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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO O homem segundo o Ratio Studiorum Daniela Fernanda Cardozo Forster Lima Piracicaba, SP 2008

O homem segundo o Ratio Studiorum - unimep.br · ideal de homem a ser formado pelo Ratio Studiorum. A pedagogia da Companhia de Jesus se A pedagogia da Companhia de Jesus se expressa

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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

O homem segundo o Ratio Studiorum

Daniela Fernanda Cardozo Forster Lima

Piracicaba, SP

2008

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O HOMEM SEGUNDO O RATIO STUDIORUM

Daniela Fernanda Cardozo Forster Lima

Orientador: José Maria de Paiva

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora do Programa de

Pós-graduação em Educação da

UNIMEP, como exigência

parcial para a obtenção do título

de Mestre em Educação.

Piracicaba, SP

2008

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Comissão Julgadora Prof. Dr. José Maria de Paiva (orientador) Prof. Dr. Luís Francisco Albuquerque de Miranda Prof. Dr. Amarílio Ferreira Júnior Prof. Dr. César Romero Amaral Vieira

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À minha família, em

especial aos meus pais, ao

meu marido e a minha

filha que mesmo antes de

nascer enche nossas vidas

de alegria, esperança e

motivação.

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Agradecimentos a minha família, em que todos de formas diferentes, me incentivam na busca de mais uma conquista; ao meu orientador, Prof. Dr. José Maria de Paiva, que me apresentou novas formas de enxergar a aquisição do conhecimento. Mostrou a importância e a riqueza dos contatos com as pessoas que, sem dúvida, transformam nosso jeito de ser cotidianamente. Essa transformação não é restrita ao meio acadêmico, faz parte da vida. O contato com as pessoas nos faz diferentes a cada dia sendo que, pessoas sábias conseguem nos marcar para sempre; aos Professores Doutores Luís Francisco Albuquerque de Miranda e José Lima pelas contribuições no Exame de Qualificação; aos Professores Doutores Amarílio Ferreira Júnior, Luís Francisco Albuquerque de Miranda e César Romero Amaral Vieira pela participação na banca de defesa; a todos os professores e funcionários do programa de Pós-Graduação em Educação da Unimep que juntos criam um ambiente que nos motiva a sempre continuar; aos colegas da turma de mestrado, pelo companheirismo e pelos momentos de reflexão conjunta. O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – Brasil.

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Resumo:

Este estudo trata do Homem formado pelo Ratio Studiorum. Este documento, elaborado no

século XVI, foi responsável pela organização dos colégios da Companhia de Jesus. Não se trata

de um tratado pedagógico, se aproximando mais de um programa de ensino que além de passar

orientações sobre a metodologia e o conteúdo a ser trabalhado nos cursos, trata também da

responsabilidade de cada membro do colégio, respeitando a hierarquia. Por meio de uma

disciplina rígida, os colégios da Ordem irão formar homens competentes e capazes de realizar os

planos da Companhia em um momento de transformações. Ao mesmo tempo em que esses

homens se preparavam para encarar os desafios decorrentes dessas transformações, estas também

ajudarão a configurar a maneira de ser da Companhia, à medida que as ações da Ordem são

guiadas pela experiência. Por essa razão, nota-se tanto a preservação de alguns fundamentos

tradicionais, como também a absorção de novos padrões de comportamento. Nesta pesquisa

atentamos aos significados que as pessoas que viveram a época estudada atribuíram as suas

ações. É importante perceber que as representações devem ser pensadas a partir do sentido

daqueles que as vivenciaram. Assim, não se trata de comparar métodos pedagógicos ou julgá-los,

trata-se de entender suas características, considerando as ações da época que configuraram a

maneira de ser da Ordem.

Palavras-chave: Educação- Ratio Studiorum- Companhia de Jesus.

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Abstract:

That study is about the Man formatted through Ratio Studiorum. This document elaborated in the

XVI century was responsible by Jesus Company’s schools organization. It is not about a

pedagogical treatise coming more close to a teaching program, which besides passing orientations

about course methodology and working contents, also discusses the responsibility of each

member of the school, respecting the hierarchy. Trough a rigid discipline the schools of Jesuit

Order are going to form competent men, capable to accomplish Jesus Company’s plans, in a

moment of transformations. At the same time those men got ready themselves to face the

challenges resulting from these transformations, which also will assist to configure the Jesus

Company way of being, insofar as Order’s actions are experience guided. For that reason it is

noticed both the preservation of some traditional foundations as well as the absorption of new

compartmental patterns. In this study we concern the meanings that persons living the studied

time attributed to their actions. It’s important to notice that the representations must be thought

from meanings of those that lived them. So, that is not about to compare or judge pedagogical

methods, but of understanding its characteristics, considering the actions of the epoch, that

formatted the Jesus Company’s way of being.

Key-words: Education – Ratio Studiorum – Jesus Company

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................. 09

Capítulo 1 - A sociedade quinhentista européia ............................................................. 18

1.1 Religiosidade................................................................................................................. 18

1.2 Organização Social........................................................................................................ 23

1.3 Visão Mercantil ............................................................................................................. 25

Capítulo 2 - Ratio Studiorum........................................................................................... 30

2.1 Ignácio de Loyola.......................................................................................................... 30

2.2 Companhia de Jesus ...................................................................................................... 32

2.3 Origem do Ratio ............................................................................................................ 35

2.4 Suas Fontes.................................................................................................................... 40

2.5 Os cursos do Ratio ........................................................................................................ 43

2.6 Metodologia de ensino e avaliação ............................................................................... 48

2.7 O colégio segundo o Ratio Studiorum .......................................................................... 56

Capítulo 3- O homem segundo o Ratio Studiorum........................................................ 60

3.1 Princípios do Ratio Studiorum ..................................................................................... 60

3.2 As Virtudes .................................................................................................................. 66

3.2.1 Espiritualidade............................................................................................................ 74

3.2.2 Disciplina ................................................................................................................... 76

3.2.3 Trabalho (ação) .......................................................................................................... 82

3.3 Ciência........................................................................................................................... 85

Considerações Finais......................................................................................................... 92

Referências Bibliográficas ................................................................................................ 95

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Introdução:

Este estudo trata da formação do homem segundo o Ratio Studiorum1, método

pedagógico dos jesuítas. Este documento, elaborado durante o século XVI, não era um simples

tratado de pedagogia: ele buscava uma educação integral do homem. Pretende-se entender o

ideal de homem a ser formado pelo Ratio Studiorum. A pedagogia da Companhia de Jesus se

expressa em um programa de vida, em que o religioso, o moral, o disciplinar e o acadêmico se

integram no progresso educativo. A formação completa do homem2 – moral, humana e

intelectual- unia vida e ciência, conduta e saber. A ciência era inerente à devoção, pois era em

função de Deus que ela se explicava: sozinha, não tinha significado para a Companhia, isto não

só para aqueles que se formariam padres como também para os alunos externos, como

observamos na primeira regra destinada a eles:

Aliança da ciência à piedade.- Os que, com o fim de se instruir, freqüentam os colégios da Companhia de Jesus, entendam que, com a graça de Deus, se empregará todo o cuidado para que sejam formados não menos na piedade e nas outras virtudes do que nas artes liberais. [RATIO, REGRAS AOS ALUNOS EXTERNOS, REGRA 1.]3

A educação no Ratio contemplava o homem como um todo. O intelectual não era o

único objetivo da Companhia: a formação se dava na fé cristã; os estudos eram um instrumento

para formação completa do homem. Para o modo de ser inaciano, a espiritualidade não é um

complexo de princípios abstratos: é antes de tudo uma experiência vital, uma maneira peculiar

de viver o cristianismo e o dinamismo da Igreja naquele momento histórico.

A intenção nessa pesquisa é também entender os caminhos dessa formação, a

importância e a finalidade de cada aula dentro do currículo tão rígido do Ratio Studiorum,

compreendendo em que cada lição contribuía para essa formação e o porquê de tamanha rigidez

e disciplina. É fundamental entendermos que este documento foi escrito no século XVI, e assim,

1 Nesta dissertação se usará o gênero masculino da palavra, se referindo ao documento. Também é comumente usado o gênero feminino – A Ratio Studiorum- com referência a língua latina, em que a palavra é feminina. Ambos são aceitos nos estudos acadêmicos. 2 A formação completa do Homem é um dos fundamentos da civilização cristã ocidental. Não é um conceito original da pedagogia inaciana. Neste trabalho é possível notar que esse conceito se traduz como a forma de ser e pensar da Companhia de Jesus, porém é um conceito anterior a Ordem, utilizado na Antiguidade por Homero. 3 Nesta pesquisa foi utilizada a versão eletrônica do documento Ratio Studiorum. Esta versão encontra-se digitada e não possui números de páginas. Por essa razão, nas citações são feitas referências ao número da regra e em que parte do Ratio Studiorum ela se encontra. O site onde se encontra o documento é mencionado na Bibliografia.

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nos mostra parte da forma de ser européia daquele período. Tal documento representa as

relações culturais, os valores, os significados (inclusive os novos significados em uma época de

transformações), enfim, todo o contexto histórico-cultural quinhentista europeu. Para entender o

Ratio Studiorum é preciso entender seu tempo histórico, entender a vida social da época: o

pensar, o agir e o educar. O documento representa um signo para interpretação da vivência

humana daquele período. Por essa razão temos que entender a realidade quinhentista européia e

a partir daí entender as ações dos homens daquela época. O Ratio Studiorum é um indício que

retrata as representações sociais e, por essa razão, é importante entender que suas características

são comuns às da sociedade em que está inserido. Dessa forma, é fundamental levantar os

aspectos da sociedade necessários para o entendimento do documento.

Não é possível reviver o passado, repetindo, a partir da história, a vivência de um

indivíduo ou grupo social tal como ele se deu. Os historiadores não são exteriores à sociedade

em que vivem. Vivem em conexão com o presente. Daí, essa impossibilidade, vez que não

podemos experimentar as sensações e perceber nitidamente como se processavam as relações

entre grupos neste mesmo passado. Porém, tais questões nos mostram a possibilidade de

elaborarmos nossas reinterpretações sobre esse passado, formulando hipóteses sobre um viver

do qual não fazemos parte. O objeto que circula no discurso histórico é ausente, morto, enquanto

o seu sentido é uma linguagem entre o historiador e seus leitores, ou seja, entre os presentes. Há

uma troca entre vivos (presente) do objeto ausente (passado).

Ao fazer história organizamos o passado do jeito como oferecemos os nossos

significados. A produção dos sentidos é indissociável em história, já que seu trabalho consiste

em transformar signos dispersos na atualidade em vestígios de uma realidade histórica. Diante

deste objeto é imprescindível conhecer a sociedade quinhentista européia. A organização social,

política, e sobretudo a religiosidade, já que se trata de uma sociedade onde a fé explicava toda a

“verdade”.

A proposta de estudar o Ratio Studiorum deve ser pensada usando uma metodologia de

deixar uma certa distância entre os conceitos próprios desta nossa época e os conceitos, virtudes

e valores próprios dos quinhentos europeu. Não é interessante se preocupar em julgar, ou ainda

estabelecer comparações com outros métodos de ensino, ou seja, enxergar o passado pelos

padrões do presente: a intenção é entender por que era daquela forma. A história é construída, é

viva, dinâmica, ela é trabalhada independente de julgamentos. O documento histórico, no caso o

Ratio Studiorum, é a expressão de uma vivência. Nenhum documento pode ser o próprio evento,

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por essa razão, uma análise mais aprofundada buscando um significado para aquilo que estamos

estudando e, a partir daí, tentar entender o objeto é o objetivo principal.

A pesquisa buscará o contexto histórico-social, considerando o dinamismo da história e

não a reificando em estruturas que impeçam o entendimento dos significados e valores próprios

da época. Qualquer julgamento a posteriori é perder a chance de se conhecer e principalmente

entender a história.

A história da Companhia de Jesus se dá paralelamente a uma história de transformações

no mundo e é fruto de uma construção humana. Assim como outras ordens criadas no século

XVI, a Companhia encarou novos desafios referentes à expansão do cristianismo católico, além

de contrariar o estado das ordens mais antigas objetivando a formação de um novo modelo

cristão. O objetivo dos colégios era formar nos homens em geral uma cultura própria da

sociedade ocidental européia e, conseqüentemente homens prontos para encarar os desafios em

um mundo em transformação. A educação pode ser pensada como uma reprodução tanto

intelectual como moral em meio a contexto definido.

A chamada educação jesuítica não pode jamais ser deslocada de uma concepção religiosa, ou seja, os fins, o intuito, o objetivo final dos colégios e do Ratio Studiorum é fornecer uma formação verdadeiramente religiosa e, para isso, se utiliza de uma lógica educativa, que é distribuída pelos níveis, pelos cursos, pela didática, pelos valores, enfim, pelo rigor, como meio, como instrumento para se formarem homens competentes e padres responsáveis e corajosos para assumirem os mais diferentes serviços, especialmente os concernentes às missões. (COSTA, 2004, p.232)

Paul Veyne (1992) em sua crítica da noção de fato histórico afirma que os fatos não

existem, ou seja, não existem em estado isolado, concretamente; só existem sob um conceito que

lhes dá a forma. A história, segundo ele, “existe apenas em relação às perguntas que lhe

fazemos. Materialmente, a história escreve-se com fatos; formalmente com problemáticas e

conceitos” (ibidem, p.6). Ainda na ótica deste autor é interessante pensarmos o quanto o

historiador é implicitamente um filósofo, ao selecionar antropologicamente o que acredita ser

interessante, atribuindo importância à aventura vivida pelos homens. Para ele a história é um

conto de acontecimentos verdadeiros. E ainda lança a pergunta: a história é uma ciência do

passado ou só há história contemporânea?

Essa idéia de história dominada pelo presente baseia-se no livro de Benedetto Crocce La

storie come pensiero e come azione. Aí, Crocce considera que toda história é contemporânea.

Segundo o autor a partir do momento em que os acontecimentos são repensados no presente,

esses acontecimentos deixam de estar no tempo e seu lugar acaba sendo o eterno presente.

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Porém, é necessário que, alguns cuidados sejam tomados em relação a essa interação entre

passado e presente, como afirma Jacques Le Goff :

Esta dependência da história do passado em relação ao presente deve levar o historiador a tomar certas precauções. Ela é inevitável e legítima, na medida em que o passado não deixa de viver e de se tornar presente. Esta longa duração do passado não deve, no entanto, impedir o historiador de se distanciar do passado, uma distância relevante, necessária para o respeitar e evitar o anacronismo. (1990, p.25)

O historiador nos mostra uma sucessão ordenada de acontecimentos que vão

encadeando-se até dar como resultado “natural” a realidade social em que vive. Apresenta-se

como uma averiguação objetiva do curso que vai do passado ao presente, ou ainda, é o partir de

uma ordem natural das coisas para rastrear no passado as suas origens, como se legitimasse o

presente. Essa interação entre o passado e o presente foi chamada por alguns autores de função

social da história.

Dos documentos é extraído o conteúdo. A interpretação e os significados atribuídos

àquele fato podem ser diferentes dependendo de cada olhar. É a reconstituição que governa a

seleção e a interpretação. O documento histórico é a expressão de uma vivência. A necessidade

de se trabalhar com os documentos é inegável, mas sem as perguntas que o historiador faz aos

documentos e aos próprios fatos, ambos tornar-se-iam mudos. Surge então a necessidade de

saber elaborar essas questões e principalmente dominar os procedimentos que façam tanto fatos

quanto documentos falarem. A história é a narrativa de eventos reais que tem o homem como

ator, e assim, podemos chegar à conclusão de que é no contato entre as pessoas, nas relações

humanas que construímos nossa história. A realidade deve ser pensada como uma atividade

humana, uma prática. Por essa razão, tentando fugir de um possível anacronismo, quando

tentamos entender algum fato histórico, não podemos deixar de nos transportar para a época que

pretendemos estudar e assim, extrair o máximo de indícios que nos revelem a forma de ser

daquela sociedade, como as pessoas que viveram naquele período entendiam o que estavam

vivendo. Para Certeau (2002) o discurso histórico explicita uma identidade social não como

estática, pronta, mas enquanto se diferencia de outra época ou de uma outra sociedade.

Na história é comum rotularmos um determinado período, como se ele já estivesse

pronto, como se as pessoas que viveram nesse período estivessem colocadas dentro dele sem se

dar conta. O tempo não é um quadro vazio que preenchemos com fatos, mas uma estrutura na

qual a sociedade, as pessoas que viveram naquele lugar, durante aquele período vivenciaram.

Assim como nós atribuímos significados (em contato com o presente) ao fato estudado, as

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pessoas que viveram aquilo também atribuíram sentidos, e muitas vezes é isso que não

entendemos. Até nos perguntamos: como aquelas pessoas viveram determinados acontecimentos

e não tiveram a reação que nós teríamos hoje? Simplesmente por estarem lá, perto do que

aconteceu, e principalmente marcada por suas vivências, pela forma de ser daquela sociedade,

naquele período. Trabalhando com documentos, é fundamental entender que a nossa recepção é

que determina a qualidade do conteúdo. Os significados não são abstratos, são recepções

subjetivas em que cada pessoa recebe de forma diferente e convive com este significado a seu

modo. Dessa forma temos que deixar a visão objetiva e explorar os significados enquanto

expressão de vivência individual de uma sociedade. Segundo Ginzburg (1989), ao trabalhar com

o signo, é preciso estar atento às relações, uma vez que o próprio signo só se constitui na relação

significado e significante. É, sem dúvida, muito importante entender o significado que fazia

sentido para aquele evento na época em que aconteceu, mas também atentarmos ao sentido que

estamos atribuindo para esse mesmo evento hoje, com a nossa interpretação.

A principal intenção com essa atitude é formular uma visão que não seja maniqueísta a

ponto de julgar o certo e o errado: essa não é a função do historiador. Sua tarefa é descortinar

novas possibilidades, oferecendo a interpretação do objeto estudado.

Segundo Carr (1982), a história se constitui de um processo contínuo de interação entre o

historiador e seus fatos, um diálogo interminável entre o passado e o presente. Discorre também

sobre a impossibilidade de uma história plenamente objetiva. A tentativa de uma história

definitiva, que se baseie em fatos tão indiscutíveis quanto qualquer objeto físico palpável é

artificial. Os acontecimentos tendem a serem vistos pelo senso comum de modo bastante

peculiar, como eventos imutáveis e consensuais dos quais se pode extrair significados absolutos.

Os fatos históricos jamais falam por si, e sim, são sempre interpretados, sendo que essa

interpretação nunca vai chegar ao fato objetivo, pois cada um irá considerar de uma forma ao

colocar suas experiências naquilo que está fazendo. Nunca uma interpretação será definitiva. O

historiador aborda quais os fatos que vêm à cena e dependerá dele, do historiador, a

interpretação que fará parte de todo fato estudado.

Nem mesmo existem fatos consensualmente tidos como importantes. Um historiador

pode selecionar um evento para estudo, que passe totalmente desapercebido por outro, ou seja,

não apenas a interpretação é pessoal, mas a própria escolha dos fatos. A história não é estática,

pronta, ela não está dada por si mesmo. É comum ouvirmos frases como “vou entrar para a

história” , como se a história estivesse estática, esperando que alguém se destacasse para

merecer fazer parte dela. Não podemos reificar os acontecimentos, a história é uma trama, como

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um tecido que apenas uma linha fora do lugar muda todo o local observado: todas as linhas

fazem parte dessa trama.

A história, segundo Huizinga (1992), apresenta-se como uma ciência inexata, sendo

muito diferente das ciências naturais. Essa inexatidão nos passa amplas possibilidades de

constituição de linhas de pesquisa. E isso faz com que o historiador atente a alguns pressupostos

teóricos e metodológicos para conduzir de maneira efetiva sua pesquisa. Este autor também

concorda que a história é a interpretação do sentido que o passado tem para nós. Para ele, a

maior atividade do historiador consiste em desenterrar, limpar e preparar a matéria para que ela

possa ser utilizada. Nesse sentido, o autor apresenta sua definição sobre o que é história:

La Historia es la interpretación del sentido que el pasado tiene para nosotros. Y este carácter lleva ya implícita una orientación morfológica. Para poder comprender un fragmento de pasado reflejado en el aspecto de la propia cultura, la Historia tiene que esforzase siempre y dondequiera en ver las formas y las funciones de aquel pasado. La Historia se expresa siempre en conceptos de forma y función. Aun cuando no se trace ni en lo más mínimo el programa metodológico de una morfología. La única condición previa exigida para ello es que la apetencia de saber sea auténticamente histórica y que el investigador no sea un asno (1992, p. 59).

Ainda afirma que“...representársela como existente, el historiador tiene que se someter la

tradición a uma elaboración fatigosa: tiene que rebuscar y concretar, tamizar y ordenar el

material de los hechos, para ‘llegar a conocer’ la materia prima de sus actividades” (Idem,

ibidem, p.19).

O mesmo autor discorre sobre o postulado de que uma fase histórica não prepara ou serve

de base, de apoio para outra: não existe uma evolução histórica, no sentido de acumulação de

histórias ou conhecimentos que nos encaminhariam certeiramente para outro nível histórico.

Portanto, quando analisamos a pedagogia dos jesuítas não podemos afirmar que eles estavam

caminhando na contramão da modernidade ou de um nível mais evoluído, superior portanto a

“Idade das Trevas”.4 Buscamos neste trabalho uma interpretação cultural, explicando suas ações

por meio de um entendimento do homem a partir da observação de sua cultura. A intenção é

refletir sobre o homem, buscando compreender os elementos que orientam o seu pensar e agir,

conforme o tipo de sociedade e seu contexto histórico. As transformações que estavam ocorrendo

no mundo mudam a forma de ser dos religiosos, mas essas mudanças ocorrem lentamente, não de

uma forma total. 4 Termo utilizado por alguns autores que se referem à chamada Idade Média como uma fase pouca produção artística e científica.

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A história não pode ser entendida como uma ciência exata, inquestionável, sem

possibilidade de reinterpretações. A riqueza dessa disciplina é justamente a interpretação, o

pensar e o repensar tendo como objeto o mesmo acontecimento. As pessoas não agiam de

maneira uniforme. O caráter científico da história reside tanto na valorização das diferenças,

como das semelhanças, enquanto as ciências da natureza procuram eliminar as diferenças.

Ao escrever ou recontar a história, colocamos ênfase em eventos que consideramos mais

importantes, porém não significa que esse ou aquele enfoque irá ser melhor ou pior, já que

existem apenas diferentes pontos de vista, que serão discutidos e utilizados para explicitar um

evento e que será reformulado. Também não se faz por rupturas mas por processo contínuo, em

que as experiências se ajustam produzindo novas formas sociais.

Os historiadores narram tramas mas nenhum historiador consegue descrever a totalidade

do campo factual, pois o caminho a ser escolhido pelo profissional não pode passar por toda

parte. Nenhum caminho escolhido é absolutamente verdadeiro. Como afirma Paul Veyne

(1992), existem vários itinerários possíveis: só temos um ponto de vista parcial. Em outras

palavras, a história no seu todo, onde tudo se passa, não existe. O historiador é livre para

escolher o itinerário que irá seguir. Entretanto, dentro do assunto escolhido, os fatos e suas

ligações são o que são, ou seja, existe uma verdade histórica, aconteceu ou não, e o que

aconteceu em nada poderá mudar, mas a mesma situação espaço-temporal pode conter um certo

número de objetos diferentes de estudo. Não há uma rota já traçada, que deva ser seguida.

Fazer história é uma prática. Certeau (2002) trata dessa questão. Pensando em uma

perspectiva mais pragmática, podemos considerar os caminhos que se abrem sem nos

prendermos a uma situação epistemológica. A organização da história para esse autor é relativa

a um lugar e a um tempo. Isto ocorre por causa de suas técnicas de produção. Cada sociedade se

pensa “historicamente” com os instrumentos que lhe são próprios. Certeau encara a história

como uma operação tentando compreendê-la com relação a um lugar, procedimentos de análise

e a construção de um texto. Essa operação seria a combinação desses três fatores. Toda pesquisa

historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural, e é

em função desse lugar que se instauram os métodos, que os documentos e as questões se

organizam e assim serão propostos.

A escrita na história complementa a prática, ela impõe um querer, um saber, uma lição

ao destinatário, a instauração literária reúne o trabalho que a prática histórica efetuou. Ela

simboliza o que constitui a relação com o outro. A escrita põe em cena uma população de

mortos.

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A escrita não fala do passado senão para enterrá-la. Ela é um túmulo no duplo sentido de que, através do mesmo texto ela honra e elimina. Aqui a linguagem tem como função introduzir no dizer aquilo que não se faz mais.Ela exorciza a morte e a coloca no relato, que substitui pedagogicamente alguma coisa que o leitor deve crer e fazer. Esse processo se repete em muitas outras formas não-científicas, desde o elogio fúnebre, na rua, até o enterro. Porém, diferentemente de outros ‘túmulos’ artísticos ou sociais a recondução do ‘morto’ ou do passado, num lugar simbólico articula-se, aqui, com trabalho que visa a criar, no presente, um lugar (passado ou futuro) a preencher, um ‘dever-fazer’. A escrita acumula o produto desse trabalho. (CERTEAU, 2002, p.108)

Um escrito histórico parece definido por uma combinação de significações articuladas e

apresentadas apenas em termos de fatos, e é através das relações estabelecidas entre os fatos que

se organiza o discurso inteiro; existe em cada história um processo de significação que oferece o

sentido para a história. O historiador organiza fatos e sentidos.

Mais um passo e a história será encerrada como um texto que organiza unidades de sentido e nelas opera transformações cujas regras são determináveis. Efetivamente, se a historiografia pode recorrer aos procedimentos semióticos para renovar suas práticas, ela mesmo se oferece como um objeto, na medida em que constitui um relato ou um discurso próprio. (Idem, ibidem, p.51)

Antes de saber o que a história “diz” de uma sociedade, é fundamental saber como

funciona dentro dela. A fim de se analisar uma sociedade, é necessário articular a história com

um lugar. A história permanece configurada pelo sistema no qual se elabora e o lugar é quem

produz isso. A pesquisa está circunscrita pelo lugar: este define o que é possível dentro da

pesquisa. Não existe análise que não dependa da situação criada por uma relação social. A

história compreende a si mesmo no conjunto e na sucessão de produções das quais ela própria é

o resultado.

A prática científica se apóia numa práxis social que independe do conhecimento. O espaço do discurso remete a uma temporalidade diferente daquela que organiza as significações de acordo com as regras classificatórias da conjugação. A atividade que produz sentido e que instaura uma inteligibilidade do passado é, também, um sintoma de uma atividade sofrida, o resultado de acontecimentos e de estruturações que ela transforma em objetos pensáveis, a representação de uma gênese organizadora que lhe escapa. (Id., ib., p.54)

Os documentos e, seqüencialmente, os fatos não traduzem a realidade vivida. O autor do

documento expressava sua vivência de diferentes formas, entre elas a produção escrita. Dessa

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forma, qualquer documento é resultado do viver coletivamente, e assim, a partir desse fragmento

de vida, apreender uma realidade vivenciada em um momento anterior ao presente do qual

fazemos parte. É necessário interpretar o significado do documento, avaliar seu autor, medir a

exatidão do documento, avaliar sua credibilidade e também desmistificá-lo. A habilidade em

trabalhar com documentos é retirar deles tudo o que eles contêm e não acrescentar o que nele

não esteja contido.

A natureza da ciência histórica está ligada à história vivida: é a narração de ações

realizadas pelo homem. O esforço do trabalho histórico consiste em reencontrar a organização

natural que os fatos têm. O historiador toma um corte dessa vivência e tenta entendê-la,

transmiti-la, já que é impossível mostrar tudo, toda descrição é seletiva. A qualidade da

produção histórica depende do questionamento elaborado pelo historiador, sendo que a validade

das respostas obtidas remete à pertinência mobilizada às questões propostas.

