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Junho 2006 124 CIRURGIAS DESNECESSÁRIAS AUMENTAM MORTES DE MÃES E BEBÊS , REA

Os riscos da cesárea

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Pesquisa FAPESP - Ed. 124

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Page 1: Os riscos da cesárea

Junho 2006 • N° 124

CIRURGIAS DESNECESSÁRIAS AUMENTAM MORTES DE MÃES E BEBÊS ,

REA

Page 2: Os riscos da cesárea

PESQUISA RESPONDE

06.05.06

• Tatiana Moncaio

- Por que as pessoas têm pa­

vor de piolho?

• Cesar Ades, do Instituto de

Psicologia da USP

- Esta pergunta tem a ver com

a relação entre o ser humano e

os animais. É importante lem­

brarmos que o homem tem me­

do de uma série de animais que

lhe poderiam ser prejudiciais.

Esse sentimento data da pró­

pria evolução da nossa espécie.

Qualquer parasita que possa

afetar a saúde do ser humano

provoca uma resposta de medo,

de ansiedade. Embora não haja

nada publicado especificamen­

te sobre o temor de piolhos, me

parece que ele tem a ver com

esse medo generalizado de fa­

tores que possam afetar a saú­

de. Outros temores também se

encaixam nessa relação, como

o medo de aranhas ou de cães.

É interessante lembrar que nem

todo mundo tem esse tipo de

medo. Algumas pessoas, em

particular, têm um medo exces­

sivo desses fatores e desenvol­

vem uma fobia. Em psicologia,

estudamos muito a questão da

fobia por aranhas. Há estudos

que buscam saber como isso sur­

ge. Muitas vezes, a fobia apare­

ce muito cedo, por influência de

algum adulto que deu alguma

dica para a criança ficar com

tanto medo. Há, no entanto,

técn icas para resolver esse tipo

de medo.

NOTA

29.04.06

• Apresentadora

- Economizar água, ainda mais

em regiões secas como o Nor­

deste brasileiro, é um desafio a

ser enfrentado pelos cientistas

e pela população. Os pesquisa­

dores da empresa Lótus Quími­

ca Ambiental acabam de desen­

volver uma tecnologia que tem

muito a contribuir nesse sen­

tido. Trata-se de um pó, que ao

ser jogado em pequenas quan­

tidades na superfície da água

de um lago, por exemplo, forma

uma película ultrafina que re­

duz a evaporação da água. Mar­

cos Gugliotti, coordenador do

projeto, nos conta que a pelícu­

la ou filme forma uma espécie

de barreira entre a atmosfera e

a água.

PROFISSÃO PESQUISA

13.05.06

• Esther Bertoletti, coordena­

dora do Projeto Resgate de Do­

cumentação Histórica Barão

do Rio Branco

- Minha experiência profissio­

nal começou no Centro de Do­

cumentação da América Latina

em Roma. Quando voltei ao

Brasil, fui convidada a coorde­

nar um projeto da Fundação

Ford junto à Biblioteca Nacio­

nal, que consistia em levantar

fontes para a pesquisa histórica.

Desde então fui me dedicando

cada vez mais à área de preser­

vação da documentação através

Sem reposição hormonal

da microfilmagem e da restau­

ração. Esse trabalho me levou,

nos últimos qu inze anos, a coor­

denar o Projeto Resgate de Do­

cumentação Histórica Barão do

Rio Branco, que reúne documen­

tação de diversos arquivos, bi­

bliotecas e institutos históricos

do Brasil e também do exterior.

Esse tipo de iniciativa, de juntar

documentos em uma seqüência

lógica e colocar em suportes al­

ternativos, dá mais acesso ao

pesquisador a fontes históricas

que estavam espalhadas em

muitos arquivos de vários paí­

ses. Hoje em dia há formatos di­

gitais que possibilitam ao pes­

quisador ter todo esse material

em casa.

Espelho-d'água: pó forma película que reduz evaporação

ENTREVISTA

06.05.06

• Apresentadora

- Que diferenças já foram cons­

tatadas entre o homem e a mu­

lher no desenvolvimento de

doenças coronarianas?

• Anton io Mansur, coordena­

dor do Núcleo de Estudos e

Pesqu isas do Coração da Mu­

lher do Instit uto do Coração

-Sabemos que as mulheres têm,

antes da menopausa, uma prote­

ção natural aos problemas cardio­

vasculares. Depois da menopau­

sa, a incidência dessas doenças

começa a aumentar. A doença ar­

teriosclerótica pode acometer

tanto o coração como também o

cérebro. No coração causa o in­

farto agudo do miocárdio. No cé­

rebro, provoca o acidente vascu­

lar cerebral, o popular derrame. É importante destacar que, entre

essas duas doenças, a que mata

mais as mulheres é o acidente

vascular cerebral, seguido do in­

farto agudo do miocárdio. No der­

rame, um dos maiores fatores de

risco é a hipertensão arterial sis­

têm ica, principalmente a pressão

máxima. É importante controlar

essa pressão para tentar reduzir

o número de mortes por derrame

cerebral e por infarto agudo do

miocárdio. Existe consenso de

que, antes da menopausa, o es­

trógeno produzido pelos ovários

confere a proteção natural das

mulheres. Após a menopausa,

existe uma insuficiência ovaria­

na, e a mulher deixa de produzir

o estrógeno ou produz quantida­

de muito pequena. Nessa fase au­

menta a incidência da doença ar­

teriosclerótica. A grande pergunta

que se faz é a seguinte: após a

menopausa vale a pena fazer a

reposição hormonal com estró­

geno? Não vale. É consenso entre

os cardiologistas que não se deve

fazer a reposição hormonal com

o estrógeno.

Page 3: Os riscos da cesárea

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

24 COOPERAÇÃO Programa ClnAPCe cria rede inéd ita para

mapear a epilepsia

28 PROPRIEDADE INDUSTRIAL Governo divulga lista

de espécies brasileiras

para evitar apropriação

de marcas no exterior

30 BIODIVERSIDADE Lei nacional emperra

a coleta de amostras

biológicas e paralisa pesquisa de campo

32 AVALIAÇÃO Artigo propõe um

método qualitativo

para avaliar desempenho

de pesquisadores

CIÊNCIA

45 MEDICINA Ninguém sabe se são mesmo as células-tronco

que funcionaram

nos casos de sucesso

relatados

48 PARADIGMAS Avan ço do criacionismo

mobiliza cientistas

na defesa da Teoria da Evolução

50 BIOLOGIA Sapos, rãs e pererecas

exibem 70 cantos e 29 modos de reprodução

54 GEOLOGIA Rochas de até 250

milhões de anos contam sobre a formação

do Brasil e os movimentos

da crosta terrestre

56 FÍSICA Detectores registram

o desaparecimento

de partículas

mais abundantes do Universo

4 • JUNHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 124

TECNOLOGIA

68 AGRICULTURA Empresa desenvolve equipamentos de

precisão para aumentar a produção no campo

72 ENERGIA Petrobras cria

técnica para uso de óleo de sója

na produção de diesel

74 BIOQUÍMICA Toxina da serpente ajuda

em cicatrização e atua

na formação de novos vasos sangüíneos

76 METROLOGIA Novo relógio atômico

capaz de atrasar um

segundo em milhões de anos é desenvolvido

no país

HUMANIDADES

84 ECONOMIA Crise entre Brasil

e Bolívia tem mais razões geopolíticas

do que econômicas

88 DESIGN Exposição em São Paulo

mostra talento pouco conhecido de

Santos-Dumont

90 EXPOSIÇÃO Mostras em São Paulo

e na Suíça relembram o "ano miraculoso"

de Einstein

SEÇÕES

CARTAS ... . .. .. .. . . .... . .... 6 IMAGENS DO MÊS ... . ... .. . . . 8 CARTA DA EDITORA . .. . ....... 9 MEMÓRIA ......... . ... •. . . . 10 ESTRATÉGIAS . . ... . .. . .. . .. . 18 LABORATÓRIO .. ............ 34 SCIELO NOTÍCIAS .. . ........ 58 LINHA DE PRODUÇÃO . . . . . ... 60 RESENHA . .. .. . ... . .. . .. . . . 94 LIVROS ... . .... ... .. . .. . .. . 95 FICÇÃO ... . . ..... . ......... 96 CLASSIFICADOS . . . . .. .. . . .. . 98

Capa: Hélio de Almeida

Foto: IT/Stock Photos

Page 4: Os riscos da cesárea

64 COMPUTAÇÃO Projetas buscam melhorar o trânsito e a vida do usuário do transporte coletivo

80 SOCIOLOGIA Estudo da USP revela as raízes antigas da violência recente do PCC

Professor emérito da USP, o historiador José Sebastião Witter relembra sua carreira e fala sobre ensino e futebol

38 CAPA Estudo publicado na revista Lancet mostra

w ww. revi 5 tape 5q ui 5 a. f a p e5 p. b r

que cesariana desnecessária co loca em risco saúde da mulher e do bebê

Page 5: Os riscos da cesárea

Peiijüii8 'FAPESP

As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

• Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de pastagem. Tel. (11) 3038-1438

• Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail: [email protected]

• Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapes p.br

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6 • JUNHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 124

c a r ta s@f a pes p. br

Patentes

Parabéns pela reportagem "Sis­tema imaturo" (edição 123) pela aná­lise da pesquisa em tecnologia no Brasil. Sou inventor brasileiro (34 patentes no Brasil e uma nos Estados Unidos, Europa, Japão e China). No Brasil, as universidades não gostam de inventores, dificultam nossa vida. Parece que nos vêem como "concor­rentes" ou algo semelhante. Estamos processando uma universidade bra­sileira (ação civil) que desenvolveu um projeto com dinheiro público, patenteou com dinheiro público, es­tá desenvolvendo o invento com di­nheiro público e cometendo grave erro de norma, que é primeiro faz~r busca das tecnologias existentes pa­ra não gastar dinheiro "inventando a roda". Infelizmente, esse fato, quan­do comprovado, como estamos afir­mando, mostrará uma face ruim da ciência brasileira, formada na sua maioria por acadêmicos. É uma face abominável (egocêntrica, egoísta, in­sensível, aética, alheia às verdadeiras necessidades do país). Cabe discutir­mos as causas desse cenário.

Santo Daime

A URÉLIO M AYORCA

Joinville, se

Na reportagem "A batalha dos ve­getais" (edição 123) dizer que o Alto Santo é uma dissidência surgida após

a morte do mestre Irineu Serra é uma inverdade bisonha, pois o Alto Santo foi o único centro fundado em vida por Irineu Serra. E mais: o Mestre Iri­neu fundou a doutrina do Daime. Daime apenas. O tal "santo" foi agre­gado pelos que adicionaram o uso de maconha, a qual "batizaram" de "san­ta maria': Eis o trecho equivocado da matéria de Carlos Haag: "De início restritas à região amazônica, as reli­giões ayahuasqueiras hoje estão em todo o Brasil e em 20 países do globo, com direito a dissidências, como o Alto Santo e o Cefluris, ambas nasci­das do Santo Daime, após a morte de Mestre Irineu':

ALTINO MACHADO

Rio Branco, AC

Nelson Pereira

Fantástica a entrevista intitulada "Um cineasta imortal" (edição 122), em que revela por meio do nosso ilus­tríssimo e respeitado cineasta Nelson Pereira dos Santos as dificuldades e glórias da produção do cinema brasi­leiro. Fiquei ainda maravilhada com a figura humana do cineasta, que aos 77 anos de idade revela-se um revolu­cionário incansável e com muito vi­gor e alegria para celebrar a vida e o cinema nacional. Parabéns à Pesquisa FAPESP e à colaboradora Penha Ro­cha que nos deu o prazer de conhecer um pouco mais de Nelson Pereira dos Santos.

Álcool

ELAJNE CUNHA B ORGES DE LI MA

Janaúba, MG

Pesquisa FAPESP mais uma vez perdeu a oportunidade de abordar os aspectos negativos da cultura de cana tal como é feita hoje (edição 122). Os problemas da cultura canavieira têm dimensões maiores do que as relacio­nadas à produção de álcool e aos en-

Page 6: Os riscos da cesárea

IMPOltNCIA POOEtlDICAII

~

O mundo quer mais

cargos trabalhistas. Essas dimensões afetam a população em geral e nunca foram abordadas pela revista: doenças respiratórias causadas pelas queima­das (poluição do ar), exaustão do solo pela monocultura, desmatamento, poluição de rios, tráfego perigoso nas rodovias (relacionado ao transporte do produto). É deveras irritante ler repor­tagens tão parciais provenientes de ór­gãos responsáveis pela divulgação equilibrada do conhecimento.

L AU RJ VAL A. DE L UCA )R.

Faculdade de Odontologia, Unesp Araraquara, SP

Biodiversidade

Peço atenção para um assunto que tenho acompanhado desde 2003 como delegado do governo brasileiro. O úl­timo parágrafo da reportagem "Pon­tos de atrito" (edição 122) contém al­gumas impropriedades que merecem correção. O Protocolo de Cartagena, gerado no âmbito da Convenção da Biodiversidade, trata dos movimentos transfronteiriços de organismos vivos modificados (OVM), uma subclasse de transgênicos. Dessa forma, estão de fora dos efeitos do protocolo as ex­portações de farelo e óleo de soja, por exemplo, já que estes não são "or­ganismos vivos", mas derivados. Não há previsão no protocolo de qualquer dispositivo que vise à "rotulagem" de produtos ao consumidor. O que se discutiu especificamente no aspecto

focado pela matéria foi a identificação das cargas para a conferência pelas au­toridades portuárias e importadores. Não havendo consumidor no movi­mento transfronteiriço, não é adequa­do se referir à identificação das cargas, que seguem em contêineres ou no po­rão de navios, como "rotulagem': Ou­tro equívoco cometido foi afirmar que há um compromisso de ir-se adotan­do a segregação para permitir o uso do termo "contém" em 2012. A decisão que está publicada na página da CBD

EMPRESA QUE APÓIA A PESQUISA BRASILEIRA

l_l) N OVAR TIS

Net. g

na internet estabeleceu que somente em 2010 serão avaliados pelas Partes do Protocolo os avanços na constru­ção da capacidade necessária para o controle das cargas, em especial a dos países em desenvolvimento. Tendo havido evolução nessa infra-estrutura, se decidirá pela adoção a partir de 2012 do uso da expressão "contém ... etc.". Além disso, os produtos que são natu­ralmente segregados e usados para ali­mentação, ração e processamento, tais como frutas transgênicas, passarão a empregar a expressão "contém OVM .. :: segundo a decisão da 3• Reu­nião das Partes (MOP3). Em suma, a decisão alcançada foi sábia ao evitar que se criassem óbices desnecessários e inoportunos às exportações brasileiras

de grãos de soja, podendo prejudicar o abastecimento dos países com eco­nomias de menor desenvolvimento relativo. A decisão foi também sábia ao atrelar o uso do termo "contém" ao adequado desenvolvimento das capa­cidades dos países em desenvolvimen­to. Sem capacidade de inspeção fica impossível avaliar a veracidade da in­formação, qualquer que seja ela, con­tida no manifesto de carga.

Revista

SERGIO FIGUEIREDO

Brasília, DF

É curioso meu acesso a esta revis­ta. Meu tio trabalha de porteiro num prédio, onde moram somente estu­dantes. Uma moça que assina Pesquisa FAPESP, após sua leitura, entrega-a para meu tio e ele me empresta. Como estou estudando para prestar vesti­bular, a leitura desta revista aumenta meu conhecimento e me mostra um ambiente de descobertas, no qual que­ro ingressar: a universidade. Moro na cidade que possui a Universidade Fe­deral de São Carlos (UFSCar) e a Uni­versidade de São Paulo (USP). Estas já apareceram em várias reportagens, me provando que são importantes centros de pesquisa. Isso me motiva a entrar na UFSCar e cursar biologia.

Correção

D AIANE G ABRIELA LoPES

São Carlos, SP

A reportagem " Revolução no canavial" (edição 122) foi apurada e escrita por Marcos de Oliveira e Yuri Vasconcelos, e não apenas por este úl­timo como foi publicado nesta seção da edição 123.

Cartas pa ra esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected]. pelo fax on 3838-4181 ou para a rua Pio XI. 1.500. São Paulo. SP. CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

PESQUISA FAPESP 124 • JUNHO DE 2006 • 7

Page 7: Os riscos da cesárea

Achado ou perdido?

A descrição de uma nova espécie de macaco no país causa discórdia entre pesquisadores do Nordeste. Para um dos autores da descoberta , o biólogo Antonio Rossano Mendes Pontes, da Universidade Federal de Pernambuco, o símio encontrado no litoral de Pernambuco, batizado de Cebus queirozi, ou macaco-prego-galego (foto), passou os últimos 500 anos ignorado pela ciência. Para Marcelo Marcelino, chefe do Centro de Proteção de Primatas do lbama em João Pessoa, o animal fora retratado no século 18 pelo naturalista alemão Johann von Schreber, que batizou o macaco de Simia flavia , ou símio loiro em latim (gravura) . O caso representaria, na verdade, a redescoberta de uma espécie já conhecida.

8 • JUNHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 124

Page 8: Os riscos da cesárea

Pesquisa CARLOS VOGT PRESIDENTE

MARCOS MAÇA RI VICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

CARL05 VOGT. CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI,

NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN. YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO

PESQUISA FAPESP

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS {COORDENADOR CIENTÍFICO),

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO,

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER. LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO. PAULA MONTERO,

RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI

DIRETORA DE REDAÇÃO

MARILUCE MOURA

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIOR

MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

DIRETOR DE ARTE

HÉLIO DE ALMEIDA

EDITORES EXECUTIVOS CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES),

MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA)

EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES. MARCOS PIVETTA (EDIÇÃOONLINE).

RICARDO ZORZETTO

EDITORA ASSISTENTE DINORAH ERENO

REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO

CHEFES DE ARTE JOSÉ ROBERTO MEDOA, MAYUMI OKUYAMA

ARTE FINAL LILIAN QUEIROZ

FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN

5ECRETARIA DA REDAÇÃO

ANDRESSA MATIAS TEL: (II) 3838-4Z01

COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), EDUARDO

GERAOUE (ON-LINE), FRANCISCO BICUDO, JAIME PRADES. LAURABEATRIZ, LUIZ ROBERTO ALVES, MANU MALTEZ, MARIA GUIMARÃES, RENATA SARAIVA, SANDRO CASTELLI, SÍRIO J. B. CANÇADO, THIAGO ROMERO (ON-LINE) E YURI VASCONCELOS.

COORDENAÇÃO DE MARKETING E PROJETOS ESPECIAIS CLAUDIA IZIOUE (COORDENADORA) TEL. (11) 3838-4272

PAULA ILIADIS (ASSISTENTE) TEL: (11) 3838-4008 e-mail; publicidade^fapesp.br

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RUA PIO XI. N° 1.500. CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP

é PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL

DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

Carta da Editora

Em defesa da via normal do nascimento

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Há algo de francamente espantoso em boa parte das discussões que neste país se processam sobre o

melhor caminho para o nascimento de bebês humanos. Falo da estranha in- versão que sofrem os conceitos de nor- mal e de excepcional em relação a um dos mais fantásticos processos fisiológi- cos em que o corpo feminino é especia- lizado: o parto.

De tanto que se banalizou a opera- ção cesariana, há quem acredite, princi- palmente entre as novas gerações, que normal para nascer é essa alternativa cirúrgica, enquanto o parto normal, pela via vaginal, não passaria a essa al- tura de uma excrescência, um irreme- diável anacronismo. Brutal equívoco! O parto normal, ainda quando o corpo gaste mais de 24 horas num estupendo e insistente trabalho para fazê-lo final- mente acontecer, é um evento da or- dem da fisiologia, do bom e saudável funcionamento do organismo femini- no. Já o parto cesariano, embora deva- mos tomá-lo com justeza como uma bela construção da competência tecno- científica humana, aperfeiçoado passo a passo desde que foi tentado pela pri- meira vez há mais de 400 anos e, ressal- te-se, fundamental desde então para salvar um número incalculável de vi- das, é uma cirurgia - com os riscos ine- rentes a qualquer cirurgia, além de ou- tros específicos. Cirurgia que deve, sim, ser realizada em todas as situações em que o processo fisiológico normal não tiver chances de seguir seu curso, em prol da vida de mulheres e bebês.

O problema são as cesarianas des- necessárias. E isso a bela reportagem de capa desta edição de Pesquisa FA- PESP mostra a partir da página 38 com agudeza e profundidade, tomando como ponto de partida um estudo com participação importante de pes- quisadores brasileiros publicado agora

MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAçãO

em junho na Lancet, uma das mais im- portantes revistas científicas da área de medicina. Os riscos desconhecidos das cesarianas, a conversão da obstetrícia brasileira ao parto cirúrgico e suas ra- zões, as alterações nas taxas de morta- lidade materno-infantil provocadas pelo abuso do parto não-fisiológico, tudo isso e muito mais está relatado no texto denso, vigoroso e ao mesmo tem- po sensível do editor especial Ricardo Zorzetto. Ouso dizer até, muito à von- tade em minha condição feminina, sendo mãe de três filhos nascidos to- dos de parto normal, que qualquer mulher bem consciente da importân- cia social das lutas afirmativas de gêne- ro assinaria com prazer essa reporta- gem, que é um verdadeiro trabalho de utilidade pública.

Para além de meu entusiasmo com a capa, no entanto, há muito a ler de novo e estimulante nesta edição. Vale destacar em tecnologia, por exemplo, a reportagem da editora assistente, Di- norah Ereno, nas páginas 74-75, sobre os efeitos cicatrizante e regenerador de tecidos lesados de uma proteína encon- trada no veneno da urutu. Estamos, portanto, diante da promessa de novos medicamentos baseados em venenos de cobras brasileiras.

E, nas humanidades, chamo a aten- ção para a reportagem do editor Car- los Haag a partir da página 80 sobre as análises mais sociológicas da explosão de violência que afetou São Paulo no meio do mês de maio e que teve seu momento mais dramático na segunda- feira, 15. Foi uma crise de grande am- plitude, como observou um de seus analistas, e que pela forma como espa- lhou o terror entre policiais e outros agentes públicos, e para a população em geral, tem um caráter inédito.

Boa leitura e boas reflexões.

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 9

Page 9: Os riscos da cesárea

Moreira (de braços cruzados) com Einstein durante visita do físico ao Brasil, em 1925

O alienista Juliano Moreira foi o primeiro a divulgar Freud no Brasil e a transformar a psiquiatria em especialidade médica

NELDSON MARCOLIN

m jovem médico de Salvador foi o primeiro divulgador, no Brasil, dos trabalhos um tanto diferentes de outro médico, de Viena. Segundo os relatos disponíveis hoje, Juliano Moreira expôs para alunos da Faculdade de Medicina da Bahia as novidades ainda controversas de Sigmund Freud

em 1899. O amigo e também médico - além de político e escritor — Afrânio Peixoto fez referência ao fato em 1933, na homenagem pós-morte de Moreira: "Freud, novidade de hoje, há 30 anos era estudado por ele [Juliano Moreira] na Bahia". Ronaldo Jacobina, pesquisador da Universidade Federal da Bahia e conhecedor da vida e obra de Moreira, diz: "Os 30 anos é uma referência aproximada, pode ser 1903, 1900 ou mesmo 1899". Quem fala deste último ano, antes, portanto, da publicação da Interpretação dos sonhos, é Mariazilda Perestrello, citando

10 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

Page 10: Os riscos da cesárea

Moreira (de lenço na mão) com o corpo clínico do Hospital Nacional de Alienados em 1904 e ao lado

como fonte primária o psicanalista Danilo Perestrello. Anos depois, em 1914, Moreira fez uma comunicação oficial sobre psicanálise à Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal. Foram os 150 anos do nascimento de Freud, comemorados em maio, que trouxeram à tona essa primeira citação relativa à psicanálise no Brasil.

Juliano Moreira (1873- 1933) é um caso excepcional na medicina brasileira. Era mestiço, pobre, nordestino, doente - adquiriu

tuberculose cedo - e filho de uma empregada doméstica e de um funcionário municipal, que o reconheceu tardiamente, de acordo com Fátima Vasconcellos, psiquiatra carioca, ex-presidente da Associação de Psiquiatria do Rio de Janeiro e autora de uma dissertação sobre ele. Foi extremamente precoce, inteligente e determinado: entrou na Faculdade de Medicina da Bahia aos 13 anos, o que era permitido aos alunos excelentes da época, e formou-se aos 18, em

1891, com a tese Etiologia da sífilis maligna precoce.

Em 1900, na segunda vez em que foi à Europa, conheceu laboratórios e pesquisadores de vários países ligados à psiquiatria, dermatologia e a estudos sobre a sífilis, de acordo com Ana Maria Oda, da Universidade Estadual de Campinas, também estudiosa do assunto. E em 1903, tornou-se diretor do Hospício Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro.

Nos 27 anos em que esteve à frente da instituição, Moreira construiu a psiquiatria como especialidade médica no Brasil com idéias e práticas novas. Inspirado na Clínica de Munique, dirigida por Emil Kraepelin, aboliu as camisas-de-força e retirou as grades de ferro das janelas. Separou adultos e crianças internadas, instalou um laboratório de anatomia patológica e de análises bioquímicas.

Trouxe para o corpo clínico neuropsiquiatras, especialistas de clínica médica, pediatria, oftalmologia, ginecologia e odontologia e colocou de pé a escola para formação de enfermeiros psiquiátricos. Publicou mais de cem trabalhos. Influiu na legislação para melhorar a assistência aos doentes. Foi co-fundador de periódicos médicos e instituições como a Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins e presidiu a Academia Brasileira de Ciências — onde recebeu Albert Einstein em 1925 — e foi vice-presidente da Academia Nacional de Medicina.

Mas, antes de tudo, Juliano Moreira foi médico. "Ele dizia que o alienado' deveria ser tratado como qualquer outro doente, o que demonstrava sua falta de preconceito em relação à doença mental", conclui Fátima Vasconcellos.

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 • 11

Page 11: Os riscos da cesárea

Uma vida na sala de aula

FABRÍCIO MARQUES

12 • JUNHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 124

rofessor emérito da Facul­dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Pau­lo (USP), José Sebastião Witter, de 73 anos, diz que se considera mais um professor de história do

que um historiador. "Sempre fui um bom professor, não tenho falsa modés­tia. Aprendi a ensinar dando aulas nos cursos primário e secundário", comple­menta. Sua trajetória, de professor pri­mário num colégio público da cidade de Mogi das Cruzes, ainda conhecida como o "cinturão verde" de São Paulo, a titular do Departamento de História da USP, traz à memória um sistema de en­sino que se perdeu no tempo. Witter graduou-se em história, sua vocação desde jovem. Formou-se com a ajuda de uma prerrogativa instituída nos anos 1940. Ela permitia a professores primá­rios aprovados no vestibular da USP o afastamento de suas funções, para que pudessem fazer o curso superior na área escolhida. Para manter-se comissiona­dos, tais professores deveriam obter mé­dias elevadas em suas notas escolares. Entre a sua diplomação como professor primário e a sua contratação no Depar-

tamento de História, convidado para ser assistente do catedrático Sérgio Buarque de Holanda, Witter lecionou sempre em escolas públicas, desde o seu ingresso no magistério primário em 1954 até 1968, quando veio para a USP.

Quase sempre sob a orientação de Sérgio Buarque, pesquisou sobre a imi­gração alemã, a fundação do primeiro partido republicano e sobre arquivos históricos. Nos anos 1970 introduziu um assunto que era malvisto pela uni­versidade: o futebol, sua paixão desde a infância. Como professor do Departa­mento de História, ministrou o primei­ro curso de história do futebol na USP. Mais tarde, organizaria obras como Fu­tebol e cultura, em colaboração com José Carlos Sebe Bom Meihy, e escreveria O que é futebol e Breve história do futebol brasileiro. Ao lado desse curso, que lhe deu certa notoriedade e foi explorado pela imprensa pelo inusitado, trabalhou sempre como professor na área de His­tória do Brasil colonial, imperial e re­publicana nos cursos de graduação. Na pós-graduação teve participação ativa como professor e orientador.

Paralelamente, teve uma bem-suce­dida carreira de administrador. Por 11 anos, dirigiu o Arquivo Público do Es-

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tado de São Paulo, ligado à Secretaria de Cultura. Foi também diretor do Institu­to de Estudos Brasileiros (IEB), da USP, que fora fundado pelo mestre Sérgio Buarque de Holanda, no período de 1990 a 1994. Na seqüência passou a di­rigir o Museu Paulista da USP, mais co­nhecido como Museu do Ipiranga, entre 1994 e 1999, quando coordenou uma grande reforma de suas instalações físicas e produziu transformações nas áreas aca­dêmica e administrativa. Aposentado depois de longa carreira na USP e de vol­ta a Mogi das Cruzes, Witter analisa com alguma nostalgia os rumos que a univer­sidade tomou, como se pode ver na en­trevista a seguir.

• Antes de fazer carreira como historia­dor e professor da USP, o senhor trabalhou durante anos como professor de escolas primária e secundária. Hoje essa trajetó­ria quase não existe. O que mudou? -Muita coisa mudou. Desde o salário até o respeito com o profissional. Atual­mente o professor em geral e o professor primário, principalmente, são muito mal remunerados. Quando jovens e pro­fessores da escola primária, tínhamos um salário digno e, se cuidadosos, era possível fazer poupança razoável. Hoje não. Mas, acima de tudo, o professor go­zava de prestígio em qualquer comuni­dade. Poderia trabalhar numa metró­pole ou numa pequeníssima cidade: ele era o professor. Vivemos isso por todos os lugares onde ensinamos. Além do mais, os concursos públicos, sempre ri­gorosos, eram os norteadores da carrei­ra de cada mestre. As regras eram bem definidas e dificilmente alguém era favo­recido. Quem eram as pessoas de desta­que em qualquer cidade? O prefeito, os vereadores, o juiz de direito, o delegado de polícia, os promotores públicos ... e os professores. Hoje quem sabe quem é ou não professor em cidades como São Paulo, Mogi das Cruzes, Suzano ou Poá? Quando fiz minha carreira, bastava ser professor para ser diferente ... Desde os anos 1970 até hoje, a vida no magisté­rio foi sendo afetada por reformas am­plas ou por leis específicas, alterando o desenvolver da carreira profissional. É di­fícil afirmar o que mudou basicamente. Tudo, praticamente, eu diria.

• O que deu errado? -Eu não gosto muito de dizer que a cul-

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pa toda cabe aos governos militares. Mas, coincidência ou não, a escola nor­mal, que formava os professores, decaiu no período militar. Começou a acabar lá por 1965, 1968. A responsabilidade de formar o professor de "primeiras letras" passou a ser da universidade. Se melhor ou pior, não sei ... Isso é uma discussão em que não quero entrar. Mas o fato é o seguinte: você tinha uma escola normal, que ensinava o professor de primeiras letras a ensinar a ler, a escrever e a con­tar. Isso era a função do professor pri­mário. Em quatro anos, você alfabetiza­va, depois acompanhava as turmas. E você sabia ensinar porque tinha tido, na escola normal, grandes professores, gen­te que realmente sabia ensinar aquilo que o Brasil ainda precisa: o mais sim­ples de tudo que é ler, e bem. Será que as escolas públicas fazem isso hoje? Toda tecnologia é bem-vinda, mas como levá­la a todos os cantos do nosso território? Um professor bem-capacitado é compe­tente para ensinar em qualquer ponto, sem qualquer recurso, seja ele de vídeo, de áudio ou apoio da última novidade para "prender" o ouvinte. Conheço casos de professores que cancelaram a aula do dia por "falta de recursos audiovisuais': Antes cada professor usava a sua criativi­dade, tendo às suas costas apenas o qua­dro-negro e o giz, mas à sua frente tinha mentes realmente ansiosas pelo saber e vidas a transformar. Era um tempo em que a professora era "professora", e não "tia': É um tema para se pensar ... Não cabe nesta entrevista .. .

• O magistério foi a carreira escolhida pe­lo senhor e sua esposa, a professora Geral­dina Porto Witter. Em algum momento a trajetória de vocês se cruzou ou chegaram a disputar o mesmo espaço profissional? -Sim. Conheci minha mulher no giná­sio. Havia um prêmio, em Mogi das Cru­zes, conhecido como Prêmio Adrião Bernardes. Era concedido a quem obti­nha as melhores notas na disciplina de História durante os quatro anos de gi­násio. Disputamos o prêmio, mas foi ela quem ganhou. Era muito estudiosa. Nós dois entramos para a escola normal. As regras do jogo eram bem definidas­é por isso que a escola era boa. Quem acabava a escola normal em primeiro lu­gar, somando as notas dos três anos, ga­nhava a chamada "cadeira-prêmio", que era um emprego garantido de professor

numa escola próxima ao lugar em que você vivia. Ambos conseguin1os esse prê­mio: ela em um ano e eu no subseqüen­te. Quando nos casamos, decidimos es­tudar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Íamos e voltávamos para Mogi todos os dias, durante quatro anos. Era um trajeto oposto ao dos alu­nos atuais. Nós saíamos de Mogi em di­reção a São Paulo e voltávamos no final da tarde ou à noite.

• Como o senhor se tornou professor uni­versitário? - Naquele tempo havia os Institutos Isolados de Ensino Superior, que hoje compõem a Unesp. E surgiu uma vaga na cidade de Rio Claro. Havia um pro­fessor na Faculdade de Filosofia que gos­tava muito de min1, o professor Eurípedes Simões de Paula, diretor do Departa­mento de História. Hoje quase ninguém se lembra dele. Para alguns, é somente o nome do atual prédio da História e Geo­grafia na Cidade Universitária da USP. Mas ele foi uma figura importantíssi­ma. Além de professor de história anti­ga, diretor conselheiro da Reitoria, fazia praticamente sozinho a Revista de His­tória, que levou até a edição de número 112. Fazia de tudo pessoalmente e com aquela dedicação típica dos homens de visão. Chegava a empacotar os volumes da revista e ele próprio encaminhá-los aos Correios. Ele me dizia: "Não deixe de passar na minha sala toda semana. Quem não é visto é esquecido". Eu lecio­nava, na época, na cidade de Patrocínio Paulista. Vinha de Franca de ônibus na quinta-feira à tarde e, à noite, ia ao De­partamento de História na rua Maria Antônia conversar com o professor Eurí­pedes. Um dia ele me avisou: "Amanhã você vai procurar uma professora. Ela mora no largo do Arouche e está preci­sando de um professor para Rio Claro': Acabou dando tudo certo. Fiquei três anos em Rio Claro, até 1964. Minha mu­lher foi junto, convidada para ser assis­tente de Carolina Bori. Era uma profes­sora excepcional que fez uma revolução no ensino da psicologia e nos anos 1990 foi presidente da SBPC [Sociedade Brasi­leira para o Progresso da Ciência]. Ela ti­nha criado um grupo de estudos e convi­dou minha mulher para fazer parte dele.

