o mundo de uma determinada maneira e não de outra, que lhes permitem ser, ao mesmo tempo, semelhantes e diferentes.

Muitos estudiosos contribuíram para as teorias de discurso, dentre eles Pêcheux e Foucault cujas reflexões apresentamos brevemente. Pêcheux é considerado, no Brasil, como um teórico exponencial para a Análise de Discurso que se debruçou intensamente em seu objetivo de fornecer às ciências sociais um instrumento científico para a análise das estruturas linguísticas, embora considerando que toda ciência é, antes de tudo, a ciência da ideologia com a qual rompe. Logo, o objeto de uma ciência não é um objeto empírico, mas uma construção (HENRY, 1969 [1990, p.16]). Pêcheux, inicialmente, interessou-se, sob o codinome Thomas Herbert, em estudar a psicologia social adentrando nos estudos

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psicanalíticos; porém, mais tarde, decidiu abandonar essas concepções e concentrar seus esforços no empreendimento de uma metodologia para a Análise Automática do Discurso (AAD).

Pêcheux, durante seu investimento em conceber um sistema para a AAD, está convicto de que as ciências sociais estão ligadas ao político. Considera a ideologia como um processo com “dupla-face” o qual se caracteriza por processo de produção das relações sociais, em que a ideologia funciona como processo e o discurso, como instrumento (PÊCHEUX, apud Henry, 1969[1990, p.24])3. Nesse contexto, a concepção de linguagem não pode ser apenas a de instrumento de comunicação ou informação, mas de coerção, em que é apagado o processo que colocou o sujeito em seu lugar, isto é, em sua posição sujeito. A partir disso, Pêcheux desenvolve o conceito de formação ideológica como sendo a formulação ou materialização da ideologia advinda do movimento, do embate político entre classes sociais inserido em um determinado momento histórico e lugar geográfico.

Pêcheux traz, também, em sua teoria a noção dos dois esquecimentos: descentramento do sujeito e incompletude e equivocidade da língua. O primeiro diz respeito à ilusão de que o sujeito precede o discurso e que ele está na origem do sentido e é dono de seu dizer; com isso, esquece as sequências discursivas a que está submetido, pois as estruturas-funcionamentos da ideologia e do inconsciente operam a fim de ocultar suas próprias existências. Na verdade, o sujeito é sempre-já-sujeito por ser constituído no e pelo discurso e por ser interpelado pela ideologia. O segundo refere-se à ilusão da transparência do sentido, pois o sujeito acredita que seu dizer tem apenas um significado: aquele que ele quer imprimir, como falante, e que todos os seus interlocutores serão capazes de captar, literal e claramente, sua intenção de fala e, por extensão, sua mensagem.

Se Pêcheux se voltou marcadamente para conceber as linhas mestras da AAD, embasada pela ideologia de luta de classes, Foucault sempre esteve preocupado com a constituição, a distribuição e a legitimação de discursos detentores da(s) verdade(s) de uma determinada área de conhecimento e seus prolongamentos nas relações de poder-saber. Em seu

3 Conforme texto escrito, em 1968, sob o pseudônimo Thomas Herbert intitulado

“Remarques pour une théorie Générale des Idéologies” (p. 74, 92), publicado nos “Cahiers pour L’analyse 9” revista do “Cercle d’Epistemologie de l’Ecole Supérieure” de Paris (cf. Henry, 1969 [1990, p.13]).

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empreendimento intelectual, Foucault manteve sempre, sob seu olhar, a linguagem e o sujeito que foi levado a se observar, se analisar, se decifrar e se reconhecer como campo de saber possível, sempre por meio de práticas discursivas, tais como a confissão religiosa ou jurídica ou a terapia psicológica.

Paralelamente à prática discursiva da confissão está o dispositivo do exame. Confissão e exame engendram as tecnologias do eu que constroem regimes de verdades intrinsecamente ligados ao conceito de governabilidade que se dá por meio de práticas institucionalizadas que têm o estatuto de prescrever, moldar e guiar o sujeito, colaborando também para a constituição do sujeito pelas relações de poder-saber. Dessa forma, quanto à constituição dos sujeitos, a governabilidade está intimamente ligada ao auto-governo (FOUCAULT, 1984 [2004, p.286]), isto é, à construção da relação da pessoa consigo mesma que, igualmente à confissão, incita o sujeito a produzir discursos sobre si mesmo. Contudo, a prática da confissão não ocorre só no cristianismo ou na psicologia, mas também na prática pedagógica (LARROSA, 1994 [2000, p.54]).

Se, em Pêcheux, discurso é concebido como instrumento da prática política, em Foucault, discurso é visto como a materialização das práticas discursivas definidas como um conjunto de regras anônimas históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística as condições de exercício da função enunciativa. (FOUCAULT, 1969 [2005, p.133]). Dessa forma, em ambos os intelectuais, discurso não é pensado como unidade, mas como funcionamento.

Podemos, neste ponto, afirmar que Pêcheux se concentra nas materialidades discursivas para empreender seu projeto de desenvolvimento de uma teoria e uma sistematização de um método analítico de discurso, a fim de observar como a ideologia se configura na luta de classes. Já Foucault se preocupa com a descrição detalhada das práticas discursivas em inúmeras instituições da vida social – familiar, escolar, religiosa, médica, jurídica, empresarial, industrial, militar –, que funcionam como uma espécie de grande forma social do poder, a partir da obediência estrita às regras estabelecidas. Foucault (1984 [2004, p.224]) explicita que o poder não é a disciplina; uma disciplina é um procedimento possível do poder.

Vale, aqui, uma ressalva: a noção de práticas discursivas independe, para Foucault, da classificação em verbais ou não-verbais. Na verdade, não é importante classificá-las, mas identificá-las. Concordamos com

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Ramos do Ó (2001, p.19), quando aponta que há que entender os fenômenos a partir do conjunto das “práticas”, quer dizer, em todo o tipo de relações que vão estabelecendo uma “maneira de fazer” orientada para objetivos comuns e regulada por uma reflexão contínua sobre os resultados obtidos. Essa “maneira de fazer” pode ser manifestada linguisticamente ou não, ou seja, a padronização de rotinas de supervisão e controle pode ser expressa tanto por dispositivos verbais (regulamentos gerais, diagnósticos, receituários, sinalização de segurança, contratos legais, confissão religiosa ou penal, terapia psicanalítica, execução de hinos etc.), quanto por procedimentos espaciais físicos repetitivos, isentos de discursivização (fila de entrada ou saída, marcação de relógio de ponto, toque de recolher, marcha, saudação gestual etc.).

Em consequência desse edifício teórico dos estudos de discurso, as noções de língua e linguagem – à parte das definições dicionarizadas –, inevitavelmente, ganham novas reflexões e questionamentos, fazendo emergir a complexidade, ou a dificuldade, de defini-las, ou mesmo, de delineá-las efetivamente em suas diferenças. Para as questões que abordaremos neste estudo, consideramos de pouca relevância a dicotomia entre língua e linguagem. Metaforicamente, poderíamos visualizar língua e linguagem como dois fios que se ligam na forma de um nó – língua(gem) – sendo esse nó o próprio discurso que, por sua vez, se liga a outros discursos, (outros “nós”) constituindo, assim, a rede interdiscursiva. Em termos gerais, a Análise de Discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. (ORLANDI, 2001, p.15). Por essa razão, podemos afirmar que o sujeito se constitui pela linguagem. Dispositivo analítico

Coadunando com tais teorias do discurso em que o sujeito é

constituído pela linguagem, e propondo um deslocamento sobre como se dá a constituição das subjetividades, no sentido que Foucault dá ao termo, apresentamos a seguir a análise da materialidade linguística dos recortes discursivos (RD), a fim de possibilitar a constatação de nossa hipótese, qual seja, de que o agenciamento neoliberal advindo da gestão de qualidade tem consequências na constituição das subjetividades em que

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pese a construção do professor exemplar. Nessa direção, observaremos, por exemplo, a exaltação do desempenho de um professor (P3) que, ao longo de nossas análises, parece ser eleito o professor exemplar. Em contrapartida, veremos outro professor (P5), cuja atuação carece de preparo para atuar de forma similar ao professor modelo. Há ainda a comparação entre dois bons professores (P3 e P6), visando à criação de um perfil modelar a ser seguido por outros professores a fim de assegurar o sucesso da performance profissional, resultando na homogeneização das subjetividades para um ideal de professor.

RD 01 - Gente, Olha que joia como P3 já está utilizando o needs analysis em sala e building goals with her students!! Super important!! Muitíssimo importante também como ela teve iniciativa e já comunicou os alunos dela sobre o Satisfatômetro, de uma maneira tranquila e natural! (P3), super congratulations pela iniciativa e pela maneira que você está direcionando suas turmas!! gde beijo (coordenação da unidade).

Destacamos três recursos linguísticos, utilizados em RD 01: a inflexão

exclamativa, a intensificação e a adjetivação. A inflexão exclamativa – marcada, na oralidade, pela entonação e pelo volume da voz, e, na escrita, pelo ponto de exclamação duplicado (students!!, important!!, natural!, turmas!!) –, via de regra, serve para expressar o estado de espírito do enunciador no ato da enunciação, delineando, por isso, a inflexão da voz. O segundo recurso é o uso dos superlativos absolutos (Super important!! Muitíssimo importante, super congratulations), indicadores de excesso ou grau superlativo. O último recurso é a utilização de palavras axiológicas (joia, maneira tranquila e natural!) que apontam para sedução por modelagem. Todos esses recursos produzem efeitos de sentido de grande entusiasmo por parte da coordenação perante a particularidade das atitudes de P3, que desenvolve técnicas complementares para obter, supostamente, a satisfação do aluno no curso.

Ademais, a escolha lexical do advérbio de tempo “já”, que indica precocidade de uma ação executada antes do tempo previsto (já está utilizando, já comunicou), indica uma postura de pró-atividade4 4 Pró-atividade, em um contexto como esse, significa fazer, antecipadamente, o que é

esperado ou exigido pela empresa; é ter iniciativa para cumprir as regras e os modelos de ensino sugeridos pela metodologia adotada pela escola.

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profissional, que, ao ser reiterada pela coordenação (ela teve iniciativa, super congratulations pela iniciativa), ganha status de excelência e excepcionalidade. Possivelmente, todas essas marcas que sugerem euforia do enunciador se relacionem com o fato de que o perfil pró-ativo de P3 colabora não só para arregimentar os outros professores a seguirem as mesmas práticas, como também pode trazer mérito para a coordenação que conseguiu capacitar, ou mesmo, forma(ta)r um professor a seguir os moldes do curso com sucesso. Indica, também, que a obediência aos procedimentos é benéfica tanto para o professor quanto para o aluno. Assim, o professor ganha reconhecimento por sua competência em conseguir que o aluno siga as instruções fornecidas.

Há, também, a referência a alguns instrumentos (needs analysis, building goals, satisfatômetro) de que os professores devem lançar mão em prol da boa condução do curso, em particular a alusão ao “satisfatômetro” (um vocábulo inventado para descrever um mecanismo de medição de satisfação do aluno-cliente) que engendra efeitos de sentido sobre o formato de ensino do curso que estaria intimamente ligado às estratégias empresariais de manutenção do cliente, à competitividade e aos índices de qualidade.

Resta, ainda, indagar acerca do motivo pelo qual a coordenação prefere mesclar, em uma mesma mensagem aos professores de inglês, enunciados em português e em inglês. Aventuramo-nos a pensar que o enunciador acredita que, dessa forma, sua mensagem se apresenta mais dinâmica e interativa, pois pode lançar mão de expressões de efeito tanto em um idioma como em outro, a exemplo de (Gente, Olha que joia) em português e (building goals with her students!!) em inglês. Por outro lado, essa mescla de dois idiomas, também denominada code-switching, parece apontar para o desejo de se apresentar como um falante bilíngue tão imerso entre línguas que não percebe a mescla que faz de duas línguas. Tal naturalidade bilíngue poderia despontar na oralidade, mas, mais dificilmente, na modalidade escrita. No entanto, baseadas no fato de conhecermos o enunciador de RD 01, podemos afirmar que, em situações presenciais, o mesmo não ocorre. Notamos que o mesmo enunciador prefere a língua portuguesa, mesmo quando preside reuniões de professores de inglês, ocasião essa mais propícia para a prática de code-switching ou para o uso exclusivo do inglês. Todavia, essa “dança” entre línguas, no envio de mensagens escritas, favorece o efeito de exercício de poder-saber.

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No próximo recorte, verificamos como P3 continua a ser considerado um profissional de destaque, cujas ideias merecem ser repassadas para a matriz da escola e, consequentemente, para todas as outras unidades.

RD 02 - Olá (coordenação da matriz), P3 estava pilotando um schedule a parte (ver em anexo) para auxiliar o prof. também a se monitorar com phone calls, feedbacks e etc, mas passaremos a utilizar o encaminhado sem problemas.Vc já teria este schedule padrão para cada nível pronto? Gostaria de prepará-los já para Jan 07. Muito obrigada!. PS: vc me copia nos proxs emails que forem só para professores pls? Desta forma te ajudo localmente por aqui. (coordenação da unidade)

Destacamos a locução verbal cujo verbo principal “pilotar” – relativo

à ação daquele que dirige, guia, orienta algo com experiência profissional – indica reiteração da pró-atividade de P3 já delineada em RD 01. A partir disso, P3 ganha autoridade para desenvolver ideias e práticas experimentais para novos métodos ou processos com o propósito de impulsionar, nos outros professores, a prática de monitoramento, em primeira instância, de si mesmos, para, a seguir, proporcionar o agenciamento da conduta dos seus alunos.

Ademais, a escolha do verbo “monitorar” – sinônimo de vigiar, verificar, acompanhar, rastrear, medir, analisar, visando a determinado fim – faz despontar efeitos de sentido de aumento de controle por meio de implementação burocrática que, no caso de RD 02, é um novo schedule5 mais adequado para a escrituração do cumprimento das inúmeras práticas exigidas pelo curso. Contribuindo para esse monitoramento bilateral, nota-se o uso do verbo “auxiliar” que parece indicar uma modalização como tentativa de apagar as consequências que a implantação de um novo formulário mais minucioso acarretará ao professor, ou seja, ele terá aumento de trabalho ao registrar detalhadamente o cumprimento ou o descumprimento das atividades previstas para o curso.

Se considerarmos, em RD 02, o uso da conjunção coordenativa adversativa “mas” (mas passaremos a utilizar o encaminhado sem problemas.) –, normalmente, responsável por ligar duas orações por contraste de proposições, podemos inferir que, se, por um lado, P3 tenta 5 Schedule, neste caso, refere-se ao formulário que informa a distribuição dos conteúdos a

serem cumpridos ao longo de um período de 100 horas.