Podemos pensar a história como um cenário em que jogam vivos e mortos, desdobrando-

se relatos, descrições, significações, ou ainda, desvendando um passado e um sentido para este,

porém é muito mais uma troca entre vivos tratando a morte como objeto de um saber.

A história é um palácio do qual não descobrimos toda a extensão (não sabemos o que nos resta de não-factual a historicizar) e do qual não podemos ver todas as alas ao mesmo tempo; assim não nos aborrecemos nunca nesse palácio em que estamos encerrados. Um espírito absoluto, que conhecesse seu geometral e que não tivesse nada mais para descobrir ou para descrever, se aborreceria nesse lugar. Esse palácio é, para nós, um verdadeiro labirinto; a ciência dá-nos fórmulas bem construídas que nos permitem encontrar saídas, mas que não nos fornece a planta do prédio. (VEYNE, 1992, P.133)

Não há um único caminho a seguir. É essa a mágica da história, sempre apresentar

discussões, levantar problemas, nunca podendo cessar completamente nossas indagações e

chegar a um ponto uniforme sobre os procedimentos ou sobre como se fazer a abordagem de um

determinado assunto. A história é um estudo cientificamente conduzido e os homens seus únicos

objetos. Esse homem que tem vida e deve ser entendido como um ser social. Todos os aspectos

da nossa vida relacionam-se, não somos fragmentados.

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Capítulo 1

A sociedade quinhentista européia

A Companhia de Jesus nasceu em uma época em que se misturavam elementos

tradicionais com novas experiências ligadas ao processo de expansão da sociedade ocidental e,

também a novas necessidades intelectuais. Ao lado de inúmeras transformações na sociedade

surgiam novas necessidades e modificações na produção e difusão do conhecimento. O século

XVI é palco também de conflitos ideológicos que exigirá do jesuíta uma formação rígida capaz

de enfrentar um mundo em transformação. Neste capítulo veremos tanto os elementos

tradicionais da sociedade européia, como também os novos comportamentos ligados

principalmente à prática do comércio e aos conflitos ideológicos de ordem religiosa.

1.1 Religiosidade

A história estuda as relações humanas e essas relações acontecem no cotidiano de

pessoas reais. A vivência é o eixo central da realidade e é dessa forma que devemos entender a

sociedade, pois é por meio dos significados, pelos sinais herdados dessa vivência que podemos

analisar a ação humana, conseqüentemente o objeto de estudo do historiador. Com o intuito de

analisar determinada sociedade, é evidente a necessidade de se conhecer os sentidos que os

viventes que fizeram parte dessa sociedade atribuíram a ela. É fundamental entender o caráter

humano, buscando as singularidades das sociedades.

Ginzburg (1989) discorre sobre como o rigor metodológico se faz presente nas malhas dos

signos: chega-se aos significados pelos indícios, ou seja, a leitura do sinal não está dada

gratuitamente. O indício é sempre indício de algo e, para garantir seu rigor metodológico, é

preciso que o pesquisador selecione seu olhar, considerando que o singular a ser investigado só

pode ser recuperado através de indícios, sinais, sintomas e pistas e que formule hipóteses

explicativas para dados particulares, que são percebidos pela abdução e intuição. Detalhes

negligenciados podem nos revelar novas e surpreendentes perspectivas. Podemos até supor que

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ao analisar o Ratio Studiorum chegaremos a uma perspectiva ampla da sociedade européia, e até

mesmo da portuguesa. O paradigma de um saber indiciário é colocado como um método de

conhecimento que se firma na observação do pormenor revelado, como uma investigação de

detetive, pois “se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas - sinais, indícios - que

permitem decifrá-la”. (1989, p.177)

Não se pode mencionar a cultura européia sem nos referirmos à religião. A época que

estamos estudando é marcada pela fé, e pela visão de que tudo o que acontece é por vontade

divina. A formação da identidade de um povo é construída por suas experiências. É uma série de

processos sociais que são vivenciados em seu cotidiano. A identidade cristã produzida por

mecanismos ideológicos e até mesmo institucionais da Igreja Católica era reforçada pelas

monarquias que buscavam a legitimidade na catolicidade de seus reinos. Isso resultava em uma

recusa a tudo que fosse contrário à Igreja. A legitimidade de um reino era dependente de sua

fidelidade à Igreja. Em relação à distribuição de poder na sociedade entendiam como uma

hierarquização natural vinda de Deus. Estes tinham uma relação de subordinação que para eles

era algo divinamente posto e que deveria ser seguido, ou seja, ninguém se colocaria contra a

vontade divina. A convivência social era mantida dessa forma. A ordem social, o poder político,

os valores, os costumes tudo era explicado de acordo com a fé cristã.

A compreensão que os portugueses tinham de sua realidade se fundava sobre os marcos teológicos cristãos, sedimentados ao longo de pelo menos treze séculos, justificando a ordem social e o poder político, modelando o discurso, os valores, os comportamentos, os hábitos, a etiqueta, a visão de mundo, as relações interculturais, modelando cada gesto da vida social. (...) O primeiro denominador comum dessa compreensão era a afirmação da onipresença divina. Antes de qualquer argumento, a crença: Deus estava presente na vida dos homens. A referência a Deus não se punha como adjetivação, mas como constituinte de toda criatura, nele achando sua razão de ser e seu significado. (PAIVA, 2003, p. 46)

A identidade católica também colocava obstáculos à construção de algumas identidades

nacionais como a portuguesa, por exemplo, como afirmam Xavier e Hespanha (1993). A forte

ligação do direito e da política à religião eram um desses obstáculos. A condução de uma

política nacional não era possível, já que Portugal se definia como um reino católico e, sendo

assim, sua tarefa era a conversão e o bem das almas. Deus participava da vida dos homens.

Na história, é comum perceber como o religioso interferiu na compreensão do todo. A

união entre religião e governo, visão que perdura ainda nos séculos XVI a XVIII, é antiga. Os

sacerdotes representavam o governo das coisas; os chefes representavam o sagrado. Não se

tratava de estratégia mas de cultura, do modo de viver e ver as coisas. A sociedade européia do

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século XVI estava convencida de que era portadora da verdade, superior portanto, a todos os

outros povos. E isto se refletia em todas as suas expressões sociais. Por essa razão não houve a

interlocução de culturas diferentes quando estas se encontraram. Afirmar ter outras expressões,

sobretudo no que tocasse a religião, costumes e valores, era contrariar a vontade de Deus. No

caso dos portugueses, eles se entendiam como vigilantes da cristandade. Insistiam nos bons

costumes, que se identificavam com os costumes europeus, justificados pela interpretação cristã.

O missionário deveria, então, converter os costumes. Por representarem os vigilantes da

cristandade, tanto Ignácio quanto a Companhia como um todo, não podiam agir diferente. Na

primeira regra dirigida ao Provincial nota-se a busca de uma formação firmada nos valores

religiosos :

Objetivo dos estudos na Companhia. – Como um dos ministérios mais importantes da nossa Companhia é ensinar ao próximo todas as disciplinas convenientes ao nosso Instituto, de modo a levá-la ao conhecimento e amor do Cristo e Redentor nosso, tenha o Provincial como dever seu zelar com todo empenho para que nossos esforços tão multiformes no campo escolar corresponda plenamente o fruto que exige a graça da nossa vocação. [RATIO, REGRA DO PROVINCIAL, REGRA 1.]

A fé estabelecia as normas e tornava possível a realidade. Deus onipresente e atuante

modelava a vida das pessoas e, entre as atribuições dos jesuítas, estava formar na fé jovens que

pudessem salvar suas almas e as almas do próximo de acordo com a concepção da Companhia de

Jesus. O europeu do século XVI estava marcado pelas vivências, seguia a tradição

mesmo em uma época de transformações. Como todo europeu, também o rei pensava que a

última referência era sempre a realização do Reino de Deus. Nasciam e morriam na Igreja. O rei

praticava, assim como seu povo e com a mesma disciplina, o que se esperava de um cristão,

como cultos e penitências. Os decretos dos reis, as cartas, as leis da época são provas de como

essa característica estava presente, tudo terminava ou começava fazendo referência ao sagrado.

Podemos perceber isto ao entrar em contato com tais documentos da época, como o Regimento

de Tomé de Souza, de 17 de dezembro de 1548, onde em diversos momentos se nota a referência

a Deus, como um Deus onipresente e atuante.

Eu, o rei, faço saber a vós, Tomé de Souza, fidalgo da minha casa, que vendo eu quanto serviço de Deus e meu é conservar e enobrecer as capitanias e povoações das terras do Brasil e dar ordem e maneira com que melhor e mais seguramente se possam ir povoando , para exalçamento da nossa Santa Fé (...)

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(...) Porque a principal coisa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil, foi para que a gente delas se convertesse à nossa Santa Fé Católica (...) [Regimento de Tomé de Sousa, 17 de dezembro de 1548]5

Também percebemos na crônica de Gomes Eanes Zurara que relata os feitos da

conquista da Guiné, enaltecendo que as navegações estavam a serviço de Deus e do rei.

(...) nunca achou rei cristão nem senhor de fora desta terra que por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo o quisesse à dita guerra ajudar. Queria saber se se achariam em aquelas partes alguns príncipes cristãos em que a caridade e o amor de Cristo fosse tão esforçada que o quisesse ajudar contra aqueles inimigos da fé.A quinta razão foi o desejo de acrescentar em a santa fé de nosso Senhor Jesus Cristo e trazer a ela todas as almas que se quisessem salvar, conhecendo que todo o mistério da encarnação, morte e paixão de Cristo foi obrado a este fim, a saber, por salvação das almas perdidas, as quais o dito senhor queria, por seus trabalhos e despesas, trazer ao verdadeiro caminho, conhecendo que se não podia ao senhor fazer maior oferta (...) [Gomes Eanes Zurara. Crônica do descobrimento e conquista da Guiné – 146?]

Não só os portugueses e espanhóis viviam essa religiosidade, mas toda a Europa, como

podemos perceber em cartas de reis como Eduardo I da Inglaterra. Percebemos a visão de um

Deus presente e atuante. Imperava o entendimento de que o poder atribuído a um rei legitimava

sua razão de governar, em outras palavras, havia o estabelecimento de uma ordem que explicava

a função de todos, inclusive do rei. Esse pensamento – que podemos associar como a função do

rei assumindo lugar de Deus pai, como afirma Kantorovicz (1998) - percorre séculos da chamada

Idade Média, e segue pela Inglaterra absolutista do século XVI.

Eduardo, pela graça de Deus, Rei da Inglaterra, senhor da Irlanda, e Duque da Aquitânia, a todos aqueles que, as presentes cartas ouçam ou vejam, saúde. Saibam que nós, para a honra de Deus e santa Igreja, e para o proveito de todo nosso reino, temos concedido para nós e nossos herdeiros, que a Grande Carta das Liberdades, e a Carta da Floresta, que foram feitas por comum consentimento de todo o reino no tempo do Rei Henrique, nosso pai, deverão ser mantidas em todos os pontos sem exceção. [Confirmation das Cartas – Eduardo I- 1297]

Mesmo com as recém-descobertas e com a nova visão de mundo que estava se

consolidando - com o comércio e também com o surgimento de novos ideais cristãos- o europeu

preservava sua cultura fundada na fé, continuava tendo uma visão providencialista. Para melhor

5 Os documentos citados nesta página encontram-se no site do Tribunal de Justiça da Bahia - Memória da Justiça Brasileira - mencionado na Biblografia.

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entender o Ratio Studiorum e o que se propunha com esse documento, temos que compreender

como os significados religiosos eram inseparáveis dos atos sociais.

A preocupação em alcançar o reino dos céus era constante. Temiam o castigo

divino, caso fugissem da ordem posta por Deus. Em um período de crises – guerra dos Cem anos,

peste negra, o Grande Cisma, Guerra das Duas Rosas, entre outras – as pessoas sentiam que eram

culpadas por essas crises, justamente por acreditarem na justiça divina. Deus explicava tudo e se

havia tantas desgraças, sem dúvida, no entendimento da época, era culpa dos seres humanos.

Nessa época o individualismo estava em ascensão e como afirma Delumeau “Era normal que o

pecador se sentisse por vezes sozinho perante Deus numa época em que o individualismo, sob

todas suas formas, estava em processo de desenvolvimento.” (1989, p. 68) O sentimento de

insegurança estava tão presente quanto a busca pela remissão dos pecados, ou seja, o perdão de

Deus.

(...) Até ao século XIII, havia se vivido numa concepção mais comunitária da igreja, e se acentuava mais a salvação coletiva que a dos indivíduos. Mas, durante os últimos anos da Idade Média, cada fiel se interrogava com angústia como conseguiria escapar aos tormentos eternos. (Id., Ib., p. 63-64)

As reformas religiosas tinham o objetivo de dar respostas à sede religiosa dos fiéis. A

cruel intolerância religiosa da época se explica pelo fato de que amar sua religião e praticá-la

significava combater as outras religiões, ou outras formas de encarar a própria Igreja Católica. A

sociedade européia era profundamente religiosa, e por essa razão, havia tantos conflitos

religiosos. O mesmo autor afirma que “A intranqüilidade religiosa que deu origem às duas

reformas – a protestante e a católica – é para nós o mais seguro testemunho sobre a fé ardente de

uma época (...)” (1994, p.117) A religião era tão presente na vida das pessoas que muitas delas

queriam encontrar respostas, curar suas angústias, buscar refúgio e principalmente conseguir o

perdão de Deus que pune sem dó. As desgraças da terra eram assim entendidas, como castigo de

Deus. Por essa razão, deveriam temer a Deus. Para obter as indulgências era preciso confessar os

pecados e comungar. Entretanto sabemos que se tratando de pessoas pouco instruídas e com

medo do castigo divino acreditavam poder comprar a salvação. Todos procuravam essa salvação.

O principal objetivo da Companhia de Jesus é salvar as almas. Lutero também buscava essa

salvação. Queria descobrir como conseguir a misericórdia de Deus e, em seus estudos no

convento se depara com uma série de contradições que o perturbarão ainda mais, sendo que por

fim, irá encontrar “a solução de seu drama interior, e a doutrina da justificação pela fé ia se tornar

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o fecho da abóbada do Protestantismo oficial” (Idem, 1989, p.88). Não se trata aqui de um estudo

aprofundado sobre as reformas religiosas ocorridas no século XVI. Essa é uma questão complexa,

não cabendo uma análise profunda. Entretanto, é importante deixar claro tanto o clima de

insegurança vivido, o individualismo da época, as transformações econômicas e, enfim a forte

religiosidade nesse momento histórico; como também o fato de que não existe um ou outro

motivo que explica por si só as Reformas Religiosas. O que existe é uma história total, em que o

mesmo homem tem razões econômicas, políticas, religiosas, sendo que é extremamente

importante entender o peso dessas questões religiosas para o período. O intuito é salientar a

presença da religiosidade na vida dos europeus, além de mostrar que a busca pela salvação era

constante causando muitos conflitos ideológicos.

1.2 Organização Social

A Ordem social era pensada na época como algo divinamente posto por Deus. As

pessoas entendiam que deveriam permanecer onde Deus as havia colocado. Isso seria respeitar a

organização da sociedade pretendida por Deus (participante, ativo na realidade vivida) e essa

organização estava de acordo com o princípio de hierarquia. Os homens, mesmo os que não

eram letrados, viviam no círculo de Deus e buscavam a salvação.

Ordem era entendida como a totalidade das coisas criadas no universo. Segundo Paiva

(2003), esse conceito não era pensado como uma imposição derivada do poder do mais forte,

mas vinda da própria natureza. Cada ser tem sua competência e, todos juntos completavam a

grande unidade, chegando à harmonia. Todas as partes estão relacionadas entre si, uma não

poderia ser substituída pela outra, sendo que algumas são subordinadas às outras. As pessoas

agem de acordo com sua posição – elas se reconhecem dentro da única ordem- e todas

representam Deus, o homem como sua imagem e semelhança.

O universo se põe como um grande mapa em que cada ser ocupa uma posição, posição que o faz tal e o define em relação aos outros seres. A ordem compreende, assim, a sub ordine, a subordinação. Subordinação indica a articulação complementária - e, daí, por graus - dos seres, fazendo-se a forma que define o modo de relacionamento de uns com os outros. Era assim que os portugueses quinhentistas concebiam o universo: uma ordem, implicando uma subordinação (Idem, ibidem, p.50).

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Paiva ainda afirma que a Santíssima Trindade – isto é, Deus trino: Pai, Filho e

Espírito Santo, três pessoas mas um só Deus- inspira a sociedade da época. As pessoas têm

funções diferentes e essas funções não diminuem o estado de divindade. Assim como a

Santíssima Trindade é uma unidade, a sociedade humana também é. Ela não é a soma dos grupos,

na realidade são todos em um, todos fazem parte do uno. Na sociedade humana cabe ao rei

realizar a ordem e, assim, garantir, o bem comum. O rei se configura como sendo a cabeça do

corpo (do todo) e deve distribuir a justiça a todos. Podemos pensar nessa unidade como uma

unidade de vida, simbolizada pelo corpo, onde todos os membros têm sua função. O rei, se

deixasse de ser, toda a sociedade se desmoronaria. Os outros grupos são as diversas partes do

corpo, sendo todas importantes. O rei se aproxima de Deus por mediar a relação entre Deus e os

homens. Paiva ainda afirma que o termo Hierarquia, em seu sentido etimológico- hierós + arché.

Hierós designa a sacralidade. Arché significa princípio - , mostra que o fundamento de toda a

ordem é sagrado.

O Rei possui duas capacidades, pois possui dois Corpos, sendo um deles um Corpo natural, constituído de membros naturais como qualquer outro Homem possui ...; o outro é um Corpo político, e seus respectivos membros são seus súditos, e ele e seus súditos em conjunto compõem a corporação, ... e ele é incorporado com eles, e eles com ele, e ele é a Cabeça, e eles os Membros, e ele detém o Governo exclusivo deles (...) (apud KANTOROWICZ, 1998, 25)

A espada do rei combate o mal e a coroa representa uma função vinda de Deus,

representa o governo de Deus por meio do rei. Essa sociedade governada por Deus, é entendida

com uma sociedade sagrada. O rei expressa a estabilidade de todo o corpo social. A sociedade

não pode ficar sem rei, assim como a humanidade não pode negar Deus6.

As partes do corpo social não se desmereciam. Elas se completam ao exercerem funções

distintas. Dessa forma, a obediência garante o bom governo. Obedecer é aceitar a Deus e

conseqüentemente a ordem hierárquica posta por Ele. No mundo físico assim como no mundo

espiritual tudo se organiza segundo o princípio da hierarquia, não uma hierarquia autoritária e

centralizada, mas um modo de realizar o Reino de Deus. Todos têm uma determinada função e

por essa razão todos têm a sua importância. Cada parte é responsável por contribuir, da melhor

maneira, para o todo.

6 Alguns pensadores expõem essas idéias como Jacques Bousset (1627-1704), membro Igreja Católica e famoso por sua teoria do direito divino dos reis, explicitada no livro A política retirada das próprias palavras da Escritura Sagrada.

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Tudo era organizado por Deus e formava uma sociedade una que se completava sendo

que, todos estavam em permanente contato e a serviço de Deus obedecendo sempre uma

hierarquia. Justamente pela diversidade e por cada um fazer sua parte que a composição da

sociedade se tornava possível, completa. Essa ordem que organiza a sociedade também organiza

o colégio jesuítico. O respeito à hierarquia é muito presente no Ratio Studiorum, aparecendo em

diversas regras. Nada poderia ser feito diferente do documento sem a consulta prévia a seu

superior, como podemos notar na regra 11 destinada aos professores das classes inferiores:

Obediência ao Prefeito.- Obedeça ao Prefeito dos estudos ginasiais em tudo quanto se refere à disciplina escolar. Sem o consultar não admita ninguém na aula ou dela o expulse, não comece a explicar livro algum, nem dispense ninguém dos exercícios escolares comuns. [RATIO, REGRAS DOS PROFESSORES DE CLASSES INFERIORES, REGRA 11]

A educação é a forma de transmitir a maneira de se viver em determinada cultura. Além

do conhecimento, são difundidas também normas e regras, de uma mesma realidade social. O

colégio expressa esse entendimento de mundo presente na sociedade. Como já foi citado, os

jesuítas conviveram com a tradição, mesclando novos elementos. Este ordenamento - a ordem

social - traduz a parte tradicional da sociedade que continua. Aliado à tradição podemos perceber

as novidades na sociedade européia quinhentista que irá configurar as características do método

pedagógico dos jesuítas, entre elas o comércio.

1.3 A visão mercantil

Para entender como o ensino estava se configurando é preciso perpassar pelas

novas necessidades de uma sociedade em transformação. A crescente importância da figura do

mercador7, vem surgindo ao longo dos séculos e, com ele, o desenvolvimento de uma nova visão

de mundo que se opunha, em vários aspectos, à da sociedade feudal. Novas condutas e novas

tendências éticas marcam a maneira de viver dos homens de negócio.

7 Segundo Gurevic (1989) este mercador é diferente dos vikings que operavam na Europa setentrional na chamada Alta Idade Média. Estes estavam ligados ao comércio, mas também, muitos deles estavam envolvidos com a pilhagem.

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Até o início do surgimento do comércio internacional por volta do século XI, a

riqueza era medida pela posse de terras. No século XIII o desenvolvimento comercial estava

consolidado e a figura do mercador era de extrema importância na sociedade européia. A Igreja

condenava o comércio - ocupação que tinha por objetivo o lucro- até passar a considerar que as

condições da vida real tinham se alterado, e essa mudança torna-se evidente no século XIII, com

a ascensão da população urbana, sobretudo a camada mercantil. A fim de entender como se dava

essa nova compreensão do sistema social, Aron J. Gurevic (1989) expõe as idéias de Bertoldo de

Ratisbona, um frade franciscano, que por meio de seus sermões mostra que a sociedade era

constituída por homens que desempenham suas funções sociais. Essas funções são atribuídas por

Deus e todas as tarefas são importantes e necessárias para a existência de todos. Em seu sermão

Sobre as cinco libras Bertoldo trata mais dos indivíduos do que do coletivo, enfatizando que as

funções sociais dos indivíduos são distribuídas com sabedoria e segundo a vontade de Deus.

Embasado na idéia de que ocupações são missões, trata dos talentos que foram dados ao homem

pelo Criador. Assim como a pessoa não é apenas corpo e alma, mas também sua função social,

“o tempo também é considerado como um parâmetro inseparável da pessoa” (Idem, ibidem,

p.173). É o tempo que Deus lhe concede para viver e como esse tempo é gasto. O tempo deve

ser usado para o trabalho digno em busca da salvação e não preso a tentações terrenas. O sermão

traz o novo – a nova visão de mundo ligada ao comércio - mas não nega a visão teocêntrica

tradicional.

Não podemos acreditar que todos os religiosos pensavam de maneira uniforme.

Podemos citar o exemplo de São Francisco de Assis8 – fundador da Ordem dos Franciscanos -

que reagiu aos novos modos.

A realidade fazia com que todos se ajustassem às diversidades de ocupações novas, ao

novo modo de pensar. Surge também a necessidade do mercador se preparar e instruir diante das

modificações econômicas que se iniciam a partir do século XIII. Nascem as escolas leigas, ou

seja, a formação do homem não religioso que deveria estar preparado para atuar na sociedade

cumprindo diferentes funções. Os conhecimentos que agora precisam ser práticos mudam os

métodos de ensino. A aritmética, os gostos pelo cálculo e pela precisão aparecem fortemente

nessa nova fase. Novas formas de medir o tempo, novos recursos nas transações mercantis, novas

8 Francisco de Assis provinha de uma família de ricos mercadores de tecido. Ele rejeitou o patrimônio e rompeu com a família, pois acreditava que o reino dos céus é para aqueles que repudiam a riqueza. Fundou uma confraria que logo se transformaria em uma Ordem monástica.

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técnicas de navegação eram necessárias para garantir que as necessidades que se configuravam

fossem atendidas. Surge a difusão dos saberes práticos como forma de conhecimento.

A partir do século XIII, a situação econômica começa a mudar em toda a parte, desde Flandres à Itália. A atividade comercial exigia preparação e mesmo instrução. O mercador analfabeto dificilmente teria podido ser bem sucedido nos seus negócios. Nas cidades – e não apenas nas cidades grandes, mas também nas relativamente pequenas- surgem as escolas leigas onde os filhos dos ricos aprendem a ler, a escrever e a fazer contas. (Id., ib., p. 178)

Mesmo com o magistério caminhando em direção ao laicismo, a educação vai ser a

resposta da Igreja a uma sociedade que se transforma, mas que continua cristã. O colégio irá

desempenhar uma importante função: a conservação da fé, por meio da formação de homens

competentes para atuarem na sociedade. Percebemos que não só os estudos mas a religiosidade

adere aos novos modos, a essa nova maneira de ser ligada ao comércio. A fé também sofre

modificações. Passa a ser calculada, metódica, planejada como é explicitado pelos Exercícios

Espirituais de Loyola.. Ao mesmo tempo em que atende as necessidades da sociedade, a

Companhia de Jesus atende também suas próprias necessidades: a formação de seu quadro que

deve estar preparado para agir.

Paiva expõe como o comércio modificou as relações sociais que passaram a ser marcadas

pelo individualismo. Essa forma de ser que a sociedade vivencia durante alguns séculos se

consolida no século XVI.

Mercantil, mais do que referência ao trato comercial, subentende a compreensão de mundo gestada pela experiência comercial. O trato se faz entre um vendedor e um comprador. Esta relação é mediatizada pela mercadoria ou, melhor ainda, pelo interesse de lucro que tem o vendedor com sua ação. O afeto, marca das relações feudais, cede lugar de primazia ao efeito, ao resultado. Para tanto, há necessidade de cálculo, planejamento, técnica, vigilância. O importante é o efeito, não as pessoas. O privado surge em cena. O indivíduo é realçado. Predomina o impessoal, o burocrático. Impõe-se o contrato. [PAIVA, s.d]

Essa experiência mercantil muda a forma de ser da sociedade, inclusive em outras

esferas da vida como religião. O trabalho é visto, nesta perspectiva, como uma função social

para salvar a alma, como já citamos acima.

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O Homem e o mundo, por influência do Humanismo9, são entendidos por uma

outra concepção. Na elite - rei, nobreza e clero- perpetravam-se os novos modos de produzir

riqueza, fazendo tudo o que fosse necessário para sua realização. Voltamos a alertar que por

alguns séculos o comércio não será visto por todos da mesma forma. Além do comércio, o

empréstimo de dinheiro era combatido por muitos.

Ao longo dos séculos XVI e XVII, alguns teólogos, que não eram apenas jesuítas, esforçaram-se por conciliar a estrita doutrina medieval da Igreja em matéria de dinheiro com os imperativos de uma economia baseada cada vez mais no crédito. (...) Do lado protestante, as coisas não ocorreram de modo diferente. Viu-se que o próprio Calvino interditava que alguém fosse emprestador de dinheiro de profissão. (DELUMEAU, 1989, p. 352)

O mercantil promoveu uma transformação no pensamento que passa a exigir

planejamento, cálculo. Os ritmos de trabalho se modificam devido o desenvolvimento do

comércio, modificando as relações sociais. Sendo assim, as necessidades da sociedade se

expandem possibilitando o avanço da técnica e da ciência. A realidade não é mais para ser apenas

contemplada: a sociedade moderna estabelecia principalmente a ação e a transformação da

natureza. Um sistema metódico de observação, o exame rigoroso, a descrição detalhada são

resultados dessa forma de ser da sociedade moderna que se mostra claramente no Ratio

Studiorum, confirmando a influência desse novo pensamento. A ciência nessa época é vista como

fundamental na preparação de homens que pudessem atuar na sociedade e, para isso a pedagogia

inaciana buscava aprofundar a formação de seus membros.

Os jesuítas absorvem, no campo espiritual, este entendimento mercantil sugerindo

novas possibilidades. Uma delas é a ação. Assim como os mercadores que desafiam fronteiras,

conquistam mercados, enfrentam dificuldades, os jesuítas buscam as almas a salvar, realizando

sua missão, e respondendo à sua vocação.

