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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 14 – Práticas escritas na escola: letramento e representação. 128 Formatada: Cor do tipo de letra: Azul Formatada: Direita: 0,63 cm SEMPRE [i], ÀS VEZES <E>, ÀS VEZES <I>: HETEROGENEIDADE NA ESCRITA DAS VOGAIS Marilia Costa REIS 1 RESUMO Neste artigo trataremos a respeito da convenção ortografia e das hipóteses dos escreventes a respeito desta convenção que resultem em erros ortográficos, partindo da concepção da heterogeneidade da escrita, proposta por Corrêa (2004). A heterogeneidade da escrita pode ser verificada também na ortografia, quando observados os princípios utilizados para o seu estabelecimento: os fonético-fonológicos e os etimológicos. Esta heterogeneidade no estabelecimento de uma convenção ortográfica gera uma não-biunivocidade entre grafema e fonema, de modo que um grafema pode representar vários fonemas ou um mesmo fonema pode ser representado por vários grafemas ou dígrafos. Esta não-biunivocidade pode ser observada também com relação à escrita das vogais. Neste trabalho, estarão em destaque os contextos em que as vogais /e/ e /i/ têm a mesma realização fonética [i], mas que são ortograficamente escritos com <E> ou com <I>. Os dados analisados neste trabalho confirmam que os contextos não-biunívocos tendem a gerar dúvidas aos escreventes e apontam para o fato de que as hipóteses dos escreventes acerca da grafia dessas vogais, ainda que, algumas vezes, resultem em erros em relação à ortografia, demonstram não um desconhecimento da convenção, mas podem, contrariamente, demonstrar seu conhecimento e sua apropriação. PALAVRAS-CHAVE: escrita, ortografia, vogais, letramento, Ensino Fundamental Introdução Neste artigo, apresentamos os resultados de uma pesquisa (em andamento) que tem por objetivo contribuir com os estudos de escrita sobre a relação entre oralidade e letramento. Essa relação, conforme propõe Corrêa (2004), não deve ser vista como 1 Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos. Rua Cristóvão Colombo, 2365, 15.054-000, São José do Rio Preto-SP, Brasil, [email protected] / Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, Proc. 2008/07638-2).

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 14 – Práticas escritas na escola: letramento e representação.

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SEMPRE [i], ÀS VEZES <E>, ÀS VEZES <I>: HETEROGENEIDADE NA ESCRITA DAS VOGAIS

Marilia Costa REIS1

RESUMO

Neste artigo trataremos a respeito da convenção ortografia e das hipóteses dos escreventes a respeito desta convenção que resultem em erros ortográficos, partindo da concepção da heterogeneidade da escrita, proposta por Corrêa (2004). A heterogeneidade da escrita pode ser verificada também na ortografia, quando observados os princípios utilizados para o seu estabelecimento: os fonético-fonológicos e os etimológicos. Esta heterogeneidade no estabelecimento de uma convenção ortográfica gera uma não-biunivocidade entre grafema e fonema, de modo que um grafema pode representar vários fonemas ou um mesmo fonema pode ser representado por vários grafemas ou dígrafos. Esta não-biunivocidade pode ser observada também com relação à escrita das vogais. Neste trabalho, estarão em destaque os contextos em que as vogais /e/ e /i/ têm a mesma realização fonética [i], mas que são ortograficamente escritos com <E> ou com <I>. Os dados analisados neste trabalho confirmam que os contextos não-biunívocos tendem a gerar dúvidas aos escreventes e apontam para o fato de que as hipóteses dos escreventes acerca da grafia dessas vogais, ainda que, algumas vezes, resultem em erros em relação à ortografia, demonstram não um desconhecimento da convenção, mas podem, contrariamente, demonstrar seu conhecimento e sua apropriação. PALAVRAS-CHAVE: escrita, ortografia, vogais, letramento, Ensino Fundamental

Introdução

Neste artigo, apresentamos os resultados de uma pesquisa (em andamento) que

tem por objetivo contribuir com os estudos de escrita sobre a relação entre oralidade e

letramento. Essa relação, conforme propõe Corrêa (2004), não deve ser vista como

1 Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos. Rua Cristóvão Colombo, 2365, 15.054-000, São José do Rio Preto-SP, Brasil, [email protected] / Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, Proc. 2008/07638-2).

Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 14 – Práticas escritas na escola: letramento e representação.

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influência de uma oralidade na escrita, mas como uma relação que constitui

heterogeneamente a escrita, com contribuições dos imaginários sociais construídos no

interior das práticas em que estão inseridas a oralidade e a escrita. De modo particular,

partindo da concepção de heterogeneidade da escrita de Corrêa (2004), trataremos neste

trabalho a respeito da convenção ortográfica e das hipóteses a respeito desta convenção

que possivelmente estejam motivando os escreventes a fazerem os chamados erros

ortográficos, quando as vogais /e, i/ – em certos contextos fonológicos – têm a mesma

realização fonética [i], mas devem ser grafadas com a letra <E> ou com a letra <I>, em

posição pretônica na palavra.

A heterogeneidade da ortografia

A ortografia nasce, segundo Cagliari (1999), de uma espécie de escrita fonética,

que “consiste em representar os sons da fala, exatamente como eles foram

pronunciados” (p. 29). Segundo o autor, a escrita alfabética surgiu como um princípio

acrofônico, em que as letras recebiam os nomes de acordo com o som que

representavam na escrita. No entanto, “os usuários deste sistema esbarraram no

problema da ‘variação lingüística’”, tornando-se necessária a criação de uma ortografia,

ou seja, uma única forma de grafar as palavras de uma língua. (CAGLIARI, 1999, p.29,

30). Apesar de cada palavra ter apenas uma grafia, na fala continuou a ter variação, não

havendo, portanto, uma representação direta da fala pela escrita. De acordo com Scliar-

Cabral (2003), na ortografia,

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“uma ou mais letras (os grafemas) representam fonemas e alguns de

seus alofones (variantes de um mesmo fonema), que resultam nas

unidades que distinguem o significado na escrita (a segunda

articulação). Deve-se notar, contudo, que um outro princípio diferente

também ocorre: o etimológico”. (p. 38) (grifo nosso)

Constata-se, portanto, que a ortografia manteve seu princípio fonético-

fonológico, verificado na invenção da escrita; no entanto, foi acrescentado a ele também

o etimológico. O princípio etimológico, diferentemente do princípio fonético-

fonológico, não estabelece relação com a fala, mas com relações de forma e sentido

entre as línguas, tornando as motivações para a escrita de uma dada língua

independentes das características dos enunciados falados.

Neste sentido, partindo da concepção de heterogeneidade da escrita, alertamos,

junto com Corrêa (2004), para uma “heterogeneidade que, sendo constitutiva da própria

língua, afeta também a noção de norma e, em particular, de norma escrita culta”. (p.

XXIV). Segundo o autor, a heterogeneidade da escrita se dá por contribuições de

registros escritos de um imaginário da escrita, que circula por três eixos: 1) a escrita em

sua suposta gênese, como correspondente ao oral; 2) a escrita como código escrito

institucionalizado, como modo autônomo de representação da oralidade e 3) a escrita

em relação ao já falado/escrito, o diálogo que a escrita mantém com textos já lidos ou

ouvidos.

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A heterogeneidade da ortografia se dá, portanto, desde a sua constituição porque

são de duas naturezas os princípios que a orientam. Cada princípio pode ser considerado

como registro de um dos eixos do imaginário social da escrita. No caso do princípio

fonético-fonológico, que prevê uma relação mais direta com a oralidade, ao estabelecer

relação entre grafema e fonema, podemos identificar registros do primeiro eixo de

circulação imaginária da escrita. No caso do princípio etimológico, por sua não relação

com a oralidade e por se tratar de registro característico da escrita, podemos identificar

registros do segundo eixo, na medida em que há uma escolha (convencionalizada) em se

registrar certas características da história da língua e não outras.