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contribuir trazendo ideias administrativas que entusiasmam a coordenação da unidade, por outro, parece que a sugestão do novo formulário foi rejeitada pela coordenação da matriz. Tal rejeição pode ser entendida como uma maneira que a matriz encontrou para frear a tentativa da unidade de valer-se de sugestões administrativas como forma de assegurar a visibilidade de sua postura empreendedora voltada para gestão de qualidade. Em outras palavras, entrevemos o movimento das relações de poder entre ambas as coordenações pedagógicas.

Ao informar que a recusa à adoção do novo formulário, sugerido por P3, ocorre “sem problemas”, o enunciador cria efeitos de sentido que realçam sua provável postura empreendedora capaz de compreender um veto. Contudo, ao lançar outro pedido de natureza administrativa, quanto ao envio de cópia de mensagem (PS: vc me copia nos proxs emails que forem só para professores pls?), como uma contra-resposta, parece desejar que sua mensagem seja finalizada por equivalência de forças (entre ambas as coordenações), isto é, se declarou compreensão ao veto, em compensação, fez um pedido o que, em cômputo geral, parece nivelar a autoridade de ambas.

Porém, se assim age, não é sem o cuidado de elaborar enunciados modalizadores centrados na força que o emprego do verbo “ajudar” (Desta forma te ajudo localmente por aqui.) é capaz de produzir no imaginário do interlocutor que poderá relacioná-lo com os princípios do trabalho em equipe. Assim, o enunciador poderá se sobressair no jogo das relações de poder, delineado no jogo enunciativo em RD 02. Ademais, o repasse de e-mails para mais uma instância de coordenação reflete mais um mecanismo de controle da conduta de todos (coordenações e professores), isto é, mais pessoas tendo acesso e controlando a correspondência alheia.

Se até esse ponto de nossas análises encontramos um professor que se destaca em relação aos outros, sendo considerado um modelo por sua iniciativa de criar e sugerir procedimentos complementares, a seguir, deparamo-nos com outro professor que parece necessitar de orientação da coordenação para desempenhar suas incumbências.

RD 03 - P5 conforme conversamos a semana passada, gostaria que você preparasse super bem a aula de sexta-feira e ficasse mais em cima dos dois6, sugerindo atividades e COBRANDO a phone-

6 Refere-se à dupla de alunos integrantes de uma das classes que P5 ministra no curso.

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class (que é anexada com a writing task). Sempre faça um link para a aula seguinte. Vou conversar novamente com ele mais tarde. Se vc precisar de ajuda para preparar a aula pls me avise. (coordenação da unidade).

Observa-se o emprego do futuro do pretérito simples do verbo

“gostar” – forma polida de presente que, comumente, remete a um desejo do interlocutor –, mas que, em RD 03, desponta como modalização introdutória, utilizada pela coordenação (gostaria), para envolver P5 e favorecer o acatamento das ordens a serem apresentadas, logo a seguir, pelos verbos “preparar” e “ficar”, que aparecem no modo subjuntivo. Essa estratégia discursiva se vale de uma das características do modo subjuntivo (gostaria que você preparasse, ficasse mais em cima dos dois…), isto é, indica as modalidades de vontade do interlocutor em matizes que vão do comando ao desejo; trata-se, portanto, de um mecanismo que ameniza a imposição de uma ordem, colaborando para sua obediência e cumprimento.

Em RD 03, a via do comando, possivelmente, consubstancia-se pelo emprego do próximo verbo, “cobrar”, que, escrito em letras maiúsculas (COBRANDO), aponta para uma prática desaconselhável de envio de e-mails considerada pouco ou nada polida, pois indica aumento do volume da “voz” do enunciador. Ademais, as formas reduzidas em gerúndio dos verbos “cobrar” e “sugerir” nas orações subordinadas adverbiais (sugerindo atividades e COBRANDO a phone-class…) sugerem que tais procedimentos têm aspecto durativo, ou seja, de ação prolongada e continuada, criando efeitos de sentido de que o professor não deve descuidar-se de sua responsabilidade de monitorar o agenciamento dos alunos constantemente.

É ainda interessante elucidar a gradação utilizada pelo enunciador em sua estratégia argumentativa iniciada pela modalização polida contida na forma do verbo “gostaria”; associada ao modo subjuntivo dos verbos “preparar” e “ficar” (preparasse, ficasse); redirecionada, bruscamente, para a impropriedade da caixa alta no verbo “cobrar”, e finalizada pelo imperativo afirmativo de ordem, expresso pelo verbo “fazer”, acompanhado pelo advérbio de tempo “sempre”. Assim, o enunciador transita da polidez e da vontade de convencer à rispidez como forma de garantir que uma ordem seja acatada. Nota-se, com isso, a postura rigorosa do enunciador que, após determinar a P5 o que deve ser feito,

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declara que também conversará com o aluno, a fim de assegurar o cumprimento dos procedimentos.

Como vimos até o momento, há toda uma preocupação em engajar o professor em lançar mão de dispositivos, quer por meio de curso de capacitação dos professores, quer por meio de sugestão de estratégias que o habilitem para a cobrança sobre os alunos que tanto o agenciam como a seus alunos. Contudo, os dois próximos recortes mostram um outro dispositivo de ordem empresarial, denominado “pesquisa de satisfação” que permite que o aluno avalie o curso e o professor.

RD 04 - Prezado aluno, Para cada vez mais melhorarmos nossos serviços, favor avaliar seu curso até o momento: 1. Qual a sua opinião sobre as aulas presenciais e a dinâmica do professor? 2. Qual a sua opinião sobre as phone-classe", o feedback e as atividades de writing subsequentes? 3. Você já deu início a (sic) apresentação de seu project? Gostaria de comentar a respeito? 4. O curso atende as suas necessidades? Por quê? 5. O que podemos fazer para auxiliá-lo ainda mais no desenvolvimento da língua? Se preferir dar seu feedback por telefone, não hesite em contatar-nos pelo (número de telefone). Um abraço, (coordenação da unidade)

Por meio de cinco perguntas abertas que, aparentemente, objetivam o

recebimento da opinião dos alunos quanto ao curso como um todo, notamos uma possível intenção de inquirir apenas acerca das aulas telefônicas (e suas atividades subsequentes: e-mail de feedback e writing) e das aulas presenciais com foco na atuação do professor. Com isso, deixa-se de lado a possibilidade de o aluno avaliar também o uso do site de idiomas, a atuação da consultoria e da escola, remetendo à possibilidade de que essas outras partes do curso são inquestionáveis e imutáveis, sendo, por isso, a opinião do aluno sobre eles desnecessária. Assim, retira-se do aluno a avaliação desses aspectos, indicando que ao aluno não compete (ou não interessa) avaliar a estrutura organizacional do curso.

Todavia, parece que, com essa pesquisa, pretende-se destacar a existência de um canal de comunicação, ainda que limitado, entre a

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empresa e seus clientes, indicando que a escola de idiomas valoriza as opiniões dos alunos, interessando-se por suas reivindicações, sugestões e avaliações. Por outro lado, podemos também entrever, com o recurso da pesquisa de satisfação, uma maneira de verificar se as atividades importantes para a continuidade, a manutenção e o sucesso do curso são conduzidas pelos professores, conforme se observa na pergunta sobre a preparação de uma apresentação (Você já deu início a [sic] apresentação de seu project?). A partir do emprego do advérbio “já”, que remete à possibilidade de a referida apresentação estar em fase de desenvolvimento, incentiva-se o comentário, por parte do aluno, sobre a atividade, verificando-se, com isso, o cumprimento, ou não, de atividades pré-estabelecidas. A pesquisa de satisfação parece, então, ser mais um mecanismo de confirmação de execução de tarefas do que de satisfação dos alunos-clientes.

O incitamento à fala do aluno, interpelado por expressões interrogativas (Qual a sua opinião? Gostaria de comentar a respeito? O que podemos fazer para auxiliá-lo ainda mais?…), aponta para o aproveitamento de um mecanismo de ordem empresarial que, sutilmente, faz a publicidade da escola, se pensarmos que uma empresa-escola, que possui um canal de serviço de atendimento ao cliente (SAC), está voltada para o aperfeiçoamento de seus produtos, satisfação de seus clientes e dos índices de qualidade possíveis pelos diferenciais das aulas presenciais e telefônicas, da dinâmica e do feedback do professor, e da apresentação de um projeto oral.

Finalizando os excertos aqui trazidos como parte da análise do corpus, apresentamos nosso último recorte que versa sobre a reafirmação de ser P3 o professor exemplar dentre todos os outros professores das três escolas atuantes no curso. P3 juntamente com P6 consagram o padrão de qualidade da escola de idiomas.

RD 05 - Oi (diretoria pedagógica), excellent news! A Consultoria de Idiomas disse que fechamos o ano com chave de ouro! Elogiou MUITO as aulas de P3 e disse que reforçou com a diretoria que se eles tivessem que identificar uma aula modelo, P3 seria a escolhida. Brincou agora que o padrão de qualidade é o "P3" e que usará esta aula como benchmarking para as outras escolas. Elogiou muito a bagagem, o controle, a percepção, o know-how, a sensibilidade (e por aí vai..) dela. Excelente! Também elogiou MUITO a P6 e disse que ela é gracinha e quietinha mas (sic) que na aula ela é um "touro". Tem uma super bagagem e consegue manter o ritmo da

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aula o tempo todo. Diz que ela levou uma atividade fantástica de música utilizando o corpo humano e que se ela visse professores que fizessem metade do que ela fez, ela estaria muito feliz. Bom, terminou dizendo que fechamos com chave de ouro e outras cositas de procedimento. Turmas novas serão divididas em Fev e o início será em março. Ela disse para nos prepararmos pois (sic) acha que serão muitas turmas novas!! (coordenação da unidade).

Mais uma vez, notamos a quantidade de adjetivos e advérbios

superlativos (excellent news, chave de ouro! Elogiou MUITO, Excelente! super bagagem, atividade fantástica, muito feliz) que indicam entusiasmo frente ao perfil diferencial concedido a P3. Se, por um lado, P3 é descrito por elenco de qualidades (padrão de qualidade, muita bagagem, controle, percepção, know how, sensibilidade), que remetem à exaltação tanto de boa performance quanto de indubitável experiência, por outro lado, P6 é caracterizado por diferentes expressões (gracinha, quietinha, "touro”, super bagagem, mantém o ritmo), que tanto podem criar efeitos positivos quanto contraditórios, ou seja, ser um “touro” pode significar aspereza de modos e não, necessariamente, rigor ou competência profissional.

Ademais, o fato de P6 conseguir manter o ritmo da aula pressupõe um professor duro e exigente, que utiliza todos os momentos da aula com atividades e tarefas. Esse ritmo acelerado de aula pode ser considerado favorável pela consultoria, porém os alunos, que se dividem entre o trabalho e o estudo, podem vê-lo como um problema. Assim, aquilo que a coordenação reporta, da fala da examinadora da consultoria, acerca das aulas do professor, talvez não seja necessariamente a opinião dos alunos ou o que eles considerariam como favorável.

Através dessa forma de construir a comparação entre P3 e P6, delineia-se uma propensão para, efetivamente, eleger P3 como o professor exemplar que traz bons resultados para a escola, ou seja, um professor cujas práticas pré-determinadas pelo curso já foram internalizadas e naturalizadas, sendo capaz de produzir procedimentos complementares que se afirmam como dispositivos de agenciamento das subjetividades dos indivíduos.

É importante também observar, neste recorte, a recorrência do discurso indireto, caracterizado pela reportagem da fala do enunciador a terceiros (disse que fechamos o ano…, Elogiou MUITO as aulas…, disse que reforçou…, Brincou agora que o padrão…, Elogiou muito a bagagem…, Também elogiou MUITO a P6 e disse que ela é…, Diz que

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Agenciamento neoliberal na constituição das subjetividades: o professor exemplar

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ela levou uma atividade fantástica…, terminou dizendo que fechamos com…, Ela disse para nos prepararmos…), remetendo ao efeito de verdade, trazido pela voz do outro como argumentação por autoridade. Nesse caso, a examinadora da consultoria que, por sua posição de autoridade, confere maior fidedignidade ao dizer da coordenação da unidade que, ao repassar a boa nova à direção da unidade, registra também seu bom trabalho na forma(ta)ção dos professores sob sua supervisão.

Vimos, também, que P3 é destacado como o professor exemplar, cuja boa performance deve servir de modelo para os demais. A divulgação da conduta do bom professor é, especialmente, importante, pois colabora para o agenciamento dos outros professores que ainda não conseguiram se adaptar ao modelo de EaD do curso. Conclusão

Este estudo foi concebido e desenvolvido com o propósito de refletir

sobre a prática docente e discente, questionando discursos bastante cristalizados em nossa sociedade, que enunciam que a atividade pedagógica deve, inquestionavelmente, ser submissa à lógica do mercado. Problematizamos a disseminação dos interesses financeiros do agenciamento neoliberal que, aliado ao discurso pedagógico formata professores em gestores, alunos em clientes e educação em produto. Em uma sociedade de homens livres, há sempre a possibilidade de se abrir espaço para o questionamento, para o debate e para a discussão de temas contemporâneos que alertam sobre os malefícios da homogeneização das subjetividades e do agenciamento das tecnologias do eu oriundos de regimes de verdades. Referências AUTHIER-REVUZ, J. Palavras Incertas: As Não–Coincidências do Dizer. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998.

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Terezinha Rivera TRIFANOVAS

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LETRAS – PUC-Campinas – vol. 28 (2) - 2009 – p.81-103

REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA E NAÇÃO: O PORTUGUÊS COMO LÍNGUA NACIONAL NO BRASIL1

Reflections on language and nation:

the Portuguese as the national language in Brazil

Lilian BORBA2 RESUMO: O presente artigo apresenta reflexões sobre a constituição do

português como língua nacional do Brasil, partindo de discussões sobre a constituição das línguas nacionais na Itália, em Portugal, na Espanha e na França. O objeto de estudo são as culturas nacionais, uma das principais fontes de identidade cultural.

PALAVRAS-CHAVE: língua nacional; nacionalismos; identidade cultural. ABSTRACT: This article presents reflections on the constitution of the

Portuguese as the national language of Brazil, from debates about the formation of national languages in Italy, Portugal, Spain and France. The object of study are national cultures, one of the major sources of cultural identity.

