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OIKÓS: TOPOFILIA, ANCESTRALIDADE E ECOSSISTEMA ARQUETÍPICO Marcos Ferreira Santos9 (LAB_ARTE /CICE/USP) Então, as bacantes devoram Orfeu, restando apenas a sua cabeça que rola pela montanha. Os camponeses levam a cabeça de Orfeu e, assim, a depositam no templo iniciando os cultos órficos. Não é curiosa a divulgação das investigações arqueo- antropológicas da Lagoa Vermelha com a sucessiva exposição da cabeça de Luzia? CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO A NATUREZA RECUPERADA Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP) Num de seus ensaios, Montaigne (1533-1592) soube definir com precisão esse objetivo quando afirmou ser preferível ter uma cabeça bem-feita, ou seja, aquela capaz de religar e contextualizar, do que uma cabeça cheia, a que apenas amontoa conteúdos dispersos, que nunca se comunicam. (Montaigne, 1987) Houve uma vez um homem que, depois de viver quase cem anos em estado de hibernação, voltou um dia a si e ficou perturbado pelo assombro de tantas coisas insólitas que via e não podia compreender: os carros os aviões, o telefone, a televisão, os supermercados, oscomputadores... Caminhava atordoado e assustado pelas ruas, sem encontrar referência alguma com sua vida, sentindo-se como um ramo desgalhado do tronco da vida, viu um cartaz que dizia: ESCOLA. Entrou e ali, por fim, pode reencontrar-se com seu tempo. Praticamente tudo continuava igual: os mesmos conteúdos, a mesma pedagogia, a mesma organização da sala, com a escrivaninha do professor, a lousa e as carteiras enfileiradas para impedir a

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OIKS: TOPOFILIA, ANCESTRALIDADE E ECOSSISTEMAARQUETPICOMarcos Ferreira Santos9(LAB_ARTE /CICE/USP)Ento, as bacantes devoram Orfeu, restandoapenas a sua cabea que rola pela montanha. Os camponeses levam a cabea de Orfeu e,assim, a depositam no templo iniciando os cultos rficos.No curiosa a divulgao das investigaes arqueo-antropolgicas da Lagoa Vermelha coma sucessiva exposio da cabea de Luzia?CONFERNCIA DE ENCERRAMENTOA NATUREZA RECUPERADAEdgard de Assis Carvalho(PUC/SP)Num de seus ensaios, Montaigne (1533-1592) soube definir com preciso esse objetivoquando afirmou ser prefervel ter uma cabea bem-feita, ou seja, aquela capaz de religar econtextualizar, do que uma cabea cheia, a que apenas amontoa contedos dispersos, quenunca se comunicam. (Montaigne, 1987)Houve uma vez um homem que, depois de viver quase cem anos emestado de hibernao, voltou um dia a si e ficou perturbado peloassombro de tantas coisas inslitas que via e no podia compreender:os carros os avies, o telefone, a televiso, os supermercados, oscomputadores... Caminhava atordoado e assustado pelas ruas, semencontrar referncia alguma com sua vida, sentindo-se como umramo desgalhado do tronco da vida, viu um cartaz que dizia:ESCOLA. Entrou e ali, por fim, pode reencontrar-se com seu tempo.Praticamente tudo continuava igual: os mesmos contedos, a mesmapedagogia, a mesma organizao da sala, com a escrivaninha doprofessor, a lousa e as carteiras enfileiradas para impedir acomunicao entre os alunos e fomentar a aprendizagem centrada naindividuao e no individualismo. (Antonio Perez Escalarem).NORDESTE E NORDESTINO EM QUADRINHOS: DAIMAGEM AO IMAGINRIOGilsimar Cerqueira de Oliveira (UEFS)Edson Dias Ferreira (UEFS)O termo memria possui uma grande variedade de definies. Dentre as diversas acepesencontradas em um dicionrio de uso comum citamos (FERREIRA, 1986, p.1117), [Do lat.memoria.] S. f. 1. Faculdade de reter as idias, impresses e conhecimentos adquiridosanteriormente, 2. Lembrana, reminiscncia, recordao. Ainda que ela seja uma construobastante abstrata, visto a impossibilidade de entrar na cabea de uma pessoa, a memria seapresenta como um recurso precioso, e em certos casos indispensvel para reconstruohistrica de um individuo ou de um grupo.A memria pode ser entendida