• Por que saiu de Rio Claro? -Em 1964 meu contrato acabou. Mas,

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na verdade, eu saí por razões políticas. Não tive o contrato renovado porque era visto como um dos comunistas da universidade. Era um bom professor, sempre fui, não tenho falsa modéstia. Sabia ensinar. Tinha aprendido dando aulas no primário e no secundário. Mas tinha acontecido o golpe de 1964. O de­legado da cidade prendeu um colega nosso, o professor Warwick Kerr. Ele sabia que seria preso, pois o próprio de­legado tinha dito aos freqüentadores de um bar que iria prendê-lo na manhã do dia seguinte. Mas ele não quis fugir. Eu e todos os outros professores, de esquer­da e de direita, fomos para a delegacia e fizemos um cordão para impedir que ele fosse levado para São Paulo. Acabou libertado quando trouxemos um profes­sor de estatística que também tinha um cargo na polícia e foi à delegacia deter­minar sua soltura. Mas as nossas casas começaram a ser vigiadas, tive um livro apreendido na minha biblioteca só por­que tinha a capa vermelha. Aí aconteceu algo extraordinário: fui convidado a tra­balhar na USP, como assistente do mes­tre Sérgio Buarque de Holanda. E tam­bém voltei para Mogi das Cruzes, para reassumir minhas funções de professor secundário do Estado, no Instituto de Educação Dr. Washington Luís.

• Como foi a mudança? -Eu já sabia que não teria meu contra­to renovado quando o professor Sérgio Buarque foi fazer uma conferência lá em Rio Claro. Logo na chegada, na frente de todo mundo, ele me viu e disse em voz alta: "Witter, quer dizer que você vai co­migo para São Paulo?". Eu respondi: "Como assim? O senhor está me convi­dando para ser seu assistente?': Ele com­plementou: "É claro! E creio que gosta­rá de trabalhar na cadeira de História do Brasil': Ao mesmo tempo que aceitei o inesperado convite para lecionar na USP, retomei meu cargo de professor se­cundário em Mogi das Cruzes, no Insti­tuto de Educação Dr. Washington Luís, que até hoje existe como escola de pri­meiro e segundo graus. Era para mim uma grande honra, pois havia concluí­do meus estudos lá. A escola passava por uma crise. Fui, então, convidado pelo secretário de Educação a assumir a dire­ção da escola. Eu tinha 32 anos. O curio­so é que, em 1964, eu saí de Rio Claro como "comunista" e entrei no Instituto

de Educação como uma espécie de in­terventor.

• O senhor tornou-se um crítico da ex­tinção das cátedras. Por quê? -Na década de 1960 fazíamos uma crítica muito feroz às cátedras. E, de fato, tinha catedrático que tratava o as­sistente como office-boy, mandava até comprar cigarros. Eram, é claro, as exce­ções, mas serviram como a causa maior da luta. Hoje creio que os grandes cate­dráticos estão fazendo falta. Fui bafejado pela sorte. Meu catedrático era o profes­sor Sérgio Buarque de Holanda, um ho­mem excepcional. Ele se reunia com to­dos os assistentes e todas as semanas discutíamos o curso, como é que tudo no departamento se desenvolvia, e, no fim do ano, recebíamos a "lição de casa" para fazer. Ele sugeria: "Você vai dar aula para a Geografia neste ano", "Você vai dar o primeiro ano de História Colonial · II", "Você dará República". Fazia isso no mês de novembro, dezembro e, na oca­sião, recebíamos as bibliografias para os estudos e preparação dos cursos por ele indicados. Em fevereiro nos reuníamos para ver quais eram as dúvidas e por onde caminhar. Você pode me dizer: "Ah, você é da velha guarda, gosta de ter che­fe, de ser mandado, não tem coragem de fazer as coisas': Mas o professor Sérgio sabia abrir os espaços. Você não ficava solto totalmente, mas tinha liberdade para dar os cursos. Cada qual com seu estilo. Depois que se aposentou, mais de uma vez, em entrevistas, ele dizia: "Te­nho orgulho de ter orientado as pessoas que orientei até o fim e tenho também orgulho de dizer que cada um seguiu a sua carreira da sua forma, mas todos ocupam um lugar de destaque': Sérgio Buarque era um verdadeiro professor e

um catedrático exemplar. Quando digo que os bons catedráticos fazem falta, pen­so naqueles que fizeram da cátedra um instrumento de formação de uma ver­dadeira escola. Hoje as carreiras são mais independentes e quase sempre muito rápidas, muito diferente daquela época.

• Numa entrevista, o senhor fez críticas ao esvaziamento do ritual da defesa de tese. Por quê? -No meu tempo, você estava ali, suan­do diante da banca, e os seus amigos lo­tavam o anfiteatro para apoiar. A defesa de tese era um acontecimento na univer­sidade. Hoje, às vezes, você faz a defesa com a banca e só o candidato. Outras cir­cunstâncias também mudaram. Antiga­mente tese de doutorado só ia para a de­fesa quando o orientador e o candidato realmente se satisfaziam com aquilo que tinham pesquisado e escrito. Agora não, o mestrado acaba religiosamente em dois anos, o doutorado em quatro. Eu me lembro de uma moça que pediu uma prorrogação de dois meses para en­tregar sua tese. Não deram. Ela fez o que pôde e entregou a tese num dia 31 de dezembro. Mas um membro da banca ficou doente, outro viajou, e a defesa só aconteceu em maio. A banca criticou de forma muito pesada os dois últimos ca­pítulos da tese, que considerou mal es­critos, e a moça se defendeu como pôde. Não teve nota alta, por causa do final sofrível. Na hora de se despedir, ela entre­gou à banca os dois capítulos refeitos em janeiro e fevereiro. Estavam impecáveis.

• Mas essas coisas não mudaram à toa, não é professor? -Claro que não. Muitas pessoas passa­vam anos fazendo uma tese. Mas sou contra o rigor excessivo, esse triunfo da

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burocracia. Um dos melhores livros de Fernand Braudel, O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo no tempo de Felipe II, levou 20 anos de pesquisa e publica­ção. Você acha que o professor Sérgio Buarque de Holanda poderia escrever Visão do Paraíso em dois anos?

• Mas a produção acadêmica hoje é mui­to maior do que naquela época ... -É verdade, mas não quer dizer que seja melhor. Não gosto de fazer comparações, porque os tempos são completamente diferentes. Mas alguém consegue acom­panhar tudo o que é publicado? Quem é que garante que as referências bibliográ­ficas de fato foram lidas por quem es­creveu. Sempre há exceções, claro. Tem gente séria em todo lugar. Não somos eruditos mais, a erudição foi acabando. Resta um ou outro erudito. Como é que você detecta uma fraude num artigo que está bem escrito, dentro dos padrões? Vivi essa experiência com um amigo meu. Certa vez ele me disse que tinha publicado o mesmo artigo em oito revis­tas diferentes, mudando apenas o título, o primeiro parágrafo e o último. Nin­guém percebeu que era o mesmo artigo.

• Sua tese de doutoramento foi sobre o Partido Republicano Federal, uma tenta­tiva fracassada de criar um partido nacio­nal logo após a proclamação da Repúbli­ca. Por que se interessou por esse tema? -Eu sempre tive uma preocupação com a falta de partidos no Brasil. Desde quando era criança, nunca conseguia compreender como a UDN e o PSD, que eram antagônicos no plano nacio­nal, podiam estar unidos em Mogi das Cruzes, por exemplo. O Partido Repu­blicano Federal foi escolhido numa con­versa minha com o professor Sérgio Buar­que de Holanda. Ele me disse: "Olha, é um partido que precisa ser recuperado. No fundo é o primeiro partido republi­cano depois da criação da República". Ele sugeriu porque parte do núcleo do­cumental desse partido estava nas mãos dele. Peguei as atas que ele me deu, nos sentamos depois umas duas vezes na casa da rua Buri, onde morava. Ficamos conversando muito e fui atrás da docu­mentação existente no Arquivo Público do Estado. Dona Maria Amélia, a mu­lher do professor, tinha parentes que fo­ram ligados ao partido, então ficou com cartas, documentos. Não foi uma tese

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prolixa. Foi uma tese curta, feita para dar o recado que a documentação per­mitia. Mas foi um partido importante. Durou pouco. Manteve-se por um úni­co governo e não chegou a ser da situ­ação ou da oposição na escola do presi­dente Campos Salles, o que tem muito a ver com a nossa prática política até hoje. Eu ia dizer que a única diferença é o PT. Apesar de tudo ainda o é.

• Sua dissertação de mestrado chamava­se Um estabelecimento agrícola na pro­víncia de São Paulo nos meados do sé­culo 19 ... -Esse é o nome que saiu na Revista de História. Depois foi publicada como Ibi­caba, uma experiência pioneira. A fazen­da Ibicaba é uma primeira experiência com braço livre na mão-de-obra brasi­leira, uma fazenda de café no oeste pau­lista. Até 1840, época em que o senador Vergueiro compra a fazenda e coméça a organizá-la, tinha só escravos. Em 1850, com a proibição da entrada de mão-de­obra escrava, começa a experiência com as primeiras levas de imigrantes alemães e também de portugueses, que na época nem eram considerados imigrantes. É muito bonito ver essa experiência, ver como os administradores confundiam tudo, tratando os imigrantes como se fossem escravos. Aí veio o Thomas Da­vatz, que é um professor alemão, e fez um relatório muito sério sobre a imi­gração alemã em Ibicaba, que depois resultou no livro Memórias de um co­lono no Brasil, publicado na Europa no século 19 e só traduzido em 1954. Foi o professor Sérgio Buarque quem o traduziu.

• E quanto ao futebol? Por que o senhor resolveu estudar o assunto?

-Hoje muita gente na academia estu­da o futebol. Acho que fui o primeiro a fazer. O professor Sérgio Buarque me alertou: "Você vai ser considerado um professor de segundo time por isso". E eu respondia: "Mas o senhor não disse que estudar o povo é o que está faltan­do no Brasil?". Durante muito tempo fui visto como alguém que estudava bo­bagens. Ninguém mais deu um curso de história do futebol na USP como eu fiz, em meados dos anos 1970. Na época, virei uma figura meio folclórica. Apare­ci em reportagens fazendo embaixadi­nhas. Escrevi o livro O que é futebol, para a coleção Primeiros Passos, da Edi­tora Brasiliense, mas ele nunca mais foi reeditado. O Caio Graco Prado me ex­plicou: "Eu pensei que vendesse que nem água, mas o povo não lê sobre futebol, a não ser as manchetes dos jornais': Isso hoje pode ter mudado. Quando dirigia o Arquivo Público do Estado, batalhei muito por um projeto sobre o futebol brasileiro em parceria com o diretor do Museu da Imagem e do Som (MIS), que era o professor Bóris Kossoy. Estão lá 64 entrevistas. Entrevistei o Rivelino, o Gil­berto Tim, entre outros. Eu sempre achei que o que se escreve sobre o futebol no Brasil continua sendo uma história do que aconteceu em São Paulo e Rio, com um pouco de Minas, do Paraná e do Rio Grande do Sul. Queríamos fazer um li­vro sobre a história do futebol brasileiro que falasse de todos os estados, pensa­mos em dividir em 21 capítulos, que era o número de estados da época, cada um escrito por uma pessoa. Não foi adiante porque ninguém quis financiar. Na épo­ca era um tabu. Hoje acho que vingaria.

• E hoje? A bibliografia sobre futebol é insuficiente?

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-Tem muita coisa escrita. Só eu tenho uns 400 livros e não comprei os últimos que saíram. Um dos que melhor tradu­ziu esta paixão brasileira pelo futebol talvez tenha sido Ruy Castro, com o li­vro sobre o Garrincha. Mas atualmente há muitos livros bem-feitos sobre o as­sunto. Mas escrever sobre um tema fas­cinante como este é sempre insuficiente.

• O senhor é são-paulino, não é? -Continuo. Sou são-paulino desde os 9 anos de idade, quando testemunhei a estréia do Leônidas da Silva no Pacaem­bu. Quando foi contratado pelo São Paulo, o Leônidas fez a viagem de trem do Rio para São Paulo e parou em todas as estações do caminho. Eu fui à estação de Guararema vê-lo. Lembro-me dele como um gigante, mas na verdade não era um homem alto. Depois fui pedir para o meu pai: "Olha, o Leônidas vai estrear um dia desses. Me leva lá". Ele disse: "Não prometo nada porque você sabe que não gosto de futebol". Ele relu­tou, mas no final disse: "Eu vou te levar, você é bom aluno. Mas como é que fa­zemos? Eu não gosto de assistir': Com­binamos que ele me deixaria numa rua próxima ao estádio, iria para o cinema e depois nos encontraríamos ali. Me dei­xou lá às 11h30, com dois sanduíches e uma garrafa de guaraná. Era a primeira vez que eu ia a São Paulo e aquele jogo teve um recorde de público, mais de 67 mil pessoas. Fiquei com medo de subir para procurar um lugar na arquiban­cada, eu era muito pequenininho -sou até hoje, mas naquele tempo era magri­nho. Fiquei encostado no alambrado. Depois de algum tempo, senti um to­que. Nunca me esqueço da mão bon­dosa no meu ombro e da frase: "Fique tranqüilo, menino, que você está pro­tegido. Aproveite o jogo". Eram quatro torcedores atrás de mim. Me pergunta­ram qual era o meu time. Eu respondi: "São Paulo". Eram quatro corintianos. Aí um deles me disse: "Então vamos matar você". Era pura brincadeira es­tampada no sorriso de todos. E eles me protegeram mesmo. No final me dis­seram: "Você gastou dinheiro à toa. O Leônidas não jogou nada".

• O senhor dirigiu o Arquivo Público do Estado por 11 anos, entre as décadas 1970 e 1980. Como foi trabalhar para governos tão diferentes como os de Paulo Egydio

Martins, Paulo Maluf e de Franco Mon­tara? - Fui trabalhar lá aos 42 anos. Era a primeira vez que eu atravessava os mu­ros da universidade para agir num mun­do totalmente novo, que é o mundo po­lítico. Três pessoas são responsáveis por esta experiência em minha vida: nova­mente o professor Eurípedes Simões de Paula, o professor Sérgio Buarque de Holanda e, principalmente, a professora Anita Novinsky. O secretário da Cultura do governo Paulo Egydio era o dr. José Mindlin . Ele estava à procura de um substituto para o professor Francisco de Assis Barbosa, de partida para o Rio de Janeiro. Aí, quando ocorreu o assassina­to do jornalista Vladimir Herzog, o dr. Mindlin saiu da Secretaria da Cultura e assumiu em seu lugar o dr. Max Pfeffer. A professora Anita voltou à carga e aí Pfeffer me convidou para ser o diretor do Arquivo. Fiquei 11 anos, durante qua­tro governos e sete secretários. Minha maior medalha na vida eu tive quando saiu o governador Paulo Maluf e entrou o professor Franco Montoro. Montoro recebeu um abaixo-assinado, encabe­çado por dom Paulo Evaristo Arns, di­zendo que eu não devia ser substituído, que eu era um homem da USP e estava fazendo um bom trabalho. O novo se­cretário, o ex-deputado Pacheco Cha­ves, me chamou para conversar. Depois reuniu os assessores e disse "Esse é o professor Witter. É o único que fica. Te­nho certeza de que saio antes dele".

• Foi o que aconteceu? -Sim. Eu só saí no governo Quércia. A nova sede do Arquivo, perto do Termi­nal Rodoviário do Tietê, foi idealizada na minha gestão. O projeto foi adiante no governo Covas. Sempre critiquei muito o governador Mário Covas, pois sua teimosia era conhecida em todas as esferas do poder. Mas ele deu o maior exemplo de ética que já vi. Tirou o pro­jeto do novo prédio do papel, mas que­ria fazer algumas mudanças. Fui cha­mado pelo então secretário, o deputado Marcos Mendonça e por Zélio Alves Pinto, diretor do Departamento de Mu­seus e Arquivos, para ver se eu concorda­va com as mudanças que iam ser feitas, porque não havia dinheiro para fazer tudo. Nunca vi isso acontecer. Concor­dei, mas sugeri que eles deixassem ali­cerces para permitir que o arquivo cres-

cesse. Até agora fico feliz por saber que existiram e existem pessoas com ética. Atualmente muito poucas, é verdade ...

• O senhor também teve passagem pela direção do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e pelo Museu Paulista, mais conhecido como Museu do Ipiranga ... -O IEB também tem a minha marca. Foi na minha gestão, entre 1990 e 1994, que o instituto conseguiu sua sede nova. Funcionava em dois andares de um pré­dio. E eu conquistei umas seis ou sete colméias ao lado do Crusp, onde estão a direção, a biblioteca, os espaços de ex­posição. Lá no IEB tem um grande pai­nel que a Tomie Ohtake deu para mim. Tenho o maior orgulho de a Tomie me reconhecer em qualquer lugar, ela está com 90 e tantos anos. Ela sempre fala: "Professor Witter, jamais esquecerei que o senhor abriu as portas da USP para mim': No Museu Paulista, tive o privilé­gio de coordenar uma grande reforma. A FAPESP e a iniciativa privada, com o apoio da Fiesp, sob o comando do Car­los Eduardo Moreira Ferreira, permiti­ram que quase todos os projetos fossem realizados. Também foi possível levar para o museu a coleção de O Estado de S. Paulo, um presente da família Mes­quita. O Jornal da Tarde também. Há uma outra realização marcante na mi­nha gestão. Falo da iluminação da fa­chada do prédio. Isso só foi possível pela atuação de Herman Wever, então na Sie­mens. Quando a iluminação foi inau­gurada, num dia bonito e memorável, eu deixei o museu e a USP. Era minha aposentadoria que começava, em 9 de novembro de 1999. A saudação da des­pedida foi feita pelo reitor, na época o professor Jacques Marcovitch.

• Como foi retornar para a cidade de Mogi das Cruzes? - Gostei muito de voltar para Mogi. Pude reencontrar muitos amigos. É qua­se um reviver da infância e da juventu­de. O melhor de tudo foi dar continuida­de às minhas atividades como professor e acadêmico. Além delas, pude retomar também meu lado jornalístico como es­critor de crônicas no jornal O Diário de Mogi. Tenho, no mesmo jornal, uma pá­gina dedicada a comentários de livros. Agora eu encontro gente na rua que nunca me viu, gente simples, que vem falar comigo sobre minha coluna. •

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O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

■ Talentos seguem bem-vindos

Sob forte pressão de universi- dades norte-americanas, o De- partamento de Comércio dos Estados Unidos desistiu de lançar normas que tornariam mais complicada a contratação de cientistas estrangeiros. No lugar das restrições foi criado um comitê com representan- tes do governo, da indústria e da academia para discutir po- líticas capazes de impedir que tecnologias sensíveis caiam em mãos erradas. A decisão, se- gundo o site da revista Science, permite que as universidades continuem a admitir cientis- tas estrangeiros sem precisar de licenças especiais. A pro- posta abandonada determina- va que seriam necessárias tais licenças para contratar pesqui- sadores de diversos países, in- cluindo-se aí a profusão de es- tudantes e profissionais da China, índia e Rússia. •

Os petrodólares da ciênci

í A i

O Catar, país do golfo Pérsi- co com território menor que o do estado de Sergipe, quer virar referência em ciência e tecnologia no mundo árabe. O monarca do país, o emir Hammad bin Khalifa Al- Thani, anunciou que desti- nará um naco dos rendimen- tos com a venda de petróleo para a pesquisa e convidou 200 cientistas árabes radica- dos em diversos países para

■ Proteção contra o aquecimento

Uma parceria anglo-cana- dense vai disponibilizar US$ 60 milhões para financiar pesquisas que ajudem os paí- ses africanos a enfrentar os efeitos do aquecimento glo- bal. O Programa de Adapta- ção às Mudanças Climáticas

discutir formas de aplicar o dinheiro. "Isso estimulará os países vizinhos a lançar pro- jetos semelhantes", disse à revista NarwreHilal Lashuel, neurocientista do Iêmen ba- seada no Instituto Federal de Tecnologia da Suíça, em Lau- sanne. O fundo para pesqui- sa deve alcançar a casa das centenas de milhões de dóla- res por ano. A principal estra- tégia é atrair cérebros de ou-

na África é uma parceria en- tre o Centro Internacional de Pesquisa e Desenvolvimento (IDRC), do Canadá, e o De- partamento de Desenvolvi- mento Internacional do Rei- no Unido. A presidente do IDRC, Maureen 0'Neil, disse à agência canadense CNW que o programa será liderado "por africanos e para africa-

tros países. O governo criou uma universidade, a Cidade da Educação, nos arredores da capital Doha, que tem um parque tecnológico aberto a laboratórios de grandes uni- versidades. O Catar oferece recursos e instalações. Tudo o que instituições como o Imperial College de Londres e a Universidade de Tóquio tiveram de fazer foi trazer seu pessoal. •

nos". Entre as áreas-alvo, des- taca-se a preparação de cida- des para enfrentar secas, en- chentes e epidemias - eventos extremos que tendem a se tor- nar mais freqüentes. O IDRC vai administrar o programa e a distribuição de fundos e su- pervisionar os projetos de es- critórios regionais no Egito, Quênia e Senegal. •

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■ Diplomacia em órbita

O governo dos Estados Uni- dos colocou a Nasa a serviço de sua política externa. No início do ano, o presidente George W. Bush encontrou-se com líderes da China e da índia e, dessas conversas, saiu a promessa de cooperação es- pacial. Um deles já saiu do pa- pel. Segundo a agência Asso- ciated Press, a Organização de Pesquisa Espacial da índia e a Nasa assinaram um acordo em torno da missão Chandra- yaan-1, primeira investida in- diana na Lua. A sonda não- tripulada deve ser lançada no

■ Vida nova para o navio peruano

A Alemanha concedeu ao go- verno do Peru um crédito de €2 milhões para reformar e modernizar o Alexander von Humboldt, principal navio de pesquisa científica perua- no. Segundo a agência de no- tícias EFE, o empréstimo per- mitirá reformar o motor do navio e implementar um

início de 2008. O acordo pre- vê a instalação de dois instru- mentos da Nasa: um para ma- pear recursos minerais, outro para procurar gelo nos pólos. Não é a primeira vez que a Nasa torna-se apêndice da di- plomacia. A acoplagem no es- paço entre uma nave Apollo e uma Soyuz, em 1975, ajudou a arrefecer a Guerra Fria. •

novo sistema de comunicação marítimo, entre outras ferra- mentas. O navio dispõe de laboratórios de pesquisa em recursos pesqueiros, oceano- grafia e meteorologia. Tam- bém é usado para transportar pesquisadores para a estação peruana na Antártida. O Ale- xander von Humboldt foi adquirido nos anos 1970,

também com financiamento alemão. A costa sul-america- na do Pacífico, o Peru inclusi- ve, foi o destino de uma das mais importantes viagens do naturalista germânico Ale- xander von Humboldt (1769- 1859).

■ Royalties para a inovação

Cerca de US$ 80 milhões que o Chile arrecadará de empre- sas mineradoras em 2006 se- rão destinados à inovação tecnológica. Segundo a agên- cia de notícias SciDev.Net, os fundos serão distribuídos por meio de duas agências de fo- mento do governo, a Corpo- ração de Fomento à Produ- ção e a Comissão Nacional de Pesquisa Científica e Tecno- lógica. Significarão um au- mento, respectivamente, de 20% e 65% nos orçamentos das duas instituições. Um dos enclaves de mineração mais disputados do mundo, o Chi- le decidiu em 2005 criar um imposto de 3% sobre as ven- das de mineradoras privadas, a título de royalties. •

Agricultura made in China Cerca de 3 mil pesquisa- dores chineses do campo das ciências agrárias pas- sarão três anos trabalhan- do em comunidades ru- rais de países do Terceiro Mundo, num esforço para melhorar a segurança ali- mentar de populações po- bres. A decisão é fruto de uma parceria entre o go- verno da China e a FAO, o braço das Nações Unidas para Agricultura e Ali- mentação. "Os chineses têm muito a ensinar a ou- tros países, pois há séculos aprenderam a praticar uma agricultura intensiva em pedaços restritos de terra", disse à agência de notícias SciDev.Net Tesfai Tecle, o diretor-geral de cooperação técnica da FAO. Os pesquisadores e técnicos chineses irão compatilhar tecnologias relacionadas à irrigação, agronomia, pesca e cria- ção de animais, entre ou- tras. Os países-alvo serão selecionados a partir de uma lista de beneficiários potenciais compilada pela FAO. A China já faz traba- lho semelhante em pelo menos 20 países da Ásia e da África, para onde enviou 700 especialistas e técni- cos em agricultura. •

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Estratégias Mundo

Rebelde com causa Laurie Pycroft, um adoles- cente britânico de 16 anos, tornou-se o líder de uma mo- bilização contra grupos extre- mistas dos direitos dos ani- mais na Inglaterra que tentam evitar a construção de um la- boratório de pesquisa biomé- dica em Oxford. Pycroft criou um movimento, o Pro-Test, que defende a construção do

laboratório e o uso de animais em pesquisa. Conseguiu reu- nir 800 pessoas num protesto próximo ao lugar onde se quer criar o laboratório. A ini- ciativa é uma resposta a dois anos de protestos de antivivi- seccionistas e de atos de van- dalismo reivindicados pelo grupo extremista Frente pela Libertação dos Animais. Py- croft já recebeu mais de 30 e- mails com ameaças, algumas de morte, e conhece o perigo que está correndo. Os ecoter-

roristas já colocaram bombas em carros de cientistas e de- predaram suas casas. No caso do laboratório de Oxford, lis- taram as empresas que finan- ciam a universidade e amea- çam atacar cada uma delas. "O sofrimento de alguns ani- mais pode ajudar a melhorar a qualidade de vida de mi- lhões de pessoas", disse Py- croft ao jornal The Daily Tele- graph. Filho de uma escritora e de um engenheiro, Pycroft quer estudar medicina em Oxford. •

■ Repercussão no acesso aberto

Artigos científicos publicados em jornais de acesso aberto têm impacto maior e são ci- tados com mais freqüência do que estudos de leitura paga, mostra pesquisa reali- zada por Gunther Eysenbach, da Universidade de Toronto, Canadá. Eysenbach monito- rou o número de vezes que 1.492 artigos publicados no jornal eletrônico Proceedings of the National Academy of Sciences foram citados em es- tudos posteriores. O jornal tem um modelo híbrido. O conteúdo é restrito a assi- nantes. Mas os autores podem tornar seus artigos disponí- veis gratuitamente na inter- net, se pagarem por isso. Do total de artigos estudados, parte tinha acesso aberto e a outra parte não. Eysenbach constatou que os de acesso aberto foram citados duas ve- zes mais que os outros papers no período de 4 a 10 meses após sua divulgação. •

http://www.thecephalopodpage.org/ A página traz informações científicas e perfis de vários tipos de cefalópodes, classe de moluscos que reúne lulas e polvos.

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sca ae novas parce A Empresa Brasileira de Pes- quisa Agropecuária (Em- brapa) procura parceiros pri- vados para criar empresas de propósito específico, pre- vistas na nova lei de inova- ção. A Embrapa vai oferecer aos sócios centenas de tec- nologias patenteadas, além do conhecimento de seus pesquisadores e sua infra- estrutura. Do setor privado,

espera contrapartida em in- vestimentos, estrutura de produção e canais de distri- buição. Uma das frentes é a criação de uma empresa na área da agroenergia. "Os po- tenciais sócios da Embrapa nessa empreitada são o Banco do Brasil, a Compa- nhia Vale do Rio Doce, a Itaipu Binacional, a Petro- bras e o BNDES", disse Sil-

vio Crestana, presidente da empresa. "Temos que criar novas formas de trabalhar- mos juntos, em consórcios, em sociedades", afirmou. O limite de participação de empresas estatais nesses ar- ranjos é de 49% das ações. A meta da Embrapa ao atrair parceiros privados é aumen- tar seu orçamento em R$ 200 milhões por ano. •

■ Programa em gestação

O Ministério da Ciência e Tec- nologia (MCT) lançou o site da Semana Nacional de Ciên- cia e Tecnologia de 2006 (www. semanact2006.mct.gov.br). A iniciativa está aberta à partici- pação de qualquer instituição de pesquisa, escola, universi- dade, entidade, grupos ou ao público em geral em todo o país. Os eventos estão progra- mados para o período de 16 a 23 de outubro. O tema é Cria- tividade e Inovação, tendo co- mo pano de fundo a comemo- ração do centenário do vôo do 14-Bis, de Alberto Santos-Du- mont. As atividades idealizadas por professores, pesquisado- res e instituições precisam ser cadastradas no site, para que o público tome conhecimento do que está sendo feito e para

que as coordenações regionais e a organização nacional da semana possam acompanhar os trabalhos e divulgá-los. Pa- lestras também precisam ser inscritas. Só será aceito o regis- tro de atividades gratuitas. •

■ Setenta anos de história

O livro USP 70 anos-Imagens de uma história vivida, apre- senta em 703 páginas alguns dos momentos mais impor-

A primeira obra da trilogia: histórias e

depoimentos

tantes da principal universi- dade pública do país desde a sua fundação. O trabalho de pesquisa foi feito pelo Centro Interunidade de História da Ciência da USP e organizado por Shozo Motoyama, diretor do centro e professor da Fa- culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. A Edusp co-edita a obra, a primeira de uma trilogia sobre a história e a importância da instituição. O livro narra a formação dos diversos campi e unidades que hoje compõem a universidade paulista e traz 32 entrevistas com professores que molda- ram a história recente da ins- tituição, sendo 8 reitores, 4 vice-reitores e 20 pró-reitores. O lançamento ocorreu no dia 18 de maio numa solenidade realizada no anfiteatro Ca- margo Guarnieri, na Cidade Universitária. •

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O empresário e bibliófilo José Mindlin, de 91 anos, assinou o termo de doação à Universidade de São Pau- lo (USP) de parte de sua Biblioteca Brasiliana, con- siderada o mais valioso acervo bibliográfico de ca- ráter privado no Brasil. A coleção de mais de 15 mil volumes ficará abrigada na Biblioteca Mindlin, no fu- turo prédio do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) na Cidade Universitária, cuja construção deve ter- minar em 2009. A doação reúne clássicos da literatu- ra brasileira, história, geo- grafia e história natural, além de exemplares raros, como a primeira edição de O guarani, de José de Alen- car, a revisão de Grande sertão: veredas, de Guima- rães Rosa, obras do século 17 de viajantes europeus ao Brasil e livros da época da presença holandesa em Pernambuco. "Confio a guarda dessa floresta à USP. Além de todos os traba- lhos que envolvem a reito- ria dessa universidade, es- tou lhe trazendo mais um: o de guarda-florestal", dis- se Mindlin na cerimônia de assinatura de doação, dirigindo-se à reitora da USP, Suely Vilela.

Estratégias Brasil

Células-tronco revisitadas O simpósio "Células tronco adultas e embrionárias: A pes- quisa antes do tratamento" acontece no dia 9 de junho no anfiteatro da Botânica, no Ins- tituto de Biociências da Univer- sidade de São Paulo (USP). Profissionais que desenvol- vem pesquisas na área vão apresentar seus dados e discu- tir as perspectivas do uso de terapias com as células-tron- co. O simpósio é coordenado pela pró-reitora de Pesquisa da USP, Mayana Zatz, pelas professoras Maria Rita Passos- Bueno, da USP, e Irina Kerkis, do Instituto Butantan. •

■ Morre o professor Paiva

Antônio Cechelli de Mattos Paiva, professor titular do De- partamento de Biofísica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), morreu no dia 18 de maio, aos 76 anos, vítima de câncer. Paiva foi vice-diretor da Escola Paulista de Medicina (EPM) e profes- sor das universidades de São Paulo (USP) e Estadual de Campinas (Unicamp). Na FA- PESP, foi coordenador adjun- to da área de biologia e saúde e membro da comissão de supervisão do Projeto Ge-

< noma Fun- < 1 cional da = Xylella fasti-

diosa. Até ju- nho de 2003, ele integrou o conselho editorial de

Pesquisa FAPESP. Após con- cluir o doutorado na Escola Paulista, fez o pós-doutora- mento na Universidade de Utah. Atuou como professor visitante nas universidades de Cornell e do Colorado. Era membro da Academia Brasi- leira de Ciências e das acade- mias de ciências do Estado de São Paulo e da América Lati- na. Presidiu a Sociedade Bra- sileira de Bioquímica, a Pan American Association of Bio- chemical Societies e a Socie- dade Brasileira de Biofísica. •

■ A biologia do envelhecimento

O Conselho Nacional de De- senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lançou chamada pública para apoio a pesquisas direcionadas ao estudo do envelhecimento populacional e à saúde do idoso. As inscrições vão até 18 de junho. O edital conta com recursos de R$ 6 milhões do Fundo Setorial de Saúde e do Ministério da Saúde e con- templa quatro linhas: biologia do envelhecimento, geriatria, gerontologia clínica e estudos sobre funcionalidade e fragili- dade na atenção à saúde do idoso. Cerca de 30% do valor global será destinado a proje- tos nas regiões Norte, Nordes- te e Centro-Oeste. •

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■ A Carta de Belo Horizonte

Reunidos na capital mineira no início de maio, represen- tantes do Conselho Nacional de Secretários Estaduais para Assuntos de Ciência e Tecno- logia (Consecti) e do Conse- lho Nacional das Fundações de Amparo à Pesquisa (Con-

Apoio à Pesquisa em Empresa (Pappe). Os signatários pedi- ram empenho do MCT na implementação de uma nova rodada de chamadas dessa modalidade de apoio. Os ou- tros dois pontos também pas- sam pela aproximação entre as esferas envolvidas com o avanço da ciência e tecnolo- gia no Brasil. Num deles, se-

fap) divulgaram a Carta de Belo Horizonte, documento enviado ao Ministério da Ciên- cia e Tecnologia (MCT) com três reivindicações. A primei- ra delas está relacionada à se- gunda edição do Programa de

cretários estaduais e dirigen- tes das FAPs pediram que programas como o biodiesel, ou outros igualmente estraté- gicos, sejam estimulados. O terceiro ponto pede a inclusão do Consecti e do Confap no

Amazônia, a floresta assassinada

Conselho Diretor do Fundo Nacional de Desenvolvimen- to Científico e Tecnológico (FNDCT).