Esta heterogeneidade no estabelecimento de uma convenção ortográfica gera,

portanto, uma não-biunivocidade entre grafema e fonema, de modo que, como apontado

por Scliar-Cabral (2003), um grafema pode representar vários fonemas ou um mesmo

fonema pode ser representado por vários grafemas ou dígrafos. Esta não-biunivocidade

pode ser observada, por exemplo, com relação à escrita das vogais. Os grafemas <I> e

<U> recebem seus nomes a partir dos sons que representam: as vogais altas /i, u/,

respectivamente. Os <E> e <O>, também recebem seus nomes a partir dos sons que

geralmente representam na escrita, no entanto, para essas letras há duas possibilidades

de representação na sílaba tônica: as vogais médias-altas /e, o/ (como em ‘dedo’ e

‘doce’), e as vogais médias-baixas /E, O/ (como em ‘reta’ e ‘roda’). De acordo com a

região do Brasil, seus falantes as denominarão por uma ou por outra possibilidade de

representação, de modo geral, na região sul, terão seus nomes a partir das vogais

médias-altas e, na região norte, como vogais médias-baixas. Esta não-biunicidade se

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acentua quando a sílaba em que ocorrerem for pretônica, de modo que os grafemas <E>

e <O> também poderão representar as vogais altas [i, u], respectivamente.

O fato lingüístico relevante a ser observado é que as vogais médias-altas /e, o/,

em posição pretônica, podem ter diferentes realizações fonéticas, de acordo com a

variedade falada em diferentes regiões do Brasil. A realização fonética dessas vogais

pode ser semelhante a uma das vogais altas [i, u], respectivamente, caracterizando o

fenômeno de alçamento, verificado em praticamente todas as regiões brasileiras2, ou

como uma das vogais média-baixas [E, O], respectivamente, caracterizando o fenômeno

abaixamento,3 verificado no norte e nordeste, principalmente. Neste trabalho, interessa-

nos tecer considerações sobre a relação entre os enunciados falados e escritos levando-

se em conta especificamente a vogal média-alta /e/, em posição pretônica, por ser nesta

posição passível de sofrer o processo fonológico de alçamento, um fenômeno observado

na variedade dos escreventes que produziram os textos que tomamos como corpus de

nossa investigação.

De um modo geral, o fenômeno de alçamento tem sido estudado por sua

aplicação variável, uma vez que as vogais médias-altas em posição pretônica, de uma

palavra, ora são alçadas, ora não são alçadas. Desse fato, resulta que, nesse contexto de

sílaba pretônica em variedades faladas no sul do Brasil, o grafema <E>, por exemplo,

poderá representar ora a vogal [e] e ora a vogal [i], caracterizando, portanto, esta não-

biunivocidade entre grafemas e fonemas. O fenômeno de alçamento, no entanto, em

2 O alçamento foi verificado por Viegas (1987), em Minas Gerais; Silva (1991), na Bahia; Bisol (1981) e Schwindt (2002), no Rio Grande do Sul;e Silveira (2008) e Carmo (2009), em São José do Rio Preto (SP), região na qual residem os escreventes dos textos de nossa pesquisa. 3 O abaixamento foi verificado, por exemplo, por Célia (2004), na região de Nova Venécia (ES).

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alguns contextos, pode ter aplicação praticamente categórica4, tendo a vogal /e/ a

realização fonética quase sempre semelhante a [i]. Nestes contextos, o grafema <E>

representará predominantemente a vogal [i], som que, pelo princípio acrofônico, seria

representado por <I>. A ortografia, no entanto, mantém a escrita em <E> para essas

palavras. Neste sentido, podemos dizer que o segundo eixo de circulação imaginária da

escrita, observado na ortografia, se dá também nessa escolha pelo grafema <E> para

esses contextos, verificando-se, assim, o caráter autônomo da escrita em relação à fala.

Considerando os contextos fonológicos indicados das palavras abaixo listadas e

o fato de haver a aplicação praticamente categórica do fenômeno alçamento da vogal

média /e/, em posição pretônica, vislumbra-se que as letras <E> e <I> representarão o

mesmo som na escrita.

Contexto A – Grafemas <E> ou <I> seguidos de um dos grafemas <N, M, S, X> em

sílabas pretônicas.

Exemplos: ‘empolgada’, ‘inteiro’. Realização: ‘[i]mpolgada’, ‘[i]nteiro’.

