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ERIBERTO JOSÉ LESSA DE MOURA AS RELAÇÕES ENTRE LAZER, FUTEBOL E GÊNERO FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS DEZEMBRO 2003 1

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  • ERIBERTO JOS LESSA DE MOURA

    AS RELAES ENTRE LAZER, FUTEBOL E GNERO

    FACULDADE DE EDUCAO FSICA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    DEZEMBRO 2003

    1

  • ERIBERTO JOS LESSA DE MOURA

    AS RELAES ENTRE LAZER, FUTEBOL E GNERO

    Este exemplar corresponde redao final da dissertao de Mestrado defendida por Eriberto Jos Lessa de Moura e aprovada pela comisso julgadora em 09 de Dezembro de 2003.

    Orienta ora: Prof'. Dr". Helosa Helena Baldy dos Reis

    FACULDADE DE EDUCAO FSICA

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    2003

    iii

  • 1 CI'D

    FICHA CAT ALOGRFICA BIBLIOTECA FEF - UNICAMP

    Moura, Eriberto Jos Lessa de M865r As relaes entre lazer, futebol e gnero I Eriberto Jos Lessa

    de Moura. -Campinas, SP: [s.n], 2003.

    Orientador: Heloisa Helena Baldy dos Reis Dissertao (Mestrado) - Faculdade de Educao Fsica,

    Universidade Estadual de Campinas.

    1. Futebol. 2. Lazer. 3. Gnero. 4. Mulheres. I. Reis, Heloisa Helena Baldy dos. 11. Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educao Fsica. 111. Ttulo.

  • Autor: Eriberto Jos Lessa de Moura

    Ttulo: As relaes entre Lazer, Futebol e Gnero

    BAI"'CA EXAMINADORA:

    PROFESSORA DR. HELOSA HELENA BALDY DOS REIS (ORIENTADORA) INSTITUIO: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS-UNICAMP

    FACULDADE DE EDUCAO FSICA

    PROFESSORA DR. SURA YA CRISTINA DARIDO (TITULAR) INSTITUIO: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA-UNESP

    PROFESSORA DR. HELOSA TURINI BRUHNS (TITULAR) INSTITUIO: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS-UNICAMP

    FACULDADE DE EDUCAO FSICA

    Campinas, 09 de Dezembro de 2003

    v

  • AGRADECIMENTOS

    A todos os funcionrios da FEF-UNICAMP em especial: Seu Pedrinho, Sinval, Marli, Tnia, Beth, Mrcia, Clber, Cesinha e Geraldo e Geraldinho.

    Ao pessoal da Informtica capitaneado pelo Felipe: Ricardinho, Diego, e todos os estagirios que passaram por este departamento.

    Aos funcionrios do arquivo Edgar Leuenroth-IFCH-UNICAMP: Emerson, lzabel, Roberta, Slvia, Joana, Cleunice, Elaine, Maria Helena, Silvana, Marineide, Conceio, Emma e todos os estagirios e bolsistas que me auxiliaram neste projeto.

    Aos professores da FEF-lJNICAMP, em especial: Jocimar, Lino, Joozinho Freire e Srgio Stucci.

    Ao CNPq pela resumida mais importante bolsa.

    VIl

  • HOMENAGENS

    Aos meus pas, Maria Odar e Euclides, nordestinos e batalhadores, apaixonados pela vida e pelos seus filhos e netos.

    Ao meu irmo Vado, meu eterno dolo, dentro e fora das "quatro linhas". A minha mana Sissi, por ter ensinado constantemente para mim como tentar

    entender s mulheres. A minha irm Cely, primeira mulher que vi jogar, grande lutadora e amiga. Ao meu mano G, companheiro de violo, de escola, de futebol, mentor deste texto

    e grande figura intelectual, que me ensinou que tudo que for "humano/a" faz sentido.

    A minha sobrinha Joanna, surfista, Skatista, adoradora da boa msica e jogadora de futebol.

    A minha outra sobrinha Bernadete, mesmo "distante" de mim o meu carinho e admirao.

    A meu pequenino e caula sobrinho Caio, nascido pouco tempo, que os encantos do futebol e da arte brasileira e universal lhe iluminem sempre.

    A Minha querida Lcia Helena pelo companheirismo e que sempre acreditou em mim mesmo sendo do seu jeito, de sua maneira.

    Aos meus cunhados e cunhadas Arthur, Clber, E!is e Gaby, meu respeito e carinho por me reconhecerem como amigo e por serem carinhosos com meus manos e manas.

    Aos meus tios, tias, primos e primas da famlia Lessa e Moura. Ao meu primo-irmo Joozinho Moura, companheiro das "peladas imortas" no

    campinho de nosso barro na Gruta de Lourdes em nossa querida Macei. A Jos Humberto, que junto com seu filho Jnior Beltro e A meu Tio Eraldo Lessa,

    por serem os primeiros a me levarem ao Trapicho (estdio Rei Pel) se tomando os grandes responsveis por eu ter definitivamente me apaixonado pelos encantos da "divina esfrica".

    A Manelito Miranda e a famlia Jurema, em especial: K.leber, Dulinha, Nena, Lica (im memoriam) e Hayton, companheiros de futebol, conhecedores dos segredos e mistrios do futebol.

    A minha querida amiga de todas as horas, Rosely. A minha querida "mezona" de Campinas, Leninha, por sempre acreditar que tudo

    pode ser alcanado. A minha orientadora Helosa, minha eterna gratido. A memria do professor Casemiro dos Reis Filho, pelos seus conselhos e

    comentrios sobre a vida cotidiana e o universo acadmico brasileiro. A Dona Cacilda pelo seu acolhimento e carinho. Ao Professor da FEF-UFAL, Verter Paes Cavalcanti incentivador de minha vinda

    para Campinas e primeiro incentivado r de meus estudos para a ps-graduao. Ao professor da FEF-UF AL, Antnio Passos, por ser meu primeiro mestre que me

    mostrou o caminho de uma Educao Fsica diferente que enxerga as diferenas e as respeita.

    IX

  • Ao professor Maurcio Roberto e a Professora Iracema pela amizade e pacincia ao me auxiliarem na elaborao definitiva deste projeto.

    Ao professor do IFCH-lJNICAMP Fernando Loureno o idealizador deste projeto, minha gratido e amizade.

    Ao meu amigo Corinthiano Mrio Martins, pelas interminveis conversas sobre o universo do futebol e pelas as orientaes precisas para esta pesquisa.

    Aos meus Amigos da Ps-graduao do IFCH e FEF, em especial: Danei! Romero, Ronaldo Bahia, Paulo Denisar, Juliana, Gabriela, Thelma Polato, Cntia, Marquinho Betne, Fabano, Andria Silva, Ana Carolina, dentre outros.

    A Dulce e ao Gonzaga, funcionrios da FEF-UNICAMP, pela pacincia ao ensinarem os segredos da pesquisa numa Biblioteca.

    Ao Beroth e a Ftima, que tiveram pacincia nas horas de sufoco quando o computador "emperrava".

    Aos meus eternos amigos Albert Queiroz e Cicinho companheiros da FEF-UF AL e de grandes momentos de minha vida universitria.

    Aos que fizeram o PANELA FUTEBOL CLUBE, equipe itinerante de futebol da FEF-UF ALem especial: Falcon e Carlos Jorge, entre outros.

    A minha turma 86.2 da FEF-UF AL, em especial: Beth Vlei, Beth DCE, Waltinho, Manoel Silva, Adriana Valena, Marilene, Marilzete, Eliane Sapoti, Beth Branca e Patadaio.

    Ao meu amigo Ricardo Oliveira, que me ensnou com seu exemplo, como superar os meus limites.

    A memria do amigo Jorge H ermida, torcedor do Nacional de Montivideo, que me ensnou que os grandes jogadores so eternos.

    Ao meu amigo tricolor Carioca Marquinhos Guimares, acima de tudo meu maior amigo.

    Ao meu tambm importante amigo botafoguense Marquinho Zabumba, por sempre acreditar em mim.

    Aos meus mais novos amigos Lo, Lucas Barata, Dudu e Charles, amantes do futebol como eu, e admiradores das mulheres, como eu.

    Ao Jornalista Luiz Sugimoto, divulgador de nosso trabalho perante a grande mdia universitria, nacional e nternacional.

    Ao meu amigo conterrneo Seu Lus da Xerox do IFCH-UNCAMP, nordestno como eu e um apaixonado pela vida e pelos alunos e alunas.

    X!

  • Dedico este trabalho a memria de meu eterno e insupervel amigo Valdir Accioly dos Santos

    Xlll

  • RESUMO

    Esta pesquisa tem por objetivo identificar, discutir e compreender as possveis articulaes entre Lazer, Gnero e Futebol. Para tanto realizamos um breve percurso histrico social do futebol feminino no Brasil, analisamos como se processa a construo dos papis sociais colocados para a mulher relacionando-a com o espao de excluso/incluso no universo futebolstico nacional e norte-americano. Esta trajetria procurou manter-se atrelada ao desenvolvimento da formao social da mulher brasileira, observando os diferentes contextos, grupos e classes sociais que as mesmas pertencem. Utilizamos alguns autores da historiografia como Rago, Hobsbawn e de alguns autores que versam sobre as relaes de gnero como Louro, Scott e Mouro, dentre outros. Realizamos um estudo de caso da extinta Equipe de Futebol Feminino do Guarani F.C., tendo sua existncia ocorrida nos anos de 1983 a 1985, na cidade de Campinas, SP. Atravs de entrevistas concedidas por ex-atletas dessa equipe, observamos que as mesmas indicaram a sua prtica no interior do futebol estava atrelada aos contedos do lazer. Finalizamos esta pesquisa defendendo a idia de que o futebol um espao tambm das mulheres. Este "pedao" se defme com o direito de sua participao. Aceitamos a participao conjunta entre ambos os sexos, mas tambm entendemos que s particularidades da diferena deva articular um caminho para o respeito da convivncia, e o respeito de urna identidade possvel do gnero humano.

    XV

  • ABSTRACT

    This research aims at identizying, discussing and understanding the possible articulations between leisure, gender and football. For this purpose we have made a short tour through

    the social history of female football in Brazil, we've analyzed how the social roles put to

    women are built relating this to the inclusion /exclusion space on the Brazilia and North-

    American uni verse o f football. This route has tried to keep attached to the development o f the social formation o f the Brazilian wornan, observing the different contexts, groups and

    social classes to which they belong. We have used some authors from the historiography

    such as Rago and Hobsbawn as well as authors which deal with relations of gender like Louro, Scott and Mouro among others. We have done a case-study ofthe extinct fema!e

    football team o f the Guarani Football Club which existed from 1983 to 1985, in the city o f

    Campinas in Sao Paulo. Through interviews given by the ex-athletes of this team, we've observed that they have indicated that their practice inside the football was somehow

    attached to contents ofleisure. We end this research defending the idea that the football is

    also a space of women. This "bit" is defmed with the right of their participation. We've accepted the joint participation o f both sexes, but we also understand that the peculiarities

    of the differences must articulate a path for the respect of living together, and the respect for a possible identity o f the human gender.

    XVll

  • SUMRIO

    INTRODUO .................................................................................................................... !