■ Segunda fornada

Em novembro do ano passa- do, as editoras Mostarda e Terceiro Nome lançaram uma série de nove livros, na maio- ria sobre temas ligados à ciên- cia e tecnologia, escritos por jornalistas brasileiros. A boa aceitação da coleção Repórter Especial levou a dupla de edi- toras a publicar agora mais dez títulos. Entre eles, desta- cam-se Robô, o filho pródigo, de Heitor Shimizu, Amazônia, a floresta assassinada, de Sér- gio Adeodato, Cérebro, a ma- ravilhosa máquina de viver, de Alessandro Greco, Células- tronco - Esses 'milagres' mere- cem fé, de Martha San Juan França, e Efeito estufa - Por que a Terra morre de calor, de Fátima Cardoso. O preço mé- dio de cada livro da coleção é de R$ 16. •

Novos volumes da coleção: temas ligados à ciência

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POLÍTICA CIENTIFICA E TECNOLÓGICA

A teia envolve o cérebro

Programa ClnAPCe promove articulação inédita para mapear a epilepsia

FABRíCIO MARQUES

omeça a funcionar até o início de 2007 o mais ar- ticulado esforço de pes- quisa já realizado no país na compreensão do fun- cionamento do cérebro. Trata-se do programa ClnAPCe (sigla para Cooperação Interinstitu- cional de Apoio à Pesqui- sa sobre o Cérebro e uma alusão ao homófono si-

napse, o local de contato entre os neurô- nios), uma rede que reúne três dezenas de grupos em seis instituições paulistas, de áreas diversas do conhecimento que vão da neurologia à computação, da físi- ca à genética. O ponto de partida do pro- jeto é a aquisição de quatro máquinas de ressonância magnética de alto campo, dotadas do dobro da potência dos apare-

lhos de geração an- terior existentes no Brasil. Combinadas com outras ferra- mentas, essas má- quinas abastecerão um grande estudo sobre os mecanis- mos da epilepsia na população brasilei- ra, também voltado para o desenvolvi- mento de métodos de investigação cien- tífica e de diagnósti- co, prevenção e tra-

tamento da doença. Nos próximos quatro anos, o projeto vai propiciar treinamento e formação de pelo menos 300 pesquisa- dores, sendo 30 pós-doutores, 100 douto- res, 50 mestres, 100 alunos de iniciação científica e 20 técnicos.

Os aparelhos de ressonância magnéti- ca de alto campo permitem obter imagens do cérebro com definição e resolução espa- cial muito maiores do que as disponíveis atualmente. Também viabilizam a obten- ção de imagens num período de tempo bem mais curto. Hoje existe uma limita- ção para realizar exames muito longos, pois a colaboração dos pacientes dentro do claustrofóbico equipamento de resso- nância resiste até um determinado ponto. Com as novas aquisições, um conjunto de exames que demorariam duas horas - e que, por isso, eram inviáveis - poderá ser feito em no máximo 40 minutos.

Cada equipamento de alto campo cus- ta cerca de US$ 2 milhões. Um deles já foi adquirido pelo parceiro privado da rede, o Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa, vinculado ao Hospital Albert Einstein, de São Paulo. As outras três máquinas serão adquiridas com financiamento da FA- PESP e chegarão ao país até o final do ano. Vão ser instaladas na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, na Facul- dade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), na capital, na Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto (FMRP). "Os hospitais dessas instituições concentram uma casuística de epilepsia que poucos centros do mundo dispõem para estudar", diz o neurologista Fernan- do Cendes, chefe do Laboratório de Neu- roimagem da FCM-Unicamp, um dos idealizadores do projeto.

Capacidade multiplicada - Com máqui- nas semelhantes, as quatro instituições conseguirão trabalhar simultaneamente em protocolos de pesquisa. A capacidade de recrutar pacientes de cada um dos qua- tro hospitais será multiplicada com o traba- lho em grupo. "A decisão de comprar apa- relhos idênticos resultou justamente da intenção de estimular o trabalho conjun- to", diz Luiz Eugênio Mello, pró-reitor de Graduação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), também um dos coorde- nadores do programa. "Uma sinergia dessa magnitude não seria atingida de outra for- ma", afirma.

A ressonância magnética permite cap- tar imagens de vários tipos, desde a anato- mia do cérebro até seu caráter funcional. A base teórica do método é a detecção da radiação eletromagnética emitida por nú- cleos atômicos submetidos à ação de um campo magnético intenso e previamente excitados por pulsos de radiofreqüência. As substâncias branca e cinzenta do cére- bro possuem diferentes propriedades e concentrações de prótons de hidrogênio. Isso confere aos sinais detectados as con- dições de contraste necessárias para a de- finição das estruturas anatômicas. Tam- bém é possível estudar o metabolismo e o funcionamento cerebral através da espec- troscopia por ressonância magnética, ca- paz de dimensionar a presença de meta- bólitos e neurotransmissores cerebrais. Já a ressonância magnética funcional detec- ta áreas de maior fluxo sangüíneo e con- sumo de oxigênio acoplado à ativação de

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determinadas regiões cerebrais especí- ficas, o que permite mapear o funcio- namento do cérebro durante a execu- ção de determinada tarefa. A resolução do sinal depende do campo magnético da ressonância magnética e, portanto, o uso de alto campo propicia maior sen- sibilidade.

A chegada dos novos apare- lhos nem de longe significa que outros equipamentos não serão utilizados. Ao contrário, o pro- grama busca incentivar a pes- quisa sobre o uso combinado de tecnologias com o objetivo de desenvolver ferramentas de diagnóstico melhores. Uma dessas linhas de investigação, para citar um exemplo, é o uso combinado da ressonância mag- nética funcional com o eletro- encefalograma (EEG). Enquanto a res- sonância pode fornecer imagens do cérebro durante uma crise de epilep- sia, o EEG, com eletrodos em diferen- tes pontos da cabeça, é capaz de infor- mar o momento exato em que a crise começou. O uso conjunto das tecnolo- gias é desejável, mas há problemas téc- nicos que os pesquisadores do progra- ma CInAPCe tentarão superar com o uso de modelos animais. O principal deles é que os campos magnéticos dos eletrodos do EEG interferem na sensi- bilidade da ressonância.

Um método que será pesquisado é o Diffusion Tensor Imaging (DTI), que permite estudar as conexões entre áreas diferentes do cérebro através de mapea- mentos constantes feitos por compu- tador. Por meio dele, o cérebro é trans- formado em uma rede de fibras nervosas que conecta pedaços diferen- tes de seu território. "Com as novas máquinas será possível trabalhar nessa área de ponta", diz Luiz Eugênio Mello.

Outros arranjos também serão utili- zados de forma articulada, como siste- mas combinados como o da ressonância funcional (fMRI) com a eletroencefa- lografia (EEG), ou da EEG com a mag- netoeletroencefalografia, entre outros. "Técnicas como essas, no estágio em que se encontram, são já extremamente úteis para o estudo do cérebro, algumas com ampla aplicação clínica. Todas se encontram em franco desenvolvimen- to e existe um grande esforço científico

arranjos em que essas técnicas são combinadas para aquisição simultânea de dados", diz Roberto Covolan, pro- fessor do Instituto de Física Gleb Wa- taghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que também coordena o programa.

xistem três empresas no mun- do que fabricam aparelhos co- merciais de ressonância mag- nética de alto campo: a General Electric, a Philips e a Siemens. Cada grupo terá liberdade para comprar de quem julgar mais adequado, desde que os equipamentos possam operar em rede. Os pesquisadores do programa CInAPCe compra- rão os equipamentos das em- presas que permitirem a mani-

pulação e aperfeiçoamento dos softwares por profissionais brasileiros. O contra- to de parceria permitirá criar compe- tência nacional e adequar as técnicas às necessidades da pesquisa. Isso aten- de a um dos grandes objetivos do pro- jeto, que é promover o desenvolvimen- to tecnológico. No campus da USP em São Carlos será construído um quinto equipamento de ressonância, esse para estudo de modelos experimentais em ratos e primatas não-humanos. O estu- do fisiológico desses modelos será feito pela Universidade Federal de São Pau- lo (Unifesp), que tem tradição em pes- quisa básica da epilepsia. Num exem- plo da articulação, um achado da rede de máquinas de ressonância poderá ser testado num modelo experimental pelo grupo de São Carlos e o tecido do cérebro animal, em seguida, será enca- minhado para a Unifesp, para estudos fisiológicos.

Internet avançada - Embora situadas em cidades distantes, todas essas equi- pes trabalharão simultaneamente no ambiente virtual, pois estarão interli- gadas por rede óptica de altíssima velo- cidade inaugurada no ano passado, o projeto KyaTera (Plataforma Óptica de Pesquisa para o Desenvolvimento da Internet Avançada). Como a quantida- de de dados gerada será muito grande, a rede rápida permitirá sua transmis- são de forma efetiva e segura. O im- pacto da rede na formação de recursos

e tecnológico no sentido de estabelecer humanos será ponderável, segundo os

organizadores do CInAPCe. "Os pes- quisadores de diversas áreas vão atuar juntos e em rede, num ambiente novo, em que um terá de se esforçar para compreender a linguagem do outro", afirma Colovan. "A rede permitirá que todos os estudantes de pós-graduação das diferentes instituições tenham trei- namento, por meio de videoconferên- cia, com os melhores especialistas de cada grupo - o que não aconteceria sem a rede", diz Luiz Eugênio Mello. "Se a pesquisa da epilepsia já era uma área forte no Brasil, isso a tornará mais for- te ainda", completa.

Fatores múltiplos - Outra das preocu- pações do CInAPCe é a divulgação cien- tífica. Por isso haverá uma articulação com a Aspe (Assistência à Saúde de Pa- cientes com Epilepsia), que integra uma campanha global liderada pela Organização Mundial da Saúde cujo objetivo é propagar informações sobre a epilepsia e promover o acesso a trata- mentos adequados.

Houve um notável progresso na pesquisa em epilepsia na última déca- da, impulsionado pelos avanços nos métodos não-invasivos de obtenção de imagens do cérebro. Mas questões fun- damentais relacionadas à doença ainda não foram esclarecidas. Na verdade, não se trata de uma doença única. Sob o rótulo de epilepsia há uma variedade de patologias que interferem na dinâ- mica cerebral e têm como denomina- dor comum a eclosão recorrente de crises. "Essa multiplicidade de fatores mostra a necessidade de se articular especialistas de diferentes áreas traba- lhando num projeto comum", explica Fernando Cendes. A complexidade da atividade cerebral requer um esforço de pesquisa de caráter multidiscipli- nar. Por isso os centros mais avançados de países como os Estados Unidos esti- mulam a colaboração entre pesquisa- dores das ciências exatas, tecnológicas e biomédicas no estudo dos processos cerebrais. A meta sempre é buscar no- vas respostas sobre a dinâmica cere- bral e aprimorar as ferramentas já existentes.

O programa CInAPCe começou a ser gestado no final dos anos 1990, com um objetivo mais amplo e um espectro de pesquisadores mais restrito. A idéia original era criar uma rede de pesquisa

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interdisciplinar dentro da Unicamp para adquirir tecnologia de ponta e es- tudar a dinâmica cerebral. "A comple- xidade inerente à atividade cerebral re- quer que a pesquisa nessa área cubra um amplo espectro de atividades, utili- zando desde técnicas recentemente de- senvolvidas pela genética molecular até sofisticados métodos para mapeamen- to funcional do cérebro humano", diz Covolan. A intenção de restringi-lo à Unicamp foi posta de lado no ano 2000, quando os principais articuladores do projeto, os professores Covolan e Cen- des, apresentaram a idéia ao então pre- sidente da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, hoje diretor científico da Fundação, e ao diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Mário Saad. Foram aconselhados a envolver mais instituições e a criar uma rede de pesquisa além dos limites da Unicamp. Procuraram outras universidades e, no final daque- le ano, lançaram a idéia da rede estadual.

Escolha natural - Já o objeto de estudo foi limitado para tor- nar o projeto mais tangível. A escolha do tema epilepsia foi natural. A doença era o assunto mais estudado pelos partici- pantes do projeto. Ao mesmo tempo, a escolha não comprometia a idéia original. "Uma boa parte do que os pesquisadores aprenderam sobre as áreas do cérebro, como as responsáveis pelo movimento e pela linguagem, foi a partir de cirurgias de epilepsia", diz Cendes. "O mapeamento de funções corticais antes e durante a cirurgia de epilepsia oferece uma oportunidade única de estudar as funções cerebrais in vivo. Situações em que a epilepsia também altera a memória permitirão buscar respostas sobre o próprio pro- cesso de formação da memória", expli- ca ele.

A epilepsia ataca 1% da população mundial, sendo que 80% dela vive em países em desenvolvimento. A incidên- cia maior em nações pobres é atribuída a razões variadas, desde a casuística elevada de doenças infecciosas que afe- tam o cérebro, como é o caso da neuro- cisticercose e a meningite, às lesões na cabeça provocadas por acidentes de au- tomóvel e complicações no parto.

Em 2001 o programa foi levado à FAPESP, mas precisou superar dois obstáculos. O primeiro foi a explosão da cotação do dólar em 2002, que obri- gou a Fundação a congelar importa- ções por um período de tempo. No fi- nal de 2003 a situação normalizou-se e o projeto retomou seu curso. O segun- do desafio foi estabelecer uma confi- guração ideal para uma iniciativa de caráter inédito e multidisciplinar. Não foi uma tarefa fácil. Foi preciso chegar a um acordo, por exemplo, sobre o tipo de máquina que deveria ser com- prado. Até que se alcançasse um con- senso sobre ter quatro máquinas de alto campo idênticas trabalhando em rede outros tipos de equipamentos fo- ram cogitados, como o magnetoence- falógrafo ou a tomografia por emissão de pósitrons, mas postos de lado.

rês avaliadores internacionais, Brian Meldrum, professor de neurologia experimental do King's College, de Londres, Bru- ce Pike, do Centro de Imagem do Cérebro McConnell, em Montreal, e Ana Nobre, da Uni- versidade de Oxford, auxilia- ram a criar diretrizes. "A dis- cussão girou em torno do arranjo que renderia melhor para todos. Alguns grupos ti-

nham experiência e interesse em certas tecnologias e foi preciso alcançar um consenso", diz Luiz Eugênio Mello. Cada instituição participante deveria contar com um pesquisador da área de ciências exatas e outro da área de bio- lógicas no comando de cada proposta, pré-requisito para garantir a multidis- ciplinaridade.

O longo tempo usado no desenvol- vimento do projeto não foi desperdiça- do. Durante esse período, ele foi discu- tido à exaustão entre seus participantes. "Foi um tempo de noivado antes do ca- samento que permitiu que todos nos conhecêssemos", diz Fernando Cendes. "Fomos aprendendo a falar uma mes- ma linguagem. É um projeto que já nasce amadurecido." O programa foi idealizado para durar quatro anos. Mas a idéia é que, ao final desse período, desdobre-se em diversos projetos sobre a dinâmica cerebral que se beneficiem da expertise e da infra-estrutura desen- volvidas para o programa CInAPCe. •

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

Jatropha curcas: pinhão Allamanda puberula: mate Euterpe oleracea: açaí

PROPRIEDADE INDUSTRIAL

Seguro contra roubo Governo divulga lista de 3 mil espécies vegetais brasileiras para evitar apropriação de seus nomes no exterior

28 • JUNHO DE 2006 • PESQU ISA F'APESP 124

scritórios de registras de marcas e patentes de diversos países recebe­rão um software com uma lista de 3 mil nomes científicos de espé­cies vegetais tradicionais do Brasil, como cacau, pinhão, umbu, cajá, cupuaçu, maracujá, açaí, acácia, araucária, macela-da-terra e cane­la-de-cheiro. O objetivo é evitar registras de marcas de produtos típicos brasileiros por empresas de má-fé, que bloqueiem o acesso do

país a mercados internacionais. A lista é resultado de dois anos de trabalho do Grupo Interministe­rial de Propriedade Intelectual (Gipi), que reuniu representantes de oito ministérios. A idéia de criar um índice de espécies nacionais surgiu após uma batalha judicial travada pelo governo brasileiro contra a empresa nipônica Asahi Foods, que conse­guira registrar a marca cupuaçu e bloquear a venda de produtos brasileiros feitos com a fruta tropical de sabor exótico nos mercados do Japão, dos Esta­dos Unidos e da Europa. Quem quisesse usar o nome teria de pagar um pedágio à companhia ja­ponesa. Uma parceria entre a diplomacia brasileira e organizações ambientalistas conseguiu cancelar o registro na Justiça japonesa, mas o caso mostrou a necessidade de prevenir novas investidas.

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,--------------------------------------------------------------, ., § be. Uma análise da lista mostra que seu

Theobroma grandiflorum: cupuaçu

De posse da lista de 3 mil nomes, os escritórios de marcas poderão saber se há apropriação de nomes comuns associados à biodiversidade existente no Brasil quando um pedido for reque­rido. "Todas as legislações de marcas respeitam nomes naturais ou palavras comuns como não sendo registráveis como marca naquelas categorias a que elas se referem. Não se trata de uma inovação na legislação, mas de uma in­formação adicional para permitir que o exame do registro seja bem executa­do", afirma Roberto Jaguaribe, presi­dente do Instituto Nacional da Proprie­dade Industrial (INPI). "O interesse é mútuo. Nós queremos evitar que mer­cados se fechem para os nossos produ­tos. Já os escritórios têm como missão impedir que seus consumidores sejam obrigados a comprar produtos de em­presas que obtiveram exclusividade abusiva de um direito", diz. A relação também será encaminhada a organis­mos internacionais como a Organiza­ção Mundial da Propriedade Intelec­tual (Ompi) e a Organização Mundial do Comércio (OMC).

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Caryocar brasiliense: pequi

A lista do Gipi foi apresentada em 22 de maio, o dia mundial da biodiver­sidade, mas seus efeitos vinculam-se mais ao respeito à propriedade indus­trial do que à prevenção da biopirataria. A relação de nomes se limita a espécies vegetais, que efetivamente têm valor co­mercial. "Em casos de espécies animais, o valor comercial dos nomes é reduzido ou insignificante", diz Roberto Jaguari-

:::> conceito de biodiversidade brasileira é ~ ., elástico. Lá constam nomes de espécies ~ de enorme interesse comercial que não ~'"~ são nativas do Brasil, como é o caso do ~ café. Por fim, a lista restringe-se ao re-

gistro de marcas e não tem serventia, por exemplo, para enfrentar denúncias de patenteamentos indevidos, como o registro por uma empresa norte-ameri­cana de dois princípios ativos, um anal­gésico e outro vasodilatador, retirados da secreção de um sapo da Amazônia. A empresa extraiu as substâncias do ani­mal e patenteou-as, passando a produ­zi-las sinteticamente.

A lista contempla 3 mil nomes cien­tíficos de espécies vegetais, que se desdo­bram em cerca de 5 mil nomes comuns e suas variantes- como aipim, macaxeira, mandioca. Contém, em alguns casos, os nomes em inglês das espécies. "Isso tam­bém pode auxiliar o trabalho do exami­nador de marcas estrangeiro", explicou Manuel Lousada, secretário substituto de Tecnologia Industrial do Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC). Estima-se que menos de uma centena de espécies esteja sob risco de apropriação indevida. Mas, como a lista servirá como elemento de defesa em processos judiciais, o Gipi decidiu fazer uma relação mais ampla, capaz de ante­cipar-se a problemas que hoje não po­dem ser vislumbrados. Na relação cons­tam espécies de bromélias, de uvas e de ervas medicinais. "Com a participação cada vez maior do Brasil no comércio in­ternacional, a tendência é que surjam fal­sificações de nossas marcas conhecidas", diz Roberto Jaguaribe.

A iniciativa brasileira tem precedente no Peru, que já montou um banco de da­dos semelhante e criou uma comissão pa­ra investigar registras de produtos de sua biodiversidade em escritórios de marcas e patentes da Europa, Japão e Estados Unidos. Foram identificados cerca de SOO registras. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, anunciou no lançamento da lista que pretende agora ampliar a discussão para outros países vizinhos li­gados à Organização do Tratado de Coo­peração dos Países Amazônicos (Otca). "Não somos só nós que temos a andiro­ba. Outros países amazônicos também têm", afirmou Marina. •

FABRÍCIO MARQUES

PESQUISA FAPESP 124 • JUNHO DE 2006 • 29

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O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

BIODIVERSIDADE

A norma do campo

Lei nacional emperra a coleta de amostras biológicas e paralisa a pesquisa

o dia 30 de abril passado, Massuo Jorge Kato foi inter- pelado por fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Re- nováveis (Ibama) no aero- porto de Belém pouco antes de embarcar para São Paulo. O pesquisador do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) carrega- va uma caixa de papelão, da-

quelas usadas para transportar monitores de computador, com cerca de 30 amostras semi- processadas de folhas e ramos finos de várias espécies de piperáceas, família de plantas aro- máticas que inclui a famosa pimenta-do-rei- no. Embora os espécimes tivessem sido coleta- dos de forma legal na Floresta Nacional de Caxiuanã por pesquisadores da Universidade

Federal do Pará (UFPA), que colaboram com o cientista paulista, Kato não possuía uma au- torização para transportar o material da flo- resta para a capital paulista. À luz da lei, para os funcionários do Ibama, o especialista em plantas incorreu numa prática que beira a bio- pirataria. Por isso o material foi apreendido e o cientista notificado a dar explicações de seu procedimento. "Conheço as normas, há mui- tas exigências, algumas inviáveis", afirma o es- pecialista da USP. "Estamos numa situação de conflito entre o Ibama e os pesquisadores, que querem apenas dar sua contribuição para o conhecimento da biodiversidade."

Kato é um cientista respeitado, com ende- reço e linha de pesquisa conhecidos, que pode ter incorrido numa falha burocrática, mas nem de longe promove o tráfico ilegal de es- pécies. O episódio vivido por ele é apenas mais um que ilustra a situação de paralisia e semi-

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marginalidade em que foi colocada a pesquisa biológica de campo realizada em território nacional desde a edição, em agosto de 2001, da Medida Provisó- ria n° 2.186-16. Formulado para pre- servar a biodiversidade nacional, esse marco legal, editado pelo governo fe- deral, regula o acesso ao patrimônio ge- nético do país e tenta criar um regime de partição de eventuais ganhos econô- micos decorrentes da explora- ção comercial do chamado co- nhecimento tradicional dos indígenas sobre propriedades terapêuticas das plantas ou da obtenção de extratos ou molé- culas derivadas e espécies da flora e da fauna brasileira. Mi- rando na biopirataria, a legisla- ção atingiu o trabalho dos bió- logos brasileiros, que passaram a enfrentar uma burocracia, às vezes irracional, segundo eles, a fim de obter autorizações do Conselho de Gestão do Patri- mônio Genético (CGEN), órgão criado pela própria MP, para co- letar amostras.

Há pelo menos três anos os pesquisadores pleiteiam, em vão, reformas na lei. "Esperávamos que o governo federal anuncias- se a flexibilização das normas em março, durante a COP 8 (a Oitava Conferência das Par- tes da Convenção sobre Diversi- dade Biológica, patrocinada pela Organização das Nações Unidas)", afirma Carlos Alfredo Joly, biólogo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ex-coordena- dor do programa Biota-FAPESP. As boas novas não vieram, mas o Ibama e o CGEN acenam com reformas na MP para os próximos meses. Até porque, depois de embates entre cientistas e a área ambiental do governo federal, pa- rece finalmente haver um consenso de que a atual medida provisória inibe, ao invés de fomentar, a pesquisa sobre a biodiversidade nacional. "De fato, a le- gislação é inadequada e jogou na ilegali- dade os pesquisadores", admite Eduardo Velez, secretário-executivo do CGEN, que concede as autorizações para coletas de campo com fins econômicos (traba- lhos de bioprospecção ou baseados no conhecimento tradicional). "Queremos simplificar todo esse processo."

Natureza inacessível: autorização legal para colher espécies pode demorar meses

Coleta ilegal - A concessão de uma li- cença desse tipo pode ser um martírio para quem trabalha na academia. "Esta- mos há mais de um ano tentando uma autorização", reclama Vanderlan da Sil- va Bolzani, do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara, uma das coordenadoras da BIOpropescTA, a Rede Biota de Pros- pecção e Ensaios, que pesquisa plantas da Mata Atlântica e Cerrado paulista em busca de vegetais com potencial para gerar produtos na área médica. Enquan- to o aval de Brasília não vem, as viagens a parques e reservas para obter amostras para estudo estão suspensas. Segundo Vanderlan, apenas os laboratórios e em- presas da área farmacêutica que contam com advogados para driblar a burocra- cia e assessorar os pedidos de autorização

de coleta de amostras biológicas conse- guem o sinal verde do CGEN. "Não é o nosso caso, mas, diante das dificulda- des, há pesquisadores que preferem tra- balhar na ilegalidade", comenta a cien- tista. Até agora o CGEN concedeu menos de 20 autorizações de coleta com finali- dade econômica.

Mesmo a obtenção de amostras da fauna e da flora para trabalhos de cará-

ter acadêmico, que visam gerar basicamente mais conhecimen- to científico sobre as espécies, sem implicações comerciais, es- barra na atual legislação. A auto- rização para esse tipo de coleta é dada pelo próprio Ibama. Os pesquisadores reclamam da morosidade e falta de critérios para expedir as licenças, em- bora reconheçam que hoje o Ibama se mostra mais atento aos pleitos da comunidade acadêmica. "Uma autorização demora pelo menos seis meses para sair", comenta o biólogo Carlos Roberto Brandão, do Museu de Zoologia da USP "E se, por acaso, coletarmos uma espécie diferente da que consta em nosso pedido encaminhado ao Ibama, podemos ser acusa- dos de biopirataria."

Rômulo Melo, diretor de fauna e recursos pesqueiros do Ibama, admite que a medida provisória é um desestímulo à pesquisa e também promete mudanças urgentes, no final de

julho ou em agosto, para desengessar a legislação atual. "O pesquisador deve prestar contas à sociedade de seu traba- lho, mas tem de ser visto como um parceiro da área ambiental, e não como um potencial biopirata", diz Melo. En- tre as medidas flexibilizadoras propos- tas pela área ambiental federal, está a concessão de autorizações permanen- tes de coleta (e não caso a caso) para cientistas de instituições acadêmicas por meio de um ágil sistema on-line. "Apenas os casos mais delicados, como um pedido para retirar amostras de uma espécie ameaçada de extinção dentro de uma unidade de conserva- ção, demandariam análise mais deta- lhada", afirma Melo. •

MARCOS PIVETTA

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O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

AVALIAÇÃO

Publicar não é tudo Artigo propõe um método qualitativo para avaliar desempenho de pesquisadores

uai é a forma mais justa de avaliar a produção de um pesquisador? O de- bate que desde há muito tempo anima a comunidade aca- dêmica ganhou no-

vo combustível num artigo assinado por Edgar Dutra Zanotto, professor do De- partamento de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Com base nos dez anos em que atuou como coordenador adjunto da diretoria científica da FAPESP - pas- saram por seu crivo cerca de 48 mil pro- jetos neste período -, Zanotto propôs uma forma de classificar a produção de um pesquisador não apenas com os tra- dicionais parâmetros quantitativos (ar- tigos publicados em revistas científicas e citações desses artigos em outros traba- lhos), mas também em critérios de qua- lidade. O artigo de Zanotto foi aceito pa- ra publicação na revista Scientometrics, referência na cienciometria, disciplina que busca gerar informações para esti- mular a superação dos desafios da ciên- cia. Intitulado "A pirâmide dos cientis- tas", apresenta um elenco de situações e qualidades capazes de situar um pesqui- sador dentre quatro categorias propostas.

A principal delas, o topo da pirâmide, apresenta exigências nas quais raros pes- quisadores brasileiros se enquadrariam. Duas delas são consagradas, como a pu- blicação de trabalhos científicos nas mais importantes revistas científicas, como Science, Nature, Cell, New England Jour- nal of Medicine e Physical Review Letters, e o índice na casa dos milhares das cita- ções de seus artigos em publicações da base Thomsom ISI. As demais são qua-

litativas, como ter recebido os prêmios mais importantes de seu campo do co- nhecimento, trabalhar em centros de pesquisa ou laboratórios de nível inter- nacional, ser contemplado com recursos abundantes, pertencer a academias cien- tíficas de prestígio e ao corpo editorial de publicações importantes, ter sido convi- dado para dar palestras e comandar me- sas-redondas em congressos ou simpó- sios internacionais, ser citado em livros- texto de sua especialidade e na mídia. Ao todo, são 11 parâmetros. "Para per- tencer a esta categoria, seria necessário cumprir pelo menos nove ou dez dos parâmetros", diz Zanotto, que antevê al- gum desconforto caso sua metodolo- gia ganhe adeptos: "No Brasil, creio que não mais do que uma dúzia de pesqui- sadores, aqueles poucos que estariam na ante-sala de um prêmio Nobel, se en- caixaria no topo da pirâmide", diz.

Degraus na escala - Nas outras três categorias, batizadas de classes A, B e C, os critérios são semelhantes, mas com rigor decrescente. Tomando como exem- plo o parâmetro das citações, os de clas- se A deveriam ter pelo menos 500 artigos citados na base Thomson ISI, os de clas- se B ao menos uma centena e os de clas- se C pouca ou nenhuma citação. Os de classe A deveriam trabalhar em centros de pesquisa ou laboratórios internacio- nalmente conhecidos, os de classe B em centros de pesquisa razoáveis e os de classe C em centros incipientes.

Mas qual seria a serventia de uma classificação desse tipo? Zanotto acredita que o formato ajudaria os pesquisado- res a perceber melhor seus pontos fortes e fracos e tentar galgar degraus na es- cala da pirâmide. Também crê que teria

utilidade para que agências de fomento direcionassem seus recursos. "Cada agên- cia estabeleceria seus critérios. Um deles poderia ser, por exemplo, que só um pes- quisador do topo ou classe A está apto a liderar um projeto de porte como os te- máticos da FAPESP", afirma. Zanotto morou nos Estados Unidos em 2005, go- zando um período sabático, e durante esse tempo refletiu sobre sua experiên- cia em buscar uma forma mais fidedig- na de classificar a produção de pesqui- sadores. O artigo é um resultado dessa reflexão. Os critérios da pirâmide refe- rem-se a categorias que ele aprendeu a identificar em seu trabalho de avaliador.

A preocupação em buscar uma nova classificação para o desempenho dos pesquisadores vem alimentando outras propostas. Uma delas é o chamado ín- dice h, proposto pelo físico Jorge Hirsch, da Universidade da Califórnia, em San Diego. O índice h é definido como o número "h" de trabalhos que tem pelo menos o número "h" de citações cada. Trocando em miúdos: um pesquisador com índice h 30 é aquele que publicou 30 artigos científicos, sendo que cada um deles recebeu ao menos 30 citações em outros trabalhos. A ponderação ex- clui trabalhos menos citados e também evita distorções (se as citações estão concentradas num único artigo de um autor, isso não contamina a contagem geral). Assim, dá a medida do tamanho e do impacto da produção acadêmica de um pesquisador.

Em seu estudo, Zanotto sugere que, embora corrija distorções, o índice h está longe da perfeição. Ele aplicou o índice à produção de quatro renomados físicos brasileiros (cujos nomes não revela para não personalizar o debate). Todos os qua- tro tinham índice h semelhante, entre 10 e 12. O mais produtivo deles, contu- do, ostentava um índice de citações por artigo quatro vezes maior do que o últi- mo da lista. "É urgente encontrar uma forma mais holística de avaliar a qualida- de, o talento e a reputação de um cientis- ta", diz o professor da UFSCar.

Mas a proposta de Zanotto também tem limitações. A principal delas, admiti- da pelo próprio autor, é sua aplicabilida- de em certos campos do conhecimento, mas não em outros. Nas ciências huma- nas, o critério de contabilizar artigos e citações teria de ser substituído por ou- tro, uma vez que a realidade é diferente

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das engenharias, medicina e das ciências exatas, e pouco é publicado em revistas internacionais. "Mas seria possível fazer adaptações. O essencial é manter o espí- rito de mostrar o prestígio que um pes- quisador tem em seu meio. Ninguém consegue enganar o conjunto de seus pares", diz Zanotto.

Para o especialista em cienciometria Rogério Meneghini, coordenador cien- tífico da SciELO, professor aposentado do Instituto de Química da Universida- de de São Paulo e também ex-coorde- nador adjunto da diretoria científica da FAPESP, o valor do trabalho de Zanotto reside em levantar a discussão sobre o melhor critério de avaliação e também em demonstrar a importância da avalia- ção dos pares. "Na prática, já é o que acontece quando se faz um concurso para contratação de professores em que temos 40 candidatos e apenas duas ou três vagas", diz Meneghini. "Todos esses critérios qualitativos são contemplados pelos avaliadores e produzem uma es- colha mais justa." Meneghini, contudo, acha difícil transpor tais critérios para uma avaliação sistemática e de massa. "Há dificuldades de fazer comparações objetivas. Quem vai definir se uma ca- deira numa determinada academia cien- tífica vale tanto no currículo de um pes- quisador quanto outro assento que consta na biografia de outro pesquisa- dor?", pergunta Meneghini. "Sempre há margem para algum tipo de distorção. A quantidade de fundos que um pes- quisador recebe às vezes tem mais a ver com uma prioridade de governo do que propriamente por seu desempenho."