Contexto B – Grafemas <E> ou <I> nas sílabas pretônicas ‘des’ ou ‘dis’.

Exemplos: ‘desligado’ e ‘distante’. Realização: ‘d[i]sligado’ e ‘d[i]stante’.

Contexto C – Grafemas <E> ou <I> em posição de hiato.5

Exemplos: ‘beata’ e ‘criado’. Realização: ‘b[i]ata’ e ‘cr[i]ado’.

4 São três os contextos: 1) vogal /e/ seguida de /N/ ou /S/, constatado por Naro (1973); 2) vogal /e/ ou /o/ em contexto de hiato, segundo Bisol (1981), foi notado desde o século XVI, por Fernão de Oliveira (1536); 3) prefixo ‘des-’ (ou palavras com a mesma estrutura), verificado por Cavinato, Renck e Morette (2008). Na variedade de São José do Rio Preto (SP), exemplos desses três contextos são, respectivamente: (1) ‘[i]mpresa’, ‘[i]scada’; (2) ‘t[i]atro’, ‘m[u]eda’; (3) ‘d[i]semprego’, ‘d[i]sanimado’, ‘d[i]scobriu’. 5 No caso do contexto C, consideramos somente quando as vogais <E> ou <I> fossem seguidas de uma vogal tônica, para que fosse levados em conta os mesmos contextos dos exemplos ‘cad[i]ado’e ‘t[u]alha’ apresentados por Bisol (1981).

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Partimos da hipótese, em nossa pesquisa, que esses contextos tendem a gerar

dúvidas ortográficas para os escreventes, uma vez que, apesar de, na fala, a realização

fonética ser a mesma, na escrita, a convenção ortográfica seleciona ora <E>, ora <I>.

Abaixo, apresenta-se uma figura da escrita da palavra ‘enfermeira’ (palavra com o

contexto A anteriormente definido), em que se observam os grafemas <E> e <I>, além

de rasura, para representar um mesmo som [i], que é grafado com <E>. Trata-se do

rascunho utilizado pelo escrevente para chegar ao texto final, quando grafa essa palavra

segundo as convenções ortográficas: ‘enfermeira’.

Figura 1

O objetivo deste artigo será, portanto, a partir da consideração da

heterogeneidade da ortografia, observar as hipóteses de estudantes de quinta série do

Ensino Fundamental6 a respeito de como se dão as relações entre enunciados falados e

escritos. Esta observação será feita por meio dos empregos não-convencionais de <E> e

<I>, nos contextos específicos acima definidos.

6O corpus utilizado neste artigo é formado por 682 textos, escritos por 121 sujeitos, alunos de cinco quintas séries de uma escola estadual de São José do Rio Preto. Todos os textos foram produzidos em sala de aula, em atividades realizadas de Abril a Novembro de 2008; dirigidas por integrantes do projeto de extensão universitária (PROEX/UNESP), coordenado pelas Profas Dras. Luciani Tenani e Sanderléia Longhin-Tomasi (IBILCE/UNESP).

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Os dados

No item anterior, apresentamos três contextos em que as letras <E> e <I> quase

sempre corresponderão ao mesmo som na fala. Selecionamos, portanto, para análise,

todas as palavras do corpus com aqueles contextos. Foram excluídos de nossos dados

palavras que, apesar de haver os contextos selecionados, se encontravam em três

situações, a saber:

1) Palavras que podem ser classificadas como um nome próprio.

Esse conjunto de palavras foi excluído porque os nomes próprios não têm uma

forma ortográfica, havendo a possibilidade de mais de uma grafia;

2) Palavras cujas grafias não favoreceram a identificação de uma dada vogal

como sendo <E> ou <I>.

A dificuldade em atribuir uma categorização gráfica é um aspecto importante a

ser observado, uma vez que se tratam de textos manuscritos. Neste trabalho, a

opção por excluí-los visa a garantir uma certa homogeneidade dos dados que

compõem o corpus desta reflexão. No entanto, não desconsideremos esses dados

para uma possível análise qualitativa futuramente.

3) Palavras que pertencem a classes gramaticais distintas de substantivos,

adjetivos e verbos.