A Companhia de Jesus foi fundada nesse contexto e o jesuíta passa a absorver o

novo integrando-o às práticas habituais. Diferente de outras ordens religiosas mais tradicionais

que praticavam a contemplação, dedicando-se aos ofícios divinos em comunidade, ela nasceu

para propagandear a fé católica. Os religiosos não deveriam apenas contemplar a Deus

confinados no interior dos mosteiros. A nova Ordem se volta para a ação. Os religiosos agora

deveriam se preparar para pregar, salvar almas, e não apenas contemplar. A Igreja passa a 9 Humanismo se fortaleceu no século XIV, transformando a maneira como era encarado o papel dos homens sobre a Terra, buscando uma visão integral dos seres humanos.

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exercer atividades “extra-muros” acompanhando a empresa mercantil. Paiva afirma que a

própria denominação “Companhia” é um termo usado para designar uma organização mercantil.

A ação implicava independência financeira para que as iniciativas tivessem sucesso.

A memorização, a disputa, a erudição, a eloqüência, a capacidade de garantir

citações que engrandecessem o discurso eram instrumentos essenciais na formação do jesuíta e,

imprescindível para o convencimento. Nos colégios jesuíticos, desde cedo os alunos

exercitavam a memória e a eloqüência, além de estudarem autores clássicos que forneciam a

erudição necessária para que fossem respeitados e conseguissem cumprir suas funções de

letrados da sociedade. Nota-se diversas vezes no Ratio Studiorum regras sobre memorização,

disputa, declamação e em uma delas destinada ao Professor de Retórica há a exposição de um

exercício que alia a memória e a declamação:

3. Exercício de memória. – Como ao retórico é necessário o exercício diário da memória e na sua classe ocorram muitas vezes lições demasiado longas para serem aprendidas de cor, determine o Professor o que e quanto se deverá aprender, e, caso ele exigisse, de que modo recitá-lo. Seria útil que, de quando em quando, dissesse alguém, da cátedra, os trechos aprendidos nos clássicos, a fim de unir o exercício da memória com a declamação. [RATIO. REGRAS DO PROFESSOR DE RETÓRICA. REGRA 3.]

A capacidade de penetrar nos assuntos, analisando com profundidade os temas,

faziam com que convencessem o público, por meio da oralidade. A vida ativa, a busca pelo

outro, o convencimento de um público são ações que começam a fazer parte da vida dos

religiosos. Ações que também faziam parte da vida dos mercadores que enfrentam os desafios

de um mundo em descoberta e disputavam mercados para cumprirem sua função. São as formas

de convencimento que em ambas atividades possuem lugar de destaque.

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Capítulo 2

Ratio Studiorum

Este capítulo traça os caminhos que levaram a elaboração do Ratio Studiorum. A figura

de Ignácio de Loyola e a fundação da Companhia de Jesus são trabalhadas, visando o melhor

entendimento do documento. A maneira como o documento foi elaborado - levando mais de 50

anos até a redação final, contando com a participação de vários membros da Companhia – e

também as fontes que influenciaram sua configuração são abordadas também neste capítulo.

Veremos as principais características do método pedagógico dos jesuítas- seus cursos, sua

metodologia -, contemplando como entendiam as ações manifestadas no documento e seus fins.

Neste trabalho foi evidenciada a maneira como Ignácio e seus companheiros da Ordem pensavam

os colégios e sua metodologia, sem a intenção de depreciar ou valorizar suas ações. Como

metodologia de estudo foi adotada uma ótica embasada principalmente no religioso, já que a

principal tarefa da Companhia era a defesa e propagação da fé cristã e a salvação das almas. A

missão da Companhia a princípio não era educacional, era religiosa. Mesmo com a expansão do

ensino laico, a pedagogia inaciana busca formar homens dentro do ideal cristão.

2.1 Ignácio de Loyola

Ao tratar do ideal de formação dos estudantes da Companhia de Jesus não

podemos deixar de conhecer a figura do fundador da Ordem religiosa: Iñigo Lopez de Loyola.

Não se trata aqui de percorrer todos os seus caminhos até a fundação da Companhia. Trata-se

apenas de levantar alguns pontos que influenciaram na elaboração das Constituições e

conseqüentemente no Ratio. Ignácio tornou-se, para os membros da Companhia, exemplo a ser

seguido e foi quem desenvolveu por meio de suas experiências as bases do Ratio Studiorum,

consubstanciadas nas Constituições, mais precisamente na IV parte desse documento. A oração,

a razão e a experiência eram as três fontes principais em que se inspiravam as suas decisões, e é

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justamente a sua experiência que ele irá propor a todos por meio dos Exercícios Espirituais.

Centrado nos mistérios da vida de Cristo, Ignácio sugere o caminho para encontrar Jesus

mediante a prática da oração e o discernimento dos movimentos espirituais verificados a partir

dessas práticas. Esses exercícios propostos por Loyola são um método rigoroso de ensinamento

da fé.

Ignácio nasceu em 1491, no castelo de Loyola, no país Basco. Fidalgo, foi educado como

cavaleiro na corte da Espanha. Ignácio tinha 30 anos quando, em 1521, encontrava-se em

combate com soldados franceses. No cerco de Pamplona, Espanha, foi ferido na perna.

Enquanto se recuperava, ocupava-se com romances de cavalaria. Entretanto o que chamou sua

atenção foram dois livros: Vita Christi, de Ludolfo e a Legenda Dourada, do dominicano Tiago

de Voragine, que conta a vida dos santos. A partir daí concebe e redige os Exercícios

Espirituais, que só concluirá após um longo período de experiências. Essas experiências são

encaradas por Ignácio como experiências universais e que deveriam ser praticadas por outras

pessoas. Nesse momento Ignácio deixa de ser cavaleiro do rei para dedicar sua vida à Igreja

como os santos e mártires.

Licenciado em Artes em 1533, e terminados os estudos de Teologia sob a direção dos

Padres Dominicanos, Ignácio propôs as linhas gerais do plano que iria seguir. Para Loyola o

apóstolo deve fazer de tudo para ganhar as almas e por isso, é necessário que ele seja superior,

não só no zelo pela fé, como ainda na cultura intelectual em relação aos que tem de exercer

influência. Por isso, desde a origem da Ordem que fundou, deu “ao desenvolvimento intellectual

um lugar quase tão importante como o da formação espiritual, pela direcção militar dos

caracteres e da sensibilidade” . (MADUREIRA, 1927, p. 348)

Os Exercícios Espirituais10 eram uma forma de meditação, de examinar a consciência, se

afastando dos prazeres aparentes a fim de encontrar a vontade divina e conseqüentemente, a

salvação da alma. Loyola também entendia que, seguindo seu percurso, os homens alcançariam

o caminho de Deus e para que mais pessoas alcançassem esse caminho era necessário levar a

bandeira de Cristo para o maior número de pessoas. Logo, seria preciso formar um exército de

Deus, sendo a palavra a principal arma deste exército.

Ignácio seguiu um caminho auto-educativo, sendo a disciplina - formar e governar a si

mesmo, controlando suas vontades- que tanto fez parte da sua vivência um dos alicerces na

10 Exercícios Espirituais irá ser retomado no terceiro capítulo.

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formação do jesuíta. Durante seus catorze anos de estudante foi influenciado por grandes

humanistas e pedagogos de seu tempo, como Erasmo 11.

A pedagogia inaciana incorporou muitos elementos de formação humanista assim como

o método rigoroso da Universidade de Paris. Ignácio entendia que deveria incorporar em seus

colégios as Humanidades clássicas, como acontecia em outros centros da Europa. Sua

experiência pessoal inspirou sua obra educativa sintetizando as principais orientações

metodológicas, já que passou por quatro academias: Barcelona, Alcalá, Salamanca e Paris, sua

principal influência, como estudante de Gramática. A síntese do humanismo renascentista –

forte influência diante da época em que viveu- e a conservação de elementos da escolástica

formou uma nova pedagogia humanista cristã. Ignácio antepõe claramente o exemplo pessoal do

professor à sua ciência ou talento oratório, como meio apostólico de ajudar o aluno a se

desenvolver nos valores positivos. Passar valores morais por meio do exemplo humano era uma

das formas da Companhia formar seus alunos na fé e na moral. Por essa razão, a maneira como a

vida é conduzida não só pelos professores, reitores e prefeitos de estudos mas também pelos

próprios alunos era muito importante para os jesuítas, a ponto de existir no Ratio uma regra

referente a isto dirigida aos alunos externos. Os alunos deveriam estar alerta em relação às suas

práticas, “Finalmente em todas as suas ações comportem-se de tal modo que cada um veja logo

que se aplicam eles não menos à prática da virtude e a inteireza da vida do que às letras e à

ciência” [RATIO, REGRAS DOS ALUNOS EXTERNOS DA COMPANHIA, REGRA 15].

A fé, como qualquer outra expressão humana, se constrói historicamente e se

modifica de acordo com as épocas e os lugares. No século XVI a presença de Deus é atuante, Ele

participa da vida dos homens. Nessa época, havia a necessidade de redescobrir o que era ser

cristão e como este deveria atuar na sociedade. Ignácio delineou uma ação de transformação da

sociedade por meio da Igreja.

2.2 A Companhia de Jesus

Em 1534, Ignácio e mais seis companheiros dirigiram-se à capela de um mosteiro em

Paris, onde o único que já era sacerdote entre eles, Pedro Fabro, celebrou uma missa na qual

11 Erasmo de Roterdã (1467- 1536), humanista, autor de Elogio da Loucura e clérigo devotado a moralizar a Igreja. Criticava a ignorância do clero e a exploração do misticismo dos fiéis.

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consagravam suas vidas a Deus. Mas somente seis anos depois o papa reconhece o

funcionamento da Ordem religiosa, Companhia de Jesus, em 27 de setembro de 1540, por meio

da bula Regimini militantis Ecclesiae. Em 22 de abril de 1541, Ignácio oficialmente assume

como seu primeiro Geral e logo no início concluiu que haveria a necessidade de se elaborarem

leis e regras para que a ação dos jesuítas se apresentasse de maneira uniforme. Em 1559 é

apresentada a primeira edição das Constituições da Companhia de Jesus, que sofrerá alterações

de acordo com sua experiência nas diversas províncias. Percebemos que tanto o Ratio Studiorum

como as Constituições foram fruto de experiências vivenciadas pelos padres da Companhia que

estavam distribuídos em lugares diferentes e com experiências diferentes.

Ignácio queria fazer da Companhia um núcleo de homens dotados da mais completa

cultura intelectual. Para isso, duas ações se faziam necessárias: a escolha e a formação do jesuíta

em casas de estudos científico-literários. Os jovens a serem admitidos pela Companhia deveriam

ser escolhidos pelo talento e pela virtude para que estes pudessem servir a sociedade e a Igreja.

Tais homens assim preparados devem difundir a “verdadeira” ciência. A organização dedicada à

instrução da juventude tinha como alvo a defesa da Igreja para a glória de Deus “Ad majorem

Dei gloriam”.

Nos seus primórdios, a Companhia de Jesus não era para Ignácio uma associação destinada ao ensino publico das sciencias e lettras; os seus estabelecimentos de instrucção visavam ministrar a seus filhos a sciencia necessaria a defeza e propagação da fé. Mais tarde dilatou-se o campo da sua visão com a idéia de que, dispondo de homens abalizados e mais numerosos podia ampliar a esphera de actividade da Companhia , a qual não seria só uma Ordem de Apóstolos, mas também um corpo scientifico de professores da doutrina Catholica. (MADUREIRA, 1927, p.350)

Madureira ainda afirma que seria um erro grave supor que o ideal do fundador da

Companhia foi de ilustrar a Igreja com sábios e letrados. Queria transformar o ensino em meio

de regeneração e elevação da humanidade; reformando as idéias para melhorar os costumes,

iluminando o entendimento para dirigir a vontade e modelar o coração pela virtude; formando

sábios para torná-los homens de caráter e aproximá-los tanto quanto possível do modelo que ele

estudara, o Homem-Deus, exemplar ideal da mais alta perfeição humana. Devemos lembrar que

nessa época, alguns estudiosos como Erasmo de Roterdã, acusavam membros do clero de serem

pouco instruídos, afirmando haver um declínio da vida monástica. Além da virtude, a

Companhia coloca a formação intelectual dos padres em lugar de destaque, objetivando formar

homens preparados para os novos desafios.

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Pela sua organização e direção a Companhia não é, segundo Ignácio, uma associação

meramente científica, nem tem por principal objetivo a propagação da ciência. É antes uma

sociedade estritamente religiosa, que utiliza o ensino e a ciência como força poderosa para

promover a “verdadeira religião”. A instrução é meio de educação assim como a educação é

meio de se salvar almas para a glória de Deus.

Zelo pelos estudos.- A Companhia dedica-se à obra dos colégios e universidades, a fim de que nestes estabelecimentos melhor se formem os nossos estudantes no saber e em tudo quanto pode contribuir para o auxílio das almas e por sua vez comuniquem ao próximo o que aprenderam. Abaixo, portanto, do zelo pela formação das sólidas virtudes religiosas, que é o principal, procure o Reitor, como ponto de máxima importância, que com a graça de Deus, se alcance o fim que teve em mira a Companhia ao aceitar colégios. [RATIO, REGRAS DO REITOR, REGRA 1]

A Companhia foi criada em 1534, porém, as experiências com colégios surgiram seis

anos depois. Em princípio, somente para a formação de futuros padres, e só depois aberta para

alunos externos. O caráter educativo da Companhia não nasceu pronto e muito menos era o

objetivo inicial da Ordem. A Companhia de Jesus foi historicamente construída, a partir de suas

experiências, assim como a Constituição e o Ratio Studiorum que levaram anos até a publicação

final de ambos. Diferentes de outras ordens religiosas da época, ela nasceu para propagandear à

fé católica, e não mais ficar presa no interior dos mosteiros.

Vários anos se passaram e a organização da Companhia foi se consolidando por meio

das Constituições e depois por meio do Ratio Studiorum que serviria de base para uniformizar o

ensino em todos os cantos do mundo onde a Companhia estivera. Percebemos assim, que as

principais características da Companhia foram frutos da experiência dos padres não só na

Europa, como também por meio de missionários espalhados pelo mundo. A instituição de

colégios para estudantes não pertencentes à Ordem não era a intenção inicial de Ignácio, mas

logo surgiu como uma necessidade, um instrumento eficaz de renovação cristã, formando jovens

que continuariam a missão de trabalhar para a Maior Glória de Deus. Quando Ignácio de Loyola

faleceu, a Companhia de Jesus contava com 33 colégios em atividade e 6 outros já por ele

formalmente aceitos, espalhados na Itália, na Espanha, na Áustria, na Boêmia, na França e em

Portugal.12

12 Números presentes na obra de Leonel Franca (1952).

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2.3 Origem do Ratio

O Ratio Studiorum é um símbolo que caracteriza a Sociedade de Jesus e a maneira como

ela foi se construindo durante o século XVI. Levou cerca de 50 anos desde a fundação do

colégio de Messina - e com isso a elaboração de um primeiro esboço das práticas pedagógicas-

até a publicação oficial do documento. Da redação inicial até sua publicação em 1599

passaram-se 15 anos. Diante disso, nota-se que o Ratio é fruto de muitas experiências e

avaliações, não só de alguns padres, mas como também de numerosos jesuítas que estavam

distribuídos pelos colégios da Companhia.

A base de fundamentação do Ratio se encontra na IV parte das Constituições elaborada

por Ignácio de Loyola. Esta parte das Constituições está integralmente dedicada à educação e

formação, porém não era um código completo e sistematizado de pedagogia. São 17 capítulos

baseados nas vivências do fundador (pessoais e acadêmicas) que forneciam algumas orientações

pedagógicas sintetizando o objetivo educativo da Companhia de unir virtude e letras. A IV parte

está intimamente conectada com as restantes nove partes das Constituições, onde se declara a

finalidade das atividades e obras jesuítas. Neste documento, Ignácio deixa claro que nas

diferentes regiões e diante das particularidades de cada uma delas é necessário prudência e,

sendo assim, as adaptações são válidas. Dessa forma, “Embora, consoante as regiões e as

épocas, possa haver diferenças na ordem e nos horários estabelecidos para esses estudos, deve

existir uniformidade em fazer em cada lugar o que se julgar mais eficaz para se progredir neles”.

(CONSTITUIÇÕES,1997, p.149)

O próprio Ignácio expressava sua vontade, por meio das Constituições, de se elaborar

um plano detalhado de estudos, uma espécie de código prático de leis que facilitasse e

uniformizasse os colégios da Ordem. A intenção do fundador era criar um complemento para

evitar discussões entre a grande variedade de opiniões e preferências individuais. As adaptações

deveriam existir, porém um modelo para orientar os padres que estavam longe era necessário.

Com colégios em várias localidades, era de extrema importância para a Companhia que as

regras fossem uniformes e a conduta de professores, reitores, prefeito de estudos, alunos, enfim

de todas as pessoas pertencentes à Ordem fosse a mesma. Mesmo que o Ratio tenha sido

publicado oficialmente 43 anos depois da morte de Loyola, não resta dúvida que ele foi quem

colocou as linhas gerais da pedagogia jesuítica, apontando os fundamentos e métodos a serem

seguidos utilizando-se principalmente das Constituições. O fundador indicou nas próprias

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Constituições a importância de elaborar um método de ensino mais completo, aprovado pelo

Superior Geral, que serviria de base comum a todos os colégios da Ordem, mesmo que essa base

comum devesse se adaptar aos diferentes lugares e povos. A lenta elaboração do Ratio

Studiorum se deve ao processo de experiências, o ir e vir de cartas e informes, fundamentais na

formulação das regras. Outro aspecto que devemos mencionar é o corpo de jesuítas que

participaram da elaboração do documento.

O Colégio de Messina, fundado em agosto de 1548, foi o primeiro Colégio clássico da

Companhia plenamente organizado. Os professores eram de diversas nacionalidades, mas algo os

unia: tinham em comum a formação cultural, todos se formaram em Paris. Por essa razão o

modelo escolhido pelos padres na organização do seu primeiro grande colégio foi o modus

parisiense13 que era preferido por Ignácio e não o modus italicus preferido por algumas

autoridades romanas. Franca (1952) expõe a trajetória seguida desde o início até a publicação

final do Ratio. Uma das figuras mais importantes nesse processo foi o padre Nadal, que, dispondo

de uma larga experiência, contribuiu muito para a elaboração do documento. Nadal assumiu

durante três anos o cargo de Reitor do Colégio de Messina e foi com resultado de suas primeiras

experiências que em 1551 foi redigido um primeiro plano de estudos – um programa de estudos

para os clérigos da Companhia de Jesus- , que depois de ter sido enviado a Roma, também seria

enviado aos colégios da Ordem. Como afirma Betrán-Quera (1984), Nadal também se baseou em

sua experiência na Universidade de Alcalá e principalmente na Universidade de Paris, onde havia

conhecido Loyola.

Intitulado De Studio Societatis Jesu, esse documento de 1551 é uma descrição completa

do currículo e dos métodos seguidos neste primeiro colégio. A hierarquia na organização dos

estudos e as divisões das classes já se apresentavam. Neste primeiro Ratio nota-se uma

organização completa dos estudos, desde as classes de gramática até as faculdades superiores.

(FRANCA, 1952)

13 Modus parisiense é um conjunto de normas pedagógicas que caracterizam o ensino parisiense sendo que dentre essas características podemos citar o rigor, a rapidez, a disciplina e a ordem. Ignácio preferiu este método por achar que era o que fornecia a formação moral completa, se adaptando perfeitamente aos intentos normativos dos jesuítas. O modus parisiense tem quatro fatores estruturais: A distribuição dos alunos em classe, a atividade constante dos alunos por meio dos exercícios escolares, um regime de incentivos aos trabalhos escolares e principalmente a união de piedade, bons costumes e letras. A classe é um grupo de alunos mais ou menos da mesma idade e com o mesmo grau de instrução a que se ministra determinado grau de conhecimentos proporcional ao seu nível escolar. Apesar deste sistema não ter sido inventado em Paris, as classes constituem um dos marcos da pedagogia parisiense.

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Nadal percorreu entre 1552 a 1557 quase toda a Europa na intenção de promulgar

as Constituições da Ordem, e observar a organização e funcionamento dos colégios, entrando em

contato com novas experiências que surgiam nas diversas realidades em que os colégios estavam

inseridos. Quando retorna, é nomeado Prefeito dos Estudos no Colégio Romano, cargo que

ocupou entre 1557 a 1559. Mais tarde, entre 1564 a 1566, assumiu o cargo de Reitor no mesmo

Colégio.

Annibal de Coudret, que foi Reitor do Colégio de Messina depois de Nadal, continuou o

trabalho. Ambos não deixaram um regulamento e, sim, uma espécie de crônica das práticas

pedagógicas que vigorava em Messina, como assinala Betrán-Quera. Este último Ratio de

Coudret é um pouco mais completo em relação à de Nadal: ele faz a divisão entre as classes de

gramática- ínfima, média, suprema – humanidades e retórica. Abarca os estudos de línguas,

filosofia, teologia e ciências, tratando do primeiro estágio do campo das letras e a formação em

humanidades que corresponde ao ensino secundário.

Leonel Franca (1952) afirma que o plano de ensino de Messina passa a ser seguido por

outros colégios, como o Colégio de Palermo, criado em 1549 e o Colégio Romano fundado na

cidade centro da cristandade e das autoridades maiores da Ordem. O número de jesuítas que

ministravam as aulas de humanidades, filosofia e teologia aumentou consideravelmente de 43

em 1553 para 218 depois de dez anos. O plano utilizado nesses colégios é um dos primeiros

esboços do futuro Ratio.

Outra figura importante foi o espanhol Diego Lesdema que em 1557 passou a fazer parte

do corpo docente do Colégio Romano e a partir daí iniciou uma revisão do programa de estudos.

Escreveu seu Ratio, quando desempenhava o cargo de prefeito de estudos no Colégio Romano

em 1564. Contemporâneo de Nadal formou-se na Universidade de Alcalá e na de Paris. Este

documento escrito por Lesdema é mais detalhado, fazendo menção ao modo de fazer explicação

da matéria, os autores que devem ser lidos, os exercícios literários que os alunos deveriam fazer.

Segundo Betrán-Quera (1984), Lesdema acreditava ser primordial estabelecer as funções de

cada uma das pessoas que compõem o colégio, desde o Reitor até o professor. Era importante

também para ele formular regras gerais a todos os estudantes. Lesdema é considerado por

Betrán-Quera como o predecessor de Aquaviva, que será o promulgador oficial do documento

de 1599.

O plano de ensino provisório e as experiências vividas nos colégios - esboços de

regulamentos sobre os livros, os horários, os métodos, a disciplina, anteriores ao ano de 1586-

foram selecionados e publicados com o título de Monumenta Paedagogica, como afirma

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Madureira (1927), mostrando a influência do Colégio Romano como modelo aos colégios da

Companhia. É justamente com base nesses documentos que Lesdema irá elaborar seu De ratione

et ordine Studiorum Collegii Romani, que, na sua intenção, devia servir de norma a todos os

Colégios da Companhia. Dos 132 documentos publicados no volume do Monumenta

Paedagogica, 59 foram anotados e corrigidos. Esse trabalho representa a maior contribuição

individual na elaboração do Ratio definitivo de 1599, segundo Franca.

Todos os principais articuladores do Ratio faleceram antes de vê-lo na prática. Ignácio

morreu em 1556, Lesdema em 1575 e Nadal em 1580. Em 1581 o Padre Acquaviva, então

Superior Geral da Companhia, iniciou ações para retomar e tentar unificar o projeto. Ele nomeou

uma comissão especial de doze padres jesuítas de diversas nacionalidades e regiões para ajudar

no feito. Acquaviva também consultou os professores do Colégio Romano, entretanto essa

primeira tentativa não rendeu frutos. Um ano depois Acquaviva nomeou outra comissão, agora

com apenas seis padres, eram eles: Pedro Fonseca (Portugal), Francisco Coster (Bélgica),

Nicolás Le Clerc (França), Sebastián Morales (Portugal), Francisco Adorno (Itália), Francisco

Ribera (Espanha) e Gil Golzález (Espanha). A intenção era que essa comissão se encontrasse em

Roma para finalizar a redação do método. Esse trabalho se dividiu em duas ações. A primeira foi

um levantamento de opiniões mais seguras em Filosofia e Teologia que seguiam a doutrina de

Santo Tomas de Aquino14. Uma outra fase foi de organização dos estudos e exercícios que

fariam parte do cotidiano dos alunos. O resultado foi um manuscrito dividido em duas partes:

uma teórica e outra prática.

Em 1586 o documento foi enviado a todos os Provinciais, acompanhado de uma circular

que recomendava que em cada Província se nomeassem pelo menos cinco padres para

estudarem o novo plano e proferissem um parecer. Esse plano não era ainda para ser executado

era apenas para discutir entre os padres que estavam vivendo na prática o cotidiano dos colégios.

Com as respostas em mãos e feita a revisão em 1592, mandava-se ainda mais uma vez a toda a

Companhia uma nova edição do Plano de Estudos sob o título de Ratio atque Institutio

14 Santo Tomas de Aquino nasceu no reino de Nápoles em 1227. Fez seus primeiros estudos no mosteiro beneditino de Monte-Cassino. Entrou para a Ordem dos Dominicanos em 1243 e cinco anos mais tarde ordenou-se sacerdote. Estudou na Universidade de Nápoles e formou-se bacharel bíblico em 1252, em Paris. Morreu quando ia participar do Concílio de Lião, em 1274. Aquino retoma o pensamento original de Aristóteles, voltado para uma visão cristã. Escreve a Suma Teológica. Recusa a idéia que a Filosofia negue Deus, ao contrário, Deus pode ser explicado por meio da Filosofia.

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Studiorum, Romae, Collegio Soc. Jesu, anno Dni, com alterações feitas a pedido dos padres da

Companhia.

A estrutura do trabalho sofrera mudanças radicais. Eliminaram-se as discussões e dissertações pedagógicas que justificavam os preceitos práticos. Codificou-se todo o sistema de estudos numa série de regras relativas aos administradores, professores e estudantes. Caráter em que se remetia o Ratio também não era o mesmo. Já não se tratava de um anteprojeto a ser estudado por censores qualificados, mas de um código de leis a ser trazido imediatamente em prática, ainda que não de modo definitivo. Aos provinciais recomendava o Geral que, removidos todos os obstáculos, pusessem em execução o novo sistema de estudos, durante três anos, no fim dos quais remetessem a Roma os resultados desta experiência decisiva para a sua promulgação final. [FRANCA, 1952]15

A partir de 1594 chegavam às primeiras observações feitas deste último documento. A

principal crítica feita no início se manteve: o imenso número de regras, sendo que estas muitas

vezes repetiam-se nos vários ofícios semelhantes: professores de humanidades, de gramática

superior, de gramática média, de gramática inferior. Atendendo a esse pedido, o Ratio reduziu-

se pela metade e, assim, em 1598 foi impresso o Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Jesu

em Nápoles e promulgado em circular em janeiro de 1599 para toda Companhia. A partir dessa

data o plano de ensino deveria ser seguido.

O Ratio, portanto, é filho da experiência, não da experiência de um homem ou de um grupo fechado, mas de uma experiência comum, ampla de tal amplitude, no tempo e no espaço, que lhe assegura uma grandeza majestosa, talvez singular na história da pedagogia. A esta formação viva e orgânica deve ele sua unidade, harmonia e equilíbrio perfeito. Deve-lhe ainda e, sobretudo, o espírito que o informa e lhe caracteriza a originalidade da fisionomia. A pedagogia dos jesuítas, resume-lhe com vigor e felicidade as características dominantes: “o currículo, humanista; o método e ordem, principalmente parisienses; o espírito, inaciano” [Idem, ibidem]

Os caminhos para elaboração do Ratio passam pelo plano de Messina inspirado por

Nadal em 1551, pela IV parte das Constituições escritas por Ignácio de Loyola e também pelos

escritos de Ledesma. Depois de 50 anos de idas e vindas, passa a vigorar, formando jesuítas em

diversas partes do mundo.