KEYWORDS: national language; nationalism; cultural identity. Introdução

Nosso idioma, a língua portuguesa, como se sabe, não nasceu no

Brasil. Com origens no latim, o português foi implantado no continente sul-americano em decorrência da colonização portuguesa que oficialmente se inicia em 1500. Durante o período colonial – quando o Brasil ainda não era o Brasil – o português foi a língua usada na administração portuguesa da colônia e nos contatos com a metrópole; foi a língua do governo e da Justiça e, mais tarde, a língua da literatura. No entanto, ao se considerar as 1 Este artigo apresenta parte de discussões elaboradas em nossa tese de doutorado “Língua

e mestiçagem: uma leitura das reflexões linguísticas de Gilberto Freyre”, no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, com auxílio financeiro do CNPq.

2 Docente da Metrocamp e pesquisadora da UNICAMP/Cefiel.

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condições do povoamento do então futuro país, sabe-se que por um longo período que se inicia no Brasil-Colônia e prossegue até o tempo do Império, o país conviveu com os falares nativos e os falares africanos. (ILARI & BASSO, 2006, p. 62).

O ambiente linguístico do Brasil colonial foi marcado pelo multilinguismo generalizado, ou seja, diversas línguas e povos em contato falando línguas de bases indígenas paralelamente ao uso do português em contextos oficiais (documentos e órgãos públicos). Foi em 1757 que, por meio da Lei do Diretório, o Marquês de Pombal instituiu a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa no Brasil e expulsou os jesuítas – a Companhia das Índias – um dos alicerces do uso e da difusão das línguas gerais.

O presente artigo apresenta reflexões sobre a constituição do português como língua nacional do Brasil, partindo de discussões propostas por Ilari (2001) e Alkmim (2001) sobre a constituição das línguas nacionais na Itália, em Portugal, na Espanha e na França. O objeto de estudo são as culturas nacionais que, segundo Hall (2000, p. 48), são uma das principais fontes de identidade cultural. Conforme o autor, as identidades nacionais não são coisas com as quais nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação. Nós só sabemos o que significa ser 'inglês' devido ao modo como a englishness veio a ser representada como um conjunto de significados - pela cultura nacional inglesa. Assim, nação não é apenas unidade política, mas uma entidade que produz sentidos e, conforme acentua Hall (idem), um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãs legais de uma nação, elas participam da ideia da nação tal como representada em sua cultura nacional.

Baseados em Hall (op cit) e em suas discussões sobre identidade cultural, questionamos: que estratégias representacionais são acionadas para construir nosso senso comum sobre o idioma nacional ou sobre a identidade nacional linguística? Para responder a essa questão, há que se voltar ao mito fundador da nação brasileira: a nação que foi criada a partir do amálgama de três raças que juntas cooperaram para a fundação de um país mestiço. Guimarães (1999, p. 49) argumenta que a nação brasileira foi imaginada numa conformidade cultural em termos de religião, raça, etnicidade e língua. Nesse quadro, segundo o autor, há um racismo que é a negação absoluta das diferenças – inclusive das diferenças linguísticas – e que pressupõe uma avaliação negativa de toda diferença, implicando um

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ideal (implícito ou não) de homogeneidade – inclusive linguística. Ao se homogeneizar as diferenças, de certa forma, negam-se os conflitos.

1. Considerações sobre nações e nacionalismos

Benedict Anderson (1989, p. 14), em sua obra Nação e consciência

nacional, propõe uma definição que se tornou muito recorrente nos estudos relacionados à temática da nacionalidade: nação é uma comunidade política imaginada – e imaginada como implicitamente limitada e soberana. Esclarece que a nação é uma comunidade imaginada porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão.

Prosseguindo, Benedict (op cit) explica que a nação é imaginada também como limitada porque até mesmo a maior delas possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais encontram-se outras nações. Nenhuma nação se imagina coextensiva com a humanidade. Além dessas características, a nação é imaginada como soberana, porque o conceito nasce numa época em que o Iluminismo e a Revolução Francesa estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico, divinamente instituído. Finalmente, a nação é imaginada como comunidade porque a despeito das desigualdades e explorações existentes em todas elas, a nação é sempre concebida como um companheirismo profundo e horizontal.

O autor tenta estabelecer as raízes culturais do nacionalismo que, conforme assinala, podem ser buscadas na Europa ocidental no século XVIII período que marca o raiar da era do nacionalismo. Sublinha que a despeito dos Estados-nação serem reconhecidamente novos e históricos as nações a que eles dão expressão política fazem parte de um passado imemorial, e interessantemente, deslizam para um futuro ilimitado. Partindo dessas reflexões inicias, a próxima seção apresenta um breve painel sobre a constituição de algumas línguas nacionais do mundo românico, a saber: o italiano, o português, o espanhol e o francês.

2. Línguas nacionais no mundo românico europeu: o italiano, o

português, o espanhol e o francês Ilari (2001), ao tratar da constituição das línguas nacionais do mundo

românico, considera vago o conceito de língua nacional apesar do

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consenso em torno do status de idiomas como o português, o espanhol, o francês, o italiano e o romeno. Para o autor, questões relativas ao uso literário e a instrumentos políticos ou jurídicos estão no bojo do que se entende ou se considera língua nacional, mas por si só não são suficientes para caracterizá-la.

O autor discorda da associação pura e simples entre língua nacional e literatura. Reconhece que a origem desse equívoco pode estar ligada à ciência criada por filólogos que se declaram amantes das letras e que encontra certa confirmação na elevação do dialeto florentino à língua oficial da Itália – o que muitas vezes é explicado pela importância da obra de Dante, Boccaccio e Petrarca. O fato é que os dialetos não se elevam automaticamente à condição de língua nacional por terem produzido uma literatura de valor (p. 213-4). Considera, também, impróprio definir língua nacional com base apenas em condições políticas ou jurídicas, uma vez que, por exemplo, o italiano já era a língua nacional da Itália muito antes da unificação do Estado italiano.

Para o autor, as razões para se considerar um determinado idioma língua nacional dizem respeito às funções que o idioma desempenha na comunidade de fala. Ilari mostra, através de seus exemplos históricos, que uma língua nacional é um idioma que responde a todas as necessidades de uma sociedade (p. 215). E, naturalmente, essas necessidades mudam conforme a época, alterando-se fortemente os pesos relativos do discurso técnico, estético, religioso, legal. Na formação das línguas nacionais, o contato com as diversas esferas da atividade humana – ciência, filosofia, religião, imprensa, burocracia – reflete-se primeiramente na fixação de convenções ortográficas além da estabilidade sintática e do enriquecimento de vocabulário.

Os primeiros textos escritos em português surgem no século XIII, época em que não se distinguem o português e o galego falados na província (atualmente espanhola) da Galícia. Essa língua comum, o galego-português ou galaico-português, é a forma que tomou o latim no noroeste da Península Ibérica (TEYSSIER, 2001, p.3). Conforme informa Teyssier [1980 (2001)], a invasão muçulmana e a Reconquista são acontecimentos determinantes na formação do português (assim como do castelhano e do catalão)

No século VIII (ano 711), os muçulmanos iniciam a conquista da Península Ibérica. Esses mouros - conforme os ibéricos os chamaram – eram árabes e berberes da região do maghreb, sua religião era o Islã e sua

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língua de cultura era o árabe. Partindo do norte, as monarquias cristãs vão gradativamente expulsando os mouros para o sul e reavendo as terras da península. E é durante o período da Reconquista, no século XII, que nascerá o reino independente de Portugal. A autonomia política de condado é determinada pela proclamação de Afonso Henrique como rei, em 1139 ou 1140, conforme alguns autores. Realiza-se, dessa forma, a unidade política e territorial de Portugal entre os séculos XII (nascimento do reino independente) e XIII (reconquista do Algarve, em 1249).

Paralelamente a esse movimento de reconquista político-territorial, houve, no século XII, o florescimento da poesia lírica, escrita em uma língua próxima do galego e representada pelo gênero das cantigas, de inspiração provençal. A repercussão dessa poesia em língua galaico-portuguesa fez com que Afonso X de Castela – monarca e protetor das letras – conforme ensina Ilari (2001, p. 217) – escrevesse em português grande parte de sua produção lírica, conformando-se aparentemente a uma opinião corrente, segundo a qual, das línguas ibéricas, o português era particularmente apropriado para a expressão dos sentimentos ao passo que o castelhano deveria ser preferido para a épica e a história.

Além dessas questões ligadas à poesia lírica iniciou-se, no fim do século XIII, o estabelecimento de uma norma galaico-portuguesa para a redação de documentos notariais. Norma que não logrou êxito, pois, ainda como efeito da reconquista portuguesa, houve o deslocamento da capital e da corte para o sul, fixando-se em Sintra-Lisboa (ILARI 2001, p. 217).

Ainda conforme Ilari (2001), esse deslocamento geográfico da variedade adotada como norma, junta-se aos efeitos de três séculos de evolução, à experiência acumulada na elaboração de uma prosa hagiográfica (ligada à vida de santos) para explicar as diferenças entre a linguagem dos primeiros textos e os modelos do período clássico. Época cujo padrão literário consolidou-se e estabilizou-se no período quinhentista, em obras renascentistas, como as de Luís de Camões, que se tornaram fator de referência do padrão do português culto. E essa riqueza literária – quinhentista e seiscentista – foi também um fator determinante para garantir a independência do português ante a influência castelhana, sobretudo no período em que Portugal esteve sujeito politicamente à Espanha (ILARI, p. 218). Devemos acrescentar que esse período de riqueza literária ‘coincide’ com o período de riqueza econômica português, época das grandes navegações lusitanas.

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Alkmim (2001) faz uma síntese do panorama linguístico da Península Ibérica no período relevante. Por volta de 10723, várias línguas eram faladas na Península: o galaico-português (regiões do Porto, Coimbra, Santiago de Compostela), o leonês (regiões de Burgo, Leon, Astúria), a aragonês (Aragão), o catalão (Barcelona), o basco e os dialetos moçárabes (nas regiões ocupadas pelos árabes: Lisboa, Badajós, Madrid, Toledo, Sevilha, Granada, Saragoça, Valencia, Tarragona). O condado Portucalense (região do Porto) situava-se na zona de correspondia ao galaico-português (assim como Santiago, na Galiza). No movimento de expansão territorial em direção ao sul – Lisboa e Algarve –, o galaico-português é submetido a um processo de diferenciação linguística, produzido pelo contato com a fala das regiões conquistadas e com os dialetos moçárabes. O fato é que, ao final do século XIII, o território está definido e a língua portuguesa consolidada em face das línguas do entorno, mais particularmente, do galego.

A constituição da unidade política espanhola fez-se no período entre os séculos XI e XV. A Reconquista, no caso da Espanha, teve início sob a monarquia de Leão e Castela.

Logo, os dois reinos formaram um único Estado que atuou ainda mais agressivamente na guerra aos árabes. Depois da retomada de Toledo (1085), o episódio mais marcante dessa guerra é a batalha de Las Navas de Tolosa (1212), que abriu caminho para que fossem subjugados os reinos árabes de Córdoba (1236) e Sevilha (1248). Com estas conquistas os árabes conservaram na Península Ibérica somente o Reino de Granada, que sobreviveu até o reinado de Fernando e Isabel, a católica (1492) (ILARI, p. 218).

O movimento de reconquista fez com que o castelhano se expandisse

não só para o sul, isto é, para os territórios ocupados pelos árabes, mas também para o leste em territórios do aragonês, do leonês e do catalão. Como ressalta Alkmim (2001), ao completar-se a integralidade do território espanhol, em fins do século XV, com a conquista de Granada (1492), o castelhano encontrava-se amplamente difundido no espaço geográfico, sobreposto aos outros usos linguísticos. Atualmente, regiões que foram ocupadas pelo catalão e pelo aragonês são bilingues. O

3 Cf. Ilari (1997, p. 176-8).

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aragonês decaiu para a condição de dialeto, e o catalão continua a desempenhar funções de língua nacional, ao lado do castelhano (ILARI, 2001, p. 219).

É possível observar que tanto Portugal quanto Espanha encontram na territorialidade elemento fundador do perfil linguístico que assumiram. No caso de Portugal, houve a autonomia do português; já, no caso da Espanha, observa-se a expansão do castelhano e seu consequente predomínio sobre as demais línguas do território. E, como salienta Alkmim (op cit), pode-se falar então em constituição de nacionalidades, de nações: a cada uma delas corresponde um espaço físico e simbólico que as distingue entre si e de outras nacionalidades. Cristalizou-se, portanto, a imagem de um tipo de relação criada entre língua e nação. Além dos feitos heroicos.

O caso da França difere dos anteriores no que diz respeito à relação entre língua e nação. Tal diferença se deve primeiramente ao grande número de línguas utilizado na região do antigo território da Gália Transalpina que, como elencado a seguir, mostra que uma França multilingue atravessa a Idade Média. E é no período da Revolução Francesa – fim do século XVIII – que a questão da identidade linguística nacional vai se colocar e – o que lhe faz peculiar – por uma ação voluntarista. Segundo Alkmim (2001), como em toda a Europa, no período medieval, a região correspondente à atual França era ocupada por vários feudos, numa rede de senhores locais, submetidos a senhores com maior poder e domínio, todos vassalos de um soberano. A sede do poder real era a região da Île-de France, onde se localiza Paris que, no século XII, torna-se efetivamente, a capital do domínio monárquico. Do ponto de vista linguístico, a França dividia-se em dois grandes blocos: A langue d’oc, ao sul (limosino, auvernês, linguadócio, bearnês e provençal), e a langue d’oil, ao norte (normando, picardo, angevino, lorenês, borgonhês, valão e frâncico).

O frâncico, que veio a ser o francês, era falado na região da Île-de France. A crescente centralização do poder real, aliada a um domínio espacial extensivo, atribui ao frâncico a função de língua da administração, da justiça e da literatura, em detrimento das outras variedades usadas. Vale lembrar, a propósito, o provençal, que conheceu grande importância literária e era usado nos tribunais da região sul da França: ao final do século XII (e do período medieval), perdeu inteiramente o espaço (e o prestígio), frente ao frâncico – a língua do

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poder real. Distintamente do que ocorreu nos países da Península, a relação entre língua e nação francesa – nação desde há muito constituída – tem como uma importante referência histórica o abade Grégoire, homem político da Revolução, que sinaliza em 1794 uma política linguística para os tempos republicanos: a diversidade dos usos linguísticos é um obstáculo ao pleno exercício da cidadania. Refletindo, seguramente, uma visão da época, o abade considerava o francês como a boa língua, e as outras como inferiores. Seguiu-se, daí, a assertiva de que o direito de dominar o francês deveria ser estendido a todos.