como parte de um indivduo ou de uma coletividade construdano decorrer de sua histria de vida. Essa memria no imutvel, ela pode sofrermodificaes empreendidas pela prpria sociedade que a construiu (HAUBWACHS, 1990).A tenso entre memria individual e a memria coletiva, representa um ponto-chave nascincias sociais. No obstante a sua condio abstrata, a memria vai se reformulando a partirde elementos concretos (imagens), que fazem parte ou no de uma experincia vivida.As memrias tanto individuais quanto coletivas coexistem nos indivduos (HAUBWACHS,op. cit.). O limiar entre elas muito difcil de ser percebido, basta dizer que por vezeslembramos de coisas que ns no vivemos, mas que algum contou, e de repente l estamosns, emergidos nas lembranas como se elas realmente fossem parte de uma experinciavivida. Para (POLLAK,1992) essa sensao produzida pelos acontecimentos vividos portabela.A identidade social de um grupo est intimamente ligada construo de sua memria, estefato constitui um diferencial para culturas diferentes. A memria possui tambm a funo deafirmar a identidade, e isto motivo de conflitos sociais ocorridos dentro e fora de grupospolticos opostos (POLLAK, op. cit.).A Histria Oral ao privilegiar o estudo das memrias dos indivduos que formam a sociedade,desenterram relatos que no constavam como parte da memria coletiva. POLLAK(1989),chama essas Memrias de subterrneas, contrapondo-se Memria oficial, que possuium carter hegemnico. Um exemplo bastante relevante de reconstruo de memrias feitopor (BOSI, 1994), onde as lembranas de pessoas idosas so trabalhadas.As sociedades cuja escrita no foi desenvolvida, e que a oralidade era a principal forma depassar os conhecimentos adquiridos, perderam com muita facilidade a sua histria. J nassociedades que possuam escrita, estes permaneceram servindo como registros queperduraram no tempo (LE GOFF, 1992). As impresses e construes deixadas pelo homemrefletem uma memria que sobrevive s mudanas da sociedade. Os documentos escritos, porexemplo, tem sido um dos mais importantes recursos de memria. A memria no simplesmente lembrana, mas a capacidade fundamental que confere sentido a nossaexistncia (CHAU, 1998).A capacidade de guardar informaes e poder evoc-las em um tempo diferente que no o desua criao, protege o nosso passado do esquecimento (CHAU, op. cit.). Para BERGSONapud CHAU, op. cit), a memria pode ser dividida em memria habito, que se refere simples fixao mental promovida pela repetio, que leva a um automatismo psquico, amemria pura ou propriamente dita, na qual a lembrana se conserva sem a necessidade derepetio.A construo da memria individual pode ser discutida de duas maneiras diferentes: paraBergson, ela faz parte do nosso inconsciente, enquanto para Haubwachs, ela est presente nasociedade (BARROS, 1989). O tempo um elemento importantssimo para compreender aconcepo de Haubwachs, pois fragmentos do passado vo servindo de ligao parareconstruir a memria.Certamente a memria com o significado de lembrana serviria mais ao nosso propsito, dadoa necessidade de capturar elementos que faam referncia a algo experienciado. Esseselementos seriam aspectos que fizessem lembrar o sertanejo e o serto.H uma colaborao bastante significativa na construo do imaginrio. A sociedade aresponsvel pela reelaborao permanente do imaginrio social e o desvelar desse processo,nos remete s construes simblicas produzidas pelos mais diversos atores que constituem asociedade em um dado espao-tempo. O conceito de imaginrio varia muito de autor paraautor aqui utilizado est relativisado como (LAPLANTINE, 2003). Para Durand o imaginrio conjunto de imagens e de suas relaes contidas no capital pensado pelo homo sapiens,onde fundamentada e se arrumam os procedimentos do pensamento humano (DURAND,1989).EM BUSCA DO PARASO: ESTUDO DEIMAGENSMENSAGENS DO "NATURALEM REVISTA BRASILEIRA111Marie Louise Trindade Conilh de Beyssac (UFRJ)Maria Incia Dvila Neto (UFRJ)alm da questo docorpo sem cabea, ou fragmentado um elemento de representao que possui um carterdiferente do corpo que possui uma cabea, um rosto e um olhar - que pode sugerircomunicao ou se afastar dela -; a cabea e o rosto parecem sugerir a personalidade eindividualidade, os fragmentos do corpo, apenas um objeto, o corpo objeto, por exemplo."quando se perde a cabea, se perde a razo"------------------------------------------------------------------------------------------------------------------Pensar , primeiramente, ver e falar, mas com a condiode que o olho no permanea nas coisas e se eleve at asvisibilidades, e de que a linguagem no fique naspalavras ou frases e se eleve at os enunciados(DELEUZE,1992, p.119)HOMEOPATIA E IMAGINRIO: UMA ABORDAGEMFILOSFICO-EDUCATIVA DAS MANIFESTAES DOCORPO NA RELAO NATUREZA E CULTURA,CORPO E SADELuzia Batista de Oliveira Silva 370(FICS/ F. DE SUMAR - SP)BRICOLEUR: Uma possvel imagem para o trabalhar da anlise

Renata Cunha Wenth Trabalho apresentado no III Congresso Latino-Americano de Psicologia Junguiana, maio 2003Salvador - Bahia

O que viso produzir algo de eficaz, produzir um estado psquico, em que meu paciente comece a fazer experincias com seu ser, um ser em que nada mais definitivo nem irremediavelmente petrificado; produzir um estado de fluidez, de transformao e de vir a ser.C.G.Jung Ainda hoje, a psicoterapia recebe crticas e questiona-se sua eficcia. O trabalhar do analista muitas vezes equacionado a outras especialidades, como se pudesse ser facilmente substituvel. Obviamente, muitas atividades podem ser teraputicas para ns, como por exemplo, conversar com um amigo ou ir ao cabeleireiro, mas fazer anlise algo especfico. Porm, pelo que vejo, mesmo ns analistas, j sentimos alguma inquietude e temos inmeras questes (o que no necessariamente ruim) quanto ao que efetivamente fazemos com nossos pacientes ou buscamos em nossas anlises.A questo que sempre acreditei que precisamos ter a certeza de que estamos trabalhando, caso contrrio, o que podemos oferecer aos nossos pacientes e a ns mesmos?Minha vivncia mostra-me que na anlise trabalha-se e muito, e que esta produz efeito. O analista tem muito trabalho sim, tem responsabilidade sim, tem algo a fazer e a dizer, auxilia em reconstrues, em transformaes, mas, no somos mdicos, no somos interpretadores de sonhos.Tambm compreendo que as pessoas nos procuram por motivos, digamos assim, mdicos: querem parar de sofrer, querem se livrar de formas de ser insuportveis, esto doentes da alma . E, no porque no trabalhamos partir de um modelo mdico que deixamos de auxiliar (ser eficazes), afinal nossos pacientes continuam conosco porque sentem que a anlise lhes faz bem: eles melhoram! E ns, trabalhamos.Ento, qual seria o modelo, a imagem para este trabalhar?O que somos e fazemos em nossas prticas clnicas ? Quais imagens podem ser dadas ao nosso trabalho? Tanto Jung, quanto Hillman, se deram ao trabalho de refletir sobre nossa prtica partir de imagens, ancorados na definio de Jung de que psique imagem , de que lidamos com processos da imaginao.Marcam-me quatro imagens trazidas por Jung para a anlise, o analista e o paciente: a de um jardineiro, o pescador , o artista e o cabeleireiro. Reparemos: todas estas imagens no so mdicas, nem hericas. Notemos: vrias pessoas dizem ser estas atividades teraputicas. Mais: acaba por existir uma espcie de relao, de trabalho conjunto entre o jardineiro e suas plantas, o pescador e o mar, o artista e suas obras e o cabeleireiro e suas clientes.E, por fim: so todas estas atividades manuais, envolvem um certo colocar a mo na massa.O jardineiro aparece quando JUNG, diz: [...] uma rvore que cresceu torta no endireita com uma confisso, nem com o esclarecimento, [...]ela s pode ser aprumada pela arte e tcnica de um jardineiro. Vrias vezes em Jung vemos o trabalhar da anlise equiparado ao do pescador, quando enxergamos os contedos do inconsciente como peixes: [...] A margem do rio representa, por assim dizer, o limiar do inconsciente. O ato de pescar uma tentativa intuitiva de fisgar ou apreender os contedos (peixes) do inconsciente. De todas as imagens a mais explorada no meio psicolgico talvez seja a do artista , temos vrios textos sobre as relaes entre a arte e a psicologia. Palavras de JUNG: [...]a anlise no um mtodo que possa ser monopolizado pela medicina; tambm uma arte [...]