Sea como fuerse, lo importante es aquí notar que esta recompilación final o texto de la Ratio Studiorum de 1599, fue el primer documento pedagógico oficilamente aprobado y promulgado por um Superior General de la Compañía de Jesús, seún había sido el deseo expresado unos cuarenta años atrás por el propio Ignacio de Loyola. (BETRAN-QUERA, 1984, p.45)

15 Nesta pesquisa foi utilizada a versão eletrônica do livro de Leonel Franca, mencionada na Bibliografia. Esta versão encontra-se digitada e por essa razão, não possui números de página.

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Em 1607, 50 anos depois da fundação do primeiro colégio em Messina, a Companhia

contava com 10.581 membros, dirigia 293 colégios, sendo 37 fora da Europa16.

2.4 Suas fontes

A fonte mais citada pelos jesuítas e que influenciou a elaboração do Ratio

Studiorum é o método da Universidade de Paris. Porém outras fontes também são citadas, sendo

Leonel Franca (1952) o autor que faz a distinção entre elas e as explica. O método de Sturm

(método de instrução protestante) é um deles. Afirmam que o Ratio é praticamente uma cópia do

método protestante no que se refere à organização dos estabelecimentos, os livros, os cursos, o

ideal de formação; porém, Franca afirma que a semelhança é resultado da vivência em comum.

Antes de organizar o colégio de Estrasburgo (e se tornar protestante), Sturm foi discípulo dos

Irmãos da Vida Comum em Liège (1521-1524). Madureira (1927) afirma que o próprio Sturm

confessa que se baseou no método dos Irmãos de Vida Comum, seus mestres no colégio de

Liège e cujo programa foi adotado nos menores detalhes.

Quando esteve em Paris, Ignácio viveu no Colégio de Montaigu, que já havia

pertencido aos Irmãos da Vida Comum. A escola de Liège, onde estudara Sturm, passou em

1580 para os jesuítas, sendo provável, que houve a conservação dos métodos. Antes de ingressar

no Ginásio de Estrasburgo, em 1538, Sturm passou 8 anos em Paris (1529-1537), e é justamente

de Paris que chegam as principais influências reconhecidas pelos jesuítas.

Podemos afirmar que Universidade de Paris foi a fonte mais segura e a que os

jesuítas mais apreciavam principalmente em relação à sua formação moral. Além de Ignácio de

Loyola, formaram-se também na Universidade seus primeiros companheiros religiosos que o

ajudaram a fundar a Companhia de Jesus. Esse é o único método que Pe. Nadal afirma ter se

apropriado para a elaboração do Ratio.

Os jesuítas freqüentaram as Universidades mais celebres de Portugal, Espanha,

França, Itália, e da Alemanha, conhecendo portanto, seus estatutos, costumes e métodos. A

maioria delas deixava a desejar em relação à formação moral. Ignácio cultuava a Universidade

parisiense que reconhecidamente serviu de modelo e inspiração à organização dos colégios

jesuíticos. O fundador da Companhia de Jesus deixava bastante clara a sua preferência em

16 Números presentes na obra de Madureira (1927)

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comparação com o modus italicus (mesmo tendo oportunidade de conhecer a estrutura e o

funcionamento das universidades italianas).

Diante da reconhecida superioridade do método, Ignácio chamou para professores

no Colégio Romano os antigos alunos da célebre Universidade e mandava a Paris os jovens que

entravam na Companhia, antes do fim dos estudos, já que acreditava que lá havia mais

“honestidade e religião” que as outras. Até mesmo na Itália, em Viena e Pádua, Ignácio insistiu

para que se organizasse o colégio com o método que ele considerava superior.

Além dos modus parisiense, as influências do Ratio se remetem inclusive à Antiguidade.

Principalmente com o Renascimento, os clássicos da Antiguidade são revistos, inspirando os

jesuítas. Acreditavam que os clássicos poderiam ser utilizados como instrumentos para a

formação moral. O pensamento católico era reafirmado e fortalecido graças a uma espécie de

cristianização dos clássicos. Na elaboração e na redação final de seu plano de estudos os jesuítas

se espelham em alguns autores clássicos como Quintiliano, que era considerado o mestre da

oratória e muito respeitado pela sua grande experiência na educação.

Respeita os velhos, assim o ensina Cícero. Sê forte na adversidade, é o exemplo que te deixou Alcibíades. Usa das riquezas com moderação, Ovídio e Plauto o aconselham. Para ver quão extensa e profunda foi esta influencia dos antigos basta percorrer os mais conhecidos pedagogos do Renascimento, qualquer que seja a escola ou nação a que pertençam: Erasmo ou Vives, Mureto ou Melanchton, Manucio ou Murmelius. As citações dos grandes clássicos fervilham. Ao lado da Retórica de Aristóteles, o De Oratore de Cícero. Plutarco e Sêneca figuram como preconizadores de um ideal humano a que pouco falta para ser cristão. A todos, porém, sobreleva Quintiliano. [FRANCA, 1952]

O mesmo autor também afirma que depois de se notar uma certa decadência da

escolástica nos séculos XIV e XV em relação ao século XIII, seu auge, percebe-se na

Universidade de Paris “um esforço vigoroso de restauração da síntese clássica do pensamento

medieval. E é precisamente na Universidade de Paris que se delineia um movimento vigoroso de

restauração tomista”. (FRANCA, 1952) Uma reinterpretação da Igreja do pensamento de Santo

Tomas de Aquino se faz levando em consideração as transformações que estavam ocorrendo.

Podemos citar também como fonte de inspiração a experiência. Experiência de

professores, como Ledesma, que da pedagogia vivida elaboraram lições de pedagogia para a

época, o que se comprova com a própria história do Ratio. Franca justificando a importância da

experiência na Companhia cita Lesdema.

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Ao iniciar o seu Ordo Studiorum, um dos esboços do futuro Ratio, enumera ele os motivos que o levaram a lançar por escrito as suas instruções práticas e concretas. As três primeiras são: .1. A experiência que tive por três anos neste colégio (Romano) quando prefeito de estudos... e em outros colégios da Companhia que visitei... 2. A reflexão profunda sobre estes assuntos, prolongada por vários anos. 3. O conselho freqüente dos melhores professores que conheci neste colégio, como Perpignani e outros cuja opinião pedi, muitas vezes, até por escrito. (Idem, ibidem)

O ir e vir de cartas foram fundamentais na elaboração do Ratio, o que mostra que não foi

apenas um grupo de padres o responsável por seu conteúdo. A prática, a vivência de padres que

conheciam os estudantes e o meio em que trabalhavam levaram à adoção de mudanças e

sugestões que contemplavam a vida cotidiana do colégio. Como afirma Madureira (1927), o

Ratio não é tratado científico de pedagogia: assemelha-se com um regulamento que fundamenta

os princípios da razão, da fé e da experiência. Este código de ensino é ao mesmo tempo

programa e método, já que não trata apenas do que deve se ensinar mas também como o ensino

deve ser ministrado.

É importante ressaltar também que os colégios passam a ganhar uma importância nova e

aos poucos se transformam em relação à chamada Idade Média. Surgem lentamente novos tipos

de colégio, com divisão de salas de aula por idade, por exemplo. Assim afirma Delumeau “O

século XV viu aparecer, em estado ainda embrionário e em localidades privilegiadas, a gradação

do ensino e a correspondente divisão em classes, que primeiro tiveram o nome de lectiones”

(1994, p.76). O autor ainda nota que os jesuítas levaram esta evolução ao limite, em razão da

grande quantidade de colégios.

Baduel em Nîmes, Sturm em Estrasburgo, Gouveia em Bordéus e depois os jesuítas nos seus muitos colégios repartiam os alunos por quatro, seis ou oito classes, conforme os lugares, e iam-lhes dedicando cada vez um lugar particular e um regente especializado. Assim desapareceu a mistura de idades. (Id, Ib. p. 76)

Essas mudanças que estavam acontecendo em algumas localidades da Europa

influenciaram, sem dúvida, a configuração dos colégios e conseqüentemente do Ratio

Studiorum. O modus parisiense, que foi a principal influência, é caracterizado por essas

transformações principalmente no que se refere à divisão de classes. Vemos os resultados dessas

transformações principalmente no aluno e na qualidade dessa instrução.

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2.5 - Os cursos do Ratio Studiorum

Há uma linearidade propedêutica no Ratio, um currículo sistematizado em dois

níveis: Classes Inferiores e Faculdades Superiores. Semelhante à organização da Universidade

de Paris, a pedagogia inaciana se iniciava com os estudos inferiores (ginásio). Os estudos

superiores eram: Filosofia e Teologia. Em outras palavras, os estudos se dividiam em três cursos

parciais, distintos, mas dependentes um dos outros enquanto o inferior é degrau e preparação

para os superiores: o curso de Letras Humanas (cursos inferiores), o de Filosofia e o de

Teologia. Os estudos inferiores preparavam o humanista. Nesse curso constavam as aulas de

Retórica, Humanidades e Gramática. Esta última dividida em ínfima, média e superior. Depois

de terminado o curso de Humanidades o aluno estava preparado para iniciar os cursos

superiores. Cada curso prepara para o posterior, ou seja, o curso de Humanidades preparava para

a Filosofia e esta preparava para a Teologia. O latim era a língua oficial do colégio, aprendido

nas classes inferiores e aperfeiçoado no curso de Filosofia e Teologia. Nessa formação não

fazem parte as escolas de ler, escrever e contar. Iremos tratar primeiramente dos estudos

inferiores.

Os estudos inferiores (também chamado de preparatório aos superiores, ou curso

de letras humanas, ou ainda de ginásio) forneciam uma unidade no ensino juvenil. Era formado

pelas classes de Gramática (se estudava o latim), Humanidades e Retórica, além de estudar a

língua grega, sendo que o hebraico é reservado para o curso de teologia. Os estudos inferiores

duravam de seis a oito anos, no qual o aluno ingressava geralmente com quinze anos. O grande

objetivo nessa fase era moldar os jovens e criar a forma cristã necessária para o conteúdo

igualmente religioso. Preparava o aluno aos estudos dos clássicos da cultura greco-romana, à

eloqüência, ao conhecimento da linguagem e da erudição. Preparava também a retórica, que

constituía no saber ler e escrever bem e, saber expressar-se bem. Nem todos os alunos atingiam

o fim, ou seja, o curso de Teologia; entretanto, entendiam que a formação que tiveram era a

forma de explorar ao máximo suas capacidades e talentos que foram dados por Deus, traço este

que marca o propósito de Ignácio que é a máxima exploração de todos os valores da natureza

humana. De acordo com o ideal da Companhia, cada aluno com sua especificidade, era

trabalhado com o máximo do ensino e da metodologia, “tudo para o aluno e o aluno para Deus”

(MADUREIRA, 1927, p. 390)

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As classes inferiores, para Leonel Franca (1952), tinham o objetivo de estimular no aluno

a forma elegante e clássica de se expressar, além de objetivos clássicos e gerais que vão

moldando o aluno para o conteúdo escolástico que se seguirá. O autor ainda afirma que o curso

de Letras é fundamentado na arte. O ensino propunha um conhecimento mais leve e depois mais

pesado, traduzindo essa relação em termos de arte e ciência. A formação clássico- humanística é

artística, pois incita a imaginação e a expressão, ao passo que a formação filosófica –teológica

se pauta na ciência, no estudo profundo, nos axiomas, nas demonstrações e nas leis. Nesta fase

forma-se o humanista, o homem erudito, que mais tarde terá bases para receber o curso de

Filosofia e em seguida o de Teologia. Franca coloca as principais funções de cada classe (aula)

sendo que “As classes de gramática asseguram-lhe uma expressão clara e exata, a de

humanidades, uma expressão rica e elegante, a de retórica mestria perfeitamente na expressão

poderosa ad perfectam eloquentiam informat [que diz respeito à perfeita eloqüência]”. [ib]

A marca registrada do curso de humanidades é a criação de uma forma elegante, clássica

e erudita de se expressar, forma moldada para que o conteúdo filosófico (lógica, metafísica, física

e ética) e teológico fosse aprendido.

O curso inicia-se com a Gramática devendo passar pelos três níveis: ínfima, média e

suprema ou superior. A Gramática desenvolve a memória, a literatura, a imaginação; e as

ciências (Filosofia e Teologia) o entendimento. O Ratio busca uma unidade, isso se dá pelo

método de concentração, onde um determinado eixo era o agrupador de todas as matérias, no

curso de Letras. O latim era o centro principal da instrução, em torno do qual se agrupavam as

outras matérias. Na gramática ínfima o estudante aprende as regras gerais de sintaxe e os

princípios da língua grega e nas preleções, elucidavam as cartas mais simples de Cícero como

mostra a regra a seguir:

O objetivo desta classe é o conhecimento perfeito dos elementos da gramática, e inicial da sintaxe. Começa com as declinações e vai até a construção comum dos verbos. (...) Nas preleções adotem-se, dentre as cartas de Cícero, só as mais fáceis, escolhidas para este fim, e, se possível, impressas separadamente. [RATIO, REGRAS DO PROFESSOR DA CLASSE INFERIOR DE GRAMÁTICA, REGRA 1]

Consta também no decorrer das regras ao professor de classe inferior (ou ínfima)

de gramática a divisão do tempo nas aulas, o que deve ser feito em cada momento do dia e como

agir em cada exercício, desafio e preleção. Trataremos nesse momento o conteúdo de cada

curso, sendo que a metodologia será abordada adiante.

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A classe média de gramática tinha o objetivo ainda que imperfeito, de percorrer

toda a Gramática conhecendo-a integralmente. Nessa fase, “explicavam as cartas familiares de

Cícero, composições escolhidas de Ovídio e algum auctor grego de mui fácil intelligencia”

(MADUREIRA, 1927, p.399). No grego avançavam nos verbos. Na classe Suprema ou Superior

exigia-se conhecimento completo da gramática, no grego prosseguia os estudos das regras

gramaticais e nas preleções escolhiam os livros de maior dificuldade de Cícero no latim e no

grego Esopo e S. João Chrysostomo, como afirma Madureira. Só podia ser promovido à classe

superior, o aluno que assimilou integralmente a anterior. Depois de três a quatro anos de

Gramática, entravam para o curso de humanidades.

O grau da classe de humanidades que prepara imediatamente à retórica é o conhecimento da linguagem, alguma erudição e primeiras noções dos preceitos da retórica. O grau da retórica é a expressão perfeita, em prosa e verso, e abrange os conhecimentos teórico e prático dos preceitos da arte de bem dizer e uma erudição mais rica de história, arqueologia, etc. Como se vê, o objetivo do curso humanista é a arte acabada da composição, oral e escrita. O aluno deve desenvolver todas as suas faculdades, postas em exercício pelo homem que se exprime e adquirir a arte de vazar esta manifestação de si mesmo nos moldes de uma expressão perfeita. [FRANCA, 1952]

Os religiosos entendiam que a cultura greco-latina é uma boa introdução para estudos

mais profundos na Filosofia e Teologia. Além disso, acreditavam que as humanidades formavam

o espírito, sendo uma preparação para formar o homem intelectual, culto e o homem de ação, a

essência da pedagogia inaciana. A classe de humanidades preparava para a eloqüência, por essa

razão estudavam-se autores que dispunham de maior conhecimento da língua latina, buscavam

uma riqueza no vocabulário, o “conhecimento da língua, alguma erudição e uma introdução

breve aos preceitos da Retórica” [RATIO, REGRAS DO PROFESSOR DE HUMAIDADES,

REGRA 1]. A intenção era formar o bom gosto, estimular a aquisição de conhecimentos

eruditos que engrandeçam o discurso com expressões ricas e elegantes. Segundo Madureira,

eram lidos autores como Cícero, César, Sallustio, Tito Livio (historiadores), e poetas como

Virgilio (com exceção do 4o. livro da Eneida) e Horacio. No grego, aprofundavam-se em

Sócrates , S. João Chsysostomo, São Basílio e cartas como as de Platão e Synesio.

Em retórica, o Ratio aponta os três pontos principais: “regras de oratória, estilo e

erudição” [IDEM, REGRAS DO PROFESSOR DE RETÓRICA, REGRA 1]. Por essa razão o

curso de Humanidades- onde se adquire o gosto por expressões ricas e poéticas- precede o curso

de retórica. A finalidade na retórica é formar a perfeita eloqüência e para isso é necessário a

oratória e a poética. Segundo Hansen (2000) o Concílio de Trento havia declarado herética a tese

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de Martinho Lutero que só com a fé, a graça e as escrituras se alcançaria a salvação. A Igreja

Católica defendia o sacerdócio e conseqüentemente a transmissão oral das duas fontes da

revelação: a tradição e as escrituras. A oralidade como forma de transmitir a verdade canônica

confirmada no Concílio de Trento resultou em uma reativação da Retórica antiga. São lidos os

livros de Cícero e de Aristóteles (Retórica e Poética). No grego, contemplavam autores antigos e

clássicos, entre eles, Demóstenes, Platão, Tucídides, Homero, Hesíodo e Píndaro. Terminada a

formação do curso Humanista, que levava cerca de sete anos, as ciências eram o próximo passo

do estudante, começando pela Filosofia.

Como já foi mencionado, as classes superiores compreendiam o curso de Filosofia e o

curso de Teologia. O curso de Filosofia levava em média três anos e se aprendia a Filosofia

escolástica. Para levar um homem a alcançar sua perfeição é imprescindível que ele saiba

responder algumas perguntas como: Qual a finalidade do homem na terra? Que sentido atribuir

ao trabalho, a dor? Em que consiste essencialmente a natureza do homem? A filosofia é

fundamental na formação do jesuíta, e conseqüentemente do futuro professor, pois um mestre

deve ensinar mais que uma técnica, deve saber o que quer de sua vida e saber guiá-la. O

professor ideal deve fazer o aluno pensar, formar a inteligência (CHARMOT, 1952).

Si el professor ideal es el que enseñando sabe formar la inteligencia, y si esta formación no es posible más que por la escuela activa, luego nadie será buen maestro si no aprende a hacer pensar, en el pleno sentido da palabra, las cabezas de los niños incapaces de pensar por si mesmas. Este arte de poner en juego el entendimento de los alumnos y de hacerles recorrer todos los pasos de la razón hasta la síntese de los elementos dispersos, este arte difícil no se adquire sino por largos esfuersos personales. En resumen: este arte es un hábito, es la habilidad de un hombre bien ejercitado em el oficio. Y este oficio es de el filósofo. (Ib, Id, p.78)

A formação filosófica educa a alma, explica de uma forma atrativa, ultrapassando um

ensino mecânico, empírico, para formar homens que saibam pensar. Na pedagogia inaciana, não

basta falar e escrever bem, é preciso saber conduzir o pensamento. A linguagem, o estilo, a

oratória são a forma; a substância e a solidez da doutrina serão o conteúdo.

Como afirma Madureira (1927), no primeiro ano se estudava lógica, física, matemática e

mais alguns elementos da geografia e astronomia. No segundo ano, aulas como; cosmologia,

psicologia, metafísica, química e história natural (ou Biologia) eram oferecidas. E no terceiro

ano abordavam ética, astronomia, matemática superior e história natural.

No Ratio são vários os momentos em que explicitamente se define a autoridade de Santo

Tomás de Aquino na Teologia e a de Aristóteles na Filosofia como inquestionáveis e

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indispensáveis, sendo mencionado no Ratio que “em questões de alguma importância não se

afastem de Aristóteles (...)” [RATIO, REGRAS DO PROFESSOR DE FILOSOFIA, REGRA

2]. Assim como a regra destinada ao prefeito de estudos “Nas mãos dos estudantes de teologia e

filosofia (...) Suma de Santo Tomas para os teólogos e de Aristóteles para os filósofos. Todos os

filósofos devem ter o concilio trentino e um exemplar da bíblia (...)” [IDEM, REGRAS DO

PREFEITO DE ESTUDOS, REGRA 30]

Aristóteles não era visto como absoluto e inacessível, mas como o revelado (razão e

revelação não se separam na pedagogia inaciana), o que recebeu a Glória de Deus. O

desenvolvimento intelectual do homem, objetivo do curso filosófico, tinha a finalidade de que o

homem se aperfeiçoasse para servir a Deus.

Após aprender a ler, escrever, expressar e raciocinar era o momento do formar o

Homem-Deus. A Teologia é o ápice da formação, já que as outras disciplinas são ensinadas

como preparação para a esta. Formar bons teólogos é a essência da Companhia de Jesus, que

acredita que as ciências são meio, sendo a teologia, como afirma Madureira, o meio principal.

Alcançar a plenitude do aluno, fazer com que explorasse seus talentos era a maneira de

colaborar para a maior Glória de Deus e estar a serviço de Deus, já que nenhum talento deveria

ser desperdiçado.

Além disso, ao trabalhar com as escrituras era importante apresentar a versão da Igreja

Católica indicando os caminhos para confirmar o “verdadeiro” sentido dos textos, evitando

controvérsias, como podemos observar nas primeiras regras destinadas ao professor de Sagrada

Escritura.

1.Especial atenção ao sentido literal.- Persuada-se que o seu principal dever é explicar com piedade, doutrina e compostura os livros divinos no seu sentido genuíno e literal para confirmar a verdadeira fé em Deus e o fundamento dos bons costumes. 2.Edição vulgata.- Entre os pontos que deve ter em mira é de especial importância defender a versão adorada pela Igreja. [RATIO, REGRAS DO PROFESSOR DE SAGRADA ESCRITURA, REGRA 1 e 2]

O curso de teologia seguia o pensamento de Santo Tomas de Aquino. Todos deveriam

possuir a Suma Teológica de Santo Tomas. O Ratio aconselha os professores que “em teologia

escolástica sigam nossos religiosos a doutrina de Santo Tomas, considere-o como seu doutor

próprio (...)” [IDEM, REGRAS DO PROFESSOR DE TEOLOGIA, REGRA 2].

O curso de Teologia compreende nos estudos das Sagradas Escritas, língua hebraica,

Teologia escolástica e Teologia moral. Durante os quatro anos de curso a Teologia escolástica

dogmática compreende, segundo o sistema de Santo Tomas de Aquino, as seguintes matérias:

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(....) a theologia positiva ou patristica; a theologia escholastica moral, durante dois anos com a causistica; a Sagrada Escritura ou Exegese, Instituições canônicas, o hebreu e mais línguas orientais. Os oito tratados de theologiaescholastica dogmática devem ser estudados nos quatros anos, começando pelos fundamentaes (theologia fundamental) de Ecclesia et vera religione , - de Deo uno. (MADUREIRA, 1927, p. 408)

Além do curso de quatro anos, a IV parte das Constituições estabelece leis

especiais para dois anos de especialização. Mesmo terminada a formação intelectual do jesuíta

sua vida de estudos não termina, já que a partir daí ele inicia uma carreira individual de estudos,

acumulando cada vez mais conhecimento no seu ramo de ensino. A vivência de formação do

teólogo se dá a partir do entendimento do revelado, onde se harmoniza razão e fé. O ciclo geral

dos estudos na Companhia era longo, já que o saber ocupa um lugar de destaque. A ciência, para

os jesuítas era tão importante e necessária quanto as virtudes.

A pedagogia inaciana inspira-se na fé, contribuindo para a formação integral:

intelectual, social, moral e religiosa. Ela não é, no caso dos jesuítas, uma pedagogia reduzida à

mera metodologia. Inclui uma perspectiva de mundo e uma visão humana ideal que se pretende

formar.

2.6 Metodologia e Avaliação

Em relação à metodologia e avaliação é interessante começar pela forma como

eram selecionados os alunos que almejavam estudar nos colégios: os exames destinados à

admissão. Nestes exames se verificava até que ponto o aluno chegou nos estudos e se estavam

aptos a acompanhar a rotina de estudos no colégio.

Exame de admissão. – Aos novos candidatos examine mais ou menos do seguinte modo: pergunte que estudos fizeram e até que ponto; passe em seguida, para cada um separadamente, um trabalho escrito sobre um assunto dado. Interrogue algumas regras das classes que estudaram; proponha algumas frases ou para se verterem em latim, ou, se for mister, para se traduzirem de algum autor clássico. [RATIO, REGRAS DO PREFEITO DE ESTUDOS INFERIORES, REGRA 10]

Os alunos deveriam vir acompanhados dos pais ou responsáveis e, além de seus

conhecimentos verificava-se também se tinham bons costumes. A idade, como já foi citado,

também era averiguada, não podiam ser jovens ou “crescidos” demais. Nas Constituições da

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Companhia de Jesus já havia a preocupação com a incorporação de alunos. Para o estudante

entrar para a Ordem, deveria ser examinado com muito rigor em lógica, filosofia e teologia

escolástica perante uma banca de examinadores.

A metodologia deve ser trabalhada pois, ela solidifica a aquisição do ensino

científico e, no Ratio Studiorum, se apresenta de maneiras bastante variadas: aulas, disputas,

repetições e estudos privado. Podemos começar com o estudo privado que exercita as

capacidades individuais dos alunos. É neste momento que o aluno necessita da disciplina e do

“governo de si”, virtude inseparável da pedagogia inaciana, para conseguir alcançar o rendimento

desejado.

Método do estudo privado.- Nas horas marcadas para o estudo privado os que seguem as faculdades superiores releiam em casa os apontamentos da aula curando entendê-los e, uma vez entendidos, formulem a si mesmos as dificuldades, e as resolvam; o que não conseguirem apontem para perguntar ou disputar. [IDEM, REGRA DOS ESCOLÁTICOS DA NOSSA COMPANHIA, REGRA 11].

Era estimulado, no estudo privado, não apenas as ciências, mas também o

aprendizado e prática da virtude na religiosidade, nas suas ações que o levam a atingir seu

objetivo, explorando o máximo seus talentos para a maior Glória de Deus. A distribuição das

horas de estudo privado permitia importantes níveis de autonomia. Este momento era importante

dentro da metodologia, pois era uma extensão das aulas intensificando e desenvolvendo o

raciocínio. Além de rever o conteúdo ministrado durante as aulas, o aluno também se preparava

para a próxima aula. No Ratio há uma regra que prescreve: “Aos nossos escolásticos, aos

internos, e aos externos por meio de seus professores não só prescreva o método de estudar,

repetir e disputar, senão também distribua o tempo de modo que aproveitem bem as horas

reservadas ao estudo privado”. [Id., REGRAS DO PREFEITO DE ESTUDOS, REGRA 27].

As aulas, que sempre começavam com uma oração, compreendiam um período de cinco

horas distribuídas entre manhã e tarde. As diferentes classes tinham rotinas particulares

entretanto seguiam uma ordem e sempre havia pontos em comum. O Ratio Studiorum apresenta

de maneira bastante detalhada tudo aquilo que deveria ser feito em cada momento nos diferentes

cursos do colégio. Como exemplo, podemos observar a regra destinada ao professor da classe de

gramática superior. A citação é longa, porém, necessária para entender a preocupação com a

distribuição do tempo, levantando cada ação a ser feita:

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Divisão do tempo.- O tempo será dividido do seguinte modo. Na primeira hora da manhã, repetição de cor, aos decuriões, de Cícero e da gramática; correção pelo professor dos exercícios recolhidos pelos decuriões enquanto os alunos se ocupam em vários exercícios, mencionados abaixo na regra 4. Na segunda hora matutina, repetição breve da última lição de Cícero, explicação por meia hora da nova, que será logo objeto de interrogação. Por último ditado do tema. Na última meia hora da manhã, repetição da lição de gramática, explicação e interrogação da nova, algumas vezes acrescente-se um desafio. Durante o primeiro semestre percorram-se as regras de construção ensinadas na classe anterior, explique-se, em seguida, o que é próprio desta classe; e em dias alternados, as regras de métrica, omitindo as exceções; no segundo semestre repita-se, ao menos por dois meses, a parte da gramática própria desta classe, e, em dias alternados, a métrica percorrendo brevemente as regras já explicadas e insistindo nos outros quando for necessário. Terminada a repetição da gramática, explique-se diariamente a métrica acrescentando as exceções, os gêneros poéticos e as regras dos nomes patronímicos e do acento. Na primeira meia hora da tarde, recitação de cor de um poeta e do autor grego enquanto o professor revê as notas dos decuriões, corrige os exercícios, que foram passados pela manhã ou que ainda restam dos trazidos de casa. A hora e a meia hora seguinte divida-se de tal modo entre a explicação e repetição do poeta, e a preleção e exercício escrito do grego, que ao grego se reserva mais de meia hora. A última meia hora ou o tempo que ainda sobrar empregue-se em desafios. No sábado, de manhã, recitação de cor pública das lições de toda a semana ou de todo o livro. Segunda hora, repetição. Última meia hora, desafio. De tarde, mesmo horário, com a diferença de que na primeira se recite de cor também o catecismo. A última meia hora seja emprega na explicação do catecismo ou exortação espiritual, a menos que não tenha sido feita na sexta-feira; neste caso empregue-se o tempo no estudo daquilo que cedeu lugar ao catecismo. [Id, REGRAS DO PROFESSOR DA CLASSE SUPERIOR DE GRAMÁTICA, REGRA 2].