A constituição da língua nacional no Brasil deu-se, naturalmente, de maneira diversa da constituição das línguas europeias tratadas. Como veremos, apesar de a língua nacional do Brasil também se constituir a partir do conflito, sua constituição se dá no embate entre uma língua trazida pelos conquistadores, já com uma história própria e outra(s) língua(s) formada(s) no continente, também com histórias próprias. No entanto, a assimetria entre o passado dessas línguas é grande. As histórias da formação das línguas indígenas existentes no território que se chamaria Brasil foram silenciadas, esquecidas, apagadas enquanto a história da língua do colonizador foi por aqui plantada. Cabe questionar: como foi pensada (ou imaginada) a nação brasileira em discursos que pretendiam dizer a língua nacional ou a língua utilizada no Brasil?

Na próxima seção, apresentamos o ponto de vista de alguns estudiosos sobre a imposição do português como língua oficial do Brasil e algumas das implicações até os dias de hoje.

3. Constituição do português como língua nacional no Brasil

Houve um tempo no Brasil em que os índios ensinavam os

portugueses a falar. A história da nossa língua nacional nos remete à ‘genérica’ língua geral utilizada desde o período colonial até meados do século XVIII, quando o Marquês de Pombal impôs, por meio do Diretório dos Índios, o português como língua oficial do Brasil. Foi em 1757 que, através da Lei do Diretório, o Marquês de Pombal instituiu a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa no Brasil e expulsou os jesuítas - a Companhia das Índias – um dos alicerces do uso e da difusão das línguas gerais.

A imposição da língua portuguesa através desse decreto foi uma das medidas que visavam, segundo Boris Fausto (1995), contar com uma

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população nascida no Brasil identificada com os objetivos lusos, o que asseguraria o controle de vastas regiões semidespovoadas. O ponto de vista de Fausto é interessante porque uma das medidas pombalinas controvertidas – talvez a mais controvertida – foi a expulsão dos padres jesuítas que constituíam áreas de atuação autônoma cujos fins eram diversos dos objetivos da Coroa. Pode-se dizer que enquanto a finalidade dos jesuítas era ‘catequizar’ através da língua geral, a finalidade da Coroa era ‘colonizar’, sob o argumento de ‘civilizar’ através da linguagem. O decreto que impõe o uso da língua portuguesa associado a outras medidas políticas – houve também as econômicas – mostra claramente como a língua nacional se reveste de um significado também político de uma forma muito direta.

Rodrigues (1985, p. 99-100), na obra Para o conhecimento das línguas indígenas, esclarece que a expressão língua geral foi inicialmente utilizada por portugueses e espanhois para se referir às línguas indígenas de grande difusão numa área. O Quêchua, por exemplo, já no século XVI era chamado de Língua Geral do Peru e o Guarani, no século XVII, Língua Geral da Província do Paraguai. No Brasil, no entanto, assevera Rodrigues (op cit), a língua dos índios Tupinambá – falada na enorme extensão ao longo da Costa Atlântica que vai do litoral de São Paulo ao litoral nordestino já no século XVI – não fora designada, durante os dois primeiros séculos, como língua geral. O padre Anchieta publica, em 1595, sua gramática intitulada Arte de gramática da língua mais usada na Costa do Brasil. Rodrigues afirma que expressões como a língua do Brasil, a língua da terra (desta terra), a língua do mar (a língua falada na costa, junto ao mar) eram utilizadas como referência à língua dos Tupinambá.

Mas o nome cujo uso se firmou, sobretudo ao longo do século XVII, foi o de Língua Brasílica. Assim o catecismo publicado em 1618 chamou-se Catecismo na Língua Brasílica; a segunda gramática, feita pelo padre Luís Figueira e cuja primeira impressão é de 1621, foi a Arte da Língua Brasílica; o dicionário dos jesuítas, cujo manuscrito melhor conhecido é do mesmo ano de 1621, traz o nome de Vocabulário na Língua Brasílica, e assim por diante (RODRIGUES, p. 100).

Tendo em vista esses primeiros movimentos de aprendizado, uso e

codificação de algumas línguas indígenas por parte dos padres jesuítas,

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Mariani (2004) assinala que, durante os séculos XVI e XVII, a língua brasílica, ou tupi dos jesuítas, ou ainda língua geral – conforme foi designada posteriormente – era falada por povos indígenas de origens diversas, escravos e portugueses, além de se expandir pelas capitanias do Grão Pará e Maranhão no século XVIII. Nesse contexto, o fato mais interessante que a autora menciona é que essa língua passou a ser ensinada aos jesuítas ainda em Portugal o que proporcionou a possibilidade de que textos fossem escritos nessa língua.

Como exemplos, Mariani (2004, p. 39) faz menção a poemas e autos escritos por Anchieta na língua tupi. Consideramos interessante esse fato porque o processo colonizador e evangelizador dos séculos XVI e XVII se fez na língua dos dominados. No entanto, gradativamente, essa língua brasílica começa a se constituir como língua escrita de um território e do povo que nele habitava. Inevitavelmente, iniciava-se no Brasil-colônia uma identificação com valores não-europeus, o que se constituiu em uma das causas da expulsão dos jesuítas e da obrigatoriedade do uso da língua da Metrópole no Brasil.

Mas por que então no Brasil não se continuou a empregar o tupi ou outra língua de origem indígena? É a partir da segunda metade do século XVIII que uma série de fatores da história externa conduzem à definição do Brasil como país "majoritariamente de língua nem indígena e nem africana". Um multilinguismo mais ou menos generalizado, a depender de uma conjuntura histórica local nos séculos anteriores, abre então o seu caminho para o português popular brasileiro.

Mattos e Silva (2004, p. 11-2) discute o processo de encontro politicamente assimétrico entre a língua portuguesa - língua de dominação – com muitas línguas autóctones e as diversas línguas chegadas ao Brasil: as africanas, as línguas dos imigrantes que tornaram o país, já multilingue de origem, ainda mais complexo linguisticamente. Mas ressalta que, apesar dessa riqueza inicial do cenário linguístico no Brasil e da tentativa de alguns estudiosos – até a década de 1970 – de explicar toda essa diversidade, a complexidade dos diversos contextos sócio-históricos de interação linguística em solo brasileiro dilui-se no que se chama português do Brasil, português brasileiro.

A autora critica a busca que parte de estudiosos fez de um português no Brasil cuja realidade fosse homogeneizável. Apesar de se reconhecer a variação social e regional, idealizava-se o português como dotado de notável e espantosa unidade que apesar de algumas divergências sintáticas

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e peculiaridades fonéticas, identificava-se com a variedade lusa. Na base de tal ideal, está uma ideologia que busca 'enobrecer' e 'desmiticizar' o português brasileiro – [ao que acrescentaríamos branquear] - o que fica muito explícito na formulação de Serafim da Silva Neto4:

Por causa, precisamente, desta falta de prestígio é que a linguagem adulterada dos negros e dos índios não se impôs senão transitoriamente: todos os que puderam adquirir uma cultura escolar e que, por este motivo, possuíam o prestígio da literatura e da tradição, reagiram contra ela (SILVA NETO5, 1960, p. 21, coletado por Mattos e Silva)

Mattos e Silva (2004, p. 21) refere-se, também, à demografia

diacrônica do Brasil, ressaltando que, a partir do século XVIII, houve uma diminuição no número de africanos, de indígenas e também de portugueses, tomando direção inversa o crescimento do número de mulatos e de brancos brasileiros. Tanto a miscigenação quanto o decréscimo da presença de portugueses são indicadores favoráveis à formação de uma língua geral brasileira que, como faz questão de frisar a autora, não seria africana – por questões como a obrigatoriedade do uso do português na escola e nos documentos oficiais, por exemplo – mas "continuadora" do português já que os índios que seriam o terceiro vértice do triângulo ou já tinham sido dizimados, integrados ou fugidos para confins protegidos. Para a autora (op. cit.), foram os afro-descendentes os principais agentes da difusão do português popular brasileiro, da norma vernácula.

Certamente, então, sobretudo nas concentrações urbanas que já existiam, o embate se dava entre duas possibilidades: um português africanizado ou um português europeizado. Por outro lado, a depender de configurações históricas locais, a predominância indígena ou negra ou ambas em convívio com o português resultou em perfis diferenciados, a se considerar o conjunto brasileiro (p. 21).

4 Mattos e Silva, p. 12, aspas simples da autora. 5 Extraído de Serafim da Silva Neto (1960): A língua portuguesa no Brasil.

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Zilles (2002, p. 150-1) classifica como história mal contada a caracterização da unidade linguística brasileira que trata como milagre o que historicamente foi implantado à força por instrumentos legais, por submissão, escravização, morte ou exclusão social e relembra que até meados do século XVIII a língua portuguesa só era falada em uma faixa do litoral. A autora (op. cit.) busca ressaltar que o passado linguístico brasileiro não foi de unidade linguística, tampouco de predomínio do português. Lembra, também, que, sequer no período da Independência, no início do século XIX, o país pôde se constituir monolíngue ,uma vez que levas de imigrantes e de escravos aportaram no Brasil. Fato que marcaria, segundo a autora, a manutenção de nosso multiculturalismo e multilinguismo.

Para Zilles (2002, p. 153), é importante ressaltar o grande número de escravos trazidos no século XIX, sobretudo no período de 1830 a 1850, e que mantinham em certa medida suas línguas de origem, mas que eram obrigados a aprender o português sem qualquer instrução formal. E conclui:

imposta a língua [portuguesa] sem garantir os meios para a sua efetiva aprendizagem parece ter sido (e continuar sendo) receita perfeita para ela [a língua] ser instrumento de exclusão social. Daí para o preconceito linguístico, que estigmatiza a fala popular até hoje é um passo só.

O século XX, junto com a República traz um Brasil cuja população é

praticamente analfabeta, estigmatizada por não falar ‘corretamente’ o português. População concentrada no campo e formada, ainda segundo Zilles (op. cit.), por múltiplas etnias, falantes de muitas línguas e também de muitas variedades do português. A partir da década de 1950, mesmo havendo um grande fluxo da população rural para os grandes centros urbanos, o que impera são as variedades ditas não-padrão do português. E, mesmo hoje, no século XXI, como reflexo de um sistema educacional ruim, a língua dita oficial também figura como estrangeira aos brasileiros, independentemente de origem – campo ou cidade – ou de escolarização, nem sempre se compreende o texto de uma bula de remédio, de uma procuração, de um contrato de aluguel, de um projeto de lei... Vejamos, na próxima seção, como o Romantismo marca um período importante na constituição do Brasil como nação.

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4. O romantismo e a língua nacional Na América, as línguas nacionais ou de Estado são as línguas dos

colonizadores, dos vencedores, dos invasores... o que até a década de 1920 – ao menos no Brasil – ainda sustentava uma dialética colonizador/colonizado no campo dos usos linguísticos. Como bem coloca Anderson (1989), na América espanhola, 18 nações falam a mesma língua, claro que com suas especificidades, mas basicamente a mesma língua o que faz com que o papel das línguas de Estado nesses países seja também peculiar enquanto elemento de caracterização/constituição nacional.

Na América lusófona, uma das características que marca seus usuários – e, por extensão sua variante linguística – é a pecha de incorreção, isto é, o brasileiro não sabe usar (seja falando, seja escrevendo) o português. No caso do Brasil, o Romantismo (1836-1870) teve um papel importante na construção de nossa comunidade imaginada. Cândido (1976) ressalta que a literatura feita no Brasil, no período colonial, apresentou-se ligada de modo indissociável a uma tradição literária portuguesa ajustada à condição de vida dos trópicos:

Os homens que escrevem aqui durante todo o período colonial são, ou formados em Portugal, ou formados à portuguesa, iniciando-se no uso de instrumentos expressivos conformes moldes da pátria-mãe. A sua atividade intelectual ou se destina a um público português, quando desinteressada, ou é ditada por necessidades práticas (administrativas, religiosas, etc) 6.

É preciso chegar à segunda metade do século XIX para encontrar os

primeiros escritores formados aqui, destinando sua obra ao magro público local. O Romantismo – conforme salientamos, tomado como um movimento além de literário, também político – desempenha, então, importante papel na construção da nacionalidade no que diz respeito a sua construção discursiva e à representação de uma nação em termos de língua.

Como assinala Rouanet (1999), ao analisar relações entre o Romantismo e o nacionalismo no Brasil, a coincidência cronológica gerou uma estreita ligação entre a escola literária e o projeto político nacionalista, fruto da Independência do país. A autora assinala a rapidez

6 Extraído de Candido (1976, p. 90-1).

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com que a ideia de nação ganhou força e se consolidou. Ideia essa que não é absoluta, mas que é de certa forma condicionada à organização política sob a qual vivem os indivíduos que constituiriam uma unidade. Em outras palavras, a unidade precisa ser – e é – construída seja política, seja geográfica, seja discursivamente. Tal construção se fez e continua a se fazer através de diversos elementos sócio-culturais: a escrita em geral, História em particular e, acrescentamos, literatura – em especial. Para a autora (op. cit.), a literatura tomou parte na tarefa de construção da nacionalidade, desempenhando função efetiva. Pela característica de tornar visível o que não o é, necessariamente a literatura vai ser convidada a participar do projeto de construção da nacionalidade.

Candido (2002) argumenta na mesma direção. Para o crítico, o Romantismo contribuiu para desenhar a ideia que o brasileiro ia formando de si, trazendo à literatura temas e paisagens locais, utilizando-se de uma linguagem mais natural, próxima à dos usos linguísticos que o homem de então fazia. Nunca é demais lembrar que boa parte da produção escrita – o jornal, por exemplo – estava sob o domínio de portugueses nessa época, assim como boa parte dos que aprendiam a ler eram ensinados por mestres europeus. Nesse contexto:

O homem comum ficava à vontade quando lia numa péssima ficção de Joaquim Norberto, ou num bom romance de Alencar, que os figurantes passeavam na floresta da Tijuca, andavam pela praia do Flamengo e trabalhavam na rua do Ouvidor.(...) Foi como se cada um pudesse encontrar mais facilmente nos textos, que muitas vezes eram ouvidos, com ou sem música, uma linguagem mais apta a exprimir o mundo em que vivia e os sentimentos que os animavam.7

Entretanto o autor (op. cit.) assinala que o nacionalismo romântico,

apesar de ter sido historicamente importante, tinha muito de ilusório, uma vez que os escritores continuavam normalmente imitando e citando modelos europeus. Havia, num certo sentido, a transposição ou a substituição de modelos europeus. No entanto, como frisa o crítico, a despeito dessa característica, foram importantes certas ilusões do nacionalismo romântico, uma vez que naquele momento de independência recente era estrategicamente oportuno demonstrar a

7 Extraído de Candido (2002).

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autonomia e originalidade da literatura brasileira, menores na verdade do que alegavam as formulações. Sem contar a importância de se minimizar o vínculo com as literaturas matrizes. O período romântico se caracteriza, fundamentalmente, por uma rebeldia em relação a Portugal.