Zanotto defende seu método. "É possível haver distorção em um ou ou- tro parâmetro, mas não no conjunto de- les", afirma. O pesquisador faz questão de avisar que não criou a metodologia em proveito próprio. "Eu não me en- caixaria no topo da pirâmide", diz ele. Parece brincadeira, mas já houve pesqui- sadores que sugeriram critérios de ava- liação talhados para fazer reluzir os próprios currículos. O famoso físico russo Lev Landau (1908-1968) certa vez propôs um logaritmo para ranquear os pesquisadores de seu campo do conhe- cimento. Albert Einstein recebeu uma cotação modesta: 0,5. Já Lev Landau apa- receu no topo, com 2,5. •

FABRíCIO MARQUES

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ç CIÊNCIA

Um ano para manter a linha

letade das pessoas que res- ponderam a um levanta- mento da Universidade de Yale sobre obesidade disse que daria um ano de suas vida para não serem obesas. Entre 15% e 30% dos 4 mil participantes do estudo des- sa universidade dos Estados

Unidos também prefeririam abandonar o casamento e os filhos, ficar deprimidos ou virar alcoólatras do que se tornarem obesos; 5% e 4% aceitariam até mesmo perder um membro ou fica- rem cegas do que se verem com um peso acima do que

acham que deveriam ter. Outra equipe de Yale entre- vistou representantes de co- munidades negras, latinas ou caucasianas que vivem nos Estados Unidos e verifi- cou que a cultura tem um papel importante no modo pelo qual as mulheres per- cebem a obesidade. Na cul- tura negra, obesidade é defi- nida de modo positivo e está ligada à atração e dese- jo sexual, força, bondade, auto-estima e aceitação so- cial. Já para as mulheres brancas representa uma imagem corporal negativa e uma perda tanto de atração sexual quanto de auto-esti- ma. A taxa de obesidade na população varia de 5% no Japão e na China a 75% em alguns centros urbanos da África. •

■ Eles ainda molham a cama

Eles vão negar, claro, e talvez en- rubescer se lhes perguntarem. Mas um em cada 50 adoles- centes ainda padece de enure- se noturna - a perda involun- tária de urina durante o sono. E metade deles, aos 19 anos, deixa a cama molhada toda noite, de acordo com um es- tudo publicado em maio no British Journal of Urology In- ternational. Uma equipe for- mada por pesquisadores da Universidade de Hong Kong, da China, e do Hospital Prín- cipe de Wales, Reino Unido, analisou mais de 16.500 ques- tionários respondidos por cri- anças e jovens de 5 a 19 anos. Com a idade, a freqüência cai,

mas a gravidade aumenta: 82% dos casos severos concentram- se na faixa dos 11 aos 19 anos. Esses achados, de acordo com os autores desse estudo, desa- fiam a idéia de que esse pro- blema desaparece com a ida- de. Em um trabalho publicado em 2004, Chung Yeung, coor- denador desse levantamento,

mostrou que não havia uma queda expressiva da enurese noturna entre os 10 e os 40 anos. •

■ Benefícios da jornada dupla

Trabalhar e cuidar dos filhos pode ser benéfico para man-

ter a saúde das mulheres em bom estado e por muito tem- po. A conclusão se apoia em um estudo publicado na Jour- nal ofEpidemiology and Com- munity Health, que consistiu no acompanhamento do es- tado de saúde aos 26 e aos 54 anos de 2.547 mulheres nas- cidas na Grã-Bretanha em 1947: a cada década se avalia- va se as mulheres estavam tra- balhando, se estavam casadas, se tinham filhos e se estavam pesando mais. Aos 54 anos, as mulheres casadas e com filhos que trabalhavam relatavam menos problemas de saúde que as que não cumpriam es- ses três requisitos. Eram tam- bém as menos propensas à obesidade - a tendência a ga- nhar peso era mais clara en-

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Caçada no Alasca

Os cavalos selvagens do Alasca podem ter sido caça- dos até a extinção - pro- vocada, portanto, pelo homem, mais do que pelas mudanças climáticas, como se pensava. A visão mais aceita era que os cavalos se extinguiram bem antes dos mamutes e pelo menos 500 anos antes da chegada dos seres humanos da Ásia. Ou-

tre as que não saíam de casa. As mulheres que tinham sido apenas donas-de-casa durante toda a vida ou a maior parte da vida eram as que mais dizi- am que a saúde não andava lá muito bem, seguidas pelas mães que viviam apenas com os filhos e as mulheres sem crianças. O bem-estar mos-

tra teoria: uma época de frio muito intenso, em uma região por si só já bastante fria, acabou com eles. Porém Andrew So- low, do Instituto Ocea- nografia) Woods Hole, dos Estados Unidos, Da- vid Roberts, do Jardim Botânico de Kew, e Karen Robbirt, da University of East Anglia, do Reino

trou-se como resultado, mais do que a causa, da adoção de muitos papéis sociais. •

■ Gelo feito a 25 graus

O congelador perdeu o mono- pólio. A água pode congelar e tornar-se gelo à temperatu-

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Unido, suspeitaram dessas duas possibilidades após encontrarem imprecisões na datação e registros in- completos dos fósseis. Mas, analisando fósseis de 24 ca- valos, concluíram que esses animais podem ter sido eli- minados há cerca de 11.700 anos, algumas centenas de anos depois da chegada dos seres humanos. •

ra ambiente quando colocada entre uma ponta de um fio de tungstênio e uma superfície de grafite. De acordo com um artigo da Physical Review Let- ters assinado por Joost Fren- ken e sua equipe da Universide de Leiden, na Holanda, entre a ponta e a superfície formam-se pontes de gelo, em uma esca- la evidentemente nanométri- ca, que duram apenas alguns segundos. Nessas condições a água funciona como uma co- la, e não como um lubrifican- te, mantendo as duas superfí- cies unidas. Essa descoberta pode ser útil para pesquisado- res que trabalham com con- juntos elétricos de peças que podem deixar de funcionar a contento se a fricção entre elas for alta demais. •

■ Estimuladas pelo Prozac

Uma equipe do Laboratório Cold Spring Harbor Labora- tory descobriu quais células do cérebro são acionadas pela fluoxetina, o fármaco do an- tidepressivo mais conhecido no mundo, o Prozac, e coman- dam as respostas dos neurô- nios em face da escassez do neurotransmissor serotonina, que pode levar à depressão. Já se sabia que esse medicamen- to aplacava os sintomas da depressão mobilizando mais neurônios em algumas re- giões do cérebro. Analisando os diferentes tipos de células do cérebro de camundongos marcadas com uma proteína, a equipe de Grigori Enikolo- pov demonstrou que a fluo- xetina age no segundo passo da formação de neurônios a partir de células-tronco do cé- rebro, estimulando a atividade de um tipo de células chama- das progenitores neurais am- plificados (ANP). A descober- ta ajuda a explicar os fatores que controlam o modo, o momento e o lugar em que novos neurônios são forma- dos, a partir das células-tron- co do cérebro, e pode levar a uma nova geração de trata- mentos mais específicos e com menos efeitos colaterais que os em uso atualmente contra distúrbios mentais. •

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Vítima do ozônio A árvore-símbolo do país, o pau-brasil (ao lado), também sofre com o ozônio, gás for- mado por três átomos de oxigênio cuja concentração nas regiões da atmosfera mais próximas à superfície pode produzir irritação nos olhos e no nariz, náusea, tos- se ou danos aos pulmões. Regina Maria de Moraes, do Instituto de Botânica, deixou por um mês dez plantas jo- vens de Caesalpinia echinata em câmaras de um labora- tório em Valência, na Espa- nha, simulando concentra- ções de ozônio próximas às encontradas durante a prima- vera na cidade de São Paulo (a concentração média nessa época do ano é de 50 micro-

gramas por metro cúbico). A taxa de assimilação de car- bono caiu para 50%, a ativi- dade dos estômatos (células responsáveis pelas trocas de gás carbônico e água com a atmosfera) caiu para 42% e a transpiração para 40%, em comparação com as plantas que só receberam ar ambien- te, sem a dose extra de ozô- nio. Os resultados, publica- dos na Ecotoxicology and Environmental Safety, expli- cam a dificuldade de adap- tação dessa espécie às cida- des. "Os efeitos da poluição de São Paulo afetam o pau-bra- sil de tal maneira", comenta Regina, "que sua utilização na arborização da cidade não é recomendada". •

Laboratório Brasil

■ Inventário de peixes

Como são e onde encontrar o peixe-bruxa, o peixe-porco, o cherne-verdadeiro ou o con- gro-rosa? Já é possível identi- ficar sem grandes dificuldades e saber a região aproximada em que essas espécies das pro- fundezas do mar brasileiro

podem ser encontradas: bas- ta consultar o Prospecção pes- queira de recursos demersais com armadilhas e pargueiras na Zona Econômica Exclusiva da Região Sudeste-Sul do Bra- sil. Esse livro, assinado por Ro- berto Bernardes e por outros cinco oceanógrafos, descre- ve 15 espécies de peixes e dez de crustáceos, além de oito

exemplares novos e ainda não identificados de uma fauna pouco acessível, que vive lon- ge do litoral. É um dos resul- tados do programa Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Eco- nômica Exclusiva, mais co- nhecido pela sigla Revizee, um megalevantamento dos seres vivos e do relevo da faixa cos-

teira que só pode ser explora- da pelo Brasil, a Zona Econô- mica Exclusiva (ZEE). Equipes de institutos de pesquisa de todo o país mapearam a su- perfície marinha e fizeram um inventário dos mais diver- sos grupos de seres vivos, das baleias aos organismos micros- cópicos que se movem com a água do mar. •

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■ Os perigos de fabricar pneus

Lidar constantemente com solventes e borrachas pode fa- zer muito mal à saúde. Já ha- via estudos mostrando a mai- or freqüência de leucemias, cânceres de bexiga, pulmão, laringe, estômago, fígado e pele nos trabalhadores da in- dústria de borracha do que na população em geral. Agora, em um trabalho publicado na Revista de Saúde Pública, Hélio Neves, da Secretaria do Verde e Meio Ambiente do Município de São Paulo, José Eduardo Moncau, da Universidade Fe- deral de São Paulo (Unifesp), Paulo Kaufmann, do Sindica- to dos Trabalhadores da In- dústria de Artefatos de Borra- cha, de Pneumáticos e Afins de São Paulo, e Victor Wün- sch Filho, da Universidade de São Paulo (USP), verificaram que o risco de morte por cân- cer é maior nas pequenas que nas grandes empresas, prova- velmente por causa da maior probabilidade de exposição a substâncias cancerígenas. Os pesquisadores acompanha- ram por dez anos, de janeiro de 1990 a dezembro de 2000, o estado de saúde de 9.188 homens que trabalhavam na fabricação de pneus, na ma- nufatura de artefatos de bor- racha e em recauchutadoras. Quando comparados aos em- pregados das grandes empresas, mostraram-se mais suscetí- veis a todos os tipos de câncer, em especial tumores de estô- mago (25,4%), dos brônquios e pulmões (13,4%) e esôfa- go (10,4%). Verificou-se tam- bém um aumento de 13% na chance de morte por câncer para cada ano adicional de vi- da. A indústria da borracha mobiliza 7 milhões de empre- gos e 650 mil empresas em todo o país. •

■ Passado nos dentes

O estado de conservação e as características físicas macro e microscópicas dos dentes po- dem revelar os hábitos e as razões pelas quais animais de milhões de anos atrás con- seguiram viver mais ou se ex- tinguiram rapidamente. A paleontóloga Lílian Paglarelli Bergqvist, da Universidade Fe- deral do Rio de Janeiro (UFRJ),

e o dentista Sérgio Roberto Peres Line, da Universidade Estadual de Campinas (Uni- camp), estudaram o esmalte dentário de fósseis para co- nhecer alguns dos mecanis- mos de adaptação de mamí- feros herbívoros da bacia de Itaboraí - situada na região central do estado do Rio de Janeiro, guarda registros de animais e plantas de 60 mi- lhões de anos. Em um estudo na revista Journal ofVertebra-

te Paleontology, Lílian e Line mostram como ramificações do esmalte do dentes, conhe- cidas como bandas Hunter- Schereger (HSB), podem in- dicar como os animais se alimentavam e como os den- tes resistiam aos diferentes ti- pos de alimentos. Dois pa- drões de orientação de bandas são conhecidos nos dentes dos mamíferos: horizontal e ver- tical. O padrão horizontal é o encontrado nos mamíferos primitivos, mas o estudo dos fósseis de Itaboraí revelou que o padrão de HSB vertical era mais comum entre os mamí- feros do que se imaginava. O padrão vertical ajudou a dar resistência aos dentes dos pri- meiros mamíferos herbívoros de médio a grande porte. "Essa técnica de trabalho é ainda muito pouco aplicada no es- tudo dos fósseis brasileiros", comenta Lílian. Também é bastante raro um dentista par- ticipar de um estudo sobre animais extintos. •

O lagarto que ama as flores

Lagartos não são tão bárba- ros e brutos quanto pode- riam parecer à primeira vis- ta: alguns adoram flores. É o caso do mabuia de Noronha {Euprepis atlanticus) que se delicia com o néctar das flo- res de uma árvore, o mu- lungu (Erythrina velutina), que floresce na seca, duran- te quatro meses do ano. Só encontrado no arquipélado de Fernando de Noronha, o mabuia escala 12 metros da árvore até chegar às flores amarelas: retira não só o doce néctar como tam- bém a água que se acu- mula entre as pétalas. Bas-

tante raro, esse hábito deve também beneficiar a poli-

nização, já que o lagar- to leva grãos de pólen de uma flor a outra, de acordo com um estudo publicado na

revista eletrônica Bio- ta Neotropica e coorde-

nado por Ivan Sazima, com a participação de Cristina e Mariles Sazima, todos do Instituto de Biologia da Universidade de Campinas (Unicamp). Não se trata de uma dieta radical: o mabuia não hesita em comer os in- setos que encontra entre uma árvore e outra. •

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 37

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CAPA

SAÚDE REPRODUTIVA

Estudo publicado na revista Lancet mostra que cesariana desnecessária coloca em risco a vida da mulher e do bebê

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Tma pesquisa interna- cional publicada na edição de 3 de junho da Lancet, uma das mais respeitadas revis- tas médicas do mun- do, traz um alerta para os médicos e os futu- ros pais e mães: a reali- zação de partos cirúr-

gicos ou cesáreos sem uma indicação médica específica coloca em risco a saú- de da mulher e do bebê. É um chacoa- lhão mais do que necessário nos gineco- logistas, obstetras e gestores de saúde do mundo todo, que nas últimas quatro décadas viram as taxas de cesarianas desnecessárias crescerem de modo as- sustador sem as conseguir frear.

O recado das páginas da Lancet as- sume um significado particular para a América Latina e, em especial, para o Brasil, segundo colocado em realização de partos cesáreos no mundo - uma das principais questões relacionadas à saúde reprodutiva da mulher no país, ao lado da esterilização cirúrgica e da retirada desnecessária do útero (histerectomia). Aqui os índices de partos cirúrgicos in- sistem em se manter escandalosamente elevados desde a década de 1980, sobre- tudo entre as mulheres de classe média e alta. Atualmente quatro de cada dez crianças nascem por meio de cesaria- nas, na maioria das vezes agendadas pe- las mães e pelos obstetras bem antes do final da gestação — uma proporção exa- gerada, duas vezes e meia maior que o índice de 15% aceito pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Difícil de ser modificada, segundo os próprios médicos, essa realidade preo- cupa porque boa parte dessas cirurgias são desnecessárias e nem sempre repre- sentam a forma mais adequada e segura de dar à luz uma criança, como muitas mulheres crêem. Nesses casos, com um pouco de paciência das mães e habilida- de dos obstetras, a natureza cumpriria seu papel e esses bebês nasceriam sau- dáveis de parto normal.

Nesse trabalho coordenado pela OMS e financiado pelo Banco Mundial, epi- demiologistas e especialistas em saúde reprodutiva feminina avaliaram o desfe- cho de quase 100 mil partos realizados entre setembro de 2004 e março de 2005

em oito países da América Latina (Ar- gentina, Brasil, Cuba, Equador, México, Nicarágua, Paraguai e Peru). O resulta- do confirmou o que se temia: os partos cirúrgicos desnecessários fazem mais mal do que bem.

Quando a taxa de cesáreas de um hospital ultrapassa a faixa que vai de 10% a 20% do total de partos, aumenta muito o risco de complicação para a mãe e o bebê. É maior a probabilidade de a mulher morrer durante o parto, apresentar sangramento grave ou ad- quirir uma infecção que exija interna- ção no setor de tratamento intensivo. Já a criança corre mais risco de nascer com menos de 37 semanas (prematura) por erro de cálculo médico, de morrer du- rante o nascimento ou na primeira se- mana de vida e de necessitar de cuida- dos intensivos. Mesmo quando se levaram em consideração os diferentes níveis de complexidade dos 120 hospi- tais avaliados, ou seja, a capacidade de atenderem casos de maior ou menor gravidade, os perigos para a mãe e o be- bê não diminuíram. "Todos os indica- dores de saúde da mulher e da criança pioram", afirma o obstetra chileno Aní- bal Faúndes, uma das mais respeitadas autoridades internacionais em saúde re- produtiva. Coordenador da equipe de 90 brasileiros que participou desse estu- do, Faúndes mudou-se para o Brasil há 30 anos após deixar o Chile na ditatura de Augusto Pinochet depois de coorde- nar o programa de saúde da mulher no início do governo de Salvador Allende.

Gasto desnecessário - "Como as com- plicações decorrentes das cesarianas são relativamente raras, os médicos costu- mam dizer: 'Isso não acontece nas mi- nhas mãos'", comenta Faúndes, profes- sor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Centro de Pesquisas em Saúde Repro- dutiva de Campinas (Cemicamp). "Mas do ponto de vista populacional as conse- qüências desses eventos são graves e de- vem ser levadas em consideração", diz. Um desses efeitos é o aumento dos gas- tos públicos com saúde. Nos países de- ■ senvolvidos o acréscimo de 1% nas ta- xas de cesarianas representa um gasto extra de US$ 9,5 milhões. Calcula-se que no Brasil, onde nascem 2,5 milhões

Cultura nacional: mães acreditam que cesárea é o parto mais seguro para a criança

de crianças por ano, haja 560 mil cesá- reas desnecessárias que consomem qua- se R$ 84 milhões. "É um dinheiro que poderia ser investido em outras formas de cuidado da mãe ou da criança", diz Faúndes.

Embora o risco de morrer durante uma cesariana seja muito menor do que foi quase quatro séculos atrás, quando esse procedimento começou a ser feito em mulheres vivas - antes fazia-se a ce- sárea apenas após a morte da mãe para salvar a vida do bebê -, os partos cirúr- gicos dispensáveis contribuem para manter a mortalidade materna brasilei- ra em níveis bem superiores aos de paí- ses desenvolvidos como o Reino Unido. Estima-se que entre 75 e 130 brasileiras em cada grupo de 100 mil morram du- rante o parto ou por complicações asso- ciadas à gravidez. Entre as súditas da rainha esse índice é de aproximadamen- te dez mortes por 100 mil.

Apesar da imprecisão dos dados brasileiros, é fácil associar boa parte des- sas mortes à cesariana. Estudos interna- cionais apontam que perto de cem mu- lheres perdem a vida a cada 100 mil cesáreas, cinco vezes mais que o parto normal. Até o século 19 três de cada quatro mulheres morriam de infecção ou sangramento intenso (hemorragia) em conseqüência dessa cirurgia. Hoje, em uma cesariana, o médico faz uma incisão de 10 a 15 centímetros no ventre materno logo acima dos pêlos pubianos e corta outras cinco camadas de tecido até alcançar o útero para retirar o bebê.

"É impressionante o grau de abuso da cesariana no país", afirma a socióloga Jacqueline Pitanguy, diretora da ONG Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informa- ção e Ação (Cepia), que atua na área de direitos reprodutivos e sexuais. "Há por aqui um descaso histórico com gesta- ção e parto", diz.

A persistência dos índices de cesaria- na em níveis tão elevados por mais de duas décadas levou o Ministério da Saú- de a adotar algumas estratégias - infeliz-

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mente, nem sempre suficientes - para tentar reduzir o número de cesáreas. A mais recente é a Campanha de Incentivo ao Parto Normal, lançada em 30 de maio para conscientizar a população sobre a importância do parto normal e ajudar a desfazer a idéia já cristalizada na socie- dade de que o parto cirúrgico é melhor e mais seguro.

São três os objetivos da campanha: explicar a importância dos exames de acompanhamento da saúde da mulher e do bebê durante a gestação, mostrar os benefícios do parto normal e reforçar a idéia de que a mulher tem direito a um parto mais acolhedor, sem a realização de procedimentos médicos desnecessá- rios e com o acompanhamento de uma pessoa de sua escolha - é o chamado parto humanizado.

Caminho certo - Mas por que realizar uma campanha de esclarecimento para a população e não para os ginecologis- tas e obstetras, que por razões éticas de- veriam recomendar para a mulher a forma mais apropriada de parto? "Não adianta trabalhar apenas com os médi- cos", afirma a epidemiologista Daphne Rattner, da Área Técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde. "Que- remos conscientizar as pessoas sobre a importância do parto normal para que passem a cobrar dos profissionais da saú- de." Na opinião de Jorge Francisco Kuhn dos Santos, professor de obstetrícia na Universidade Federal de São Paulo (Uni- fesp), esse é mesmo o caminho: "É fun- damental que a mulher esteja mais bem- informada sobre a necessidade de fazer ou não uma cesariana para o seu bebê nascer. Somente quando as mães soube- rem que o cordão umbilical enrolado no pescoço do bebê ou a redução do lí- quido amniótico por si sós não repre- sentam obrigatoriamente a necessidade de parto cesáreo é que vão lutar para melhorar esse quadro".

Essa não é a primeira ação do go- verno federal para tentar reduzir o nú- mero de cesarianas desnecessárias. Em 2000 o Ministério da Saúde fez com os estados um pacto pela redução das cesá- reas. Uma portaria do ministério deter- minou que as secretarias estaduais da Saúde acompanhassem o número de partos nos hospitais afiliados ao SUS

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para garantir que o índice de cesáreas não aumentasse nos estados em que já era inferior a 20% e que baixasse para 25% naqueles em que era superior.

Mas, aparentemente, aconteceu o contrário. ''As taxas de cesáreas estão su­bindo': afirma Daphne. Há dois anos o ministério iniciou também uma série de cursos de Atenção Obs­tétrica e Neonatal Humanizadas e Baseadas em Evidências Cien­tíficas como parte da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Até maio ha­viam sido treinadas equipes de cerca de 250 maternidades que se comprometeram a implantar modificações para reduzir a ta­xa de cesáreas e oferecer o par­to normal humanizado em seus hospitais de origem. Essas equi­pes também assumiram a responsabi­lidade de repassar o conhecimento para as principais maternidades de seus esta­dos, uma forma de disseminar a infor­mação mais rapidamente entre os quase 6 mil hospitais do país. ''A expectativa é de que quanto mais serviços oferecerem atenção humanizada ao parto mais os profissionais passem a compactuar com essa estratégia", explica Daphne.

Espera-se que os efeitos dessas me­didas não se restrinjam ao setor públi­co, em que o número absoluto de partos cesáreos ( 618 mil por ano) é bem maior que no privado. Mas certamente outras ações serão necessárias para reduzir os índices de partos cirúrgicos particulares ou pagos pelos planos de saúde- meno­res em valor absoluto, 246 mil cesáreas por ano, mas proporcionalmente mais elevados. Por essa razão, a Agência Na­cional de Saúde Suplementar (ANS), que regula o funcionamento dos planos e seguros de saúde, uniu seus esforços aos do ministério. Em 2005 a ANS fez o pri­meiro diagnóstico das taxas de cesariana no setor e atualmente estuda uma for­ma de reduzir o índice de cesarianas desnecessárias dos inquietantes 80o/o.

"Estamos avaliando a estratégia de tornar disponível no site da ANS uma pontuação de cada operadora de plano de saúde, determinada por uma série de indicadores, entre eles o índice de ce­sarianas", afirma Karla Santa Cruz Coe­lho, gerente-geral técnico-assistencial de

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produtos da ANS. "Pretendemos alcan­çar uma redução de ISo/o nos próximos três anos." Mesmo essas medidas são consideradas tímidas. "É necessária uma ação mais firme", diz Santos, da Unifesp. "O médico que só faz cesariana deveria ser descredenciado."

m um ponto todos concordam: a questão dos partos cirúrgicos desnecessários é um problema de solução complexa que de­pende tanto da mudança de postura de ginecologistas e obs­tetras como da sociedade. "Há no Brasil uma cultura medicali­zada da saúde da mulher", expli­ca Daphne Rattner. Suas raízes estão no início do século pas­sado, quando os partos deixa-ram de ser realizados em casa,

com o auxílio de uma parteira que em geral havia ajudado a nascer quase toda a família, e passaram para as mãos dos médicos nas salas de parto dos hospi­tais, até então destinados ao atendi­mento das camadas mais pobres da po­pulação. O desenvolvimento de técnicas de anestesia e tratamentos com antibió­ticos para prevenir infecções nos últi­mos 50 anos também contribuiu para reduzir muito a mortalidade materna e tornar a cesárea a cirurgia mais popular do mundo.

No Brasil a proporção de partos ci­rúrgicos dobrou durante a•década de 1970 e não baixou mais. Hoje as cesaria­nas correspondem a 82% dos partos pa­gos por convênios médicos, que aten­dem 14 milhões de brasileiras com idade entre lO e 49 anos, e a 30% dos partos feitos pelo Sistema Único de Saú­de (SUS), única forma de acesso aos ser­viços de saúde para 58 milhões de mu­lheres em idade reprodutiva.

Esse crescimento, no entanto, não se explica somente pela tentativa de pro­teger a vida da mãe e da criança, como identificaram Faúndes e José Guilher­me Cecatti, da Unicamp,já em 1991 em um artigo publicado nos Cadernos de Saúde Pública. Se as cesarianas fossem realizadas apenas com indicação mé­dica- por exemplo, quando não chega oxigênio suficiente para o bebê durante o trabalho de parto-, era de esperar que seus índices fossem mais elevados entre

as mulheres mais pobres, sabidamente portadoras de mais complicações du­rante a gravidez e o parto do que as mais abastadas. Mas não é o que se observa no país, onde essas cirurgias são mais co­muns nas classes média e alta.

Outros fatores não-médicos também influenciaram a expansão das taxas de cesariana. Até 1980 o governo federal pa­gava ao médico mais pelo parto cesáreo que pelo normal, que não incluía anes­tesia. Na tentativa de reduzir as cesáreas, diminuiu-se a diferença entre o valor do parto normal e o do cesáreo no setor pú­blico - hoje o SUS paga aos hospitais, não aos médicos, R$ 317,39 pelo parto normal e R$ 443,68 pela cesárea -, sem muita eficiência.

Controle de natalidade - Além disso, naquele período tornou-se popular no Brasil a esterilização cirúrgica, conse­qüência, em parte, da pressão das nações desenvolvidas como os Estados Unidos pela redução do crescimento da popu­lação nos países pobres. Em meio à política autoritária que vigorava no país, pregava-se o controle da fecundidade como solução para a pobreza. Resultado: três de cada quatro mulheres aproveita­vam a cesariana, muitas vezes induzida pelos médicos, para fazer a esterilização definitiva por meio de uma técnica cha­mada laqueadura tubária, em que o ci­rurgião corta e amarra as pontas dos pe­quenos canais que conduzem os óvulos até o útero.

Proibida em 1997 pela Lei do Plane­jamento Familiar de ser feita ao mesmo tempo que a cesárea, a laqueadura tubá­ria permanece o método anticoncepcio­nal mais comum no país. Segundo Faún­des, há dois motivos por que as mulheres ainda optam por essa forma de contra­cepção, difícil de ser revertida em caso de arrependimento: elas desconhecem que outros métodos como o dispositivo intra-uterino (DIU) e os hormônios in­jetáveis trimestrais são tão eficientes quanto a laqueadura e nem sempre os métodos alternativos estão disponíveis no setor público.

"Há mais de 20 anos o governo fe­deral tomava providências no país para tentar combater o efeito dinheiro", diz a socióloga Jacqueline Pitanguy, que na década de 1980 presidiu o Conselho Na-

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Dois em um: mulheres e méd icos aproveitavam a cesárea para fazer esterilização definitiva

cional dos Direitos da Mulher, ligado ao Ministério da Justiça e à Presidência da República. "Mas não surtiu muito efei­to." Já no setor privado esse estímulo pra­ticamente não existe. O valor dos partos particulares varia muito e, embora os planos de saúde paguem honorários quase iguais para partos cirúrgicos e nor­mais, os obstetras poupam tempo ao op­tar pela cirurgia

"Não dá para culpar apenas o médi­co, que tem de pagar os gastos para man­ter seu consultório", explica Santos. Uma alternativa seria aumentar o valor pago pelo parto natural, que nunca tem hora marcada para ocorrer. Assim, quem sabe, os obstetras se animariam em abrir um espaço na agenda do consultório para pacientemente acompanhar o trabalho de parto, que pode durar mais de 24 ho­ras- em urna cesárea pré-agendada entre médico e paciente, a chamada cesariana com hora marcada, o obstetra é capaz de se deslocar até o hospital, realizar o parto e retornar ao consultório em menos de três horas, mesmo em uma cidade com trânsito complicado como São Paulo.

Mas dinheiro não é tudo. Os próprios médicos se sentem com mais controle da situação quando realizam a cesárea, ainda que sua paciente não tenha cons­ciência completa dos riscos que corre du­rante essa cirurgia. Afinal, lembra San­tos, dificilmente se processa um médico por ele ter realizado uma cesárea feita sem necessidade. "Mesmo que haja uma complicação as pessoas pensam: 'Pelo menos o médico usou a melhor tecnolo­gia disponível"', afirma. Esse mesmo mé­dico poderia ser questionado judicial­mente se tivesse optado nessa mesma situação por um parto normal.

Essa postura médica é o que o res­peitado neonatologista e obstetra norte­americano Marsden Wagner, ex-diretor da área de saúde da mulher e da criança da OMS, chamou de obstetrícia defensi­va, uma tendência mundial, em um co­mentário publicado em 2000 na Lancet. Mas, segundo Wagner, ao realizar a obs-

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tetrícia defensiva, os profissionais da saúde violam um princípio fundamental da sua prática: "O que quer que o médi- co faça deve ser, em primeiro lugar e aci- ma de tudo, em benefício do paciente".

psicóloga Ana Cristina Gilbert, a historiadora Maria Helena Cardo- so e a pediatra Susana Wuillaume viram que essa confiança na téc- nica já aparece durante o processo de forma- ção do especialista em um estudo com resi- dentes de ginecologia e obstetrícia do Insti-

tuto Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio, publicado em maio nos Cadernos de Saúde Públi- ca. "Os residentes se sentem com mais controle sobre a saúde da mulher e so- bre o tempo em uma cesariana", explica Ana Cristina. "Isso é importante para eles, que se vêem profissionalmente desvalorizados na profissão e são muito cobrados pelos pacientes, que buscam neles sempre respostas para seus pro- blemas."

Uma das motivações dessa forma de agir é a insegurança para realizar o parto normal, conseqüência de como se dá no país a especialização médica nessa área. Concluída a graduação, quem deseja se tornar um obs- ^^^_ tetra tenta uma disputadíssi- ma vaga em um hospital de alta complexidade, como os universitários. Ali, esse profis- sional atende sobretudo ges- tantes de alto risco, com indi- cação para cesárea. Como não vê situações mais simples, ele perde a habilidade de realizar o parto normal. "Esses profis- sionais deveriam fazer estágio em casas de parto, onde os be- bês em geral nascem natural- mente, acompanhados por enfermeiras obstétricas", afirma Santos.

Nos últimos anos equipes do Cemicamp e da Unicamp ajudaram a derrubar um ar- gumento muito usado pelos obstetras para justificar a rea-

lização das cesarianas: o de que as mu- lheres preferem a cirurgia por medo da dor do parto normal ou por receio dos efeitos desse tipo parto sobre a vida se- xual feminina - em alguns casos, é pre- ciso fazer um pequeno corte na lateral da vagina ou no períneo para facilitar a passagem do bebê. Mas esse receio da dor parece ser apenas palpite médico. "Essa afirmação não se sustenta", diz Faúndes, que coordenou um estudo com 656 mulheres que haviam tido mais de um parto em hospitais públicos do interior de São Paulo e de Recife, Pernambuco.

Pela via natural - Nove de cada dez mulheres que já haviam experimenta- do as duas formas de parto preferiam o normal. Mais interessante: entre as que só haviam feito cesarianas, 73% declara- ram também que a melhor forma de parto é o natural. O motivo mais citado por elas é que a dor do parto normal é menos intensa que a do pós-operatório da cesariana. "A dor no parto normal é forte, mas passa", diz Jacqueline Pitan- guy, mãe de três filhos que nasceram pela via natural depois de muita insis- tência dela com o médico. "Nem sem- pre o parto normal é sinônimo de dores horríveis, afinal, como se fazia milhares de anos atrás?" Em 2001 um levanta- mento com 1.600 mulheres de quatro cidades brasileiras mostrou que parte

A cada minuto são feitas três cesarianas no Brasil: duas pagas pelo Sistema Único de Saúde e uma por convênios médicos privados.

Por ano são realizados no país 864 mil partos cirúrgicos, o equivalente a 40% do total de partos.

65% das cesarianas são consideradas desnecessárias.

Uma em cada mil mulheres que faz cesariana morre em conseqüência da cirurgia.

das que haviam tido filho por cesárea preferiam o parto normal.

A aceitação da cesariana pela mulher é, em parte, conseqüência do desequilí- brio de poder na relação entre médico e paciente. "O parto é um momento de muito medo para a mulher, em especial quando é o do primeiro filho", explica Jacqueline. "Ela se sente poderosa por estar grávida e, ao mesmo tempo, fragi- lizada. Por isso acha mais seguro assu- mir uma postura passiva e deixar a de- cisão nas mãos do médico." O obstetra, por sua vez, sente-se mais valorizado quando está no domínio da situação. "Se o médico disser à mãe que o bebê está sofrendo, ela se sujeitará a qualquer coisa", comenta Santos. Essa diferença de poder também ajuda a explicar trata- mentos radicais como a retirada do úte- ro para combater tumores benignos em casos que nem sempre a cirurgia se- ria necessária (16% do total). Esse pro- cedimento é mais freqüente entre as mulheres de menor renda e nível de es- colaridade, como constatou Renata Ara- nha, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Uma forma de reduzir as taxas de parto cesáreo é tornar obrigatória a consulta de um obstetra mais experien- te, a conhecida segunda opinião, como mostraram Maria José Osis, Karla Pá- dua e Aníbal Faúndes, do Cemicamp, e José Guilherme Cecatti, da Unicamp,

em artigo na Revista de Saúde Pública de abril. Também se pode estimular a realização de partos em casa, como ainda é feito na Inglaterra em quase metade dos casos. Em 2005 a Universidade de São Paulo (USP) reabriu depois de 33 anos o curso superior para a formação de parteiras, ativida- de exercida informalmente hoje por entre 40 mil e 60 mil mulheres no Norte e Nordeste do país. "A questão do parto é um problema político porque há médicos e enfermeiras legal- mente habilitados para execu- tar essa função", diz Santos, "e agora novamente haverá par- teiras". A solução certamente não é única, nem virá em pou- co tempo. •

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CIÊNCIA

MEDICINA

Dúvida atroz Ninguém sabe se são mesmo as células-tronco adultas que funcionaram nos casos de sucesso relatados

CARLOS FIORAVANTI

o início de maio o cearense Sátiro da Costa contou no Jornal Nacional que se sentia melhor após receber uma dose de células-tronco em um hospital do Rio de Janeiro. Diante da remota possibilidade de trans- plante de coração, a aplicação dessas células, que formam um líquido es-

branquiçado, era uma alternativa para restabelecer o vi- gor do músculo cardíaco enfraquecido pelo mal de Cha- gas. Em Ribeirão Preto, interior paulista, uma semana depois de receber células-tronco extraídas de sua própria medula óssea, a dona-de-casa Martinha da Cunha verifi- cou que começava a reconquistar a liberdade de movi- mentos perdida com a esclerose múltipla, que lhe parali- sara o lado direito do corpo. No mundo inteiro correm pelo menos 65 testes de células-tronco adultas, com o propósito de combater tumores, problemas cardíacos, mal de Parkinson, lesões na medula espinhal, doenças auto-imunes e anemias. Mas até agora nem pesquisado- res nem médicos asseguram que os aparentes benefícios se devem de fato às células-tronco adultas.

