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ALICE DE OLIVEIRA VIANA
A PERSISTÊNCIA DOS RASTROS: MANIFESTAÇÕES DO ART DÉCO
NA ARQUITETURA DE FLORIANÓPOLIS
FLORIANÓPOLIS – SC
2008
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC
CENTRO DE ARTES – CEART
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS
ALICE DE OLIVEIRA VIANA
A PERSISTÊNCIA DOS RASTROS: MANIFESTAÇÕES DO ART DÉCO
NA ARQUITETURA DE FLORIANÓPOLIS
Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/UDESC, para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais. Orientadora: Professora Dra Sandra Makowiecky
FLORIANÓPOLIS – SC
2008
ALICE DE OLIVEIRA VIANA
A PERSISTÊNCIA DOS RASTROS: MANIFESTAÇÕES DO ART DÉCO
NA ARQUITETURA DE FLORIANÓPOLIS
Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do
CEART/ UDESC, para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais, na linha de pesquisa
Teoria e História das Artes Visuais.
Banca examinadora:
Orientador:__________________________________________________ Professora Drª Sandra Makowiecky (UDESC)
Membro:____________________________________________________ Professora Drª Rosângela Cherem (UDESC)
Membro:___________________________________________________ Professor Dr. Raul Antelo (UFSC)
Florianópolis, 26 de junho de 2008.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a meus pais pelas oportunidades na vida e pela confiança silenciosa que
sempre depositaram em mim.
Agradeço a José Gustavo Bononi, pelo amor, pelo carinho, pela cumplicidade e pela
paciência nos momentos em que eu me esquecia das coisas importantes da vida.
Agradeço à professora Sandra Makowiecky por ter me recebido aberta e
carinhosamente desde o início, quando eu ainda não sabia o quão gratificante seria nossa
convivência nestes quatro semestres. Obrigada pela oportunidade e por estar sempre presente
de forma compreensiva e atenciosa.
Agradeço à professora Rosângela Cherem, pela generosidade que sempre teve com
todos, especialmente comigo, e por ter transformado meu olhar. Parte dele está exposto aqui e
é resultado de intensas aulas e agradáveis conversas das quais não me esquecerei.
Agradeço à Elisiana Trilha Castro, pelo carinho, pela amizade e pelo apoio nestes
semestres de descobertas e ansiedades compartilhadas.
Agradeço à Sandra Lima e a todos os colegas do Programa de pós-graduação, pela
participação, de uma forma ou de outra, em todo este processo e pela convivência que
deixará, sem dúvida, saudades.
RESUMO
Esta pesquisa teve por objetivo estudar expressões da arquitetura de linguagem art déco do centro de Florianópolis, característica da modernidade que se configurou a partir dos anos trinta, e que ainda se encontra pouco reconhecida pela historiografia assim como pelos órgãos de preservação do patrimônio arquitetônico. No primeiro capítulo, chamado A fantasia imagética do novo foi analisada a introdução do “moderno” na cidade através dos prédios públicos que constituíram o desejo de renovação do Estado que se consolidava e que trouxeram, de uma forma geral, a fantasia imagética do “novo”. O segundo capítulo, chamado O passado inscrito em detalhes, apresenta e analisa a estética das edificações de porta-e-janela e alguns sobrados que compõem grande parte da paisagem dos centros das cidades brasileiras, especialmente de Florianópolis. Percebe-se como a linguagem singela deste art déco mais “popular” apresenta-se, em grande medida, como a sobrevivência de formas de nosso barroco colonial, a reaparição do passado por trás da aparência modernizante das fachadas. O terceiro e último capítulo, intitulado Por uma lógica da salvação, pretende debater questões acerca da preservação das arquiteturas, levando em consideração a análise de edificações art déco do centro da ilha de Santa Catarina e sua inclusão ou não nas ações de preservação municipais realizadas. Este estudo foi realizado com variada pesquisa bibliográfica confrontada com a análise das imagens percebidas na cidade e com textos oficiais do órgão de preservação municipal. Para aprofundar a investigação foi realizado um levantamento fotográfico dos projetos de edificações de linguagem art déco aprovados pela Secretaria de Urbanismo e Serviços Públicos (SUSP) entre as décadas de trinta e cinqüenta que, acompanhado das imagens daquelas edificações ainda existentes em Florianópolis, resultou num inventário localizado ao final do trabalho que poderá servir posteriormente como fonte de consultas.
Palavras-chave: art déco. arquitetura. Florianópolis. imagem.
ABSTRACT
This research had as a goal to study the expressions of art deco architecture in Florianópolis downtown, characteristic of the modernity that was configured from the 30’s, and still is not much recognized by historiography as well as by the architectonic patrimonial preservation departments. In the first chapter, named The imagistic fantasy of the new was analyzed the introduction of the “modern” in the city through public buildings that constituted the desire for renovation of the State that was strengthened and brought, a general way, the imagistic fantasy of the “new”. The second chapter, named The past inscribed in details, presents and analyzes the aesthetics of door-window edifications and some townhouses that compose the biggest part of the landscape in Brazilian downtown cities, especially here in Florianópolis. It is realized as the simple speech of this more “popular” art deco is presented, in great manner, as the survival of our colonial baroque forms, the reappearing of the past behind the modernizing appearance of the fronts. The third and last chapter, named For a salvation logics, intends to debate questions concerning the preservation of architectures, considering the analyses of the art déco edifications in the Santa Catarina island downtown and its inclusion or not in the performed actions of municipal preservation. This study was done with a diverse bibliographic research that was confronted with the analyses of the perceived images in the city and with official texts of the municipal preservation department. To deepen the investigation was done a photographic survey of the edification projects with art deco speech approved by the Urbanization an Public Services Clerkship (SUSP) among the 30’s and 50’s which, accompanied of the images of those still existent edifications in Florianópolis, resulted in an inventory localized in the end of the text which will be able to serve later on as a source for consultation.
Key-words: art déco. architecture. Florianópolis. image.
LISTA DE FIGURAS
Figura 01 - Projeto de prédio do centro de Florianópolis, rua Fernando Machado, datado de 1936. Autor: Tom Wildi. Fotos da autora. Fonte: SUSP....................................................................................................................15
Figura 02 - Imagem atual do prédio rua Fernando Machado, 2008. Foto da autora...............15
Figura 03 - Antigo Abrigo de Menores, atual prédio da Justiça da Infância e da Juventude, rua Delminda Silveira, Florianópolis, 2008. Foto da autora..................................21
Figura 04 - Grupo Escolar Getúlio Vargas, rua João Mota Espezim, Florianópolis, 2008.Foto da autora.................................................................................................................21
Figura 05 - Gregori Warchavchik: casa na rua Bahia, São Paulo, 1930. Fonte: SEGAWA,
Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900-1990.SP: Edusp, 2002..................................23 Figura 06 - Ministério da Educação e Saúde, Rio de Janeiro, anos 40. Fonte: SEGAWA,
Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900-1990.SP: Edusp, 2002..................................25 Figura 07 - Christiano Stockler das Neves: Ministério da Guerra, Rio de Janeiro, 1939.
Fonte: SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900-1990. SP: Edusp, 2002...26
Figura 08 - Departamento de Correios e Telégrafos: agência de Belo Horizonte, décadas de 1930-40. Fonte: SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900-1990. SP: Edusp, 2002........................................................................................................................26
Figura 09 - José Maria da Silva Neves: Grupo Escolar Visconde de Congonhas do Campo, São Paulo, 1936. Fonte: SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900-1990. SP: Edusp, 2002............................................................................................................26
Figura 10 - Antigo Banco do Brasil, atual Arquivo Municipal de Florianópolis, 2008. Foto da autora......................................................................................................................30
Figura 11 - Antiga Câmara Municipal de Florianópolis, 2008. Foto da autora.......................31
Figura 12 - Detalhe de fachada com elementos art nouveau. Disponível em <http://www.markeff.wordpress.com>. Acesso em 19 maio 2008........................33
Figura 13 - Fotografia de automóvel ilustrando o livro Arte Decorativa,de Le Corbusier.SP: Martins Fontes, 1996, p.95.....................................................................................38
Figura 14 - Interior do estúdio de Ozenfant, projetado por Le Corbusier e Pierre Jeanneret. Fonte: BENÉVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. SP: Editorial Perspectiva,1998, p.425.........................................................................................40
Figura 15 - Edifício das Secretarias, Florianópolis, 2008. Foto da autora...............................41
Figura 16 - Detalhe da entrada do edifício das Secretarias, Florianópolis, 2008. Foto da autora......................................................................................................................41
Figura 17 - Departamento de Saúde Pública de Florianópolis, sem data. Fonte: Casa da Memória – Fundação Franklin Cascaes.................................................................44
Figura 18 - Edificação antiga no centro de Florianópolis, apresentando afastamentos laterais, 2007. Foto da autora...............................................................................................46
Figura 19 - Projeto de construção de prédio no centro de Florianópolis, datado de 1933, com porão elevado. Autor: Tom Wildi. Fotos da autora. Fonte: SUSP......................................................................................................................47
Figura 20 - Imagem atual do prédio, 2008. Foto da autora......................................................47
Figura 21 - Edifício das Diretorias, rua Tenente Silveira, Florianópolis, 2008. Foto da autora......................................................................................................................51
Figura 22 - Edifício das Diretorias, 2008, detalhe da parede curva. Foto da autora................52
Figura 23 - Edifício das Diretorias, 2008, detalhe da parede curva. Foto da autora................52
Figura 24 - Edifício das Diretorias, 2008, detalhe da marquise curva. Foto da autora............53
Figura 25 - Hospital Nereu Ramos, sem data. Fonte: Casa da Memória – Fundação Franklin Cascaes...................................................................................................................54
Figura 26 - Eric Mendhelson. Torre Einstein, 1920. Disponível em http://www.dw-world.de. Acesso em 17.03.2008.........................................................................................,....................55
Figura 27 - Projeto de construção de prédio em Florianópolis, com esquina curva, avenida Hercílio Luz, datado de 1939. Autor: Defendente Rampinelli. Foto da autora. Fonte: SUSP...........................................................................................................55
Figura 28 - Imagem atual do prédio, 2008. Foto da autora.....................................................55
Figura 29 - Projeto de construção de prédio em Florianópolis, com balcão curvo, rua Conselheiro Mafra, datado de 1948. Autor: Raul Bastos. Foto da autora. Fonte: SUSP......................................................................................................................56
Figura 30 - Imagem atual do prédio, 2008. Foto da autora......................................................56
Figura 31 - Oscar Niemeyer. Pilares do Palácio do Planalto. Fonte: PENTEADO, Hélio. Oscar Niemeyer. São Paulo: Almed, 1985............................................................58
Figura 32 - Oscar Niemeyer. Catedral de Brasília, inaugurada em 1970. Disponível em www.caminhandosinrumbo.com. Acesso em 28.mar.2008...................................58
Figura 33 - Oscar Niemeyer. Prédio da Oca, parque Ibirapuera, São Paulo, inaugurado em 1954. Disponível em <http://www.tvnanet.com.br>. Acesso 20.maio.2008........58
Figura 34 - Pilares do Instituto de Educação de Florianópolis, 2008. Foto da autora.............59
Figura 35 - Fórum de Florianópolis, 2008. Foto da autora......................................................59
Figura 36 - Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, 2008. Foto da autora...............60
Figura 37 - Correios e Telégrafos, Florianópolis, 2008. Foto da autora..................................61
Figura 38 - Edifício do IPASE, Florianópolis, 2008. Foto da autora......................................65
Figura 39 - Pavilhão suíço na cité universitaire de Paris, Le Corbusier e P. Jeanneret, 1930. Fonte: BENÉVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. SP: Editorial Perspectiva,1998, p.509.........................................................................................66
Figura 40 - Detalhe de forma reticular em edificação no centro de Florianópolis, 2008. Foto da autora.................................................................................................................67
Figura 41 - Planta de Brasília. Disponível em <forumpermanente.incubadora.fapesp.br>. Acesso 26 mar.2008...............................................................................................67
Figura 42 - Prédio do centro de Florianópolis, rua Felipe Schmidt, antigo Hotel Santa
Catarina , 2007. Autor: Tom Wildi. Foto: Márcia Regina.....................................70
Figura 43 - Detalhe edificação à rua General Bittencourt esquina com Beco Tupy, Florianópolis, 2007. Foto da autora.......................................................................71
Figura 44 - Detalhe edificação à rua General Bittencourt esquina com Travessa Urussanga, Florianópolis, 2007. Foto: Márcia Regina.............................................................71
Figura 45 - Detalhe de edificação a rua General Bittencourt esquina com Beco Tupy, Florianópolis, 2007. Foto: Márcia Regina.............................................................71
Figura 46 - Edificação com uma fachada moderna e outra barroca. Rua Conselheiro Mafra, Florianópolis, 2007. Foto Márcia Regina..............................................................73
Figura 47 - Fachadas modernas e barrocas. Rua Conselheiro Mafra, Florianópolis, 2007. Foto da autora.................................................................................................................73
Figura 48 - Igreja Nossa Senhora das Necessidades, Santo Antônio de Lisboa, Florianópolis, 2008. Foto da autora...............................................................................................74
Figura 49 - Rua General Bittencourt, Florianópolis, 2007. Foto da autora.............................76
Figura 50 - Triunfo, Pernambuco. Fonte: MARIANI, Anna. Pinturas e Platibandas: fachadas populares do Nordeste brasileiro. São Paulo: Mundo Cultural, 1987....................77
Figura 51 - Juazeirinho, Paraíba. Fonte: MARIANI, Anna. Pinturas e Platibandas: fachadas populares do Nordeste brasileiro. São Paulo: Mundo Cultural, 1987....................77
Figura 52 - Piaçabuçu, Alagoas. Fonte: MARIANI, Anna. Pinturas e Platibandas: fachadas populares do Nordeste brasileiro. São Paulo: Mundo Cultural, 1987....................78
Figura 53 - Nora Dobarro. Portão de Feira de Santana. Disponível em: <http://www.boladenieve.org.ar/?q=node/186>.Acesso em 30.03.2008...............79
Figura 54 - Nora Dobarro. Portão de Feira de Santana. Disponível em: <http://www.boladenieve.org.ar/?q=node/186>.Acesso em 30.03.2008...............79
Figura 55 - Nora Dobarro. Portão de Feira de Santana. Disponível em: http://pagina12.com.ar/diário/suplementos/espectaculos/6-2816-2006-06-15.html Acesso em 30.03.2008...........................................................................................79