Palavras classificadas como conjunções, preposições, numerais, etc., foram

excluídas do corpus deste trabalho por terem comportamento fonético-

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fonológico distinto das demais classes de palavras, notadamente no que diz

respeito à aplicação de processos fonológicos.7

Com relação à grafia das vogais nos contextos selecionados, fizemos um

levantamento quantitativo com relação aos empregos convencionais e não-

convencionais dessas vogais de um modo geral e em cada contexto separadamente. Os

empregos não-convencionais são importantes para este trabalho, na medida em que

podem revelar certas hipóteses desses escreventes. Os empregos convencionais dos

grafemas <E> e <I>, por outro lado, podem nos indicar a “medida” da apropriação da

convenção por parte dos escreventes e a freqüência dessas palavras com esses contextos

na escrita. Além disso, é importante investigar, de modo particular, a relação entre os

empregos convencionais e os não-convencionais, por indicar quais os contextos de

maior dúvida e quais os contextos em que há maior apropriação da convenção por parte

dos escreventes.

Com relação aos dados em que a grafia dos escreventes não condiz com a

prevista pela convenção, foram inicialmente classificados, conforme propõe Cagliari

(1998), em duas categorias: (1) transcrição fonética – para escrita em <I> onde a

ortografia convencionou <E>; (2) hipercorreção – para escrita em <E> onde a

ortografia convencionou <I>. Enfatizamos que nos valemos dessa denominação como

um recurso metodológico na execução de nossa investigação, pois não a assumimos em

nosso trabalho. Partimos da hipótese que o escrevente quando opta ora por <I> e ora por

<E> não se baseia, respectivamente, nos seus conhecimentos a respeito da sua fala e da

7 Uma discussão a respeito dessa distinção entre classes de palavras, do ponto de vista fonológico, pode ser encontrada em Lee (1995).

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sua escrita, mas utiliza-se, nas duas opções, de todo o conhecimento que têm a respeito

das práticas sociais envolvendo essas modalidades. Entendemos, portanto, essas

escolhas, como registro dos imaginários sociais da escrita construídos no interior dessas

práticas.

Observando a escolha por <E> ou por <I>, de um modo geral, sem considerar se

esse emprego segue ou não a convenção ortográfica, obtivemos o seguinte gráfico:

A partir deste gráfico, podemos observar uma tendência com relação à escolha

por <E> nos contextos selecionados, embora, pelo princípio acrofônico, essa vogal

fosse escrita preferencialmente com <I>, nos contextos analisados. Esses primeiros

resultados gerais apontam para o fato de os escreventes saberem que “escrever não é

transcrever a fala”, ou seja, que a ortografia não é baseada somente no princípio

acrofônico, de modo que o nome de uma dada letra nem sempre fará referência ao som

por ela representado.

No que diz respeito à relação entre os erros e acertos, em relação à convenção

ortográfica, obtivemos os resultados apresentados na Tabela 1, onde se especifica o total

de ocorrências de palavras e, entre colchetes angulados, a letra que foi empregada

nessas ocorrências.

<i>24%

<e>76%

Figura 2 - Gráfico referente ao registro de cada vogal

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Tabela 1- Erros e acertos em todos os contextos

Ortografia <E> <I>

Erros 53 <I> 42 <E>

Acertos 1920 <E> 576 <I>

Erros/Total 2,68 % (53/1973) 6, 79 % (42/618)

Com relação às palavras cuja ortografia prevê o emprego de <E>, os alunos

erraram por transcrição fonética – empregando <I> para <E> – em um total de 2,68%

dos dados, enquanto que para as palavras em que a ortografia prevê <I>, os alunos

erraram por hipercorreção – empregando <E> para <I> – em um total de 6,79% dos

dados. Esses resultados mostram, primeiramente, que esses escreventes que estão, de

um modo geral, em seu quinto ano de escolarização, já apropriaram grande parte da

convenção para as vogais nos contextos selecionados. Além disso, as palavras com

ortografia em <I> parecem ser as que mais sugerem dificuldades para os escreventes, de

modo que, em nossos dados, foi encontrado um percentual maior de erros desses casos.