Capazes de se especializar em outros tipos de células, de acordo com o órgão ou tecido em que se instalem, as células-tronco adultas são fabricadas - e retiradas - jun- to com outros tipos de células principalmente na medu- la, a massa avermelhada que recheia os grandes ossos do corpo. "Todo mundo gosta de usar o rótulo 'terapia com células-tronco', mas mesmo aqui nos Estados Unidos a maioria dos pesquisadores nem chega a purificar as célu- las antes de aplicar", diz Alysson Muotri, geneticista bra- sileiro que trabalha no Instituto Salk dos Estados Unidos.

Metamorfose contínua: células-tronco do tecido adiposo adulto tratadas

para se diferenciarem em células de gordura

(aumento de 200 vezes)

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Mas como explicar os resultados? Ricardo Ribeiro dos Santos, coordenador do Instituto do Milênio de Bio- engenharia Tecidual, que há quatro anos estuda essa for- ma de terapia para reduzir o impacto do mal de Chagas, acredita que as células-tron- co possam liberar hormô- nios e acionar células que restabeleçam a atividade de tecidos danificados. Seria uma forma de entender a recuperação do quadro ge- ral de saúde exibida há pe- los menos um ano pelas 50 pessoas que já receberam aplicações de células-tronco na unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Salvador, onde Santos trabalha: 20 sofriam de graves problemas no fígado e estavam longe de receber um transplante e ou- tras 30 eram portadoras do mal de Cha- gas. "Como injetamos uma mistura de populações de células", comenta Santos, "ainda não é possível dizer qual ou quais estão funcionando".

Tarcísio Barros Filho, do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), também não tem como provar se as células-tronco que ele e sua equipe usaram para tratar lesões crôni- cas da medula espinhal se diferenciaram em neurônios ou apenas aderiram a ou- tras e assim ajudaram a recuperar a ca- pacidade de transmissão dos impulsos nervosos. Não passava nenhum estímu- lo nervoso pela medula espinhal das 30 pessoas que tinham perdido o movi- mento das pernas e participa- ram de um estudo experimen- tal no HC. Dois anos depois, nenhuma voltou a andar, mas em 60% dos participantes desse estudo se verificou uma recu- peração na passagem dos im- pulsos elétricos sensitivos das pernas em direção ao cérebro. "É um resultado animador", diz Barros Filho, "mas está longe de ser a cura".

A um quarteirão dali, em outra unidade do HC paulista, o Institu- to do Coração (InCor), 35 pessoas in- fartadas submeteram-se a um implante de uma veia no coração para restaurar a irrigação do músculo cardíaco e, ao

Rotina do InCor: o biomédico Vinícius Bassaneze manipulando células-tronco que cresceram na estufa (acima) a 37 graus

mesmo tempo, receberam doses de cé- lulas-tronco diretamente no coração. Dois anos depois, recuperaram-se com mais rapidez que as outras 30 que rece- beram apenas o vaso sangüíneo. José Eduardo Krieger, um dos coordenadores desse estudo, gostaria muito de saber como essas pessoas se recuperaram.

té agora um dos poucos resul- tados comprovados de que as células-tronco podem funcio- nar tanto em animais de labo- ratório quanto em seres huma- nos - descartando-se efeitos secundários causados por ou- tros tipos de células da medula óssea - foi obtido por Irving Weissman, da Universidade Stanford, e acenou com a pers- pectiva de novos tratamentos

contra leucemia e algumas formas de câncer em células sangüíneas. "O trans- plante de células-tronco hematopoéti- cas (que originam as células do sangue) é a única forma de terapia com células-

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tronco em uso médico seguro hoje", as- segura Marco Antônio Zago, professor da USP de Ribeirão Preto. Esse tipo de transplante, feito normalmente com cé- lulas da própria pessoa a ser tratada, é uma forma de repor as células do san- gue já maduras que foram destruídas por tratamentos contra o câncer - é uma técnica adotada com regularidade há pelo menos dez anos, bem antes, portanto, de essa forma de terapia celu- lar ganhar visibilidade.

Jefferson Luis Braga da Silva, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul, reconhece: "Os testes com células-tronco deram muita falsa esperança". Ele próprio sentiu o peso da angústia de quem sofre de uma doença crônica depois que o Jornal Na- cional de 17 de abril apresentou os re- sultados de seus estudos para tratar le- sões de nervos. Em menos de um mês ele recebeu mais de mil mensagens ele- trônicas de pessoas que insistiam para ser voluntárias em seus próximos tes- tes. Só cinco, porém, haviam sofrido

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rompimentos em nervos periféricos ha- via menos de um ano e ainda tinham al- guma chance de recuperação. Silva havia empregado tubos de silicone preenchi- dos com células-tronco para tratar le- sões de até 3 centímetros nos nervos do antebraço de 20 pessoas, que, segundo ele, recuperaram os movimentos e a sensibilidade em até um ano, enquanto outras 22, tratadas apenas com o tubo de silicone, demoraram três anos. "Os ganhos são claros", diz ele. "Só não te- nho como afirmar se foram mesmo as células-tronco que funcionaram, por- que não as marquei."

Bianca Gutfilen e Lea Mirian resol- veram esse problema na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mar- cando as células-tronco com tecnécio 99-m, um isótopo de um elemento ra- dioativo bastante utilizado na medicina nuclear. Foi esse o elemento radioativo usado nas células de Sátiro, o cearense que participa de um dos testes de avalia- ção das células-tronco em andamento na UFRJ. "Agora sabemos exatamente

aonde vão parar as células-tronco", conta Bianca. Segundo ela, só se recuperaram dos danos da doença de Chagas as re- giões do músculo cardíaco que recebe- ram células-tronco, mas persiste o desa- fio de demonstrar que essas células é que são as responsáveis por esses benefícios.

"Muita gente está pulando etapas e querendo pôr a carroça na frente dos bois", observa Sílvio Duailibi, pesquisa- dor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que defende mais pes- quisas básicas e pré-clínicas antes do uso em seres humanos, para que se pos- sa entender com clareza o que pode acontecer. "Antes da aplicação em hu- manos, precisamos de mais pesquisas básicas e pré-clínicas, para entender com clareza o que pode acontecer", diz. Krieger, do InCor, alerta: estudos como os feitos até agora, com dezenas de pes- soas, mesmo que tragam resultados po- sitivos, devem ser vistos com cautela. Não representam a população de po- tenciais usuários nem exibem argumen- tos científicos suficientes, de acordo

com os modelos internacio- nais de pesquisa médica, para dar a palavra final so- bre os limites da eficácia des- sa forma de terapia celular.

Conclusões mais consis- tentes só virão com testes clínicos feitos com centenas de pessoas ao mesmo tem- po em mais de uma institui- ção de pesquisa. Com apoio do Ministério da Saúde, Antônio Carlos Campos de Carvalho, professor da UFRJ, coordena um desses estudos, chamados multi- cêntricos. Quatro equipes - no Rio, em Salvador, em São Paulo e em Porto Alegre - começaram no início des- te ano a tratar 1.200 pessoas com Chagas, com os cora- ções dilatados por outro tipo de doença ou com le- sões causadas por infarto. É o tipo de estudo conhecido como duplo-cego: até o fi- nal do trabalho nem os pa- cientes saberão se recebe- ram células-tronco ou placebo nem os médicos o que aplicaram (a seringa será coberta para não mos-

trar o que contém). "Temos de apresen- tar os resultados em no máximo dois anos", aflige-se Ricardo Santos, que acompanhará o tratamento dos porta- dores de Chagas.

Até que cheguem as demonstrações decisivas, as células-tronco devem se- guir um percurso semelhante ao da te- rapia gênica, vista com grandes esperan- ças há dez anos, mas ainda distante da aplicação. À notoriedade deve seguir a desilusão, "quando se verificar que grande parte das atuais promessas de suas aplicações médicas não pode ser al- cançada em médio prazo ou são inexe- qüíveis", comenta Zago em um artigo publicado na revista Hipertensão. As ressalvas não devem tirar o valor dos avanços, parte deles retratada no livro Células-tronco -A nova fronteira da me- dicina, organizado por Zago e por Di- mas Tadeu Covas, também da USP de Ribeirão Preto. Como diria Barros Fi- lho: "Acertamos apenas as primeiras pe- ças desse enorme quebra-cabeça, mas ainda temos muito a aprender". •

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O CIÊNCIA

Avanço do criacionismo mobiliza cientista na defesa da Teoria da Evolução

versus Adão

embate entre as idéias fundamentalistas so- bre a criação e a Teoria da Evolução, definitiva- mente deflagrado em 1859 com a publicação da Origem das espécies, de Charles Darwin, es- tá prestes a comemorar 150 anos sem perder o fôlego nem a paixão. Os criacionistas, que nun-

ca aceitaram a tese da seleção natural, nem tampouco as evidências científicas acumuladas ao longo deste quase século e meio, recentemente voltaram à carga com um argumento mais sutil, a do de- sign inteligente: a complexidade do ho- mem e a sua perfeição são resultados - e a prova concreta - de um projeto divino. Esta visão segue ganhando adeptos em todo o mundo, notadamente nos Esta- dos Unidos, onde até tem o status de dis- ciplina em escolas públicas.

O recrudescimento do neocriacionis- mo - que nada mais é do que o criacio- nismo num "smoking barato", na visão do biólogo Leonard Krishtalka, diretor do Museu de História Natural da Uni- versidade do Kansas - mobiliza pesquisa- dores na defesa da ciência, do evolucio- nismo e do próprio Darwin, inclusive no Brasil. Tanto que foi o tema do V São Paulo Research Conference, promovido

pela Pró-Reitoria de Pesquisa da Uni- versidade de São Paulo (USP), entre os dias 18 e 20 de maio. "Todos os seres vi- vos descendem de um único ancestral ou de um número muito pequeno de for- mas primitivas. Somos assim por acaso, e não por conta de um projeto inteligen- te", afirmou José Mariano Amabis, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP, dando início a uma maratona de conferências que mantiveram cativa, por inebriada, uma platéia de mais de 350 jovens biólogos, filósofos, geneticis- tas, antropólogos, entre outros.

A ira fundamentalista é compreen- sível, afinal o darwinismo decretou a "morte de Adão", afirmou Aldo Mellen- der de Araújo, do Instituto de Biociên- cias da Universidade de Rio Grande do Sul (UFRGS), referindo-se à sentença proferida pelo inglês John C. Greene. "É como confessar um crime", teria reconhe- cido o próprio Darwin, segundo seus bió- grafos Adrian Desmond e James Moore. Não foi por menos que ele - que chegou um dia a considerar a sugestão de seu pai de tornar-se clérigo quando constatou sua falta de aptidão para a medicina - es- perou 20 anos para publicar Origem das espécies. E só o fez quando outro natura- lista, Alfred Wallace, estava prestes a publicar os resultados de suas pesquisas. O trabalho de ambos foi apresentado à

Linnean Society, num artigo assinado pelos dois autores, em 1858

A reação contra a idéia da seleção natural incendiou a Europa, tanto que nas cinco edições subseqüentes de sua obra mais famosa Darwin viu-se obri- gado a dialogar com seus críticos, revi- sando e modificando o texto. O avanço da biologia, da genética e da biologia molecular no século 20, no entanto, lhe conferiu um status semelhante ao de Copérnico no panteão da ciência, na avalição da antropóloga Eunice Ribeiro Durham, do Núcleo de Pesquisas sobre o Ensino Superior da USP. "Darwin al- terou a posição do homem em relação ao Universo."

O darwinismo se consolidou no sé- culo 20, entre 1930 e 1950, quando vá- rios autores "fizeram a teoria sintética da evolução, casando a genética com se- leção da espécie, criando assim novos paradigmas para a ciência", observou Francisco Salzano, do Instituto de Bio- ciências da UFRGS, pioneiro no estudo genético de populações indígenas. "Pos- teriormente, a descoberta de Watson e Crick, sobre a estrutura e funcionamen- to do DNA, abriu perspectivas para o de- senvolvimento de técnicas que impulsio- naram a pesquisa de forma fantástica", sublinhou. Ele próprio investiga, há 50 anos, a origem dos povos indígenas nas Américas utilizando dois marcadores

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uniparentais - o DNA mitocondrial e o cro- mossomo Y - que suge- rem que o homem pode ter chegado ao continen- te há 40 mil anos, e não 20 mil, como supõem as teorias vigentes. Salzano começa agora a analisar a origem genética de algumas doenças.

A biologia molecular oferece pistas relativamente seguras sobre a origem do homem moderno: "Foi na África, há mais ou menos 165 mil anos", diz o geneticista Sérgio Danilo Pena, do Departamento de Bioquímica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), referindo-se ao Homo sapiens idaltu, considerado, até agora, o fóssil mais antigo do Homo sa- piens. "A diversidade genômica reflete essa evolução", afirma. O problema, ele ressal- va, é que um bom experimento científi- co deve ser repetido várias vezes e este tem que ser feito uma vez só. "Não sabe- mos o estado inicial e jamais saberemos se o resultado é correto", pondera.

Em todo o mundo pesquisadores tentam reconstruir a origem da humani- dade utilizando a técnica dos marcado- res celulares, tomando como referência um banco de dados com 1.064 amos- tras de DNA de pessoas de 52 popula- ções de todos os continentes. A equipe de Pena utiliza este banco de dados e 40

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marcadores chamados indels- sigla que aglutina duas palavras: inserções (ga- nhos) e deleções (perdas) - de adenina, guanina, citosina e timina. Já constatou, por exemplo, que 85,62% da variação gênica pode ser encontrada num mes- mo continente. "Somos igualmente de- siguais", afirma ele.

Se existe algum consenso sobre a ori- gem do homem moderno, do ponto de vista da biologia molecular, ainda há divergências quanto ao modelo de ocu- pação das Américas quando se leva em conta a morfologia de nossos antepassa- dos. Há pelo menos dois modelos de análises disponíveis: o de que o continen- te foi povoado por três levas de migração de origem asiática, com traços orientais (mongolóides); e o da migração única. Walter Neves, do Laboratório de Estu- dos Evolutivos Humanos, do Instituto de Biociências da USP, considera uma terceira hipótese: a de que a América foi ocupada por duas correntes migratórias vindas da Ásia. A primeira - cujos crâ-

As teses darwinistas foram ironizadas na Inglaterra vitoriana. No cartaz da época, Darwin, num corpo de macaco, mede a pulsação da feminilidade

nios são encontrados em Lagoa Santa - parece ter se extingui- do, enquanto da segunda des- cendem todas as tribos indíge- nas das Américas.

A biologia molecular, à luz do paradigma da evolução, é reveladora. Permitiu, por exem- plo, que Bianca Zingales, do

Instituto de Química da USP, identifi- casse duas espécies do Trypanosoma cruzi, agente causador do mal de Cha- gas. "Concluímos que há um dimorfis- mo do gene", afirmou.

As teses da evolução também dão notícias sobre os principais inimigos do homem: os agentes infecciosos. "O HIV é virulento porque o vírus ainda não evoluiu. O ebola também. Ao matar ra- pidamente, não tem tempo de transmis- são", explicou Jorge Kalil, da Faculdade de Medicina da USP. Na luta entre o ho- mem e o agente infeccioso existe a bar- reira evolutiva, disse, numa estimulante conferência sobre imunidades inata e adquirida. Para Henrique Krieger, do Instituto de Ciências Biomédicas, da USP, o evolucionismo foi o impulsiona- dor da moderna biologia. "Sem isso, os estudos seriam extremamente chatos."

Para o ano que vem já estão agen- dados novos debates sobre origens da vida; cérebro e pensamento; e drogas e dependência.

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t CIÊNCIA

BIOLOGIA

Música no brejo MARIA GUIMARãES

Sapos, rãs e pererecas exibem 70 cantos e 29 modos de reprodução

noitece, os "sapólogos" es- peram à beira da lagoa. Um som rompe o silêncio, "pluic, pluic, pluic...". Lep- todactylus notoaktites, diz Célio Haddad. É a rã-gota. Aos poucos surgem mais e mais coaxos: graves, agudos, coros, solos, trinados, bati- das metálicas, de pontos di- versos da lagoa ou da mata ao redor. Haddad acompa-

nha: Hypsiboas faber, Dendropsophus minu- tus... "Temos que encontrar a Phyllomedu- sa", orienta. São pererecas verdes, com coxas vermelhas ou laranja rajadas de roxo, e ficam na vegetação próxima à água. O canto pare- ce um estômago roncando.

Haddad, da Universidade Estadual Pau- lista (Unesp) de Rio Claro, coordena um projeto de mapeamento da diversidade de an- fíbios anuros (sapos, rãs e pererecas) do es-

Hypsiboas bischoffi, uma perereca da Mata Atlântica

tado de São Paulo. A Mata Atlântica abriga grande abundância de anuros, com os mais diversos tamanhos, cores e vozes. São verdes, castanhos, dourados, a perereca-de-pijama tem listras e bolinhas, que variam de um indi- víduo para o outro, o sapo-de-chifre parece uma folha seca... Além disso, essa diversidade envolve dezenas de estratégias reprodutivas, ciclos de vida, composições químicas, estados de conservação etc. Para estudar essa imensi- dão, Haddad trabalha com estudantes e cola- boradores, que em conjunto buscam desven- dar a riqueza natural dessa floresta brasileira, uma das regiões mais biodiversas do mundo e que está seriamente ameaçada pelo avan- ço da ocupação humana.

Explorar a floresta - Parte do trabalho é andar pelo mato, esperar à beira de charcos. Ouvir com atenção revela as espécies em ati- vidade reprodutiva, pois os machos cantam para atrair as fêmeas. Pesquisadores expe- rientes ouvem a cacofonia de um lago e logo reconhecem os integrantes do coro. Para guardar e transmitir esse conhecimento, é

preciso gravar os cantos de representan- tes das espécies estudadas. Essas grava-

^k ções são armazenadas em coleções so- noras e dão origem a representações gráficas, os sonogramas, que permi-

tem diferenciar cantos com mais deta- lhe do que ouvidos humanos captam. A descrição de uma espécie, portanto, inclui dados sobre sua aparência, sua composição

genética e seu coaxo também. Como parte do projeto, Haddad e três de seus alunos produziram um

CD com amostras do canto de 70 I k espécies de sapos, rãs e perere-

■-->, ';:\ cas da Mata Atlântica. Esse guia sonoro traz um coaxo em

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Page 50: Os riscos da cesárea

Perereca-das-folhagens (Phyllomedusa sp.),

dos arredores da cidade de São Paulo

cada faixa, que no livreto corresponde a seus nomes científico e popular, além de uma foto e informações sobre o há- bitat do animal. Segundo Haddad, "o guia tem muito valor para pesquisado- res, mas também para leigos e pode ser usado no ensino". Agora qualquer um pode sair pela noite silvestre ou escutar a perereca que mora no chuveiro e ten- tar descobrir sua identidade.

Ao encontrar os sapinhos na mata há inúmeras informações a coletar. Ob- servá-los, ver onde o macho canta, como a fêmea reage, como se acasalam, o que fazem com os ovos e muito mais. Gra- var seu canto. Capturá-los. É importan- te fotografar, de preferência na natureza; dessa forma se preservam informações sobre suas cores e formas, assim como o ambiente onde vivem.

Um dos produtos de tanta observa- ção foi uma revisão dos modos reprodu- tivos dos anuros. Quando se pensa em reprodução de sapos, vêm à mente giri- nos em lagos, que aos poucos criam per-

nas e perdem a cauda, para enfim sair da água. Os mais observadores terão visto desovas, como longos colares de contas pretas ou em massas de espuma presas à vegetação. Mas não há só isso: até re- centemente eram conhecidos 29 modos reprodutivos diferentes no mundo todo, dos quais 21 ocorrem na América tropi- cal, campeã em estratégias ecológicas devido à diversidade de ambientes. Mo- dos reprodutivos envolvem a descrição de onde os ovos são postos, do desen- volvimento dos embriões e se há algum tipo de cuidado parental. Algumas espé- cies carregam os ovos nas costas. "De dentro deles saem girinos, deposi- tados pela mãe na água em- poçada em bromélias", conta Haddad, que mostra a perere- ca recém-encontrada em via- gem de campo. Algumas mães en- golem seus ovos, e os girinos se desenvolvem em seu estômago. A re- visão feita por Haddad e Cynthia Prado, pós-doutoranda em seu laboratório,

Rãzinha-da-praia (Physalaemus atlanticus), em Ubatuba, descoberta recentemente

Hypsiboas latistriatus, também conhecida como perereca-de-pijama

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Machos da pererequinha-do-brejo (Dendropsophus minutus)

acrescentou mais dez modos reproduti- vos, todos da Mata Atlântica. Há ninhos em tocas subaquáticas ou escavados fora de lagos, até mesmo massas de ovos depositadas diretamente no solo úmido; girinos que saem de ovos grudados a ro- chas perto da água e se desenvolvem aderidos à pedra molhada.

Infelizmente é preciso sacrificar al- guns indivíduos em prol da ciência. Por isso, Haddad ressalta que "é preciso co- letar o máximo possível de informação, para valorizar aquela vida". Os animais são medidos, uma amostra de fígado é retirada e preservada em álcool para aná- lises genéticas. A partir daí passam a ser espécimes de coleção: recebem uma eti- queta que os identificará conforme onde e quando foram coletados, por quem e todas as informações de que se dispõe sobre a espécie. Serão preservados em formol e álcool e transferidos para um museu. A coleção de anfíbios da Unesp de Rio Claro é uma das mais importan- tes do Brasil, em parte graças ao projeto

em andamento. Haddad conta que há três anos a coleção tinha cerca de 6 mil espécimes. Hoje chega a cerca de 15 mil. Além disso, trocas com o Museu de Zoo- logia da Universidade de São Paulo (USP), o Museu Nacional, do Rio de Ja- neiro, e a Universidade Estadual de Cam- pinas (Unicamp) vêm contribuindo para o enriquecimento da coleção da Unesp.

Muitos se chocam ao ver coleções zoológicas, mas elas são essenciais ao avanço do conhecimento sobre a na- tureza. No laboratório de Haddad é co- mum encontrar pesquisadores em bus- ca de auxílio para identificar algum animal. O herpetólogo (especialista em répteis e anfíbios) chega com seus sapi- nhos em conserva, quem sabe com fotos e uma gravação do coaxo. Haddad olha, ouve o canto, pergunta onde o bicho foi encontrado. Todas essas informações são peças que se encaixam e levam à identi- ficação. Ou não. Os pesquisadores com- param com espécimes do museu, com coaxos da coleção sonora. Talvez não

Perereca-de-pijama (Hypsiboas latistriatus) de Campos do Jordão

m

cheguem a uma conclusão decisiva. 1 Quem sabe é uma espécie nova? "A di- £ versidade biológica brasileira é tão gran- ã de e ainda tão pouco conhecida que es- e pécies novas aparecem todo dia", diz Haddad. E são descobertas mesmo em áreas habitadas, como a perereca do gê- nero Phyllomedusa que vive nos arredo- res da cidade de São Paulo e ainda não foi oficialmente descrita.

Diversidade invisível - Muitas vezes nem a experiência e a comparação com os espécimes de museu são suficientes. Certas espécies têm aparência muito se- melhante e só podem ser distinguidas pelo que não enxergamos. O que man- da na natureza é a evolução, não nossos olhos. Por isso, dois grupos de animais podem ser parecidos por fora, mas ge- neticamente tão diferentes que não con- seguem cruzar e se reproduzir. Talvez um exame mais cuidadoso revele dife- renças, por exemplo, em comportamen- to ou fisiologia. Essa diversidade deve ser conhecida e preservada.

Por isso é preciso recorrer ao mate- rial genético, extraído daquelas amos- tras de fígado preservadas em álcool. A partir daí se desvenda a seqüência gené- tica, que será comparada à de outros ani- mais. O resultado são as chamadas árvo- res filogenéticas, que são genealogias de espécies. Em colaboração com pesquisa- dores de vários países, Haddad publicou no último ano duas monografias que

' reorganizaram a classificação dos anfí- bios e mudaram muito da nomenclatu- ra científica. "Isso vai dar uma chacoa- lhada nessa área de pesquisa, que está meio estagnada. Para contestar as mu-

Page 52: Os riscos da cesárea

A perereca-da-folhagem ou Phyllomedusa tetraploidea,

de Ribeirão Branco, interior paulista

danças será preciso mais trabalho, o que trará avanços", prevê.

Outra fonte de variedade são os cro- mossomos, pacotinhos nos quais os ge- nes são organizados. O número e arran- jo dessas estruturas é importante porque durante a fertilização os cromossomos do espermatozóide têm que se alinhar com seus correspondentes no óvulo. A partir daí forma-se um embrião, e cada divisão celular depende desse pareamento de cromossomos. Há mecanismos com que organismos contornam esse proble- ma. Mas na maior parte das vezes altera- ções em número de cromossomos dão origem a espécies distintas. Na Unesp de Rio Claro, Sanae Kasahara coordena uma linha de pesquisa que representa a forma de compreender os processos evolutivos: o estudo do surgimento de novos cromossomos e de como eles se comportam durante a fertilização e a di- visão celular.

Tempo e espaço - Para desvendar a evo- lução, há mais do que distinguir espécies, que são como uma imagem estática de um processo dinâmico - como quando se aperta o pause durante um filme. Mas como ir além?

Uma forma é compreender proces- sos espaciais. Kelly Zamudio, da Univer- sidade Cornell, dos Estados Unidos, tra- balha em colaboração com Célio Haddad. Ela tem um projeto financiado pela Fundação Nacional de Ciências norte-americana (NSF, na sigla em in- glês), em que compara três espécies com níveis diferentes de especialização ecoló- gica: uma que vive somente em bromé- lias, outra que circula por qualquer lu-

gar ao longo da Mata Atlântica e uma terceira que depende de áreas mais úmi- das para se reproduzir. De acordo com Kelly, "essa especialização ecológica é correlacionada com movimento e tem efeitos detectáveis na diversidade genéti- ca de cada uma das espécies". Ou seja, se pegarmos exemplares da perereca mais móvel em vários pontos de sua distribui- ção, não haverá grande diferença. Já na que não se afasta de sua bromélia, detec- taremos diferenças genéticas mais marca- das entre as populações. Com esse traba- lho, a pesquisadora mostra que "aspectos inerentes à ecologia ou biologia dos ani- mais podem nos ajudar a compreender diferenciação e, ao fim, especiação".

A filogeografia vai ainda mais longe. É o estudo geográfico da diversidade ge- nética, que permite inferir a história das populações no tempo e no espaço. Um pressuposto central é que, se a constitui- ção genética de uma população é mais diversa, é porque ela talvez exista naquele local há mais tempo, em relação a popu-

lações mais homogêneas. Essa é a abor- dagem usada por João Alexandrino, pes- quisador associado à Unesp de Rio Claro. Seu projeto envolve comparar padrões filogeográficos de seis espécies de anuros com ampla ocorrência na Mata Atlântica. O pesquisador busca compreender mais do que sua evolução: "Pretendo identifi- car as áreas que ao longo dos milhares de anos permaneceram estáveis o suficien- te para sustentar populações viáveis de sa- pos e seus parentes", explica Alexandrino. Essas áreas têm maiores chances de con- tinuar vicejantes ao longo de flutuações ambientais, portanto é essencial que se- jam preservadas.

"Sapos, credo!", é o que muita gente diz. Com muita boa vontade, alguns concedem que pelo menos eles comem moscas e mosquitos. Preconceitos à par- te, são bichinhos cheios de surpresas e maravilhas. E como são mais frágeis do que aves ou mamíferos, conhecê-los ajuda a detectar quais áreas de nossas florestas estão mais em apuros. •

O sapo-de-chife ou Proceratophrys

boiei, que parece uma folha seca

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CIÊNCIA

GEOLOGIA

Montanhas de histórias Rochas de até 250 milhões de anos contam sobre a formação do Brasil e os movimentos da crosta terrestre

FRANCISCO BICUDO

Na viagem entre São Paulo e Rio de Ja- neiro, uma paisa- gem que se destaca são as montanhas com 2 mil metros de altitude nas pro- ximidades das ci-

dades de Engenheiro Passos e de Itatiaia. O que muitos viajantes talvez não sai- bam é que essas montanhas da serra da Mantiqueira representam duas das prin- cipais ocorrências de rochas magmáti- cas alcalinas do Brasil. Resultantes do resfriamento do magma do interior da Terra, essas rochas de coloração escura formaram-se há milhões de anos e são ricas em sódio e potássio e em minerais como o feldspato.

"As rochas alcalinas são mensageiras de tempos remotos", diz Celso de Barros Gomes, professor do Instituto de Geo- ciências da Universidade de São Paulo (USP). "Elas revelam detalhes sobre o magmatismo que ocorreu em nosso con-

tinente a partir do início da Era Meso- zóica, há 250 milhões de anos, oferecem informações preciosas sobre a formação geológica do território brasileiro e aju- dam a entender os movimentos das pla- cas de continentes sobre a crosta terres- tre, incluindo o momento em que o Brasil se separava da África."

Depois de quase 20 anos de pesqui- sas, Gomes e sua equipe produziram um mapa que indica onde aparecem as rochas magmáticas alcalinas no Brasil. Segundo esse levantamento, que inclui o Paraguai, o Uruguai e a Bolívia, essas rochas distribuem-se por 15 províncias geográficas com dimensões bastante variáveis. Além das ocorrências de Ita- tiaia, com 220 quilômetros quadrados, e de Passa Quatro, com 165 quilôme- tros quadrados, destaca-se a ocorrência de Poços de Caldas, a maior área de ex- posição do país, com cerca de 800 qui- lômetros quadrados. "Em alguns pon- tos do Paraguai esse tipo de rocha é encontrado na forma de pequenos cor-

pos, que cobrem poucos metros qua- drados", diz Gomes. O livro Mesozoic to cenozoic alkaline magmatism in the bra- zilian platform, produzido em parceria com a Universidade de Trieste, da Itália, mostra que a idade das rochas também pode variar bastante - de 50 milhões de anos nas proximidades de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, e nas imediações de Assunção, capital do Paraguai, a 250 milhões em algumas regiões ao longo do rio Paraguai.

A análise química sugere que as ro- chas se formaram a partir de um mag- ma heterogêneo que ocupava a região do manto, a camada interna pastosa do interior da Terra cuja temperatura pode atingir 1.200°C. A profundidade não se- ria tão grande: esse magma estaria pró- ximo da zona de transição para a litosfe- ra, a estrutura superficial do planeta, com cerca de 100 quilômetros de es- pessura, que inclui a crosta terrestre, que forma os continentes. O magma, viscoso e incandescente, foi enriquecido

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Serra da Mantiqueira e Itatiaia: concentração de rochas alcalinas

por elementos fluidos, principalmente água, cálcio e flúor, além de metais alca- linos terrosos como magnésio, berílio e bário. Mesmo depois de resinadas as ro- chas alcalinas magmáticas continuam até hoje localizadas a algumas dezenas de quilômetros de profundidade, embo- ra possa aflorar à superfície. O municí- pio goiano de Santo Antônio da Barra é um dos locais onde as formações che- gam a se destacar no solo, principal- mente por conta da erosão (ver Pesquisa FAPESP n°15).

Rupturas bruscas e repentinas - As conclusões sobre a origem do magma reforçam a idéia, ainda não consensual entre os geólogos, de que o material in- candescente teria subido e se aproxima- do da superfície, estimulado por fratu- ras ocorridas na crosta terrestre. Como essas rupturas teriam sido muito brus-

cas e repentinas, a pressão e a tempera- tura do manto se elevaram rapidamente, empurrando e expulsando o magma que, distante das zonas de calor intenso, alojado na base da crosta, se resfriaria e daria origem às rochas.

Esse trabalho parece reforçar essas evidências, pois grande parte do mate- rial analisado corresponde, em termos de idade, ao momento de fragmentação do supercontinente Gondwana, quando várias placas terrestres, até então reuni- das, estavam se rompendo e se afastando - incluindo a porção oriental do Brasil e o litoral ocidental da África. Equipes do Museu de História Natural de Londres já localizaram em países africanos como Angola e Namíbia rochas magmáticas alcalinas com composições e idades se- melhantes às do Brasil. Pode ser mais uma evidência não apenas da remota união territorial entre Brasil e África, mas também da origem das rochas.

Apesar de sua importância, as ro- chas alcalinas representam cerca de 1%

do total das magmáticas do planeta. Fi- cam em segundo plano em relação a seus parentes mais próximos e popula- res: os basaltos, com pouco potássio e muitos silicatos, responsáveis pela for- mação de solos férteis conhecidos co- mo terras roxas, e os granitos, ricos em quartzo e mica, usados como peças de revestimento, em calçamentos e em lá- pides de cemitério.

Ainda que sendo uma espécie de prima pobre dos basaltos e dos grani- tos, as magmáticas alcalinas, especial- mente os carbonatitos, apresentam um alto potencial econômico. Nas regiões de Jacupiranga, em São Paulo, de Araxá e de Tapira, em Minas Gerais, e de Ca- talão, em Goiás, essas rochas aparecem associadas ao fosfato, muito usado na indústria de fertilizantes. Araxá, além de reservas de fosfato, concentra a maior jazida mundial de nióbio, um metal bastante resistente e usado na constru- ção de ligas para a indústria de aviação e espacial. •

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? CIÊNCIA

FÍSICA

Fantasmas sob a terra Detectores acompanham desaparecimento das partículas mais abundantes do Universo

preciso ficar três minutos dentro de um elevador na total escuridão e descer 710 metros até chegar ao fundo de uma anti- ga mina de ferro do centro-leste dos Esta- dos Unidos chamada Soudan, transfor- mada em um laboratório de física de altas energias. Tão logo se deixa o elevador já se pode ver, à esquerda, o equipamento prin- cipal: um detector de partículas formado por 486 lâminas octogonais de puro aço, alinhadas como fatias de um pão de fôr- ma, com 7,6 metros cada uma. Esse detec-

tor de quase 6 mil toneladas funciona em sintonia com ou- tro, um pouco menor, com 282 lâminas de aço e mil toneladas, a 750 quilômetros de distância e 105 metros de profundidade - ambos formam um dos experimentos do Laboratório Acelerador Nacional Fermi (Fermilab), próxi- mo à cidade de Chicago. Os resultados iniciais desses equi- pamentos, colhidos após um ano de operação e examina- dos por um grupo de físicos, incluindo brasileiros, apresentam aspectos cruciais do comportamento de partí- culas sem as quais o Sol não poderia brilhar: os neutrinos. São um dos componentes mais abundantes do Universo - cada metro cúbico contém 1 bilhão de neutrinos e apenas 1 próton, outro tipo de partícula, de massa muito maior - e ainda se formam a todo momento no interior do Sol quan- do os átomos de hélio se fundem com os de hidrogênio.