Figura 56 - Nora Dobarro. Portão de Feira de Santana. Disponível em: <http://www.pagina12.com.ar/diário/suplementos/espectaculos/6-2816-2006-06-15.html>Acesso em 30.03.2008.............................................................................79
Figura 57 - Projeto de reforma de prédio do centro de Florianópolis, rua João Pinto, datado de 1934. Autor: João Batista Berreta. Foto da autora. Fonte: SUSP.....................81
Figura 58 - Projeto de construção de prédio em Florianópolis, rua desconhecida, datado de 1941. Autor: Estanislau Makowiecky. Foto da autora. Fonte: SUSP....................81
Figura 59 - Projeto de reforma de prédio do centro de Florianópolis, rua Conselheiro Mafra, datado de 1938. Autor: João José Mendonça. Foto da autora. Fonte: SUSP.........82
Figura 60 - Projeto de construção de prédio do centro de Florianópolis, rua Conselheiro Mafra, datado de 1935. Autor: Theodoro Bruggemann. Foto da autora. Fonte: SUSP......................................................................................................................82
Figura 61 - Triunfo, Pernambuco. Fonte: MARIANI, Ana. Pinturas e Platibandas: fachadas populares do Nordeste brasileiro. São Paulo: Mundo Cultural, 1987....................86
Figura 62 - Giorgio de Chirico. Piazza d'Italia. 1916. Óleo sobre tela. 91 x 121 cm. Disponível em http://www.abcgallery.com/c/chirico/chirico10.html . Acesso em 17 abr. 2008............................................................................................................88
Figura 63 - Giorgio de Chirico. Love song. Le Chant D’Amour. 1914. Óleo sobre tela. 73 x 59,1 cm. Disponível em http://www.abcgallery.com/c/chirico/chirico10.html. Acesso em 17 abr. 2008.........................................................................................89
Figura 64 - Conceição do Coité, Bahia. Fonte: MARIANI, Anna. Pinturas e Platibandas: fachadas populares do Nordeste brasileiro. São Paulo: Mundo Cultural, 1987.....90
Figura 65 - Edificação colonial do centro de Florianópolis, rua Conselheiro Mafra, 2008. Foto da autora.........................................................................................................90
Figura 66 - Edificação colonial do centro de Laguna, 2008. Foto Sandra Makowiecky.........90
Figura 67- Edificação colonial do centro de Laguna, 2008. Foto Sandra Makowiecky..........91
Figura 68 - Edificação colonial do centro de Florianópolis, rua Conselheiro Mafra, 2007. Foto da autora.........................................................................................................91
Figura 69 - Rua Menino Deus, 2008. Foto da autora...............................................................92
Figura 70 - Rua Conselheiro Mafra, Florianópolis, 2006. Foto Márcia Regina......................92
Figura 71 - Projeto de reforma de edificação em Florianópolis, rua Almirante Lamego, datado de 1935. Autor: Theodoro Bruggemann. Foto da autora. Fonte: SUSP.....92
Figura 72 - Projeto de reforma de edificação em Florianópolis, rua Jerônimo Coelho, datado de 1952. Autor: Theodoro Bruggemann. Foto da autora. Fonte: SUSP................92
Figura 73 - Rua Bento Gonçalves, Florianópolis, 2008. Foto da autora.................................93
Figura 74 - Rua Conselheiro Mafra, Florianópolis, 2008. Foto da autora...............................93
Figura 75 - Projeto de construção de edificação em Florianópolis, Travessa Urussanga, datado de 1951. Autor: Moellmann & Bruggemann. Foto da autora. Fonte: SUSP......................................................................................................................93
Figura 76 - Imagem recente da edificação, 2007. Foto da autora............................................93
Figura 77 - Projeto de construção de edificação em Florianópolis, rua Victor Meirelles, datado de 1948. Autor: João José Mendonça. Foto da autora. Fonte: SUSP.........93
Figura 78 - Imagem atual da edificação, cujo projeto foi em parte modificado, 2008. Foto da autora......................................................................................................................93
Figura 79 - Projeto de construção de edificação em Florianópolis, rua Anita Garibaldi, datado de 1936. Autor: Estanislau Makowiecky. Foto da autora. Fonte: SUSP...............94
Figura 80 - Imagem recente da edificação, 2007. Foto Márcia Regina...................................94
Figura 81 - Projeto de construção de edificação em Florianópolis, rua Felipe Schmidt, datado de 1938. Autor: João José Mendonça. Foto da autora. Fonte: SUSP.....................94
Figura 82 - Imagem recente da edificação, 2007. Foto Márcia Regina...................................94
Figura 83 - Alfredo Volpi. Casario de Moji das Cruzes. Têmpera sobre tela. 46 x 60,5 cm. Década de 50. Fonte: MUSEU DE ARTE MODERNA DE SP.Volpi: 90 anos. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo,1986.......................................98
Figura 84 - Alfredo Volpi. Composição com círculo e faixas. Têmpera sobre tela. 101 x 72 cm. Década de 60. Fonte: MUSEU DE ARTE MODERNA DE SP.Volpi: 90 anos. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo,1986.......................................99
Figura 85 - Tarsila do Amaral. Estrada de Ferro Central do Brasil,1924. Óleo s/ tela, 142,0 x 127 cm. Disponível em < http://www.tarsiladoamaral.com.br>. Acesso em 17 abril 2008.............................................................................................................100
Figura 86 - Joaquin Torres-Garcia. Pintura (1937). Óleo s/ tela; 106 x 85 cm. Fonte: MUSEU NACIONAL DE BELLAS ARTES. Torres Garcia. Buenos Aires: Museu Nacional de Bellas Artes, 1974............................................................................102
Figura 87 - Omar Rayo. Tilodiran (1971). Acrílico s/ tela; 101,8 x 101,3 cm. Disponível em http://www.macvirtual.usp.br. Acesso em 17 abr. 2008......................................103
Figura 88 - Omar Rayo. Fresh Fog (1966). Óleo s/ tela; 101.6 x 101.6 cm. Disponível em http://www.rogallery.com/rayoomar/rayo hm.htm. Acesso em 17 abr. 2008......103
Figura 89 - Manuel Espinosa. Na nuai dheact (1969). Óleo s/ tela; 100cm x 100cm. Disponível em http://www.fundacionkonex.com.ar/coleccion/coleccion_01.asp. Acesso em 29maio 2008......................................................................................104
Figura 90 - Edgar Negret. Da série Navegantes (1967). Alumínio pintado; 32” x 45”.Disponível em http://www.velsani.com. Acesso em 17 abr. 2008...............104
Figura 91 - Antigo prédio Banco de São Paulo, 1938. Disponível em <http://www.piratininga.org>. Acesso em 07 nov.2007......................................107
Figura 92 - Edificação à rua Major Augusto Farias, Florianópolis, 2008. Foto da autora....108
Figura 93 - Fortaleza de Ratones, Florianópolis, 2006. Foto Sandra Makowiecky...............113
Figura 94 - Casa natal de Victor Meirelles, rua Victor Meirelles, Florianópolis, 2008. Foto da autora....................................................................................................................113
Figura 95 - Edificação à rua Alves de Brito, Florianópolis, 2006. Foto Sandra Makowiecky.........................................................................................................120
Figura 96 - Edificação à rua Mauro Ramos, Florianópolis, 2008. Foto da autora.................121
Figura 97 - Edificação à rua General Bittencourt, Florianópolis, 2008. Foto da autora........121
Figura 98 - Penitenciária de Florianópolis, bloco modernista, 2008. Foto da autora............123
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 14
1.0 A fantasia imagética do novo ............................................................................... 20
1.1 A sobriedade antiornamental ................................................................................ 30 1.2 Curvas higiênicas .................................................................................................. 43 1.3 Recorrências ortogonais ........................................................................................ 61
2.0 O passado inscrito em detalhes ............................................................................ 69
2.1 A máscara, o semblante urbano ............................................................................. 76 2.2 O fundo que sempre retorna ................................................................................... 86 2.3 A geometria sensível .............................................................................................. 98
3.0 Por uma lógica da salvação ................................................................................ 106
3.1 Uma memória perdida? ........................................................................................ 108 3.2 O ideal estético da imago urbis ............................................................................ 118
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 125
FONTES .................................................................................................................... 127
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 129
ANEXO.......................................................................................................................133
Mapa dos conjuntos urbanos tombados.......................................................................134 Inventário da arquitetura art déco do centro de Florianópolis....................................135
14
Introdução
Um texto de Nelson Brissac Peixoto chamado “O olhar do estrangeiro” fala sobre
olhar e sobre como nossa forma de ver as coisas se modificou ao longo do tempo,
principalmente ver a cidade contemporânea (PEIXOTO IN NOVAES, 1988). Nossa visão é
superficial, andamos apressados e a velocidade com que as imagens chegam até nós nos
anestesia, impedindo-nos de perceber o sentido das coisas. Para este autor, o olhar de
estrangeiro seria aquele que nos faria verdadeiramente perceber a poesia de tudo, assim como
o olhar da criança que está sempre descobrindo, o primeiro olhar.
Talvez esta pesquisa tenha se iniciado ainda no colegial quando meu olhar se
surpreendeu ao avistar pela primeira vez uma igreja do período do barroco mineiro. Acredito
que desde então passei a adquirir o hábito de olhar para o alto, hábito que me fez sentir algo
familiar e aconchegante ao chegar à Florianópolis, uma cidade cujo centro me pareceu bem
preservado e pouco densificado, em contraposição ao Rio de Janeiro, cidade grande onde
passei grande parte da infância e adolescência.
Ao longo destes anos que aqui vivo, era no caminhar pela cidade, quase sempre
olhando para cima, que via essas pequenas e modestas casas ou sobrados art déco que ainda
restam na centralidade principal da cidade. Como elas podem ser tão recorrentes como o
próprio barroco o foi? E como, ao olhá-las, percebemos uma aparente continuidade visual
com prédios coloniais, chegando muitas vezes a confundir o que é moderno e o que é
barroco? Um “estilo moderno”, como havia aprendido na faculdade? Mas então, porque me
faz sentir em uma cidade tradicional, “de um tempo cadeiras na calçada”, como descreve
Mário Quintana(2001, p.109), onde o público se confundia (ou se invertia) com o privado?
Pequenas peças de lego, miniaturas quase padronizadas, singelas e que se organizam quase
sempre em relação à Igreja, a maior das peças, aquela que orienta sua localização na cidade.
Eu tive a pretensão de, nestas extensas linhas, escrever um pouco sobre essas minhas
conjecturas, buscando estudar o fenômeno do art déco em Florianópolis, uma recorrência
arquitetônica em muitas cidades brasileiras entre as décadas de trinta e de cinqüenta, na
juventude da modernidade nos países latino-americanos, um momento onde se procurava
limpar as máculas de um passado retrógrado e insistente e assim entrar nas sendas da tão
sonhada civilização.
15
O art déco, de acordo com os manuais de arte e arquitetura e trabalhos acadêmicos,
surgiu na França, no período de entre-guerras1 em um momento de enriquecimento de uma
parcela da população que se manteve alheia à guerra. Uma elite consumidora que, de acordo
com Campos (1996), optou por uma estética caracterizada pela manutenção de alguns cânones
do passado – como, por exemplo, a composição clássica de base, corpo e coroamento dos
edifícios - somados à junção de novas referências da era da máquina, como a citação de
elementos de navios, aviões, entre outros, ou seja, a estética art déco se caracterizaria por uma
“releitura modernizada de valores universalmente aceitos” (CAMPOS, 1996, p.17) e talvez
seja este o motivo que pôde ser apropriada por diversos outros países como a então eminente
sociedade norte americana e os países da América Latina.
Desta forma, alguns autores2 apresentam o art déco como uma estética ambígua,
fundindo manifestações diversas, como referências do futurismo e do neoplasticismo, através
da insinuação da noção de movimento e da utilização de formas abstratas na composição,
como elementos das culturas ditas “exóticas”, a exemplo da apropriação de baixos relevos de
ornamentação geométrica, típicos da cultura marajoara (ver figuras 01 e 02), entre outros,
tendo apresentado leituras próprias e diferenciadas em cada sociedade e em cada localidade.
Figura 01 - Projeto de prédio do centro de Florianópolis, rua Fernando Machado, datado de 1936. Autor: Tom Wildi. Fotos da autora. Fonte: SUSP
Figura 02 – Imagem atual do prédio, 2008. Foto da autora.
1 O Art Déco como uma convenção figurativa, surgiu na França, durante a Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes, em 1925, porém, o termo só foi cunhado mais tarde, em uma mostra retrospectiva desta exposição, também na França, em 1966. 2 Podem ser citados os trabalhos de Hugo Segawa, em Arquiteturas no Brasil. 1900-1990. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002 e de Victor José Baptista Campos. O Art Déco e a construção do imaginário moderno: um estudo de linguagem arquitetônica. São Paulo: Tese (doutorado em arquitetura) USP, 2003.
16
A minha decisão por este tema surgiu da constatação da pouca visibilidade com que
esta estética era tratada, especialmente durante os anos de faculdade, assim como da
percepção de que este fenômeno teria sido – e ainda é - mais constante aqui em Florianópolis
e em outras cidades do que se pensava até então. Talvez o que houvesse fosse a falta de
conhecimentos e pesquisas mais sólidos das expressões que surgiram aqui na cidade entre as
décadas de trinta e cinqüenta. Meu objetivo desde o início foi analisar a manifestação da
estética art déco e como ela se expressou aqui na cidade, julgando que ela era mais presente
do que se supunha, manifestando-se na imagem urbana de forma muitas vezes modificada,
outras vezes preservada.
Para isto, recorri aos arquivos, onde encontrei plantas das décadas de trinta a cinqüenta
de projetos construídos em Florianópolis3, e foi onde pude selecionar aqueles que
expressavam esta intenção modernizante própria ao art déco. Tirei fotografias destes
registrando também dados como data, nome do autor do projeto e do construtor, entre outros,
e que estarão expostos ao final do trabalho. Cabe levantar aqui que, em virtude da
precariedade do arquivo onde pesquisei - situação não muito diferente de outros arquivos do
país -, muitos desenhos estavam inacessíveis, rasgados, esfarelados ou até queimados4,
justamente por isso, não foi possível contemplar a totalidade de edificações. Da mesma forma,
tirei fotografias daquelas edificações art déco ainda existentes em Florianópolis, localizadas
no centro da cidade, onde era maior a concentração urbana no período especificado,
buscando, no inventário, relacionar com seus respectivos projetos sempre que possível. Assim
também, ao longo do texto, procurei, quando julgasse necessário, fazer a correspondência
entre a imagem atual e a do projeto, como no exemplo acima de autoria do arquiteto Tom
Wildi, entretanto, muitas vezes não tive êxito, uma vez que é provável que a idéia original do
projeto nem sempre fosse seguida à risca, ocorrendo o fato de muitas edificações serem
modificadas durante sua execução. Cabe também destacar que, dos dados constantes
referentes a estas edificações, o item “natureza” do projeto indica se o mesmo representou
uma simples “reforma”, muitas vezes demonstrado por esta palavra ou por “fachada”,
indicando o hábito comum de reforma de fachadas, ou ainda “acréscimo”, ou “prédio”, este
último para indicar a construção integral da edificação, além de outras nomenclaturas
encontradas nos documentos do arquivo.