. O cabeleireiro. JUNG, em seu texto, A rvore Filosofal diz : [...]frequentemente em sonhos de mulheres, o analista representado como um cabeleireiro (porque ele arruma a cabea)[...]o analista(diz o sonho) no deve ser mais significativo que um cabeleireiro que pe sua cabea no lugar de modo que ento ela possa us-la sozinha. Lembro-me de ter tido alguns sonhos onde minha analista fazia minhas unhas, era minha manicure: um trabalho manual sobre minhas mos. HILLMAN, remete-nos imagem do cultivo da alma a partir de suas imagens. A alma no dada, precisando ser cultivada, necessitando de nossa interveno e trabalho para que tome forma. Relacionando-se imagem do jardineiro, onde o cultivo modifica a natureza simplesmente deixada a seu curso: O jardim, afinal, no natureza, mas arte. Em outro momento HILLMAN lembra-nos de Scrates falar sobre o mtodo dialtico funcionar como uma parteira e articula a anlise ao trabalho de um parteiro: [...]o analista intensifica um processo que fundamentalmente do prprio analisando , auxiliamos no nascer daquela alma.E, entre imagens, sugere tambm a do bricoleur. *Escolhi a imagem do bricoleur, por ser a menos conhecida para mim, por ter tido uma experincia de aula na qual a professora, uma analista, nos trouxe a imagem do bricoleur na antropologia fazendo-me, naquele momento, lembrar das palavras de Hillman sobre o bricoleur , que havia lido em seu livro The Dream and the Underworld . Tal qual um bricoleur, a partir destas relaes, fiquei curiosa, comecei a minha bricolagem: colecionando uma frase de Hillman dita aqui, outra ali; pensamentos de Lvi-Strauss; dicas dadas por uma amiga, tambm analista, sobre a colagem na arte.Descobri que esta imagem para a anlise, faz-me sentido e traz algumas respostas para as minhas constantes questes sobre o trabalhar do analista.Percorreremos os termos bricoleur, bricolage, bric brac, de Levi-Strauss James Hillman. Em Levi-Strauss iremos ao Pensamento Selvagem , um pensamento sem uma ordem prvia; em Hillman iremos ao escamotear hermtico do bricoleur em lojas de bric brac, um trabalhador manual recortando e colando, solve et coagula.*BRICOLEURBricoleur, do francs, significa uma pessoa que faz todo o tipo de trabalho, trabalhos manuais. Bricoler, um verbo, tem o sentido de ziguezaguear, fazer de forma provisria, falsificar, traficar. Ou, jogar por tabela, utilizar meios indiretos, tortuosos e rodeios . Bricole, um substantivo, catapulta, ricochete, engano, astcia, trabalho inesperado ou pequeno acessrio, coisa insignificante. E, bricolage, trabalho de amador; na antropologia trabalho onde a tcnica improvisada, adaptada ao material, s circunstncias. Ainda temos o bric--brac , a lojas de bricabraque, onde encontramos mveis e vesturios antigos, objetos de arte ou artesanato, lojas de compra e vende .O verbo bricoler , em seu sentido antigo, aplica-se ao: jogo de pla e de bilhar, caa e equitao, mas sempre para evocar um movimento incidental: o da pla que salta muitas vezes, do co que corre ao acaso, do cavalo que se desvia da linha reta para evitar um obstculo .Tenho visto em Curitiba, cidade onde moro, lojas se intitularem como lojas de bricolagem, vendendo artigos para jardinagem, marcenaria, artigos tipo faa voc mesmo. Estamos, portanto, falando de: desvio dos meios costumeiros e literais, meios indiretos, trabalho manual e artesanal, faa voc mesmo, sucata, desmontar e montar, antiguidades e artigos de segunda-mo. Comrcio. Jogo e movimento incidental. Improvisos.