Os detectores do Minos, sigla de Busca das Oscilações de Neutrinos Usando o Injetor Principal, comprovaram que os neutrinos desaparecem, como experimentos feitos no Japão já haviam indicado, e foram um pouco além, mos- trando o quanto desaparecem. Em alguns meses, quando a análise de dados estiver concluída, talvez seja possível saber em que outras formas essas partículas eletricamente neu- tras podem se transformar. Há três tipos de neutrinos, cada um deles associado a uma partícula eletricamente carrega- da: o neutrino do múon, o neutrino do tau e o neutrino do elétron. Os resultados preliminares sugerem que os neutri-

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Algumas respostas da física podem ser respondidas sob a terra: lá se encontram uma das peças do detector de mil toneladas (acima) e as lentes da linha de feixe de neutrinos

nos do múon devem se converter em neutrinos do tau com uma probabilidade centenas de vezes maior do que se transformariam em neutrinos do elétron, de acordo com Carlos Escobar, professor da Universidade de Campinas (Unicamp) que integra o grupo de análise dos resultados, ao lado de Philippe Gouffon, da Universidade de São Pau- lo (USP). Do Minos participam também físicos da França, dos Estados Unidos, da Grécia, do Reino Unido e da Rússia.

Os neutrinos do múon estudados nesse experimento formaram-se a partir da colisão de prótons com um alvo de grafite no interior de um tubo com 1 quilômetro de ex- tensão, o NuMi, sigla de Neutrino do Injetor Principal. Atravessaram sem nenhum esforço uma barreira de 200 metros de rocha e encontraram o detector mais próximo da superfície. Passaram por lá milhares de neutrinos, mas a maioria se dispersou, viajando por baixo da terra, e 2,5 mi- lissegundos depois só 92 neutrinos chegaram à antiga mina de ferro. "Chegariam 177 se não houvesse oscilação", diz Es- cobar (oscilação é a transformação de um tipo de neutrino em outro). "Se os neutrinos desapareceram", acrescenta Gouffon, "a única explicação é que tenha ocorrido uma mudança de identidade".

Para os físicos, esse fenômeno é uma clara demonstra- ção da massa dos neutrinos, sobre a qual até recentemente ainda havia dúvidas, já que as partículas de um tipo só po- dem se converter em outra se apresentarem massas e ener- gias diferentes. Experimentos feitos no ano passado no Ca- nadá e no Japão demonstraram que os neutrinos têm uma massa 500 mil vezes menor que a do elétron. A massa des- sas partículas e as metamorfoses por que passam podem es- tar ligadas à origem dos prótons, dos elétrons e de todos os outros elementos fundamentais da matéria. Portanto, "a massa do neutrino pode mesmo explicar nossa existência", comentou Hitoshi Murayama, físico da Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos, em um artigo da Physics World.

"É muito bom ver que o Minos já está produzindo re- sultados importantes, apenas um ano depois de ter entrado em operação", disse Píer Oddone, diretor do Fermilab, ao anunciar essas descobertas, na tarde de 30 de março. "Os re- sultados do Minos, com apenas um ano de operação, dão água na boca", diz Escobar. Mas à satisfação soma-se uma boa dose de preocupação: não há garantia de que seja aten- dida a reivindicação dos especialistas em neutrinos para que seja instalado no Minos um feixe de partículas com 4 megawatts, visto como indispensável para permitir um real avanço nas pesquisas (os experimentos atuais foram feitos com um feixe de 140 quilowatts).

Outras equipes do Fermilab também vivem a perspec- tiva de cortes orçamentários em razão do interesse dos Es- tados Unidos de participar, do melhor modo possível, do projeto de um superacelerador, o Colisor Linear Internacio- nal (ILC). Escobar sabe, porém, que, uma vez feita a esco- lha, as 2.300 pessoas que trabalham no Fermilab vão nova- mente se unir em torno de objetivos comuns. "No Fermilab há competição entre grupos", diz ele, "mas não lutas fratri- cidas como no Brasil". .

CARLOS FIORAVANTI

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Page 57: Os riscos da cesárea

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disponível na internet

www.scielo.org

A abordagem da propriedade intelectual foi enriquecida com o avanço dos conteúdos artísticos e científicos na internet com um novo sistema de atribuições de acesso e uso denominado Creative Commons (www.creativecommons.org/). O sistema, em linhas gerais, oferece possibilidades de tratamento do direito de acesso e uso que varia desde o tradicional "todos os direitos reservados" até o "domínio público", passando por uma grande variedade de opções de acesso e uso. A Bireme/Opas/OMS promovem o estudo do Creative Commons com o objetivo de dotar as redes Biblioteca Virtual em Saúde, SciELO e ScienTI com mais capacidade e mecanismos de especificar com transparência os atributos de acesso e uso das fontes de informação disponibilizadas em suas interfaces.

■ Inovação

Patentes em nanotecnologia

As primeiras patentes envolvendo nanotec- nologia começaram a ser publicadas na metade de década de 1980, segundo o artigo "Patentea- mento em nanotecnologia: estudo do setor de materiais poliméricos nanoestruturados", assi- nado por Suzana Borschiver, Tais dos Santos, Paulo Brum, Maria Guimarães e Flávio da Silva, todos da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A fonte utili- zada para a pesquisa foi o banco de patentes da United States Patent Trademark Office (Uspto). Os dados foram obtidos via web, utilizando-se diversas palavras-chaves. O estudo foi feito com um volume de patentes publicadas entre 1976 e junho de 2004. Nesse período foi registrado um total de 542 patentes dentro da área nanotecno- lógica. Como apenas 70 eram relacionadas a materiais poliméricos nanoestruturados, os cien- tistas optaram em estudar apenas esse conjunto de registros de uma forma mais aprofundada. Patentes envolvendo materiais poliméricos na- noestruturados só apareceram na década de 1990, conclui a pesquisa. Observou-se ainda que mais de 70% das patentes sobre materiais poli- méricos nanoestruturados foram depositadas pelos Estados Unidos, França e Alemanha. Com relação às aplicações, nota-se que os maiores se- tores são os de suportes poliméricos e processos de fabricação de polímeros. As empresas foram as maiores depositantes, seguidas das universi- dades, centros de pesquisa e pessoas físicas.

POLíMEROS - VOL.

OUT./NOV. 2005 15 - N° 4 - SãO CARLOS

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-

14282005000400007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Geriatria

Quedas perigosas

Em "Análise descritiva de variáveis teorica- mente associadas ao risco de quedas em mulhe- res idosas", Paulo de Tarso Farinatti, da Universi- dade Salgado de Oliveira (Universo), e Joanna Guimarães, da Universidade do Estado do Rio de

janeiro (UERJ), ve- rificaram as rela- ções entre incidên- cia de quedas e possíveis fatores de risco, considerando um grupo de indi- víduos com mais de 65 anos. Todos são participantes de um programa de atividades físi- cas, com variáveis apontadas pela literatura como associadas ao risco de quedas: visão, uso de medicamentos, doenças associadas, flexibilidade, força e equilí- brio. "As quedas são um problema de saúde pú- blica entre idosos. Além de prejuízo físico e psi- cológico, esses acidentes geram um aumento dos custos com cuidados de saúde", afirmam os au- tores. "As quedas podem levar o idoso à depen- dência funcional, além de representarem uma das principais causas de morte nessa popula- ção." Os idosos mudam radicalmente sua vida cotidiana, tanto pela queda em si como pelo temor de uma nova ocorrência. Restrição das atividades, maior isolamento social e declínio na saúde são alguns exemplos do impacto cau- sado na vida da pessoa idosa após um episódio de queda.

REVISTA BRASILEIRA DE MEDICINA BRASILEIRA - VOL. 11 - N° 5 - NITERóI - SET./OUT. 2005

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttextSpid=S15!7-

86922005000500011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ História

Profissionais da odontologia

O processo de profissionalização da odonto- logia tendo como cenário os Estados Unidos, local em que se estabeleceram as primeiras orga- nizações odontológicas profissionais no Ociden- te, é o assunto discutido no artigo "A transfor- mação no mercado de serviços odontológicos e as disputas pelo monopólio da prática odonto- lógica no século 19" de autoria de Cristiana Lei- te Carvalho, professora da Pontifícia Universi- dade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).

58 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

Page 58: Os riscos da cesárea

"Quando analisamos o processo histórico de algumas especialidades médicas que até o século 19 se constituí- ram como práticas relativamente independentes ou con- correntes da medicina, como a oftalmologia, a homeopa- tia, a ortopedia, a obstetrícia e, até hoje, estão integradas à profissão médica, é estimulante pensar e analisar o processo de profissionalização da odontologia, que teve um destino bem diferente", diz a autora. Para ela, fato- res externos específicos tiveram papel fundamental na emergência da profissão, entre eles a transformação nos padrões de consumo do açúcar, determinando a disse- minação da cárie dentária na sociedade e a expansão do mercado de serviços odontológicos. O artigo divide o modelo de profissão odontológica em três categorias, caracterizadas pela extensão da dominância médica. O primeiro modelo, mais comum, representa a autono- mia técnica e a independência da odontologia mundial em relação à medicina e tem na odontologia norte-ame- ricana o mais forte exemplo. O segundo representa o sistema no qual a medicina tem domínio sobre a práti- ca odontológica e o exemplo recente mais conhecido era o da Itália, onde qualquer médico era legalmente ca- paz de praticar a odontologia até 1985. No terceiro mo- delo, visto atualmente em países do Leste Europeu, a odontologia apenas divide com a profissão médica o campo de trabalho.

HISTóRIA, CIêNCIAS, SAúDE-MANGUINHOS - VOL. 13 - N° 1 - Rio DE JANEIRO - JAN./MAR. 2006

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-

59702006000100004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Ecologia

Caranguejos do litoral

"Os estudos sobre a composição dos invertebrados marinhos são de fundamental importância para um melhor conhecimento do número atual de espécies pre- sentes nas comunidades bentônicas, servindo como base para a conservação da biodiversidade", justificam os autores do artigo "Composição e abundância dos caran- guejos (Decapoda, Brachyura) nas regiões de Ubatuba e Caraguatatuba, litoral norte paulista, Brasil". São eles: Adriane Braga, Adilson Fransozo e Patrícia Fumis e Giovana Bertini, pesquisadores do Núcleo de Estudos em Biologia, Ecologia e Cultivo de Crustáceos (Nebecc), vinculado à Universidade Estadual Paulista (Unesp). Os caranguejos representam um grupo altamente signifi- cativo dentre os decápodos marinhos, com aproxima- damente 5 mil espécies descritas em todo o mundo. O litoral brasileiro é composto por 302 espécies de bra- quiúros, sendo que destas 188 ocorrem no litoral pau- lista. Nas duas regiões investigadas pelos pesquisadores foram realizadas coletas mensais em sete profundida- des, durante o período de dois anos. Foram obtidos 30.231 caranguejos (13.305 em Ubatuba e 16.926 em Caraguatatuba), abrangendo nove superfamílias (Dro- mioidea, Homoloidea, Calappoidea, Leucosioidea, Ma- joidea, Parthenopoidea, Portunoidea, Xanthoidea e Pin-

notheroidea), 16 fa- mílias é 29 gêneros re- presentados por 44 espécies. Comparan- do-se as duas regiões de estudo percebe-se que a maior diversida- de, tanto para o núme- ro de espécies quanto para o de indivíduos, foi registrada na região de Cara- guatatuba, o que pode estar relacionado com a presen- ça das ilhas Vitória, Búzios e de São Sebastião. "As ilhas são de suma importância para a manutenção de várias espécies de caranguejos formando uma ponte de liga- ção, tanto para as espécies que chegam do mar aberto quanto para as que estão nas enseadas e migram para as regiões de maiores profundidades", descreve o estudo.

BlOTA NEOTROPICA - VOL. 5 - N° 2 - CAMPINAS - 2005

w ww. scielo.br/sciel o.php?script=sci_arttext&pid=SI 676-

06032005000300003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Tecnologia

Sêmen suíno resfriado

Um contêiner de baixo custo para o transporte e res- friamento de sêmen suíno à temperatura de 17°C ou 5°C, durante um período mínimo de 24 horas. O pro- cesso de fabricação desse recipiente está disponível no artigo "Desenvolvimento de um sistema de resfriamen- to e conservação de sêmen suíno", escrito por pesquisa- dores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No Brasil, a utilização do sêmen suíno trans- portado não é rotina nas centrais de inseminação. Cada sistema de produção mantém a sua própria central e, em alguns casos, ocorre o transporte das doses insemi- nantes para centrais próximas ou para outros estados. "No entanto, o transporte é realizado dentro de caixas de isopor, sem nenhum controle da temperatura, e, em alguns casos, em geladeiras de menor tamanho ou cai- xas térmicas que mantêm a temperatura de 17°C", mos- tra o artigo. O contêiner, desenvolvido na Escola de En- genharia Mecânica da UFMG, constitui-se de três blocos de isopor: um bloco compacto formando o fun- do, um bloco central com perfurações para colocação dos blocos menores, contendo os frascos plásticos que acondicionam o sêmen diluído e uma perfuração cen- tral para colocação do sistema refrigerador. "A utiliza- ção dessa tecnologia de resfriamento, estocagem e transporte de sêmen suíno pode contribuir para o au- mento da difusão da inseminação artificial em locais de menor escala de produção e melhorar o nível genético nas granjas", conclui o artigo.

ARQUIVO BRASILEIRO DE MEDICINA VETERINáRIA E ZOO-

TECNIA - VOL. 58 - N° 1 - BELO HORIZONTE - FEV. 2006

www.scielo.br/scielo.php7script=sci_arttext&pid=S0102-

09352006000100012&lng=pt&nrm=íso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 59

Page 59: Os riscos da cesárea

• Algas dão pistas sobre o clima

Um sensor que auxiliará na compreensão das mudanças climáticas no planeta foi cria­do por uma equipe de pesqui­sadores do Centro Nacional de Oceanografia e da Escola de Eletrônica e Ciência da Computação, ambos da Uni­versidade de Southampton, na Inglaterra. O microchip foi projetado para medir a quan­tidade e os diferentes tipos de algas presentes no oceano. Ao passar por dentro do sensor em alta velocidade o aparelho

Pesquisadores do Massa­chusetts Institute of Tech­nology (MIT) e do Brigham and Women's Hospital, nos Estados Unidos, desenvol­veram partículas em escala nanométrica e inseriram ne­la uma droga chamada do­cetaxel, capaz de atacar com alta eficiência tumores can­cerígenos. A novidade desse experimento é que as par­tículas, de cerca de 150 na­nômetros ( l nanômetro

lança um feixe de luz na planta e ela responde com a emissão de luz em diferentes compri­mentos de onda, permitindo sua caracterização. O sensor

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equivale a l milionésimo de milímetro), conseguem encontrar as células doen­tes no organismo e descar­regar o remédio dentro de­las, deixando intactas as células sadias da vizinhan­ça. A pesquisa foi conduzi­da com sucesso em camun­dongos de laboratório. "Uma simples injeção de nanopartículas erradicou a doença em cinco dos sete animais tratados e os ou-

também capta informações sobre as propriedades elétricas das plantas. As algas dão pistas sobre o clima porque um gru­po delas produz certos com-

tros dois tiveram significa­tiva redução nos tumores'; disse Omid Farokhzad, um dos líderes da pesquisa, em nota divulgada pelo MIT. Apesar dos bons resultados, os pesquisadores dizem que ainda é preciso fazer uma série de testes até que o sis­tema- projetado para trans­portar também outros tipos de medicamento para dife­rentes doenças - possa ser usado em humanos. •

postos, como dimetil-sulfo­nio-proprionato (DSMP), que podem ser ativados por altera­ções climáticas. Além disso, to­das as algas util izam dióxido

Page 60: Os riscos da cesárea

de carbono, embora apenas al­gumas mantenham esse gás em seus esqueletos calcifica­dos. "Para compreender isso, precisamos ser capazes de dife­renciar os tipos de algas e con­tá-las usando um equipamen­to preciso e barato o suficiente para que muitos possam ser usados. Esse é o maior desafio da nossa pesquisa", disse Peter Burkill, do Centro Nacional de Oceanografia, em comuni­cado da instituição. •

• Minissatélites no espaço

Os primeiros testes com o protótipo de um minissatélite que tem o tamanho de uma bola de vôlei, desenhado para flutuar no espaço mantendo sempre uma posição precisa, foram realizados no dia 18 de maio passado pelos astronau­tas da Estação Espacial Inter­nacional (ISS). Construído por pesquisadores do Massa­chusetts Institute of Techno-

logy (MIT), a idéia é que ele possa, no futuro, ser empre­gado em uma série de ativida­des espaciais, como conserto a danos na ISS e veículos es­paciais e para reabastecimen­to de outros satélites. Poderá também ser usado como par­tes de telescópios maiores e ajudar na identificação de pla­netas na órbita de outras es­trelas. Os testes feitos dentro da estação espacial permitem aprimorar a tecnologia num ambiente de microgravidade menos arriscado do que as se­veras condições de tempera­tura do espaço sideral. Dois outros minissatélites deverão ser enviados para testes na ISS ainda neste ano. •

• Chips mais eficientes

Um dos grandes obstáculos na fabricação de chips, células solares e outros semicondu­tores é a dificuldade de remo­ver das diversas camadas de

silicone que formam esses componentes os átomos de hidrogênio, que são, proposi­tadamente, inseridos para evi­tar a oxidação do material du­rante sua montagem. A boa notícia é que um time de pes­quisadores norte-americanos liderado pelo engenheiro elé­trico e de computação Philip Cohen, da Universidade de Minnesota (EUA), desenvol­veu uma técnica baseada no uso de laser que pode realizar a tarefa sem danificar o mate­rial. O método convencional emprega uma fonte de calor, de cerca de 800 graus Celsius, que pode comprometer a es­trutura cristalina do silicone e causar defeitos no chip. O la­ser, por sua vez, utiliza tem­peraturas bem'mais baixas. A descoberta, já patenteada pe­los cientistas e publicada na revista Science de 19 de maio, pode reduzir o custo de pro­dução e melhorar a qualidade de microchips e semicondu­tores em geral. •

• Ajuda do céu no combate à gripe

Um sistema criado para ga­rantir a pureza do ar em na­ves e estações espaciais pode­rá ser empregado para conter o alastramento de uma possí­vel pandemia da gripe aviá­ria. É o que garantem os pes­quisadores da AirinSpace, empresa francesa especializa­da em equipamentos de bio­proteção que, com apoio do Programa de Transferência Tecnológica da Agência Espa­cial Européia (ESA), adaptou com sucesso uma tecnologia utilizada para proteger astro­nautas no espaço para uso em hospitais. O sistema, bati­zado de Plasmer, utiliza po­derosos campos elétricos e câmaras de plasma gelado para eliminar microorganis­mos existentes no ar, redu­zindo praticamente a zero os riscos de contaminação por vírus, fungos e bactérias. Cer­ca de 70 centros médicos na França já empregam a tecno­logia, que poderá controlar o risco de contaminação caso ocorra uma pandemia da gripe do frango. A empresa francesa anunciou que o sistema tem condições de ser instalado, em poucas horas, em escolas, gi­násios e outros locais fecha­dos, que se transformariam em centros de emergência tem­porários livres da contamina­ção por microorganismos. •

PESQUISA FAPESP 124 • JUNHO DE 2006 • 61

Page 61: Os riscos da cesárea

Conforto no trabalho Uma cadeira ergonômica, com mesa, mouse, tela e apoio para teclado acopla- dos, é uma das mais recentes criações da empresa Das Haus, abrigada na Ekoa, in- cubadora de empresas da Universidade Salgado de Oli- veira (Universo) e a primeira de Goiânia (GO). A idéia de criar uma cadeira confortá- vel para quem passa boa parte do tempo em frente a uma tela de computador surgiu há três anos, durante um concurso de design pro- movido pela Associação Bra- sileira de Indústrias do Mo- biliário. Desde então várias pesquisas sobre ergonomia foram feitas pelo designer de produto Marcos Leão, dono

Ergonomia em móvel integrado

da empresa, com o apoio de ortopedistas, fisioterapeutas e de dois estudantes do cur- so de design. Na pesquisa fei-

necessário criar um móvel integrado, projetado para usuários que passam longos períodos trabalhando com o

ta, a equipe avaliou que era computador. "O diferencial

do móvel está na posição que a pessoa usa para traba- lhar no computador", diz Leão. A peça, projetada para prevenir dores e lesões na coluna ocasionadas pelo im- pacto entre as vértebras e os músculos, também conta com um suporte para os pés. A previsão é que no segundo semestre deste ano a cadeira, feita com tubos de aço e car- bono e assento de espuma injetada, comece a ser vendi- da. Para isso, a Das Haus fir- mou uma parceria com uma indústria goiana. O preço es- timado é de cerca de R$ 3 mil. Mesmo antes de entrar no circuito comercial, duas uni- dades já foram vendidas du- rante exposição em feiras. •

Linha de Produção Brasil

■ Interação entre luz e som

Um estudo que mostra novas propriedades da interação en- tre luz e ondas acústicas em fibras de cristal fotônico, um tipo de fibra óptica caracteri- zado pela presença de ar ao redor de seu núcleo e com grande potencial de aplicação em telecomunicações, foi ca- pa da edição de Io de maio da Optics Express, revista da Op- tical Society of America. Um outro artigo sobre o mesmo tema foi publicado na edição on-line e na versão impressa da primeira semana de junho da revista Nature Physics. Os estudos resultam de um traba- lho conjunto conduzido por

pesquisadores do Laboratório de Comunicações Ópticas da Universidade Estadual de Cam- pinas (Unicamp), dirigido pe- lo professor Hugo Fragnito, coordenador do Centro de

Interior da fibra fotônica: estudo melhora potencial d aplicação

Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof) de Campinas, e pes- quisadores da Universidade de Bath, da Inglaterra, do Insti- tuto Max-Planck, da Alema- nha, e do Institut Femto, da

28KW

França. "Existem algumas aplicações em que a interação entre luz e ondas acústicas re- sulta em um indesejado fenô- meno de espalhamento de luz, chamado Brillouin, que limita a potência óptica que pode ser transmitida pela fi- bra", diz o pesquisador Paulo Dainese, da Unicamp, primei- ro autor do artigo. Outras aplicações requerem exata- mente o contrário, ou seja, aumentar o efeito. "Nosso tra- balho abre oportunidades de explorar ambos os casos", diz Dainese. O trabalho publica- do também mostra particu- laridades da fibra de cristal fo- tônico em comparação com a fibra óptica tradicional. Uma delas é a capacidade de confi-

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Page 62: Os riscos da cesárea

nar simultaneamente fótons (luz) e fônons (ondas acústi- cas) no núcleo da fibra de cristal fotônico, resultando numa interação mais forte. •

■ Habitação em portal na rede

O Programa de Tecnologia de Habitação (Habitare) colocou em seu portal, na seção Publi- cações, várias obras que po- dem ser consultadas gratuita- mente pelos interessados. Resultantes de projetos finan- ciados pelo programa, as pu- blicações são compostas de três séries, divididas em Cole- tânea, Coleção e Recomenda- ções Técnicas. Na série Cole- tânea são quatro volumes que abordam temáticas diferencia- das sobre a área de tecnologia da habitação, um dos quais tra- ta da Inserção urbana e avaliação pós-ocupação da habitação de interesse social. Na Coleção o leitor encontra, entre outras, a obra Pluralismo na habitação, que aborda o processo utilizado em seis programas habitacio- nais da Região Metropolitana de São Paulo e faz a avaliação de cada um deles. E na série Recomendações Técnicas o ob- jetivo da publicação é transfe- rir conhecimentos técnicos para profissionais que atuam na cadeia produtiva da cons- trução. O programa Habitare tem o apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência e Tecnologia. •

riT«ÍOái[tliM^l

produzir clones A Embrapa Recursos Ge- néticos e Biotecnologia, unidade da Empresa Bra- sileira de Pesquisa Agrope- cuária, de Brasília, fechou um acordo com a empresa Brasif para transferência da tecnologia de clonagem de bovinos desenvolvida pela instituição. O objetivo da parceria é aumentar a eficiência da técnica para diminuir a perda de clones durante a gestação e au- mentar a sobrevivência após o nascimento. A esti- mativa é que em três anos o primeiro clone bovino resultante da parceria che- gue ao mercado. A Brasif ficará encarregada do re- passe da tecnologia para o setor produtivo. O primei- ro passo para isso é a cons- trução de um laboratório

destinado à clonagem, que funcionará inicialmente dentro de uma fazenda da empresa em Minas Gerais, com a contratação e capa- citação de pessoal especia- lizado. Em contrapartida, a instituição repassará à Brasif o protocolo conten- do todas as etapas para a produção de clones bovi- nos, baseada na tecnologia de transferência nuclear que resultou no primeiro caso bem-sucedido de clo- nagem no Brasil com o nascimento de uma fêmea da raça simental chamada Vitória, nascida em 2001. Por essa técnica, o núcleo, que contém toda a infor- mação genética, de uma célula adulta é retirado e fundido com um óvulo sem núcleo. •

Vitória, primeira clonagem de bovino da Embrapa

■ Brasileiro ganha prêmio nos EUA

Um sistema de dessalinização de água para regiões carentes à base de energia solar criado pelo estudante Denilson Luz Freitas, de 18 anos, de Vitória da Conquista, na Bahia, foi premiado em duas categorias na Intel International Science and Engineering Fair 2006 (Intel Isef), realizada de 7 a 13 de maio, em Indianápolis, Es- tados Unidos. A maior feira mundial de ciências e enge- nharia para jovens de ensino fundamental, médio e técnico teve a participação de cerca de 1.500 estudantes de 47 países. Do Brasil participaram nove projetos, selecionados na Fei- ra Brasileira de Ciência e Tec- nologia 2006, realizada no fi- nal de março e organizada pelo Laboratório de Sistemas Integráveis da Escola Politéc- nica da Universidade de São Paulo (USP). O sistema de dessalinização, batizado de Projeto Aram, ficou com a primeira colocação no prê- mio concedido pelo Departa- mento do Interior norte-ame- ricano. No prêmio concedido pelo Colegiado Nacional de Inventores e Inovadores, o sis- tema brasileiro também foi premiado. No total, Denilson recebeu US$ 2 mil. Em sua 47a edição, a Intel Isef 2006 ofereceu US$ 4 milhões em prêmios, incluindo três bol- sas de estudos no valor de US$ 50 mil. .

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 63

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TECNOLOGIA

COMPUTAÇÃO

Vidas programadas

Projetas buscam melhorar o trânsito para o usuário do transporte coletivo

ÜI NORA II ERENO

elhorar a vida do usuário do transpor­te coletivo e das operadoras de ôni­bus é a proposta de dois estudos rea­lizados em universidades que estão prontos para serem aplicados. Um deles, fruto de um projeto desenvol­vido por pesquisadores da Coorde­nação dos Programas de Pós-Gra­duação de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Ja­neiro (UFRJ), utiliza rastreadores nos ônibus para oferecer um serviço

diferenciado ao usuário. O outro, criado no Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campi­nas (Unicamp ), tem como base um programa que faz desde a tabela dos horários de veículos até a escala de serviço dos motoristas e dos cobradores e, como re­sultado, distribui mais racionalmente a operação da frota e o trabalho dos funcionários.

O projeto da Coppe foi concebido para funcionar em linhas especiais de ônibus urbano com clientes ca­dastrados que ligam para uma central de atendimento, em um esquema similar ao dos radiotáxis, mas sem a mesma flexibilidade porque o atendimento é feito de forma simultânea com outros usuários. Os atrativos para o cliente incluem preço menor que o cobrado em uma viagem de táxi e a economia do tempo gasto nas viagens em comparação com o carro particular, já que o ônibus trafega em faixas exclusivas.

"É uma opção de transporte mais segura, ofereci­da para veículos que operam com menor capacidade,

Page 64: Os riscos da cesárea

como microônibus de 25 a 30 lugares'; diz o professor Ronaldo Balassiano, do Núcleo de Planejamento Es­tratégico de Transportes (Planet) da Coppe, coorde­nador do projeto, que recebeu financiamento de R$ 16 mil do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e de R$ 28 mil da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). O fator segu­rança é um diferencial vantajoso também para as operadoras. Como é um veículo rastreado, qualquer anormalidade ou mudança não programada no traje­to é detectada pela central.

Controle preciso - O sistema de rastreamento utili­za um chip que emite dados com as coordenadas geo­gráficas da posição dos veículos. Os sinais emitidos são captados por antenas distribuídas pelas cidades­as mesmas utilizadas para a transmissão de sinais para o celular- e retransmitidos para uma central de con­trole. A tecnologia permite adicionar uma série de dispositivos acoplados ao sistema de rastreamento que ajudam a operadora a ter um quadro mais deta­lhado do funcionamento da frota que está nas ruas. Entre eles está o monitoramento do fluxo de passa­geiros na entrada e na saída, o número de passagei­ros em trechos específicos da área servida pelos ôni­bus, o consumo de combustível e a maneira como o motorista está conduzindo o veículo.

Como é um sistema dinâmico, em vez de os ôni­bus operarem vazios fora dos horários de pico, eles podem ser redirecionados para atender a outros cha-

macios. "Os microônibus podem operar, por exemplo, em áreas onde comercialmente não é interessante tra­balhar com um veículo comercial comum, como bairros onde as moradias ficam mais dispersas, com intervalos predefinidos", diz Balassiano. São áreas em que o serviço regular não atende de forma adequada porque não há demanda suficiente o dia todo.

O público-alvo é bem amplo e inclui pessoas que usam carros nos deslocamentos diários ou esporádi­cos, usuários da terceira idade com dificuldades de locomoção ou visão, adolescentes que fazem várias atividades no dia-a-dia e dependem de alguém que os transporte, além dos portadores de deficiências. As rotas podem ser estabelecidas de duas naaneiras, pon­to fixo de origem ou origem flexível. O ponto fixo de origem, como o próprio nome diz, é um local onde os passageiros se concentram para, em horários prede­terminados, pegar o ônibus e serem transportados para destinos flexíveis, ou seja, em locais diferentes. Pela rota origem flexível, o ônibus passaria nas proxi­midades ou na casa de cada passageiro, que seria leva­do a um destino fixo, um ponto central e favorável a todos. Como os veículos são rastreados, tanto se po­deria alterar o trajeto da linha de acordo com os im­previstos do percurso quanto mudá-lo segundo o de­sejo dos passageiros.

Uma pequena amostra do projeto está funcionan­do experimentalmente no campus do Fundão, dentro da Cidade Universitária do Rio de Janeiro, em uma frota composta por nove ônibus, três dos quais são re­servas, usados apenas em caso de problemas com os

Page 65: Os riscos da cesárea

veículos da frota principal. Seis ônibus da linha reito­ria-alojamentos que atendem gratuitamente cerca de 10 a 15 mil usuários estão circulando com aparelhos rastreadores. As informações captadas são retransmi­tidas para os computadores da Coppe, de onde é pos­sível acompanhar, num mapa local, o trajeto e a loca­lização dos veículos. "A nossa idéia é que o usuário da universidade possa, da sua sala, acessar o computador e saber exatamente onde o ônibus se encontra': diz Balassiano. A previsão é que até o final do ano essa in­formação esteja disponível para o usuário.

Novos produtos - Os equipamentos rastreadores instalados nos veículos são da marca Geocontrol, uma empresa fabricante de equipamentos que se tor­nou parceira efetiva no projeto. Na atual fase, a em­presa está encarregada do desenvolvimento ou adap­tação de softwares para os novos produtos que estão

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sendo concebidos na universidade a partir do proje­to original. O pesquisador ressalta que mais impor­tante do que ter os aparelhos instalados é o uso que se pode fazer dessa ferramenta no planejamento ur­bano. A experiência do campus do Fundão será es­tendida para a cidade de Vitória, no Espírito Santo, que começará a testar o sistema na sua frota de cerca de 300 ônibus municipais que circulam diariamente. O acordo foi fechado com a prefeitura e teve a parti­cipação da Geocontrol, empresa prestadora de servi­ços para as secretarias de Segurança Pública do Rio de Janeiro e do Espírito Santo.

Com os resultados do projeto, Balassiano quer oferecer transporte de qualidade e, como conseqüên­cia, tirar das ruas parte dos automóveis particulares hoje em circulação. "O transporte público também tem sido prejudicado pela lentidão do trânsito", diz. A velocidade média do transporte por ônibus é inferior

Page 66: Os riscos da cesárea

a 20 quilômetros por hora em um grande número de municípios brasileiros. "A idéia que estamos propon­do, de oferecer um sistema de transporte sob deman­da, já vem sendo aplicada em alguns casos experi­mentalmente e em outros de forma definitiva em cidades de menor porte da Europa", diz.

Tabelas e escalas - O outro projeto para melhorar o transporte coletivo, coordenado pelo professor Ar­naldo Moura, da Unicamp, já foi testado na Serra Verde e na Pioneira, duas empresas de ônibus urbano de Belo Horizonte, em Minas Gerais, e na Metra, de São Bernardo do Campo, na região do ABC paulista. O projeto começou com uma dissertação de mestra­do de Tallys Yunes, apoiada pela FAPESP, para a cons­trução de escalas de ônibus urbanos na capital minei­ra. "O programa tinha que alocar a frota e o pessoal, com os horários de saída já predefinidos", diz Moura.

Para responder a essas questões empregaram-se modelos matemáticos. Em um deles usou-se a Progra­mação Linear, técnica clássica que trabalha com mode­los compostos de variáveis de decisão e tem as restri­ções expressas por equações e inequações lineares. No outro usou-se a Programação por Restrições, lingua­gem que permite tratar de problemas mais complexos.

O estudo feito em Belo Horizonte teve continui­dade com duas bolsas de iniciação científica de André Ciré e Tony Lopes, orientados por Moura. Nessa fase o desafio foi ampliado. Era necessário otimizar a pro­gramação da Metra, empresa de ônibus urbano de São Bernardo do Campo, uma tarefa mais difícil do que a anterior, pois os horários de partida não eram predeterminados, mas também tinham de ser calcu­lados. Foi desenvolvido um programa que tem como entrada as demandas de transporte de passageiros nos dois sentidos da linha (bairro-centro e vice-versa) por faixa horária, os tempos de percurso do ônibus por faixa horária e por sentido, a qualidade de serviço (número de passageiros transportado por cada ôni­bus) e os tempos de percurso do ponto até a garagem dos ônibus por faixa horária.

O software processa esses dados e produz uma es­cala dos ônibus que vão fazer os percursos, uma escala das duplas de motoristas e cobradores que vão ope­rar os ônibus e os horários de partida nos pontos. "É uma programação completa para cada linha da frota", diz Moura. Para conseguir a melhor solução para tan­tas variáveis, foram utilizados algoritmos genéticos, que tentam imitar o processo de evolução natural, e um método tipo busca tabu, que guarda informações sobre buscas anteriores para guiar o processo de pes­quisa usando' memória de longo prazo.