Considerando as afirmações de Candido (op. cit.) sobre o nacionalismo romântico e o sentimento de identidade que ajudou a construir na segunda metade do século XIX, salientamos que nas discussões sobre a originalidade e a independência da nossa literatura, um dos pontos fulcrais é sem dúvida a língua. Ao lado da paisagem como cenário e do índio como herói nacional – é a língua no que diz respeito a seu aspecto lexical e sintático uma das preocupações que tomarão parte no debate sobre a nacionalidade e a literatura. É possível observar em textos oitocentistas sobre o estatuto da língua usada no Brasil uma questão de interesse nacional: qual o veículo apropriado para documentar uma realidade já existente, que era a jovem nação brasileira? E por veículo entenda-se variedade lusa ou brasileira em termos de léxico e de sintaxe8.

De tendência nacionalista sem, no entanto, voltar as costas à Europa, José de Alencar encara o Brasil como algo novo, resultante da fusão de elementos distintos, mas que não é mais nenhum desses elementos isolados, e sim um outro complexo racial, social, linguístico, literário e histórico, é o que salienta Coutinho (1965, p. 8).

José de Alencar9 fez parte do projeto nacionalista que orientou os intelectuais depois da Independência política (1822). Conforme Abreu 8 José de Alencar em Poscrito, 2ª edição de Diva, afirma: a língua rompea as cadeias que

lhe querem impor, e vai se enriquecendo,já de novas palavras , e já de outros modos diverso de locução. In: Pinto (1978, p.55).

9 José de Alencar traz ascendência política. Sua avó, D Bárbara de Alencar, foi um dos grandes nomes da Revolução de 1817. Seu pai, o Senador Alencar, foi um político influente que, dentre várias autuações, foi uma peça importante das atividades que levaram Pedro II à Maioridade antecipada. Sua atuação como político iniciou-se mais tardiamente que sua atividades como escritor, jornalista e advogado. Foi em 1860, quando Alencar se candidatar a Deputado-Geral pelo partido Conservador e foi até a Província do Ceará fazer propaganda política. Nessas eleições foi eleito, estrelando na Câmara em 23 de maio de 1861. Em 1863, o Imperador dissolveu a Câmara, convocando novas eleições, mas ele não obteve êxito, ficando fora da política até 1868, quando foi convidado a ocupar o cargo de Ministro da Justiça no Gabinete Conservador 16 de julho, onde permaneceu até 1870, quando pediu exoneração/demissão. Em 1869, foi eleito deputado federal e também candidatara-se a uma cadeira no Senado – no entanto, seu nome não foi escolhido pelo monarca. Retorna, então, à câmara. 1872, nova eleição, foi novamente eleito para a legislação de 1872-1875. Faleceu em 1877.

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(2002, p. 2), seguindo o ideário estético do Romantismo, o autor mitificou o selvagem, tratando-o a partir de temas considerados como 'genuinamente nacionais': a natureza, a língua e a configuração do passado. Elementos discursivos presentes em seus enunciados sobre a língua nacional e sobre as relações entre senhores e escravos no Brasil são uma referência representativa do período em questão e serão retomados em outras enunciações do século XX. Na avaliação de Abreu (2002, p. 14),

No contexto em que vivíamos, reconstruir o passado da pátria, buscar as tradições e o espírito do povo, idéias tão gratas ao romântico europeu, foram bem vindas ao Brasil, carente de definições da sua identidade. Mais do que um tema ao sabor da época, transportar-se ao passado - e ver nele o índio em estado bruto - transformou-se no meio de sondagem da formação da consciência nacional, numa ideologia. Tornou-se o maior recurso de o Brasil se afirmar e definir-se como pátria, pois significava a fonte genuína de inspiração e, além disso, o caminho mais legítimo para a afirmação do povo brasileiro, para quem o selvagem e a sua primitiva cultura traduziam-se na origem lendária, mítica e histórica da nova civilização. ... Assim, o escritor romântico se faria de historiador e procuraria reviver esse período mitológico do Brasil, construindo e fundando a origem nacional. O mundo fantástico criado por Alencar convinha, portanto, ao orgulho patriótico, por isso, seus heróis são carregados de simbolismo, indicadores do ponto reputado inicial de nossa história.

Importante ressaltar que, de certa forma, ao se fixar à figura do índio

como principal artífice das peculiaridades nacionais, há um apagamento da figura do negro nessa construção. Apagamento num momento em que mais se intensifica o tráfico para o país. O Brasil – representado pela figura de D Pedro II – tentava afastar a imagem de atraso com relação às outras nações em que já não havia mais a escravidão e o tráfico. O Brasil nunca quis se mostrar/representar como um país mestiço ou mulato, tampouco negro. Negro era/é sinônimo de escravo, de atrasado, de não-civilizado... entre outras representações.

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De qualquer forma, se o elemento negro não figurava nos romances alencarianos nos papéis principais10, a despeito de o autor advogar em favor das peculiaridades da nossa nação, nos discursos do 'político Alencar' em tribuna da Câmara dos deputados ou em artigos de jornal a questão servil era com muita frequência a motivação de tais textos. A questão servil em escritos políticos e ficcionais de José de Alencar é o tema da pesquisa de Silva (2004). Ao analisar os escritos políticos de Alencar, a autora evidencia que o autor foi uma espécie de catalisador das incongruências vividas por parte da sociedade brasileira da segunda metade do século XIX que queria se desvincular da imagem de escravocrata sem acabar com a escravidão. Parece esquizofrênico, mas vejamos:

Um país cuja economia está integralmente baseada na agricultura, a qual é sustentada pelo trabalho escravo, não pode abolir o regime servil sem sofrer consequências desastrosas. Essa é a imagem da sociedade brasileira oitocentista veiculada por um grupo de políticos da época com o objetivo de defender a necessidade de manter-se a escravidão no país. Nas discussões acerca do projeto da Lei 1871 ou Lei do Ventre Livre, essa imagem foi incansavelmente reiterada por eles com vistas a vetar a aprovação às medidas emancipacionistas pelo governo. O político José de Alencar compartilhava dessas convicções e utilizou-se dessa imagem de Brasil para fortalecer sua postura contrária à aprovação da mencionada lei (SILVA, 2004, p. 1).

Em 1865, no pós- Escrito, à segunda edição de Diva, texto em que

discutiu pela primeira vez a questão linguística, Alencar explicita a crença na existência de uma estreita relação entre língua e nacionalidade:

A língua é a nacionalidade do pensamento assim como a pátria é a nacionalidade do povo. Da mesma forma que as instituições justas e racionais revelam um povo grande e livre, uma língua pura, nobre e rica, anuncia a raça inteligente e ilustrada.11

10 “o meu teatro não constitui só por si o teatro brasileiro, que se compõe de muitas

outras composições de grande merecimento, nem o meu repertório limita-se a Demônio Familiar e Mãe, únicos escritos sobre o tema da escravidão.” José de Alencar respondendo a críticas de Joaquim Nabuco. In: Coutinho (1965).

11 Extraído de Pinto (1978, p. 55).

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Para Silva (2004, p. 25), Alencar compartilhava da maior parte dos preceitos que sustentavam a dominação paternalista, visto que, em muitos momentos, parece olhar a realidade brasileira utilizando as lentes da ideologia senhorial, podendo ser tomado como um dos defensores da preservação do respeito pela vontade do patriarca. Assim como outros políticos que foram contrários à aprovação do projeto de Lei 1871 – conhecida como a Lei do Ventre Livre, o autor-político acreditava que a preservação da autoridade senhorial era fundamental para a manutenção da harmonia das relações que garantia a ordem e o bom funcionamento daquela sociedade.

Conforme já observamos, para Alencar o "amálgama das raças" estava em processo no país e, como consequência, o autor postula que a existência de um bom relacionamento entre senhores e escravos indicava que a sociedade brasileira estava caminhando naturalmente para o fim do regime escravista. Sendo assim, uma interferência – leia-se a libertação dos escravos – que acelerasse o processo traria consequências catastróficas como a miséria dos libertados. Silva (2004, p. 40) transcreve um escrito de Alencar que ilustra o posicionamento do autor:

Antes de qualquer consideração, não se esqueça a natureza da escravidão em nosso paiz, tal como a fizerão acinte da lei, os costumes nacionaes e a boa indole brasileira. A condição do nosso escravo comparada com a do operario europeu, é esmagadora para a civilisação do velho mundo. O velho mundo tem em seu proprio seio um cancro hediondo que lhe róe as entranhas: é o pauperismo. O aspecto repugnante d'esta miseria em que jaz a ultima classe da sociedade, a humanidade mais do que a antiga escravidão. [...] De que serve ao paria da civilisação a liberdade que a lei consagra por escarneo, quando a sociedade a annulla fatalmente por sua organisação, creando a oppressão da miseria?

A ideia de que havia harmonia nas relações escravistas figura como

importante argumento de José de Alencar. Em discurso proferido na Câmara dos Deputados, coletado por Silva (2004, p. 49), Alencar fala sobre a doçura da escravidão que seria fundamental para o equilíbrio das relações sociais no Brasil:

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Senhores, é um fato reconhecido a moderação e doçura de que se tem revestido sempre, e ainda mais nos últimos tempos, a instituição da escravidão em nosso País. (Apoiados.) Nossos costumes, a índole generosa de nossa raça, impregnaram essa instituição de um brandura e solicitude que a transformaram quase em servidão.[...] Pois bem, se com a nossa impaciência sufocarmos esses sentimentos generosos, se sopitarmos esses sentimentos benévolos; se criarmos o antagonismo entre as raças que viveram sempre unidas, retribuindo uma com sua proteção os serviços da outra, não receais que desapareça de repente esse caráter de moderação e caridade? (SILVA, 2004, p. 51) discurso de 13.07.1871.

Como analisa Silva (2004, p. 53), o autor inverte a posição de vilão,

delegando-a aos abolicionistas, que não pensariam na vida que os escravos teriam quando libertos, agindo por puro interesse pessoal e por impulso, portanto irresponsavelmente e de modo condenável. Segundo a ótica de Alencar, os escravos deveriam ser preparados para a liberdade, para que sua inserção na sociedade se fizesse de forma harmônica e eles fossem realmente integrados, ao invés de serem transformados num elemento de perturbação da paz social. O outro elemento que aproxima os enunciados alencarianos dos enunciados de Freyre é justamente relacionar essas questões ligadas à escravidão, ao poder patriarcal, às peculiaridades do idioma nacional. A passagem12 que segue é representativa do que queremos explicar, uma vez que conjuga elementos políticos e sociais para caracterizar a língua, no que concerne ao léxico e à pronúncia:

Nas notas do drama citado vi eu que em Portugal não podem tolerar o nosso brasileirismo sinhá, e fazem disso chacota; bem como em outras cousas. O mesmo acontecia em Londres com as inovações americanas. Aproveito esse momento de pachorra para esmerilhar a razão por que sinhá possa causar hilaridade e ser objeto de mofa. É este ou não um vocábulo formado com o gênio da nossa língua? Contém alguma sílaba contrária à eufonia do nosso idioma? Nenhum desses vícios lhe descubro nem se admitem tais denguices em uma língua que tem enxó, belhó e filhó de que os brasileiros fizemos filhós para atenuar-lhe a aspereza. Aos nossos ouvidos

12 Extraído de Pinto (1978).

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aquele termo carinhoso de sinhá soa tão harmoniosamente, como qualquer dos vocábulos criados para as vivas efusões do afeto. Com a terminação á temos além de sinhá e iaiá, muitas outras palavras brasileiras tais como jacá, fubá, patiguá, patuá, acaçá, aluá, samburá, xará, etc, que o nosso povo formou de raízes típicas em geral e alguma vez de raiz africana; mas todas pelo tipo indígena.(p. 133) (...) Sinhá é uma contração de senhora. (...) Em todas as línguas os termos mais afetuosos como os de pai e mãe passaram por uma alteração, ou se quiserem, por um estropiamento semelhante ao que no Brasil sofreu a palavra senhora: se os meninos de Roma tiveram a glória de criar o vocábulo papa, que segundo Tertuliano, serviu para designar o sumo pontífice como pater patrum; não é de admirar que dos escravos, que são uns meninos da ignorância, recebêssemos nós esse vocábulo mimoso. As relações sociais que introduziram o termo sinhá são desconhecidas aos europeus. No velho mundo a escravidão foi com mui raras exceções a tirania doméstica: e não repassou como no Brasil dos sentimentos os mais generosos, a caridade do senhor e a dedicação do servo. Não podem pois estranhos compreender a doçura e expressão do vocábulo, com que o escravo começou a designar a filha do seu senhor. Os ternos sentimentos, a meiga efusão desta palavra de carinho dirigida à menina brasileira, só a sente a alma que se aqueceu ao tépido calor do nosso lar (p. 134).

Consideramos a passagem ilustrativa de uma explicação de

fenômenos linguísticos pelo prisma das relações sociais em que certa louvação do escravismo está presente: o abrandamento que as relações sociais escravocratas operaram no Brasil. O que fez com que a língua se abrandasse também.

Como bem coloca Faraco (2002, p. 43-4), o padrão ou a norma-padrão no Brasil foi construída de forma extremamente artificial, pois a elite letrada conservadora se empenhou em fixar como nosso padrão um certo modelo lusitano de escrita, praticado por alguns escritores portugueses do Romantismo. Ou seja, nosso modelo não foi a ou uma língua de Portugal, mas uma variedade literária de Portugal. Faraco (op. cit.) observa, ainda,

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que além dessa herança excessivamente conservadora calcada no normativismo, está também o desejo daquela elite de viver num país branco e europeu, o que a fazia lamentar o caráter multirracial e mestiço do nosso país (...) e, no caso da língua, a fazia reagir sistematicamente contra tudo aquilo que nos diferenciasse de um certo padrão linguístico lusitano. Assim, abrasileirar o idioma significava corromper, degenerar, deturpar a língua portuguesa. Abrasileirar o idioma significava aproximar-se da língua utilizada pelo vulgo, ou seja, da população mestiça, de ascendência africana de quem a elite queria se afastar.