* partir do sentido da palavra bricolagem j podemos pensar em algumas imagens para o nosso trabalhar:Os meios indiretos e, por isso mesmo, eficazes, com os quais conduzimos nossos pacientes a perceberem suas condutas. Aquela frase dita que ir reverberar dias depois. A bola que bate e ricocheteia no canto da mesa de bilhar, acertando (ou no) o alvo; tal como quando tocamos em determinados assuntos, utilizamos algum tom de voz e, quase incidentalmente, chegamos ao ponto, do que ocorre pessoa - algumas vezes sem ficarmos sabendo, afinal os insights so do paciente e no necessariamente nossos!Os desvios de rota que automaticamente fazemos quando sentimos que estamos pisando em terreno minado, assuntos intocveis pelo menos naquele momento, qual o cavalo que muda de direo por farejar obstculos.O trfico de informaes que acontece quando percebemos de forma marginal (inconsciente) questes acerca de um paciente, seja em imagens que dele fazemos, lembranas que temos de filmes justo no momento em que o paciente nos conta um sonho ou um sonho que com ele temos . O trabalhar do bricoleur assemelha-se ao jogo. O jogo, a brincadeira, o passatempo, o movimento incidental, to difceis em nossa sociedade ofuscada pelo poder, pela falta de tempo e pela nsia em sermos pontuais, focados e eficientes; esquecendo de que a eficincia talvez possa vir justamente daquilo que chamamos de passatempo. A importncia do ldico sempre bem lembrada por JUNG. Talvez por isso, ns analistas inseridos em uma cultura que no pode nunca parar, fiquemos incomodados: parece que estamos brincando, apenas conversando. A bricolagem nos ajuda: vamos sim jogar, brincar, conversar, este o mtodo, este o trabalho. E s partir deste tipo de trabalho, e no outro, que podemos vir a ser eficazes. O trabalho de bricolage, um trabalho artesanal que produz transformaes ao colocar os objetos em movimento e em relao , e o nosso, ao movimentar as imagens de um indivduo, tambm . A palavra bricoleur evidencia tambm o sentido de um trabalhar com o inesperado, com aquilo que se apresenta, com o que se tem mo, um adaptar-se s circunstncias. Nas sesses de anlise sempre h um novo, um inesperado; no h como nos prepararmos, traarmos um plano prvio para as sesses com nossos pacientes. Este sentido visto na antropologia.*DE LVI-STRAUSS JAMES HILLMANUma bricolagem com suas idias

Para LEVI-STRAUSS, o pensamento mtico , em sua natureza, uma forma de bricolagem. E, em seu livro Pensamento Selvagem , ele explica qual o mtodo do bricoleur o contrapondo ao do engenheiro.O engenheiro possui um plano pr-estabelecido, constri partir de matrias-primas. A bricolagem, ao contrrio, no possui um projeto pr-concebido e se afasta do caminho conhecido, constri partir de sobras, pedaos de material j utilizado , do desmonte de peas. A bricolagem como um jogo de decomposio e recomposio,onde coisas velhas ou estragadas podem ser reconstitudas; ou partir do trabalho com objetos usados algo novo pode surgir. Um novo uso para aquela cena triste da infncia. Um sonho que aproveita sucatas da percepo misturando cenas do dia anterior com pessoas desconhecidas em um cenrio surreal, que passa a nos desconsertar . Neste sentido, o sonho em si j uma transformao .HILLMAN torna claro que a prpria imaginao, a fantasia, o sonho, faz este trabalho de bricolagem. E que, seguindo o princpio do igual cura o igual , devemos tambm utilizar este mtodo para o trabalho com as imagens: [...]o bricoleur do sonho um trabalhador manual, que toma os pedaos de lixo abandonados pelo dia e brinca com eles, juntando os resduos numa colagem. Ao mesmo tempo que os dedos que formam um sonho destroem o sentido original desses resduos, tambm os formam num novo sentido dentro de um novo contexto. Vemos, ento, a imaginao aproximando-se da colcha de retalhos da bricolagem: deformando, alterando e costurando as percepes. Trabalharamos imaginao a seu modo: colocando as