    CAPTULO 1 ........................................................................................................................ 5

    INTRODU..\0 AO CENRIO DA PRTICA DO FUTEBOL FEMININO NAS

    CIDADES DE SO PAULO E RIO DE JANEIR0 ............................................................ 5

    1.1. O "pontap Inicial" no Brasil e no Mundo e a questo feminina .................................. 8

    1.2. Na "Pauta de reivindicaes", o futebol fica de fora ................................................... .l2

    1.3. Higienizao da mulher. ............................................................................................... 14

    1.4. Bel!e-poque: da Casa para a Rua ... Da Rua para a Arquibancada ............................. 18

    1.5. As prticas fsico-esportivas do gnero feminino e os hbitos esportivos nos anos 20 na

    cidade de So Paulo ............................................................................................................. 23

    CAPTULO H ..................................................................................................................... .28

    O FUTEBOL COMO "ESPORTE FEMININO" E A EUGENIA NO ESTADO NOV0 .. 28

    2.1 O Futebol Feminino "no banco dos rus"(!): Mdicos e Jornalistas !. ......................... 30

    2.2. Um "corretivo" para as mulheres: normatizao e proibio de seu futeboL ............ 40

    2.3. Distintas classes, esportes, comportamentos e conquistas ........................................... 48

    2.4. Da "Questo da Mulher" ao fim da proibio .............................................................. 53

    2.5. s vsperas do 3 milnio!. .......................................................................................... 60

    CAPTULO IH .................................................................................................................... 63

    O FUTEBOL COMO UM CONTEDO DO LAZER: A EXTINTA EQlJIPE DE

    FUTEBOL FEMININO DO GUARANI F.C ..................................................................... 63

    3.1. O Espao do Lazer na cidade de Campinas na dcada de 80 ....................................... 64

    3.2. O Inicio do futebol feminino na terra de "Carlos Gomes" ........................................... 66

    xix

  • 3.3. O futebol feminino no Bugre ........................................................................................ 67

    CAPTULO IV .................................................................................................................... 74

    O FUTEBOL COMO REA RESERVADA MASCULINA. ............................................ 74

    4.1. O Corpo na esfera Pblica e Privada ............................................................................ 77

    4.2. O Futebol como rea Exclusiva Masculina ................................................................. 79

    4.3. Bola para os meninos! Boneca para as meninas!. ........................................................ 80

    4.4. Futebol jogo de mulher! Na terra de Jordan! ............................................................. 83

    CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................. 88

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................ 91

    ANEXO ............................................................................................................................... 95

    XX!

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1. Fonte Arquivo do Estado de So Paulo ................................................................. 17

    Figura 2. Fonte AEL. ............................................................................................................ 32

    Figura 3. Fonte AEL. ............................................................................................................ 33

    Figura 4. Fonte AEL. ............................................................................................................ 36

    Figura 5. Fonte AEL. ............................................................................................................ 39

    Figura 6. Fonte Folha de So Paulo ...................................................................................... 53

    Figura 7. Fonte Revista Placar .............................................................................................. 55

    Figura 8. Fonte Revista Placar .............................................................................................. 56

    Figura 9. Fonte Revista Placar .............................................................................................. 59

    Figurai O.Fonte Revista Placar .............................................................................................. 59

    Figurall.Fonte acervo particular .......................................................................................... 69

    XXlll

  • INTRODUO

    1

  • O fenmeno futebol em nosso pas vem, atualmente, sendo estudado por diferentes reas do

    conhecimento. Houve um considervel aumento de pesquisas nos ltimos anos, publicaes em

    artigos, dissertaes e teses que, de alguma maneira, tomam, como foco principal ou secundrio,

    este fenmeno. No campo da Histria, da Antropologia e da prpria Educao Fsica, o futebol

    ganha, portanto, um relativo status como possibilidade de fonte para o entendimento sobre as

    prticas cotidianas da sociedade brasileira em seus diversos campos, setores e classes.

    Ao nos inserirmos na rea de Estudos do Lazer, percebemos que a mesma j despertou

    alguns olhares importantes. O futebol como contedo do lazer j vem sendo estudado, recebendo

    mltiplos olhares, tendo, como exemplo disso, sua relao junto aos grupos sociais que o

    vivenciam de maneira contemplativa e/ou como atividade dando significados diferentes do seu

    referencial mais conhecido, que sua prtica esportiva profissional.

    Nesta leitura preliminar, percebemos a necessidade de relacionar nossas experincias com o

    futebol ou como praticantes e espectadores ou como professores de Educao Fsica, com a teoria

    do lazer, compreendida por ns, como um campo importante de anlise (mas no o nico), que

    traria algumas perspectivas de respostas para nossas indagaes. E urna delas, como tantas outras,

    o fato do porqu o futebol em nosso pas, sendo urna das formas mais importantes de expresso

    da cultura brasileira, permanece C

  • Janeiro. O motivo de nossa escolha deve-se ao entendimento de que o futebol, nessas duas

    metrpoles, acompanhou aceleradamente as mudanas ocorridas em toda a sociedade brasileira,

    seja econmica, poltica, cultural e esportiva. Utilizamos, como fonte de pesquisa, os peridicos

    com publicao diria, quinzenal e mensal. A coleta de dados foi realizada nos respectivos locais:

    Arquivo Nacional e Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro); Arquivo Edgar Leuenroth e Centro de

    Memria (UNICAMP-Campinas); e Arquivo do Estado de So Paulo.

    No Captulo seguinte, enfocamos a presena da mulber nos subrbios, praticando o futebol

    no ano de 1940. Utilizamos, como fonte de pesquisa, a cidade do Rio de Janeiro. O motivo para

    nossa escolha baseou-se no forte enfoque dado pela grande imprensa carioca desta poca, que

    percebeu o futebol feminino como um "novo" acontecimento esportivo da cidade. A prtica do

    futebol pelas mulheres suburbanas tornou-se foco de discusso, envolvendo personagens da

    imprensa, populares, intelectuais, professores e mdicos. Defender ou atacar o futebol feminino era

    o principal objetivo. A Eugenia utilizada, nesta discusso, como ponto de referncia para proibir

    tal prtica O Governo Vargas, atravs da criao de urna legislao esportiva nacional, operou

    para que isso ocorresse. Tambm apresentamos, neste tpico, que o futebol feminino, nas duas

    dcadas posteriores, retraiu-se, aparecendo somente ao final dos anos de 1970, quando ocorria no

    Brasil um tirnido processo de "abertura" poltica. Finalizamos o captulo com uma anlise de

    algumas reportagens publicadas na revista Placar (perodo de 1978 a 1983) sobre o futebol

    feminino e o seu desenvolvimento na dcada de I 990.

    No Captulo III, abordamos um grupo especfico de mulheres que praticaram o futebol

    como lazer. Para tanto, realizamos um estudo de caso junto a algumas jogadoras da extinta equipe

    de futebol feminino do Guarani Futebol Clube, da cidade de Campinas, em atividade no perodo de

    1983-!985, para identificar como surgiu, como foi vivenciado e de que maneira se extinguiu esse

    grupo, que via, na prtica do futebol, uma atividade de lazer, alm de uma possibilidade de auto-

    afirmao societal. Utilizamos, como fonte de pesquisa, a anlise de peridicos e de entrevistas

    com algumas ex-jogadoras de tal associao. A coleta de dados dos peridicos foi realizada no

    Centro de Documentao- Cedoc (Rede Anhangera de Comunicao- Campinas).

    No quarto e ltimo captulo, abordamos a problemtica acerca da vinculao do futebol

    figura masculina. Tambm neste captulo, comparamos semelhanas e diferenas entre as

    sociedades, utilizando, como exemplo, a brasileira e a norte-americana, que nos auxiliam na

    3

  • compreenso das dificuldades enfrentadas pelas mulheres, no que se refere ao aspecto do futebol

    como possibilidade de expresso do componente ldico e do lazer. Com esse propsito, fizemos

    algumas incurses na teoria, que versa sobre Gnero, entendendo que esta delega possibilidades de

    um alcance crtico-explicativo do problema.

    Por fim, apresentamos uma ltima parte, com as consideraes finais sobre o tema,

    percebendo a necessidade de continuao da pesquisa O objeto de estudo, por ns apresentado,

    necessita de outras abordagens e perspectivas que, certamente, iro aumentar o leque de

    entendimento sobre o mesmo. Desta maneira, tal objeto poder ter uma possibilidade de insero

    definitiva no universo acadmico.

    4

  • CAPTULO I

    INTRODUO AO CENRIO DA PRTICA DO FUTEBOL FEMININO NAS CIDADES DE SO PAULO E RIO DE JANEIRO

    5

  • Neste Captulo, procuramos desvendar os primeros sinais da participao da mulher

    brasilera no futebol enquanto manifestao cultural, realizando um breve percurso histrico-social

    desta prtica. Para delimitarmos este estudo, necessrio, preliminarmente, enfatizar que nosso

    objetivo no se coaduna com uma forma de pesquisa que se preocupa em descobrr ou garrnpar

    datas e fatos histricos isolados de um contexto mais amplo. Portanto no nos interessa determinar

    (como se isso fosse possvel!) quando e como foi o "prrnero jogo" de futebol feminino ou qual

    foi o grupo, associao, que teria dado o "primero ponta-p" numa bola em nosso pas. Este

    tratamento feito por ns no exclusivo do futebol feminino, pois a prpria histria do futebol

    masculino no Brasil tambm no poderia ser anunciada, como fonte de pesquisa, atravs do

    entendimento, ainda hegemnico, de que o "Pai", o "fundador" do futebol em nosso pas fosse

    Charles Miller. Conforme Perera (2000, p. 23):

    Ao eleger como marcos iniciais do futebol no Brasil figuras como Charles Miller e Oscar Cox, memoralistas e historiadores participaram do processo de criao de uma memria do futebol brasileiro que, no fundo, nada tinha de original: vendo nos seus primeiros tempos um perfil aristocrtico e elitista, fizeram da histria particular do jogo o reflexo de uma histria mais ampla criada para os primeiros tempos da jovem Repblica, que lhe atribui uma marca oligrquica e excludente. Histrias como a de Cox, Muller e outros jovens endinheirados que, como eles, deram os primeiros impulsos ao futebol no pas, foram parte importante da difuso do esporte; elas no bastam, porm, para explicar toda a histria do jogo em seus primeiros anos no BrasiL

    Esta a mesma opinio de Santos Neto (2002, p. 32-33) ao afirmar que:

    V rias hipteses podem explicar a origem do mito segundo o qual Miller seria, alm de grande craque e divulgador pioneiro, o 'pai' do futebol entre ns. A primeira diz respeito insero dos jogos entre os clubes de elite nos jornais paulistas. [ ... ] Alm disso, deve-se ter em conta a fora cultural desses grupos socialmente dominantes [ ... ] bem como o fato de os primeiros arquivos sistematizados serem provenientes dos clubes e das ligas que os reuniam. [ ... ]Tudo isto, porm, no pode criar uma muralha documental que encubra o fato de que o futebol j era praticado, embora com outro esprito e menor organizao, pelos membros das elites nos colgios brasileiros [ ... ].