5. Respondendo à questão inicial

Na tentativa de concluir nossas reflexões sobre a constituição do

português como língua nacional no Brasil, retomemos a questão inicial: que estratégias representacionais são acionadas para construir o senso comum sobre o idioma nacional ou sobre a identidade nacional linguística no Brasil? Um fato a ser destacado é que diferentemente do processo histórico de constituição de outras línguas nacionais românicas que possuem um passado de feitos heroicos, o português no Brasil não teve um passado, por assim dizer, ‘glorioso’ de lutas como na Reconquista, ou de ‘Revolução do povo’, como na França. No lugar de uma literatura clássica, em que feitos heroicos são narrados – como tem Portugal com Camões, ou na Itália com Petrarca, temos em nossa história povos ‘que sequer possuíam memória escrita’. Numa época em que a concepção de língua esteve fortemente vinculada à escrita, essa característica era considerada um primitivismo. Sssim, em nome de uma unidade com Portugal, que representava nosso elo com a civilização, o Brasil teve uma língua nacional imposta pelo colonizador e amplamente difundida no país.

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LETRAS – PUC-Campinas – vol. 28 (2) - 2009 – p.105-126

O DISCURSO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA SOBRE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: REPRESENTAÇÕES DE PODER

NAS REVISTAS “LETRAS” E “TRABALHOS DE LINGUÍSTICA APLICADA”

The scientific divulgation discourse on distance education: power

representation in “Letras” and “Trabalhos de linguística aplicada”

Maria de Fátima Silva AMARANTE1 Elcio Barreto de ALMEIDA2

RESUMO: Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa que focalizou, a

partir de subsídios da Análise do Discurso de Linha Francesa, representações de poder acerca de educação a distância em discursos de divulgação científica publicados nas revistas “Letras”, da PUC-Campinas e “Trabalhos em Linguística Aplicada”, da UNICAMP, entre 1998 e 2008.

PALAVRAS-CHAVE: discurso; representação; poder; educação a distância. ABSTRACT: Results of a research focusing power representations concerning

distance education in scientific divulgation discourses published between 1998 and 2008 in two Brazilian academic magazines are presented in this paper. The analysis is qualitative and interpretative, since the methodological and theoretical perspective is that of the French Trend Discourse Analysis.

KEYWORDS: discourse; representation, power, distance education. 1. Introdução

A produção de discurso de divulgação científica acerca de Educação a Distância, com foco no ensino de línguas, vem se ampliando, em especial 1 Centro de Linguagem e Comunicação, PUC-Campinas. 2 Graduado em Letras-Português/Inglês pela Faculdade de Letras, do Centro de Linguagem

e Comunicação da PUC-Campinas; bolsista de Iniciação Científica 2008-2009, PIBIC/CNPq, sob orientação da Profa. Dra. Maria de Fátima Silva Amarante.

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Maria de Fátima Silva AMARANTE & Elcio Barreto de ALMEIDA

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nos periódicos editados por universidades que atuam nesta modalidade de ensino. Em Campinas, encontramos duas publicações: “Letras”, da Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, e “Trabalhos de Linguística Aplicada”, do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Artigos publicados nestes periódicos, a partir do ano de 1998, que focalizam questões referentes a processos de ensino/aprendizagem de línguas à distância, compuseram o corpus de pesquisa do trabalho de Iniciação Científica que aqui reportamos.3

Está claro que o discurso de divulgação científica acerca da educação a distância tem como condição de produção as narrativas sobre a crise da educação e da apologia à inclusão social, além de serem constituídos pelos interdiscursos político-educacional, institucional, jornalístico, publicitários, dentre outros. Portanto, nele podem ser encontradas novas ou renovadas representações que se referem a ensinar, a aprender e a ser sujeito educacional a distância, que podem constituir os sujeitos e seus discursos, o que determina a relevância social de nosso trabalho.

Além disso, a pesquisa que desenvolvemos e que buscou verificar as representações de poder que afloram em discursos de divulgação científica acerca da educação a distância e, consequentemente, os efeitos de sentido que estas propiciam encontra sua relevância científica tanto na proliferação de discursos de divulgação científica acerca da educação a distância quanto no alto status atribuído aos discursos da ciência. Estes fatores concorrem para estes discursos assumam um sobrepoder na constituição dos sujeitos e de seus discursos, operando fortemente, portanto, na rede interdiscursiva que se tece em torno da questão da educação a distância.

Cabe informar, ainda, que a pesquisa, cujos resultados relatamos neste artigo, adotou a perspectiva essencialmente qualitativa e interpretativa da Análise do Discurso de Linha Francesa, conforme descrita por Coracini (1991) e por Mainguenau (1993) e, mais recentemente, por Gregolin (2006). Segundo a autora, adotando-se perspectiva dos trabalhos de Pêcheux, Foucault e Bakthin, cabe ao analista do discurso "descrever e interpretar os efeitos de sentido produzidos pela materialidade discursiva,

3 O trabalho, desenvolvido de agosto de 2008 a julho de 2009, está inserido na linha de

pesquisa “Discurso e Comunicação: representações de poder”, do Grupo de Pesquisa “Estudos do Discurso”, do CNPq/PUC-Campinas.

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sua circulação através de práticas, seu controle por princípios relacionados ao poder" (GREGOLIN, 2006, p.34).

Para dar conta de nosso objetivo, qual seja, mapear as representações de poder no discurso de divulgação científica publicado nas revistas "Letras" e "Trabalhos em Linguística Aplicada", apontando seus efeitos de sentido, inicialmente buscamos subsídios na área dos Estudos do Discurso, a fim de retomarmos os principais conceitos da Análise de Discurso de Linha Francesa e consolidar a base teórico-metodológica de nosso trabalho. Nessa etapa incluíram-se a leitura de Orlandi (1987 e 2001), Gregolin (2006), Gaspar (2006), Coracini (1991a e b), Maingueneau (1993), Meurer e Motta-Roth (2002), Foucault (1996), Pêcheux (1991), Baalbaki (s/d), Carioca (s/d), Cunha (2005); Nunes (2005) e Santos (2007). Empreendemos, então, com vistas à apreensão do conceito de representação, ao exame de considerações de Chartier (1991), Silva (1999) e Hall (1997). Dedicamo-nos, também, à leitura Thompson (1995), concentrando-nos em examinar a representação como constitutivamente ideológica e em discutir os modos de operação da ideologia e os fundamentos em que sua legitimação se baseia. O próximo passo foi refletir acerca de poder e, para isso, recorremos a textos de Michel Foucault (2006, 1993, 1995). O conceito de poder de Michel Foucault foi retomado na análise de textos de Marshall (1994) e Larossa (1994). Finalmente, buscamos subsídios para a análise do contexto sócio-histórico que constitui as condições de produção do discurso acerca da educação à distância em Ianni (2000), Lévy (1996,1999), Pourtois e Desmet (1999), e Moore e Kearsley, (2007).

Realizamos, então, a coleta do corpus. Havíamos planejado compô-lo de artigos publicados nas revistas "Letras" e "Trabalhos em Lingüística Aplicada", de 1998 a 2008, que focalizassem questões referentes a processos de ensino/aprendizagem de línguas a distância. Entretanto, é oportuno apontar que não foram encontrados artigos sobre a temática nos volumes referentes aos anos de 1998 a 2003, da revista "Letras". Além disso, constatamos que o volume referente ao ano de 2007 ainda se encontrava no prelo e não havia informações quanto à publicação do volume relativo ao ano de 2008. Assim, o corpus coletado na revista Letras abrangeu somente os anos de 2004, 2005 e 2006, sendo coletado um total de 4 artigos. Quanto ao corpus coletado na revista "Trabalhos em Lingüística Aplicada", este abrangeu 11 artigos publicados nos ano de 1999, 2000, 2003, 2004, 2005 e 2007, já que não foram encontrados

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artigos sobre o tema nos volumes referentes aos anos de 2001, 2002, 2006 e 2008.

Para examinarmos a materialidade lingüística dos discursos selecionados, elaboramos, com base em subsídios colhidos em Thompson (1995) e em Hall (1997), um instrumento de mapeamento das representações de poder, no que diz respeito aos procedimentos de ancoragem e de delegação. Dedicamo-nos, então, à leitura cuidadosa dos artigos que compuseram o corpus, selecionamos os enunciados considerados mais relevantes e aplicamos o instrumento de análise. Finalmente, dedicamo-nos à escritura da análise qualitativa dos excertos representativos, parte da qual trazemos a público neste artigo.

2. Análise e discussão dos resultados 2.1. Dos fundamentos teórico-metodológicos da Análise do Discurso de Linha Francesa

Na Escola Francesa de Análise de Discurso, que estuda a

materialidade lingüística a partir das condições de produção, o discurso é entendido como processo em que o lingüístico e o social se articulam, objeto ao mesmo tempo social e histórico onde se confrontam sujeito e sistema (CORACINI, 1991b, p. 337). O discurso é, portanto, o ponto de articulação dos fenômenos lingüísticos e dos processos ideológicos. Gregolim (2006, p. 19) chama a atenção, por outro lado, para o fato de que, na Análise de Discurso de Linha Francesa, o dispositivo teórico e o dispositivo analítico são inseparáveis. Assim, é ela a base teórico-metodológica para nosso estudo.

Dedicamo-nos, portanto, a analisar as representações de poder no discurso de divulgação científica, entendendo, como diz Courtine (1999), que o discurso deve ser concebido como um objeto essencial para a compreensão das realidades históricas e políticas, um nível de intervenção teórica crucial para quem quisesse, a um só tempo, compreender a sociedade e trabalhar a sua transformação. (COURTINE, 1999, p.7)

Na esteira do que fez Pêcheux (1990, apud GREGOLIM, 2006, p. 26) em "Discurso. Estrutura ou acontecimento", tomamos, como unidade de análise, o enunciado em sua natureza de acontecimento discursivo, isto é, evento produzido por um ou mais enunciadores que emerge em uma

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determinada situação histórica. Conforme Gaspar (2006, p. 49), Bakhtin também entende que o enunciado deve ser a unidade de análise, pois ele é a unidade real da comunicação, podendo estar contido em uma palavra, uma frase, um parágrafo, uma foto, uma cena ou uma seqüência de um filme.

Temos em mente - como Pêcheux (op.cit.) -, que o todo enunciado se insere em uma rede de outros enunciados, relacionando-se com enunciados anteriores e provocando o aparecimento de enunciados ulteriores, inserindo-se em um contexto de atualidade e convocando um espaço de memória. Finalmente, a exemplo de Pêcheux, entendemos que o sentido dos enunciados não é evidente, transparente: ele permite que se promova um jogo oblíquo de denominações, por meio de paráfrases que aludem ao mesmo fato, mas que não têm a mesma significação.

Segundo Gregolim (2006), se toma a perspectiva peucheuxana, o analista de discursos deve descrever as conexões, os jogos de força, as estratégias discursivas que materializam, num dado momento histórico, efeitos de sentido que circulam no espaço social. (GREGOLIM, 2006, p.28) E, ainda, que (...) cabe ao analista de discurso definir as condições nas quais se realizou um determinado enunciado, condições que lhe dão uma existência específica. (GREGOLIM, 2006, p.28)

Já Gaspar (2006, p. 49) informa que: O analista do discurso, pelo olhar de Bakthin, interpreta e descreve culturas sociais e históricas. Assim, porque tomamos a relação entre linguagem e exterioridade como constitutiva dos discursos e de seus sujeitos, alocamos nosso trabalho no quadro daqueles que visam à Análise do Discurso. Portanto, tomamos o discurso e o sujeito como constitutivamente heterogêneos e constitutivamente ideológicos. Em decorrência, temos como premissa que a produção deste discurso é, ao mesmo tempo, controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 1996, p.18)

Por se tratar de um trabalho de análise do discurso, também o direciona a concepção de que as condições de produção compreendem, fundamentalmente, os sujeitos e a situação, isto é, os interlocutores, o lugar de onde falam, as formações imaginárias (imagens que fazem de si, do outro e do referente) e o contexto sócio-histórico, ideológico.

No entender de Orlandi (2001, p. 30), as condições de produção podem ser consideradas em sentido estrito ou em sentido amplo. O sentido

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estrito é o contexto imediato, as circunstâncias da enunciação. Já o sentido amplo representa o contexto sócio-histórico, ideológico. A autora afirma que: A distinção dessas duas espécies de contexto de situação – o imediato ou de enunciação, e o amplo ou sócio-histórico, ideológico – está refletida nas diferentes formas com que se constituem as diversas tipologias. O que significa dizer que pensar a sistematicidade do objeto da análise de discurso é refletir sobre a questão da tipologia e, necessariamente, sobre o estatuto das diferentes espécies de contexto. (ORLANDI, 2001, p. 218).

Além disso, informa nosso trabalho o pressuposto de que, na análise de discurso, o entrecruzamento do intradiscurso com o interdiscurso é operado por meio da noção de formação discursiva, a qual foi formulada por Foucault e reinterpretada por Pêcheux sob a ótica do materialismo histórico: Chamaremos de formação discursiva àquilo que, numa formação ideológica dada, (...) determina o que pode e deve ser dito. Isso equivale a afirmar que as palavras, expressões, proposições etc. recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas. (...) Os indivíduos são "interpelados" em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam "na linguagem" as formações ideológicas que lhes são correspondentes. (PÊCHEUX, 1988, p. 160-161, grifos do autor, apud GASPAR, 2006, p. 51-52).

A noção de formação discursiva é de fundamental importância na análise do discurso e, portanto, em nosso trabalho, visto que permite compreender o processo de produção dos sentidos, sua relação com a ideologia, além de dar ao analista a possibilidade de estabelecer regularidades no funcionamento do discurso. Isto porque entendemos que os discursos que analisamos estão inseridos na formação discursiva da academia, configurando tanto a identidade dos enunciadores-pesquisadores quanto a de seus enunciatários, bem como os seus discursos.

2.2. Da conceituação de discurso de divulgação científica

Apresentados esses conceitos básicos da Análise de Discurso,

examinemos agora a constituição do discurso científico (DC) e do discurso de divulgação científica (DDC).

De acordo com Carioca (s/d), o DC ou discurso acadêmico (DA) é: a forma de apresentação da linguagem que circula na comunidade científica em todo o mundo. Sua formulação depende de uma pesquisa

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minuciosa e efetiva sobre um objeto, que é metodologicamente analisado à luz de uma teoria. A averiguação do que foi analisado é expresso em um gênero textual para divulgação da referida pesquisa. A comprovação ou refutação do que foi escrito dar-se-á por meio da aceitabilidade do público que compõe a comunidade específica. (CARIOCA, s/d, p. 827)

Para a autora, o DA abriga tanto o DC quanto o DDC, conforme a distinção feita por Authier-Revuz (1998). No entanto, as inúmeras teorias sobre esse conceito ora se complementam ora se confrontam, podendo-se perceber a não constituição de uma noção uniforme. De fato, podemos encontrar diferentes concepções de DDC, com formulações teóricas e pressupostos distintos.