3 Pesquisa realizada na Secretaria de Urbanismo e Serviços Públicos – SUSP, onde é possível encontrar fachadas e plantas de qualquer construção realizada na cidade desde a segunda década do século vinte. 4 De acordo com o responsável pelo arquivo, Sr. Juraci, ocorreu um incêndio na década de oitenta que queimou parte dos documentos.
17
Friso ainda que minha atenção na pesquisa se dirigiu às fachadas por estas
apresentarem a cidade enquanto imagem e, sendo analisadas como semblantes urbanos,
expressarem modos de ser, muitas vezes apresentando-se como simples apropriações das
referências da época, outras vezes constituindo-se como disfarces, sendo esta última condição
a que foi mais explorada ao longo do estudo.
Além do levantamento desses dados visuais, o trabalho teve como respaldo variada
pesquisa bibliográfica, onde selecionei autores modernos e contemporâneos para diálogo. É
importante salientar que eu procurei pensar a cidade em parte enquanto artefato e enquanto
imagem, ao invés de somente estudá-la como documento de uma época, resultado disto ou
daquilo, tipo de estudo já realizado por outros autores, mas, em minha opinião, estudos que
foram pouco esclarecedores. Segundo Henri Leffebvre (1991), pensar a cidade como artefato
privilegia seu aspecto físico, sua topografia e geografia, enquanto imagem a cidade é pensada
através das memórias e dos valores que povoam o imaginário urbano. Procurei, em grande
medida, pensar a imagem da cidade enquanto algo que possa gerar sentido, buscando algumas
vezes empreender uma análise desta estética dita “moderna” para alcançar certos lapsos e
transbordamentos, anseios e recalques que possam ter ficados guardados nesta linguagem.
No primeiro capítulo analiso os prédios públicos construídos em Florianópolis a partir
da década de trinta, edificações construídas em linguagens distintas, mas que trouxeram, de
uma forma geral, a idéia do “moderno” para a cidade. Neste estudo, o art déco oficial é
constatado somente no prédio dos Correios e Telégrafos, as demais construções seguem a
linha moderna da arquitetura, assim como o próprio art déco o seguiu. Um período onde se
estabelece uma nova racionalidade administrativa nos governos nacional e estadual,
racionalidade que irá se refletir na imagem destas arquiteturas, imagens que, em grande
medida, expressavam um desejo de modernidade, sonhos com um Brasil do futuro. A
modernidade das primeiras décadas do século vinte era guiada pela utopia do novo, um desejo
de renovação que trazia a idéia de alcance do progresso e a projeção em direção ao futuro,
necessitando, para isto, eliminar o passado recente, visto como atrasado e retrógrado. E
algumas vezes percebo como essa idéia da renovação, da criação de algo “inédito”, tão
peculiar a esse período da história, nada mais era do que a sobrevivência do passado, o
retorno, mas não necessariamente o retorno do idêntico, que muitas vezes demonstra a
repetição dos mesmos anseios e desejos.
18
Para esta análise, estudo os debates responsáveis em grande parte por esse desejo de
renovação e que se travaram no seio da modernidade em diferentes esferas intelectuais,
debates que possuíam em comum uma insatisfação com a situação do momento, muito devido
às condições desregradas de uma Europa industrial, e que alcançaram posteriormente o Brasil.
Analiso os pensamentos nas esferas artísticas, médico-sanitárias e urbanísticas que de certa
forma questionavam a cidade de então e suas imagens e que foram em grande medida
responsáveis pelo estabelecimento da cidade regulada, ordeira e de pureza geométrica já
percebida através do fenômeno do art déco, por exemplo, nas cidades brasileiras.
Conduzindo conceitualmente este pensamento estão as reflexões contidas no texto
Paris, capital do século XIX, escrito por Walter Benjamin, onde o mesmo levanta questões
para pensar a modernidade a partir do final do século dezenove. Neste texto, Benjamin analisa
a fantasia do novo como formada pelos sonhos da sociedade, sonhos que muitas vezes já
foram sonhados, e que geram a “falsa aparência do sempre-igual, do eterno-retorno do
mesmo” (BENJAMIN IN KOTHE, 1991 p.40).
O segundo capítulo parte de uma constatação decorrente da análise das imagens que
olhei, onde percebi que o art déco na cidade é e foi mais recorrente pelo viés “popular” do
que por expressão das classes mais ricas ou do próprio poder público, uma expressão talvez
de uma classe média urbana, e opto por focar aí minha atenção. Analiso essas pequenas casas
como máscara, semblante urbano onde sobrevivem formas do barroco singelo, o barroco de
traços simples, linhas geométricas e cores diversas. É por um sutil jogo de linhas e proporções
que esta, que foi a primeira linguagem moderna na arquitetura, se assemelha à nossa primeira
linguagem arquitetônica enquanto colônia. O passado ressurge aí como algo que foi reprimido
na modernidade das primeiras décadas do século vinte por ser considerado retrógrado. O
passado travestido de futuro. Para esta análise, teço relações com outras imagens da história
da arte e da arquitetura e me conduzo pelo conceito de anacronismo de Didi-Hubermann
(2006) para demonstrar como as imagens em grande medida possuem mais memória do que
história, são formadas mais pelos diferentes pensamentos de diversas épocas que contribuíram
em sua fatura, ao invés de serem resultado somente do contexto do período em que foram
feitas, e que, sendo assim, poderiam ser analisadas a partir de uma história não linear, mas sim
anacrônica, formada pelos retornos compulsórios e intempestivos de lâminas de diferentes
pensamentos do passado. A imagem de arquitetura, neste caso, pode ser geradora de sentido.
19
No terceiro e último capítulo retorno a este semblante urbano para refletir acerca de
questões patrimoniais, tão intensamente debatidas desde o modernismo no Brasil, e aí procuro
levantar alguns pontos acerca dos critérios atuais de preservação, critérios na maioria das
vezes baseados em ideais estéticos e na “memória ilustre de determinados personagens da
cidade”, que deixam de lado parte considerável de seus cidadãos, rostos anônimos, ignóbeis,
que muitas vezes são mal lidos ou tidos como inexistentes.
Encontra-se aqui então, um pouco da história de Florianópolis, esta cidade que tomei
como minha, assim como também o tomaram outros olhares de estrangeiros que nela
desembarcaram, um pouco sobre o fenômeno do art déco em si, e também minhas derivas
pessoais sobre esta temática resultadas destes breves, mas intensos, quatro semestres de
aprendizado (ou desaprendizado) no mestrado. Sim, desaprendizado, porque muito do que eu
julgava saber foi posto em questão, ou visto sob novos olhares, me possibilitando armar novos
questionamentos para o trabalho, alguns deles expostos aqui.
Creio que este trabalho, além de ter me possibilitado aprender um pouco a pensar,
talvez possa servir como contribuição a outra forma de refletir sobre e olhar a cidade,
levantando questões, questões que envolvem a cidade, a memória, a história, o tempo, a
imagem e o olhar. Através desta pesquisa pude entender que a história, para além de um relato
causal, de causa e efeito, é também criação, unindo o próximo ao distante, o familiar com o
estranho, o lapso com o premeditado. Em grande medida, é um pouco isto que pretendi fazer
nestas linhas, falar estranhamente sobre aquilo de que fala a poesia de Mario Quintana, sobre
o corriqueiro e o banal, no mais puro sentido dos termos.
20
Capítulo 01. A fantasia imagética do novo
Graças,assim, ao profundo senso de previdência, à vigorosa segurança orientadora e, sobretudo, ao vigilante espírito patriótico do Sr. Getúlio Vargas, se vai processando, em todos os quadrantes do nosso território, uma obra renovadora, límpida e benéfica, que avulta em significação e amplitude, por nela se fundir, com a firmeza de ação conjunta e uniforme dos que trabalham e que produzem, a exaltação cívica da própria nacionalidade[...]A capital vai, assim, experimentando um surto de progresso raramente registrado, perdendo, sob essa como vontade entusiástica de remodelação, a crosta colonial desajudada de títulos valorizadores...(GOVERNO DO ESTADO DE SANTA CATARINA, 1939, p.04-08)
O espírito de renovação que se percebe nestes trechos do primeiro e único número da
revista de propaganda do Estado publicado em 1939 em Santa Catarina, foi marca registrada
da administração que se instaurou após a Revolução de 1930 no Brasil. Era necessário
instaurar o novo e, para isso, romper com o passado atrasado e retrógrado, especialmente um
passado em grande medida rural e oligárquico, alcançando o progresso e o futuro. Desta
forma, as promessas de ruptura com o passado e o alcance do Brasil moderno eram realizados
com base na idéia do novo, deste espírito de renovação.
Durante estes anos, uma das formas de se atingir esta condição era pela construção de
obras públicas, grandiosos monumentos que contribuiriam na eliminação desta “crosta
colonial”, ao trazerem a imagem do novo, ou, pode-se dizer, uma nova imagem, simbolizando
também uma nova era na administração nacional e, conseqüentemente, estadual e municipal.
De acordo com Carlos Humberto Corrêa (2004), em Florianópolis, apesar da intensidade do
discurso da revista de propaganda, poucas foram as obras vultosas construídas neste período.
Sob a administração de Nereu Ramos, que assumiu o governo em 1935 para em seguida ser
nomeado interventor federal com o Golpe de Estado de 1937, as principais construções
realizadas foram o Departamento de Saúde Pública (ver figura 17), nos altos da rua Felipe
Schmidt, o Abrigo de Menores no bairro Agronômica (figura 03) e o Grupo Escolar Getúlio
Vargas, no Saco Dos Limões (figura 04),edifícios que foram inaugurados durante a visita do
presidente Getúlio Vargas à capital de Santa Catarina em 1939 (CORRÊA, 2004).
21
Figura 03 – Antigo Abrigo de Menores, atual prédio da Justiça da Infância e da Juventude, rua Delminda Silveira, Florianópolis, 2008. Foto da autora.
Figura 04 – Grupo Escolar Getúlio Vargas, rua João Mota Espezim, Florianópolis, 2008.Foto da autora.
Entretanto, apesar desta parca participação do Estado em Florianópolis, nas poucas
obras construídas ou nas reformas e readequações realizadas, a idéia de transformação e
renovação fazia-se presente em consonância com a construção da nova nação:
Êsse aspecto da ação administrativa, em Santa Catarina, se acentua em linhas firmes, através do trato de obras de vulto marcante, formando, na grandeza dos seus fins, um conjunto de realizações magníficas. [...] Missão essa, de resto, bem compreendida pela clarividência patriótica do Sr. Nerêu Ramos, que vem planejando e executando não só melhoramentos de esplêndida eficiência, mas verdadeiros monumentos assinaladores de uma ação transformadora benéfica... (GOVERNO DO ESTADO DE SANTA CATARINA, 1939, p.25)
22
Construir a nação era foco dos anseios das novas administrações que surgiam neste
período não só no Brasil, mas em grande parte da América Latina. O nacionalismo e a
elaboração de uma identidade própria já foram buscados em outros períodos da história do
país pelos diferentes movimentos que se sucederam, todavia, com a modernidade das
primeiras décadas do século vinte, especialmente com o movimento modernista, estas
questões assumem um novo papel, uma nova configuração.
Na primeira metade do século, os conceitos de cultura e de história passam a ser
definidores da nova sociedade, em detrimento das noções de raça surgidas a partir das teorias
científicas em voga no final do século dezenove. A multiplicidade de nossas práticas culturais,
buscada principalmente em nosso passado histórico seria um dos fatores que iriam revelar a
identidade do país. Situação ilustrada por obras que surgiram na época e que representaram
profundas modificações no pensamento social brasileiro de então, especialmente a partir da
década de trinta, como Casa Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freire e Raízes do Brasil
(1936), de Sérgio Buarque de Holanda, que procuravam, dentre outros, explicar a situação do
Brasil de então através do passado colonial.
Dentro deste contexto, a preocupação em construir a nação e forjar uma identidade
nacional fazia premente a necessidade em se dizer o que é o Brasil, em definir qual seria a
cara do Brasil, o que foi buscado, como já explicitado, em seus traços culturais. Assim, a
intelectualidade da época, especialmente aquela que se reuniu em torno do Movimento
Modernista, deflagrado a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, assume a
responsabilidade de falar pela população e então definir a nação e organizar a sociedade.
Entretanto, essas questões relativas à construção da nação não eram consenso na
época, especialmente no meio dos arquitetos e, dentro deste contexto, pode-se afirmar que
dois grupos disputavam a elaboração do projeto cultural desta nova nação a partir da
construção de novas arquiteturas, ambos expressando, em suas idéias, sonhos com o Brasil
moderno: os neocoloniais, encabeçados pelo crítico de arte José Mariano Filho, e os
funcionalistas, representados pelo arquiteto Lúcio Costa e outros profissionais que em 1936 se
envolveram na construção do prédio do Ministério da Educação e Saúde (MES) 5. Os
primeiros assumiam uma postura tradicionalista ao defender a adoção do neocolonial, uma
linguagem baseada na arquitetura do nosso passado colonial, procurando adaptá-la ao
presente e que já estava sendo estudada desde o final da primeira década do século vinte; os
5 O grupo que se uniu a Lúcio Costa na elaboração do prédio do Ministério da Educação e Saúde em 1936 era compreendido por Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Afonso Eduardo Reidy, Jorge M. Moreira e Ernani Vasconcelos.
23
segundos afinavam-se com as idéias que surgiam a partir do movimento racionalista da
Europa e foram incentivados pelo pensamento do arquiteto franco-suíço Le Corbusier, que
esteve no Brasil em 1929 e 1936. A arquitetura funcionalista, de acordo com Yves Bruand,
tinha como características:
arquitetura essencial e fundamentalmente social, devendo exprimir a extraordinária mudança na vida que ocorreu há uma ou duas gerações; predominância do fator econômico, justificando o emprego do concreto armado, o mais perfeito e mais barato material de construção; necessidade de padronização para permitir o nascimento de um estilo original de caráter internacional (BRUAND, 1981, p.73; grifo nosso).
Este tipo de arquitetura já havia sido ensaiada anteriormente em manifestações
isoladas nas obras do imigrante russo Gregori Warchavchik, que nos anos vinte construíra em
São Paulo casas que procuravam se basear em alguns princípios funcionais, na medida em que
utilizavam o concreto armado e materiais estandardizados, possuíam uma arquitetura de
volumes simples e geométricos, com poucos detalhes de ornamentação(figura 05); entretanto,
estas experiências não tiveram grande repercussão à época, possivelmente por representar
casos isolados em um momento de voga do neocolonial.