O professor era orientado a falar em latim e seguir a ordem dos exercícios propostos pelo

Ratio: exercícios de memória, exercícios escritos, sua correção na própria aula - o professor

corrigia os exercícios escritos e recolhidos pelos decuriões, enquanto os alunos faziam outros

exercícios, sob vigilância dos decuriões, como cópia, colheita de trechos selecionados, tradução

latina ou grega, composição de frases, versos entre outras -, as repetições, a preleção e o desafio,

este último não acontecia em todas as aulas.

Os decuriões eram alunos escolhidos para auxiliar o professor nas aulas. Os jesuítas

escolhiam por mérito e isso também tinha uma explicação pedagógica. Para ele, ser decurião

desenvolvia o senso de responsabilidade, solidariedade, obediência e autoridade. Além disso, ele

vivenciava a hierarquia presente nos colégios.

Com exceção do estudo privado, é durante as aulas que se verifica as diversas formas de

se trabalhar o conteúdo proposto, como se observa na citação acima. Assim como os exercícios

de memória (repetição) e disputas, a preleção acontece no decorrer das aulas.

A preleção pode ser entendida como leitura prévia, em que se lia e comentava um texto

escolhido, de preferência de alguma autoridade acadêmica. Charmot (1952) coloca a preleção

como a arte de profundizar. Em outras palavras, é o momento de aprofundamento de textos e

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autores importantes. Em oposição a outros exercícios em que o aluno tem um papel ativo, a

preleção é hora em que o professor sozinho trabalha. É momento do professor, e o aluno deve

estar atento e em silêncio, ouvindo o professor. O comentário do professor não pode ser

improvisado e, segundo Charmot segue em quatro partes. São elas: Leitura do texto, prelúdio

(momento em que se indica o assunto do discurso), a explicação de cada frase (em latim,

substituir algumas palavras do autor em termos corriqueiros no latim, sinônimos) e por último o

comentário (reflexões). Quando se referir a um autor, o professor poderia contar a história de

vida, despertando a curiosidade dos alunos pelo autor a ser trabalhado. O professor deveria

preparar antecipadamente sua fala, como podemos notar na regra a seguir destinada aos

professores das classes inferiores:

Preleção.- Na preleção só se expliquem os autores antigos, de modo algum os modernos. De grande proveito será que o professor não fale sem ordem nem preparação, mas exponha o que escreveu refletidamente em casa e leia antes todo o livro ou discurso que tem entre mãos. (...) [RATIO, REGRAS COMUNS AOS PROFESSORES DAS CLASSES INFERIORES, REGRA 27]

A preleção nunca pode ser comparada como uma versão ou uma tradução. Por meio dela,

os jesuítas buscavam formar nos alunos o gosto pela erudição, além de trabalhar elementos de

gramática, lingüística, poesia, filosofia. Ao entrar em contato com as obras escolhidas pelos

padres, os alunos também se aperfeiçoavam na arte de escrever bem, sempre apreciando a beleza

da criação humana.

As repetições eram a forma encontrada para se exercitar a memória. Nas diversas aulas o

aluno participava de exercícios de repetição, que era considerado indispensável, até mesmo as

repetições em público. Nas aulas de Retórica, por exemplo, o aluno deveria exercitar sua

memória na prática da declamação. Esse exercício, antes de se tornar um dos pilares da

metodologia do Ratio Studiorum, foi sugerido por Ignácio nas Constituições, prescrevendo

repetições diárias, semanais, mensais e anuais, quando se repetia o conjunto de tudo o que foi

aprendido, possibilitando ao aluno captar a unidade e o movimento de uma composição,

admirando sua perfeição clássica, como afirma Charmot.

Repetição.- Do mesmo modo faça-se a repetição da lição do dia e da véspera, ou toda, por um só aluno, ou melhor, em partes por vários, a fim de que se exercitem todos; perguntem-se os pontos mais interessantes e mais úteis, primeiro aos alunos mais adiantados depois aos outros, que responderão em recitação seguida ou intercalada pelas interrogações do professor, enquanto o êmulo do repetente o corrigirá, se erra, ou antecipará a resposta se tardar. [RATIO, REGRAS COMUNS AOS PROFESSORES DAS CLASSES INFERIORES, REGRA 25].

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Repetir era sedimentar a verdade, dinamizando e sistematizando o reforço do ensino e

estudo. Era entendido como um modo de fixação e avaliação. Além de um exercício de fixação,

a repetição era um modo de memorizar e guardar a verdade cristã. Para a Companhia de Jesus,

só existia uma verdade e era essa que deveria ser armazenada na memória, para que no futuro

fosse disseminada. A repetições- que duravam cerca de uma hora- aconteciam tanto nos cursos

inferiores (ginasiais) como nos superiores e era entendida como de suma importância para a vida

intelectual, profissional e social.

A disputa é um recurso bastante citado no Ratio Studiorum. É uma forma de preparar

para a vida. É importante ressaltar que as disputas não eram entendidas como uma forma de um

aluno prejudicar o outro, ou vencê-lo. Entendiam como uma maneira de se exercitar

mutuamente. A intenção era de que ambos crescessem juntos e um servisse de apoio para o

outro. Era um estímulo para o estudo. Os alunos deveriam estar prontos a qualquer momento

para uma disputa. Esse recurso assumiu um papel de destaque, criando um incentivo, um

estímulo externo, que poderia obter resultados mais rápidos, elevar o padrão de qualidade

mínimo e criar um status dentro da própria Companhia, o qual servia como um critério para se

escolher os melhores homens para os postos mais importantes. O clima de competição perpassa

praticamente todo o Ratio. Compreendia-se a apresentação e avaliação de tudo o que o aluno

tinha aprendido, nos diferentes níveis do curso. Era o ponto alto da formação do aluno, pois

somente os mais avançados faziam a disputa. Havia várias formas de se disputar: um contra um,

grupo contra grupo, um contra grupos, classes diferentes, etc. Nas disputas públicas havia um

tom de solenidade, se distribuía prêmios e contava-se com a presença de membros da alta

hierarquia do colégio. Nos cursos inferiores as disputas eram chamadas de desafios.

No método pedagógico dos jesuítas, havia a preocupação de formar outras

aptidões que preparavam o homem para a vida, dentre elas se destacava o teatro. Além da

finalidade recreativa, a formação cívica, moral e religiosa da juventude também era fortalecida

com assuntos tirados das Escrituras. Fortalecia a memória, educava a voz e apurava a dicção,

trabalhando também o domínio de si ao falar em público. As formas eram variadas, desde um

pequeno diálogo até a representação de fatos da antiguidade clássica. Buscava enaltecer as ações

nobres e viris em prol das grandes causas. Algumas restrições eram feitas, como a presença de

personagens femininos.

Os Estudos Superiores são tratados separadamente no Ratio, porém repetições e

disputas continuam. Ignácio entendia que a universidade era o instrumento de qualificação, de

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formação de pessoas capazes de atuar sobre a vida social. As cinco horas de aulas por dia eram

distribuídas entre o grego e o latim, a prosa e a poesia, e os diversos exercícios escolares,

preleção, lição de cor, composição, desafio, entre outros, que objetivavam o melhor

aproveitamento da aula.

Diante de tamanha rigidez do método, não podemos nos esquecer de uma parte

fundamental do aprendizado: as avaliações. Avaliar a aprendizagem era o caminho para se

verificar a constância de estudo do aluno, em casa, e a forma de expor esse aprendizado. À

tarde, havia a repetição da aula do horário anterior, uma nova preleção e repetição da nova aula.

Depois se variavam as práticas, com ditado, declamação, recitação, explicação e interrogação da

lição nova, ou ainda, desafios. Os alunos eram avaliados por meio de exames orais e escritos- os

dois presidido pelo Prefeito de estudos- e depois das férias saberiam se foram aprovados ou

não. Três examinadores, sendo que um deles era o próprio prefeito de estudos, tinham a função

de julgar se o aluno deveria seguir adiante.

Examinadores.- Deverão ser três os examinadores. Um deles será, por via de regra, o próprio Prefeito; os outros dois serão escolhidos pelo Reitor com o prefeito entre pessoas versadas nas boas letras e, possivelmente não professores. A decisão será tomada por maioria dos três sufrágios. Se for elevado o número de alunos, nada impede que se constituam duas ou mais comissões ternárias de examinadores. [IDEM, REGRAS DO PREFEITO DE ESTUDOS INFERIORES, REGRA 18]

Há uma série de regras destinadas aos alunos sobre os exames escritos,

principalmente em relação ao tempo da prova e a clareza nos escritos, pois se alguma palavra

fosse omitida ou modificada sem razão, seria considerado erro. Havia também a preocupação em

evitar que alunos sentassem próximos como também, se o aluno precisasse sair teria que deixar

seus escritos com o prefeito. Depois de entregue, as provas seriam destinada à banca de

examinadores que iriam decidir sobre a promoção do aluno.

Os prêmios distribuídos para os alunos que se destacaram têm a função de

estimulá-los a se dedicarem cada vez mais. A competitividade está muito presente no método

jesuítico. A entrega desses prêmios é feita em atos solenes com a presença da mais alta hierarquia

do colégio, com hora e dia marcado. O julgamento é feito ao ler os trabalhos escritos pelos três

examinadores que atribuirão seu voto.

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Forma do julgamento.- No julgamento deverá ser preferido o que escreveu com melhor estilo ainda que outros tenham escrito mais. Se alguns forem iguais na qualidade e no estilo, aos que menos escreveram preferir-se-á o que escreveu mais. Se ainda nisto forem iguais, seja o vencedor o que avantaje na ortografia. Se na ortografia e no mais empataram , dê-se o prêmio ao de melhor caligrafia. Se em tudo forem iguais, os prêmios poderão ser divididos multiplicados ou tirados em sorte. Se algum levar aos outros a palma em todas as espécies de composição, receberá também o prêmio de todas. [Id., NORMAS PARA A DISTRIBUIÇÃO DE PRÊMIOS, REGRA 9]

Os nomes são lidos publicamente e cada vencedor levanta-se no meio da assembléia e

recebe com toda honra seu prêmio. Além de mencionar o nome do vencedor, os nomes que mais

se aproximaram de ganhar o prêmio também são citados. A seriedade do momento da entrega

desses prêmios pode ser exemplificada em uma regra presente no Ratio Studiorum para a

distribuição dos prêmios, onde percebemos até a frese que deveria ser dita:

Distribuição. – O leitor chamará um dos premiados mais ou menos com esta fórmula: “Para maior glória e progresso das letras e de todos os alunos deste ginásio, mereceu o primeiro, o segundo e o terceiro lugar etc. prêmio em poesia latina, em poesia grega, N.” Entregue então o prêmio ao vencedor, acompanhando-o geralmente com uma brevíssima estrofe adaptada à circunstância e que, se possível, será logo entoada pelos cantores. Por último leia também os nomes dos que mais se aproximaram dos vencedores, os quais se poderá distribuir também alguma distinção. [Id, NORMAS PARA DISTRIBUIÇAÕ DE PRÊMIOS, REGRA 12].

A metodologia no Ratio pode se resumir nos quatro principais instrumentos

didáticos para a aquisição do conhecimento, independente do grau que se encontra o aluno:

estudo privado, repetições, disputas (desafios) e preleção. Em cada um desses instrumentos

percebemos um objetivo específico e como este objetivo se encaixa em um contexto amplo.

Notamos também que o tempo de estudo e o longo ano letivo, assim como a

meticulosidade na forma de organizar o currículo, expõem que a rígida formação do jesuíta que

respondia aos anseios de uma época em transformação. O longo ano letivo pode ser explicado

quando nos atentamos as férias. As férias da Retórica duravam um mês; as das Humanidades, três

semanas; as da Gramática Superior, duas semanas; e as das inferiores, uma semana.

É importante ressaltar que em cada curso e até mesmo nos diferentes níveis dos

cursos havia distribuição de tempo diferente. O Ratio não trata apenas da distribuição do tempo

nas aulas, mas também estabelece regras específicas em relação às férias, feriados e também a

regularidade de horários de entradas e saídas.

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Férias gerais.- As férias gerais do ano nos cursos superiores, não devem ter duração inferior a um mês e nem superior a dois. Na retórica, a menos que não se oponha o costume da universidade, as férias durem um mês; em humanidades três semanas; na gramática superior, duas; nos outros cursos uma. [Id, REGRAS DO PROVINCIAL, REGRA 22. 36.§ 1]

Os feriados deveriam ser fixos e, em dias que somente os cursos inferiores tivessem aula,

esta não poderia ter seu tempo diminuído. Em cada feriado religioso há uma regra determinando

quando parar e quando recomeçar. Toda semana pelo menos um dia seria destinado ao descanso.

Entretanto se em uma mesma semana caíssem dois feriados era importante verificar que dia da

semana seria, pois iria depender disto para que eles acontecessem ou não.

Feriado semanal.- Cada semana haja, pelo menos , um dia consagrado ao descanso. Na mesma semana, se caírem dois dias de festa, não haverá mais um dia feriado; a não ser que o fato ocorra mais vezes e de modo que um dos dias de festa caía na segunda-feira, outro no sábado: neste caso poderá conceder-se outro feriado. Quando do na semana houver um dia de festa e cair na quarta ou na quinta-feira, neste dia e só nele não haverá aula; se, porém, cair na segunda-feira ou sábado, também na quarta-feira não se dê aula; se, finalmente cair na terça ou na sexta-feira, neste caso se não houver sermão, e for permitido justo recreio, não haverá outro feriado; se não houver esta permissão, será feriado na quarta ou na quinta-feira. [Id., REGRAS DO PROVINCIAL, REGRA 22. 36. § 10)

Esses detalhes além de nos permitir perceber como o tempo era pensado com a intenção

de que houvesse rigor nos estudos, também nos permite constatar que todas as circunstâncias

eram pensadas com a função de não admitir qualquer desvio. A invariância era tanta que se

propunha outra ação caso àquela citada na regra não pudesse ser cumprida. Os estudos nessa

época ganham um caráter maior. Não bastava simplesmente formar homens cultos, era

importante formar homens competentes para encarar os mais diversos desafios. Tudo o que se

aprendia era exercitado a fim de se chegar na melhor forma de transmitir o conhecimento.

Mesmo diante das críticas não se pode negar que a Companhia de Jesus conseguiu atingir seu

objetivo, formando pessoas por todo o mundo, com ampla competência intelectual. Trata-se de

uma pedagogia extremamente diretiva que buscava guiar o aluno por meio de uma rígida

disciplina, com a intenção de preparar os homens que agiriam pela Igreja Católica mundo afora.

Os colégios da Ordem surgiram com esse objetivo. Essa direção era dada desde o início dos

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estudos e nada poderia desviar o caminho traçado pela Companhia de Jesus, por essa razão os

castigos corporais eram tão presentes nos colégios17.

2.7 O colégio segundo o Ratio Studiorum

É importante enfatizar que, ao tratar da formação dos jesuítas pelo Ratio Studiorum,

devemos lembrar de como a escola estava intrinsecamente ligada à religião, evitando a idéia de

que os jesuítas foram responsáveis por aplicar um método excludente, ou ainda, imaginar que

poderia ser diferente, julgando ou comparando com outros métodos. O propósito é entender os

significados das ações da época, e para isso torna-se necessária a investigação do conjunto de

ações que as caracterizam. É preciso conhecer a cultura que marca a sociedade que estamos

estudando. A escola passou por muitas modificações. Hoje ela tem um propósito completamente

diferente que tinha há séculos atrás. As sociedades visam à realização de objetivos e, a escola

prepara a sociedade para alcançar esses objetivos. A escola funciona de acordo com a sociedade

em que está inserida.

A escola, na chamada Idade Média, era inseparável da catedral e dos mosteiros. A função

dos religiosos era difundir a palavra de Deus e, dessa forma, precisava formar pregadores.

Segundo Giovanni Miccoli, a vocação monástica, era a “única via para a formação de homens

superiores, dotados de meios e de possibilidades intelectuais e de evolução humana que escapam

a outros homens” (1989, p.49). Este autor ainda afirma que a opção monástica era uma opção de

cultura e de conhecimentos para os filhos da nobreza, a vocação para a santidade deveria ser

acompanhada pela vocação para a cultura. O costume entre os nobres e cavaleiros era

encaminhar a um mosteiro os filhos ainda crianças. Os exercícios escolares alternavam-se com

meditação e a prática litúrgica. O estudo, como afirma Duby, “se confundia com a oração, não

se distinguia dela; era uma outra forma de servir a Deus”. (1988, p.66)

O ciclo de estudos desde a época carolíngia contava com a gramática, a retórica,

aprendizagem do discurso; e a dialética que eram aprendizagens do raciocínio, aritmética,

geometria, astronomia e música. O alvo era a Teologia, ciência que penetra nos segredos

divinos. Ciência sem um propósito divino não se pensava. Todos os caminhos nos estudos

17 Os castigos corporais utilizados como forma de se manter a disciplina nos colégios da Ordem serão trabalhados no terceiro capítulo.

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desembocavam na Teologia, que era a rainha das ciências. Era importante estudar e desenvolver

o raciocínio para saber interpretar as mensagens divinas. A palavra se dava pela revelação e era

necessário saber interpretar os sinais. O colégio é um recorte da sociedade. Só muda quando a sociedade mudar. Por meio dele é

passado o que é necessário para a manutenção da sociedade. E, quando uma sociedade se

encontra em transformação, a noção de estudo também muda. Nas catedrais e mosteiros não era

diferente. Ensinavam o que seria necessário para a manutenção da tradição. Por essa razão a

Teologia era encarada como a rainha das disciplinas. Segundo Paiva, por volta do século XI

quando surge o comércio internacional, um novo tipo de sociedade vai se fazendo. Sendo assim,

a escola acompanha o desenvolvimento dos conhecimentos que passam a ser necessários.

Quando a sociedade via na escola um instrumento de ensino e aprendizagem das letras, isto é, dos conhecimentos necessários (Teologia, Direito e Medicina) para sua manutenção, função de um setor social, a escola se dizia colégio (reunião de pessoas), universidade (comunidade), ou ainda, estudos gerais. A experiência social que embasava esta visão era a da pertença de todos a um mesmo corpo social, na diversidade de funções mas na unidade de vida. Mais tarde, com o desenvolvimento social marcado pelo desenvolvimento mercantil e, mais tarde ainda, pelo industrial, à escola se atribuiu a função de instrução, ou seja, de preparar pessoas para a diversidade de funções agora expandidas. [PAIVA, s.d.]

A escola de hoje se transformou de acordo com a sociedade na qual ela está inserida.

Passa, agora, a ser um instrumento de transmissão dos conhecimentos básicos da vida em

sociedade. Não se trata de instrução, mas a intenção da escola atual é difundir valores e modelos

de comportamento. Por essa razão recebe o nome de educação. Esse termo deve ser pensado, em

seu sentido amplo, como um processo de relações sociais, onde todos os que participam dessas

relações estão aprendendo. Educação existe por toda parte, muito além da escola. Para Brandão

(1994) o exercício de viver e conviver, a ação entre os participantes de um meio sociocultural é o

que educa. A escola é apenas um momento provisório, um lugar, onde essa convivência pode e

deve acontecer.

Dessa forma, quando nos propomos a trabalhar a história da educação, devemos

conhecer a sociedade em que ela está inserida. A função do colégio jesuíta era primeiramente

formar na fé e nos bons costumes e, em segundo lugar, transmitir o conhecimento. Isso porque na

sociedade em que estava inserida, a fé explicitava toda a verdade. O conhecimento era um meio

para alcançar os objetivos da fé e garantir a manutenção dos valores.

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O colégio ganhou, com o tempo, uma função política de oferecer letrados que

satisfizessem as necessidades da sociedade. A população entendia que a função dos colégios era

formar letrados suficientemente capazes de ajudar a sociedade em suas decisões. Fazia parte do

funcionamento e manutenção da sociedade, até porque eles estavam a serviço do rei.

O mundo era entendido como a grande obra de Deus, marcado pela sua onipresença e

atuação. A sociedade funcionava segundo uma ordem, e esta ordem implicava uma subordinação,

onde todas as partes eram relacionadas entre si. Mesmo assimilando novos comportamentos

ligados ao comércio e aos descobrimentos, a visão quinhentista continuou providencialista. A

Ordem18 era entendida como hierarquia da própria natureza, segundo a qual cada um tem funções

especificas, tem sua competência que se completam em uma unidade. Paiva (2007) discorre sobre

esse aspecto afirmando que a subordinação indica uma complementação, já que o comportamento

das pessoas é definido segundo seu lugar na sociedade e todas são imprescindíveis para a

manutenção da sociedade.

Não se pode pensar a sociedade européia ocidental desligada da religião. Um exemplo

disso são as próprias reformas religiosas. A extraordinária inquietação, as formas de persuasão e

até mesmo a intolerância religiosa exemplificam o poder da religião na época. A defesa das idéias

referentes aos sacramentos, salvações e interpretações da Bíblia eram duras e nos mostram que

praticar sua religião representava combater as outras religiões. Vemos a importância da religião

quando nos deparamos com tantos conflitos religiosos. Deus estava presente na vida das pessoas,

acompanhava suas ações e queria que a sociedade atingisse a perfeição e, Ele sendo poderoso e

presente, pune. Por essa razão, o homem teme a Deus já que está em jogo a sua salvação.

Salvação que é discutida mas entendida de uma maneira peculiar pela Companhia de

Jesus, que por meio das missões e dos colégios buscarão a salvação das almas mundo afora. Para

os jesuítas, quando o comportamento se opõe aos bons costumes merece punição, e essa punição

deve era entendida como uma forma de manter a sociedade, a tradição. Aqueles que negam a

única possibilidade da humanidade, devem entender – e de diversos meios – que a aceitação dos

bons costumes e da única verdade existente é o caminho para salvar sua alma. Era preciso

também garantir a preservação da identidade e da unidade, função destinada aos letrados. A

sociedade encarava a escolaridade como atributo dos futuros letrados, já que estes precisavam

realizar suas funções de acordo com sua obrigação social. Estar no colégio não significava

18 Tratada no capítulo 1.

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apenas aprender, mas ocupar um lugar de destaque na sociedade. Os letrados eram respeitados

pela sociedade que reconhecia sua função.

Aos olhos de todos, Igreja e governo convivem, aparecendo como naturalmente complementares na tarefa da manutenção da sociedade. Os ideais – traduzidos na concepção de sociedade sagrada – são sustentados por ambas as partes e sua realização também por elas é provida. Tanto o governo intervém em tudo, administrando a justiça, voltado para o sagrado, quanto o clero, administrando o sacramento, se debruça sobre tudo. Letrados e clérigos são funcionários: desempenham a função real de manter a coesão da sociedade, na concepção descrita. (PAIVA, 2007, p.16)

Delumeau avalia que depois do Renascimento houve um grande aumento no domínio da

instrução, afirmando ainda que “o humanismo fez da instrução o principal meio da educação”

(1994, p.83). O autor considera também que os jesuítas foram os maiores agentes de difusão do

ensino humanista.

A ordem tinha 125 colégios em 1574 e 521 em 1640. Calculou-se que, nesta segunda data, os padres jesuítas tinham, pelo menos, cento e cinqüenta mil alunos. Só o Collegio romano tinha 2000 alunos em 1580; e o de Douai, o mais próspero dos Países Baixos, reunia em 1600 400 alunos de humanidades, 600 de filosofia e 100 de teologia. Os jesuítas ensinavam se graça. (Id, Ib, p. 83)

A educação jesuítica não se restringe à educação escolar: ela adquire um sentido

amplo, um espaço cultural e de formação de valores, de doutrinação e salvação das almas. Era

uma formação que visava solidificar as virtudes religiosas. É claro que os colégios não nasceram

prontos e já no início assumiram sua forma definitiva. Sua construção foi acontecendo de acordo

com suas inúmeras experiências e a atividade educacional tornou-se aos poucos fundamental para

a ordem jesuítica.

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Capítulo 3

A Homem segundo o Ratio Studiorum Para captar a forma de pensar e agir dos jesuítas é necessário entender que virtude e saber

caminham juntos. A intenção deste capítulo é entender a forma de ser do homem formado pelo

Ratio Studiorum. Dessa forma, há a necessidade de uma análise dos princípios que regem o Ratio

Studiorum, indicando como se expressa essa pedagogia e o que ela visa formar. Serão abordados

vários aspectos da vida do jesuíta. Neste mesmo capítulo, há uma exposição do tempo destinado

à oração, as virtudes que se esperam do jesuíta, suas ações e os estudos que são entendidos como

um meio de se alcançar a plenitude do homem. É importante destacar que, para a Companhia de

Jesus, quando tratamos de virtudes existem três grandes pilares: espiritualidade, disciplina e

trabalho que também, na concepção da Ordem, significa ação. Outro ponto importante é entender

qual o valor das ciências para os jesuítas. A pedagogia da Companhia de Jesus objetivava a

formação de um homem ajustado a vida da sociedade do século XVI. Diante das necessidades da

sociedade e da própria Igreja, os colégios asseguram as condições apropriadas à formação de

homens que conseguiriam reconhecer Deus em toda a criação. Para isso, nessa pedagogia nota-se

a junção de elementos renovadores sem que ocorra um distanciamento dos elementos tradicionais

da Igreja Católica.

3.1 Os Princípios do Ratio

O Ratio Studiorum busca formar homens para os outros (que busquem os outros e os

ajudem a encontrar a “verdade”), a serviço da fé, contemplando uma formação não só

intelectual, mas humana. O paradigma inaciano se resume em experiência, ação e oração. A

oração - que também sugere a reflexão - constitui o ponto central na passagem da experiência

para a ação. A pedagogia é o caminho pelo qual os professores acompanham o crescimento e

desenvolvimento dos seus alunos, com o fim de desenvolver os talentos recebidos de Deus. Para

os jesuítas, a finalidade da pedagogia jamais foi simplesmente acumular quantidade de

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informação ou preparo para uma profissão, mas sim o desenvolvimento global da pessoa, que

conduz à ação inspirada pelo Espírito e à presença de Jesus Cristo, filho de Deus e ‘Homem para

os outros’. Este objetivo orientado para a ação considera que a compreensão reflexiva e

vivificada pela contemplação desafia os alunos ao domínio de si mesmos e à iniciativa,

integridade e exatidão.

Deus como autor de toda realidade, toda verdade e todo conhecimento, presente

e trabalhando em toda a criação: na natureza, na história e nas pessoas. A educação da

Companhia afirma a grandeza de Deus, e considera cada elemento da criação digno de estudo e

contemplação, capaz de infinda exploração. O conhecimento é encarado como uma forma de

conduzir a um maior conhecimento de Deus e a uma disposição de trabalhar com Deus em sua

continua criação. Os cursos são ministrados de tal maneira que os alunos, reconhecendo

humildemente a presença de Deus, sintam o desejo de um maior e mais profundo conhecimento.