Técnicas similares às que foram usadas para ases­calas de ônibus urbanos serviram de base para a cria­ção de dois outros softwares de escalas. Um deles, em uso há dois anos no Hospital das Clínicas da Unicamp, responde pela escala de serviço mensal de cerca de 1.500 funcionários que trabalham na enfermagem da instituição. O outro, que trata do escalonamento de atividades de engenharia no processo de preparo de poços de petróleo em águas profundas, ficou com o terceiro lugar na categoria produção do Prêmio Pe­trobras de Tecnologia de 2005.

Desenvolvido por Rômulo Albuquerque Pereira, sob orientação de Moura e do professor Cid Carvalho de Souza, também do Instituto de Computação, o software faz o escalonamento de tarefas que serão exe­cutadas para perfurar e colocar um campo de petró­leo em produção. "As operações têm de seguir uma ordem predeterminada para que não haja desperdício de recursos alocados para executar essas tarefas, como barcos-sonda especiais e plataformas de perfuração", diz Moura. •

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O TECNOLOGIA

AGRICULTURA

Empresa desenvolve equipamentos que controlam melhor o corte da cana-de-açúcar e permitem pulverizar e irrigar outras culturas com mais precisão

YURI VASCONCELOS

Eficienci

té o final deste ano os usineiros brasileiros poderão contar com uma ferramenta ino- vadora para melhorar a produção de seus ca- naviais. Pesquisadores da empresa Enalta Ino- vações Tecnológicas, de São Carlos, e da Uni- versidade Estadual de Campinas (Unicamp)

criaram um monitor de produtividade que pode ser adaptado em máquinas colhedoras de cana-de-açúcar. O siste- ma gera informações que permitem um melhor gerenciamento da área plantada e contribuem para elevar a produtivida- de por hectare. Com um sistema GPS, sigla de Global Positioning System, ins-

talado na máquina, que faz o posiciona- mento geográfico (latitude, longitude e altitude) por satélite, os dados mostram, por exemplo, a produção da área colhida.

"O equipamento oferece ao produtor uma radiografia precisa de sua proprie- dade, identificando onde a produtivida- de é maior ou menor. Embora existam no mercado monitores para colhedoras de grãos, como soja, milho e trigo, esse é o primeiro voltado exclusivamente para a cultura de cana-de-açúcar", afirma o engenheiro agrônomo Domingos Gui- lherme Cerri, pesquisador da Faculda- de de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp, que coordenou o projeto.

O sistema encontra-se em estágio final de desenvolvimento e dois protó- tipos estão em testes em colhedoras das usinas Catanduva e São Domingos, am-

bas no município de Catanduva, no in- terior paulista. Ele é composto por um kite uma série de sensores instalados nas máquinas que identificam, por exemplo, o peso da cana cortada, que passa na esteira transportadora da máquina, para determinar o fluxo colhido e medir a quantidade de matéria-prima a ser lan- çada no veículo de transbordo. Os sen- sores também revelam a velocidade de deslocamento da colhedora, a condição de corte de base da cana e o funciona- mento da esteira, entre outros dados do processo, reduzindo erros provenientes de paradas indesejadas, troca do veículo de transbordo e manobras realizadas ao longo da colheita.

Um software instalado no compu- tador de bordo da colhedora gerencia todas as informações e gera um mapa

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da produtividade do canavial. "Creio que essa tecnologia, inédita no merca- do, dará uma importante contribuição ao sistema de gerenciamento da cultu- ra e permitirá que a produção de cana, tradicionalmente mais atrasada do que a cultura de cereais, tenha um avanço significativo", diz o engenheiro agríco- la Paulo Graziano Magalhães, professor da Feagri, que também participou do desenvolvimento do sistema.

Com as informações geradas, será possível cruzar mapas de produtividade com informações específicas do solo para identificar problemas de baixa pro- dução, permitindo que os produtores adotem um manejo diferenciado para corrigir o problema. O equipamento já foi patenteado e custará entre R$ 20 mil e R$ 25 mil - valor relativamente peque-

no diante do custo de uma colhedora, em torno de R$ 700 mil. Ele poderá ser instalado diretamente nas fábricas de colhedoras ou comprado avulso pelos donos de usinas para equipar sua frota.

Contatos gerais - "Estamos sentindo que é um produto com boas perspecti- vas comerciais porque não temos con- correntes no mercado. Todos os meses recebemos telefonemas de produtores querendo saber em que estágio está o projeto, mas só queremos lançá-lo quan- do ele estiver totalmente confiável", ex- plica o engenheiro elétrico Cleber Ri- naldo Manzoni, dono da Enalta. "Existe perspectiva de venda para outros países da América do Sul, onde a cultura de cana é forte, e já estamos mantendo con- tato com os fabricantes de colhedoras,

como a Case New Holland e a John Dee- re", diz Manzoni.

O monitor de produtividade para cultura de cana-de-açúcar é apenas um dos sistemas criados recentemente pela Enalta, uma empresa de base tecnológi- ca voltada para o desenvolvimento de equipamentos de automação para má- quinas agrícolas e de sistemas de geren- ciamento de produção no campo. O for- te da empresa são os equipamentos para a cultura de cana-de-açúcar, mas ela tam- bém fornece produtos e sistemas para as áreas florestal e de fruticultura.

Desde que foi criada, em 1999, a Enalta participa de quatro projetos (um deles em fase inicial) aprovados no Pro- grama Inovação Tecnológica em Peque- nas Empresas (Pipe) da FAPESP. O pro- jeto relativo ao desenvolvimento de um

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Page 69: Os riscos da cesárea

controlador automático de pulverização e de um sistema de informações geo- gráficas para agricultura foi finalizado em outubro do ano passado. "O apoio da FAPESP foi muito importante para o nosso crescimento, pois no começo não tínhamos faturamento e dependíamos basicamente das bolsas da Fundação", diz Manzoni. "Começamos com duas pessoas - eu e o meu ex-sócio - e hoje temos 20 funcionários registrados, além de 14 bolsistas. Nosso faturamento tem crescido por volta de 30% ao ano e che- gou a R$ 1 milhão em 2005."

O crescimento da empresa foi, em parte, devido ao estabelecimento de par- cerias com universidades e institutos de pesquisa, como Unicamp, Universidade de São Paulo (USP), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Universidade Estadual Paulista (Unesp) e Instituto Nacional de Pesquisas Espa- ciais (Inpe). Valendo-se da parceria com pesquisadores dessas instituições, a Enal- ta conseguiu desenvolver uma vasta li- nha de equipamentos voltados para as áreas de colheita, pulverização e irriga- ção agrícolas. "Estamos terminando produtos para os setores de plantio e cor- retivos de solo. Com isso, teremos equi- pamentos destinados a todas as fases da produção agrícola. Queremos oferecer um amplo leque de produtos in- tegrados, compatíveis entre si", afirma Manzoni.

O sistema de gerenciamento para pulverização de precisão fi- nalizado em 2005, por exemplo, possibilita o perfeito controle da pulverização e uma aplicação ba- lanceada dos defensivos agrícolas utilizados para o controle de pra- gas, como insetos, ervas daninhas e fungos. "Atualmente, quando há uma infestação na lavoura, o agrô- nomo visita o local e calcula visualmen- te a quantidade de agroquímico a ser aplicado. Nosso sistema, ao contrário, permite a aplicação otimizada, confor- me a necessidade de cada área da planta- ção. Assim, áreas mais atingidas por pra- gas recebem mais defensivos, enquanto as menos afetadas, menores quantida- des do produto", destaca o engenheiro eletrônico Ivan Rogério Bizari, funcio- nário da Enalta, que coordenou o proje- to de pulverização. O sistema trabalha em conjunto com um sistema de infor- mações geográficas (SIG), um software

Acima, o kit do sistema de pulverização para ser instalado no trator permite uma aplicação balanceada de defensivos agrícolas. Ao lado, sensores sem fio instalados no campo para sistema de irrigação de precisão

também desenvolvido pela Enalta, que fornece um mapa da cultura conforme o grau de infestação.

ara a elaboração do mapa, um técnico agrícola percorre a plan- tação munido de um aparelho GPS e um palmtop fazendo a demarcação das manchas de infestação. Essas informações são carregadas no SIG e anali- sadas por um agrônomo. Em seguida os dados são enviados para o controlador de pulveri- zação, que faz a aplicação au- tomaticamente, conforme a

necessidade da área e sem a interferência do condutor do trator de pulverização. Sensores meteorológicos instalados na máquina permitem que ele faça, instan- taneamente, correções na aplicação, conforme a intensidade da evaporação e da velocidade do vento. O equipamento custa cerca de R$ 22 mil e está disponí- vel para compra desde o início deste ano, período em que foram vendidas três unidades. Quem quiser adquiri-lo em conjunto com o SIG, útil também para o mapeamento da colheita e outras fases da produção, terá que desembolsar mais

R$ 15 mil. De acordo com Cleber Man- zoni, não existem produtos semelhantes no mercado. "A vantagem do nosso sis- tema de pulverização, projetado para controlar todos os parâmetros da ope- ração, é que, ao otimizar a aplicação do agrotóxico, ele reduz a quantidade utili- zada do produto, levando à redução de custos e gerando importantes benefícios ambientais", diz Bizari.

Irrigação de precisão - Outro projeto da Enalta, desta vez em parceria com a Embrapa Instrumentação Agropecuá- ria, também de São Carlos, é um siste- ma de irrigação de precisão, batizado de Irrigap. A agricultura irrigada é res- ponsável por mais de 40% das colhei- tas mundiais e ocupa em torno de 18% das áreas agrícolas do planeta. No Bra- sil é irrigada apenas 4% da área plan- tada, o que demonstra ser alto o po- tencial de crescimento de produção e de melhoria na qualidade do produto agrícola a ser explorado com o uso da irrigação de precisão. A grande vanta- gem do Irrigap quando comparado aos processos tradicionais é a economia de água e de energia que proporciona re- dução de custos.

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"Queremos levar o conceito da agri- cultura de precisão para a irrigação, que é a aplicação espacial variada de água na cultura. Estamos criando um sistema de acordo com as demandas de cada pe- dacinho da lavoura", explica o engenhei- ro eletricista e pesquisador da Embrapa André Torre Neto. Para ele, diversos fa- tores contribuem para a necessidade di- ferenciada de irrigação numa mesma plantação, como variações no relevo, di- ferenças da textura do solo, insolação,

estágios de desenvolvimento da planta e do sistema radicular (da raiz). "No siste- ma de irrigação convencional, esses fa- tores não são levados em conta", afirma Torre Neto.

A plataforma desenvolvida pela par- ceria entre a Enalta e a Embrapa é com- posta por uma série de sensores sem fio que captam basicamente informações sobre umidade e temperatura. Eles são instalados no campo e fornecem infor- mações sobre a variabilidade espacial da

quantidade de água necessária. No siste- ma de automação de irrigação tradicio- nal, a necessidade hídrica de determinado talhão (uma das unidades de produção de uma fazenda) é resultado da aplica- ção de poucos sensores, a partir dos quais se calcula um valor médio da vazão da água. "Na irrigação de precisão, nossa idéia é instalar sensores a cada 50 me- tros, dispostos no formato de uma gra- de, para conhecermos a real necessidade de água em cada ponto, criando assim um mapa da necessidade hídrica do talhão. A partir daí podemos estruturar o sistema hidráulico de irrigação para atender de forma diferenciada cada uma das zonas de manejo", diz Torre Neto. Para cada 25 hectares de planta- ção, informa o pesquisador, serão insta- lados cem sensores.

Uma unidade piloto do sistema está sendo implantada numa plantação de laranja na Fazenda Maringá, da Fischer Agropecuária, no município paulista de Gavião Peixoto. Até o final do ano ele estará totalmente instalado e operacio- nal, com os cem sensores previstos no projeto. "No início de 2007 faremos os mapas de necessidade hídrica e as análi- ses para a criação das diversas zonas de manejo. A avaliação do sistema, com da- dos sobre a economia de água e energia, vai ocorrer em 2008. Até lá a Enalta co- locará no mercado vários subprodutos para monitoramento e automação da ir- rigação, como o sensor de umidade que agora será fabricado no Brasil, além de outros componentes", afirma Torre Neto. A estimativa é de o índice de nacionali- zação do sistema de irrigação da empre- sa atingir a marca dos 50%. •

/ OS PROJETOS \

Desenvolvimento de um monitor de produtividade de cana-de-açúcar para obtenção de mapas de produtividade para colhedoras autopropelidas

Sistem(

da ativi na aqri de aqui

3 para gerenciamento dade "pulverização" cultura com tecnologia sição automática

Desenvolvimento de plataforma tecnológica para irrigação de precisão em culturas perenes

ue uduos no campo MODALIDADE

Programa Inovação Tecnológica em Peguenas Empresas (Pipe)

MODALIDADE Programa Inovação Tecnológica em Peguenas Empresas (Pipe)

MODALIDADE Programa Inovação Tecnológica em Peguenas Empresas (Pipe)

COORDENADOR

ANDRé TORRE NETO - Embrapa/Enalta

COORDENADOR DOMINGOS GUILHERME PELLEGRINO

CERRI - Unicamp/Enalta

COORDENADOR CLEBER RINALDO MANZONI - Enalta

INVESTIMENTO R$ 352.639,10 e US$ 30.505,00 (FAPESP)

INVESTIMENTO R$ 313.248,00 (FAPESP)

INVESTIMENTO R$ 148.454,12 (FAPESP)

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 71

Page 71: Os riscos da cesárea

T TECNOLOGIA

ENERGIA

Soja na refinaria Centro de pesquisa da Petrobras desenvolve técnica para uso de óleo vegetal na produção de diesel

fisturar óleo de soja no processo de refino do diesel é a nova tec- nologia desenvolvida ao longo de 18 meses por pesquisadores do Centro de Pesquisas e Desenvol- vimento (Cenpes) da Petrobras. Inédito em todo o mundo, o no- vo sistema de produção já tem

patentes depositadas no Brasil e no exterior. O die- sel, usado por caminhões, ônibus, tratores, barcos, locomotivas, geradores e máquinas industriais, não sofrerá modificações essenciais na sua estru- tura química, que continuará a mesma. Por ser o mesmo combustível, serão evitados os testes com- plementares em veículos. Os testes realizados nos laboratórios e plantas piloto da empresa aprova- ram o produto para uso imediato.

O novo diesel também não poderá ser classifi- cado como biodiesel. O biodiesel é o acréscimo de óleo vegetal ao diesel, já nas distribuidoras de combustíveis. Esses óleos passam antes por um processo químico de transesterificação, quando ele é purificado para não causar problemas aos mo- tores. O novo combustível nasce durante o proces- so de refino. "É feita a inserção de óleo de soja du- rante a produção do diesel", diz Alípio Ferreira Pinto Júnior, gerente-geral de abastecimento do Cenpes. O combustível estará disponível nos pos- tos de abastecimento a partir de 2007 e vai contri- buir para reduzir a importação desse produto ou do petróleo mais denso usado para produzi-lo, existente em pouca quantidade nos poços petrolí- feros brasileiros.

Dos 40 bilhões de litros de diesel utilizados no país por ano, 2,3 bilhões foram importados em 2005. Inicialmente o Cenpes calcula que serão produzidos 256 milhões de litros anuais do novo diesel, quase 10% do total importado atualmente. As primeiras levas do combustível serão produzi- das em Minas Gerais, no município de Betim, na

Refinaria Gabriel Passos (Regap), e no Paraná, na Refinaria Presidente Getúlio Vargas (Repar), no município de Araucária. Posteriormente, outras refinarias também poderão produzir o novo com- bustível, como em Canoas, no Rio Grande do Sul, e Paulínia, em São Paulo.

As duas refinarias passam agora por uma adaptação logística para recebimento e armaze- namento do óleo de soja, que chegará até elas por caminhão. Essas unidades, além de estarem próxi- mas a centros produtores de soja, possuem esta- ções de hidrotratamento que são fundamentais para produzir o novo diesel, que levará o nome de H-Bio. "Essas estações utilizam o hidrogênio para remover moléculas de enxofre do diesel", diz Pin- to Júnior. Dentro desse processo, sob severas con- dições de pressão e de temperatura, além da adi- ção de outros produtos químicos que promovem a catalise (aceleram a reação química), o hidrogê- nio também quebra as moléculas do óleo vegetal que se transformam em óleo mineral (diesel). O processo comporta a mistura de 90% de diesel e 10% de óleo vegetal. "De cada 100 litros de óleo de soja inseridos no processo, 96 litros são transfor- mados em óleo mineral." Sobra ainda propano (o gás liqüefeito de petróleo), que poderá também ser aproveitado, e água.

Novo mercado - A soja foi escolhida pela Petro- bras porque sua produção está baseada em uma cultura bem disseminada e uma agroindústria bem desenvolvida no Brasil. Esse setor também é um grande exportador, embora nos últimos anos os preços tenham caído para os produtores brasi- leiros, devido à queda do dólar em relação ao real e ao excesso de grãos no mercado mundial. "A previsão é de que a Petrobras consuma 10% do óleo de soja exportado atualmente, que é de 2,7 bilhões de litros", diz Pinto Júnior. A produção brasileira é de 5,6 bilhões de litros. A soja, no en-

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Page 72: Os riscos da cesárea

Diesel e óleo de soja: união vai produzir o H-Bio, combustível menos poluente

tanto, é apenas uma opção, a mais fácil de ser ob- tida no momento. Tecnicamente outros vegetais já demonstraram boa qualidade para o refino de diesel. "Nós já fizemos testes positivos com ma- mona, babaçu e dendê, entre outras plantas."

Menos enxofre - Uma das vantagens inovadoras do H-Bio diesel é que, com a adoção do óleo de soja, é possível eliminar de vez o enxofre existente normalmente neste combustível. Quando jogado na atmosfera, esse elemento pode se transformar em dióxido de enxofre e até em ácido sulfúrico, contribuindo para a chuva ácida. O diesel vendi- do no Brasil possui entre 0,20% e 0,05% de enxo- fre. O valor menor é distribuído nas regiões me- tropolitanas de maior população. Além de benefícios ambientais, o H-Bio também vai per- mitir uma melhor ignição. "Ele possui um índice de cetano (que é um componente do diesel) alto e isso indica uma boa qualidade de ignição", afir- ma Pinto Júnior. Também chamada de partida a frio, essa função, com bom desempenho, permite uma combustão de melhor qualidade e econo- mia de combustível.

Entre os benefícios econômicos está o fato de o agronegócio se tornar um fornecedor direto para a indústria petroleira, para a fase de refino. A Petrobras vai a partir de agora ficar de olho não só na cotação mundial do petróleo, mas também nos preços internacionais da soja para firmar contra- tos de suprimento com os produtores dessa olea- ginosa. No caso do álcool da cana-de-açúcar e do biodiesel, o fornecimento acontece diretamente para a distribuidora, sem passar por refinarias. A adoção do H-Bio também aumenta a participação de biomassa na matriz energética brasileira, con- solidando a posição de vanguarda da pesquisa com combustíveis renováveis no Brasil. •

MARCOS DE OLIVEIRA

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 73

Page 73: Os riscos da cesárea

f TECNOLOGIA

BIOQUÍMICA

Acura no veneno

ma proteína encontrada no veneno da serpente urutu (Bothrops alterna- tus) demonstrou em testes potencial para atuar como cicatrizante e regene- rador de tecidos lesados, como nos ca- sos de infarto do miocárdio. Depen- dendo da concentração empregada, a alternagina-C ou ALT-C, nome dado à toxina isolada do veneno, tanto po- de promover como inibir a formação de novos vasos sangüíneos. "São dois efeitos opostos", diz a professora He- loísa Sobreiro Selistre de Araújo, do

Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), coordenadora de um grupo que pesquisa venenos de serpente para isolamen- to de compostos naturais e aplicações farmacêuticas.

Em concentrações baixas, a proteína isolada pro- move a formação de novos vasos, o que torna a molé- cula candidata ao desenvolvimento de medicamentos para tratamento de patologias que resultam em uma vascularização inadequada, como infartos, feridas de difícil cicatrização nos membros inferiores, principal- mente em diabéticos, e até mesmo na disfunção erétil. Em altas concentrações, ela inibe a formação de novos vasos, atividade interessante para os tratamentos de câncer e de metástases. Embora os dois efeitos tenham sido verificados nos testes in vitro e in vivo com camun- dongos, os pesquisadores estão concentrando os estu- dos nas atividades de regeneração de tecidos apresenta- das pela toxina, que mostraram ser mais promissoras.

Duas empresas da área far- macêutica demonstraram inte- resse em fazer uma parceria com a universidade para trabalhar no desenvolvimento da nova molé- cula. O laboratório da UFSCar ficará encarregado de todos os testes até a etapa de ensaios pré- clínicos, que consiste de ensaios com animais maiores. Na fase dos testes clínicos, com humanos, que será feita pela empresa, os pes- quisadores vão produzir e forne- cer a quantidade de proteína ne- cessária. Antes da formalização do compromisso com a universi- dade, as empresas aguardam os

0 PROJETO

Utilização da alternagina-C como molécula coadjuvante no processo de formação e inibição da formação de novos vasos sangüíneos

MODALIDADE Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi)

COORDENADORA HELOíSA SOBREIRO SELISTRE DE ARAúJO

- UFSCar

INVESTIMENTO R$ 6.000,00 (FAPESP)

resultados de novos testes, mais específicos, para ava- liar qual a faixa de segurança de concentração da pro- teína. "Esses testes são necessários porque é muito tê- nue a linha que separa o efeito desejado do efeito tóxico", diz Heloísa.

Ferraduras alternadas - A escolha da urutu ocorreu porque os pesquisadores queriam trabalhar com uma serpente tipicamente sul-americana. Além do Brasil, ela é encontrada na Argentina, no Uruguai e no Para- guai. Do mesmo gênero da jararaca (Bothrops), ela re- cebe a denominação alternatus por causa dos desenhos distribuídos pelo seu corpo, em forma de ferraduras alternadas. "A princípio só sabíamos dos efeitos decor- rentes do envenenamento", diz o pesquisador Oscar Henrique Pereira Ramos, que começou a participar da pesquisa durante o seu mestrado e doutorado, realiza- dos no Laboratório de Bioquímica e Biologia Molecu- lar do Departamento de Ciências Fisiológicas da UFS- Car. Hoje ele faz o pós-doutorado no Laboratório de Biofísica e Bioquímica do Instituto Butantan. Os efei- tos após a picada da urutu são principalmente hemor- rágicos, locais ou sistêmicos. Quando são sistêmicos, podem produzir toxicidade no rim, levando à falência renal, e hemorragia no cérebro ou nos pulmões.

"Percebemos que o veneno tinha alguns compo- nentes bastante ativos", diz Ramos. Entre esses compo- nentes estão as desintegrinas, proteínas que interagem com as integrinas, uma classe de moléculas de adesão localizadas na superfície celular. Os processos adesivos ocorrem quando uma célula faz contato com a outra

ou com a matriz extracelular. Es- sas interações são fundamentais para diversos processos biológi- cos, como diferenciação celular, desenvolvimento embrionário, resposta imunológica, manuten- ção da estrutura celular, cicatri- zação de ferimentos e formação de metástases.

A busca por proteínas de in- teresse levou à toxina alternagi- na-C, uma desintegrina isolada pela primeira vez pela pesquisa- dora Dulce Helena Ferreira de Souza, que fazia seu pós-douto- rado no laboratório e hoje é pro- fessora do Departamento de

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Page 74: Os riscos da cesárea

Toxina da urutu atua como cicatrizante e na formação de vasos sangüíneos

Química da UFSCar. A toxina altera o comportamen- to celular porque ela se liga aos receptores de superfície, no caso as integrinas, e dispara uma cascata de sinaliza- ção dentro da célula que culmina com a alteração na expressão de certos genes. Algumas proteínas que são ativadas dentro da célula e alguns genes que passam a ser mais ou menos expressos dentro das células já fo- ram testados pela pesquisadora Márcia Regina Comi- netti, da UFSCar, e identificados em relação aos efeitos cicatrizantes. Os ensaios biológicos sobre a atividade da toxina em células endoteliais de cordão umbilical fo- ram liderados pela professora Verônica Maria Moran- di da Silva, do Instituto de Biologia da Universidade Es- tadual do Rio de Janeiro (Uerj). As células endoteliais formam os capilares sangüíneos e são elas que precisam se dividir para permitir o crescimento dos novos vasos.

Efeito reproduzido - Estudos feitos com camundon- gos comprovaram o efeito da ALT-C na indução e ini- bição da angiogênese, processo de formação de novos vasos que ocorre naturalmente no organismo durante a cicatrização de ferimentos e a regeneração tecidual, pa- ra a restauração do fluxo sangüíneo nos tecidos lesa- dos. Os estudos foram feitos pela pesquisadora Cristina He- lena Bruno Terruggi, atual- mente no Departamento de Ciências da Saúde da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, no ABC paulista, durante parte do seu doutorado feita na Universidade Pa- ris 13, na França.

Para os testes foi utilizado um gel contendo proteínas da matriz extracelular disponível co- mercialmente, chamado matrigel, injetado no tecido subcutâneo abdo- minal dos animais com duas combinações diferentes. No grupo de animais de controle, foi incorporado ao gel o fator de crescimento de fibro- blastos, células envolvidas na produção de vários tipos de fibras e que promovem a angiogênese. O grupo de animais tratados recebeu, além dessa combinação, a toxina alternagina-C em diversas concentrações. Após 14 dias, foi feito um estudo histológico para verificar a formação de novos vasos dentro do matrigel. "O efeito

observado in vivo reproduziu o que havia sido obser- vado in vitrd\ diz Ramos. Assim comprovou-se in vivo a revascularização.

A obtenção da proteína no laboratório ocorre com a passagem do veneno bruto em colunas cromatográ- ficas, processo relativamente simples usado para sepa- rar as substâncias químicas em faixas bem definidas e com rendimento satisfatório para pequenas escalas. Para a produção em larga escala a proteína pode ser ob- tida pela tecnologia do DNA recombinante, estudo que está sendo feito atualmente no laboratório da UFSCar. Por essa tecnologia, o gene de interesse é colocado den- tro de uma célula hospedeira, como bactérias, levedu- ras, células de inseto ou de mamíferos, para produzir a toxina com as propriedades biológicas originais em grande quantidade.

As melhores formulações para a alternagina-C es- tão sendo estudadas nos laboratórios da UFSCar. Entre elas estão o microencapsulamento da proteína em li- possomas, que tem como objetivo proteger o medica- mento para que possa ser entregue no local onde deve atuar, a aplicação na forma livre por meio de cateter nos casos de infarto e em forma de pomadas ou cremes para feridas superficiais.

O mercado para produtos baseados na alternagina- C é bastante promissor. Até agora nenhuma outra

proteína extraída de veneno de serpente e com as mesmas características estru-

turais da ALT-C foi descrita como molécula capaz de induzir a for-

mação de novos vasos sangüí- neos. Sem contar que no merca- do farmacêutico atual existem poucas opções de medicamen- tos para essa finalidade. •

DINORAH ERENO

Page 75: Os riscos da cesárea

O TECNOLOGIA

METROLOGIA

Precisão tupiniquim

Um novo relógio atômico capaz de atrasar um segundo em milhões de anos é desenvolvido no país

MARCOS DE OLIVEIRA

to longo da história, o homem inventou muitos tipos de reló- gio para marcar a passagem do tempo. A trajetória tecnológica começou com o relógio de sol, passou pela ampulheta, pelos mecanismos de corda e pelos marcadores digitais até chegar

aos modelos mais avançados e precisos que são hoje os aparelhos atômicos. Esses equipamentos funcio- nam com lasers e são baseados na oscilação da radia- ção natural de átomos de césio-133, sem ser nocivo para os seres vivos. O modelo mais recente desses relógios foi projetado e construído no Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da Universidade de São Paulo, em São Carlos. Ele é do tipo chamado de fountain ou chafariz, nome relacionado aos movi- mentos sincronizados de átomos frios (resfriados), dentro do equipamento, de cima para baixo, e repre- senta uma evolução sobre os relógios atômicos co- merciais que usam átomos quentes (aquecidos) e ímãs. Apenas França, Estados Unidos, Itália, Alema- nha e Inglaterra já fizeram relógios semelhantes.

"A filosofia é a mesma dos pesquisadores de ou- tros países, mas nós conseguimos configurações pró- prias para esse equipamento, que deverá, futuramen- te, servir como novo padrão de tempo e freqüência em todo o mundo", diz o professor Vanderlei Salva- dor Bagnato, coordenador do projeto que faz parte do Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica (Ce- pof) de São Carlos, um dos 11 centros de pesquisa,

76 • JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

Page 76: Os riscos da cesárea

inovação e difusão financiados pela FA- PESP. As conclusões e os resultados ob- tidos pelos pesquisadores brasileiros se- rão mostrados em um simpósio sobre metrologia de tempo e de freqüência do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos, organização conhecida pela sigla IEEE, em Miami, nos Estados Uni- dos, neste mês de junho.

Os relógios atômicos são marcado- res de tempo que atrasam um segundo em mais de 100 milhões de anos. Um atraso que certamente não interfere no cotidiano das pessoas, como na hora de despertar, na entrada do trabalho, em compromissos variados ou em horários de partida de ônibus ou de aviões. Mas tem importância fundamental em mui- tas outras áreas. Eles são os responsá- veis, por exemplo, pela marcação da hora mundial. Mais de 300 relógios atômicos espalhados por 50 países, inclusive o Bra- sil - Observatório Nacional, no Rio de Janeiro -, acertam o horário oficial de todo o planeta. Eles compõem o Tempo Universal Coordenado, UTC na sigla em inglês, baseado na chamada Hora Atômica Internacional (TAI, do francês Temps Atomic International), instituída em 1972, que substituiu a Hora Média de Greenwich (GMT em inglês) baseada na observação do Sol e das estrelas.

Sincronismo óptico - Relógios atômi- cos são imprescindíveis nas telecomuni- cações. Eles controlam o tráfego das co- municações de fibras ópticas, mensuram os fluxos de dados, medem a duração das transmissões e ajudam a direcionar as ligações. Na troca de dados e de voz o sincronismo garante o bom funciona- mento do sistema. Atualmente, sem um horário preciso e equivalente entre dois ou mais pontos nos sistemas de teleco- municações, corre-se o risco de erros que comprometem as ligações. Na localiza- ção geográfica via satélite, as frações de segundo também são imprescindíveis. Composto por 24 satélites que orbitam o planeta, o GPS, sigla em inglês para sistema de posicionamento global, iden- tifica um ponto preciso no solo terrestre, facilitando a navegação de aviões, de na- vios, de barcos e, mais recentemente, de automóveis e jipes sofisticados. Apenas três sinais são suficientes para o receptor na terra decodificar a transmissão e in- formar as coordenadas (latitude, longi- tude e altitude). "Esses satélites emitem

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sinais de microondas que são sincro- nizados entre si, atingem o solo e vol- tam. A diferença do tempo de chegada do sinal de cada satélite determina no receptor terrestre a localização pontual na superfície do planeta. A distância en- tre os satélites também é marcada em frações de segundo e é importante para a determinação das coordenadas. Todas essas informações de tempo vêm do re- lógio atômico instalado dentro dos saté- lites", explica Bagnato.

amanho sincronismo é igualmente impor- tante nas transações bancárias e até na prospecção de petró- leo, quando é preciso medir, em frações de segundo, os sinais enviados para o inte- rior da terra e obter o sinal de volta para

ajudar na identificação da existência de óleo lá embaixo. "Também podemos uti- lizar o relógio atômico para aferir ins- trumentos de precisão que serão usados em medidas de grandezas eletrônicas e magnéticas", diz Bagnato. Em todos os exemplos, a precisão exigida é de até pi- cossegundos, ou a fração do segundo (s) com até 11 casas (IO"11), equivalente a 1 s dividido por 1 bilhão de vezes. É essa a medição apresentada pelos relógios atômicos comerciais. Mas na área de pes- quisa científica e tecnológica, em todo o mundo, busca-se maior precisão ainda. O mais avançado relógio atômico, tam- bém no sistema fountain, foi construído no Observatório de Paris, na França, e tem a precisão de 10 "16, já na casa do fem- tossegundo, medida que eqüivale a 1 se- gundo dividido por 1 quatrilhão. "Ain- da não finalizamos a aferição do nosso aparelho porque estamos esperando um equipamento para completar essa me- dida, mas acreditamos que, pelo menos, possamos atingir IO"13, o que represen- ta para nós uma maturidade científica e tecnológica", diz Bagnato. "Afinal, ele é o primeiro relógio fountain feito no he- misfério Sul", comemora.

"Construir relógios atômicos no Brasil é fundamental para pesquisa bá- sica e desenvolvimento de tecnologia. É importante possuir o domínio desse conhecimento. O padrão do segundo é o mais preciso que existe e serve para

Átomos frios e aprisionados

0 funcionamento do relógio atômico fountain começa com um vapor de átomos de césio-133 resfriados e aprisionados por uma armadilha óptica de feixes de lasers, na parte de baixo do equipamento. A força da luz laser faz o grupo coeso de átomos subi até o interior de um tubo metálico que possui uma câmara (cavidade). Nesse lugar, os átomos recebem um banho de microondas de freqüência idêntica à oscilação da radiação do césio. Como eles estão frios, ocorre uma perturbação na freqüência, que corresponde ao segundo. Depois, os primeiros lasers e outros sistemas são desligados e os átomos descem e recebem feixes de outro laser, que detectam as modificações provocadas pelas microondas.

obter outras medidas como o metro", diz o físico Humberto Siqueira Brandi, dire- tor de metrologia científica e industrial do Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (In- metro). Ele se refere ao fato de o padrão usado para identificar o metro não ser mais uma barra de metal em um insti- tuto europeu, como no passado.

O PROJETO

Relógios atômicos

MODALIDADE Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids)

COORDENADOR VANDERLEI SALVADOR BAGNATO - USP/Centro de Óptica e Fotônica (Cepof) de São Carlos

INVESTIMENTO US$ 70.000,00 por ano (FAPESP)

Ápice dos átomos

Cavidade de microondas

• Blindaqem magnética

Feixes de laser para aprisionamento

Nuvem de átomos frios e aprisionados

Detecção com laser

Hoje o metro é a distância percorri- da pela luz no vácuo durante o intervalo de tempo de 1 s dividido por 299.792.458 partes ou metros por segundo, que é a medida exata da velocidade da luz. "Es- sas medidas são possíveis com os reló- gios atômicos e quanto mais avançados, como o chafariz, maior é a garantia de precisão", diz Brandi. Um relógio atô- mico mais preciso pode servir também para aferir outros similares existentes no país, assim como avaliar a precisão levando em conta a ação dos agentes ex- ternos como temperatura, umidade, vi- brações e campos magnéticos.