Figura 05 – Gregori Warchavchik: casa na rua Bahia, São Paulo, 1930. Fonte: SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900-1990.SP: Edusp, 2002.
24
Apesar da boa repercussão do neocolonial nas primeiras décadas do século, esta
linguagem passou a ser criticada por aqueles que exigiam uma arquitetura “original”, que não
implicasse em citações do passado como o fizeram os historicismos anteriores, e, dentre estes
se encontrava Lúcio Costa que, após um período de fidelidade a esta voga tradicionalista,
inclusive através de projetos realizados, reconheceu as limitações inerentes ao neocolonial,
passando a defender o funcionalismo.
A crítica ao neocolonial residia, dentre outros motivos, no fato de sua estética
reutilizar formas do passado de maneira arbitrária e copiosa, além da falta de sinceridade
construtiva também percebida, como exemplifica Yves Bruand:
Dobradiças falsas, caixotões imitando vigas, juntas falsas simulando pedra, estrutura de concreto cuidadosamente disfarçada, vigas de madeira cortadas perfeitamente na serraria e depois retocadas a machado para parecer que foram esquadradas por esse meio, arestas puras das barras de ferro mutiladas para fazê-las perder sua perfeição (1981, p.73).
O fato é que o impasse estava feito, romper com o passado, procurando um “estilo
original” como queriam os defensores funcionalistas, ou se basear nele e em nossas tradições
para a elaboração da imagem do Brasil moderno; o que foi em parte resolvido quando do
concurso para a sede do Ministério da Educação e Saúde (MES), em 1936(figura 06). O então
ministro Gustavo Capanema, assessorado por uma equipe de intelectuais modernistas, como
Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, convida Lúcio Costa, cuja proposta fora
desclassificada anteriormente, para a construção do novo prédio, ignorando o projeto vencedor,
de autoria de Archimedes Memória, professor da Escola Nacional de Belas-Artes e defensor do
neocolonial.
25
Figura 06 – Ministério da Educação e Saúde, Rio de Janeiro, anos 40. Fonte: SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900-1990.SP: Edusp, 2002.
Lúcio Costa forma então uma equipe de profissionais afinados com as idéias
racionalistas e, a partir de então, estabelecia-se o grupo que estaria envolvido na construção
do prédio que representaria um marco na arquitetura brasileira, definindo a linguagem do
modernismo oficial do país.
Entretanto, a imagem do novo governo não foi definida somente por esta linguagem
arquitetônica; o Estado, pelo que se percebe, não primou por estabelecer uma única imagem,
tendo adotado nos novos símbolos, diferentes arquiteturas, todas exprimindo, ao mesmo
tempo, sonhos com um Brasil do futuro. Além do modernismo oficial do prédio do MES,
podem-se citar o Ministério da Guerra (figura 07), cuja estética apresentava formas aludindo
ao neoclássico, novas agências dos Correios e Telégrafos e Grupos Escolares, estes dois
últimos construídos em linguagem art déco (figuras 08 e 09).
26
Figura 07 – Christiano Stockler das Neves: Ministério da Guerra, Rio de Janeiro, 1939. Fonte: SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900-1990. SP: Edusp, 2002.
Figura 08 – Departamento de Correios e Telégrafos: agência de Belo Horizonte, décadas de 1930-40. Fonte: SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900-1990. SP: Edusp, 2002.
Figura 09 – José Maria da Silva Neves: Grupo Escolar Visconde de Congonhas do Campo, São Paulo, 1936. Fonte: SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900-1990. SP: Edusp, 2002.
27
Em Florianópolis, como já foi dito, poucas foram as grandes obras públicas
efetivamente construídas no período do governo de Nereu Ramos, de 1935 até 1945. Em
grande medida, pode-se dizer que ocorria uma situação de “paralisação”, que Corrêa (2004)
afirma ter se estendido até 1951, na administração de Aderbal Ramos da Silva. Além do
Departamento de Saúde Pública, do Grupo Escolar Getúlio Vargas e do Abrigo de Menores,
como se afirmou, também se podem citar a nova sede dos Correios e Telégrafos (figura 37),
em linguagem art déco e a do Banco do Brasil (figura 10). Apesar de estes edifícios
apresentarem linguagens um pouco diferenciadas entre si, cabe analisar o caráter de
“moderno” que era comum a todos eles.
A modernidade das primeiras décadas do século vinte trazia uma noção de moderno e,
concomitantemente de “novo”, que se mostrava, em grande medida, comum a estas
linguagens distintas que se manifestaram na arquitetura após a Primeira República no Brasil,
tendo se estendido algumas vezes até as expressões das décadas de setenta e oitenta e que
eram em grande parte resultado do pensamento surgido principalmente no século dezenove e
que trouxe a idéia do novo. O Brasil do futuro deveria romper as amarras com o passado,
encarado como retrógrado e atrasado, e investir na busca do novo, procurando projetar-se em
vários sentidos, para o futuro. Era através do novo que a cidade se impunha como um meio de
ser moderna, como uma alternativa de alcance do progresso e do futuro, concepção que fazia
parte do ideário da administração nacional deste período. A cidade moderna pretendia ser,
através de sua imagem do presente, a imagem do futuro.
Entretanto, o paradoxo do moderno é que o novo nada mais é do que uma fantasia
imagética engendrada pela sociedade, e que, na verdade, muitas vezes trata da sobrevivência
de formas, formas estas já existentes na própria história da cultura.
Walter Benjamin, em Paris, capital do século dezenove apresenta uma descrição desta
utopia moderna:
Essas imagens são imagens do desejo e, nelas, a coletividade procura tanto superar quanto transfigurar as carências do produto social, bem como as deficiências da ordem social da produção. Além disso, nessas imagens desiderativas aparece a enfática aspiração de se distinguir do antiquado – mas isto que dizer: do passado recente. Tais tendências fazem retroagir até o passado remoto a fantasia imagética impulsionada pelo novo. No sonho, em que ante os olhos de cada época aparece em imagens aquela que a seguirá, esta última comparece conjugada a elementos da proto-história, ou seja, a elementos de uma sociedade sem classes. Depositadas no inconsciente da coletividade, tais experiências, interpenetradas pelo novo, geram a utopia que deixa o seu rastro em mil configurações da vida, desde construções duradouras até modas fugazes (BENJAMIN IN KOTHE, 1991, p.32)
28
O novo aparece como quase obsessão da modernidade, e o presente é vivido nesta
dialética passado-futuro, buscando-se muitas vezes o passado remoto, de forma consciente ou
inconsciente. Esta busca é marcada pela sobrevivência, mas não necessariamente sobrevive o
igual, o idêntico. É a “origem da falsa aparência” que gera a “falsa aparência do sempre-igual,
do eterno-retorno do mesmo” (BENJAMIN IN KOTHE, 1991, p.40).
Desta forma, como a concepção do novo que vigorou principalmente na modernidade
das primeiras décadas do século vinte foi engendrada no seio da civilização ocidental?Quais
eram as discussões que forjaram essa fantasia de renovação e busca pelo novo e que
contribuíram para a construção das modernas arquiteturas e da cidade moderna?
Para aceder a estas questões levantadas é necessário, portanto, compreender o pano de
fundo dos debates que se instauraram com a modernidade de meados do século dezenove e
começo do vinte, e que foram responsáveis em grande medida pela idéia de moderno,
percebendo a reverberação destes debates nas imagens das arquiteturas construídas pelo poder
estatal em Florianópolis. Cabe destacar que muitas das obras públicas construídas em
Florianópolis, principalmente durante a primeira metade do século vinte, eram elaboradas por
profissionais da capital federal que provavelmente tiveram contato com as idéias provindas da
Europa através da vinda de profissionais renomados como Le Corbusier que, como já foi dito,
esteve no Brasil por duas vezes, ou até pelo acesso a revistas de arquitetura e engenharia da
época.
Durante o século dezenove na Europa encontramos muitos intelectuais discutindo o
seu tempo e as insatisfações com a cidade da sociedade industrial e suas conseqüências.
Cidades que se mostravam desordenadas, focos de infecção e insalubridade, onde os produtos
de consumo apresentavam-se repetitivos e padronizados, resultantes de uma indústria que
solapou o trabalho dos artesãos, entre tantas outras insatisfações. E dentro deste contexto,
novos debates e teorias surgiam, em diferentes esferas de pensamento, procurando todos, da
mesma forma, dar ordem à situação desregrada de então.
O novo nas vanguardas européias implicava no rompimento com o passado e na
ordenação da situação das cidades. Foram pensamentos cuja proposta de renovação em grande
medida forjou muitas linguagens modernas na arquitetura, como por exemplo, o art déco,
posto que o mesmo apresentava-se aparentemente como a primeira linguagem arquitetônica
que evitava citações do passado.
29
Podemos assim identificar três grandes focos, provindos de distintos meios
intelectuais, cujas idéias terão grande importância nos desdobramentos da modernidade de
então: o pensamento dos teóricos da estética, que questionavam se a beleza da sociedade de
então deveria ou não ser composta por ornamentos, envolvendo preocupações acerca dos
próprios fazeres artístico e estético; o daqueles que viam a sociedade pelo viés da saúde e
onde o modelo da nova civilização deveria corresponder aos conceitos do higienismo; e, por
fim, o pensamento dos arquitetos e daqueles intelectuais que procuravam urbanizar a cidade,
com teorias e idéias em estreito vínculo com o grupo anterior.
30
1.1 – A sobriedade antiornamental Em 1940, entrava nos arquivos da Secretaria de Urbanismo e Serviços Públicos de
Florianópolis (SUSP) o projeto do novo prédio do Banco do Brasil6 (figura 10), em terreno
estratégico na Praça XV de Novembro, esquina com a rua Tiradentes, onde atualmente
funciona o Arquivo Público do município de Florianópolis. Com um aspecto tendendo ao
monumental, ressaltado pela grande entrada na esquina, por grandes vãos de janelas e por
apresentar parte de seu revestimento em material nobre, o novo prédio se diferenciava do
edifício vizinho, referência na cidade, e que abrigava a Câmara Municipal, antiga Câmara e
Cadeia da cidade (figura 11), principalmente por lançar mão de linhas retas e da quase
ausência de detalhes de ornamentação.
Figura 10 – Antigo Banco do Brasil, atual Arquivo Municipal de Florianópolis, 2008. Foto da autora.
6 Como o projeto original era composto por mais de uma fachada, ele não foi inserido aqui, entretanto, é possível encontrá-lo no inventário em anexo. Não foi possível encontrar a identificação do autor do projeto, mas acredita-se, por não haver menção acerca do mesmo, que ele tivesse sido proveniente da capital federal à época.
31
Figura 11 – Antiga Câmara Municipal de Florianópolis, 2008. Foto da autora.
A linha reta e a ausência de ornamentos passavam a fazer parte da estética dos prédios
públicos construídos principalmente a partir da década de trinta e eram em grande medida
resultado de um longo processo de debates e questionamentos acerca do ornamento na estética
contemporânea.
O ornamento, ao longo da história ocidental, esteve presente em grande parte das
linguagens arquitetônicas utilizadas pelas diferentes sociedades. No período do Renascimento,
Alberti, teórico da arte e humanista, em seu tratado De Re Aedificatoria, pensando os edifícios
que compunham Roma antiga, faz uma divisão em duas grandes abordagens: a das estruturas
e a dos ornamentos. À primeira corresponderia uma beleza inata e à segunda uma beleza
acrescentada. Todavia, ambos seriam igualmente importantes e deveriam se corresponder,
assim, “a beleza ‘acrescentada’ do ornamento deveria integrar a beleza ‘inata’ das estruturas”
(ARGAN, 2005, p.108).
Entretanto, não foi esta a concepção sobre o ornamento que vigorava durante o século
dezenove e começo do vinte. Nesta época, a idéia da beleza contemporânea oscilava entre a
valorização do ornamento por alguns teóricos e a sua condenação por outros, muitas vezes por
acreditarem que o mesmo não correspondesse ao “espírito da época” moderna.
O teórico inglês da arte John Ruskin foi um dos que arduamente positivavam o
ornamento, acreditando ser este elemento primordial da arquitetura, sendo o responsável por
distingui-la da mera construção, definindo a mesma como arte (RUSKIN, 1857).
32
Ruskin (1992) criticava e questionava a intensa reprodução dos ornamentos pela
indústria durante o século dezenove, condenava sua repetição e padronização principalmente
porque os mesmos seriam fruto da submissão do trabalho dos artesãos à indústria moderna, e
porque a falta de variação, segundo ele, tornava o mundo completamente monótono e
repetitivo. Essa monotonia era resultado principalmente da obsessão pela perfeição, ou seja,
pelo rigor no acabamento e na sua execução, situação que para ele já existia no período do
Renascimento e que contrariava toda a espontaneidade e beleza do período do gótico, a “idade
de ouro”.
Ainda segundo ele (1992), foi a distorção dos conceitos clássicos de perfeição que
originou a estética renascentista. Os homens, ao invés de buscarem a realização das formas da
perfeição clássica, buscaram a perfeição das formas, o que exigia um altíssimo nível de
acabamento e execução, só conseguido pelos grandes mestres, não pelos simples artesãos,
situação que acabava por suprimir a capacidade criativa destes últimos e a expressão do
sentimento na realização das obras:
Esquecendo que é possível concluir obras desprezíveis e aprender coisas inúteis, os homens quiseram encontrar por toda a parte uma mão-de-obra perita e douta. Exigindo imperiosamente uma grande habilidade de execução, desprezaram pouco a pouco a expressão da ternura do sentimento; exigindo imperiosamente um saber preciso, desprezaram pouco a pouco reivindicar a originalidade do pensamento (RUSKIN, 1992, p.111).
Essa falta de criatividade e de liberdade de expressão era percebida principalmente na
atividade daqueles trabalhadores cujo ofício era a imitação de outros materiais, como o
mármore e a madeira, situação condenável para Ruskin e que impedia o trabalhador de
possuir qualquer capacidade de abstração devido à exigência mecânica da cópia perfeita
(RUSKIN, 1992). Assim sendo, a imitação, ou seja, a falsificação de materiais como, por
exemplo, a pintura imitando o mármore ou o cobrimento de uma parede com reboco e sua
divisão em listras para imitar a pedra, ou até a sugestão de uma falsa estrutura em parte da
edificação seria uma situação imoral para John Ruskin:
Touching the false representation of material, the question is infinitely more simple, and the Law more sweeping; all such imitations are utterly base and inadmissible. It is melancholy to think of the time and expense lost in marbling the shop fronts of London alone, and of the waste of our resources in absolut vanities, in things about which no mortal cares, by wich no eye is ever arrested (...) (1857, p.39)
33
Condenável igualmente era a manufatura de objetos pela indústria, que substituía o
trabalho artesanal e não reconhecia o verdadeiro valor do ornamento que se encontrava,
dentre outros, no tempo que ele levou para ser feito pelas mãos do trabalhador.