A primeira caracterização de DDC que merece destaque é a de DDC como re-enunciação de um discurso-fonte (D1) elaborado por cientistas e destinado a seus pares em um discurso segundo (D2) reformulado por um divulgador e destinado ao público em geral. É nesta perspectiva que se insere o trabalho de Authier-Revuz (1998) sobre DDC. Segundo essa autora, a divulgação destina-se principalmente ao estabelecimento da comunicação ciência-público, de tal forma que os novos conhecimentos resultantes das pesquisas científicas cheguem ao grande público de forma acessível. A autora

destaca ainda que o que distingue a divulgação das demais práticas de reformulação, tais como a tradução, o resumo, a resenha, os textos pedagógicos, etc. é a (auto)representação do dialogismo, ou seja, ao mesmo tempo em que se faz a divulgação científica, mostra-se esse fazer. (ZAMBONI, 1997, p.114, apud BAALBAKI, s/d, s/p)

Outra caracterização do DDC é a proposta por Orlandi (2001, 2005). Diferentemente de Authier-Revuz (1998), a autora considera o DDC como um "jogo complexo de interpretação, não se tratando de tradução, uma vez que a divulgação relaciona diferentes formas de discurso na mesma língua. São, portanto, "discursividades diferentes". Desta forma, o divulgador não traduz o discurso científico para o jornalístico, ele trabalha no entremeio desses dois discursos. Orlandi (2005) nos diz que: Vai haver uma interpretação de uma ordem de discurso que se deve produzir um lugar de interpretação em outra ordem de discurso. Isso vai constituir efeitos de sentidos que são próprios ao que se denomina de divulgação científica. Produz-se aí uma versão. A divulgação científica é uma versão da ciência. (ORLANDI, 2005, p. 134, apud BAALBAKI, s/d, s/p)

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Desse modo, o DDC deve ser considerado como um discurso outro, resultante do confronto entre formações discursivas distintas: o discurso científico e o discurso não-científico, conforme também aponta Coracini (1991a).

Em nosso trabalho, utilizamos a nomenclatura `DDC' para aquele que é referido como `DC' pelas autoras citadas, de modo a deixar claro que o que importa nesse discurso é o fato de que o enunciatário-pesquisador busca divulgar sua produção científica junto a acadêmicos (os enunciatários deste discurso). Reservamos a nomenclatura `discurso de vulgarização científica' (DVC) para aquele que é referido como DDC pelas autoras indicadas, para enfatizar que nesse discurso o enunciatário não é, necessariamente, o pesquisador e que o enunciatário é o público leigo, ou seja, o vulgo, de onde vulgarização. Assim, consideramos o discurso enunciado por pesquisadores nas revistas científicas "Letras" e "Trabalhos em Lingüística Aplicada" como DDC.

2.3. Das noções de representação e de poder

Baseando-nos em Chartier (1991, p.183), interessou-nos, nesse

trabalho, buscar as representações enquanto matrizes de práticas construtoras do próprio mundo social. Dessa forma, representação tem, para nós, caráter ativo e criativo. Este caráter gerativo se revela no jogo discursivo. Nele, por meio de práticas discursivas, travam-se batalhas que visam a impor significados particulares, cujos efeitos de sentido constituem as identidades dos sujeitos. Em outras palavras, representações são marcas materiais, inscrições, traços cuja relação com conceitos é construída na prática histórico-social.

Encaramos a representação, assim, como um sistema de significação, isto é, nela se encontram relacionados um significado (conceito, idéia) e um significante (uma marca verbal ou não verbal material), sendo tal relacionamento resultado de uma construção social. A representação é, portanto, em nosso trabalho, tomada como campo atravessado por relações de poder (cf. SILVA, 1999, p. 47), relações estas que também são produtivas, genealógicas, operando processualmente em rede. Isto porque o discurso é tomado como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. (FOUCAULT, 1987, p.56)

Portanto, focalizar, no DDC selecionado, as inscrições, marcas, estratégias - que determinam posições e relações e que constroem, para

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cada gênero discursivo e seus sujeitos enunciadores e enunciatários, uma percepção do que os constitui e é por eles constituído (CHARTIER, 1991, p.183) - é a tarefa que nos propomos a realizar.

Ao delimitarmos nosso trabalho à análise de representações de poder no discurso de divulgação científica acerca de educação a distância, consideramos o que aponta Mauss (1969, p. 210, apud CHARTIER, 1991, p.183): Mesmo as representações coletivas mais elevadas só têm existência, só são verdadeiramente tais, na medida em que comandam atos". Portanto, concordamos com Chartier (1991, p.183) que considera que a noção de "representação coletiva" de Mauss e Durkheim (1903/1969, p.83) abre uma importante via de mão dupla. De um lado, apresenta-se a possibilidade de se pensar a construção de identidades sociais. Estas sempre resultariam de uma relação de força entre as representações impostas pelos que detêm o poder de classificar e de nomear e a definição, de aceitação ou de resistência, que cada comunidade produz de si mesma. (CHARTIER, 1991, p.183) De outro, pode-se considerar o recorte social objetivado, tomado como a tradução do valor conferido à representação que cada grupo dá de si mesmo, logo a sua capacidade de fazer reconhecer sua existência a partir de uma demonstração de unidade. (CHARTIER, 1991, p.183)

Entendemos, então, que o DDC acerca de educação a distância publicado em revistas científicas, irá apresentar representações de poder que estão relacionadas à relação de forças entre o enunciador-pesquisador-autor, o enunciador do discurso analisado e os enunciatários. Assim, o alto valor que a academia atribui a si própria e que a constitui como unidade é, para nós, um dos elementos que constituem as representações de poder cujas marcas encontramos no DDC. A academia é, assim, um sistema de poder, na acepção que Foucault (1993, p.12) lhe empresta. O autor considera que a verdade está circularmente ligada a sistemas de poder que a produzem e a apóiam e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. Dessa forma, os procedimentos de delegação que caracterizam a representação estão, no DDC que examinamos, colocados a priori. Delega-se à revista, por meio de sua editoria, papel central no jogo discursivo, uma vez que é ela que determina quem nela pode dizer, sobre o que pode dizer e, mesmo, as verdades que pode dizer.

Ademais, Foucault (1995, p. 240-1) diz que as relações de comunicação transmitem uma informação através de uma língua, de um sistema de signos ou de qualquer outro meio simbólico e, apesar de

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comunicar ser sempre uma forma de agir sobre o outro, a produção e a circulação de elementos significantes podem ter por conseqüência ou por objetivo efeitos de poder que não são simplesmente um aspecto destas.

Assim é que, em nosso trabalho, enfocamos estes elementos significantes e seus efeitos de poder, ou seja, as representações de poder no DDC nos artigos selecionados para compor o corpus de pesquisa. Para fazê-lo, optamos por buscá-los e mapeá-los quanto à sua ancoragem em valores tradicionais, carismáticos ou lógicos, conforme propõe Thompson (1995, p.82), ao tratar de estratégias de legitimação. 2.4. Das condições de produção e da materialidade linguística

Dentre as condições de produção dos DDCs contemporâneos estão,

conforme aponta Gregolim (2006), ao abordar aqueles que se valem da Análise do Discurso de Linha Francesa, grandes transformações sociais, tais como o processo de globalização e as profundas mudanças nas relações de trabalho; bem como a consolidação da "sociedade do espetáculo", a expansão dos meios de comunicação de massa, as tecnologias da informação que transmudavam o mundo em uma "aldeia global”. (GREGOLIM, 2006, p. 21)

Assim se expressa a autora acerca da macrocena sócio-histórica que é condição de produção para o DDC que examinamos: As mudanças políticas, a evolução das sensibilidades, as mutações tecnológicas, conturbaram os regimes de discursividade das sociedades ocidentais contemporâneas. (GREGOLIM, 2006, p. 21)

Estes acontecimentos que se atualizaram discursivamente determinaram, também, a proliferação de discursos acerca da educação a distância que se materializaram em variada tipologia de discursos, dentre eles o DDC.

Como o DDC se constitui interdiscursivamente, há de se apontar que, em especial no discurso político-educacional e no educacional, a educação a distância é enunciada de forma a apontar tanto os aspectos positivos quanto os aspectos negativos. Dentre os aspectos que tornam o ensino/aprendizagem a distância eficaz estão: a existência de mecanismos de busca e navegação eficientes que permitem um rápido acesso às informações e a abertura de canais de comunicação que permitem a interação a distância de forma síncrona ou assíncrona. Os mecanismos de busca e navegação criam condições favoráveis para a produção de

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materiais didáticos com possibilidades diferentes das que são permitidas pelos materiais impressos, tais como: a escolha, por parte do aluno, dos caminhos mais adequados às suas necessidades individuais e a facilidade de busca de informações complementares e, também, de confronto entre informações conflitantes.

Se, por um lado, a popularização das novas tecnologias tornou os custos mais acessíveis, por outro, uma boa parte dos alunos e, também, dos professores não possui o "letramento digital" necessário para uma utilização adequada dos recursos oferecidos. Assim, o professor que não tiver noção das mudanças introduzidas pela tecnologia nem conhecimentos técnicos mais específicos terá dificuldade para elaborar materiais didáticos a serem utilizados nesse novo contexto de ensino-aprendizagem.

No que concerne aos novos canais de comunicação, Braga (2000) afirma que: vários estudos recentes têm apontado a Comunicação Mediada por Computador (CMC) como um espaço privilegiado para promover a participação ativa dos alunos no processo de construção de sentidos. Essa participação é muitas vezes restrita, tanto devido à tradição educacional, que confere poder ao professor, quanto devido às condições de gerenciamento da comunicação em grande grupo". (BRAGA, 2000, p. 65)

Dessa forma, a CMC permite uma maior participação dos alunos, pois não há a sobreposição das mensagens escritas que aparecem na tela, não havendo, portanto, interferências negativas na comunicação. Outra vantagem da interação escrita em relação à interação face-a-face é a menor pressão comunicativa a que o aluno é submetido ao produzir enunciados.

Contudo, apesar de o ensino a distância mediado por computador ser, muitas vezes, considerado um lugar privilegiado para o desenvolvimento da aprendizagem colaborativa (BRAGA, 2000, p. 65), o DDC também aponta as dificuldades de implementação de cursos virtuais. Uma delas é a dificuldade do professor de planejar tarefas que demandem uma maior autonomia do aluno. Por outro lado, o desempenho autônomo do aluno nesse tipo de trabalho nem sempre é satisfatório.

No que tange às condições de produção relacionadas ao contexto de enunciação e ao perfil dos interlocutores, cabe informar que a revista "Trabalhos em Lingüística Aplicada" (TLA) é, há vinte anos, publicada semestralmente pelo Departamento de Lingüística Aplicada do Instituto

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de Estudos da Linguagem (IEL) da UNICAMP, o qual possui um grande reconhecimento nacional e internacional na área de ensino e pesquisa em Lingüística e Lingüística Aplicada, contando com cursos de graduação e pós-graduação.

Como a prioridade do IEL são as atividades de pesquisa e produção acadêmica, os artigos veiculados na revista TLA – cujos principais temas são: ensino-aprendizagem (presencial e/ou a distância) de língua materna e de língua estrangeira e aspectos teórico-práticos da tradução - estão direcionados especialmente a pesquisadores, docentes e alunos de pós-graduação na área de Lingüística Aplicada. A maior parte está em português, havendo alguns poucos em francês, espanhol ou inglês, indicativo de que a revista se destina, principalmente, a público que tenha conhecimento da língua portuguesa, o que diminui o seu potencial enquanto meio de divulgação científica. Parece-nos que isto é corroborado pelo fato de o periódico estar classificado, em 2009, no Sistema Qualis de avaliação da produção intelectual, da CAPES, no extrato B1, o que indica seu caráter mais nacional que internacional.

Já a revista "Letras" é publicada desde 1982 pela Faculdade de Letras do Centro de Linguagem e Comunicação (CLC) da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Diferentemente do IEL da UNICAMP, o CLC não possui programa de pós-graduação e o curso de graduação em Letras Português-Inglês tem como objetivo principal a formação de professores para o ensino fundamental e o ensino médio. Por isso, os artigos publicados, os quais abrangem as áreas de Lingüística, Letras e Literatura, têm como público-alvo alunos de graduação, professores que atuam na educação básica e pesquisadores na área de ensino de língua materna e língua estrangeira. A maioria é em português, mas a revista também recebe artigos em espanhol e inglês. Está classificada, em 2009, no Sistema Qualis como B4, o que a caracteriza como uma publicação de abrangência apenas local. Isto configuraria maior necessidade de recurso a estratégias de legitimação do que as utilizadas no DDC publicado na revista TLA, pois o reconhecimento do DDC ali publicado é menor pela academia.

Os próprios títulos dessas duas publicações sugerem diferenças entre elas. Além de "Trabalhos em Lingüística Aplicada" sugerir uma área mais específica do que "Letras", o uso da palavra "Trabalhos" tem efeitos de sentido de esforço, cuidado e esmero na realização de uma obra, visando ao desenvolvimento e ao aprimoramento da área na qual ela está inserida,

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Ademais, o fato de apresentar-se um campo de ação relativamente novo na área dos estudos da linguagem – a Lingüística Aplicada –, tem efeitos de sentido de atualidade, contemporaneidade. Portanto, materializa-se, na seleção vocabular, a ancoragem da representação de poder nos valores carismáticos do progresso e da atualidade, contemporaneidade. Já o título da revista "Letras" revela a ancoragem de sua representação de poder no valor tradicional que é atribuído à área de Letras. De nosso ponto de vista, as duas publicações científicas, em seus títulos, apresentam representações de poder que transitam em pólos opostos.

Estas são algumas das principais condições de produção do DDC acerca da educação a distância que interessam ao nosso trabalho, pois o constituem interdiscursivamente, como se pode notar, a seguir, nas análises de 5 excertos representativos de nosso corpus de pesquisa, no que diz respeito à sua materialidade linguística.