    Mas isso no impede que realizemos, num primero momento, uma investigao,

    utilizando fatos histricos ocorridos no Sculo XX, que evidenciaram, cada um com suas

    particularidades, a participao das mulheres na prtica do futebol em nosso pas.

    Para isso, utilizamos momentos distintos da prtica do futebol pelas mulheres nos anos de

    6

  • 1913 e 1921. Lembramos que, mesmo havendo distino de tais momentos, percebemos que os

    mesmos estabelecem relaes e nexos com o processo mais amplo, no caso, o cenrio societal.

    Para a construo deste cenrio histrico, necessrio salientarmos nosso entendimento

    sobre o passado, presente e futuro, nossa temporalidade, ou seja, o que pressupomos ser a

    historicidade. Segundo Rago (199511996: 42):

    [ ... ] o passado necessrio para garantir a construo de nossa identidade, fundando nossas tradies, enraizando-as no tempo e no espao, definindo nossas razes. Uma referncia histrica, uma garantia psicolgica e um porto seguro emocional, a partir da construo de uma linha de continuidade, que nos localizaria no tempo.

    A reflexo proposta, portanto, pressupe uma concepo concreta sobre a histria da

    formao social da mulher brasileira, dialogando com o desenvolvimento do futebol no Brasil.

    importante sublinhar que a reflexo sobre o futebol feminino pressupe, naturahnente, a recusa de

    uma percepo tradicional do devir histrico. Entendemos que, alm dos espaos j consagrados

    nos estudos histricos, que priorizam os aspectos das lutas sociais, do mundo da produo etc., h,

    tambm, possibilidade de desenvolvermos nossas respostas, atravs do espao ldico e esportivo.

    Rago (1995/1996: 18) afirma que "[ ... ] se importante perceber a presena feminina nos

    acontecimentos histricos do tipo das greves e lutas sociais, tambm o na prpria produo

    discursiva, literria e cientfica, instituinte do imaginrio social".

    Temos a mesma opino de Dunning e Maguirre (1997: 323), quando afirmam que"[ ... ] o

    esporte, diferentemente do que se compreende dele, um dos lugares-chaves para o estudo dessas

    questes". No entanto, lembramos que todas as esferas que regem a vida societal tomam-se

    importantes como espao de entendimento de universalidade deste campo.

    A mulher na Histria do Brasil, nas palavras da historiadora Mary Del Piore, tem surgido

    recorrentemente s luz de esteretipos, dando-nos enfadada iluso de imobilidade. Tais

    esteretipos buscam negar o papel histrico da mulher na constituio da nossa sociedade.

    Escrever uma Histria do Futebol Feminino no Brasil perceber que deve ser descartada a idia de

    que a "questo da mulher" apenas interessa exclusivamente a elas mesmas. Por esta compreenso,

    usamos as palavras de Hobsbawn (1987: 123), nas quais este coloca que:

    As mulheres, frequentemente, salientaram que os historiadores do sexo masculino no passado, inclusive marxistas, ignoraram, grosseiramente, a metade feminina da raa humana. A crtica justa: este escritor aceita que se aplique a sua prpria

    7

  • obra. Entretanto, se essa deficincia deve ser corrigida, no poder ser simplesmente pelo desenvolvimento de um ramo especializado da histria que lide exclusivamente com as mulheres, porque na sociedade humana os dois sexos so inseparveis.

    1.1. O "pontap Inicial" no Brasil e no Mundo e a questo feminina

    A prtica do futebol pelas mulheres, no Brasil, algo ainda a ser desvendado. As

    dificuldades de referncia, acerca do futebol feminino brasileiro perpassa por toda a produo

    escrita em nosso pas. Atravs de um levantamento bibliogrfico e documental, foram revelados

    trs momentos que evidenciaram a participao da mulher no universo futebolstico. No entanto,

    antes de demonstrar de que maneira este processo se desenvolveu, mergulharemos no cenrio

    futebolstico alm de nossas fronteiras.

    No contexto mundial, tomamos, como exemplo, o surgimento das primeiras partidas do

    Football Association1 em 1863 na Inglaterra, onde aparece, posteriormente a esta data, os

    primeiros jogos de mulheres. Mesmo levantando esta referncia, torna-se difici! afirmar quando

    aconteceu a primeira partida. Quando tomamos como base os dados da Fdration lnternatonale

    de Football Association (FIFA), a data que surge de 1880, quando, na Inglaterra, Nett!e

    Honeyball organizou uma partida. No entanto, surge, no livro de Bill Murray (2000), a afirmao

    de que em 1895, em Crouch End (Londres), Nettie (e no Nettle, como aparece nos arquivos da

    FIFA) Honeyball organizou um jogo entre mulheres do Norte e do Sul da Inglaterra, que atraiu

    oito mil espectadores. Outra data, que aparece como da primeira partida oficial, 1898, quando

    ocorre o jogo entre as Selees da Inglaterra e da Esccia. Segundo Murray (2000), a febre

    futebolstica tomou conta do pblico feminino e, com isso, j em 1902, houve a primeira retaliao

    da Federao Amadora Inglesa (FA), banindo tal futebol. Na Frana, os primeiro clubes femininos

    surgiram por volta de 1910.

    No Brasil, temos, como data da primeira partida de futebol feminino, o ano de 1921,

    ocorrida na capital paulista no dia 28 de junho, na qual se defrontaram senhoritas Tremembenses e

    Cantareirenses? No entanto, esta data contradiz as informaes de Jos Sebastio Witter, apud

    1 Com este termo, funda-se, em 1863, na Inglaterra, a prtica do futebol tal qual conhecemos at os dias de hoje, diferenciando-se de outra vertente solidificada com o termo de "Rugby". 2 GUARANI Futebol Feminino. Disponvel acesso: 20 mar 2002.

    8

  • Franzini (2000: 51):"[ ... ] no Brasil, o primeiro jogo de futebol feminino de que se tem notcia foi

    disputado em 1913, entre times dos bairros da Cantareira e do Trememb, de So Paulo".

    Pesquisando nos peridicos da poca, os dados acima no se revelaram totalmente

    corretos. No jornal Correio Paulistano encontramos evidncias para afirmarmos que o dado de

    Witter, com relao ao ano, estava certo, mas quanto aos protagonistas, no. O texto do referido

    peridico, do dia 25 de janeiro de 1913, evidenciava tal aspecto da seguinte forma:

    Realiza-se hoje, no Velodromo Paulista, uma attrahente festa sportiva, em beneficio do hospital das crianas da Cruz Vermelha. F oi organizado um interessante macht de foot-ball, no qual os rapazes do Sport Club Americano preparam magnficas surpresas. Esse match ser jogado entre um team de senhoritas e outro de rapazes. A iniciativa coube senhorita Catharina Bertoni, que infelizmente no poder tomar parte no grande 'match', visto ter sido victima de um accidente, num dos ultimas trainings.3 (Correio Paulistano, 25/0111913)

    No mesmo dia 25, outro jornal paulista, o Dirio Popular, publicou uma nota sobre tal

    JOgo em sua primeira pgina. Entretanto, o contedo da notcia era diferente, comparado ao

    primeiro peridico aludido. Seria, na verdade, uma partida de futebol com a participao exclusiva

    das mulheres? Assim era o comentrio deste jornal:

    ( ... ) Em beneficio do Hospital das crianas da Cruz Vermelha, ser jogado amanhan, no Veldromo, um 'match' de 'foot-ball' phantasia entre um 'team' de senhoritas contra o Sport Club Americano. Como um 'match' em beneficio de uma instituio to til, de se esperar que no haver nenhum Jogar vago no Veldromo.

    Outro peridico da cidade, A Gazeta, trazia um comentrio parecido sobre a "surpresa" que

    tal jogo iria causar no pblico. Este jornal publicou, ainda, na referida matria, a escalao dos

    respectivos teams, relacionando o nome de senhoritas da alta sociedade e dos jogadores do Sport

    Club Americano:

    ( ... )Senhoritas: Mie. Moraes Barros; Mie. J. D. Lima- Mie. Z. Cardozo; Mie. O. Engler- Mle. C. Bertoni- Mie. J. Alves; Mie. H. Malta- Mie. A. Month- Mie. E. Mendes e Mle. J. Castro. Rapazes Hugo; Cyro- Menezes; Bicudo- Bertoni-Eurico; Irineu- Alencar- Mazni- Eurico(?)- J. Pedro. (A Gazeta, 25/01/1913)

    Como vimos acima, o jornal relacionou os nomes das senhoritas com os respectivos

    9

  • sobrenomes, prtica cotidiana da poca para se referir s mulheres da alta sociedade. Parece que tal

    dvida sobre a participao das mulheres desaparece quando olhamos para uma extensa

    reportagem do jornal O Commercio de So Paulo, publicada no domingo, dia 27. Este peridico

    at argumentava que o evento seria o "primeiro jogo" de futebol com a participao de mulheres,

    como relata a matria abaixo:

    FOOT -BALL. Match interessante - Senhoritas versus Rapazes - em beneficio da Cruz Vermelha. Pela primeira vez ser disputado nesta capital, e talvez nunca o tenha sido em parte alguma, um interessante match de foot-ball no qual tomaro parte: de um lado um team de rapazes e de outro lado (aqui que est a novidade ... ) um team de senhoras. Nada mais seria necessrio accrescentar, si no acreditssemos com segurana que muitos, sino todos, que nos lerem, no nos daro credito.- ora, diro, senhoritas jogando foot-bal!, entre as charges violentas e as corridas rpidas, os pouls e tantas 'cositas ms' que muito 'pomer' no escora ... No, no pde ser; o feminino planta que no floresce num campo bem adubado, quanto mais num 'ground' duo, amassado pelos '44 bico largo' dos foot-ballers ... No ... blague ... -No tal, obtemperaremos: no match a que nos referimos, e que se realizar hoje no Veldromo Paulista, tomar parte um team composto 'exclusivamente' de senhoras em carne e osso ( ... ) Para maior recomendao da festa sportiva que se realizar hoje no Velodromo, si no bastasse o facto de ser ella verdadeiramente uma 'premiere' para todos ns, est em que o seu producto reverter em beneficio dos cofres da Cruz Vermelha( ... ) O fim caridoso que tem o torneio sportivo que hoje assistiremos ( ... ) Ser bastante para levar s suas archibancadas suma multido selecta e numerosa( ... ).

    Na continuao da matria acima, saa os nomes das senhoritas Graciema, Lili, Laura,

    Heloisa, Zuleika etc. A reportagem apresentava as caracteristicas de cada "jogadora", elogiando a

    "performance" e competncia das mesmas. Destemidas e seguras de si, boa passadora de bola,

    muito gil, firmeza etc. eram atributos s jogadoras.