Aliança das virtudes sólidas com o estudo.- Apliquem-se aos estudos com seriedade e constância; e como se devem acautelar para que o fervor dos estudos não arrefeça o amor das virtudes sólidas e da vida religiosa, assim também se devem persuadir que, nos colégios, não poderão fazer cousa mais agradável a Deus do que, com a intenção que se disse acima, aplicar-se diligentemente aos estudos; e ainda que nos cheguem nunca a exercitar o que aprenderam, tenham por certo que o trabalho de estudar, empreendido, como é de razão, por obediência e caridade, é de grande merecimento na presença da divina e soberana majestade. [RATIO, REGRAS DOS ESCOLÁSTICOS NA NOSSA COMPANHIA, REGRA 2]

O ensino segundo o Ratio busca desenvolver a capacidade de assimilar e aplicar

conhecimentos intervindo na sociedade em que está inserido. Nessa sociedade tal intervenção não

podia estar desligada das práticas das virtudes cristãs. O sentido final das ordens do Ratio é

seguir a tradição fielmente e os textos canônicos autorizados pela Igreja a partir do Concílio de

Trento. A Ordem era seguir os doutores aprovados pelas Universidades Católicas (não ser nem

curioso, nem defensor de opinião própria).

Ratio significa “razão”, “ordem”, “organização”. Mais do que conteúdos específicos o

Ratio demonstra os processos de ensino e aprendizagem, portanto não é um tratado teórico de

pedagogia, mas um “código prático de leis pedagógicas”. (HANSEN, 2001, p.18). O Ratio

prescreve que os conhecimentos são adquiridos por meio do exercício de modelos, cuja repetição,

feita na forma de exemplos, acontece como um treinamento constante da ação. Não basta apenas

estudar: é necessário garantir que o conhecimento adquirido fosse transmitido da melhor forma.

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Desde a IV sessão do Concílio de Trento, em abril de 1546, a retórica tinha assumido papel fundamental nas práticas católicas. Declarando herética a tese luterana da sola scriptura, os bispos aí reunidos confirmaram a autoridade da traditio, a tradição, prescrevendo a pregação oral como modo privilegiado de propagar a fé e combater a tese luterana da leitura individual da Bíblia. O Ratio Studiorum especifica que o curso de retórica deve dar conta de três coisas essenciais, que então resumem e normalizam toda a educação, os preceitos, o estilo e a erudição. Para ensinar as três em seus colégios espalhados pelo mundo, os jesuítas recuperaram autoridades antigas, principalmente as Partições Oratórias e o De Oratore, de Cícero; a Retórica para Herênio, do Anônimo, então atribuída a Cícero; e a Institutio Oratória, de Quintiliano, que fornecem regras ou preceitos da eloqüência, além da Rhetorica aristotélica. (Id, Ib, p. 19)

Para a maior glória de Deus é necessária a prática das virtudes - obediência, o

cumprimento dos deveres, a modéstia, a humildade e a mortificação - e da piedade. Além disso,

é preciso se dedicar ao estudo e a boa formação cristã. O Ratio Studiorum é um documento que

se dirige à educação nos colégios jesuíticos tanto para aqueles que estavam estudando para

tornarem-se jesuítas, como também para os alunos de fora da Companhia, os alunos externos.

Visando em primeiro lugar o futuro dos jesuítas, ao estabelecer uma rigorosa educação, atingia

por derivação, os estudantes de fora. Segundo a Companhia de Jesus, o objetivo da educação

jesuítica é ajudar o desenvolvimento mais completo possível de todos os talentos dados por

Deus a cada indivíduo como membro da comunidade humana. Busca uma formação intelectual

completa e profunda incluindo o domínio das disciplinas básicas, humanísticas e científicas,

através de um estudo continuado. A educação jesuítica segue dois princípios básicos: educação

humanista e educação ativa. O viés humanista é o centro do ensino secundário.

Na concepção do Ratio, o curso secundário deve ser essencialmente humanista, pendente mais para a arte do que para a ciência. Sua finalidade não é transformar os adolescentes em pequeninas enciclopédias que depois de alguns anos já precisam ser reeditadas. Todo o esforço do educador deve concentrar-se, nesta fase da vida, em desenvolver as capacidades naturais do jovem, em ensinar-lhe a servir-se da imaginação, da inteligência e da razão para todos os misteres da vida. Os conhecimentos positivos de geografia ou de física poderão estar antiquados no cabo de poucos lustros; o raciocínio seguro, o critério na apreciação dos homens, a capacidade de expressão exata, bela e enérgica de uma alma harmoniosamente desenvolvida representam aquisições humanas de valor perene. [FRANCA, 1952]

A estrutura do Ratio Studiorum atende um princípio de autoridade hierarquizada. Até

mesmo a disposição das regras se encontram dessa maneira. O primeiro conjunto de regras é

dirigido ao Provincial, em seguida são expostas as regras do Reitor, do Prefeito de Estudos, e

logo depois aponta as regras comuns aos professores de classes superiores. Só depois de tratar

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das particularidades dos professores de cada área dos cursos superiores é que se destina aos

professores de classes inferiores.

O conjunto de regras no Ratio Studiorum está dividido da seguinte forma: Regras do

Provincial; Regras do Reitor; Regras do Prefeito dos Estudos; Regras comuns a todos os

Professores das Faculdades Superiores; Regras do Professor de Sagrada Escritura; Regras do

Professor de Língua Hebraica; Regras do Professor de Teologia (Escolástica); Regras do

Professor de Casos de Consciência (de teologia moral); Regras do Professor de Filosofia; Regras

do Professor de Filosofia Moral; Regras do Professor de Matemática; Regras do Prefeito de

Estudos Inferiores (ginasiais); Normas da Prova Escrita; Normas para a distribuição de prêmios;

Regras Comuns aos Professores das Classes inferiores; Regras do Professor de Retórica; Regras

do Professor de Humanidades; Regras do Professor da Classe Superior de Gramática; Regras do

Professor da Classe Média de Gramática; Regras do Professor da Classe Inferior de Gramática;

Regras dos Escolásticos da Companhia; Diretivas para os que repetem privadamente a Teologia

em dois anos; Regras do Ajudante do Professor ou Bedel; Regras dos Alunos Externos da

Companhia; Regras da Academia; Regras do Prefeito da Academia; Regras da Academia dos

Teólogos e Filósofos; Regras do Prefeito da Academia dos Teólogos e Filósofos; Regras da

Academia dos Retóricos Humanistas, e Regras da Academia dos Gramáticos.

Nota-se que as regras destinadas aos alunos aparecem por último, e também obedece à

hierarquia: primeiro, regras destinadas a Academia dos Teólogos e Filósofos, depois dirigida aos

Retóricos Humanistas e por último, aos Gramáticos. Como afirma Paiva (1981), a hierarquia

implica em centralização do poder. A Igreja é o maior poder. Essa formação hierárquica tem

como princípio a centralização, a uniformidade e a invariância. Todo colégio pertencente a

Companhia deve se organizar de acordo com as regras do Ratio Studiorum.

A arquitetura do Ratio Studiorum ultrapassa toda a limitação da simples instrução e leva, propositalmente, a determinada educação, em que o conceito de homem é apresentado pela Igreja do século XVI, ou seja, uma referência essencial a Deus de um ser que se caracteriza pelo uso da razão, e esta razão alcança seu apogeu, dedicando-se ao seu próprio cultivo, conforme as lições dos antigos, por meio da interpretação cristã. Toda organização da vida de estudos traduz esta direção, mas o currículo a deixa expressa. Encontramos neste laboratório pedagógico, que é o colégio jesuítico, uma comunidade perfeitamente integrada, em que cada aspecto da vida social retrata fielmente a estrutura de todo o conjunto.(PAIVA, 1981, p. 2)

Outro fator essencial à eficiência de qualquer sistema educativo é o professor, que na

Companhia, além de possuir uma inteligência culta e ilustrada, deveria ter uma personalidade

que servisse de modelo aos educandos, para formar o homem perfeito de amanhã. De acordo

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com a Igreja, a autoridade vem de Deus, a hierarquia é entendida como uma verdade revelada e

a obediência ao superior é legitima, é obedecer a Igreja Católica. Para que esta obediência seja

alcançada o sacerdote deve representar entre seus alunos a pessoa de Cristo. Segundo Charmot

“De dos maneras procurarás mostrarse digno de la obediência de los alumnos: imitando a Cristo

en toda su conduta y dando ordenes a la manera de Cristo” (1952, p.119). A autoridade vem de

uma grandeza moral. Entre os jesuítas, entendia-se que nada conquistava mais os alunos e os

inspirava do que a virtude, a santidade, a imitação do modelo de Cristo. A perfeita formação

pedagógica do professor era uma das preocupações fundamentais da Ordem.

Academia para a preparação de professores.- Para que os mestres dos cursos inferiores não comecem sua tarefa sem preparação prática, o Reitor do colégio donde costumam sair os professores de humanidade e gramática escolha um homem de grande experiência de ensino. Com ele, vão ter os futuros mestres, em se aproximando o fim dos seus estudos, por espaço de uma hora, três vezes na semana, a fim de que, alternando preleções, ditados, escrita, correções e outros deveres de um bom professor, se preparem para o seu novo ofício. [RATIO, REGRAS DO REITOR, REGRA 9].

Assim como a regra acima, outra regra destinada ao Reitor refere-se à conservação do

entusiasmo dos professores:

Conserve o Zelo alegre dos professores.- Procure também diligentemente com a sua caridade religiosa conservar o entusiasmo dos professores e vele para que não sejam sobrecarregados com trabalhos caseiros; o que ao Reitor prescreve a regra 25 do seu ofício, observe-o em relação a eles com especial cuidado. [IDEM, REGRAS DO REITOR, REGRA 20]

No Ratio Studiorum existem regras gerais para todos os professores de classes superiores

e outras para os das classes inferiores, mas também as específicas para cada área. Há também

regras destinadas aos prefeitos de estudos mencionando como deverá ser seu relacionamento

com os professores:

5.Os Professores expliquem toda a matéria.- Lembre a cada um dos professores de teologia , filosofia ou casuística, especialmente quando nota algum mais retardatário, que deverá adiantar de tal modo a explicação que, cada ano, esgote a matéria que lhe foi assinada. (...) 17.Ouvir e observar os professores. – De quando em quando, ao menos uma vez por mês, assista às aulas dos professores; leia também, por vezes, os apontamentos dos alunos. Se observar ou ouvir de outrem alguma cousa que mereça advertência, uma vez averiguada, chame a atenção do professor com delicadeza e afabilidade, C, Se for mister, leve tudo ao conhecimento do Reitor. [Id, REGRAS DO PREFEITO DE ESTUDOS, REGRAS 5 E 17]

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A pedagogia da Companhia se expressa em um programa de vida, podendo ser definida

como uma educação para vida (e também para a vida eterna), já que o conhecimento se une à

vida moral. A religiosidade é inerente ao programa; a ciência e o conhecimento sem a virtude

não têm significados para a Companhia. Em todas as disciplinas encontramos essa ligação e um

propósito cristão em todas elas. Cada disciplina tem sua lógica e utilidade dentro das concepções

cristãs, trabalhando os talentos para que estes sirvam a Deus por meio de suas atribuições.

Para os jesuítas havia uma fusão entre o melhor esforço intelectual da Idade Média com

as recentes idéias do humanismo cristão da Renascença. A moral está acima de tudo, inclusive

da ciência. Madureira (1927) afirma que a leitura de alguns livros é até mais prejudicial do que

uma má companhia. Para ele é melhor prejudicar o seu estudo ao não ler um certo livro do que

perder o pudor.

Proibição de livros inconvenientes. - Tome todo o cuidado, e considere este ponto como da maior importância, que de modo algum se sirvam os nossos, nas aulas, de livros de poetas ou outros, que possam ser prejudiciais à honestidade e aos bons costumes, enquanto não forem expurgados dos fatos e palavras inconvenientes; -e se de todo não puderem ser expurgados, como Terêncio, é preferível que não se leiam para que a natureza do contendo não ofenda a pureza da alma. [RATIO, REGRAS DO PROVINCIAL, REGRA 5. 19 § 5].

Além dos livros, as idéias, opiniões ou métodos novos eram combatidos. Os autores e as

doutrinas adotados há anos deveriam permanecer, pois estes não ofereciam riscos de apresentar

idéias que fossem contrárias às da Ordem.

Evite-se a novidade de opiniões.- Ainda em assuntos que não apresentam perigo algum para fé e a piedade, ninguém introduza questões novas em matéria de certa importância, nem opiniões não abonadas por nenhum autor idôneo, sem consultar os superiores; nem ensine cousa alguma contra os princípios fundamentais dos doutores e o sentir comum das escolas. Sigam todos de preferência os mestres aprovados e as doutrinas que, por experiência dos anos, são mais adotadas nas escolas católicas. [IDEM, REGRAS COMUNS A TODOS OS PROFESSORES DAS FACULDADES SUPERIORES, REGRA 6].

O método também estabelece regras sobre a relação entre os professores e alunos.

Essa convivência, baseada no respeito e na obediência, também é explicitada no Ratio,

mostrando que o método pedagógico se preocupa tanto com a conduta dos jesuítas que existe até

uma regra sobre este item direcionada aos professores das classes inferiores:

Familiaridade. Conversa. – Não se mostre mais familiar com um do que com outro; fora da aula não fale com os alunos senão por pouco tempo, de cousas sérias e em lugar visível, isto é, não dentro da sala de aula, mas fora, à porta, no pátio, ou na portaria do colégio, para que se dê mais edificação. [Id, REGRAS COMUNS AOS PROFESSORES DAS CLASSES INFERIORES, REGRA 47].

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No Ratio há o incentivo em relação à observância das regras correspondentes à função de

cada grupo no colégio. A invariância nas regras era tanta que as possíveis exceções- que

poderiam acontecer- eram expostas também no documento a fim de que nenhuma atitude fosse

tomada sem que estivesse de pleno acordo com a organização. A disciplina é uma das principais

características de um jesuíta. Essa disciplina está ligada à observância das regras. Os alunos

deveriam observar as regras, e claro, siga-las.

Por ter raízes seculares, os jesuítas não se dedicaram ao ensino do Direito e da Medicina,

mas isto não significava que seus trabalhos não eram reconhecidos ou não tinham valor. A função

do padre na sociedade quinhentista era de um relevo social significativo. Como já mencionamos,

universidade era o instrumento de formação de pessoas capazes de atuar sobre a vida social. A

ciência era concebida como necessária para os eclesiásticos cumprirem sua missão na sociedade,

já que esta respeitava a sabedoria dos padres; por isto, todos deveriam estudar. As escolas para

formação de padres tiveram essa função: formar letrados (no sentido da época) e

conseqüentemente homens respeitados. Só assim poderiam ser reconhecidos socialmente como

tendo competência para interpretar os caminhos da “verdade”, as mensagens de Deus, o que

deveria ser seguido. Dessa forma, a própria pregação era fortalecida, e era justamente esse

fortalecimento um dos objetivos da Companhia de Jesus.

3.2 –As Virtudes

A pedagogia inaciana busca formar o homem para os outros: consciente, compassivo e

competente. Além da instrução é nítida a exigência de uma vida virtuosa e honesta – homens

bons e instruídos- para desempenhar seu papel como jesuíta. As Constituições da Companhia

declara a importância de uma vida disciplinada, regada de orações, meditações e outros

exercícios espirituais.

Essa pedagogia prioriza a valorização do indivíduo e das ações por ele praticadas. Nota-

se que o estudo por si só não tem sentido. É necessário aliar a prática de bons costumes, a oração

e as letras. O conhecimento inerente à moral se aproximava do modelo de vida humana, que na

visão de Ignácio é Jesus Cristo. Além de conhecê-lo era preciso seguir seu exemplo. Ele

respondeu à vontade do Pai, servindo aos outros. Sendo assim, a obediência – a obediência de

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Cristo à vontade do Pai o levou a entregar-se totalmente a serviço dos outros - e a disciplina são

fundamentais na educação jesuítica.

O comportamento em sociedade era, com efeito, ditado pela nossa santa fé, sendo objeto pois de um único juízo, de um mesmo critério de avaliação. A fé dava os contornos ao comportamento social. Os comportamentos aprovados se diziam bons costumes e eram objetos de doutrinação da Igreja e, nos mesmos termos, da legislação do Reino. Os comportamentos que se opunham aos bons costumes mereciam reprovação social e punição e se diziam pecados. (PAIVA, 2007, p.15)

Esses “bons costumes” tratados acima por Paiva também podemos chamá-los de

virtudes. Tanto no Ratio Studiorum como nas Constituições da Companhia, freqüentemente se

menciona a preocupação com a educação moral. Essa formação moral pode ser entendida como

uma maneira de, por meio da vivência no colégio, conseguir despertar os bons costumes nos

alunos. Quando usamos o termo “moral” estamos nos referindo a prática de atitudes virtuosas,

valorizadas nos colégios. O modus parisiense – principal inspiração para a elaboração do Ratio

Studiorum –se destacou entre os jesuítas por ser um método que, segundo Ignácio, era o que

fornecia a “formação moral” completa. A prática de bons costumes não exclui a oração, que

também é uma virtude praticada (prática da doutrina: contemplação, confissão, freqüência nas

missas, etc), sendo um dos pilares da pedagogia inaciana e, que, trataremos mais tarde.

A ordem, a obediência cega – perinde ac cadaver -, a disciplina, a ação, a competência e

dedicação aos estudos; são alguns dos valores incentivados pelos jesuítas. A educação jesuítica

ajudava a desenvolver todos os talentos dados por Deus a seus filhos. Os grandes autores

estudados desenvolveram o talento atribuído por Deus. Cada aluno desenvolvendo suas

potencialidades por completo e profundamente – não por proveito próprio, mas para o bem de

todos - estaria cada vez mais perto da perfeição humana que se aproxima de Cristo. Para isso é

necessário dedicação aos estudos, ordem, empenho. Para o professor não bastava ensinar: era preciso ter uma conduta edificadora. Na quarta

parte das Constituições da Companhia de Jesus percebemos em muitas ocasiões que para se

tornar um competente operário de Cristo, era necessário seguir seu exemplo e doutrina.

Para ser um operário19 a serviço de Cristo é necessário ter costumes saudáveis e

disciplina “para agüentar o trabalho dos estudos” (CONSTITUIÇÕES, 1997, p.124). O talento, a

19 Competente operário a serviço de Cristo – expressões presentes nas Constituições que nos mostram a importância da ação, ou seja, do homem que trabalha a serviço de Cristo. Esse aspecto será abordado mais adiante neste mesmo capítulo, no item 3.2.3 Trabalho.

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formação básica intelectual e os bons costumes, além da idade conveniente20 são apontados nas

Constituições como fundamentais para quem deseja fazer parte da Companhia. A vida do

estudante é impregnada de fé, por meio da oração, da leitura da vida dos santos, que representa o

instrumento da conversão de Ignácio. Dentre suas obrigações está:

(...) subjugar o próprio capricho, obedecer de boa vontade os superiores, amar o recolhimento e o silêncio, pensar e falar sempre modestamente de si e de suas coisas, levar com paciência as descortesias alheias, não consentir assomos de inveja, nem ofender a honra de outrem, contentar-se com menos(...) (MADUREIRA, 1927, p.418).

Para a Companhia, estudar é tão louvável a Deus quanto os exercícios das virtudes. A

Companhia pregava a abnegação, dedicação e zelo profissional, adjetivos indispensáveis aos

estudantes que deveriam alcançar a perfeição dos talentos atribuídos por Deus. Para que tudo

isso acontecesse, o estudante deveria ter o governo de si. Como escreve Charmot:

El discípulo debe vencerse a si mismo. Sus pensamientos, sus sentimentos, hábitos e instintos, son bien suyos y están en el, no menos que sus pecados. El verdadeiro êxito sólo se asegura com la transformación animosa de su ser. Por tanto, el professor sólo puede ayudarle. Le dará, segun las necesite, luces y fuerzas morales. Mucha destreza será menester para no hacer más dano que provecho, o um bien más aparente que real. (1952., p.109)

O objetivo e fim da Companhia, como consta das Constituições, é de percorrer as

diferentes partes do mundo utilizando todos os meios possíveis de ajudar as almas e, para isso, é

necessário que os que entrarem nela sejam pessoas honestas e com “instrução capaz para este

trabalho”.(CONSTITUIÇÕES, 1997, p. 117). O desenvolvimento da Companhia depende da

vocação de homens instruídos, bons e sábios, e com grande abnegação de si mesmos que possam

progredir cada vez mais nas ciências e na virtude para a maior Glória de Deus.

A Igreja Católica, segundo os jesuítas, como defensora da integridade da fé, é

encarregada de ensinar às nações as verdades reveladas por Deus para o bem da humanidade. O

Ratio Studiorum inspirando-se na IV parte das Constituições, baseou a educação moral nos

princípios e na prática da religião. Ignácio sempre considerou a educação como meio de elevar

as almas a Deus. Fé , amor e obediência eram os elementos fundamentais da formação do ser

intelectual e moral que a Companhia almejava. A tarefa da educação para os jesuítas é acima de

20 A idade conveniente citada é entre os 14 e os 23 anos.

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tudo, formar o homem integralmente. Até mesmo os alunos externos, por derivação, entendiam

que a ciência não estava desligada das virtudes.

Era necessário também se exercitar, cumprir suas atividades, o que Charmot

(1952) coloca como um entre os três princípios gerais do Ratio. Os exercícios não eram uma

tarefa apenas voltada para os estudos, a espiritualidade também era exercitada. Como membro

da Companhia de Jesus o aluno deveria sentir-se como um instrumento de Deus na terra, e para

isso deveria buscar uma experiência íntima com ele, por meio de uma espiritualidade própria. O

principal meio utilizado na formação espiritual dos jesuítas eram os Exercícios Espirituais de

Loyola21. Os outros dois princípios são o da autoridade e o da adaptação. O primeiro princípio

vem de Deus. O homem recebe sua autoridade por meio de uma hierarquia revelada, sendo que

a obediência ao seu superior é uma obediência à Igreja, a Deus. Além disso, o professor jesuíta,

precisa ser exemplo de virtude almejando a perfeição, uma grandeza moral (santidade) que se

aproxime de Cristo, pois dessa forma alcançará a veneração de seu aluno. Já o princípio de

adaptação que Charmot expõe se refere à prática jesuítica de ajustar-se aos diferentes lugares e

circunstâncias, atitude esperada desde as Constituições de Ignácio de Loyola.

Para a Maior Glória e Maior Serviço de Deus, a Companhia afirma nas Constituições

admitir jovens que “pela sua vida edificante e pelos seus talentos, dêem esperança de vir a ser

homens, ao mesmo tempo virtuosos e sábios, para cultivar a vinha de Cristo Nosso

Senhor”.(CONSTITUIÇÕES, 1997, p.118)

Os homens competentes que os colégios jesuíticos buscavam formar, além de converter e

salvar as almas pelo mundo, também iriam zelar para a preservação da sociedade católica. A

escolaridade, a partir desse momento, tornou-se ainda mais importante para que os letrados

desempenhassem suas funções. Para a Companhia, os saberes provêm da revelação e, dessa

forma, os letrados deveriam iluminar as decisões, ganhando um papel de muita importância na

manutenção desta sociedade.

A formação do homem pelo Ratio Studiorum une conduta e saber, virtude e

conhecimentos tidos como necessários para a salvação das pessoas e manutenção da sociedade

fundada nos valores e preceitos católicos. O objetivo da Companhia de Jesus era formar homens

competentes, oferecendo aos cristãos pessoas preparadas, intelectual e moralmente, de acordo

com as resoluções do Concílio de Trento. As críticas atribuídas à Igreja Católica – como as de

Erasmo de Roterdã – além de apontar o estilo de vida dos monges e abusos financeiros, se 21 Tratado neste mesmo capítulo, no item 3.2.1 Espiritualidade.

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destinavam à deficiente instrução religiosa, tornando-se uma preocupação, sendo que a “reforma

religiosa nasceu, provavelmente, deste profundo desnível entre a mediocridade da oferta e a

veemência inusitada da procura”. (DELUMEAU, 1984, p. 137)

Esta procura, mencionada no primeiro capítulo, se deve a busca incessante pela salvação

num mundo em que o Diabo é tão presente. Dessa forma, os religiosos deveriam estar preparados

para desempenhar suas funções de forma competente. Nessa época, o sentimento de insegurança

atormenta as pessoas, e assim, a busca pelo perdão de Deus é constante.

“Religião mais individualista: isto significa, também, nos dois séculos que antecederam a Reforma, um novo sentimento de culpabilidade pessoal. [...] Tantos flagelos não podiam deixar de ser um castigo de Deus e, como a consciência individual – um fato da civilização – estava a emergir da escuridão, todos se sentiam horrorosamente culpados. (Idem, ibidem, p. 143)

A preocupação com a moral da juventude, não é exclusiva dos jesuítas. Na época do

Renascimento22 houve uma reorganização dos estudos e surge nesse momento um novo olhar em

relação à disciplina. Como afirma Delumeau (1994) “tomou-se consciência de que a criança e o

adolescente eram seres diferentes dos adultos (...)”. Dentre os deveres do mestre estava a

formação do espírito e o ensino da virtude.

Pareceu aos pedagogos dos novos tempos que a disciplina era o único meio de isolar as crianças de um mundo corrupto e de lhes incutir hábitos virtuosos. Ao mesmo tempo, tomou-se consciência de que a tarefa dos mestres não era apenas instruir, mas também educar. Estavam encarregados das almas e eram responsáveis pela conduta moral dos futuros adultos. (Id, Ib, p.78)

Portanto, os castigos aplicados aliam um comportamento justificado na crença em uma

sociedade teocêntrica e conseqüentemente na sua manutenção, com uma nova organização dos

estudos que acontece no Renascimento. Se fosse preciso, a correção individual era a forma de

trabalhar os comportamentos que não eram adequados dentro dessa sociedade. Os castigos

corporais e a delação – próprios estudantes permaneciam em vigilâncias e delatavam os mais

rebeldes- tornam-se freqüentes nos colégios.

22 O termo Renascimento é mencionado apenas como recorte temporal, sem o compromisso histórico de sua configuração, que entendermos ser muito abrangente para esse estudo.

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Os colégios protestantes e os colégios católicos adotaram gradualmente durante o século XVI o ritmo diário e a disciplina preconizados por Gerson, Estoutevelli e Standonk – entre os colégios católicos, os dos jesuítas tiveram influencia decisiva. Também por toda parte se multiplicaram os castigos corporais, que não poupavam nem os alunos mais crescidos, de dezesseis ou dezessete anos, nem os filhos da alta nobreza. O chicote passou a ser a insígnia do professor. Em toda parte – em Inglaterra, em Genebra, em França – se recorreu à delação para vigiar e ter na mão a população escolar. (Id, Ib, p. 79)

A conduta moral estava nas mãos dos mestres que a partir desse momento deveriam zelar

por ela, extraindo dos textos seu conteúdo moral. No caso dos jesuítas, essa moral significa o

estímulo de valores cristãos, ou seja, estava ligada à fé católica e a sua manutenção. Para eles

havia uma ordem estabelecida que deveria ser preservada. O castigo era a forma de mostrar que

esta ordem não deveria ser quebrada. Qualquer desvio era visto como negação da ordem, e fora

dessa ordem entendiam que não havia salvação. Todos deveriam temer a Deus e o castigo se

explicava como uma forma de salvar a pessoa castigada. Para não pecar era necessário não negar

a ordem e isto era conseguido por meio da disciplina ligada ao castigo.

Cuidado da disciplina.- Nada mantêm tanto a disciplina quanto a observância das regras. O principal cuidado do professor seja, portanto, que os alunos não só observem tudo quanto se encontra nas suas regras, mas sigam todas as prescrições relativas aos estudos: o que obterá melhor com a esperança da honra e da recompensa e o temor da desonra do que por meio de castigos físicos. (RATIO, REGRAS COMUNS AOS PROFESSORES DAS CLASSES INFERIORES, REGRA 39.)