A beleza ornamental para Ruskin estava localizada na reprodução das formas da
natureza, formas que eram curvas, visto que não havia no mundo natural formas retas,
concepção que teve importância na criação do estilo art nouveau.
O art nouveau foi desenvolvido na Europa no final do século dezenove e começo do
vinte e recebeu diferentes designações nos diversos países que o adotaram7. Sua estética
utilizava uma linguagem floral, com formas ondulantes e suaves, linhas delgadas e contínuas
(figura 12).
Figura 12 – Detalhe de fachada com elementos art nouveau. Disponível em <http://www.markeff.wordpress.com>. Acesso em 19.maio.2008.
7 Foi denominado Modern Style na Inglaterra, Jugendstil na Alemanha, estilo Secessão na Áustria, entre outros.
34
Walter Benjamin afirma que o art nouveau representou o “abalo” da valorização
excessiva do interior no final do século dezenove. A “fantasmagoria do interior” para
Benjamin era caracterizada pelo excesso de ornamentação do espaço privado do homem
daquele período, uma ornamentação que utilizava elementos de períodos variados da história,
e que por isto traziam a ilusória idéia do “novo”, a fantasia da renovação que acalmaria sua
“alma solitária” (BENJAMIN IN KOTHE,1991, p.37), percebida, por exemplo, na fachada do
já citado prédio da antiga Câmara Municipal de Florianópolis (ver figura 11), construído no
final do século dezoito, que utiliza detalhes ornamentais diversos, como máscaras, elementos
imitando colunas clássicas, simulação de alvenaria de pedra, capitéis em desenhos
diferenciados, entre outros. O abalo que Benjamin declara é que o art nouveau, na medida em
que não apresentaria citações de estilos do passado, não corresponderia mais a essa
necessidade do homem contemporâneo de retroagir até um tempo pretérito, sendo
considerado como o primeiro estilo “moderno” dos objetos decorativos na medida em que
procurava romper com esta atitude historicista, tão criticada, por exemplo, por estes teóricos
que refletiam sobre o ornamento e a estética moderna8. Benjamin afirma que a verdadeira
significação desta linguagem estava mais de acordo com as concepções do próprio fazer
artístico, representando uma última tentativa de superar a separação entre arte e técnica que
ocorria então.
Entretanto, apesar disto, os objetos art nouveau também foram utilizados para
preencher a casa, fizeram parte da compulsão do homem em ornamentar tudo, situação muito
criticada por Ruskin, para quem o lar devia ser local de repouso e tranqüilidade destinado à
apreciação dos mais belos ornamentos, não um depósito de quinquilharias da mais péssima
qualidade e de forma aleatória (RUSKIN, 1857).
Para Ruskin, a ornamentação se distinguia da decoração por ser feita de forma
artesanal, por reproduzir as formas da natureza e por estar localizada em locais adequados à
apreciação, diferentemente da decoração contemporânea, feita com objetos reproduzidos em
série pela indústria, que muitas vezes imitavam materiais nobres e serviam para serem
amontoados na casa burguesa.
8 Não é comum se falar de um prédio essencialmente art nouveau, este se apresentou como uma linguagem mais associada aos objetos decorativos, existindo algumas partes das edificações desenhadas nesta estética, conforme esclarecido por Marcos Sá em Ornamento e Modernismo: a construção de imagens na arquitetura. Rio de Janeiro: Rocco, 2005: “Nas edificações não havia uma forma propriamente Art-nouveau, mas a adaptação do edifício às características essenciais do estilo: a linha sinuosa e lânguida e a ornamentação orgânica inspirada na flora” (p.71).
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Essa foi uma das maiores críticas dos grandes teóricos deste período, a compulsão em
ornamentar tudo, encontrada tanto no interior doméstico como nas fachadas das edificações, e
também foi criticada por Alois Riegl, para quem “as formas mais elevadas de arte resultaram
sempre da interação entre os impulsos ornamental e expressivo, entre a ‘festa para os olhos’ e
a expressão das inquietações individuais e coletivas a respeito de Deus, da morte, do poder,
do sexo etc” (PAIM, 2000,p.46). Para este teórico, a ornamentação possuía um caráter
ontológico, de ligação do ser com o divino e o supremo, e a atitude contemporânea de
preencher tudo, esse horror ao vazio que ele tanto criticava, era resultado de uma falta de
sentido dos artistas da época e que não era vista como ornamentação por Riegl, mas sim como
a superficialidade da decoração (PAIM, 2000). Assim como Ruskin, Riegl rejeitou a poluição
ornamental que se percebia então, - cunhando-a pejorativamente de decoração - e,
percebemos, nas idéias de ambos, já um indício do culto ao despojamento que viria a
predominar no modernismo.
O que se percebe é que as idéias destes teóricos do século dezenove e começo do
vinte, de crítica à poluição visual do ornamento e à aleatoriedade de sua aplicação, por mais
que os mesmos defendessem a valorização do ornamento, acabaram em grande medida
preparando o terreno para a sua negação total pelo modernismo. Uma das justificativas que
prevaleceram posteriormente era de que a era moderna, baseada na velocidade do automóvel e
da máquina, além da altura dos arranha-céus como imagem dominante na cidade moderna,
não permitia que se observassem atentamente os detalhes das coisas, por exemplo, as fachadas
dos prédios.
A negação do ornamento teve como um de seus precursores o arquiteto austríaco
Adolf Loos, que defendia que a arquitetura deveria expressar o “espírito da época” (LOOS,
1972, p.86), o qual se caracterizava, dentre outros, pela eliminação do ornamento da vida
moderna. Seu intenso combate ao ornamento teve grande importância nos desdobramentos do
modernismo.
A utilização do ornamento pela sociedade da época era para este arquiteto um crime,
pois acreditava ser algo supérfluo e em desacordo com o mundo e o homem moderno. Para
ele “ornamento es fuerza de trabajo desperdiciada y por ello salud desperdiciada”(1972, p.47).
Defendia uma estética pura e sóbria, sem ornamentos, que ele justificava ardentemente pela
exemplificação da moda masculina inglesa. O homem bem vestido deveria apresentar-se ante
a sociedade de forma que chamasse o mínimo possível de atenção, o que acontecia com o
terno preto de botões pretos, o mais distinto possível. Essa simplificação do traje era típica de
uma sociedade do trabalho e assalariada, onde a atividade corporal exigida pelo homem que
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trabalha impedia a utilização, por exemplo, de roupas largas e excessivamente adornadas
como o era antigamente, assim, a forma seguia a função. Desta forma, a evolução da
sociedade seguia a eliminação gradual do ornamento dela:
Cuanto más recôndita es uma civilización tanto más vigoroso aparece el ornamento. El ornamento debe ser superado. El papua y el criminal se hacen tatuar la piel. El índio cubre de ornamentos totalmente su barca y remos. Pero la bibicleta y la máquina de vapor carecen de ornamentos. La civilizacion que progresa elimina de los objetos la necessidad de ornamentación (LOOS, 1972, p. 81).
Essa era a estética moderna para Loos, uma estética que primava pelo funcional e
também pela ética. A sobriedade e a distinção eram para este arquiteto uma forma de se
destacar em relação às classes inferiores, evitando a cópia pelas mesmas. Situação que seria
atingida pela perfeição - um conceito que ele valorizava, diferentemente de Ruskin -, e que
deveria se fundamentar na época clássica, “la madre de todos los subsiguientes períodos
culturales” (LOOS, 1972, p. 84) pois, para Loos, a boa cadeira era a melhor cadeira. Essa
valorização da qualidade de execução e a utilização de materiais nobres como a madeira, o
mármore, entre outros, substituiria a falta de ornamentação.
O que Adolf Loos parecia concordar com o pensamento de John Ruskin era quanto à
condenação da imitação de materiais pela sociedade da época. Uma sociedade que copiava
estilos de épocas passadas e os reproduzia utilizando materiais contemporâneos escamoteados
com a falsa aparência do original, como por exemplo, a imitação da ornamentação de palácios
renascentistas, que parecia ser feita com estuque, como o era originalmente, entretanto era
imitada com concreto moldado. Para Loos essa era uma situação imoral, a de aparentar o que
não se é, a situação de querer, mas não poder e para isto, enganar.
La pobreza no es ninguna deshonra. No todos tienen el deber de haber venido al mundo en uma propriedad feudal. Pero, representar ante el prójimo la farsa de que se tiene esa propiedad es ridículo e inmoral. ¡No nos avergoncemos de vivir en una casa de alquiler junto com otras muchas personas que tengan la misma posición social que nosotros! ¡No nos avergoncemos de que haya materiales de construcción demasiado caros para nosotros! ¡No nos avergoncemos de ser hombres del siglo XIX, de los que no desean vivir en una casa que, arquitectónicamente, podría ser de épocas pasadas! Si fuésemos así, veríais como volveríamos a tener el estilo própio de nuestra época (LOOS, 1972, p.208).
37
Foi esse hábito de falsificação de materiais que levou Loos (1972) a elaborar seu
princípio do revestimento. Assim como a pele do homem e a casca da árvore na natureza, a
arquitetura também possuía seu revestimento que servia para diversos fins, como algumas
vezes para proteger contra as intempéries, outras por motivos higiênicos ou até para produzir
determinados efeitos na própria superfície. Os revestimentos, diferentemente dos ornamentos
– que na época representavam cópias de estilos do passado -, deveriam ser sinceros quanto ao
material que cobriam. Por exemplo, ao revestir as paredes de uma cozinha, qualquer material
poderia ser usado, menos aquele que imitasse ladrilhos, como pintura colorida com listras
brancas. Assim também a madeira deveria ser pintada com qualquer cor ou até esmalte
incolor, menos com pintura que imitasse os veios da mesma. Loos usa como exemplo as
pernas das bailarinas, cujo tecido de revestimento poderia ter qualquer cor, exceto a cor de
pele, porque assim imitaria a tez natural. Desta forma, o material de revestimento não deveria
imitar de qualquer maneira o material que está sendo revestido, ou seja, aquele que está por
baixo.
A beleza da vida moderna, sóbria e austera, consistia assim, em revestir os ambientes
com materiais nobres, como madeira ou pedras, permitindo perceber sua nudez, ou seja, sua
verdade. Essa era, para Loos, a sensibilidade do homem moderno, e estaria refletida, por
exemplo, na beleza sóbria e austera do prédio do antigo Banco do Brasil em Florianópolis, na
medida em que este apresenta revestimento em mármore tanto interna quanto externamente,
linhas completamente retas e ausência de ornamentação (ver figura 10).
Esta sensibilidade sóbria e austera também foi defendida por Le Corbusier, arquiteto
franco-suíço que teve contato com os conceitos de Adolf Loos e utilizou-os para elaborar sua
visão da estética moderna do século vinte.
Para Le Corbusier (1996), a arte decorativa do século vinte – termo que ele emprega
para designar a elaboração dos utensílios de então, mas que constantemente ele questiona a
validade – não deveria possuir decoração. A decoração era sinônimo de ornamentação, essa
ornamentação que ele via nos estilos do passado, de cópia dos elementos da natureza e outros,
e servia somente para camuflar as falhas, as manchas, os defeitos. Ela representava a falta de
franqueza construtiva, insatisfação já percebida em Ruskin e Loos.
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Importante notar que essa insatisfação com a falsificação dos materiais e com a falta
de franqueza construtiva comuns ao pensamento de todos estes teóricos, em grande medida
conduziu à afirmação completa da estrutura das edificações pelo movimento moderno, uma
estética tautológica que se originou, onde as estruturas, as tubulações e as superfícies
deveriam estar totalmente à mostra, afirmar sua existência e sua participação na composição
do conjunto.
Os escritos de Le Corbusier foram reunidos em seu livro A arte decorativa, elaborado
em 1925, na época da Exposição de Artes Decorativas e Industriais Modernas na França. O
livro é ilustrado principalmente por imagens de máquinas e das grandes invenções das últimas
décadas (ver figura 13), como aviões, carros, engrenagens, navios e outras descobertas da
ciência. Segundo Le Corbusier, a máquina “opera uma reformulação do espírito” (1996,
p.103) e é a partir dela, de suas formas limpas, geométricas e funcionais, que é baseada a
estética deste arquiteto. A arte decorativa deveria ser como a máquina, deveria atender às
necessidades humanas, que eram comuns a todos os homens, e seus objetos deveriam ser
elaborados através da escala humana e da função a desempenhar. Assim, teríamos “objetos-
membros humanos” (p.76), objetos funcionais que seriam um prolongamento dos membros de
nosso corpo e atenderiam a essas necessidades padrões.
Figura 13 – Fotografia de automóvel ilustrando o livro Arte Decorativa,de Le Corbusier.SP: Martins Fontes, 1996, p.95.
Desta forma, Le Corbusier padroniza o homem e todos os objetos criados por ele,
concepção que teve grande importância na teoria do movimento moderno e que, mais tarde,
será responsável pela crítica ao modernismo arquitetônico por tipificar o que não é
“tipificável”.
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A arte decorativa seria, dentro destes princípios, uma ferramenta, como a própria
máquina, algo que simplesmente deve servir ao homem:
A arte decorativa é um termo vago e inexato com o qual se representa o conjunto dos objetos-membros humanos. Estes atendem com certa exatidão a necessidades de ordem claramente objetiva. Prolongamentos de nossos membros, são adaptados às funções humanas que são funções-padrões. Necessidades-padrões, funções padrões, logo, objetos-padrões. O objeto-membro humano é um servidor dócil. Um bom servidor é discreto e se retrai para deixar seu patrão livre (LE CORBUSIER, 1996, p.79).
Diferentemente do princípio de revestimento de Adolf Loos, Le Corbusier afirmava
que a elegância da habitação moderna – a “máquina de morar” (1989, p.65) - de então estaria
na brancura das paredes brancas, pintadas a cal. Segue ainda Le Corbusier (1996) dizendo que
isso expressaria a verdade de cada objeto que seria obrigado a ser feito com perfeição, pois as
falhas saltariam aos olhos diante do fundo branco, e desta forma nos cansaria a “mentira” dos
objetos de recordações, as quinquilharias ornamentais que ele denomina pejorativamente de
objetos-sentimentos, opostos aos objetos-padrões e que seriam destinados a cada indivíduo
em particular e elaborados pelos artistas decoradores.