    Parece, porm, que estes atributos, de uma maneira geral, no eram dirigidos para a mulher

    da elite. A elas, cabia este momentneo tratamento, que poderia levar-nos a crer numa conquista

    feminina definitiva dos espaos na esfera pblica. Mas a sua funo social, esperada pela

    sociedade, era a que estava ligada beneficncia, Esse mesmo jornal, acima citado, publicou um

    artigo assinado por Erasmo Braga, intitulado "Aspectos do Feminismo". Nele, desemolava-se uma

    discusso acerca das mudanas ocorridas na sociedade e do papel social, que a mulher deveria

    exercer, apontando o feminismo como um movimento digno, mas que deveria estar voltado para

    ' Em O Estado de So Paulo, 26 de janeiro do mesmo ano, aparece: "O laureado primeiro team>> do Americano no vai medir foras esta tarde com os seus valorosos antagonistas dos campeonatos; vai degladear-se com um grupo de senhoritas".

    lO

  • um determinado tipo de reivindicao. Este texto enfatizava a iniciativa do jogo acima relatado em

    benefcio da Cruz Vermelha. O articulista colocava que:

    No se deve desconhecer que as profisses liberais tm exercido grande attraco sobre o esprito de nossas patricias. A muitas, no que lhe for parcimoniosa a fortuna, compensou a educao com dar-lhes meios de subsistncia, posio social e s vezes marido vadio( ... ) Agora dm mulher campo vasto para a sua aco benefica ( ... )Como essa da Cruz Vermelha( ... ) h um feminismo salutar e legitimo, ao qual no se pde mesmo negar o direito de fiscalizar e influir no organismo social ( ... )4 (O Commerco de So Paulo, 02/02/1913)

    Como vimos, ao se referirem a outra classe social, como que vivia do trabalho, as

    denominaes e funes eram distintas. Tanto no grupo social da elite quanto no meio operrio,

    havia diferenas de atitude e divergncias acerca do entendimento de qual papel e funo social a

    mulher deveria exercer. No campo esportivo, todavia, a participao feminina limitava-se, na

    primeira dcada do sculo XX no Brasil, praticamente s atividades exercidas pela mulher da elite:

    jogar tnis, cavalgar, nadar etc ..

    Nesses anos I O, vrios grupos de mulheres organizaram-se em nosso pas, acompanhando

    o movimento operrio. O grupo dos Libertrios (Anarquistas) era um bom exemplo disso:

    mulheres participavam das lutas pela diminuio da jornada de trabalho para 48 horas semanais;

    pelo direito licena-maternidade, para no exercerem o trabalho noturno, juntamente com as

    crianas; pela formao de creches para seus filhos etc. Viam, corno fator de libertao, a

    necessidade de urna instruo escolar generalista. T ambrn combatiam o Militarismo e a Igreja,

    participando do movimento Anti-clerical.

    Nesses anos, o voto feminino ganhou espao. Em 1917, o Deputado Mauricio de Lacerda

    encaminhou um projeto Cmara dos Deputados, em prol do sufrgio feminino. Em 1919, sob a

    liderana de Bertha Lutz, fundada a Liga pela emancipao Intelectual da Mulher, sendo

    substituda, em 1922, pela Federao Brasileira pelo Progresso Feminino.

    bom nos atentarmos novamente para a existncia de diferenas entre os movimentos de

    mulheres nessa poca. Os grupos da elite, que tambm ansiavam por mudanas, concentravam

    seus esforos em direo legalizao do voto feminino em nosso pais, tendo a Legio da Mulher

    4 Tambm nesse mesmo peridico, eram publicados artigos a respeito do movimento feminista na Europa e na Amrica do Norte. As "sufragistas" recebiam uma considervel ateno deste jornal. Como exemplo, ver manchete na primeira pgina do dia 29 de janeiro de 1913.

    11

  • Brasileira como rgo representativo. As mulheres operrias, principalmente o grupo ligado s

    idias libertrias como vimos acima, entendiam que esta luta era justa, mas seu alcance era

    limitado e favoreceria apenas um grupo especfico de mulheres da sociedade. A luta poltica era

    importante, porm consistia apenas num ponto do universo das mudanas que deveriam ocorrer.

    Portanto, para estas, a transformao verdadeira era a que indicasse uma emancipao total e plena

    da lgica societal que as escravizava. Maria Lacerda de Moura criticava a postura das mulheres,

    que viam o sufrgio feminino como nico obstculo para a libertao das mulheres frente ao

    "domnio" de uma sociedade regida pelo patriarcalismo. Discordando desses grupos, ela dizia: "De

    que vale a igualdade de direitos juridicos e politicos para meia duzia de privilegiadas, tiradas da

    propria casta dominante, si a maioria feminina continua vegetando na misria da escravido

    milenar?[ ... ]." (Moura, 1922: 12)

    Ela, porm, no parava por a, fazendo outras consideraes sobre o assunto. No que tange

    prtica feita pelas mulheres da elite na esfera da sade etc., Moura, em sua anlise, comentava

    que a mulher no deveria abraar a idia da caridade e da filantropia, prtica comum da burguesia,

    no intuito de "amenizar" o sofrimento das camadas populares, achando que, com isso, os

    problemas enfrentados pelos "desfavorecidos" seriam resolvidos em um futuro prximo. Ela tecia

    os seguintes comentrios:

    O trabalho feminino tem sido, at aqui, todo dispersivo: a prpria beneficncia tem esse caracter. E a soluo no a caridade humilhante ou a filantropia, mesma a mais altrusta, e sim a evoluo, o desenvolvimento do cerebro feminino para a compreenso do papel individual mulher destinado na multiplicao do bem-estar( ... ) A equidade est acima da caridade. (Moura, 1922: 14)

    1.2. Na "Pauta de reivindicaes", o futebol fica de fora

    A participao das mulheres no meio futebolstico no era bem visto at mesmo pelas

    prprias militantes feministas. O seu movimento no Brasil estava preocupado com outras questes,

    como o voto feminino, os direitos iguais no trabalho, a licena maternidade e a reduo da jornada

    de trabalho. No "I Congresso Feminino Brasileiro", realizado no ano de 1922, no encontramos

    indicaes quanto prtica esportiva ou qualquer referncia ao lazer das mulheres. Esta

    preocupao surgiu apenas, e de maneira pouco expressiva, no ano de 1931, no "II Congresso

    Internacional Feminista", realizado na cidade do Rio de Janeiro. No item VI, aparecia a seguinte

    12

  • resoluo: "Estimular a criao de tardes recreativas para as mulheres operrias e domsticas,

    como justa recompensa de suas lides quotidianas". 5 (June, 1978: I 05)

    A feminista Maria Lacerda de Moura, que era ligada aos ideais anarquistas,6 cobrava dos

    intelectuais, dos artistas e das poetisas uma ao poltica para uma transformao radical da

    sociedade. (Rev. Renascena, 5-6/1923) Militante mineira, mulher de classe mdia e professora,

    Moura realizou vrias palestras nos meios intelectuais e fundou, em 1921, a Federao

    Internacional Feminina. Na revista Renascena, reclamava da atitude de mulheres que faziam

    assistncia ao futebol. Apesar de, j nesta poca, este esporte estar presente em todos os lugares e

    ter conquistado todas as camadas da populao, ainda era um evento social, um local de encontros,

    flertes e admirao dos sportmen. Para Moura, "[ ... ] a mulher de hoje quer admirar a grandeza

    moral do companheiro e no se contenta com as formas do seu corpo ou com os seus msculos de

    sportmen". (Rev. Renascena, 711923) Ela tinha seus motivos de desconfiana, pois estava

    presente, em sua luta diria como feminista, a busca da emancipao da mulher frente a um mundo

    machista, patriarcal e capitalista Defendia que a mulher deveria desenvolver sua intelectualidade e

    entrar na luta poltica. Talvez por isso no visse, com bons olhos, a mulher se preocupar tanto com

    o seu fisico e deixar de lado o intelecto.

    Nas palavras de Mouro (1998: 20), "[ ... ] na escassa literatura que retrata a histria do

    esporte da mulher brasileira no se encontram fatos que possam nos remeter a movimentos de

    resistncia feminina ou presena ativa de feministas em movimentos esportivos no Brasil".

    Semelhante fato aconteceu na Gr Bretanha. Dunning e Maguirre (1997: 342) afmnam que, na

    Inglaterra, o movimento sufragista, que reivindicava o direito de voto das mulheres, tomava o

    futebol como espcie de smbolo do chauvinismo masculino. Ao longo de todo o ano de !913, as

    suffragettes recorreram ao militarismo e violncia, danificando campos de futebol e prdios

    relacionados a este. Para Mouro (1998) o processo de emancipao esportiva feminina, a luta por

    um espao para tal prtica na sociedade, no esteve e nem est atrelado, de maneira direta e

    determinante, aos movimentos e s conquistas das mulheres brasileiras.

    5 li Congresso Internacional feminista, Rio de Janeiro, 1931. 6 Os Anarquistas eram contra o casamento burgus e a favor do amor livre.

    l3

  • 1.3. Higienizao da mulher

    No era para menos, nem em vo, que o evento beneficente em prol da Cruz Vermelha

    tivesse recebido um tratamento importante pelos jornais da poca. Na Primeira Repblica, a elite

    paulistana, "preocupada" com a miserabilidade em que se encontravam as crianas das camadas

    populares e com a alta taxa de mortalidade infantil, utilizou-se de atividades filantrpicas como

    essa na tentativa de amenizar tal situao. A idia da construo de um hospital para crianas

    partiu da mdica Maria Renotte. A Companhia Territoral Paulista cedeu o terreno no bairro de

    Indianpolis para a instalao do mesmo, que funcionou de 1918 at 1982.

    Iniciativas como essa, realizadas pelas mulheres, coadunavam com o papel social esperado

    e praticado por uma mulher da burguesia. Os papis colocados para ela eram distintos do destinado

    ao homem. bom lembrarmos que, nas primeiras duas dcadas do Sculo XX, o Estado Brasileiro

    ainda no possua um efetivo plano de gerenciamento do espao pblico e privado da sociedade.

    Suas aes eram incipientes em vrios setores, como sade, infra-estrutura, transportes etc.. O

    desamparo das crianas era evidente, no havendo uma legislao que obrigasse o Estado a exercer

    papel mais efetivo no combate a este problema. A legislao, desde o cdigo penal de 1890,

    passando pelo cdigo cvel de 1917 e pela legislao ordinria, no concebia ao menor nenhum

    direito, no s s condies bsicas de sobrevivncia, mas tambm sade e educao (Netto,

    1988).

    Todavia a burguesia, que participava e ditava o funcionamento estatal, traava, com seus

    prprios ps, objetivos de ordenamento e controle sociaL Segundo Lopes (1985), os projetos de

    reforma, colocados em prtica pelas elites, eram: invadir os lares e os espaos pblicos, ordenar e

    regular o lazer, controlar os velhos hbitos e estipular novas atitudes de ordem e regularidade,

    modificando as fronteiras entre o pblico e o privado.

    Nesses projetos, as prticas assistenciais, que permitissem a "melhoria" das condies de

    sade das classes populares, eram cultivadas pelas senhoras da elite. E tais prticas baseavam-se

    no processo de higienizao, que j vinha acontecendo (centralizado nas metrpoles, como Rio de

    Janeiro e So Paulo e, mesmo assim, "tacanho" em sua eficincia) nos primeiros anos da

    Repblica.

    Conforme Soares (2001) com a instaurao da Repblica no Brasil que as aes

    intervencionistas sanitrias, apoiadas pelo Estado, objetivavam a manuteno da ordem,

    14

  • ampliando, para o conjunto da populao, a determinao de normas para alcanar uma vida

    saudvel e, com isso, o pleno funcionamento da sociedade.