O Ratio Studiorum deixa claro que o castigo deve ser pensado como forma de manter a

disciplina e, além disso, o documento relata como os professores devem agir quando se torna

necessário castigar. Sugere outros tipos de castigos, destacando que o castigo físico é tarefa do

corretor e não do professor, já que esta atitude iria ferir a figura do professor que deveria ser

exemplar.

Modo de castigar. Não seja precipitado no castigar nem demasiado no inquirir; dissimule de preferência quando o puder sem prejuízo de ninguém; não só inflija nenhum castigo físico (este é o ofício do corretor) mas abstenha-se de qualquer injúria, por palavras ou atos não chame ninguém senão pelo nome ou cognome; por vezes é útil em lugar do castigo acrescentar algum trabalho literário além do exercício de cada dia; ao Prefeito deixe os castigos mais severos ou menos costumados, sobretudo por faltas cometidas fora da aula, como a ele remeta os que se recusam aceitar os castigos físicos principalmente se forem mais crescidos.[Id, REGRAS COMUNS AOS PROFESSORES DAS CLASSES INFERIORES, REGRA 40]

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Segundo Paiva, o castigo é sua redução ao estado de obediência, levando a submissão. O

individualismo desenvolvido pela experiência mercantil modificou as experiências religiosas:

cada um deveria ser responsável por seu destino eterno, tendo que recusar as tentações diabólicas.

O medo fazia parte da vida dos fiéis:

Tudo que, segundo a expectativa, acontecia desfavoravelmente era recebido como castigo. Castigo denota culpa. Culpa, diante de um todo-poderoso, traz o medo. Tanto diante de Deus quando diante do rei a reação é de medo. O medo leva à rendição. Daí a penitencia, a auto-flagelação (disciplina), a austeridade, o sacrifício. Uma compreensão das relações com Deus baseada no medo provoca uma espiritualidade marcada pelo sacrifício. Sacrifício é negação de si. O medo nega as possibilidades de caminhar caminhos independentes. Por isto, a obediência, a sujeição. (2007, p.23)

O homem deveria temer a Deus, pois era dele que dependia sua salvação. Aprendia-se o

que deveria ser feito e o que não se deveria fazer, já que na visão inaciana, os padrões de

comportamento estavam prontos, devendo todos respeitá-los e não tentar mudá-los. Por essa

razão, era necessário o castigo tomando por base que, de acordo com o pensamento comum à

época, o homem era visto como suscetível a erros, rebelde na prática de suas funções e, precisava

de estímulos externos para alcançar a perfeição.

A perfeição nas virtudes era a forma de conseguir alcançar as ambições da Ordem.

A Companhia buscava formar homens que se aproximassem do ideal da mais alta perfeição

humana. Homens que vencessem a si mesmos, dominando as paixões inferiores, sujeitando-se a

razão iluminada pela fé, buscando sempre atingir o verdadeiro bem. Um homem, que segundo a

Companhia, era ideal para a sociedade quinhentista e para a manutenção desta; mediante a

formação de atitudes, hábitos e virtudes. Capaz de dominar suas ambições e aspirações

individuais, a fim de contribuir para a Glória de Deus. Os membros da Companhia de Jesus

acreditavam que havia uma única forma de salvação e esta deveria ser disseminada. Dessa

forma também havia um ideal de homem que buscaria a salvação das almas para maior glória de

Deus. Diante das necessidades de uma época em que o homem busca todos os recursos para

convencer as pessoas e alcançar seus objetivos, o jesuíta tem o dever de buscar uma formação

perfeita sendo que, para a Companhia, essa formação está ligada com as virtudes morais. A fé

no século XVI, apesar da manutenção da tradição, passa por algumas modificações, embasando-

se num plano mais racional. Como afirma Delumeau, o século XVI “foi, no domínio da fé, a

grande época da clarificação doutrinária: clarificação nos catecismos e nas profissões de fé. Esse

século deixou aos seguintes um modelo de meditação metódica, os Exercícios Espirituais de

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Santo Inácio”. (1994, p. 48) A razão era intimamente ligada à fé, e sendo assim, o estudo era tão

importante.

Para Ignácio o verdadeiro cristão não deve estudar por estudar. Estudar é um meio e não

o fim último do homem que é salvar a sua alma. Pela educação a intenção é formar não só um

homem de bem, mas também um homem de ação. Não bastava a simples aquisição de

conhecimentos, a principal obrigação era desenvolver os talentos naturais. A perfeição da tarefa

educativa era moldar e desenvolver o espírito. Além da prática do trabalho e das virtudes

individuais se fazia necessário despertar nos alunos as virtudes sociais, formando-os na prática

da abnegação e do sacrifício pelo seu semelhante, a fim de cumprirem com seus deveres quando

deixar o colégio.

Como Costa (2004) afirma, a formação do jesuíta mantinha a tradição, conservando os

fundamentos teológicos e filosóficos da escolástica; mas trazia algo de novo, justamente o

contato com o novo mundo, com culturas diferentes e transformações principalmente

econômicas e sociais se entrelaçam compondo as práticas pedagógicas inacianas. Esse cenário

exigia uma capacitação tanto nos fundamentos escolásticos e místicos como nas novas

necessidades técnico-intelectuais.

O fim que a Companhia tem diretamente em vista é ajudar as almas próprias e as do próximo a atingir o fim último para o qual foram criadas. Este fim exige uma vida exemplar , doutrina necessária, e maneira de a apresentar. Portanto, uma vez que se reconhecer nos candidatos o requerido fundamento de abnegação de si mesmos e o seu necessário progresso na virtude, devem-se procurar os graus de instrução e o modo de utilizá-la para ajudar a melhor conhecer e servir a Deus nosso Criador e Senhor. (CONSTITUIÇÕES, 1997, p.117)

Assim com as virtudes a religião é praticada. O exemplo dos próprios jesuítas e sua

vivência cotidiana é a forma de abordar a educação “moral” que é muito mais prática do que

teórica. Ela era inerente ao ambiente dos colégios. Madureira expõe que não devemos confundir a

educação religiosa com instrução religiosa, ou seja, o ensino da religião. Essa justificação se dá

perante o pouco tempo destinado ao ensino da religião. A intenção é que a vida no colégio seja

rodeada de fé penetrando no cotidiano do estudante os preceitos cristãos. Os alunos vivenciam a

atmosfera religiosa no desenrolar das aulas: razão e fé não se separavam. É nas ciências que se

consegue contemplar a sabedoria divina. Por essa razão não existe nessa pedagogia um estudo

específico (classe) de religião, uma instrução religiosa. Isso acontece porque ela se dá no

cotidiano dentro do colégio. Todas as aulas contemplam a religião e os valores morais. Na

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Companhia de Jesus todos os professores, além de sua área, eram também especialistas na

doutrina cristã, e era indispensável que ambas caminhassem juntas.

O aluno ainda deveria fugir dos maus costumes: vícios, livros impróprios, más

companhias, insultos, injúrias, mentiras, jogos proibidos, enfim, tudo o que possa ofender a moral

dos estudantes.

3.2.1 Espiritualidade

O jesuíta era padre e intelectual, já que sua formação contempla aspectos intelectuais e o

aprimoramento da virtude.

Mas, a educação não se limita a instrucção intellectual ; abrange o ensino religioso e moral em toda a sua extensão theorica e pratica, isto é, a educação moral católica segundo os princípios do Evangelho, com o fim de formar o cidadão genuinamente christão, assim como a instrucção se pretende formar o perfeito humanista e philosopho, base da formação do perfeito theologo. (MADUREIRA, 1927, p.396)

É necessário esclarecer que, quando o autor trata de educação moral católica, está se

referindo, dentro do colégio, às ações ligadas à espiritualidade. Essas ações também são

chamadas de formação moral ou espiritual. Neste trabalho optamos nomear essas ações de

práticas dos bons costumes cristãos. Os bons costumes cristãos, para os jesuítas, ajudam o aluno

à “progredir em toda pureza e virtude”. (CONSTITUIÇÕES, 1997, p.155) Não estão somente

ligados às missas, pregações ou às orações antes das aulas. Em todos os momentos esses

costumes se fazem presente, no cotidiano, no contato com os professores e com outros alunos e

até mesmo nas aulas de gramática das classes inferiores:

Doutrina Cristã.- Nas classes de gramática principalmente e, se for mister, também nas outras, aprenda-se e recite-se de cor a doutrina cristã, às sextas-feiras e aos sábados; a menos se julgasse melhor que em algum lugar os alunos novos a recitassem mais vezes. [RATIO, REGRAS COMUNS AOS PROFESSORES DAS CLASSES INFERIORES, REGRA 4].

As aulas iniciavam sempre com uma oração:

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Oração antes da aula.- Antes do começo da aula recite alguém uma oração breve e apropriada, que o professor e todos os alunos ouvirão atentamente de cabeça descoberta e de joelhos; ao iniciar a lição o Professor, de cabeça descoberta faça o sinal da cruz e principie. [Id, REGRAS COMUNS AOS PROFESSORES DAS CLASSES INFERIORES, REGRA 2].

Uma das principais características da pedagogia inaciana é a ação, a prática, os

exercícios. Sendo que essas características estão presentes também na espiritualidade. Muito

utilizado pelos padres da Ordem, os Exercícios Espirituais formulado por Ignácio de Loyola é

um dos pilares da vida espiritual. O livro de Loyola não era apenas para ser lido, mas praticado,

utilizando métodos distribuídos durante quatro semanas. O praticante do exercício deveria

pensar em seus pecados, se arrepender, contemplar os caminhos de Jesus, sentir a dor da

crucificação. Não é uma experiência mística (uma visão), o exercício se aproxima da

dramatização da vida de Jesus, a história da salvação do povo de Deus.

Como afirma Paulo Romualdo Hernandes (2007), os Exercícios Espirituais eram uma

maneira de examinar a consciência. Por meio de orações, penitências, arrependimentos; o

praticante faz uma profunda meditação. Na primeira semana, o exercitante faz uma viagem

interior, sentindo o inferno, as almas penadas, o sofrimento. Irá se experimentar um pecador,

sentindo o fogo do inferno. Depois de pensar em seus pecados e se arrepender, deve entrar na

segunda semana. Nesta fase ele irá seguir todos os passos de Jesus Cristo para sua glória. Na

terceira semana é sentida a dor da crucificação e esse é o momento de “Chorar, sofrer, saber que

Cristo se fez homem e escondeu sua divindade por mim, exercitante, e que agora é humilhado

sacrificado” (Idem, ibidem, p.65). Na quarta e última semana é o momento de sintetizar as

outras semanas e se unir com Deus, renascendo com Ele e sentindo a salvação.

Os Exercícios Espirituais levariam o exercitante a construir a cena, colocar os personagens e ouvir o que eles falam, sentir-lhes o gosto, o paladar, tocar-lhes a pele, mas com os sentidos interiores. Dramatização interior que realiza os desejos espirituais a partir de imagens construídas metódica e racionalmente, cujas sensações corporais, materiais – lágrimas, ardores, arrepios, deveriam ser, quando muito, contingência, acidente. Neste sentido, a experiência vivida pelos praticantes não seria mística, mas a dramatização da história da salvação do povo de Deus, em que o exercitante constrói o drama em seu interior, constrói o cenário e o vive intensamente como se estivesse em cena realmente. (Id, Ib, p. 66)

Tais exercícios valorizavam a vontade humana no caminho para se alcançar à perfeição.

Mostram como a fé nesse período se modificou, se apresentado de uma maneira mais metódica,

planejada. Esse contato com Deus ajudava a reconhecer a vontade divina, chegando assim, mais

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perto da perfeição, ou seja, possuir atitudes que se ajustem à maneira de contribuir, de ser

realmente um instrumento de Deus. A educação jesuítica promove uma fé que está centrada na

pessoa de Cristo, conduzindo a um compromisso de imitá-lo, como o homem para os outros. Os

estudos são um meio no qual os homens podem servir a Deus.

No Ratio Studiorum, o comportamento espiritual está discriminado por uma série de

regras: orações, ladainhas, exames de consciência, missa diária, assistência aos sermões,

exortações espirituais, leituras espirituais e da vida dos santos, terços diários e colóquios

espirituais, como a seguir: “Colóquios espirituais. - Nas conversas particulares inculque as

práticas de piedade, de modo, porém, que não pareça querer aliciar alguém a entrar em nossa

Ordem; se encontrar alguém com essa inclinação, encaminhe-o para o confessor.” [RATIO,

REGRAS COMUNS AOS PROFESSORES DAS CLASSES INFERIORES, REGRA 6.]

A fé era fundada num plano racional, planejado, calculado. De acordo com o ideal de

formação integral do homem, a educação jesuítica preparava o aluno completo para a ação

apostólica, missionária, o ser cristão e, preparado intelectualmente, para exercer suas funções

cotidianas do pensar e agir. Na Companhia de Jesus ser cristão era ser atuante influindo nos

destinos da humanidade, e isso explica o ímpeto em formar homens preparados, competentes,

capazes de tomar decisões, colaborando com a graça divina.

3.2.2 Disciplina

Uma das mais importantes características que não só o aluno mas todo o jesuíta deve

possuir é a obediência. Característica esta que é imprescindível dentro da hierarquia dos

colégios. Essa obediência é vista por Madureira (1927) como base da disciplina e principal força

do sistema de educação no Ratio. A obediência partindo dos professores, em relação aos seus

superiores, oferece o exemplo necessário e faz com que os alunos repitam a mesma virtude; é o

melhor meio de passar essa qualidade aos alunos. A obediência gera disciplina e, unidas, essas

características, segundo os jesuítas, além de serem os principais atributos da formação jesuítica,

são elementos que tornam possíveis atingir a inteligência esclarecedora, sentimentos nobres e

aspirações dignas.

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Antigamente, os docentes organizavam o ensino onde queriam e como entendiam. A partir do Renascimento, forma cada vez mais integrados na vida dos estabelecimentos escolares, submetidos a um reitor. Os jesuítas levaram esta evolução ao limite, confiando os alunos a mestres que deviam aos seus superiores uma obediência rigorosa. Na época da monarquia absoluta, a noção de obediência era, assim, um dos valores fundamentais da sociedade européia. (DELUMEAU, 1994, P.76)

A disciplina, entendida com um conjunto de valores, normas e costumes, é o meio de

obter o máximo rendimento do estudante. No caso dos jesuítas, todos devem entender que para

se ter disciplina é necessário observância e invariância. As regras detalhadas no Ratio nos

apontam essa invariância. Todas as circunstâncias eram pensadas com a função de não admitir

qualquer desvio. O Ratio recomenda aos professores manter com firmeza a disciplina e boa

ordem nas escolas. Como afirma Madureira, não há disciplina sem obediência. É a partir daí que

nasce a grande autoridade moral dos mestres sobre os discípulos que neles têm o exemplo da

disciplina. A obediência do professor ao prefeito de estudos e aos superiores é o melhor meio de

passar autoridade, força moral e prestígio. Madureira afirma que “religião e disciplina são duas

bases que completam e garantem a solidez da educação moral e da formação do caráter,

indiscutivelmente os dois elementos constitutivos da reputação moral de um Estabelecimento de

Educação”.(1927, p.494)

A disciplina é entendida como meio educativo, infunde na alma princípios nobres e

sentimentos elevados; ela é a base sobre que irá se erguer toda a educação intelectual, moral e

religiosa alcançando a perfeição de caráter.

(...) a disciplina, entendida em toda sua comprehensão (inclusive a disciplina interior e exterior, a formação e educação da vontade e o regimen ou regulamento externo), é a base universal, de que depende toda a educação intellectual, moral e a própria educação religiosa, porquanto, onde não houver disciplina, reinará a anarchia, não havendo possibilidade de ensino ou educação religiosa, moral e scientifica. (Idem, ibidem, p. 494)

Este autor afirma ser essencial a disciplina já que na idade em que se encontram os

estudantes, torna-se necessário o respeito às regras, afastando-se de tudo o que for nocivo à

educação e à fé. A disciplina preventiva, a vigilância e a dedicação individual são meios

eficazes na busca da perfeição, ajudando os jovens a negar suas vontades formando bons

hábitos. A autodisciplina é manifestada no rigor intelectual, na aplicação assídua em um estudo

sério e na conduta com os demais. O capítulo VI da IV parte das Constituições da Companhia

sugere que para conseguir alcançar grandes progressos nos estudos, é preciso:

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(...)a alma pura e a intenção reta nos estudos; não procurem nele senão a glória divina e o bem das almas. Para esse fim, peçam freqüentemente na oração a graça de progredir na ciência (...) Convençam-se de que, embora não venham a exercer nunca o que aprenderam, o trabalho dos estudos, só por si, realizado como dever por caridade e obediência, é obra de grande mérito diante da divina e soberana Majestade. (CONSTITUIÇÕES, 1997, p.130-131)

A disciplina estava ligada à idéia de que todos têm talentos que são dádivas de Deus e

esses talentos devem ser trabalhados com muita dedicação até que se aproximem da perfeição. A

educação nesse sentido é o caminho para se chegar a Deus, pois a vida espiritual é o meio

indispensável de alcançar a perfeição da vida intelectual. O ensino das ciências se dispõe para

contemplar as potências criadoras do homem em um mundo iluminado por Cristo. O aluno

deveria ter disciplina para poder observar, admirar e contemplar essas criações.

Dios há iluminado el espíritu del hombre com las luces de la fé; esta iluminación del mundo inteligible por el Espíritu Santo debe transfigurar el campo de la ciencia; cuya belleza y solidez hará aparecer, y además las relaciones esenciales com la vacación eterna del hombre y la gloria de Dios. (CHARMOT,1952, 353)

A alma do aluno precisava contemplar a beleza e a grandeza de Deus e a disciplina

tornava-se importante nessa busca. Aliada à punição, a disciplina, dava o tom de seriedade aos

estudos. Um pensamento comum à época era o de que o homem precisava de estímulos externos

para alcançar a perfeição. A firmeza também era uma virtude indispensável. O corretor, era na

Companhia o responsável por aplicar os castigos, já que desde o início, Ignácio de Loyola não

quis que o professor (ou outro membro da Companhia) aplicasse o castigo. O bedel era o

ajudante do professor e a regra destinada a ele coloca que “se notar que algum dos nossos

estudantes não comparece às lições, repetições, disputas ou deixa de cumprir algum dos deveres

relativos ao estudo ou à disciplina, leve-o ao conhecimento do superior”. [RATIO, REGRAS

DO AJUDANTE DO PROFESSOR OU BEDEL, REGRA 7].

A última e definitiva pena seria a expulsão do aluno. Este pensamento também nos

remete a idéia de ordem e de hierarquia.23 De acordo com a Igreja, a autoridade vem de Deus, a

hierarquia é entendida como uma verdade revelada e a obediência ao superior é legitima, é

obedecer a Igreja Católica. Para que esta obediência seja alcançada, o sacerdote deve representar

entre seus alunos a pessoa de Cristo. O professor deve ser exemplo das virtudes as quais os

23 Conceitos tratados no capítulo 1.

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alunos têm maior necessidade de imitar. Suas palavras e suas atitudes devem caminhar juntas

para que o seu modelo seja a melhor forma de ensinar o discípulo a doutrina das virtudes. O

professor deve rezar pelos alunos: “Ore muitas vezes a Deus pelos seus discípulos e os edifique

com os exemplos de sua vida religiosa”. [IDEM, REGRAS COMUNS AOS PROFESSORES

DAS CLASSES INFERIORES, REGRA 10]

Tudo deve ser feito com regra e uniformidade. O principal fim é aprender a contrariar a

própria vontade e a se acostumar, de boa mente, a fazer o que se deve e não o que se quer. O

jesuíta deve buscar uma única forma de agir, como se estivesse cumprindo sua própria vontade, e

não obedecendo apenas. A obediência é a mortificação da vontade própria, ou seja, não é como

cumprimento de ordens mas como realização da ordem disposta por Deus. A obediência era em

relação a Deus e não ao homem. O Superior recebe sua autoridade de Deus e o inferior obedece,

convicto que está obedecendo a Ele. Dessa maneira, a vontade humana se inclina a Deus,

reconhecendo sua parte na busca de realização da sociedade por inteiro. A vontade educada,

como é colocada pelos jesuítas, se mostra na moralização dos atos, formando o ser intelectual e

moral.

A obediência era uma norma de vida de todos os jesuítas, atingindo todas as esferas da

vida, como podemos notar, exemplificada na relação de subordinação nas casas e colégios. A

Companhia de Jesus só conseguia manter a ordem universal, pois todos entendiam a hierarquia e

a obediência da mesma forma, em perfeita sintonia, já que ela era necessária para manter a união

entre padres em diferentes lugares no mundo. A obediência na Companhia se dá de uma forma

diferente em relação às outras ordens religiosas. A principal missão dos jesuítas era percorrer o

mundo, sendo que a ação exterior era sua mira. Dessa forma, devemos entender que eles

deveriam estar prontos para as mais diferentes circunstâncias. Nessa perspectiva, a obediência é

muito mais entender a forma como a Igreja pensa e passar a pensar da mesma forma. Em outras

palavras, buscar agir da maneira como seu superior agiria, mortificando sua vontade própria em

prol da grande obra de Deus. Charmot ainda afirma que a obediência é o princípio fundamental

para que a Companhia alcance seu fim, e para que isso aconteça é necessário “(...) el Superior,

como cabeza de todo el cuerpo; y no se comunica todo ello a los otros padres sino por derivación

y transmissión de la cabeza a los miembros, y ello em la medida mayor o menor que él haya

determinado” (1952, p. 290)

Ad majorem Dei gloriam era o amplo objetivo da Companhia, e para alcançar esse

objetivo é necessário entender a grande unidade criada por Deus. Nota-se a importância da

compreensão da hierarquia e, conseqüentemente da subordinação. A obediência, posta como

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sinônimo de subordinação, garante o bom governo. Significa a possibilidade de realização do

Reino de Deus, com a atuação de todos, cada um fazendo sua parte.

Para Oliveira Martins o sacrifício da vontade era uma abdicação real, nas mãos dos

ministros de Deus, os padres da Companhia. Obedecer é acertar sempre, já que o “Universo é a

grande monarquia de Jesus, imperador absoluto das vontades e dos pensamentos”. (1976, p.380)

O autor ainda coloca que, na Companhia, não bastava sacrificar a vontade, já que o homem

moral também vive da inteligência. Era necessário não só querer mas também pensar como o

superior.

A obediência vem do entendimento da hierarquia e, já que é revelada por Deus, não deve

ser questionada: é uma obediência cega (Perinde ac cadaver). Podemos notar essa hierarquia nos

colégios da Companhia de Jesus, exposta no Ratio Studiorum. De uma forma bastante detalhada

o Ratio revela a função de cada um no colégio e a ordem dos cargos. As regras são dirigidas ao

Provincial, ao Reitor, aos Prefeitos de Estudos, enfim a todos que fazem parte dos colégios.

Leonel Franca (1952) esclarece que, administrativamente, a Companhia é dividida em

províncias que compreendem vários colégios da Ordem e coincidem com o território de uma

nação ou parte dele. Explica também que à frente de cada Província encontra-se a figura do

Provincial enumerando suas atribuições:

Suas funções, no que se refere aos estudos, resumem-se nomear o Prefeito de Estudos e de disciplina, em zelar pela formação de bons professores, em promover os estudos na sua Província, exercer uma alta vigilância sobre a observância exata das normas traçadas pelo Ratio e propor ao Geral as modificações sugeridas pelas circunstâncias de tempo e lugar, peculiares à Província. (Idem, ibidem)

Dentro dos colégios o Reitor é a figura central. Ele é responsável por lançar os ofícios

convocando e dirigindo as reuniões dos professores, além de presidir às solenidades escolares.

Em seu colégio desempenha “a autoridade mais alta, subordinada, porém, na Província, à do

Provincial e, fora dela, à do Geral, por quem é nomeado”. [Id, ib.] O Prefeito de Estudos

(subordinado ao Reitor) acompanha de perto o cotidiano escolar, faz as recomendações aos

novos professores, estando atento à execução dos programas e dos regulamentos a fim de manter

a unidade pedagógica. O dever do Prefeito de Estudo é ser “instrumento geral do Reitor”

[RATIO, REGRAS DO PREFEITO DE ESTUDOS, REGRA 1]. Franca explica também em que

situação havia a necessidade de Prefeitos de Estudo nas diferentes áreas. Isso acontecia, segundo

o autor, nos “grandes estabelecimentos, em que se reuniam Faculdades Superiores e cursos de

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Humanidades, ao Prefeito principal, encarregado dos estudos nas Faculdades, se subordinava,

com auxiliar, outro chamado Prefeito dos Estudos Inferiores” (ib.). Dependendo do número de

alunos havia ainda um prefeito de disciplina, que ajudava o prefeito de estudos e buscava manter

a ordem e o bom comportamento. Havia um prefeito de estudos para o ginásio e um prefeito de

estudos para os cursos superiores, já o Reitor e Provincial zelavam pelo colégio e pela

Universidade.

Reconhecendo sua posição na ordem e entendendo-a como uma hierarquia revelada,

também notamos no Ratio, que os alunos devem ter a mesma disciplina e obediência que foi

dirigida ao seu superior, nos estudos e no cumprimento das regras. Como meio para alcançar o

rendimento desejado, a disciplina nos estudos – inclusive no estudo privado – não pode

desvincular-se a vida nos colégios. A disciplina ligada à religião - a freqüência nas missas e nas

pregações; as confissões; as orações cotidianas; a leitura espiritual, sobretudo da vida dos santos

– também se expressa no Ratio, como o exemplo a seguir dirigido aos professores das classes

inferiores: “Procure que assistam todos à missa e à pregação; à missa diariamente, à pregação

nos dias de festa. Durante a quaresma envie-os ao sermão pelo menos duas vezes na semana, ou

mesmo os acompanhe, se este for o costume do lugar”. [RATIO, REGRAS COMUNS AOS

PROFESSORES DE CLASSES INFERIORES, REGRA 3]

Além das orações, das penitências, dos exames de consciência, da freqüência às missas,

enfim de toda disciplina na parte espiritual; havia também a importância de manter essa

disciplina em relação ao regimento dos colégios. No que se refere ao regimento, o aluno deve

usar sempre o Latim; ter freqüência e assiduidade às aulas; não deve portar armas, canivetes e

outros instrumentos proibidos; deve prezar a tranqüilidade e o silêncio; não deve sair da sala sem

a licença do professor; deve conservar os bancos, paredes, janelas; observar as normas em relação

as provas e exames, entre outros.

A observância das regras- o horário, a freqüência, o rigor nos estudos- torna o colégio

um lugar onde não se admitia, sem a licença do superior, qualquer introdução de novos

costumes ou novas iniciativas. O Ratio Studiorum era para ser sempre consultado, como

percebemos em uma das regras destinadas ao prefeito de estudos:

Livro do “Ratio”.- Seja-lhe familiar o livro da Organização dos estudos, e zele pela observância de suas regras por parte de todos os alunos e professores, sobretudo das prescritas aos teólogos, acerca da doutrina de Santo Tomás e aos filósofos, relativas as escolhas das opiniões. Sobre este ponto vele com particular vigilância quando se devem defender teses, e mais ainda, quando se devem imprimir. [IDEM, REGRAS DO PREFEITO DE ESTUDOS, REGRA 4]

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As regras contidas no Ratio Studiorum são minuciosas, mostrando que a disciplina

reflete desde o espaço físico - que além de tranqüilo e silencioso, deveria estar livre de qualquer

dano – como também nas atitudes que favoreçam os bons costumes.

3.2.3 Trabalho (ação)

Na pedagogia inaciana tudo está interligado: reflexão, estudo, oração, experiência e ação.

Tudo o que foi refletido no colégio passa para a prática. O serviço destinado aos demais – a

busca pelo outro - é o lema da Companhia de Jesus. Como já foi exposto, a Ordem nasceu com o

objetivo de salvar as almas pelo mundo. A ação é o ponto alto, onde se aplicam todos os

aspectos – virtude e saber – adquiridos no colégio.