imagens em movimento, e isto trabalhoso, envolve tcnicas especficas que se aproximam do bricoleur e do alquimista, exige fazermos com elas vrias operaes : a separatio em desmembrar os vrios momentos de uma determinada situao que o paciente nos relata; o desmanche ao sublimar as imagens de seu sentido literal; a putrefatio quando vamos deixando que uma frase dita no incio da sesso v exalando seus odores e contaminando todo o restante at para que algo brote.O perigo que, ao desmontar, podemos perder o rumo, ficarmos to fascinados pelo desmonte que nada mais criamos . Lembro-me de pessoas que conheci que tinham mania de desmontar tudo e acabavam por se perder. Esse um dos perigos de nosso trabalho: o desmonte pode nos levar a perder o fio da meada, quando o trabalho do analista pode ficar em apenas esmiuar a vida do paciente sem nada colar ou atravs do desmanche afastar-se demais da imagem que o sonho prope. Ou ainda , tornar-se um mero exerccio de colecionar sonhos e nada com eles fazer, no havendo um efetivo trabalhar.*LVI-STRAUSS, para explicar o colecionar do bricoleur, nos remete ao profundo conhecimento que os indios possuem sobre as plantas, a riqueza de linguagem que se utilizam para descrev-las e seus conhecimentos de sua utilidade medicinal. Tornando claro que, se eles possuem tal conhecimento, por serem extremamente curiosos sobre a natureza, por possurem uma paixo por conhecer; estes fatores, a curiosidade e a paixo, vindo antes da busca pela utilidade . Se descobrem a utilidade, por exemplo das plantas como medicamentos, porque conhecem as plantas e no que as tenham buscado conhecer porque visavam alguma utilidade . Considero esta questo fundamental para nossa imagem do analista como bricoleur, a utilidade como consequncia de nos encantarmos por querer sempre conhecer a pessoa que est em nossa frente. Esta atitude deve ser vista como um tipo de cincia, um esprito cientfico que se guia pela intuio, pela curiosidade assdua e sempre alerta , pelo paradoxo do [...]saber desinteressado e atento, afetuoso e terno, adquirido e transmitido num clima conjugal e filial[...] , maneira de um bricoleur, colecionando conhecimentos que um dia viriam a ser utilizados. E, depois, debruar-me sobre eles para trabalhar e deste trabalhar algo nasce, na maioria das vezes, de forma intuitiva. No estando trabalhando com o princpio da causalidade e sim buscando por relaes e assim conseguir alguma ordem . um fazer diferente daquele com o qual estamos acostumados, um fazer semelhante ao das artes: [...] um jogo das escondidas em que apenas se sabe o que se procura quando se chega a encontr-lo. Quem no for artista ter dificuldade em acreditar que esta incerteza, esta necessidade de arriscar, possa constituir a verdadeira essncia do trabalho criador. Neste momento fao um parnteses para introduzir um pouco da arte, temos muitos artistas trabalhando com tcnicas de bricolagem. H um conhecido trabalho de Picasso chamado o Crnio de Touro (fig.1) onde ele junta um guido e um assento de bicicleta e forma um touro; outro chamado Mulher com carrinho de beb (fig.2) no qual rene formas de bolos e boca de fogo. Porm, o que aqui ainda mais nos interessa sua fala sobre a gnese dessas criaes: Um dia encontrei num monto de sucata, um selim de bicicleta e ao lado o guiador enferrujado...ambas as peas se ligaram momentaneamente na minha imaginao...a idia para a cabea de touro nasceu, sem que eu tivesse refletido sobre isso, apenas tive de o soldar. E, em outro momento: Um dia pego no selim e no guiador, junto-os, fao uma cabea de touro. Muito bem. Mas o que eu deveria ter feito logo em seguida: atirar fora a cabea do touro. Atir-la para a rua, para a valeta, para qualquer parte, mas deit-la fora. Viria ento um trabalhador, apanha-l-ia e acharia que se poderia talvez fazer desta cabea de touro um selim e um guiador. E f-lo-ia ...Teria sido maravilhoso, o dom da transformao.