    E, para tal empreitada, era necessrio preservar a rea "mais importante", que fornecia as

    bases para este "pleno funcionamento". Os mdicos higienistas perceberam isso, enfatizando para

    que rea e indivduo social o Estado e o setor produtivo deveriam se preocupar. Tal preocupao

    estava voltada para a maternidade e a inf'ancia. Nas palavras de Lopes (1985: 07 e 09), :

    ( ... ) Em torno da maternidade e da inrancia, da funo reprodutora da mulher dentro da sociedade que se centralizam, basicamente, as preocupaes dos diferentes setores sociais, pois a figura feminina encarna uma dupla funo: ser simultaneamente produtora e reprodutora da fora de trabalho. ( ... ) Dos males advindos pela sada da mulher em direo do trabalho fora de casa e que poderiam conduzir a desagregao familiar, o abandono das crianas desde a mais tenra idade, o esgotamento fisico pelo esforo duplo e conseqentemente pela depauperao fsica eram os que preocupavam as autoridades mdicas, pois conduziriam degenerao irreversvel da raa.

    O movimento Higienista, preocupado com a "degenerao da raa", colocou um modelo

    higienizado de mulher, me assptica, que se conduziria de acordo com os padres da medicina

    moderna, dando nfase, tambm, ao ensino de noes de puericultura (LOPES, 1985).7 Se este

    modelo estava voltado para o cotidiano das mulheres que viviam do trabalho, diferente era o

    tratamento dado para s da Elite, como vimos em pginas anteriores. O referido jogo beneficente

    da Cruz Vermelha mostrava qual papel a mulher da classe burguesa deveria desempenhar: ser uma

    "me caridosa", que ajudaria outro indivduo. No caso, crianas desamparadas, mas poderia ser,

    tambrn, um elemento de divulgao para outras mulheres, de qualidades a serem copiadas, como

    urna me higienizada e sabedora de seus deveres perante a famlia.

    Devemos lembrar que a iniciativa para o referido jogo beneficente fora de duas mulheres.

    Para a arrecadao dos fundos em prol do hospital, estava frente a mdica Maria Renotte; e

    organizao especfica do evento era capitaneado pela "senhorita Catharina Bertoni". Esta

    referncia nos leva a acreditar que, neste evento esportivo-social-beneficente, o papel de

    protagonista era das mulheres. Atravs desse exemplo, queremos demonstrar a formao de um

    7 Segundo SOARES (2001), a puericultura surgiu em fins do Sculo XIX na Frana e propunha-se a normatizar todos os aspectos que dizem respeito melhor forma de se cuidar das crianas, com o objetivo de alcanar uma sade perfeita. Os cuidados eram voltados para todas as crianas, especialmente quelas nascidas num meio social desfavorvel. Era uma das intervenes feitas pelo aparato estatal para atuar sobre a forma de vida dos indivduos em sua intimidade: na famlia, no trabalho. no cotidiano.

    15

  • "mito", ou seJa, uma mstica da participao das mulheres em vrias pocas no umverso do

    futebol, possuindo uma funo diferente da habitual, que era somente na assistncia: a de jogadora,

    ainda que visando a caridade. Praticar o futebol no seria o problema, desde que no limite dado, ou

    seja, voltado para a filantropia e no direcionado para sua expresso corporal ou como um novo

    espao de lazer.

    Quando nos deparamos, no entanto, com a reportagem do dia seguinte ao referido evento

    beneficente, as coisas mudam de figura. Vamos a ele:

    FOOT-BALL. O 'match de hontem em beneficio da Cruz Vermelha. Teve o successo esperado o 'match' de foot-ball que hontem se disputou no Velodromo Paulistano. Para encher o Domingo no faltaram actraes: kermesse, carnaval, cinemas, corso na avenida etc., e no entanto as archibancadas do Velodromo Paulistano ficaram repletas de senhoras, senhoritas e cavalheiros. E as pessoas que hontem estiveram no Velodromo nada perderam, nada ficaram a dever as outras que procuraram outros pontos para gosar a tarde dominical: ao lado do agradavel passa-tempo numa interessante prova sportiva, tiveram lambem a satisfao de que estavam praticando um acto de generosidade, concorrendo com uma esmola para um hospital que aqui em S. Paulo se pretende instituir para recolher as crianas pobres. Attrahida pela originalidade do torneio que se annunciava e ainda mais, e isso ns afirmamos considerando o esprito caridoso da sociedade paulistana, attrahida pelo desejo de attender um appelo altrustico, qual o de auxiliar o trabalho de proteco infancia desamparada, numa selecta e numerosa concorrencia affluiu ao Velodromo, emprestando um aspecto encantador. Enquanto aos poucos as archibancadas iam ficando repletas, num dos compartimentos do Velodromo as 'sportwomen' cuidavam de sua 'toillete . s 4 horas as equipes apresentaram-se em campo, debaixo de prolongadas palmas da assistencia, que no soube Scoilder a slla surprezll vendo u 'field', ao invez de senhoritas, destemidos rapazes mettidos num elegante uniforme e com as faces 'totalmente' amassadas, fora do 'carmin' e de outros preparados pela moda. Foi um logro, sem outras consequencias pregado ao publico ... Logro? Acreditamos que no, porque ninguem, absolutamente ninguem, podia imaginar que senhoritas se metessem em campo a disputar um 'match' de Joot-ball'. Quem nos leu hontem, ficou sciente da pea que os rapazes do Americano Preparavam ... Enquanto a 'toillete' com que elles se apresentaram, desde a toca japonesa ao saiote, no se podia dizer que alli estavam os heroes do sexo forte ... Mas ... O bico largo, o formidavel 44 condenava as pseudo-senhoritas, e todos, sem excepo, apontavam aqui Bertone e Otavio, alli Cyro e Jose Pedro e alem Dcio, Ruffin, Giuzio, applausos aos Joot-ballers' que promoveram e que nelle tomaram parte. O jogo decorreu sempre com muita animao quer da parte das 'senhoritas' quer da parte dos rapazes. No primeiro tempo 'off-time' o 'team' 'forte' conseguiu marcar trs 'goals' contra dois dos adversarios. No segundo as 'senhoritas' firmaram mais ataque, vencendo ento por 6 'goals' contra 4.' (O Commercio de

    8 Encontramos referncia parecida confirmando que, na verdade, o jogo tinha sido entre rapazes no jornal carioca O Imparcial (03/0211913). A revista Careta, de 15/02/1913, tambm noticiou o jogo, afirmando que "As senhoritas eram

    16

  • So Paulo, 27/01/1913).

    Atravs de tais evidncias apresentadas pelos peridicos da poca, vimos que, na verdade,

    no jogo beneficente, no houve a participao das mulheres como jogadoras. O jornal A Platia, do

    dia 28 de Janeiro, estampou uma foto, logo na primeira pgina (coisa rara de acontecer quando a

    referncia era algum jogo de futebol) dos rapazes do Americano, vestidos com trajes de mulheres.

    Figura L Fonte Arquivo do Estado de So Paulo.

    Isso, porm, no desautoriza nossas afirmaes acerca do entendimento de que, nesse

    evento, nossas patricias da elite paulistana estavam no papel de protagonistas, pois, como dissemos

    anteriormente, a idia partiu delas. bom frisarmos que o futebol, nesta poca, era encarado, pelas

    elites, no s como um novo espao de lazer, mas tambm como um momento social de afirmao

    nada mais nada menos que alentadosfoot-ballers do proprio Americano, de gorro, blusa e saiote CS', e que tal evento

    17

  • de seus valores enquanto classe. Por isso o articulista colocar que as pessoas que estiveram no

    Veldromo"[ ... ] nada perderam, nada ficaram a dever as outras que procuraram outros pontos para

    gosar a tarde dominical". O espao social de convvio da elite, portanto, foi idealizado e

    gerenciado pela batuta das mulheres.

    Estaria longe ainda, todavia, o tempo da participao efetiva das mulheres nos gramados,

    seja de que classe for. At os anos 20, com relao a esta prtica esportiva, esse quadro no se

    modifica. O local destinado s "filhas de Eva" era a assistncia.

    1.4. Belle-poque: da Casa para a Rua ... Da Rua para a Arquibancada

    No cenrio social da belle-poque, os papis tradicionais da mulher entraram em conflito

    com o novo reordenamento urbano-industrial. A vida domstica deparou-se com as novas

    possibilidades de atuao profissional. Respeitando as diferenas entre as camadas sociais, no que

    tange ao seu enqnadramento da lgica societal, as modificaes no mundo do trabalho, como o

    deslocamento do eixo, outrora exclusivo, do modelo agro-exportador para a Indstria, fez com que

    a necessidade de mo de obra abundante fosse resolvida com a absoro das mulheres e crianas,

    vindas da classe operria. Moraes (1996: 29) afirma que"[ ... ] a produo capitalista- deslocando

    a unidade produtiva da moradia para a fbrica- rompeu com a unidade entre a vida domstica e a

    vida produtiva. Para a mulher abria-se a possibilidade do pblico". De acordo com Sevcenko

    (1992: 51):

    As mulheres definitivamente ganhavam o espao pblico. Elas estavam por toda parte, a qualquer hora. Tecels, costureiras e aprendizes, cedo pela madrugada, em busca das fbricas e oficinas de modas. Balconistas, atendentes e serviais do comrcio logo depois [ ... ] O agito indiscriminado das compras trazia mulheres de todas as classes, etnias e idades para o centro.

    No meio futebolstico, a mulher tinha, nesta poca, seu lugar assegurado na assistncia aos

    jogos dos sportmen. As senhoras da aristrocracia enchiam os campos, pois era um evento social

    deveras adequado para a "fma flor" da alta sociedade. Pra se ter uma idia de como isso

    acontecia, na Gazeta de Notcias do Rio de Janeiro, datado de 01 de junho de 1908, aparece a

    seguinte nota:

    atraiu "Uma concorrencia que verificando o logro, achou-lhe immensa graa e riu-se a valer durante a pugna toda".

    18

  • Merece registro especial concorrncia selecta e numerosa que afluiu ao campo, que apezar de no offerecer ainda as commodidades do fluminense, achava-se repleta de gentis senhoritas que so a alma dos jogadores, enthusiasmando-os com as suas palmas e vivas.

    Percebe-se que o papel social da mulher, perante o universo futebolstico, caracterizou-se,

    em seu primeiro momento, como incentivador dos clubs e dos sportmen. Por outro lado, este

    aspecto apontava apenas a classe social burguesa. Somente no final dos anos 1 O do Sculo XX,

    que houve uma disseminao dos conhecimentos sobre o futebol por parte de todas as mulheres.

    Na revista carioca Fon-Fon, de 06 de janeiro de 1917, aparece um artigo, de cunho jocoso, no qual

    h um relato de uma briga conjugal em que a esposa torcia por um certo Club X, enquanto o

    marido por outro:

    At o segundo anno de casamento, esse desentendimento deu lugar apenas as discusses na mesa do almoo [ ... ] De domingo a domingo, porm, de match em match. a dissidncia aggravou-se [ ... ]A discusso azedouse [ ... ]que se travou em casa uma seria partida[ ... ] de rugby.