Se a casa é inteiramente branca, o desenho das coisas nela se destaca sem transgressão possível; nela o volume das coisas aparece nitidamente; nela a cor das coisas é categórica. O branco da cal é absoluto, tudo nele se destaca, escreve-se absolutamente, preto no branco; é franco e leal. (...) Lei da Tinta Esmalte, Leite de Cal: supressão do equívoco. (...) Temos em nós um imperativo leal que é o espírito da verdade e que, no liso da tinta esmalte e no branco da cal, reconhece o objeto verdadeiro (LE CORBUSIER,1996, p.193)
Simplicidade e despojamento, pois o “homem inteiramente nu não usa colete bordado;
deseja pensar” (1996, p.23). Essa seria a estética de Le Corbusier, baseada na pureza da caixa
branca e nas formas geométricas que tinham como inspiração a linguagem da máquina. Uma
estética que, em grande medida, resume a ascese antiornamental que prevaleceu nas obras
modernistas e de grande parte da produção arquitetônica da primeira metade do século vinte e
cujos princípios estariam demonstrados, por exemplo, no estúdio que Le Corbusier criou para
seu colega Ozenfant, com paredes lisas, brancas, linhas retas, formas geométricas, ausência de
qualquer vestígio de ornamentação, sobriedade e despojamento (figura 14).
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Figura 14 – Interior do estúdio de Ozenfant, projetado por Le Corbusier e Pierre Jeanneret. Fonte: BENÉVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. SP: Editorial Perspectiva,1998, p.425.
Todas estas concepções de sobriedade e simplificação da forma encontram-se, de uma
forma ou de outra, nas arquiteturas públicas construídas em Florianópolis a partir da década
de trinta. Apesar das variações de linguagens e referências, a grande maioria expressa esta
ascese moderna. O edifício das Secretarias (figuras 15 e 16), construído na década de
cinqüenta, localizado também à frente da Praça XV de Novembro, em esquina com a rua
Tenente Silveira, é um destes exemplos.
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Figura 15 – Edifício das Secretarias, Florianópolis, 2008. Foto da autora.
Figura 16 – Detalhe da entrada do edifício das Secretarias, Florianópolis, 2008. Foto da autora.
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Projetado pelo escritório local Moellmann e Rau, foi elaborado como uma arquitetura
clássica modernizada (CASTRO, 2002), ou seja, fazendo alusão a elementos da arquitetura
neoclássica, assim como foi feito anteriormente o do Banco do Brasil, mas em menor escala.
Sua entrada é marcada por duas gigantes colunas que precedem um hall revestido de mármore
marcado por uma grande porta com gradil em metal trabalhado (figura 16). Suas janelas são
limpas, quase sem detalhes ornamentais, padronizadas e repetidas, apresentando em um dos
lados do edifício, o quebra-sóis, elemento de proteção solar preconizado por Le Corbusier
(ver figura 15). Ambos os prédios possuem uma estética limpa, sóbria, verificada
principalmente pela utilização de materiais nobres e pela pouca presença de detalhes
ornamentais, destacando-se no prédio das Secretarias uma grossa cimalha, elemento da
estética clássica, que marca o térreo.
Dentre deste caldo de disputas acerca da beleza da vida moderna, o ornamento foi
aparentemente vencido por uma estética limpa, sóbria, que pudesse eliminar o ranço do
passado, um passado que era, antes de tudo, ornamental, traço típico da estética barroca.
Apesar das justificativas sociais, econômicas, éticas e estéticas implícitas no pensamento de
alguns destes intelectuais – e que acabaram caracterizando o “espírito da época” -,
defendendo que o ornamento não estava de acordo com a nova sociedade, perceberemos que a
repressão à atitude ornamental que se inicia com o art déco, ao negar as referências do
passado, conduzirá a seu retorno, o retorno inconsciente daquilo que ficou reprimido, um
retorno não programado na obra de arquitetos da modernidade do século vinte.
43
1.2 – Curvas higiênicas A utopia moderna, para se realizar, deveria eliminar toda a sujeira do passado.
Entretanto, na “obra límpida”, defendida no discurso do governo do estado catarinense e já
citada anteriormente (GOVERNO DO ESTADO DE SANTA CATARINA, 1939, p.04), a
sujeira não era negada apenas metaforicamente, a idéia da sua eliminação provinha de
concepções higienistas que tomaram força no século dezenove e faziam-se perceber nas
construções tomadas a cabo na capital.
Em 1939, quando da visita do presidente Getúlio Vargas à capital catarinense, é
inaugurado o edifício que abrigaria o novo Departamento de Saúde Pública de Florianópolis
(figura 17), no entroncamento da rua Felipe Schmidt com a Rio Branco, onde funcionaria
também um Centro de Saúde para a população da ilha. Durante esses anos, a nova
racionalidade administrativa do governo fez-se perceber na criação de um sistema
administrativo nacional para a saúde, distribuindo delegacias federais e departamentos
estaduais por todo o país, procurando ampliar a atuação do governo nesta área, uma vez que,
anteriormente, as ações visando a saúde da população ficavam restritas à capital federal e às
cidades que possuíam os principais portos (AMORA, 2006). Desta forma, em 1937 foi
realizada a primeira reforma nacional na saúde, e a partir dela o Estado de Santa Catarina teria
sido dividido em sete distritos sanitários, com centros de saúdes em cada sede, abastecidos de
serviços especializados nas diversas questões de higiene. Esta maior coordenação das ações
sanitárias era parte de um processo federal de modernização que visava construir uma nova
cultura e, assim, uma nova nação a partir dos “padrões do hodierno sanitarismo” (GOVERNO
DO ESTADO DE SANTA CATARINA, 1939, p.29).
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Figura 17 – Departamento de Saúde Pública de Florianópolis, sem data. Fonte: Casa da Memória – Fundação Franklin Cascaes
Os conceitos deste sanitarismo moderno são decorrentes do discurso médico que se
instalou principalmente a partir dos séculos dezoito e dezenove na Europa, a partir de novas
descobertas nas áreas da saúde e da doença. Fazia-se necessário descobrir as causas para os
males do indivíduo e da sociedade como um todo, que viviam constantemente surtos de
doenças e epidemias. O saber médico, ao procurar solucionar estas questões, adentrou com
grande força em diferentes esferas da sociedade, influenciando o pensamento social, as
condutas e modos de ser dos indivíduos; novos hábitos e concepções que alcançaram,
posteriormente, o Brasil.
No século dezoito vigoravam as teorias baseadas no pensamento de Hipócrates,
filósofo grego para quem a origem das moléstias se encontrava no meio, na atmosfera, nos
ares e na água (COSTA, 2002). Para o pensamento médico da época, a doença estava
relacionada à natureza e à sociedade, caracterizando-se aquilo que Michel Foucault chamou
“de medicina das coisas: ar, água, decomposições, fermentos; uma medicina das condições de
vida e do meio de existência” (FOUCAULT, 1979, p.92). Neste tipo de medicina, o meio
passou a ser estudado procurando encontrar nele as causas das moléstias e, com isto, teorias
foram elaboradas, ocasionando a designação dos locais que se consideravam infestados e sua
posterior intervenção. Algumas teorias afirmavam que os miasmas, elementos considerados
nocivos, seriam os responsáveis por contaminar o ar e o ambiente e em seguida o corpo
humano, sendo sua proliferação maior nos locais estagnados (COSTA, 2002). Desta forma,
a circulação e renovação do ar eram necessárias para a boa saúde do ambiente e dos
indivíduos, e a poeira passou a ser perseguida, assim como todos os locais onde ela pudesse se
acumular. Não só o acúmulo de poeira era desaconselhado pelos médicos, como também o
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acúmulo de pessoas; os navios, os hospitais e as prisões passaram a ser objeto de estudo dos
especialistas, assim como dos arquitetos, que buscavam novas soluções espaciais que
evitassem o amontoamento. Assim também os cemitérios passaram a receber maiores
atenções, pois o amontoamento de cadáveres, que exalavam um fedor pútrido, era considerado
uma das maiores ameaças ao controle das emanações nocivas (CORBIN, 1987).
Diante destas convicções, a medicina procedia a uma reelaboração do espaço da
cidade, com o alargamento e asfaltamento de ruas, criação de praças e fontes, canalização de
córregos, o distanciamento de hospitais, prisões e cemitérios das aglomerações principais,
entre outros. Em seguida, essas prescrições alcançam a casa burguesa, passando a regular
novos hábitos e condutas sociais.
As habitações, de uma forma geral, apresentavam-se mal ventiladas, em espaços
exíguos, sendo consideradas como locais privilegiados de concentração de micróbios. O
discurso de uma boa ventilação também se tornou fator essencial para uma casa saudável, que
evitasse a presença de organismos indesejáveis. Assim também a pavimentação do solo e o
revestimento das paredes passaram a ser necessários nesta nova prática de assepsia. Como cita
Corbin, “rebocar, forrar, pintar, caiar paredes, tetos e madeiramentos é vestir uma couraça
contra o miasma” (1987, p.121). O lixo e os dejetos também foram objetos de atenções
especiais, seus odores infecciosos – os quais, ainda de acordo com Corbin, eram a
“materialização do miasma” (1987, p.138) - deveriam ser eliminados, o que levou à
particularização do dejeto, com a posterior individualização do ato de defecar, assim como a
compartimentação do lixo em locais específicos.
Para responder às novas exigências de salubridade, muitas edificações sofrem
gradativas mudanças em sua concepção espacial, alterações percebidas através de algumas
tipologias já do final do século dezenove ou começo do vinte, na forma de pequenos
afastamentos laterais (figura 18).
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Figura 18 – Edificação antiga no centro de Florianópolis, apresentando afastamentos laterais, 2007. Foto da autora.
Acreditando na qualidade purificadora do ar, os quartos da casa burguesa, por
exemplo, passam a ser conectados por um corredor, não mais ligados uns aos outros. Os
afastamentos laterais, à princípio um só, introduziram-se como inovação na época,
proporcionando maior ventilação ao interior da residência, eliminando os odores das antigas
alcovas. Estas, locais de intimidade, escuros e sem a menor ventilação, exalavam não somente
os odores do ambiente, mas também aqueles do sexo, da carne, dos prazeres íntimos que
deveriam a partir de então ser controlados.
A utilização de porões elevados, além de resguardar a intimidade da família dos
olhares urbanos, possibilitava a ventilação debaixo da residência, evitando assim o mofo e a
possível contaminação por micróbios (figuras 19 e 20). Da mesma forma, muitos antigos
sobrados que eram residência e local de trabalho ao mesmo tempo, alguns ainda encontrados
em Florianópolis, passaram a ser só local de trabalho, em muito devido às medidas higiênicas,
pois, segundo Nestor Goulart Reis Filho, no Brasil, “os pavimentos térreos dos sobrados,
quando não eram utilizados como lojas, deixavam para a acomodação dos escravos e
animais...” (REIS FILHO,1978, p.28).
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Figura 19 – Projeto de construção de prédio no centro de Florianópolis, datado de 1933, com porão elevado. Autor: Tom Wildi. Fotos da autora. Fonte: SUSP
Figura 20 – Imagem atual do prédio, 2008. Foto da autora.
Com os afastamentos laterais, muitas edificações passam a apresentar varandas, novos
espaços de sociabilidade, além de jardins, elemento que possibilitaria o contato com a
natureza, proporcionando o ar puro necessário na renovação do ar e dos odores privados.
Todas estas alterações faziam parte de um processo de mudanças mais amplo que se
fez perceber também através de um maior individualismo e valorização da vida íntima,
associados a novos hábitos e práticas de limpeza pessoal, primeiramente entre as elites,
definindo o que ficou conhecido como higiene. Importante destacar que a palavra higiene
deriva de Higia9, deusa grega relacionada à saúde, e este conceito originalmente referia-se ao
evitamento da doença. No período em questão, parece que houve uma associação entre
limpeza, identificada através do aspecto visual das coisas, à saúde do indivíduo, associação
que nos permite fazer relação com a modificação estética que ocorria, por exemplo, em torno
da negação do ornamento - que nada mais era do que uma limpeza visual, pois este, além de
“poluir visualmente”, poderia também acumular poeira -, o que é corroborado pela afirmação
de Corbin ao declarar que “aquilo que as elites entendem então por higiene, quando se trata do
povo, diz respeito, sobretudo à aparência” (1991, p.444).
9 Segundo GRIMAL, Higia é “a personificação da saúde, é muitas vezes considerada como uma das filhas de Asclépio” (2000, p.228).
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O povo, por seus hábitos e condutas insalubres, passa a ser em grande medida
responsabilizado pela causa de doenças, uma vez que as epidemias não cessam pela simples
intervenção no meio. A população humilde torna-se então objeto de atenção dos reformadores
higienistas e do poder público, inclusive porque novas teorias passaram a afirmar que a causa
das doenças não se encontrava exclusivamente no meio, mas no próprio indivíduo. Passa a ser
necessário ao poder público cuidar da saúde desta parte da população, assegurando, ao mesmo
tempo, a aptidão ao trabalho dos mais pobres e a saúde dos mais ricos. Michel Foucault
(1979) localiza nesta prática uma medicina de controle da saúde e do corpo do indivíduo, uma
medicina calcada na assistência médica aos menos favorecidos e no controle da saúde da
população, principalmente pela difusão de hábitos coletivos de higiene.
Cuidando da saúde do indivíduo como uma faceta do coletivo, cuidar-se-ia da nação, e
neste contexto, podemos inserir as ações do governo brasileiro após a Revolução de 1930,
principalmente após 1937, como por exemplo, a construção dos diversos centros e postos de
saúde no Estado de Santa Catarina para atender à população e difundir novos hábitos de
higiene, evitando o surgimento de epidemias que bloqueariam o projeto modernizador do
país.
Amora afirma que a criação do Departamento de Saúde Pública de Florianópolis fazia
parte de “uma ação ampla em prol da proteção e do desenvolvimento da saúde física e mental
da população” (2006, p.264), o que é percebido nesta afirmação do governo estadual:
Como se vê, há a preocupação de não descuidar de forma alguma as gerações futuras, pois que em todos os núcleos importantes do Departamento funcionarão dispensários destinados à segurança da mulher grávida, do infante, do pré-escolar e do escolar (...) Em apenas 18 mêses de exercício, cerca de 13.000 pessôas na grande maioria infantes e escolares, já foram matriculados nos seus serviços, recebendo os cuidados que suas condições físicas exigiam e robustecendo suas energias para maior contribuição, presente ou futura, ao progresso econômico e bem estar coletivos(GOVERNO DO ESTADO DE SANTA CATARINA,1939, p.32).
Somado a isso, os novos conceitos do higienismo eram percebidos também através de
detalhes do desenho das fachadas do novo prédio.