As artes e os sonhos com seus trocadilhos que, em si, so uma criao, nos convidando a tambm buscarmos sempre um duplo-sentido em ns mesmos.Podemos ser isto e aquilo , podemos ser descontnuos e inacabados, em contnua transformao, vivermos com aquilo que se nos apresenta. E, mesmo com todo este movimentar, existir uma objetividade, um contorno. Precisamos resgatar a profundidade e preciso que pode estar contida no improviso: a nota certa, por exemplo, de Miles Davis no jazz que dizia : De que adianta usar todas as notas! Basta usar as melhores. As imagens so precisas.Isso no fantstico? Vamos colecionando frases de nossos pacientes, situaes, imagens seja de sonhos, de falas, imagens sobre eles que brotam em nossas almas e, depois da bricolagem com estas imagens, uma trama emerge ! Ento, surge a eficcia da anlise: este trabalhar faz com que o paciente se compreenda, se componha: colagens internas sendo feitas. Dom da transformao como diz PICASSO, e estado de fluidez como diz JUNG em minha primeira citao com vocs : podemos olhar para os fatos de nossas vidas de diversas formas, o perigo sendo o olhar petrificado, a rigidez. *O bricoleur descrito como algum que trabalha com as mos, de forma artesanal .Um trabalho manual, o que as mos teriam a ver? Aqui chegamos a HILLMAN que fala das mos de uma forma especial: [...] Elas so nosso primeiro contato com o concreto, so como nos defendemos, como nos expressamos, aquilo que damos uns aos outros. Nelas est nossa sensibilidade. De acordo com JUNG : [...]a mo tem realmente o significado de gerar. Penso que as mos tem o poder de gerar no sentido de que, com as mos, manipulamos, mexemos, alcanamos algo: o transformamos, e isso criar . Este um momento importante: nosso trabalho no contemplarmos imagens(quando dizemos que no interpretamos algumas pessoas pensam que nada fazemos) e sim com elas algo criarmos .Temos que fazer isto! Qual aqueles cristais que possuem um selo man made ,um trabalho feito mo: uma verdadeira experincia sobre o objeto. Trabalhamos com as mos, manipulamos, nos envolvemos, colocamos as mos na massa da sempre um duplo-caminho: manipular e envolver-se sempre carrega um certo tipo de perigo e duplo-sentido. As mos e seu significado de singularidade, as digitais, o toque humano e pessoal ; as mos e seu sentido de nos colocar em relao. O processo artesanal difere do industrializado por esse carter de unicidade e de relao com o objeto , cada pea de artesanato nica e tem a ver com o arteso que a fez e assim so as sesses psicoterpicas: o toque pessoal do analista est ali, para o bem ou para o mal e, nos colocamos em relao com o outro. O bricoleur sempre coloca algo de si em seu trabalho e sabe que este est sempre em construo .Deste modo, ao manipularmos aquilo que dado, aquilo que natural, promovemos um trabalho servio da psique , um opus contra-naturam. HILLMAN tambm fala que a bricolage seria um mtodo primrio de trabalhar a fantasia[...]brincar e mexer com isto ou aquilo.[...] Podemos apanhar apenas coisas pequenas, uma por vez, tentar isto com aquilo. um trabalhar manualmente e, portanto, aos poucos, com coisas aparentemente insignificantes,como diz o termo bricole. Parece mesmo insignificante perguntarmos sobre um sonho quando um paciente est apavorado (e ns tambm preocupados) com um diagnstico de bipolar e vem sofrendo a ponto de no conseguir trabalhar. Mas assim, aos poucos atravs deste mtodo, alguma manipulao, transformao, podemos fazer.LEVI-STRAUSS tambm fala sobre o bricoleur trabalhar com modelos reduzidos nos lembrando de trabalhos como barcos dentro de garrafas, jardins japoneses e miniaturas. Aproveito aqui para falar de Hlio Leites, um artista paranaense, um verdadeiro bricoleur : faz caixinhas de fsforos repletas de vida e histria contadas por ele; um performer que faz de seu bon, da palma de sua