    Acontecimentos banais como esses mostra-nos como o futebol era visto pelo alto ou pela

    base da hierarquia social, no centro ou na periferia. O futebo I propiciava o embaralhamento das

    posies relativas, suscitava identificaes desautorizadas, invadia espaos interditos e desafiava

    tanto o tempo do trabalho quanto o do lazer. (Sevcenko, 1992: 61).

    Mesmo no espao resumido da assistncia, a mulher procurava inserir-se no cenrio

    futebolstico, exclusivo dos homens. Em uma carta endereada ao jornal O Paiz, do dia 25 de maio

    de 1920, uma torcedora, de nome Lili, demonstrava seus conhecimentos, enfatizando como o seu

    time Progresso F.C. deveria ser escalado para ser campeo, dando a formao dos I 0 , 2 e 3 teams.

    Terminava a carta com esses dizeres: "[ ... ] com estes teams, treinados, seria, no meu modo de

    pensar, e no de minhas amiguinhas, o glorioso e invencvel campeo de 1920".

    Os peridicos da poca perceberam a importncia da assistncia e efetuaram concursos

    entre as espectadoras.9 Eram lanados pelos jornais concursos de beleza e de madrinhas dos

    clubes. Estes acontecimentos estavam ligados ao papel social reservado para a mulher no meio

    futebolstico, tendo como funcionalidade possvel no trato com a bola dar o pontap simblico nas

    9 Ver Revista Vida Esportiva, n. 141, maio de 1920, que lanava um concurso de beleza entre as lindas torcedoras do Botafogo F.C; O Paiz, 08/051!920 e 29/06/1920.

    19

  • partidas. Num festival esportivo promovido pelo ]0 de Maio E.C.. para a inaugurao de seu

    campo, foi realizada uma partida contra o Luso-Americano E. C., e o jornal O Paiz (06/05/1920)

    relatou o fato, veiculando a figura de uma mulher dando a sada de jogo: "[. .. ]A sada foi dada pela

    senhorita Carmen Almeida, passando a pelota linha local, que investe sem resultado". 10

    A participao da mulher como espectadora tambm era um dos assuntos que interessavam

    no s aos jornais dirios, como tambm s revistas mensalistas. Com o ttulo "Frivolidades", a

    revista carioca Vida Sportiva (13/07/1918), preocupada com o afastamento das senhoritas dos

    campos, afrrmava:

    Porque motivo mlle. desappareceu dos nossos campos de 'football'? Mlle. ignora ento que a sua ausencia ahi sentida por todos que apreciam a belleza e a nostalgia? No entanto, mlle. vae ao cinema do elegante bairro onde reside. Porque essa preferencia? Acha que mais elegante ir ao cinema ao envez de frequentar os campos de football? No, mlle. mude de resoluo, porque muita gente assim o deseja.

    Sobre este mesmo assunto, um correspondente brasileiro, que vivia na Inglaterra, publicou,

    no jornal O Paiz (15/04/1920), que o estilo de jogo do futebol do nosso pas (menos correria e mais

    dribles) era melhor que o jogado pelos ingleses (o oposto de nossas caractersticas). O mesmo

    afirmava: "[ ... ] Bem poucas senhoras ou moas vo ao campo de football (na Inglaterra).

    muitssimo maior o nmero de nossas patrcias que se interessam pelo footbalr'.

    Antes de qualquer coisa, bom lembrarmos que, nos frementes anos 20 do sculo passado

    na Inglaterra, como afirma Murray (2000), a Federao Amadora (F A), entidade esportiva mais

    importante deste pas, preocupada com o crescimento do futebol feminino, deliberou sua

    proibio, afirmando que o esporte era "inadequado" para as mulheres e que sua prtica "no

    deveria ser estimulada". Os clubes foram proibidos de dispor seus campos para a participao

    feminina. Isto talvez explique a maior assistncia por parte de nossas espectadoras em relao s

    inglesas. L iniciava-se um revs efetivo quanto participao da mulher no universo do futebol,

    enquanto aqui aumentava-se, consideravelmente, tal nmero, ainda que o espao de nossas

    patrcias fosse restrito assistncia, diferentemente das inglesas e francesas, que j tinham

    "invadido" o espao exclusivo masculino, o "gramado".

    A maneira de inserir-se como "espectadora" no trazia apenas um sentido de passividade

    10 Ver tambm em 20/06/1920, no mesmo jornal, nota semelhante.

    20

  • perante o esporte. No interesse das mulheres pelo futebol, estava presente o desejo de ver o jogo e

    seus protagonistas. Em algumas colunas de jornais dessa poca, apresentava-se a mulher como

    apreciadora do "Sport Fino Breto", dando-lhes, muitas vezes, o sentido de participao ativa,

    mesmo no praticando o futeboL E no era s nos peridicos que isto se evidenciava. Encontramos

    um bom exemplo no incio de uma pea de teatro, intitulada "As Torcedoras" e escrita por Luiza

    Iglesias eM. Paradella (1927). O texto discorria sobre as relaes de suas filhas com sua madrasta,

    a vontade destas em sair para a rua e tambm flertar com seus pretendentes no interior da prpria

    moradia coletiva, no caso, a penso. O personagem Marvino ajudava as meninas a encobrir uma

    possvel desobedincia Regina, a madrasta. Havia vrios personagens, dentre outros, Maurcio,

    Margarida, Rosa, os dois rapazes que as garotas flertavam etc .. Assim era a fala de Margarida no

    segundo ato da pea:

    Eu ... eu ... Queria que papae me desse licena para ir ver o jogo de hoje! ( ... ) Ih Papaesinho! Se o senhor soubesse como eu gosto de ver aquelles almofadinhas mettendo o p na bola( ... ) eu fico to satisfeita quando vou assistir aofoot-ball. E seu pai Maurcio respondia a tal indagao: "Pois, sim, minha filha acredito. Todas as moas da poca gosta de bola. Mas, eu no posso relaxar as ordens da tua madrasta.

    Nesta parte do texto, o assunto principal era o fato de como as garotas Margarida e Rosa

    fariam para se desvencilhar das ordens da madrasta, que no queria ver suas enteadas "soltas pela

    rua". O personagem Marvino ajudava-as a encobrir uma possvel desobedincia que arquitetavam.

    De fato, elas flertavam com dois garotos dentro da prpria penso.

    O que importa para ns, nessa breve apresentao da pea, o fato de que o futebol no era

    um esporte desconhecido e estranho no universo de lazer das mulheres. Sair de casa, ir para a rua,

    para o jogo e, assim, ter as possibilidades do convvio, do "namorico", enfim, de se colocar alm

    das fronteiras do permitido, era barganhar atitudes e posies com o universo futebolstico

    masculino.

    Flertar com os jovens das arquibancadas e tratar os prprios jogadores como objeto de

    desejo poderiam apontar um certo posicionamento diferente do habitual, que v as mulheres, ainda

    hoje, como passivas perante a sociedade e o futebol. Este sentido bem apresentado numa carta

    enviada por uma leitora, de nome "Gaby", revista A Cigarra. Esta escrevia a respeito do

    comportamento das senhoras e senhoritas perante um jogo que havia acontecido na cidade paulista

    de Atibaia, de um clube local contra um time da capitaL O comentrio era o seguinte:

    21

  • [ ... ] Destre a numerosa e selecta assitencia, notei: Lucilla, enthusiasrnada com a brilhante estrea do Friendenreich em Atibaia: Henriqueta, torcendo em prestaes ... ( olha l!) Lourdes, um tanto tristonha, quasi no torceu (alguma ausncia?). As Campos, corno sempre, seductoras, fizeram successo [ ... ] Herrninia, esquecendo o Kepper, por um syrnpatico Back [ ... ] Murano, to lndinho porem muito fiteiro! Friendenreich, corno sempre, mostrando ser o sueco dos campees! (A Cigarra, 01/03/1921)

    Como vimos na carta da senhorita "Gaby", os homens que eram os "escolhidos" o

    "objeto de desejo". Contudo, sabemos que esse tipo de atitude no era hegemnico. Um

    pensamento diferente poderia nos remeter para uma anlise simplista, aceitando a idia de que,

    com o passar do tempo e a evoluo da sociedade, aconteceria urna mudana mais ampla no que

    diz respeito ao papel social-esportivo da mulher em nosso pas. Pelo contrrio, as evidncias nos

    mostraram que seu local reservado, na maioria das vezes, era a de urna "assistente passiva", urna

    figura a ser vista como "trofu". Utilizamos o texto abaixo para demonstrarmos tal semelhana:

    Cupido e ... o futeboL O Amor um sensacional 'rnatch' de futebol, no qual a sogra faz a Zarnora na vida: defende assombrosamente o 'goal' da pequena ... O pae e a madrinha so os 'fullbacks' que formam com a sogra um triangulo de pedra mrmore, quase intransponvel( ... ).

    Em sua continuao, o texto comentava que as "tias solteironas" eram os "half-backs"; a

    cozinheira de casa, a que levava os recadinhos da pequena ao "extrema direita"; e o mocinho, o

    "center", que buscava, a todo o momento, o "goal" e a "taa":

    ( ... ) A pequena a 'taa'. A opinio publica serve de 'referee do jogo'. A vizinhana faz assistncia, 'torce' invariavelmente para que o 'jogo'acabe em sururu. O conselho deliberativo da Liga approva e legaliza o 'rnatch' ( ... )Eplogo: O CASAMENTO. (Mazzoni, 1928: 22)

    Considerando as afirmaes enfrentadas pelas mulheres no futebol brasileiro, observamos

    o comentrio de Souza (1996: 137), afirmando que:

    s mulheres resta o papel de auxiliares dos homens no futebol, torcendo em firno de laos sociais prximos (com homens) e gerando condies favorveis para que estes homens desfrutem do futebol. A mulher geralmente acompanha o futebol em funo de que os homens prximos (marido, pai, irmo, amante, namorado, primo etc.) o fazem.

    22

  • 1.5. As prticas fsico-esportivas do gnero feminino e os hbitos esportivos nos anos 20 na

    cidade de So Paulo.

    No incio dos anos 20, So Paulo transforma-se, definitivamente, em cidade industrial,

    operria e culturaL Uma moderna metrpole, espelho da Elite Cafeeira, que deveria refletir aquele

    ar sbrio, que s as ricas capitais europias eram capazes de ostentar (Marques, 1994). E, para

    alcanar esse objetivo, era necessrio combater todo tipo de "obstculo" a esta modernidade. Um

    dos empecilhos era a existncia das camadas populares. Operrias( os), desempregados, prostitutas

    e loucos, vivendo em cortios, moradias insalubres, deveriam ser normatizados, controlados e

    punidos, caso atrapalhassem a dinmica da "Modernidade". Nas palavras de Marques (1994: 26):

    A delimitao dos espaos e das ocupaes norteariam uma nova ordem urbana, cuja tcnica principal foi dada pelo gerenciamento da populao, tarefa que a higiene tomou para si investindo-se do poder de gerir tambm a esfera do privado [ ... ].