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Para além das informações relativas ao gosto ou ao “estilo” da construção, alguns itens
neste prédio são importantes assinalar como condizentes com a idéia de salubridade que se
queria imprimir, como por exemplo, o grande número de aberturas, sua padronização e
repetição, a presença de venezianas, refletindo uma maior preocupação com a ventilação, o
recuo do alinhamento da calçada, já indicando possivelmente novas posturas de construção
sobre o tecido da cidade, separação dos acessos, sendo um pela entrada principal do
entroncamento e outro pela lateral na rua Felipe Schmidt (ver figura 17). Também devem ser
ressaltadas e melhor analisadas a fachada curva da esquina e a pintura na cor branca.
O branco, principalmente o branco da cal, já no século dezenove era considerado
como necessário na desodorização dos ambientes (CORBIN, 1987) e, esteticamente, ele
passou a ser associado à higiene e à limpeza.
Um dos maiores defensores na utilização do branco nas arquiteturas, como já foi
mostrado, foi Le Corbusier. Fica claro em sua obra que as considerações higiênicas são
tratadas em conjunto com diretrizes estético-visuais.
O purismo –a própria designação já é sugestiva - nome do movimento criado por ele e
pelo pintor Amedée Ozenfant em 1919, tinha por pressuposto estético a utilização das formas
puras da geometria, a geometria encontrada, por exemplo, como já foi ressaltado, nas
máquinas modernas, e a casa moderna deveria valer-se destas formas e da cor branca, mais
especificamente da pureza da cor da cal e da tinta esmalte como já assinalado:
Um ato que conduz à alegria de viver: a perseguição da perfeição. Imagine os efeitos da Lei da Tinta Esmalte. Cada cidadão é obrigado a substituir seus revestimentos de parede, seus damascos, seus papéis de parede, suas pinturas decorativas, por uma demão pura de tinta esmalte branca. A pessoa torna limpa a sua casa: já não há em nenhum lugar canto sujo, nem canto escuro: tudo se mostra como é. Depois a pessoa limpa a si própria, pois entra-se na trilha de recusar-se a admitir o que quer que não seja lícito. Autorizado, querido, desejado, concebido: só se age quando se concebeu. Quando a sombra e os cantos escuros cercam você, você só está em casa até o limite turvo dessas zonas obscuras que seu olhar não penetra; você não é dono em sua casa. (LE CORBUSIER, 1996, p. 191)
A idéia da higiene e princípios de salubridade são notavelmente percebidos na teoria
de Le Corbusier para a nova arquitetura, uma vez que, constantemente o arquiteto francês cita
a necessidade de ventilação, iluminação, banhos de sol e ar fresco(1989).
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Le Corbusier elaborou cinco princípios que guiariam as novas construções: o pilotis, a
planta livre, a fachada livre, o terraço-jardim e o pano de vidro na fachada; o pilotis libera o
edifício do solo, facilitando a circulação de ar e de pessoas, a planta livre facilita a mobilidade
dos móveis e paredes na busca da melhor disposição para iluminação e aeração, as janelas de
vidro com as fachadas livres possibilitam maior entrada de luz, integrando interior e exterior,
o terraço-jardim traz a natureza, o ar puro, e, somando a esses princípios, o arquiteto também
postulava a utilização de quebra-sóis que regulam a incidência do sol. Uma estética que
buscava através da própria construção proporcionar a saúde - mas também em grande medida
controlá-la, assim como a natureza, o interior e o exterior -, e cujos princípios foram
apropriados pelos arquitetos brasileiros, fazendo parte do programa da arquitetura modernista
oficial da nação a partir da construção do prédio do MES (ver figura 06), projetado em 1936
por Lúcio Costa e equipe, conforme já citado. Este prédio serviu como modelo ao novo
edifício das Diretorias em Florianópolis (figura 21), com projeto de 1953 do engenheiro
Domingos Trindade - formado pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, de onde
provavelmente surgiu a referência desta linguagem –, e inaugurado em 1961(CASTRO,
2002), tendo sido o primeiro prédio na capital em consonância com o Modernismo oficial,
marcando um período de consolidação da linguagem na cidade10.
10
Para maiores informações sobre este edifício e sobre o modernismo oficial em Florianópolis, conferir: CASTRO, Eloah Rocha Monteiro de. Jogo de formas híbridas. Arquitetura e modernidade em Florianópolis na década de 50. Florianópolis: tese (doutor em historia cultural) UFSC, 2002.
51
Figura 21 – Edifício das Diretorias, rua Tenente Silveira, Florianópolis, 2008. Foto da autora.
O edifício das Diretorias, diferentemente da proposta de Le Corbusier, não é
totalmente liberado do solo, apesar de apresentar o pilotis. Apresenta uma volumetria formada
por formas geométricas – dois prismas retângulares em L -, o pano de vidro, o quebra-sóis, a
planta e a fachada livres, entretanto, apresenta um elemento que na época já marcava presença
na obra de alguns arquitetos brasileiros: a curva, encontrada no desenho das paredes do térreo
(figuras 22 e 23) e da marquise formada pelo pilotis (figura 24).
52
Figura 22 – Edifício das Diretorias, 2008, detalhe da parede curva. Foto da autora.
Figura 23 – Edifício das Diretorias, 2008, detalhe da parede curva. Foto da autora.
53
Figura 24 – Edifício das Diretorias, 2008, detalhe da marquise curva. Foto da autora.
A partir dos séculos dezoito e dezenove, novas curvas associadas à clareza e à higiene
são utilizadas como princípio estético. Pelo pensamento higienista, a curva passa a ser
recomendada pelos tratadistas por evitar a acumulação de sujeira nos cantos, pois reentrâncias
e saliências dificultavam a limpeza e a passagem do ar. Este princípio já era premente nas
primeiras décadas do século vinte no Brasil, uma vez que o governo do Estado de Santa
Catarina, ao dissertar sobre a reformulação do prédio da penitenciária do Estado, no bairro da
Agronômica, descreve que as celas “têm os cantos de entrada arredondados, para permitirem
uma completa inspeção” (GOVERNO DO ESTADO DE SANTA CATARINA, 1939, p.74;
grifo nosso).
Assim também foram feitas algumas construções que procuravam obedecer aos novos
princípios: Alain Corbin cita que o projeto de Soufflot para o Hospital da cidade de Lyon, na
França, era modelar, pois o mesmo concebeu “uma sala abobadada, cuja forma elíptica
permite eliminar os cantos estagnantes e estabelecer correntes de ar ascendentes” (1987,
p.131). Nesta concepção pode também ser inserido o projeto do Hospital Nereu Ramos (figura
25), em Florianópolis, construído em 1938 e cujo corpo principal é elíptico, assim como a
curva que marca a entrada principal do já referido Departamento de Saúde Pública de
Florianópolis (ver figura 17), possibilitando a circulação de ar ao longo dos seus dois lados
simétricos.
54
Figura 25 – Hospital Nereu Ramos, sem data. Fonte: Casa da Memória – Fundação Franklin Cascaes.
No começo do século vinte a curva é utilizada esteticamente também em virtude de
outras descobertas da ciência, como a descoberta do universo curvo de Albert Einstein. Albert
Einstein procurou provar cientificamente que o formato do universo era curvo, pois o peso
dos corpos no espaço deformaria o mesmo, o qual a partir daí apresentaria curvaturas
decorrentes do peso das massas, um modelo diferente do paradigma euclidiano predominante
até então que acreditava ser o universo reto.
Dentro deste contexto, nas primeiras décadas do século vinte, o arquiteto alemão Eric
Mendhelson, partidário da corrente dita expressionista na arquitetura, lançava mão da curva
em seus projetos por acreditar ser ela a expressão da intuição, do registro individual do artista,
construindo em 1920 seu projeto mais conhecido, a Torre Einstein (figura 26) que teria a
pretensão de servir de observatório ao cientista.
55
Figura 26 – Eric Mendhelson. Torre Einstein, 1920. Disponível em http://www.dw-world.de. Acesso em 17.03.2008.
Também Oscar Niemeyer justificava sua estética de formas expressivas pela referência
ao “universo curvo de Einstein” (NIEMEYER, 2000, p.17), e é possível perceber que nestes
dois arquitetos a curva era saudada com uma nova relação do homem com o universo e como
expressão da intuição. Novas curvas surgidas com a modernidade ocidental e que são
introduzidas no Brasil primeiramente em prédios de linguagem art déco públicos (ver figuras
08 e 09) ou particulares (figuras 27 a 30).
Figura 27 – Projeto de construção de prédio em Florianópolis, com esquina curva, avenida Hercílio Luz, datado de 1939. Autor: Defendente Rampinelli. Foto da autora. Fonte: SUSP
Figura 28 – Imagem atual do prédio, 2008. Foto da autora.
56
Figura 29– Projeto de construção de prédio em Florianópolis, com balcão curvo, rua Conselheiro Mafra, datado de 1948. Autor: Raul Bastos. Foto da autora. Fonte: SUSP.
Figura 30– Imagem atual do prédio, 2008. Foto da autora.
Entretanto, no período do Barroco, a curva já aparecia associada a esses termos, ao
universo, às descobertas da ciência, e à expressão das emoções, sendo muitas vezes
decorrente das novas concepções do homem em relação ao cosmos. Durante o século
dezessete, novas teorias desenvolvidas por Nicolau Copérnico, Galileu Galilei e Johannes
Kepler passaram a defender que era a Terra que se movia em torno do sol- ao contrário da
teoria heliocêntrica defendida pela Igreja e em vigor até então-, assim como que o universo
era infinito e descrevia uma órbita elíptica, afirmações que possivelmente afetaram a crença
do homem em sua posição central no cosmos, posição que lhe era atribuída até então pela
Divina Providência (HAUSER, 1998). Desta forma, a estética barroca teve na curva o
impasse do homem entre razão e emoção, entre o céu e a terra, racionalidade e intuição,
apresentando uma nova relação do homem com o universo, com o cosmos.
57
Dentro desta perspectiva, podemos dizer que o século vinte, com a afirmação da
racionalidade científica moderna, através dos conceitos higienistas, das novas descobertas da
ciência, ao tentar reprimir o passado, um passado que de certa forma poder-se-ia dizer que
ainda era barroco, pela presença do ornamento, pela adoção de formas que não eram
reguladas ou funcionais, pela falta de salubridade percebida pelos espaços exíguos, escuros,
com odores, detritos, entre outros, acabou por fazê-lo retornar como recalque na obra de
alguns arquitetos do século vinte.
A obra de Niemeyer, por exemplo, surgida neste momento de negação do passado, de
afirmação da pura geometria como fim da atitude ornamental, em grande medida assinala o
retorno do ornamento, por seu aspecto expressivo, quase figurativo.
Em um momento de afirmação da estrutura da edificação, de uma estética tautológica,
da abstração das formas e volumes puros que compõem as janelas, os pilares e o próprio
edifício, estes mesmos elementos passaram a ser melhor explorados plasticamente sendo
valorizadas suas capacidades de expressão formal, assinalando um retorno da curva
expressiva, do movimento, da expressividade de formas, muitas vezes tornando-se o próprio
prédio um grande objeto ornamental, de caráter quase escultórico (figuras 31 a 33). Uma
situação que também foi ensaiada em Florianópolis, por exemplo, no edifício das Diretorias,
pelos planos curvos do térreo e pela marquise também expressiva, elementos já aqui referidos
(figuras 22 a 24), no Instituto de Educação, construído entre 1951 e 1964, pela
experimentação formal de seus pilares (figura 34) 11, assim como no prédio do Fórum de
Florianópolis, projetado pelo arquiteto local Carlos Stodieck e inaugurado em 1986 (figura
35) e no do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, inaugurado em 1975 (figura 36) 12. Estes
dois últimos também podem ser associados a um grande objeto ornamental, com aspecto
bastante figurativo, situação verificada pelas designações que lhes são atribuídas por parte do
senso comum: “marmitão” para referir-se ao prédio do Fórum, e “transformador”, para o do
Tribunal de Justiça.
11 Não foi possível localizar o nome do autor do projeto. 12 Também não se localizou o responsável pelo projeto do mesmo.
58
Figura 31 – Oscar Niemeyer. Pilares do Palácio do Planalto.Fonte: PENTEADO, Hélio. Oscar Niemeyer. São Paulo: Almed, 1985.
Figura 32 – Oscar Niemeyer. Catedral de Brasília, inaugurada em 1970. Disponível em www.caminhandosinrumbo.com. Acesso em 28.março.2008.
Figura 33 – Oscar Niemeyer. Prédio da Oca, parque Ibirapuera, São Paulo, inaugurado em 1954. Disponível em <http://www.tvnanet.com.br>. Acesso em 20.maio.2008.
59
Figura 34 – Pilares do Instituto de Educação de Florianópolis, 2008. Foto da autora.
Figura 35 – Fórum de Florianópolis, 2008. Foto da autora.
60
Figura 36 – Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, 2008. Foto da autora.
Dentro desta perspectiva, tem-se em grande medida uma memória que ficou enterrada
e que ressurge como recalque, como a sobrevivência do passado que reaparece – não
necessariamente de forma idêntica - através de pensamentos inconscientes que ficaram
latentes (DIDI-HUBERMANN, 2006). A obra de arquitetura, enquanto imagem, pode aqui
ser pensada como montagem, como empilhamento de tempos heterogêneos, sendo formada
mais por memórias distintas que atravessam sua fatura do que pela memória histórica
eucrônica e contextual com que usualmente é narrada.
Trata-se também de pensar a história das imagens de arquitetura não como sendo
formada pela alternância das formas historicamente determinadas, como o supunha Wolfflin
(2000), que propôs pares de opostos para definir as imagens. O sistema que ele propôs era
baseado na oposição entre o clássico e o barroco, o primeiro, por exemplo, sendo formado
pelas linhas retas, em ângulos retos, pela estabilidade, o segundo pela linha curva sugerindo
movimento. Entretanto, estas obras de que tratamos são formadas mais pela conjunção e pelo
aspecto nuançado de retas e curvas, pela concomitância, numa mesma obra ou no mesmo
período, de formas abertas, convexas e formas fechadas, côncavas, percebidas, por exemplo,
nos exemplos da Catedral de Brasília (figura 32) e no do prédio da Oca (figura 33), ou no do
Fórum (figura 35). Devemos pensar a história das imagens mais pela sobrevivência de formas,
formas que interrompem esta lógica eucrônica e que assinalam o retorno de uma vontade que
talvez tenha ficado encapsulada e que reaparece anacronicamente.
61
1.3 – Recorrências ortogonais
Em Paris, capital do século XIX, Walter Benjamin, ao dissertar sobre as modificações
urbanas de Paris no governo do Barão de Haussmann, revela que era prática comum das
instituições do governo tratar as necessidades técnicas de mudança como sendo projetos
artísticos, justificando a necessidade de transformação da cidade - causada mais pelas
mudanças na forças produtivas- através de um fetiche da burguesia, o que era cunhado como
“embelezamento estratégico” (BENJAMIN IN KOTHE, 1991, p.42). O desenvolvimento da
técnica desfez os “símbolos de desejo” da burguesia, como por exemplo, a caracterização da
arquitetura como uma prática de engenheiro ou da fotografia como técnica de reprodução da
natureza.