mo ou boca, um palco improvisado para apresentar seus objetos. Em outro momento , HILLMAN , nos faz perceber que a palavra em alemo para comrcio, que Handel, tambm tem a ver com Hand que significa as mos, e nos damos conta de que o bric--brac um estabelecimento comercial, onde encontramos objetos second-hand, trocas so feitas. Da para observarmos o aspecto mercurial da anlise um passo. Nosso trabalho envolve trocas, comrcio: vem uma imagem, te dou outra; respondemos a uma imagem com outra; uma imagem lembra a outra e assim construmos um mural de quem somos. Aquele mural de fotos, dizeres, cartes postais, que muitos de ns temos e que tanto sobre ns diz. Objetos de segunda-mo: a imagem j velha de nossa infncia, hoje pode ter um outro uso, um outro sentido ou, trazer-me um rumo. Passamos a olhar para ns mesmos no mais da forma convencional com a qual sempre nos olhamos ou fomos olhados : improvisamos com nosso ser.*DE HERMES EROSOs aspectos mercuriais, hermticos relacionados ao bricoleur, portanto, facilmente deixam-se mostrar: a astcia, a marginalidade, o saber lidar com as mos (Hermes fez a lira com as mos), o comrcio do bricabraque, as trocas. O estar em movimento , o centro e a verdade poderem estar em qualquer ponto, pois na bricolagem podemos montar e desmontar, e fazer sempre novos objetos, novas constataes. Nada , nem deve ser, to definitivo. Eros, aparece no fato de ser a bricolage uma obra construda partir de relaes: seja o material psquico sendo colocado lado lado; seja a relao construda entre analista e paciente. Conforme HILLMAN , a imagem mais antiga do bricoleur talvez seja a de Eros, o Carpinteiro [...]esse aspecto sbrio de Eros mostra a funo aglutinadora no dentro do cosmo de Afrodite, mas talvez em conexo com Atena.Costumamos pensar em Eros com asas e flechas , e esta imagem realmente nos convida a um aspecto mais prtico de Eros , mais de trabalho. Eros em relao com Atena, uma deusaestratgicamente trabalhadora. O trabalhar da anlise como um trabalho onde a relao o que temos a oferecer ; e neste relacionar tentamos oferecer o que temos de melhor : colees de imagens que ao longo dos anos ouvimos, vemos ou farejamos ; nossa curiosidade assdua e sempre alerta por emoes, palavras, olhares: imagens; nosso saber que advm de muita bricolage: trocas com colegas, leituras, experincias com nosso prprio ser e habilidade para o jogar o jogo de bricolage da prpria psique.Os analistas so um de nossos grandes interlocutores nesta vida, com os quais desenvolvemos uma espcie de relao que faz florescer nossa alma (mesmo que nossas vidas aparentemente no mudem muito): um mundo em uma caixa de fsforos qual o bricoleur paranaense Hlio Leites; ao longo do aparentemente insignificante tempo e trabalho das sesses analticas criam-se possibilidades infinitas de experincias com o nosso ser ! E, esse trabalho que nos cura, essa a eficcia da psicoterapia porque este trabalhar ao estilo faa voc mesmo que envolve desconstruo acaba por construir o sujeito: [...] a obra de arte que d vida ao artista! Uma ressalva: no estou defendendo haver uma imagem, um modelo para a anlise melhor que outro ou nico. So vrias as imagens que compe o processo analtico e seu trabalhar. Novamente o bricoleur : este poder colecionar e relacionar diversas imagens que nos faz como analistas. Um trabalhar que muitas vezes caminha na contra-mo dos valores de nossa cultura, mas que em outros aspectos igual a qualquer trabalhar que, se for srio, envolve dvidas, suor, preparo e, claro, satisfao. Assim pois estuda, medita, sua, trabalha, cozinha...abrir-se- ento para ti uma torrente salutar [...]tornando-se uma verdadeira aqua vitae natural. A bricolage parece destruir a ambio, a glria, as asas.

* * *REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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