Outra importante consideração a ser feita com relação à Tabela 1, diz respeito ao

total de palavras ortograficamente escritas com <E> e com <I>. Na nossa análise, esse

número pode indicar a preferência da convenção na escrita das palavras mais

recorrentes, revelando uma preferência da ortografia pela escrita de <E>, em vez de <I>

nestes contextos. De um modo geral, podemos dizer que, nestes contextos, os erros dos

escreventes seguem essa tendência da convenção, de modo que os erros pela escrita de

<E>, quando previsto <I>, são maiores percentualmente.

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Cada caso é um caso

Como foi dito anteriormente, os três contextos selecionados se referem a

posições em que o sistema de escrita prevê duas possibilidades de escolha entre os

grafemas <E> ou <I>, mas que, na variedade falada pelos escreventes desses textos, há

praticamente uma única possibilidade, a pronúncia [i], devido à aplicação praticamente

categórica de alçamento de /e/ nesses contextos. No entanto, a análise separada de cada

contexto fonológico nos possibilitou observar certas características da convenção e dos

erros ortográficos, não possíveis de serem vistas com todos os contextos juntos.

Começando pelo contexto A, ou seja, quando <E> ou <I> é seguido de <N>,

<M>, <S> ou <X>, em uma sílaba pretônica, encontramos a mesma tendência

observada nos dados de um modo geral: um percentual maior de palavras grafadas com

<E> do que com <I>, como pode ser observado na Tabela 2, abaixo.

Tabela 2 - Erros e acertos para o contexto A

Ortografia <E> + <M, N, S, X> <I> + <M, N, S, X>

Erros 28 <I> 27 <E>

Acertos 1782 <E> 191 <I>

Erros/Total 1,54% (28/1810) 14,13% (27/218)

No mesmo sentido, vão os tipos de erros: um percentual maior de erros por

hipercorreção (14,13%) do que por transcrição fonética (1,54%). A análise desse

contexto corrobora a análise feita para os dados de um modo geral, na medida em que

os erros dos escreventes indiciam o conhecimento da convenção, preferindo, em suas

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escolhas, a grafia com <E> para a vogal da sílaba pretônica. Além do número alto de

ocorrências de palavras com sílaba pretônica cuja vogal é grafada com <E> (no total,

foram 1813 ocorrências), faz-se interessante observar, em um dos textos do corpus

(Figura 3, abaixo), o quanto esse contexto é recorrentemente grafado corretamente na

escrita dos alunos.

Figura 3

Como podemos constatar, há no texto acima seis palavras com o contexto ora

analisado. Essas ocorrências permitem observar duas tendências: a que os erros seguem

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em relação à norma; e a que o aluno segue em seu próprio texto. No texto acima, todas

as palavras com o contexto em análise – a saber: ‘está, enteira, encontrou, estava,

encontrou, estava’ – foram grafadas com <E> (tendência da norma e tendência do aluno

em grafar a vogal pretônica nesse contexto com <E>). No entanto, na palavra ‘enteira’,

a escolha por <E> resultou em um “erro ortográfico”. Nota-se que a realização fonética

dessa palavra sempre será ‘[i]nteira’. Portanto, a escolha por <E> não foi motivada na

realização fonética da vogal pretônica /i/. Constata-se, dessa forma, que os chamados

erros ortográficos não são motivados, exclusivamente, por uma tentativa dos

escreventes em se representar os enunciados falados pela escrita.

O segundo contexto considerado, o contexto B, se refere às palavras cuja sílaba

inicial pretônica é ‘des’ ou ‘dis’. Inicialmente, cabe observar que grande parte das

palavras escritas com ‘des’ em posição pretônica diz respeito às palavras constituídas

pelo prefixo ‘des-’, o que faz com que essa forma seja bastante recorrente. No texto

apresentado a seguir (Figura 4), verificam-se duas ocorrências dessa forma ‘des’:

‘desispero’ e ‘despistou’.