As reformas urbanas ocorridas nas principais cidades brasileiras nas primeiras décadas
do século vinte podem ser inseridas neste contexto, como um “projeto artístico” que se
delineou no traçado e nas fachadas urbanas, e que era em grande parte resultado da gradativa
incorporação de uma nova racionalidade científica no pensar a cidade. Assim, novas
construções eram saudadas como verdadeiros “monumentos”, como, por exemplo, o
“majestoso” (GOVERNO DO ESTADO DE SANTA CATARINA, 1939, p.60) edifício dos
Correios e Telégrafos, construído em 1937 na capital da ilha de Santa Catarina para abrigar a
nova sede desta instituição (figura 37).
Figura 37 – Correios e Telégrafos, Florianópolis, 2008. Foto da autora.
62
Em linguagem art déco, desenhado com linhas retas e poucos elementos de
ornamentação, o prédio é inserido estrategicamente na malha tradicional da cidade, em frente
à Praça XV de Novembro, estendendo-se por toda dimensão longitudinal da quadra e em
terreno que faz esquina com as ruas Vitor Meirelles e Saldanha Marinho. Hugo Segawa
declara ter sido este o “mais ambicioso projeto nacional de normalização arquitetônica
oficial” (2002, p.69), o de aperfeiçoar e estender o sistema dos Correios e Telégrafos por todo
o país a partir dos anos trinta. As principais capitais e cidades receberiam novas sedes, com
novos projetos elaborados por arquitetos da capital federal, projetos cujas diretrizes eram
especificadas previamente pelo governo13. As especificações geralmente eram referentes à
localização estratégica no tecido da cidade, muitos privilegiando os lotes em esquina,
separações de acesso, grandes salões para atendimento, utilização do concreto armado e
despojamento da decoração (SEGAWA, 2002). O prédio em Florianópolis também apresenta
parte dele em revestimento em pastilhas cerâmicas e um grande número de aberturas que
originalmente apresentavam janelas basculantes, em acordo com os preceitos modernos de
conforto higiênico.
Concomitante à construção do prédio dos Correios, consolidava-se na cidade um
processo de reformas urbanas que teve início na Primeira República. No final do século
dezenove, como já foi dito, as concepções higienistas que chegavam da Europa traziam novos
olhares e pensamentos principalmente sobre a cidade, visando ordenar o espaço urbano,
eliminando locais insalubres assim como intervindo no modo de habitar das populações mais
humildes que passavam a ser encaradas como responsáveis pelos focos de epidemias surgidos.
Assim, muitas reformas foram realizadas na cidade buscando modificar esta situação; em
1909 instalaram-se as primeiras redes de água encanada, entre 1913 e 1917 foi a vez das redes
de esgoto e energia elétrica, em 1919 iniciou-se a construção da Avenida Hercílio Luz,
primeira grande avenida da cidade, mais tarde, em 1926 inaugurou-se a construção da ponte
Hercílio Luz, ligando a ilha ao continente, obra que contou com a transferência do cemitério
encontrado anteriormente na cabeceira da mesma, uma vez que esta localização passou a ser
considerada inadequada também por questões de salubridade (NECKEL, 2003). Da mesma
forma, ruas foram redefinidas e calçadas, como a Padre Roma e a Marechal Deodoro, outras
criadas, como a Rio Branco e a Curitibanos, e também muitas residências humildes foram
desapropriadas visando a higienização do espaço da cidade.
13 Não foi encontrado o nome do responsável pelo projeto dos Correios e Telégrafos de Florianópolis, mas confirma-se, por documentos encontrados no órgão e informações do mesmo, que ele foi elaborado por um profissional da capital federal na época.
63
Concepções que também se tornaram prementes durante o governo que assumiu a
partir da terceira década, quando reformar a cidade, adequando-a aos conceitos modernos de
higiene e civilidade era também fazê-la ingressar no mundo moderno, livrando-se da antiga
condição de vila e de tudo que a ela remetia para atingir o status de cidade moderna,
alcançando a grandeza e a prosperidade (NECKEL, 2003).
Era necessário vencer o passado, um passado que era em grande medida, barroco, com
suas ruas estreitas, irregulares, casas de aspecto singelo, mal iluminadas e de espaço exíguo,
que exalavam odores e acumulavam sujeira:
Perdendo, pouco a pouco, a sua velha feição urbana, com o desaparecimento de bêcos, o alargamento e a abertura de novas ruas, o ajardinamento de logradouros públicos, a cidade remóça, adquirindo aspectos encantadores, substituindo as linhas arquiteturais do casario colonial pelos graciosos modelos de excelentes construções. [...] o presente, sem dúvida, saudando na garridice moça da sua imaginação convertida em realidade, um passado que vai sumindo, desfazendo-se na poeira rútila dos muros que se abatem, vencidos, no local e no espaço, pela ânsia humana de progresso...(GOVERNO DO ESTADO DE SANTA CATARINA, 1939, p.45/46)
Estas novas concepções em relação ao urbano pode-se dizer que se estenderam ao
longo de toda a modernidade do século vinte e trouxeram igualmente novos modelos de
cidades modernas. Um processo que teria se iniciado durante os séculos dezoito e dezenove
na Europa, onde, além do saber médico, a cidade passou a ser pensada também em suas
dimensões social e econômica. Surgem nesta época grupos de pensadores que elaboraram
novos projetos de cidades consolidando o que conhecemos por urbanismo, cujas idéias
chegaram a Florianópolis gradativamente.
Dentro destes grupos, Françoise Choay (2005) reconhece dois “modelos” de imagens
da cidade futura que organizavam suas idéias em relação ao passado ou ao futuro, assumindo
respectivamente a atitude da “nostalgia” ou do “progressismo”. O primeiro era o modelo
culturalista, cujo principal representante foi o arquiteto austríaco Camillo Sitte, e o segundo
grupo, chamado de progressista, cujas idéias prevaleceram na modernidade ocidental, era
representado principalmente por Le Corbusier, cujas propostas foram assimiladas por
profissionais brasileiros em suas duas vindas ao Brasil, em 1929 e 1936, e através de revistas
de arte e arquitetura, conforme já exposto.
64
O modelo culturalista, que teve sua concretização primeiramente em alguns projetos
de cidades elaborados na Alemanha e Áustria nas duas últimas décadas do século dezenove, é
partidário das idéias de John Ruskin de crítica ao desaparecimento da tradicional organicidade
da cidade antiga, da tentativa de fazer reviver um passado que, para esses pensadores, era
ideal. De acordo com Choay (2005), a maior preocupação dos teóricos culturalistas era
estética, e podemos percebê-la nas idéias de Camillo Sitte (1992), para quem a cidade ideal
não deveria possuir ângulos retos. Era necessário livrar-se da obsessão renascentista da
simetria e da proporção em busca de um traçado irregular, onde a localização dos
monumentos era cuidadosamente pensada para surpreender o olhar ao dobrarmos as esquinas
de suas tortuosas ruas, como nas cidades medievais. Sitte também pensava nas dimensões e
desenho das praças, lugares primordiais de convívio, que deveriam ser fechados e cercados
pelos edifícios que decoram suas paredes, um fechamento também necessário nas ruas. Os
monumentos e as fontes deveriam ser localizados às margens dos logradouros, não nos seus
eixos de simetria, em locais onde a circulação não era intensa em vias de serem mais bem
apreciados. Desta forma, Camillo Sitte pensava muito em termos da surpresa do olhar, da
espontaneidade da cidade que, a cada caminhada nos espantaria com um grande monumento
ou uma estátua localizados nos locais mais inesperados, diferentemente do modelo
progressista, onde o hábito da utilização dos ângulos retos e das grandes perspectivas
regulares e simétricas já escancara tudo facilmente ao olhar.
Entretanto, o modelo progressista foi o que predominou na elaboração das cidades
ocidentais. Como a própria designação já demonstra, é baseado na idéia de progresso,
orientando-se para o futuro, para a criação do “novo”, uma vez que seus pensadores
acreditavam estarem desenhando uma cidade nova e livrando-se de tudo que remetia ao
passado. L’Esprit Nouveau é o nome sugestivo da revista que Le Corbusier funda em 1919
com Ozenfant onde ele exporia suas idéias sobre a cidade e a arquitetura do futuro.
Neste modelo, o desenho do espaço é primordialmente aberto, diferente do modelo
culturalista. Esta orientação é justificada principalmente pelos conceitos científicos da higiene
e que foram aplicados, por exemplo, na construção de largas avenidas para a circulação
especialmente do automóvel, a máquina moderna. E seriam as funções humanas, que seriam
padrões para todos os homens, que regeriam a diferenciação dos espaços. Assim, este modelo
adota uma concepção do homem como tipo, como um padrão.
65
Assim como para a arte decorativa, a máquina também era uma referência para a
cidade que Le Corbusier preconizava, esta deveria ser dividida em funções, determinando
desta forma a área residencial, comercial, industrial, entre outras, e ser construída baseando-se
na geometria pura e simples. Grandes volumes prismáticos elevados do solo, que
concentrariam as habitações, muitas padronizadas, e liberariam o chão para o verde e para a
circulação de ar. Estas idéias tiveram como exemplo brasileiro a construção da cidade de
Brasília, projetada por Lúcio Costa e inaugurada em 1960, cujas diretrizes são decorrentes
deste pensamento progressista. As propostas deste urbanismo progressista foram mais
efetivamente introduzidas em Florianópolis com a elaboração do Plano Diretor do ano de
1952, onde se procurou, em termos de usos do solo e de crescimento da cidade, dar uma
primeira ordenação. Entretanto, em se tratando da forma e da imagem da cidade, as idéias
deste urbanismo já haviam adentrado a capital de Santa Catarina, de uma forma ou de outra.
Pode-se citar, por exemplo, o edifício do IPASE (figura 38) – Instituto de Pensão e
Aposentadoria dos Servidores Estaduais – que, de acordo com Castro (2002), foi aprovado em
1944 e projetado por Raul Pinto Cardoso, já trazendo, por exemplo, a solução dos
pavimentos-tipo e do edifício elevado do solo, com parte da área de baixo livre.
Figura 38 – Edifício do IPASE, Florianópolis, 2008. Foto da autora.
Saudado como uma ruptura com o passado atrasado e como uma nova era, um “novo
espírito”, este modelo de cidades teve nas linhas retas e no ângulo reto sua expressão
principal. Encontrados tanto na malha urbana como nas fachadas das edificações, o xadrez ou
o reticulado são, para Le Corbusier, as “linhas reveladoras” destas novas cidades e
arquiteturas (1989, p.24).
66
A retícula, na arte moderna do século vinte, passou a ser utilizada como uma forma,
como uma tentativa da pintura de se libertar da narrativa, da literatura, uma reivindicação da
pintura para os seus próprios meios, a planaridade e o pictórico. Nesta época, a retícula
aparece como algo inédito na obra dos artistas que optaram pela abstração, fazendo parte do
discurso da originalidade da vanguarda, um discurso pautado no sentido de começo, de
renovação e ruptura. Entretanto, de acordo com Rosalind Krauss (1986), a prática dos artistas
da vanguarda revelou que esta intenção de originalidade ocasionava, em grande medida,
repetição e recorrência, uma vez que a retícula era uma forma extremamente inflexível, capaz
de ser repetida em qualquer superfície, já tendo sido utilizada em outros momentos da
história.
Foi durante o Renascimento que as cidades começaram a ser desenhadas com formas
geométricas, especialmente com o tabuleiro xadrez. Para os artistas renascentistas, a
geometria possuía um sentido original, de formação do mundo, que eles sabiam e afirmavam
estar retomando dos clássicos.
No século vinte, Mondrian foi um dos artistas que mais abriu mão da retícula em suas
telas. Nas primeiras décadas deste século fez parte do De Stijl, grupo do qual faziam parte
muitos arquitetos, e cujas idéias primavam pela abstração. Mondrian buscava, por meio de um
jogo de horizontais e verticais e da utilização das três cores primárias, eliminar a
representação, a narrativa, em busca do equilíbrio perfeito.
A retícula, de uma forma ou de outra, se refletiu na estética de muitas edificações
desse século, como nas construções do já citado Le Corbusier (figura 39), como no próprio
prédio dos Correios e Telégrafos em Florianópolis (figura 37), do edifício do IPASE (figura
38), entre outros, e até em arquiteturas menores (figura 40).
Figura 39 – Pavilhão suíço na cité universitaire de Paris, Le Corbusier e P. Jeanneret, 1930. Fonte: BENÉVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. SP: Editorial Perspectiva,1998, p.509.
67
Figura 40 – Detalhe de forma reticular em edificação no centro de Florianópolis, 2008. Foto da autora.
Como já foi dito, estas linhas retas convivem em muitas obras modernas em
consonância com as curvas, caracterizando algumas vezes o aspecto ornamental a que chegará
a arquitetura moderna em certo ponto, um período de experimentação formal até nas plantas
de cidades. Lúcio Costa, ao descrever a elaboração do plano de Brasília, assim define o
desenho do traçado urbano: “Nasceu de um gesto primário de quem assinala um lugar ou dele
toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”
(COSTA, 1995 apud GUIMARAENS,1996,p.39; grifo nosso), ou seja, desnecessário afirmar
o caráter bastante figurativo da planta de Brasília (figura 41), onde estes dois eixos são
formados por uma linha reta e outra curva, tendo sido muitas vezes comumente associado a
figuras, como a de um avião, por exemplo.
Figura 41 – Planta de Brasília. Disponível em <http: //www.forumpermanente.incubadora.fapesp.br>. Acesso 26.mar.2008
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Enfim, fala-se aqui de uma época caracterizada por um espírito de devaneios e utopias,
de sonhos com o futuro, com o alcance do progresso, sonhos de um desejo de modernidade os
quais, em grande medida, representavam a sobrevivência, a sobrevivência do passado nestas
imagens desiderativas. Buscando o “novo”, negando o passado, figurativo, ornamental, este
reaparece de forma inconsciente, não programada. E, para Marcos Sá, este processo teria se
iniciado com o art déco, ao ser o primeiro a procurar romper com as formas do passado indo
em direção à abstração na arquitetura (SÁ, 2005).
Estes foram sonhos que, em grande medida, já anunciavam a época que estava por vir
a partir da década de setenta, um período assumidamente ornamental, figurativo. Como
Walter Benjamin já anunciava sobre a modernidade, “cada época não apenas sonha a
seguinte, mas, sonhando, se encaminha para seu despertar” (BENJAMIN IN KOTHE,1991,
p.43).