    Nada poderia impedir tais transformaes. O desenvolvimento da cidade, da nao,

    dependia de indivduos que estivessem ajustados aos preceitos de tal gerenciamento. E, para tanto,

    era necessrio investir num aspecto que os higienistas j defendiam, ou seja, o melhoramento das

    condies de vida das camadas populares, pois estes no poderiam continuar naquele estado de

    inrcia, insalubridade e pauperizao. Defender uma urbanizao "sadia" era a base para se obter

    urna nao formada por uma raa forte e desbravadora Os mtodos de "assepsia" para o controle

    social, utilizados na primeira dcada do Sculo XX, no se enquadravam mais nesse novo

    cotidiano urbano. Precisava-se de novas frmulas, mtodos e tcnicas para isso, sendo a eugenia o

    remdio que iria determinar uma nova concepo corporal, baseada na "cientificidade" e que

    pregava a educao no lugar da coero.

    Nos anos de 1920, a eugenia toma corpo no discurso cientfico de mdicos, educadores e

    intelectuais. 11 O movimento eugenista ampliou os objetivos da higiene. Marques (1994) afirma

    que a higiene se inseriu no Brasil como um agente coercitivo, e a eugenia completou essa

    funcionalidade de controle da espcie, da raa. Nas palavras desta mesma autora:

    11 No ano de 1918, fundada a Sociedade Eugnica de So Paulo. tendo em seu meio ilustres mdicos da poca e intelectuais simpatizantes do movimento, como Fernando de Azevedo.

    23

  • Se a higiene, a filantropia higinica, a educao associaram-se na conformao de uma So Paulo, disciplinar, estabelecendo laos entre seus habitantes de forma a permitir a efetivao do modelo jurdico-poltico-liberal, a eugenia estabeleceu-se como 'instrumento cientfico' por excelncia para articular esses saberes. (Marques, 1994: 47)

    Marques (1994) tambm remete-nos para o entendimento de que, no imaginrio dos

    eugenistas, havia a necessidade de construir uma nova representao do homem brasileiro,

    diferente daquela to difundida nos manuais de higiene que alardeavam a degradao racial e

    moral das populaes. A esta, os eugenistas contraporiam os ideais do corpo sadio, higinico e

    embranquecido, idealizado e defendido pelas elites no transcorrer do sculo XIX, em nosso pas.

    A respeito disso, nos anos de 1920, essa nova configurao exigida. Num aspecto, os

    eugenistas assemelhavam-se ao movimento higienista: era a importncia dada ao papel da mulher

    no aspecto da formao do "novo homem brasileiro". Tal importncia ser balizada em todos os

    seus aspectos. Portanto, no eram apenas os ligados diretamente assepsia, ao controle de doenas

    e insalubridade que os eugenistas se preocupavam. As prticas corporas tambm eram foco de

    ateno.

    O alcance da Educao Fsica, nessa poca, ainda era incipiente, no havendo um plano

    educacional nacional oferecido pelo Estado Brasileiro. As prticas corporais sistematizadas

    estavam concentradas nos clubes e associaes das cidades e dos colgios freqentados pela elite.

    A atividade fsica era defendida, pela medicina eugnica, como o mlhor meio de "regenerao

    fsica" de homens e mulheres. Mas, para que isso alcanasse melhores resultados, era necessrio

    fazer com que a Educao Fsica estivesse presente no cotidiano urbano. O socilogo e educador

    Fernando de Azevedo defendia o processo educacional como instrumento para alcanar tal

    objetivo. Segundo ele:

    A eugenia no s a interveno da prophylaxia [ ... ] Nem somente a engenharia sanitria[ ... ] Nem apenas a defesa hygienica [ ... ] tambem a applicao de uma educao enrgica para a conquista da plenitude das foras physicas e moraes [ ... ] a regenerao physica dos povos, por uma completa cultura esportiva [ ... ]. (Azevedo, 1919: 116-7)

    Essa interveno teria sucesso, segundo Azevedo, pela ''regenerao fsica" da mulher

    brasileira, sendo isto "o mais lgico e mas seguro" meio de obter urna gerao sadia e robusta.

    Entender o processo de redefrnio do papel da mulher frente a este cotidiano pleno de

    24

  • transformaes possibilita-nos compreender novas formas de constituio da cidadania, portanto

    novas disciplinas corporais (Schpun, 200 I). Segundo a autora, nesse quadro que h um elogio da

    juventude, das prticas esportivas, dos critrios de beleza e das regras de apresentao.

    Continuando seu raciocnio, Schpun (2001: 21) coloca-nos que:

    A urbanizao exigia assim uma nova cultura fsica masculina e feminina, novas atividades e novas formas de apresentao corporal prpria cidadania que se institui na cidade grande. O apelo mais freqente exibio pblica est vinculado diferena entre os gneros: a experincia de homens e mulheres fundamentalmente distinta.

    Outros papis estavam para serem vivenciados pelas mulheres no campo fisico-esportivo.

    Nas palavras de Mouro (1998: 120-1):

    [ ... ]os anos 20 encontram um panorama complexo da Educao Fsica, construdo de avanos e recuos, com um discurso que est fundamentado na importncia da educao fsica para a mulher, e um outro que mantm as expresses de preocupao com a perda da delicadeza atravs da prtica de exerccios e assume o iderio segundo o qual a educao fsica deve preparar as futuras mames.

    Esse discurso aparece num artigo da Revista Feminina. O texto, sem assinatura, comentava

    sobre os "efeitos negativos" dos esportes na maternidade, salientando tambm que os mesmos

    traziam "anomalias fisiolgicas" para as novas geraes, com gravidade para o "desenvolvimento

    da raa". A matria prosseguia, alertando para o futo de que as mulheres deveriam evitar

    exerccios atlticos "viris" e "rgidos", optando pelos exerccios "artsticos" e "naturais", e

    fmalizava com as seguintes palavras: "[ ... ] Felizmente, no Brasil, as moas no cultivam o

    Athletismo, seno os sports delicados, como o tennis, a dana, o ping-pong. E pena que mesmo

    esses sports, ellas cultivam to pouco". (Revista Feminina, 08/1921)

    Outra revista da poca, diferentemente da revista aludida no pargrafo anterior, referia-se

    ao esporte como a principal forma de lazer e no como um novo elemento de expresso da mulher,

    que poderia, se no houvesse cuidados, trazer males mesma:

    Hoje a caracterstica da vida feminina o 'sport ', o nico e verdadeiro passatempo da mulher moderna. Vive na contnua febre de excitao, reclamando constantemente tudo que fortalea e a torne sempre mais bella. As damas contemporaneas so enthusiastas 'sportwomen . E, por isso, as vemos hoje obter premios e triumphar quer no 'tennis ', no 'golf', no automovel, na aviao, como nas caadas e partidas de pesca. A mulher moderna adora todos os sports com allucinante paixo. (Rev. Eu sei tudo, 0111919: 84)

    25

  • Parece, porm, que as "sportwomen" continuariam ligadas s prticas fisicas e esportivas,

    consagradas femininas, como a dana, a ginstica, o tnis, o ping-pong, a natao. Todas com

    ressalvas em sua forma de execuo, ligadas funcioualidade teraputica ou corno passatempo

    fortuito.

    No podemos esquecer que a prtica esportiva era para a mulher da elite em nosso pas.

    Pensar nela exercida por outras classes no condiz com a realidade daquela poca. Os esportes

    divulgados para as mulheres, tanto pelos jornais da poca quanto pelas revistas femininas,

    espelhavam-se no discurso hegernnico da Mediciua Esportiva do perodo. A uatao e o tnis

    eram esportes indicados pelos tericos que definiam "cientificamente" qual prtica era condizente

    para a mulher.

    O futebol nos anos de 1920, definitivamente, tomou-se o principal meiO de expresso

    ldico-esportivo uas grandes cidades de nosso pas. S ua cidade de So Paulo, fundaram-se

    clubes, associaes e grmios, tendo o futebol corno prtica principal (seno a nica)Y E tal

    prtica continuaria mantendo-se corno exclusiva dos homens, no importando sua classe sociaL

    Operrios, desocupados e homens da elite utilizavam o "esporte breto", cada qual sua maneira.

    No entanto, essa "exclusividade", a seu tempo, seria invadida pelas mulheres.

    Diferentemente do evento beneficente do ano de 1913, apareceu no peridico paulista A Gazeta,

    em 28 de junho de 1921, urua nota sobre urua partida de futebol jogado efetivamente por mulheres.

    O evento aconteceu em comemorao s festas juninas no buclico e fascinante bairro do

    Tremernb, em So Paulo. O contedo da nota era o seguinte:

    Um jogo de futebol entre senhoritas. Teremos hoje, em Trememb Tramway da cantareira, um interessante jogo. o seguinte: SENHORITAS TREMEMBENSES X SENHORITAS CANTAREIRENSES.- Em prosseguimento as festas em honra a S. Pedro, realiza-se hoje, s 15 horas, no campo do Trememb F. C., um interessantssimo jogo de futebol entre dois quadros femininos. Os quadros obedecero a seguinte organizao: (Vermelho) Margot; Lili e Zlia; Rosa, Zica e Dalila: Jo (ilegvel), Fany, Ruth, Mariazinha e Quiteria. (Verde) Marieta; Pequena e Lourdes; Comellia, Norma e Zez; Bellinha, F enanda, Tita, Nen e Consuelo.

    A respeito desse jogo, ternos apenas esta nota, mas interessante percebermos que este

    evento indica caractersticas peculiares. A primeira, o fato de que tal acontecimento no envolvia

    12 Para se ter uma idia dessa dimenso, havia 362 sociedades e clubes sem filiao alguma a qualquer entidade que lhes representasse. Entre esses, 104 clubes tinham em seu nome a denominao "Futebol Clube". (Mazzoni, 1928).

    26

  • interesse beneficente, sendo o principal motivo do encontro as comemoraes a So Pedro. A

    segunda seria o fato de ser um jogo efetivamente de mulheres, sendo um momento diferenciado do

    habitual, registrando-se a estria da participao feminina no futebol.

    Na dcada de 1930, as prticas corporais, realizadas pelas mulheres, deixaram

    definitivamente de ter apenas corno foco a ginstica e a dana. No campo esportivo, sua presena

    j se consolidava. Temos, como exemplo, a natao, praticada nos clubes da cidade de So Paulo.

    De fato, sua prtica restringia-se basicamente s mulheres da elite, mas em vrios acontecimentos,

    organizados por alguns grupos e associaes operrias, o elemento esportivo estava presente.

    Ciclismo, corridas de mdia e longa distncia apareciam em seus eventos, denominados de

    "festivais". O basquetebol e o futebol seriam outra prtica a ser incorporada como "esporte

    feminino", colocando para a comunidade que ambos no seriam somente prticas ligadas a eventos

    "exticos ou beneficentes".

    No prximo captulo, veremos como a prtica do futebol, pelas mulheres do subrbio,

    colocou "em xeque" a classificao do "esportes femininos".

    27

  • CAPTULO II

    O FUTEBOL COMO "ESPORTE FEMININO" E A EUGENIA NO ESTADO

    NOVO

    28

  • Durante o Estado Novo, os especialistas que produziam as teorias mdico-esportivas

    escreviam e divulgavam suas teses em revistas especializadas e em congressos cientficos. Na

    Revista Brasileira de Educao Fsica de 1943, aparece as resolues do H Congresso Sul

    Americano de Medicina Desportiva, realizado no ano de 1941 e seis anos antes em Buenos Aires,

    recomendando o seguinte termo:

    O I! Congresso Sul Americano de Medicina Desportiva declara que a prtica dos exerccios fisicos beneficia grandemente as mulheres, porm necessrio escolher cuidadosamente as atividades esportivas femininas, de acrdo com o biotipo, aptido e condies orgnicas de robustez e sade, bem como ausncia de leses, especialmente nos rgos de reproduo."