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Figura 4

Destaca-se do texto acima que o escrevente erra a grafia de uma das vogais da

palavra ‘desespero’, mas não a da vogal na forma ‘des’. Poderíamos dizer que o erro

deste aluno, na escrita de <I> para <E>, em ‘desispero’, se dá por transcrição fonética,

porém, se fosse por simples transcrição fonética, a seqüência ‘des’, nesta ocorrência,

também seria escrita com <I>, uma vez que a pronúncia é a mesma para as duas vogais

pretônicas: ‘d[i]s[i]spero’. No entanto, este dado aponta para o (re)conhecimento da

forma gráfica do prefixo ‘des’, dando indícios da apropriação, por parte do escrevente,

da preferência da convenção pela grafia em <E> para esse prefixo, embora haja uma

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tendência para sua realização fonética com a vogal [i]. Na tabela abaixo, dados

quantitativos para o contexto em discussão corroboram as hipóteses explicativas ora

esboçadas.

Tabela 3 - Erros e acertos para o contexto B

Ortografia “des” “dis”

Erros 12 <I> 07 <E>

Acertos 86 <E> 14 <I>

Erros/Total 12,24% (12/98) 33,33% (7/21)

Assim como o contexto anteriormente analisado, este contexto apresenta

resultados que seguem as tendências apresentadas para todos os contextos de um modo

geral: a) a tendência da ortografia em grafar tais contextos com <E>; b) a tendência em

haver mais erros, percentualmente, por hipercorreção (33,33%) que por transcrição

fonética (12,24%). Destaca-se que, para este contexto em relação ao anteriormente

tratado, o número e o percentual de erros foi ainda maior, tendo destaque o percentual

de erros do tipo hipercorreção com 33,33%, em relação ao total de palavras que

deveriam ser escritas com <I>.

Até este ponto, os resultados apresentados para cada contexto separadamente

mostram as tendências observadas de um modo geral. No entanto, o contexto C, isto é, o

contexto em que o hiato é objeto de estudo, apresenta os resultados distintos em relação

aos demais, conforme pode ser observado na Tabela 4, abaixo.

Tabela 4 - Erros e acertos para o contexto C

Ortografia <E> + V (hiato) <I> + V (hiato)

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Erros 12 <I> 8 <E>

Acertos 52 <E> 371 <I>

Erros/Total 18,75% (12/64) 2,11% (8/379)

Como pode ser observado na Tabela 4, no contexto em que há a vogal média /e/

ou a vogal alta /i/ em hiato, diferentemente dos outros dois contextos que consideramos,

predominam, tanto numericamente, quanto percentualmente, os erros do tipo

transcrição fonética (18,75%), ou seja, escrita de <I> para ortografia em <E>. Além

disso, há um percentual maior de palavras com ortografia em <I>, que em <E>, o que

também diferencia este contexto dos demais.

Miranda (2008) analisou esses mesmos tipos erros ortográficos em escrita inicial

de crianças. Segundo a autora, este tipo de erro relacionado à escolha entre <E> e <I>

teria relação com uma tendência da língua em desfazer o hiato, tornando-o um ditongo.

Essa tendência da fonologia da língua parece ter sido apropriada não apenas pelos

escreventes em suas hipóteses, mas também pela ortografia, de modo que há um número

bem maior de vogais em contexto de hiato escritas ortograficamente com <I>, que com

<E>, conforme verificado por meio dos nossos resultados.

Com relação a esse contexto, observamos que, embora seja distinto dos demais

com relação à preferência, tanto dos erros, quanto da ortografia, pela grafia de <I>, há

evidências que também comprovam as interpretações apresentadas para os demais

contextos: a de que as hipóteses dos escreventes mostram o conhecimento da convenção

ortográfica, na media em que seguem a tendência observada na ortografia.

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Enfim...

A análise e discussão de nossos dados nos levaram a observar não uma relação

entre as modalidades oral e escrita (evidenciadas por meio dos erros na grafia das vogais

pretônicas), mas como se dá de maneira constitutiva essa relação, evidenciando-se,

assim, a heterogeneidade constitutiva da escrita, tanto no que diz respeito às hipóteses

dos escreventes, quanto no que diz respeito à própria convenção ortográfica. No

presente trabalho, observamos apenas a escrita das vogais /e/ e /i/, em posição de sílaba

pretônica em três contextos fonológicos bastante semelhantes, cujas realizações

fonéticas tendem a ser praticamente idênticas (vogal alta [i]). A ortografia prevê, para a

vogal /i/, nos contextos investigados, o grafema <I> e para a vogal /e/, nesses mesmos

contextos, o grafema <E>.