Denise Bértoli Braga e Lúcia Alves Costa assinam o artigo "O computador como instrumento e meio para o ensino/aprendizagem de línguas", publicado na revista TLA, no volume referente ao segundo semestre de 2000. As enunciadoras são, respectivamente, orientadora e orientanda do Programa de Pós-Graduação em Lingüista Aplicada - Mestrado, da UNICAMP. A segunda autora era, à época da publicação, professora da PUC-Campinas. Ambas as enunciadoras atuavam em ensino de língua inglesa à distância nas universidades em que trabalhavam, sendo responsáveis inclusive pela elaboração de material didático para os cursos que ministravam nesta modalidade, o que, no que se refere a ancoragem e delegação, configurava alto grau de legitimidade ao seu dizer, constituindo, portanto, efeitos de sobrepoder. Observe-se o seguinte excerto do texto das autoras:

Excerto 1 Discutindo o uso do computador como meio e ferramenta para o ensino a distância, Braga (2000) indica duas mudanças que podem ser bastante produtivas para a eficácia da aprendizagem nesse novo contexto pedagógico. Primeiro, o fato de o computador poder tornar viável o acesso a uma grande quantidade de material armazenado em um único suporte textual (como ocorre com os CDROMs) e também oferecer mecanismos de busca e navegação eficientes que permitem uma consulta rápida às informações estocadas. Segundo, a abertura de canais de comunicação que permitem a interação a distância de forma síncrona ou assíncrona (p. 64). (O computador

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como instrumento e meio para o ensino/aprendizagem de línguas.Denise Bértoli Braga e Lúcia Alves Costa, TLA, volume 36, julho / dezembro de 2000, p. 61-79.)

Cabe primeiramente observar que a representação de poder se ancora

no valor carismático, com recurso à argumentação por autoridade, que se materializa em "Costa (2000)", em que a heterogeneidade do discurso é mostrada. Interessante é o fato de tal argumentação trazer para o texto a autoridade de uma das autoras do texto, o que, de nosso ponto de vista, também tem efeito de sobrepoder.

Também podemos observar que, em "duas mudanças que podem ser bastante produtivas para a eficácia da aprendizagem", a ancoragem da representação de poder é encontrada no valor carismático do progresso e da performatividade, sendo operada por meio da modalização (podem ser bastante produtivas), que tem como efeito a eufemização, e também pela seleção vocabular de "mudanças" e "eficácia". O valor carismático também é encontrado em "nesse novo contexto pedagógico", mas, nesse caso, a ancoragem é operada por meio da fragmentação, que tem como efeito a diferenciação, isto é, a distinção do "novo contexto pedagógico" em relação ao contexto pedagógico tradicional.

No caso de "poder tornar viável o acesso a uma grande quantidade de material armazenado em um único suporte textual (como ocorre com os CDROMs)", a representação de poder está ancorada nos três valores: carismático, tradicional e lógico. No valor carismático da performatividade, a ancoragem é operada por várias estratégias: a modalização (poder tornar viável), a diferenciação (tornar), a universalização (acesso). No valor lógico da economia, ela é operada por meio do contraste (uma grande quantidade de material (...) um único suporte textual), que tem como efeito a diferenciação. Já no valor tradicional, ligado à ciência e ao jargão científico, a operação se dá através do tropo "armazenado" e do uso dos termos "suporte textual" e "CDROMs". Ainda no valor tradicional da cientificidade, podemos verificar a estratégia de expurgo da educação presencial, em favor do ensino à distância (mecanismos de busca e navegação eficientes (...) consulta rápida). Contudo, além do valor tradicional, também se verifica aí o valor carismático da inovação.

Veja-se o excerto que se segue do texto já referido:

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Excerto 2 Procuramos na presente discussão levantar alguns pontos sobre as vantagens e os problemas que precisam ser considerados quando contemplamos a inserção do computador e da Internet na aula de línguas em geral e de inglês como língua estrangeira em particular. Buscamos ilustrar em nossa discussão que o uso do computador como ferramenta de ensino pode contribuir para uma maior autonomia do professor em relação ao livro didático, pois não só facilita a construção de material pedagógico, como também permite acesso a uma fonte ilimitada de materiais atualmente disponíveis em rede. No entanto, o acesso a essas possibilidades demanda que o professor esteja familiarizado com as normas inerentes ao letramento eletrônico e que tenha desenvolvido as habilidades necessárias para produção e recepção de textos dentro deste novo suporte textual e contexto de comunicação (p. 76) (O computador como instrumento e meio para o ensino/aprendizagem de línguas", Denise Bértoli Braga e Lúcia Alves Costa, TLA, volume 36, julho / dezembro de 2000, p. 61-79.)

Nesse excerto, verificamos a ancoragem da representação de poder no

valor carismático da isenção combinado ao valor tradicional da cientificidade, operada pelas seguintes estratégias: modalização, que tem como efeito a eufemização ("precisam ser considerados" em vez de "devem ser considerados"); fragmentação/diferenciação (as vantagens e os problemas (...)) e nominalização (a inserção do computador e da Internet (...)). De acordo com Thompson (1995, p. 88), a nominalização, bem como outros recursos gramaticais e sintáticos como, por exemplo, a passivização, "apagam os atores e a ação e tendem a representar processos como coisas ou acontecimentos que ocorrem na ausência de um sujeito que produza essas coisas". Este recurso empresta ainda maior poder ao DDC acerca da educação a distância, pois operam efeitos de sentido de objetividade e naturalidade.

A representação está ancorada, também, nos valores carismáticos da inovação (novo suporte textual e contexto de comunicação) e da autonomia. A operação acontece por meio da estratégia de fragmentação, que tem como efeito o expurgo do material didático tradicional, efeito esse provocado especialmente pela estrutura "não só (...) como também (...)" e pelo uso de "facilita" e de "fonte ilimitada de materiais".

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Ao final do excerto, há novamente uma ancoragem no valor lógico, no sentido de que o letramento eletrônico é regido por normas, as quais o professor precisa conhecer. Observa-se que uma das estratégias empregadas nesse caso é a eufemização ("demanda" em vez de "exige"), cujo efeito é, possivelmente, a preservação da face do professor, visto que o verbo "demandar" possui um sentido menos autoritário e menos veemente que o verbo "exigir".

Para contrastar temporalmente com o texto examinado trazemos o texto, publicado em 2007 na revista TLA, intitulado "Leitura e escrita via Internet: formação de professores nas áreas de alfabetização e linguagem", cujos enunciadores - Fernanda Freire, Marilda Cavalcanti, Ângela Kleiman e Sírio Possenti - são todos professores do Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da UNICAMP e pesquisadores com larga experiência. Sua competência é reconhecida tanto nacional quanto internacionalmente, o que, legitima o seu dizer. O fato de quatro reconhecidos pesquisadores assinarem o artigo tem efeitos de sentido de sobrepoder, pois sua legitimação se faz tanto intra como interdiscursivamente.

Voltemos nossa atenção para o dizer dos pesquisadores:

Excerto 3 A escolha pelo CEFIEL desse ambiente de ensino à distância se assenta em dois fatores principais: (i) a afinidade teórica existente entre a concepção que norteia o desenvolvimento do ambiente, por um lado, e aquela que orienta as ações de formação do CEFIEL, por outro; (ii) a qualidade do TelEduc, atestada pela ABED (Associação Brasileira de Educação à Distância) e pela Embratel (Empresa Brasileira de Telecomunicações), bem como pela própria Universidade Estadual de Campinas que adotou o ambiente para apoio ao ensino presencial de Graduação, por meio do Projeto Ensino Aberto. ("Leitura e escrita via Internet: formação de professores nas áreas de alfabetização e linguagem", Fernanda Freire, Marilda Cavalcanti, Ângela Kleiman e Sírio Possenti,, TLA, volume 46, número 1, janeiro / junho de 2007, p. 93-111).

Observa-se, nesse excerto, a ancoragem da representação de poder nos

valores tradicionais da cientificidade (afinidade teórica) e no valor carismático da certificação de qualidade por instituições de reconhecido prestígio nacional. Com isso, pretende-se conferir credibilidade ao

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ambiente TelEduc, justificando-se, assim, sua escolha por parte do CEFIEL. A fim de reforçar esse efeito, os acrônimos ABED e Embratel são seguidos de seus respectivos significados. Em vez do acrônimo UNICAMP, foi utilizado "Universidade Estadual de Campinas", seguido de uma oração subordinada adjetiva explicativa, a qual enfatiza ainda mais o efeito de credibilidade do TelEduc.

Excerto 4 Os professores-cursistas da primeira edição dos cursos do CEFIEL, assim como muitas outras pessoas, têm uma idéia pré-concebida de que cursos à distância são "mais fáceis" do que cursos presenciais, embora este não fosse um curso totalmente à distância, uma vez que cerca de 1/3 de sua carga horária foi desenvolvida presencialmente (...). Alguns professores-cursistas, por exemplo, mencionaram que estavam simultaneamente envolvidos em dois outros cursos além daquele oferecido pelo CEFIEL. Com o início dos cursos tais idéias precisaram ser revistas, tão logo os participantes perceberam a necessidade de disciplina e de tempo de dedicação (p. 101-102). ("Leitura e escrita via Internet: formação de professores nas áreas de alfabetização e linguagem", Fernanda Freire, Marilda Cavalcanti, Ângela Kleiman e Sírio Possenti,, TLA, volume 46, número 1, janeiro / junho de 2007, p. 93-111.)

Inicialmente, podemos observar que a representação de poder

encontra-se ancorada no valor lógico, sendo operada por meio da unificação, que tem como efeito a padronização (Os professores-cursistas (...), assim como muitas outras pessoas, têm uma idéia pré-concebida (...)). Para Thompson (1995, p. 86), na padronização, formas simbólicas são adaptadas a um referencial padrão, que é proposto como um fundamento partilhado e aceitável de troca simbólica. No excerto analisado, nota-se que esse referencial padrão aparece de forma indefinida (muitas outras pessoas). Outro fato importante a ser observado é que, devido à interligação dos professores- cursistas com essas "muitas outras pessoas" numa identidade coletiva, o tempo verbal em que o verbo "ter" aparece é o presente omnitemporal, o qual é utilizado para enunciar fatos que se pretendem como verdades eternas.

Estes recursos de ancoragem permitem ao DDC acerca da educação a distância interditar discursos de resistência, creditando à educação a distância requisitos reconhecidamente tradicionais como a disciplina e o

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tempo de dedicação, para contrapor-se à sua aparente facilidade. Assim, o fácil - a educação à distância - é reescrito como o difícil. Assim, a academia representa a educação a distância, pois, se fácil, não caberia legitimá-la, e, mesmo, defendê-la, como os autores o fazem.

O último excerto cuja análise apresentamos tem como enunciadora a Professora Maria Helena Pereira Dias, da Faculdade de Educação da PUC-Campinas. Intitulado "Escrita e tecnologia", foi publicado na Revista "Letras", em 2004. Há de se observar que, dos artigos científicos acerca de educação a distância publicados nas revistas que foram nosso objeto de estudo, este é o único que não foi enunciado por um lingüista, o que poderia configurar o recurso a representações de poder diferenciadas. Entretanto, não é o que se observa. Vejamos o excerto:

Excerto 5 O processamento eletrônico de texto, segundo Landow, representa a mudança mais importante na tecnologia da informação desde o desenvolvimento do livro impresso. Carrega a promessa ou a ameaça de produzir mudanças em nossa cultura tão radicais como aquelas produzidas pelos tipos móveis de Gutenberg (LANDOW, 1995, p. 32). ("Escrita e tecnologia". Maria Helena Pereira Dias, Letras, volume 23, número 2, julho/dezembro de 2004, p. 83-90.)

Nesse excerto, a ancoragem da representação de poder se encontra no

valor carismático do progresso e da performatividade, operada por meio da fragmentação, que tem como efeito a diferenciação entre o texto eletrônico e o livro impresso (a mudança mais importante na tecnologia da informação desde o desenvolvimento do livro impresso). Entretanto, a ancoragem é encontrada também no valor tradicional da cientificidade, operada por meio da citação (paráfrase) de um autor (segundo Landow), que tem como efeito a legitimação. Há ainda outra ancoragem no valor carismático da performatividade (Carrega a promessa ou a ameaça (...)), operada por meio da dissimulação, que tem como efeito a eufemização (o "ou" significa, na verdade, "e").

Assim, observamos que a ancoragem da representação de poder não é diferente nos DDCs produzidos por lingüistas e não-lingüistas, pois o recurso à heterogeneidade mostrada é procedimento de legitimação obrigatório na academia.

De outra parte, constatamos que há uma certa homogeneização no DDC acerca da educação a distância, não se notando diferença no período

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observado (1998-2008) nos discursos analisados quanto aos demais procedimentos de ancoragem. Isto porque o DDC acerca da educação a distância ancora a representação de poder especialmente nos valores carismáticos do progresso, da performatividade, da inovação, da universalização, da autonomia, da isenção, da autoridade, fazendo recurso a estratégias de (a) modalização com efeitos de sentido de eufemização; (b) fragmentação com efeitos de sentido de diferenciação e expurgo do outro; de nominalização, com efeitos de sentido de objetividade e naturalidade; (d) de dissimulação com efeito de sentido de eufemização. Também há ancoragem, porém em menor medida, em valores lógicos, operada, principalmente pelo uso da estratégia de unificação que tem como efeito de sentido a padronização.

Considerações finais

Em suma, no tocante às representações de poder encontradas no DDC

acerca de educação a distância há de se apontar que, ancorando-se, preferencialmente, em valores carismáticos, operam efeitos de sentido de legitimação extremamente eficazes. Tais efeitos de legitimação produzem verdades que constituem a educação a distância positivamente como progressista, performativa, inovadora, universalizante, isenta, autorizada.

Lembramos que a representação opera como um sistema de significação. Isto é, nela se encontram relacionados um significado (conceito, idéia) e um significante (uma marca verbal ou não verbal material), sendo tal relacionamento resultado de uma construção social. Decorre disto que os enunciados analisados foram encarados como processos dinâmicos, indeterminados e abertos de construção de sentidos eidentidades, que constituem e são constituídos por relações de poder. Entretanto, não se pode deixar de apontar que se observou certa homogeneização de sentidos nos discursos analisados.

Tal fato nos remete ao que faz notar Gualandi (2007, p. 76-77) acerca de considerações de Lyotard. Diz o autor que, segundo Lyotard, o discurso contemporâneo contribui para o fortalecimento de relações de poder que são configuradas pelo capitalismo sistêmico e imperialista. A proliferação de discursos ancorados em valores carismáticos coaduna-se com o valor de mercado que ações educacionais a distância vêm assumindo.

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Tendo isto em mente, entendemos ser imprescindível dar continuidade a análises de DDCs acerca de educação à distância, de modo a possibilitar a constituição de discursos em que se encontrem marcas de resistência às representações de poder homogêneas que, por sua vez, homogeneízam os sujeitos e seus discursos e configuram um projeto hegemônico em que a positividade da educação a distância é a única verdade possível, ou seja, é necessária a produção de discursos que venham a se contrapor ao exercício de poder que se materializa nestes discursos de dominação. Referências AUTHIER-REVUZ, J. Palavras Incertas: As não-coincidências do dizer. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998.

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