    Neste perodo, o culto do corpo feminino foi dominado pelo discurso da eugenia, limitando

    as mulheres prtica de alguns esportes que no condiziam com suas funes de futura me

    responsvel pela gerao de urna "nova raa". Esportes como a natao, o tnis e o voleibol eram

    os mais indicados pelos especialistas. O professor da Escola Nacional de Educao Fsica e

    Desportos da Universidade do Brasil, Waldemar Areno, catalogou em trs grupos os "desportos

    femininos", dividindo-os em "indicados", "permitidos" com reservas e "contra-indicados".

    Referindo-se aos contra-indicados, ele afirmou: " evidente que o futebol no pode fazer parte dos

    desportos femininos, nem mesmo como grande Jgo". (Revista Brasileira de Educao Fsica,

    01/1947: 31-3) o interessante que ele prescrevia apenas ocJ:lhecimento terico dosesportes masculinos, restringindo a vivncia prtica destes, pois ele os contra-indicava para as futuras

    professoras da Escola Nacional de Educao Fsica e Desportos.14 Portanto, mesmo as alunas, que

    seriam as futuras profissionais a ministrarem aulas de Educao Fsica para a comunidade em

    geral, no podiam praticar os "esportes masculinos".

    Embora presentes estas limitaes para a prtica do futebol e de outros esportes, as

    evidncias apontam para uma luta diria contra as restries, pelas mulheres que buscavam uma

    maior vivncia no campo esportivo, at ento dominado pela esfera masculina. Conforme Arantes

    13 No I Congresso Panamericano de Educao Fsica, realizado no Rio de Janeiro em 1943, aparecia no item 21 a concluso de que "os regimes de exerccios para o sexo feminino devem ser diferentes dos do sexo masculino e condicionar-se s caractersticas morfo-fisiolgicas da mulher e sua preparao para a maternidade". (Revista Brasileira de Educao Fsica, 08-09/1943). 14 "Para as futuras professoras especializadas til e necessrio o ensino de todos os desportos em uma aprendizagem sem execuo, nas escolas de Educao Fsica".(Revista Brasileira de Educao Fsica,08!1947: 33).

    29

  • (1993), para a mulher participar do universo do lazer (principalmente no esporte e em atividades

    que implicam o uso de espaos e equipamentos pblicos), significa, cotidianamente, desafiar

    expectativas de comportamentos e de desempenho, que so fortemente referidas s definies

    estereotipadas de masculinidade.

    2.1 O Futebol Feminino "no banco dos rus"(!): Mdicos e Jornalistas !

    A medicina Eugenista no Estado Novo dominou a Educao Fsica brasileira, e neste

    perodo que encontramos uma retomada do aparecimento do futebol feminino. Sua prtica

    comeou a despertar interesse nos mdicos e na imprensa esportiva. No ano de 1940, surgiu um

    artigo na Revista Brasileira de Educao Fsica que versou sobre a prtica do futebol pelas

    mulheres na cidade do Rio de Janeiro. Era do mdico Hollanda Loyola o artigo, que colocava:

    H cerca de uns trs meses um grupo de moas dos mais conceituados clubes esportivos dos subrbios de nossa capital iniciou a prtica do futebol feminino entre ns [ ... ] teem as nossas patrcas disputado vrias partidas entre vrios clubes ... A imprensa esportiva explorou-a habilmente atravs de um noticirio minucioso e de uma propaganda, intensa, aumentando o entusiasmo do pblico e o 'elan' das jogadoras. (Loyo!la, 1940: 20).

    O artigo defendia a prtica do futebol feminino, mas com ressalvas, exigindo normas

    racionais e um mtodo cientfico. Continuando o artigo, nas palavras de Loyola:

    ( ... ) A mulher pode praticar o futebol... Fazemos, no entanto, srias restries maneira pela qual nossas patrcias o esto praticando nos subrbios, absolutamente emprico, sem cuidados mdicos e sem princpios fisiolgicos.

    Este no foi o marco da primeira tentativa de discutir o futebol feminino, nem, muito

    menos, o primeiro a defend-lo, ainda que com ressalvas. Em 1930, Orlando Rangel Sobrinho

    publicava a obra Educao Fsica Feminina. Conforme Mouro (1998: 125), este referido autor

    "[ ... ]assumiu atitude de vanguarda recomendando at o futebol como modalidade esportiva para a

    mulher, apenas tendo o cuidado com a dosagem e durao de sua prtica". Tambm importante

    lembrar que, em 04 de abril do ano de 1920, no jornal O Paiz, apareceu, na coluna esportiva, a

    divulgao da programao de um festival patrocinado por um clube do subrbio carioca, Penha

    A. C. Estes festivais eram divididos em provas para crianas, adolescentes, pessoas idosas e

    mulheres adultas. Na 7a prova, foi programada a seguinte atividade:"[ ... ] s 15 horas- 'Amrico

    Pacheco' - shoot em distncia- para moas". Nos festivais da dcada de 1920, aparecia, de

    30

  • maneira espordica, a participao individual de mulheres, chutando bolas de futebo I nos

    intervalos dos jogos. Estes acontecimentos no nos autoriza a afirmar que haviam partidas de

    futebol feminino de maneira efetiva, com torneios. O que podemos colocar que a prtica de

    futebol pelas mulheres era uma possibilidade de expresso de novo espao de lazer, que aconteceu

    no incio de 1940 na capital carioca.

    No ms de dezembro de 1940, o mdico Humberto Ballariny condenou a prtica do futebo I

    feminino. No artigo intitulado "Porque a mulher no deve praticar o futebol", publicado na

    Revista Brasileira de Educao Fsica, n. 49, ele afrrmou o seguinte: "( ... ) Achamos ser o futebol,

    pela sua natural violncia, um exacerbador do esprito combativo e da agressividade, qualidades

    incompatveis com o temperamento e carter feminno".

    Esta discusso levou outro mdico de renome, Waldemar Areno (1940: 22), a publicar um

    artigo na mesma poca, no qual afirmava que:

    A arquitetura mecnica da mulher e a natureza das finalidades a que se destina implicam na escolha de desportos condizentes ... Visando em primeiro plano a beleza - qualidade de apangio da mulher [ ... ] Ningum negar que no cabe mulher a participao em provas de Footba/1... Porque teem finalidade desenvolver qualidade no visadas da mulher.

    Vamos perceber que estas duas correntes possuam discursos diferenciados. No entanto, os

    dois mdicos estavam preocupados, cada um sua manera, em normatizar e controlar a prtica do

    futebol, que vinha sendo desenvolvida pelas mulheres do subrbio carioca.

    As limitaes eram impostas pela Medicina Esportiva, ora indicando sua proibio ora

    aceitando o futebol, mas com ressalvas, visando a "proteo" da mulher, a fim de que esta no

    realizasse papis "masculinos", jogando de maneira "agressiva e com combatividade exacerbada",

    caractersticas no condizentes com o campo esportivo "feminino", que possua especificidades

    compatveis apenas prtica do esporte de maneira recreativa. Conforme Bruhns (2000: 74):

    ( ... ) O futebol feminino demonstra outra trajetria ( ... )o grupo feminino sempre pertenceu s classes menos favorecidas, razo pela qual as atletas apresentarem comportamentos bastante parecidos com os de seus colegas homens, comportamentos repudiados pela elite, numa atitude de evitao, recebendo julgamentos corno 'falta de classe', 'mau cheiro', 'povo grosseiro' e outras denominaes atribudas quela camada da populao.

    A imprensa carioca divulgou, no ano de 1940, reportagens sobre o futebol feminino. Para

    esta pesquisa, tomamos como base os jornais O Imparcial e o Correio da Manh. No primeiro, as

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  • A imprensa carioca divulgou, no ano de 1940, reportagens sobre o futebol feminino. Para

    esta pesquisa, tomamos como base os jornais O Imparcial e o Correio da Manh. No primeiro, as

    reportagens foram incentivadoras no comeo, mas, com o passar do tempo, passou para o discurso

    combativo. O segundo praticamente s lanava notas e, na ltima que versava sobre o assunto, do

    ano de 1940, o articulista escrevia com desdm, anunciando o fim do futebol feminino. A primeira

    nota (figura 2) sobre a sua prtica aparece no jornal O Imparcial, do dia 24 de abril, em que

    vemos:

    NOS DOMINIOS DO FOOTBALL FEMININO. Dia a dia, torna vulto a prtica do 'association' entre o sexo feminino. J tm organizao efficiente, os clubs Casino do Realengo, Eva, S. C. Brasileiro, Valqueire e outros. Os jogos femininos so bem interessantes e transcorrem sempre com muita animao.

    Figura 2. Fonte AEL

    O artigo explicava como seriam as formas de disputas e o tempo de jogo, fornecendo

    tambm a tabela do torneio. O Bomsuccesso E. C. era o anfitrio, emprestando o campo para os

    matches. No dia I o de maio, aconteceu este torneio, "patrocinado por alguns sportmen e

    incentivadores"15 (O Imparcial, 01/05/1940) O jornal Correio da Manh (Ol/05/1940) tambm

    lanava uma nota: "Ser realizado hoje, no campo do Bomsuccesso, um torneio de football

    feminino ( ... )". Seguia-se a nota dando o horrio e os embates. O interessante que, no meio do

    torneio, foi includo um jogo masculino entre o S. C. So Jorge e o Belford Roxo E. C. Este

    acontecimento nos sugere a possibilidade de inverso de papis, pois o espao dominante no era

    o dos homens, mas, sim, o das mulheres que iriam participar do principal acontecimento do dia.

    15 Nesse mesmo dia, o peridico carioca Jornal dos Sports tarobm publicava uma nota sobre este jogo. Este jornal estava voltado hegemoncamente para assuntos relacionados ao esporte, sendo o veculo de maior tiragem e abrangncia da cidade do Rio de Janeiro.

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  • Portanto, ao menos nesse dia, como nos acontecimentos de 1913 e 1921, o futebol masculino era

    coadjuvante aos olhares dos espectadores. Com a manchete "UM ESPECTACULO

    IMPRESSIONANTE: O TORNEIO DE FOOTBALL FEMININO", era estampada uma notcia

    considervel na pgina esportiva do peridico O Imparcial, do dia 03 de mao de 1940. Apareceu

    uma foto de uma das equipes, com as jogadoras abraadas, perfiladas e com o sorriso estampado

    em cada rosto (figura 3) e, mais abaixo, duas jogadoras disputando uma bola.

    Figura 3. Fonte AEL

    E o artigo do referido jornal sublinhava que:

    F oi com surpreza, que vimos a affluencia de assistentes apinhados s dependencias do Bomsuccesso E. C. e maor a nossa admirao, ao vermos a forma desenvolta e technica, com que actuaram as equipes femininas presentes ao festival realizado ante-hontem [ ... ] Nas equipes actuaram jogadoras com muita intuio da pratica do 'association ' e os jogos empolgaram realmente a assistncia. No temos