Com relação à ortografia, retomamos a posição segundo a qual há dois

princípios, conforme Scliar (2003): o princípio fonético-fonológico e o princípio

etimológico. Com relação ao princípio fonético-fonológico, mostramos que está

relacionado com o princípio acrofônico, que caracteriza o sistema de escrita alfabético,

segundo o qual cada letra recebe o nome relativo ao som que representa (CAGLIARI,

1999). Neste sentido, nos contextos selecionados, tem-se dois cenários: (i) a vogal é /i/,

a pronúncia é [i] e a grafia também é <I>, a ortografia parece seguir o princípio

acrofônico; (ii) a vogal é /e/, a pronúncia é quase sempre [i] e a grafia é <E>, a

ortografia deixa de representar a fala. Neste sentido, a ortografia se distancia das

características dos enunciados orais/falados, escolhendo as formas de representação por

outros princípios, como o etimológico, por exemplo.

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Com relação aos imaginários sociais da escrita, propostos por Corrêa (2004),

podemos observar o primeiro eixo, quando a ortografia grafa seguindo o princípio

acrofônico e o segundo eixo, quando grafa seguindo outros princípios, como o

etimológico, por exemplo. Esses princípios são, portanto, registros dos imaginários

sociais da escrita, que contribuem não apenas para a heterogeneidade da escrita, como

também da ortografia, de modo particular.

Os dados analisados neste trabalho embasam uma interpretação de que os

escreventes dos textos considerados demonstram ter conhecimento do sistema

ortográfico, na medida em que os erros observados evidenciam hipóteses ancoradas nas

mesmas tendências das convenções ortográficas em grafar as vogais pretônicas. De um

modo geral, a ortografia tende à escolha de <E> na grafia destes contextos, com

exceção do contexto de hiato, em que é demonstrada uma preferência por grafar <I>.

No mesmo sentido vão as hipóteses desses escreventes, que tendem a escolher <E>, na

grafia dos contextos de um modo geral, e <I> na grafia da vogal em contexto de hiato.

Concluímos a presente reflexão, ressaltando o fato de as hipóteses dos

escreventes, ainda que, algumas vezes, resultem em erros em relação à ortografia,

demonstram não um desconhecimento da convenção, mas, contrariamente, seu

conhecimento e sua apropriação. Os registros não-convencionais de algumas palavras

seguem as características da convenção, indiciando, portanto, um processo de apreensão

do sistema ortográfico por parte desses escreventes, que nem sempre escrevem segundo

essas mesmas convenções ortográficas.

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Anexo

Abaixo quadro com todas ocorrências de erros ortográficos relativos à escrita das vogais

nos contextos analisados, encontrados no corpus. Entre colchetes angulados, a grafia

escolhida pelo escrevente.

Quadro 1 - Ocorrências de erros nos contextos A, B e C Contexto A

<E, I> + <M, N, S, X> Contexto B

<E, I> + V (hiato) Contexto C

‘des’ ou ‘dis’ <I> <E> <I> <E> <I> <E>

imbora imbora imbora imbora

enclusive encriveu engles

engrivel,

discansa(r) discobriu dismaiar

diperdador

descubriu desculsão

desfarçadas desparado

baliado paciando pasiamos passiando

veagem veagem veajar

anceoso

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imbora imbora imprego impresas impresas incinou

incontrar indendeou (entendeu) indereso

infrentarei insina insinar insinar insine intendi intendia interrado intreter

isperiência isquisito istadia istatua istátua istoria

istrangeiro

entereçada enterior

enclusive enteiro

enventando emploro

emportantes enfernizar enferno enteiro

enteressante enterrogação

enternete emporte (importe) enclusive

enteira enterecei envisíveis encrivel encrivel

enformatica hestória(?)

enfelizmente

disculpas dispedindo dispertar discupa disfile disfile

dispidir discobri

desfarçado desfarçados

desparar

sortiado sortiado

sortiaram paciar

sortiado sortiados pentiado

tiatro

deante anceoso veajar aveão