No que se refere à pedagogia ativa observa-se na simples organização da aula, um

exemplo muito significativo. A aula é regrada de exercícios de repetição e disputas que

trabalham a memória do aluno.

Mais, porém, do que da organização cheia de vida da aula, mais do que a solicitude do professor de exercitar continuamente o aluno ao exercício de seus recursos, a atividade resulta, na pedagogia do Ratio, da própria natureza do ensino ministrado. Na formação de caráter humanista, já o vimos, sobre o aspecto cientifico predomina o artístico. Ora, a arte é um hábito, e, como todo hábito, adquire-se pela repetição dos atos. Para chegar à arte perfeita da expressão, o aluno deve estar em contínua atividade exprimir-se de viva voz ou por escrito. Não lhe é suficiente atender, entender e memorizar. O que bastaria talvez para assimilar uma soma de conhecimentos científicos não lhe asseguraria, de certo, o domínio da expressão literária. Por isso, o Ratio põe logo o aluno em contato com os modelos do bem dizer. Nada de sentenças artificiais, de frases feitas para elucidar preceitos gramaticais. Desde os primeiros dias, ele se encontra em face de uma literatura, viva e real. E a preleção, que constitui a espinha dorsal do sistema, é toda orientada para a prática. O estudo comentado de uma carta, ou de uma descrição, de um drama ou de um discurso é seguido, por parte do aluno, da composição de uma carta ou de uma descrição, de um drama ou de um discurso. [FRANCA, 1952]

O aluno é o centro da pedagogia inaciana- Tudo para o aluno e o aluno para Deus24-, e

este deverá servir a Deus da melhor forma, pois recebeu toda sua educação para servir a Ele.

24 Para Ignácio tudo se deve subordinar ao bem do aluno e este à glória de Deus, como afirma Madureira (1927).

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Porém este aluno não deve ser passivo, dessa maneira se explicam os exercícios, as disputas e

toda a metodologia. O aluno deve encontrar por si mesmo a verdade, deve senti-la e o professor

deve orientá-lo, iluminá-lo, dirigindo-o e fortalecendo a moral.

Na pedagogia inaciana, o trabalho é valorizado continuamente. Nas freqüentes disputas,

distribuíam-se prêmios, louvores, condecorações. Era uma maneira de estimular os estudantes a

entregar-se ao trabalho. O trabalho é fundamental na formação do caráter, segundo os jesuítas.

Ignácio de Loyola fundou a Companhia de Jesus que se tornou um instrumento de

reforma da cristandade no campo da espiritualidade, mas também sem dúvida no campo do saber.

A vida ativa – atuação junto aos outros – que é uma importante característica em relação às

transformações que a Igreja vivencia, faz surgir a necessidade de formar pessoas preparadas,

competentes, qualificadas para a ação. Ignácio logo percebeu que a qualificação podia se tornar

um instrumento para atuar sobre a vida social. Os jesuítas deveriam ter competência para agir na

sociedade e dessa forma, eram respeitados pelo seu saber, sem deixar de lado a formação

espiritual. A ação está sempre unida com a oração, como percebemos em uma frase de Loyola:

“Trabalha como se tudo depende de ti; reza como se tudo dependesse de Deus”. A devoção não

bastava: era preciso ciência. Esse pensamento foi responsável pela abertura de escolas para a

formação dos próprios companheiros, sendo que esse foi o primeiro passo para a abertura de

escolas por todo o mundo, inclusive para alunos que não iriam se tornar padres da Ordem.

Essa educação prepara para servir aos outros por meio de uma vida ativa,

compartilhando e promovendo os valores cristãos. Essa vida partilhada com os outros, ativa e a

serviço da Igreja, caminha para um espírito de comunidade e de colaboração como se apresenta

no Ratio entre os professores, prefeitos de estudos, reitores, etc.

A Companhia nasce em um período marcado por transformações, inclusive na religião. A

Ordem nasceu para propagandear a fé católica, devendo os religiosos não apenas contemplar a

Deus confinados no interior dos mosteiros. Sendo assim, a formação desses futuros padres

deveria ser rigorosa, visando a atuação futura dos alunos. Era necessário prepará-los para se

relacionar com o mundo, desenvolvendo suas atividades - principalmente as missões – deixando

para trás a vida mais interiorista, presa nos mosteiros. Os desafios eram muitos nessa fase. As

reformas religiosas também exigiam essa formação rigorosa, pois os padres deveriam estar

prontos para defender a manutenção dos preceitos católicos. As críticas partiam tanto do lado

protestante como também da própria Igreja Católica que estava se renovando. Criticava-se

principalmente a falta de preparo do clero, suas riquezas, seus abusos. Também devemos lembrar

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que o próprio Lutero era membro da Igreja Católica e iniciou suas críticas quando ainda fazia

parte dela.

Além da formação rigorosa também era fundamental a preparação específica para as

missões. O trabalho nas missões exigia pessoas competentes e preparadas. O futuro missionário

jesuíta deveria adaptar aquilo que aprendeu conforme as necessidades do lugar. Como afirma

Costa (2004), quanto mais complexas eram a vida e a religião dos outros povos, crescia a

necessidade de adaptação, aumentando a obrigação de avaliar profundamente quais as estratégias

necessárias para realizar a evangelização. Modifica-se o discurso, a metodologia empregada e até

do comportamento exterior dos padres jesuítas em missão. Este tipo de função requeria além de

um processo de adaptação, uma contínua avaliação. As missões eram um convite para que o

jesuíta pudesse colocar a prova sua vocação, pois, pelos problemas enfrentados, se tornava um

tipo de trabalho mais difícil do que os outros desenvolvidos pela Companhia.

Os jesuítas entendiam que Deus necessitava de colaboradores, que trabalhassem para

salvar as almas pelo mundo. O modelo é Jesus Cristo que dedicou sua vida para os outros. Para a

maior glória de Deus é preciso trabalhar e viver para os outros. A educação jesuítica tinha como

objetivo oferecer a melhor formação possível do ser humano. Isso porque a ação dos jesuítas

também deveria ser a melhor possível ao interferir nos destinos da humanidade. Esta seria a

melhor forma para colaborar com Deus. Nas Constituições da Companhia elaborada por Loyola

nota-se freqüentemente menções como “bons operários da vinha de Cristo Nosso Senhor”

(CONSTITUIÇÕES, 1997, p.124). Expressões como essa deixam claro a intenção da Companhia

em formar homens para o trabalho, para a ação.

Para formar “competentes operários de Cristo”, a formação nos colégios jesuíticos

valorizava o trabalho. Como já foi exposto, era freqüente a distribuição de prêmios e

condecorações àqueles que se destacavam. O jesuíta deveria estar pronto para agir da melhor

maneira. Os exercícios presentes no Ratio Studiorum nos mostram a importância da constante

ação do aluno dentro dos colégios, como notamos o exemplo a seguir:

Exercícios durante a correção.- Enquanto corrige os trabalhos escritos pode passar alguns dos exercícios seguintes: colher frases dos trechos explicados e variá-las de muitas maneiras; reconstruir um período de Cícero que haja sido desarticulado; fazer versos, passar uma poesia de uma para outra forma; imitar um trecho, escrever em grego (ou em vernáculo) e outros semelhantes. [RATIO, REGRAS DO PROFESSOR DE HUMANIDADES, REGRA 4]

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Dos estudantes e professores exigia-se um ativo comprometimento com o processo de

aprendizagem. Para que esse esforço fosse estimulado e desenvolvido havia uma série de atitudes

e exercícios pedagógicos que preparam os estudantes para o que se aprendeu seja praticado na

vida.

Em relação ao aspecto espiritual nota-se que o aluno deve ir além da contemplação. Uma

prova disso são os Exercícios Espirituais, que não são apenas repetições, eles exigem uma

prática, uma reflexão do participante.

3.3 – Ciência

A atividade educacional na Companhia de Jesus foi intensa, sendo os estudos tão

valorizados como a prática das virtudes e da religião. A Companhia de Jesus se tornou um

instrumento de reforma da cristandade no campo da espiritualidade, mas também sem dúvida no

campo do saber. Não se pode negar que a Ordem se destacou tanto pela prática missionária,

como pela formação dos padres. Inovou no que se refere à rápida organicidade e adaptação. Ela

buscava formar homens preparados atendendo aos anseios de um momento de ebulição,

respondendo aos desafios e conseguindo superar as adversidades. Ignácio, logo nas primeiras

experiências com colégio, percebeu que a qualificação podia se tornar um instrumento para atuar

sobre a vida social. Os jesuítas deveriam ter competência para agir na sociedade e dessa forma,

eram respeitados pelo seu saber, sem deixar de lado a formação espiritual.

A ciência só tinha significado se estivesse a serviço da fé. Para se alcançar o fim da

Companhia -Ad majorem Dei gloriam- o aluno deveria se dedicar aos estudos e ao

aprimoramento das virtudes. Nesse contexto, nota-se a valorização da formação intelectual dos

futuros padres. A pedagogia inaciana propunha transformar o ensino num meio de regeneração e

elevação da humanidade, formar sábios para torná-los homens de caráter (MADUREIRA,

1927). Estudar visava à virtude. A educação jesuítica buscava formar o homem integral. Os

estudos eram um instrumento que preparava o homem na busca pelo conhecimento de Deus e

conseqüentemente alcançar a salvação das almas.

Os valores espirituais conduziam o comportamento nos colégios e tinha estreita ligação

com os estudos. Ser um homem ligado a Deus, devotado e virtuoso era mais importante do que o

domínio de qualquer ciência. O estudo era encarado como o caminho para o desenvolvimento da

capacidade de entendimento.

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Em um mesmo tempo e em um espaço existem homens agindo por diversas

necessidades e motivações. O currículo do Ratio Studiorum pode parecer extenso e rigoroso. Mas

antes de qualquer julgamento devemos lembrar das características da sociedade da época. As

práticas ligadas ao comércio, os conflitos religiosos resultantes da insegurança vivida nesta fase e

sem dúvida, as novas práticas religiosas e o novo modelo de religioso25 – o homem de ação - irão

influenciar a forma de se pensar o estudo. O Ratio Studiorum busca a formação de homens

capazes de enfrentar uma sociedade em ebulição, onde vários aspectos dessa sociedade estavam

se transformando.

A ciência era vista como meio de conhecer profundamente a obra de Deus, tornando as

pessoas capazes de trabalhar com Ele em sua contínua criação. Os clássicos eram “cristianizados”

e enxergados como uma sabedoria que precedia a verdade cristã. O esclarecimento intelectual era

a forma de alcançar as revelações, preparar o espírito para receber a “verdade”. O Homem, aos

poucos (por influência do Humanismo), se liberta da visão teológica dominante, mas não deixa

de crer em Deus. Dele apenas se distingue, afirmando-se capaz e autônomo.

As determinações trentinas estão profundamente ligadas com o Ratio Studiorum. O

julgamento pessoal na interpretação das Escrituras foi proibido. Defendiam que Deus se revelava

àqueles que os procurava, por essa razão havia a necessidade do aperfeiçoamento humano como

meio de se chegar a Ele. Quem estudava suas criações tinha condição de interpretar os caminhos

divinos.

Os padres deveriam possuir sabedoria necessária para interpretar os textos, além de

garantir que sua mensagem fosse transmitida, convencendo toda uma platéia. O recurso da

oratória torna-se indispensável.

Para a Companhia, todo o saber vinha da revelação, nesse caso era importante a rigidez de

estudo do colégio, pois estavam formando pessoas para interpretar as mensagens e iluminar as

decisões. Os jesuítas deveriam ser preparados para isso, tendo competência para atuar na

sociedade, cumprindo sua função. Entendiam que havia uma união entre razão e revelação. Deus

se revelava àqueles que o procurava, e também revelava os caminhos a serem seguidos. Mas para

interpretar as mensagens divinas, o homem deveria se aperfeiçoar, contemplando suas criações.

Devemos lembrar também que neste momento há uma inquietação na consciência cristã.

A agitação religiosa e o Humanismo, além do aparecimento do livro impresso exigirão ainda

mais dos padres católicos, surgindo assim outras preocupações em relação ao estudo. Lutero

25 A relação da religiosidade e o comércio com o estudo também foram tratados no capítulo 1.

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busca a versão em hebraico pois desconfia da vulgata latina. No Ratio Studiorum, percebemos a

preocupação em defender o sentido adotado pelos Papas e Concílios.

Seguir as explicações dos Papas e Concílios – Se os cânones dos Papas ou dos Concílios, principalmente, gerais indicam o sentido literal de alguma passagem, defenda-o como literal; e não acrescente outros sentidos literais apoiados em razões fortes. Se alegam outrossim um texto expressamente para a confirmação de um dogma, ensine também que, literal ou místico, este é indubitavelmente seu sentido. [RATIO, REGRAS DO PROFESSOR DE SAGRADA ESCRITURA, REGRA 6.]

As traduções da Bíblia começaram a se difundir e, com isso, as pessoas passam a

interpretá-la à sua maneira. Destinadas àqueles que sabiam ler, mas não sabiam latim, as

Escrituras traduzidas atraíam fiéis que estavam em busca de sua salvação, além de saciar suas

angústias em relação ao pecado. Essa inquietação também está presente no Ratio Studiorum. Nas

classes de Hebraico percebemos a preocupação em se estudar a língua, mas com a intenção de

defender a versão adotada pela Igreja Católica, exigindo um cuidado com os sentido das palavras.

Atenção especial às palavras.- Enquanto interpretar os livros sagrados não se aplique tanto a explicar o conteúdo e o pensamento quanto chamar a atenção sobre a força e o sentido das palavras, os idiotismos da língua e os preceitos da gramática, de acordo com o uso genuíno dos autores. [IDEM, REGRAS DO PROFESSOR DE LÍNGUA HEBRAICA, REGRA 4.]

Religiosos precisavam agora estudar ainda mais, pois deveriam estar prontos para

defender a versão da Igreja Católica, repensando alguns aspectos de sua teologia, clarificando sua

doutrina e revalorizando o padre e os sacramentos. Esses homens deveriam estar prontos para

responder as diversidades tanto de um novo mundo em descoberta como de novas possibilidades

na religião.

A mensagem divina pode ser deformada pelas palavras que a exprimem, se forem inadequadas. O humanismo pretendeu purificar a linguagem pela qual é transmitida a Palavra eterna, desembaraçar a Escritura de suas imperfeições e apresentá-la sob uma nova luz. Fazendo isso, ele contribui para a reforma pondo em dúvida a autoridade da Vulgata e colocando a ciência filológica acima de qualquer magistério. Introduziu o método crítico nas ciências religiosas. (DELUMEAU, 1989, p.79)

A formação dos religiosos passa então a ser mais rigorosa, já que estes teriam desafios

nunca vistos até então. Não podemos esquecer que o período analisado é marcado por

transformações e os colégios passam a atender as necessidades que surgem, entretanto a

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sociedade européia continuou profundamente cristã. Dos textos estudados era necessário extrair

todo o conteúdo moral. O grego e o hebraico, aulas que estão presentes no Ratio Studiorum, são

estudados de maneira cada vez mais aprofundada, com o fim de discutir as possíveis traduções.

Antes de Rabelais, já Erasmo acentuara fortemente as virtudes morais da instrução, que deve dar a criança o conhecimento da Sagrada Escritura e da sabedoria antiga e, pela conjugação de ambas estas influências, o sentido do dever e a pureza de coração: bens tão necessários como a técnica profissional. (Idem, 1994, p. 84)

Convém lembrar que mesmo os humanistas, que valorizavam o homem e sua

independência, não deixaram de ser profundamente religiosos. Como afirma Delumeau “O

humanismo, afinal de contas, foi muito mais religioso que se afirmou durante muito tempo”

(1989, p.79). Nessa sociedade, Deus participava ativamente da vida do homem, e dessa forma a

realidade era compreendida religiosamente. Sabemos que na História não há rupturas, mas

transformações que vão se construindo aos poucos e, principalmente as transformações nos

hábitos de vida das pessoas são as que ocorrem mais lentamente. Novas experiências se ajustam

gerando novas formas sociais, porém isso acontece vagarosamente no cotidiano das pessoas.

Para os jesuítas, o homem devia ser visto à luz da verdade revelada e não autônomo. Por

isso, as interpretações que surgiam causavam tantas contradições. Estudiosos da escritura,

segundo os membros do Concílio, deveriam dominar a Gramática, Retórica, Filosofia grega para

poder explorar a rainha das disciplinas: a Teologia. Deus era a origem da verdade e o homem

deveria buscar essa verdade, que se revelava para aqueles que tinham alcançado o

aperfeiçoamento da condição humana.

O ensino da língua é um dos pontos centrais na pedagogia inaciana, pois ela era o maior

instrumento de comunicação do homem. Segundo Paiva, a gramática “se desdobra em regras,

construídas também elas numa relação hierárquica. As regras acabam parecendo autônomas,

auto-explicativas e mais importantes que o próprio objeto. A gramática retrata seu modelo: a

ordem social”. [s.d.] Os estudantes de gramática devem aceitar as regras como estão postas,

assim como na sociedade.

O ensino jesuítico estava organizado em dois graus: as Classes Inferiores e as Faculdades

Superiores. As Classes Inferiores se desdobravam em três níveis: a Gramática (Superior, Média e

Inferior), as Humanidades, a Retórica. As Faculdades Superiores compreendiam a Filosofia e a

Teologia.

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O extenso conteúdo escolástico estava aliado as mais recentes discussões

teológicas, e por essa razão nota-se a prioridade de se fazer uma formação mais profissional dos

futuros sacerdotes. Aprendiam tanto o conteúdo como a melhor forma de transmiti-lo. Havia

também a preocupação com a prática, como a preparação para o oficio de dizer a missa. A

preparação das missões também era uma preocupação que começava cedo na Companhia de

Jesus: logo no curso Humanidades. A educação jesuítica preparava o aluno completo para a ação

apostólica, missionária, o ser cristão. Preparado intelectualmente ele poderia exercer suas funções

cotidianas pensando e agindo diante do modo humanista. A intenção é salvar a própria alma e a

do próximo, zelando pela sociedade. Para isso é importante que se progrida nos estudos, de modo

que a inteligência procure a “verdade” e que esta verdade seja disseminada da melhor forma por

meio de diversos mecanismos de convencimento que aprendem desde cedo, como a oratória, por

exemplo. Com os estudos, o aluno deveria alcançar a plenitude. Tudo devia ser feito com muito

rigor, para se aproximar da perfeição.

Pureza dalma e intenção.- Esforcem-se, antes tudo, os nossos escolásticos por conservar a pureza dalma e ter nos estudos intenção reta, não procurando neles senão a glória de Deus e a salvação das almas. Nas suas orações peçam freqüentemente a graça de adiantar na ciência e de se tornar capazes, como deles espera a Companhia, de cultivar, com a doutrina e o exemplo, a vinha de Cristo Senhor Nosso. [RATIO, REGRAS DOS ESCOLÁSTICOS DA NOSSA COMPANHIA, REGRA 1.]

Podemos observar que o Ratio apresentava uma preocupação geral com a formação de

todo o quadro que comporia as instituições ligadas à Companhia de Jesus. A função do colégio

era manter as pessoas dentro dos padrões que a Companhia julgava como sendo um só e, fora

deste padrão não haveria salvação. Nota-se por meio de algumas regras no Ratio que durante os

cursos superiores já existia uma preocupação em selecionar os melhores para os postos de

trabalho mais importantes. Aqueles considerados medianos – que não conseguiam atingir o

princípio da Ordem - muitas vezes não seguiam até o fim ou eram enviados para outros postos e

funções.

Os que deverão ser afastados no meio dos estudos.- Se algum talvez dos que foram aplicados à filosofia ou à teologia, no decurso dos estudos, mostrar que não excede a mediana como a principio se julgara, também ele, após exame idêntico, deverá ser enviado aos casos. [Id., REGRAS DO PROVINCIAL, REGRA 5.19 § 10.]

Na regra seguinte explica-se o que se entende por talento mediano, mostrando mais uma

vez a preocupação da Companhia em formar os melhores para que fossem capazes de exercer

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perfeitamente suas funções pelo mundo afora. Para corroborar com a regra é citada a Constituição

elaborada por Loyola, no momento em que se deixa claro a importância do progresso nos estudos

como meio de alcançar a Glória de Deus.

Que se entende por mediania.- A mediania, de que acima se fala, deve entender-se no sentido em que vulgarmente se entende quando se diz de alguém que é de talento mediano, a saber, quando percebe e compreende o que ouve e estuda e é capaz de dar razão suficiente a quem lhe pede, ainda que, em filosofia e teologia, não atinja o grau de doutrina que as Constituições designam com a expressão “haver nela feito bastante progresso”, nem seja capaz defender as teses aí mencionadas com o saber e a facilidade com que as defenderia quem fosse dotado de talento para ensinar Filosofia e Teologia. [Id., REGRAS DO PROVINCIAL 5.19. § 11]

A formação dos futuros professores era muito importante. Esta é a razão da existência de

Academias ou Seminários pedagógicos destinados à formação de bons professores, que deveriam

aprimorar seus conhecimentos, mantendo o mínimo contato com os alunos externos que não

seguiriam a carreira. As conversas devem acontecer somente com permissão:

Conversa com os externos.- As conversas dos que tiverem licença de falar com os estudantes externos, versem exclusivamente sobre assuntos literários ou relativos ao aproveito espiritual, conforme parecer a todos mais conveniente, para a maior glória de Deus. [Id., REGRAS DOS ESCOLÁSTICOS DA NOSSA COMPANHIA, REGRA 8]

No Ratio Studiorum havia recomendações para se estimular os estudos. O Reitor deveria

estar bem informado do aproveitamento dos estudantes, instigando aqueles que não estivessem

conseguindo alcançar bom rendimento, estando atento àquilo que poderia ser um obstáculo nos

estudos. O documento também deixa claro que a presença do Reitor nas aulas ou nas disputas é

por si só uma maneira de incentivar os alunos.

Presença nos exercícios escolares.- Regule e distribua as ocupações de maneira que possa estimular e desenvolver os exercícios literários. Visite por vezes as aulas, mesmo inferiores; esteja quase sempre presente às disputas, privadas e públicas, dos filósofos e teólogos; observe se e porque estes exercícios não dão os resultados desejados. [Id, REGRAS DO REITOR, REGRA 3]

Eram incentivadas a seriedade e constância nos estudos, porém o fervor dos estudos não

deveria desestimular o amor das virtudes sólidas e da vida religiosa. Os alunos deveriam

compreender que não farão nada de mais agradável a Deus que se consagrar aos estudos com

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diligência. Além de contemplar as criações divinas, os estudos preparavam os jesuítas para

agirem na sociedade e, dessa forma, o aluno deveria ser estimulado a trabalhar com Deus em sua

contínua criação.

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Considerações Finais:

Este trabalho buscou compreender o Homem segundo a pedagogia inaciana. Esta

formação que foi construída historicamente passava por uma capacitação tanto nos fundamentos

escolásticos e místicos como nas novas necessidades técnico-intelectuais. Esse Homem formado

pelo Ratio Studiorum precisa ser entendido de acordo com o momento histórico em que ele

viveu. Nenhum fato por si só explica a maneira de ser da Companhia de Jesus. O objetivo deste

trabalho foi evidenciar que vários foram os fatores que contribuíram para a configuração final da

Companhia de Jesus e conseqüentemente do Ratio. O modo de ser da Companhia de Jesus foi se

construindo ao longo do tempo diante de suas experiências. Não podemos negar a influência das

reformas religiosas na formação da Companhia. Mas o que não podemos afirmar é que este seja o

único fator.

É importante perceber que as representações devem ser pensadas a partir do sentido

daqueles que as vivenciaram. Isto também se emprega quando nos referimos a autores. Convém

destacar que autores como Madureira, Charmot e Franca, que escreveram entre as décadas de

1920 e 1950, presenciavam uma época em que a pedagogia da Companhia de Jesus estava sendo

muito criticada pelo pensamento liberal. Um intenso debate se instaurou sobre a necessidade da

liberdade para os estudantes, criticando assim a dura disciplina e o castigo.

A concepção cristã de mundo, firmada na sociedade européia ao longo de doze séculos, se

mescla com as novas experiências o que leva a mudanças lentas. Ao estudar a construção da

Companhia de Jesus percebemos a importante fase em que isto aconteceu. É um momento

marcado por modificações na fé que como qualquer outra expressão humana, tem sua forma

histórica que se modifica de acordo com as épocas e os lugares. Não há rupturas, por essa razão

percebemos que apesar das modificações estamos tratando de uma época em que a relação com

Deus impregnava a vida dos homens de uma forma natural. Em uma época como esta, tudo o que

acontece na sociedade passa pelos olhos da Igreja, como aconteceu com o comércio. Depois da

consolidação do comércio, o dinheiro também era visto como instrumento necessário para as

obras, visando à santificação dos homens. E, ainda, esta noção se insere na vida dos religiosos

que além disso absorvem também uma nova percepção do tempo, uma necessidade de

planejamento, a importância da documentação e da correspondência contínua e metódica, o

acompanhamento das operações, etc.

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Não há como negar que a Companhia de Jesus se destacou e merece mérito tanto pela

prática missionária, como na formação dos padres. Nos colégios jesuíticos os currículos

privilegiavam várias áreas, preparando assim seus estudantes para debater os diferentes temas

discutidos na época. Os jesuítas não poderiam debater com muitos eruditos do século XVI (como

acontecia) se não tivessem sólida formação científica. Também devemos lembrar que muitos

grandes nomes da ciência passaram por esses colégios.

Porém, neste trabalho não houve a preocupação em defender ou julgar a posteriori as

ações da época levantando suas falhas e criticando seus métodos com um olhar contemporâneo.

O objetivo deste trabalho foi entender como o método pedagógico jesuítico respondeu as

mudanças ocorridas na época. Como a metodologia e seus cursos atendiam as exigências que

estavam se colocando não só em relação à ciência (e suas descobertas) como também em relação

ao comportamento do religioso. A fé também se modifica, modificando o homem educado para

servir a Deus.

As atitudes dos jesuítas refletem aquilo que viviam e acreditavam. Compreender o homem

significa observar e interpretar seu modo de ser em um determinado momento histórico. Torna-se

necessário tentar aproximar-se do viver nesse instante, na perspectiva de se reinterpretar esse

modo de agir. Os jesuítas respondiam, à sua maneira, ao que estava acontecendo e entendiam que

tinham a obrigação de manter alguns fundamentos tradicionais. O objetivo desta pesquisa foi

aproximar-se da maneira como eles entendiam o que estava ocorrendo e entender por que agiram

daquela maneira.

É importante encarar o Ratio Studiorum em sua função mais cultural do que pedagógico

escolar. A educação deve ser pensada no sentido amplo de produção e reprodução cultural de

uma determinada sociedade. Não abordamos apenas a educação escolar, mas um espaço de

formação de valores.

O Homem formado pelo Ratio Studiorum é um ser inteiramente educado para Deus. Por

essa razão, não se pode pensar em analisar apenas os cursos e seus conteúdos: autores estudados,

currículos, conhecimentos exigidos. O Homem é pensado integralmente. Para atender aos anseios

da Companhia, a formação pelo Ratio tinha um propósito que vai além da instrução. Para

alcançar o ideal da Companhia é exigido deste homem uma vida exemplar. O progresso nas

virtudes e na instrução era a forma de servir a Deus em sua grande obra.

O homem segundo o Ratio Studiorum é formado para ajudar as almas próprias e as do

próximo a atingir o fim último para o qual foram criadas. Ele tem justamente essa formação pois

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é isso que as pessoas buscavam: a salvação das almas. A inquietação religiosa nos mostra a

preocupação das pessoas que cada vez mais individualistas necessitam de respostas. Respostas

essas obtidas por meio do conhecimento adquirido com rigor.

A prática dos bons costumes incentivada nos colégios ajuda a formar homens que

estejam a serviço de Deus, com a função de levar a todos a salvação. A intenção dos colégios da

Ordem era preparar homens para atuar em um mundo em transformação e descoberta, tendo a

missão de levar a fé católica adaptando-a as mais diferentes realidades encontradas.

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