Oscilação certeira - O modelo chafariz é o segundo relógio atômico construído pela equipe liderada por Bagnato, com- posta atualmente pelas doutorandas Aida Bebeachibuli, com bolsa da Coor- denação de Aperfeiçoamento de Pes- soal de Nível Superior (Capes), Stella Tavares Miller, com bolsa do Conselho

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Nacional de Desenvolvimento Científi- co e Tecnológico (CNPq), e o pós-dou- torando Daniel Varela Magalhães, pes- quisador da USP que atualmente trabalha no Observatório de Paris. O primeiro relógio foi o do tipo horizon- tal de feixe térmico em que átomos de césio são lançados em alta velocidade de um forno para uma câmara onde eles recebem feixes de laser infraverme- lho e interagem com a radiação (onda eletromagnética) de 9.192.631.770 gi- gahertz (GHz) produzida por um gera- dor de microondas. Essa mesma fre- qüência representa o segundo que é definido pela duração de 9.192.631.770 períodos de oscilação, entre os níveis do estado fundamental e o de mais baixa energia da radiação do átomo do césio-133.

O chafariz também trabalha com energias muito precisas em radiações que oscilam em freqüência bem deter- minada. Ele funciona de forma vertical e semelhante ao relógio térmico, mas a precisão é maior porque ele trabalha com átomos frios e sem a velocidade dos outros tipos de relógio atômico. A função dos lasers é juntar esses átomos de césio e paralisá-los numa espécie de armadilha óptica. A força do próprio laser faz, então, o grupo coeso de áto- mos se elevar num tubo metálico até a uma cavidade onde ele receberá o ba- nho de microondas com a freqüência de 9.192.631.770 gigahertz (GHz) que é a mesma da oscilação da radiação do átomo de césio-133. Ao entrarem na ca- vidade os átomos experimentam a fre- qüência e saem dali. Como eles estão frios, o patamar de energia é diferente. Essa diferença entre as duas freqüências corresponde ao segundo.

O próximo passo do grupo do Ce- pof é desenvolver relógios compactos de átomos frios, equipamentos ainda inédi- tos no mundo. O nome a equipe já tem. Será o TAC (Tupiniquim Atomic Clock), ou o relógio atômico brasileiro.

Eles estão desenvolvendo um reló- gio pequeno, do tamanho dos comer- ciais, que são um pouco maiores que um videocassete. Esse seria um equipa- mento tipo de feixe térmico. "Também estamos preparando o Super TAC, que deverá ser um relógio que não vai preci- sar ter reposição, de tempos em tempos, de átomos de césio como os demais", conta Bagnato. •

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HUMANIDADES

Castigo e crime Estudo da USP revela que violência recente do PCC tem raízes antigas

CARLOS HAAG

enhores, São Paulo tem 140 mil presos. São 140 mil homens do PCC (Primeiro Comando da Ca- pital) dentro da cadeia e 500 mil ou mais familiares fora. Eles es- tão hoje programando inclusive para fazer eleições de políticos, está certo? O PCC é forte na ca- pital, mas ele é apoiado em todo o Brasil aonde vai. Virou real- mente uma febre. Ser do PCC é um bom negócio. Muitas pessoas

vão cometer o crime sem saber o que têm de fazer. Se não vai, morre." Quem afirmou isso é o diretor do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic), de São Paulo, Godofredo Bit- tencourt Filho, numa reunião reservada da CPI do Tráfico de Armas, no dia 10 de maio.

No dia seguinte ao encontro fechado vários presídios estaduais iniciaram rebeliões quase si- multâneas e uma onda de violência paralisou São Paulo por vários dias. "Essa crise foi de uma gran- de amplitude, envolvendo mais de 70 unidades penitenciárias rebeladas, o que eqüivale à meta- de do número de prisões sob a responsabilidade da Secretaria de Administração Penitenciária. E, mais importante, as ações do grupo ultrapassa- ram as muralhas do sistema prisional. Chegaram às bases policiais, às delegacias, aos ônibus, às agências bancárias. Espalharam terror não só en- tre policiais e outros agentes públicos, mas na po- pulação em geral. Isso é inédito", observa o soció- logo Fernando Salla, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e coordenador (ao lado de Marcos César Alvarez) do projeto do Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) Cons-

Rebelados com faixas do PCC: ações do grupo ultrapassaram as muralhas dos presídios e atingiram a polícia e a sociedade com violência

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trução das políticas de segurança públi- ca e sentido de punição em São Paulo, fi- nanciado pela FAPESP.

Um amplo painel, ainda em desen- volvimento, a pesquisa revela que a pas- sagem do tempo não mudou tanto quanto deveria a política do Estado bra- sileiro no trato da segurança pública. Segundo o Cepid, as elites, desde o sé- culo 19, quiseram transformar o Brasil num país materialmente moderno, sem demonstrar grande entusiasmo pelas formas de vida democrática dos países que tomavam como modelo. Há um de- sencaixe entre a modernização política e institucional (inclusive do sistema de

segurança pública e da Justiça criminal) e o avanço efetivo na garantia dos direi- tos e na consolidação da democracia e da cidadania. As representações sobre a forma de proceder no trabalho policial, no lidar com o criminoso, foram mar- cadas pela possibilidade do uso da vio- lência ilegal, do recurso à arbitrariedade, pela certeza de que sempre houve uma legitimidade nesses procedimentos e a conivência das elites, que assegurariam a impunidade a qualquer irregularidade.

Inteligência - O projeto demonstra que a parte repressiva das políticas de segurança é uma face da questão, mas

não pode ser vista como solução para tudo. O mais importante seria ter um trabalho de inteligência policial e peni- tenciária que desarticulasse o crime or- ganizado fora e dentro das prisões. "O mais difícil de combater o crime não é o que está no território da ilegalidade, que está na clandestinidade, mas os seus aliados que atuam e circulam na legalidade. A prisão não é uma bolha isolada da sociedade e, logo, ver os ce- lulares como a questão central é olhar para a direção errada", alerta o pesqui- sador. "É bom as autoridades tirarem lições dessa experiência, pois muitos dos atos foram praticados não apenas

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pelos 'soldados', mas também por sim- patizantes do PCC, que se queriam mostrar prontos para a facção, dispos- tos a correr riscos." Para o pesquisador, sem uma política consistente de enfren- tamento do crime organizado, as chan- ces de um novo levante nas prisões e um novo caos urbano não devem ser descartadas.

Os resultados iniciais do projeto mostram que a crise na área de segu- rança é mais antiga do que se imagina. Desde os anos 1950 o sistema peniten- ciário vive um colapso crônico. Ao lon- go dos anos 1970, o autoritarismo favo- receu uma invisibilidade aos problemas mais graves do sistema e manti- nha a atuação das forças poli- ciais em sintonia com as forças de repressão política. Com a re- democratização, frustrou-se a esperança de que o novo orde- namento trouxesse novos cami- nhos para a área de segurança. A pesquisa revela que as autori- dades até hoje não tiveram a ou- sadia de enfrentar problemas re- correntes, e que, afirma Salla, se manifestaram, com grande for- ça, na crise recente: as relações entre os agentes públicos e criminalida- de, nas prisões e fora delas; a fragilidade dos mecanismos de responsabilização dos agentes públicos; a interferência política no funcionamento dos órgãos policiais e prisionais, de forma a preju- dicar a sua atuação; a ausência de transparência no funcionamento des- ses órgãos.

Salla concorda com Bittencourt so- bre o potencial de organização do PCC. "Está dentro das prisões, mas possui amplas conexões com atividades crimi- nosas fora das prisões, em especial o trá- fico de drogas. Impressiona a sua capa- cidade de manter um comando mais centralizado das ações criminosas e de mobilização de seus membros e ao mes- mo tempo dispor do poder de sufocar as demais facções que aparecem no sis- tema prisional", analisa. Nesse sentido, segundo o sociólogo, o PCC mostra ha- bilidade em construir identidade de grupo, em estabelecer os vínculos de pertencimento, em exercer a coerção so- bre os possíveis dissidentes.

O "nós", continua Salla, é constituí- do não apenas pelos encarcerados que passam pelas mesmas privações e hu-

milhações, que precisam se ajudar para enfrentar as angústias e precariedades da prisão, mas compreende também a identificação com a situação de pobre- za e desemprego vivida pelos pobres da periferia. "Vários dos líderes do PCC têm efetivamente níveis consideráveis de politização e têm clareza com rela- ção à sua força política e identificam nas autoridades o interlocutor e o ini- migo de suas disputas", avalia. "O se- nhor, quando fala na televisão, o senhor representa o governo; eu sou o líder do PCC, pô, então somos duas lideranças, entende?", como disse Marcola para o diretor do Deic.

á uma astúcia política dos gover- nos que não querem provocar turbulências na relação com seu aparato repressivo. Os proble- mas na área da segurança pro- vocam desgaste político junto à opinião pública e os governan- tes tendem, para evitar exposi- ção do setor, a se acomodar aos desmandos e arbitrariedades dos aparatos, desde que não provoquem uma exposição des- favorável dos governos, em es-

pecial na mídia", observa o pesquisador. No depoimento que vazou para o PCC, Bittencourt chega à mesma conclusão: "Houve uma época em que o governo do estado cometeu um erro, quando pe- gou a liderança do PCC e os bandidos mais perigosos e os redistribuiu pelo Brasil. Então isso, na realidade, acabou fazendo um acasalamento. O Comando Vermelho, por exemplo, começou a ter muito contato com o PCC, a ponto até de liberar droga no Rio para que o PCC pudesse até explorar em briga de ponto de droga".

Para Salla, também a reação das po- lícias civil e militar foi desastrosa nos eventos recentes. "Passado o primeiro momento, em que a polícia poderia re- pactuar sua relação com a sociedade, aprofundar os laços de solidariedade, estreitar sua relação de confiança, o apa- rato repressivo deixou-se levar pelo ca- minho da violência que sempre semeou a desconfiança e o temor junto à popu- lação", avisa. O sociólogo observa que um dos maiores desafios é construir po- líticas de segurança que respeitem os di- reitos dos cidadãos e que não coloquem em suspensão o ordenamento legal cada

Ônibus incendiado pela facção em São Paulo: quanto maior a violência, maior a aceitação do arbítrio pela população

vez que se acha que se está vivendo um momento excepcional.

O pesquisador lembra que os agen- tes da lei precisam agir no estrito cum- primento da lei, mas, afirma, o que se viu foi a atribuição de um estado de guerra, uma situação de exceção que justificava um enfrentamento quase ao arrepio da lei. "Foi mais uma oportuni- dade perdida de dar para a sociedade uma aula magistral de respeito ao Esta- do de direito, respondendo aos ataques criminosos não com arbitrariedade ou legalidade duvidosa, mas por meio de ações inteligentes e que demonstrassem ser a polícia moralmente superior aos atos dos bandidos."

Assim, os pesquisadores vão na con- tramão do senso comum, que vê a ma- nutenção de direitos civis de presos como "dar mole para bandido". Ao con- trário: é justamente a incapacidade do Estado em assegurar o que está dispos- to em lei que provoca as fragilidades do sistema. "A pena privativa de liberdade não pode ser vista como a principal so- lução para a criminalidade. É preciso re- duzir as pressões, hoje fortes no Brasil, para a construção de novas vagas, que são caras e geram uma população que só cresce. Reduzir essa pressão significa estimular outros mecanismos de puni- ção, as penas alternativas."

A análise histórica das políticas de segurança revelam que seria igualmen- te imperioso que o conjunto de entida- des que gravitam em torno do sistema penitenciário (juizes, ministério públi- co, conselhos penitenciários etc.) au- mentasse sua eficiência, exercendo um monitoramento efetivo das prisões que estimule um controle democrático por todo o sistema de Justiça criminal. "Tal- vez essa crise possa trazer um sinal de

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alerta para que os estados busquem a organização de seus sistemas penitenciá- rios de forma muito mais consistente e eficiente, em que a ilegalidade no exer- cício do cargo seja punida", observa.

Para o sociólogo, um dos fatores es- senciais para compreender o crescimen- to das facções criminosas é a sua capaci- dade de envolver agentes do Estado que atuam como policiais ou que lidam com a custódia de presos. A facilitação de fu- gas, a conivência com a entrada de ar- mas de fogo, drogas, celulares, dinheiro são formas pelas quais esses agentes se envolvem com as organizações e permi- tem que elas se desenvolvam. Já o dire- tor do Deic tem outras preocupações. "O PCC é hoje uma organização extre- mamente estruturada, que faz a sua arre- cadação com cinco tesoureiros diferentes que se reportam a um responsável, que é para a polícia, na hora em que pegar, não pegar tudo." Segundo Bittencourt, Marcola teria dividido a capital em qua- tro áreas de influência e teria um repre-

sentante em cada uma delas, determinan- do tudo o que aconteceria lá. Inclusive a provocação do caos. Mas é preciso to- mar cuidado com generalizações.

Rotina - "Um acontecimento excepcio- nal, quebra na rotina carcerária, faz com que um assunto pouco abordado pela mídia mereça atenção por meses. Mas como pouco se fala do cotidiano dos presídios, quando se enfatizam os acon- tecimentos extraordinários que são os motins, produz-se uma imagem inver- tida das penitenciárias, que passam a ser representadas como locais onde não há rotina, por obra das manifestações violentas dos presos. O que é excepcio- nal assume a aparência de regra", nota a geógrafa da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Eda Maria Góes. Até mesmo porque expor a população à vi- olência contínua demanda um preço elevado na saúde dos cidadãos.

"Qual é o impacto dessa exposição a uma violência que parece nunca termi-

nar? Nessa socialização negativa, aos poucos vão se perdendo os interditos morais contra o uso da violência, vista como forma de reparar danos, de se 'fa- zer justiça', de se proteger contra amea- ças reais ou imaginárias", avisa a pesqui- sadora do NEV, Nancy Cárdia. "Quanto maior a exposição à violência, menor a crença nas forças encarregadas de apli- car as leis e maior o risco de cinismo em relação às leis, e, paradoxalmente, maior a aceitação do arbítrio e da violência, contanto que aplicados contra suspei- tos da prática de delitos percebidos como muito graves."

Todo esse quadro levaria a um pro- cesso de isolamento, de privatização, já que as pessoas, aterrorizadas, tenderiam a se retirar do espaço público, isolando-se e construindo barreiras que, na contra- mão do desejado, as deixam ainda mais vulneráveis. Afinal, com apenas R$ 200, Marcola comprou o depoimento de al- tas autoridade atrás de portas cerradas, dentro do Congresso Nacional. •

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O HUMANIDADES

ECONOMIA

encartado

Crise entre Brasil e Bolívia tem mais razões geopolíticas do que econômicas

CARLOS HAAG

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a em sempre a Bolívia esteve sob a in- fluência de venezuelanos polêmicos. Simón Bolívar, por exemplo, em hon- ra de quem o país foi batizado, queria que a nova nação fosse "uma associa- ção de indivíduos livres e iguais, fra- ternos, unidos por um mesmo proje- to, um mesmo contrato". Numa carta, escrita pouco antes de morrer, em 1830, o Libertador desabafou, menos entusiasta e mais realista: "Este país vai cair, inevitavelmente, nas mãos da massa desorganizada para passar, de-

pois, para as de tiranos quase imperceptíveis, de todas as cores e raças". A "nação de iguais", hoje, quase se transformou na boutade dita, no século passado, por um diplomata espanhol: "A Bolívia é um nonsense geo- gráfico". Miserável, despovoada, tendo perdido 53% de seu território no primeiro século de existência inde- pendente, sem saída para o mar, com quase 190 golpes

Nacionalização da Petrobras: erros do passado

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de Estado em sua biografia, o sonho de Bolívar é uma colcha de retalhos de mais de 36 nações indígenas encarapita- das nos Andes em total contraponto a uma minoria branca concentrada nas re- giões orientais, em especial Santa Cruz, em luta contra a sua "bolivianização".

Usse país arrancou agora protestos patrióticos de brasileiros que não perdoam a ousadia do vizinho pobre que "me- teu a mão" na Petrobras e no nosso gás. "Sem ro- deios, estou preocu- pado com a deteriora- ção da democracia nos países que você mencionou", afirmou, em entrevista recente,

o presidente americano George W. Bush, referindo-se à Venezuela e à Bolívia. Cu- riosamente, a eleição de Evo Morales foi resultado de um desejo democrático boliviano de, enfim, conseguir um país unificado. "Antes de dirigir suas baterias contra o Brasil ou o Chile, o que ele quis foi tentar uma unidade política num Es- tado que é quase fictício, dividido pela questão étnica. Ele nunca teve expressi- vidade na sociedade boliviana e seu par- tido, o MAS, guardadas as proporções, era um arranjo a toque de caixa como o PRN, de Fernando Collor. Evo, porém, foi eleito. Não por ser socialista, revolu- cionário etc, mas por ser índio", explica José Alexandre Hage, autor da tese de doutorado Bolívia, Brasil e o gás natural, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Hoje os 80% de índios da Bolívia podem se sentir simbolizados por um irmão que iria tentar unir a to- dos num bem comum, com distribui- ção de renda por meio da nacionalização dos hidrocarbonetos. Se vai dar certo, é

outra história. Mas o simbolismo políti- co da ação é de um sucesso inegável."

Segundo Hage, a projeção nacional brasileira, tanto pela promoção do po- der quanto pela via integrativa, sempre gerou desconfiança entre os vizinhos imediatos. "A queixa é a de que a nossa política externa trazia gravada em sua alma o comportamento de 'hegemonis- mo' em detrimento dos fronteiriços e sempre se temeu que o Brasil exercitas- se uma 'divisão do trabalho latino-ame- ricana', em que ele exportasse produtos manufaturados e forçasse os sócios a se concentrar na exportação de produtos agrícolas e primários." E essa descon- fiança não é atual. "Senores Disputados: um vecino poderoso confiado quizá em su própria fuerza pretende desconecer ai derecho, pero ei pueblo boliviano debe asumir uma defensa heróica de sus atri- butos." O discurso, que parece saído da boca de Morales ontem, em verdade foi feito em 1958 por um deputado bolivia- no contra o Brasil. Os que louvam o Ba- rão do Rio Branco pela forma firme como lidou com o conflito de 1903 com a Bolívia se esquecem de mencionar que, à sua ação, seguiram-se décadas de saias (dança típica boliviana) justas en- tre as duas nações. Os bolivianos logo se deram conta de que sua geopolítica pas- sava pela posse dos hidrocarbonetos e foram pioneiros ao criar, em 1936, a sua Petrobras, a YFPB. "O projeto desenvol- vimentista de Vargas necessitava superá- vit de petróleo para conseguir a substitui- ção de importações e a industrialização. Daí o tratado sobre saída e aproveita- mento de petróleo boliviano, em que o ditador brasileiro se comprometia a construir uma estrada de ferro para o escoamento do petróleo boliviano", conta Hage.

Depois do movimento nacionalista de 1952, em que um grupo de trabalha-

dores indígenas e camponeses estatizou minas e fez a reforma agrária, o Brasil voltou à carga. Em 1958, com os Acor- dos de Roboré, o governo brasileiro se comprometeu a comprar todo petróleo da Bolívia, dando emprego ao gás natu- ral, bem como prometeu fazer o trans- porte por um gasoduto ligando Santa Cruz ao Sudeste do Brasil, colaboran- do, de quebra, com a construção de in- fra-estruturas proveitosas para o vizi- nho pobre. Assim, não é de hoje que o país investe na Bolívia a fim de manter a estabilidade política desejável para sal- vaguardar os nossos empreendimentos em solo boliviano. Mas a nossa diplo- macia mudou, e muito. "Acho até que um certo componente ideológico pode estar presente nas negociações entre o

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Soldado em frente da refinaria brasileira

governo Lula e Morales, mas não pau- tam as discussões. A reação do Brasil à nacionalização segue um modelo de quase 15 anos desenvolvido pelo Itama- raty que prega a integração entre os países da América Latina como forma de in- serção segura do Brasil de forma a barrar o poder da Alça", analisa o pesquisador.

Segundo Hage, a geopolítica nacio- nal passou da "arrogância" anterior, em que nos víamos como líderes natos e ca- pazes de ser contraponto aos EUA, como se pensava nos anos 1950 e 60, para uma visão de conciliação, mais moderna e "humilde". "A partir dos anos 1990, a nossa diplomacia assume a es- tratégia de amenizar a imagem de país subimperialista e passa a jogar suas fi- chas no papel de condutor de uma inte-

gração com as Américas, abrindo mão de se projetar por si mesmo", explica Hage. Antes disso, só se pensava numa coope- ração entre Brasil e Argentina, como se os outros vizinhos não importassem. Collor se empenhou nisso com o Trata- do de Assunção e, depois de 1994, com FHC, o governo brasileiro chegou a ponto de achar que o Mercosul era pou- co: era preciso atrair a comunidade an- dina para o bloco integrado. O gasodu- to Brasil-Bolívia, o Gasbol, embora acalentado desde os tempos de Geisel, é resultado concreto dessa nova política diplomática de simpatia pelos nossos

hermanos. Ao lado disso havia o aspecto prático.

Em 1993 o físico Pinguelli Rosa e o grupo do Cop (Conferência das Partes) já alertavam para o potencial esgotamen- to das reservas energéticas brasileiras, antevendo uma crise de energia elétrica. Sem condições de construir rapidamen- te (sem falar nos altos custos) novas usi- nas, a solução parecia estar nas termoe- létricas, que faziam o gás boliviano ainda mais atrativo em termos econô- micos do que diplomáticos. Segundo Hage, de investimento menor e maior rentabilidade, eram um convite para a entrada de empresas estrangeiras. Daí, observa, a privatização de empresas como a Comgás. "Assim, há um certo oportunismo de muitos políticos e ve- lhos diplomatas em atacar a reação do governo atual à ação da Bolívia. Pode-se gostar ou não do governo Lula, mas o que ocorreu foi o grana finale do que havia começado anos antes, durante o governo FHC. Não se pode culpar ex- clusivamente o governo atual, apenas la- mentar que tenham mantido o mesmo modelo, calcado sobre a falácia de que a integração é a solução dos problemas do mundo globalizado", avisa o profes- sor. "O que o governo Morales demons- tra, ainda que em escala modesta, é uma característica dos países que têm nos re- cursos energéticos o seu maior trunfo ou vulnerabilidade. O Brasil não pode mais encarar esse problema com ro- mantismo, apegado ao plano estratégico de inserção via integração física, o que o leva a suportar melindres dos vizinhos em nome de algo maior, a unidade sul- americana. Como já dizia Afonso Ari- nos, "o ato de se integrar regionalmente subentende, em princípio, que há o ape- go e o respeito à afirmação nacional dos países, e não o contrário". Só se integra quem não se entrega. •

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O HUMANIDADES

UA**

Exposição em São Paulo mostra talento pouco conhecido do inventor

Demoiselle voando com Santos-Dumont

(acima) e suas cópias na exposição (à dir.):

sucesso de público

NELDSON MARCOLIN

este ano do centenário do vôo do 14-Bis, Al- berto Santos-Dumont

Ml é protagonista de uma exposição que mostra um lado ainda pouco conhecido do inventor genial. O artista plásti- co Guto Lacaz tratou de escancarar um ta- lento do brasileiro voa- dor que, para o olhar do artista, é óbvio. "San-

tos-Dumont é um dos pioneiros do de- sign de produto", afirma Lacaz. "Ele pro- jetou, construiu e pilotou 22 aeronaves sempre procurando o melhor desenho para conseguir o melhor desempenho de cada balão e avião." Para mostrar mais essa face de seu pioneirismo, o artista montou Santos-Dumont Designer no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, com reproduções de balões, aviões, han- gar, desenhos e maquete da casa de Pe- trópolis, entre outros projetos. Todos têm a marca da ousadia do inventor.

Lacaz deu vazão a um interesse que teve início ao ler Os meus balões, de San-

tos-Dumont, há quase 20 anos. Como tantos brasileiros, na época o artista acreditava que o 14-Bis era sua única criação. Começou a colecionar infor- mações e fotos de tudo o que se referia a ele. Em 1998 deu a aula inaugural de História do Design na Faculdade de Ar- tes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), com o tema "Santos-Dumont designer', a convite de Adélia Borges, professora da disciplina. Foi ela quem o convidou a conceber e montar a exposição no Museu da Casa Brasileira ainda em 2003, quando assu- miu a direção dessa instituição especia- lizada em design.

Lacaz tratou de providenciar uma boa retaguarda para ser fiel a Santos-Du- mont. Fernando Martini Catalano, espe- cialista em aerodinâmica e professor de engenharia mecânica da Universidade de São Paulo em São Carlos, e Henrique Lins de Barros, físico do Centro Brasilei- ro de Pesquisas Físicas (CBPF), do Rio de Janeiro, prestaram assessoria. Foram contratados marquetistas e a exposição se fez com o patrocínio da Aço Villares. Todo o trabalho resultou em uma aula

sobre a originalidade de Santos-Du- mont - em especial quando se fica sa- bendo que em cada projeto feito por ele havia sempre alguma inovação tecnoló- gica. Podia ser um leme maior, um novo formato de balão, um motor adaptado à nacela (cesta) do dirigível ou desenhos originais para um novo avião.

Contribuições - Na sala central do mu- seu há túneis de vento onde modelos em escala do 14-Bis e do Demoiselle voam literalmente. Uma Torre Eiffel es- tilizada com o balão n° 6 lembra o prê- mio que o brasileiro ganhou ao provar a dirigibilidade dos balões, em 1901. Há outros aeronaves reproduzidas em esca- la e até a recriação do Campo de Baga- telle, de Paris, nos jardins do museu. Lá são realizadas demonstrações mecâni- cas dos vôos do 14-Bis, com modelos. Em uma das salas foi montada a maque- te de um hangar com mais uma criação sua: a porta de correr, que exigia uma força muito menor para ser aberta. Ou- tras contribuições de Santos-Dumont são um chuveiro original, na verdade, um balde furado pendurado acima da ca-

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Maquete de hangar com dirigível: porta de correr

foi uma das inovações do brasileiro

beca onde se misturavam a água fria e a quente, esta aquecida a álcool. A Encan- tada, casa do inventor cons- truída por ele em Petrópolis, aparece detalhada em outra curiosa maquete aberta. A exposição vai até 16 de julho. Mais informações estão dis- poníveis em www.santosdu- montdesigner.com.br

Foi o interesse comum de Lacaz e Adélia que levou à exposição da obra de Santos-Dumont como um grande de- signer. "O conhecimento de mecânica, de tecnologia e de materiais o habilitava a materializar a solução para suas ne- cessidades e oportunidades em objetos ou mecanismos perfeitamente origi- nais", escreveu ela no catálogo. "Um raro senso de elegância, por sua vez, permitia a ele ir além da praticidade para se dis- tinguir pelo apuro das formas."

"Design é solução", diz Guto Lacaz. Os novos desenhos de balões e aviões que Santos-Dumont fazia eram para re- solver problemas. "Ele obtinha muito sucesso porque as soluções eram sempre muito simples e corretas." O físico Hen- rique Lins de Barros, um dos maiores estudiosos do aviador, confirma essa sa- gacidade tecnológica que levava com freqüência a projetos bem-sucedidos. "Santos-Dumont saiu do balão para o avião, o 14-Bis, sem passar pelo plana- dor. Foi o único a conseguir", diz Barros.

Lacaz considera o 14-Bis algo excêntrico dentro da obra do inventor. Para ele, parecia esquisito imaginar o 14-Bis voando pelo "lado er- rado", e não como se voa hoje. "Sempre tive dúvidas se ele era realmente bonito", conta. Mas, ao ver no ar a réplica fei- ta pelo piloto Alan Calassa, de Caldas Novas (GO), o ar- tista não teve mais dúvida: "Fiquei convencido de que o 14-Bis voa lindamente, com suavidade". O projeto mais emblemático que reforça a

idéia de que Santos-Dumont foi um pio- neiro do design de produto é o Demoi- selle, um ultraleve muito copiado. Ele publicou o projeto na revista Popular Mechanics em 1910 e mais de 200 uni- dades foram construídas por pequenas empresas ou particulares - situação ilustrada com miniaturas em formação no céu cenográfico de uma das salas da exposição -, o que o torna o primeiro avião a ser produzido em série. "É o mo- delo que realmente vai influenciar a ae- ronáutica." •

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T HUMANIDADES

EXPOSIÇÃO

Veré1 . relativo

Mostras em São Paulo e na Suíça relembram o "ano miraculoso" de Einstein

RENATA SARAIVA

ano de 2005, batizado pela Inter- national Union of Purê and Ap- plied Physics (IUPAP) e pela ONU de o Ano Mundial da Física por marcar o centenário dos pri- meiros escritos sobre a Teoria da Relatividade, deixará ecos por um bom período de 2006. É que a fama e o carisma de Albert Eins- tein (1879-1955), o primeiro, di- gamos, cientista-pop da história da academia, impediram que as comemorações se encerrassem.

Em Berna, cidade suíça em que o cientista de ori- gem alemã publicou em 1905 os cinco textos notá- veis que lançaram sua fama mundial - dois deles dando início à Teoria da Relatividade -, uma expo- sição que traça um paralelo entre a vida do físico e o desenvolvimento urbano da cidade no início do século 20 foi iniciada em abril do ano passado e está sendo prorrogada até outubro deste ano (leia mais na página 92).

Bem mais perto, no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) da Comissão Nacio- nal de Energia Nuclear (Cnen), sediado no campus da Universidade de São Paulo (USP), a exposição Einstein e a América Latina, organizada pelo Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), com cola- boração da Sociedade Brasileira de Física (SBF), exibe documentos, objetos, textos e imagens rela- cionados às visitas de Einstein à América Latina em 1925 e 1930, assim como à expedição de as-

trônomos ingleses à cidade de Sobral, no interior do Ceará, em 1919. Devido às excelentes condi- ções climáticas da região, a observação do eclipse total do Sol permitiu aos cientistas comprovar a Teoria da Relatividade Geral, concluída por Eins- tein em 1915.

"A exposição foi montada para celebrar o Ano Mundial da Física, estabelecido em função do cen- tenário do chamado 'ano miraculoso', em que Eins- tein mudou o curso da história da ciência com seus cinco estudos. E resolvemos reforçar a relação en- tre Einstein e a América Latina", diz Alfredo Tiom- no Tolmasquim, diretor do Mast e autor do livro Einstein, o viajante da Relatividade na América do Sul (Vieira&Lent). A mostra esteve em cartaz de se- tembro a novembro de 2005 no Mast, no Rio de Ja- neiro, e marca, em São Paulo, o início das comemo- rações do cinqüentenário do Ipen, além de uma série de atividades entre o instituto e o Mast com o objetivo de preservar e divulgar a memória da ciên- cia brasileira.

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Einstein no Rio de Janeiro visita o Jardim Botânico (à esquerda), passa por Sobral (acima) e encontra-se com o presidente Arthur Bernardes (logo acima)

Além de dados biográficos e das principais idéias científicas de Einstein, a mostra apresenta como a imprensa notificou as viagens que o cientista fez à Argentina, ao Uruguai e ao Brasil, em 1925, e ao Pa- namá e a Cuba, em 1930. "Quando esteve na Amé- rica do Sul em 1925, Einstein já era renomado inter- nacionalmente", explica Tolmasquim. "Assim, uma rápida observação da cobertura da imprensa já nos permite vislumbrar como ele era considerado um cientista genial por aqui. Ao mesmo tempo, princi- palmente no Brasil, que a tradição positivista era mui- to forte, houve algumas críticas à Teoria da Relativi- dade, que remetia à abstração e a resultados pouco práticos na ciência até então", pondera o autor. "É cu- rioso notar que os textos não se referiam a Einstein como físico, mas como cientista. Sobretudo no Bra- sil, não havia o estatuto social do físico."

O convite para a viagem à América Latina par- tiu da Argentina, país em que havia uma comuni- dade científica mais amadurecida em torno da físi- ca. Por isso foi em Buenos Aires, Córdoba e La Plata

que os latino-americanos tiveram as maiores opor- tunidades de ouvir sobre a Teoria da Relatividade. "Einstein proferiu oito palestras durante um mês na Argentina. Depois passou uma semana em Montevidéu e uma no Rio de Janeiro", conta Tol- masquim. O pai da Teoria da Relatividade mostrou- se extremamente cordial durante a viagem. Porém seus diários durante a estada, aliás um dos princi- pais documentos da exposição, revelaram posterior- mente que algumas situações desagradaram o gê- nio. "Por exemplo, ele participou de uma reunião na Academia de Ciências da Argentina e, depois, enviou uma carta elogiosa de agradecimento aos organizadores", conta Tolmasquim. "Nos diários es- creveu que achou as discussões pouco produtivas, com perguntas e observações muito fracas por par- te dos participantes."

Trópicos - Além disso, o diretor do Mast enfatiza que os diários de Einstein revelam um desgaste no decorrer de sua visita à América Latina. "Percebe- se muito rapidamente que ele não se sentia bem no calor dos trópicos. Também viajava sozinho e sen- tia-se isolado. Tanto que, em determinado ponto, quando descreve o navio em que viajava entre Mon- tevidéu e Rio, tem-se a impressão de que não agüen- tava mais", relata o pesquisador.

Nem por isso Einstein deixou de ser poético em sua visita ao Brasil. Em 1925, a expedição inglesa que comprovara a Teoria da Relatividade no inte- rior do Ceará em 1919 já era mundialmente famo- sa e, claro, tivera grande repercussão junto à im- prensa brasileira. "Quando Einstein chegou ao país, o médico Aloísio de Castro expressou o quanto a população brasileira era orgulhosa da expedição a Sobral", conta Tolmasquim. Gentilmente, Einstein respondeu: "A idéia que minha mente concebeu foi comprovada pelo ensolarado céu do Brasil".

A expedição de 1919 sem dúvida colaborou para a consolidação da fama de Einstein no efusivo começo de século 20, em que os meios de comuni- cação contribuíram muito para a propagação da Teoria da Relatividade. "Durante muito tempo, Einstein se dedicava a analisar o possível desvio de um feixe de luz ao passar próximo a uma grande

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O pai da Teoria da Relatividade e os sábios brasileiros no Observatório Nacional

massa, como o Sol. Em 1915, com sua Teoria da Relatividade Geral, ele previu o desvio da luz, cau- sado pela deformação do espaço e do tempo nas proximidades da matéria", conta o pesquisador. "Einstein também concluiu que a teoria poderia ser testada durante um eclipse total do Sol: se estivesse certo, estrelas que, naquele momento, se encontras- sem quase atrás do astro poderiam ser vistas, já que a sua luz seria desviada", explica.

Duas regiões geográficas foram escolhidas para a comprovação da Teoria da Relatividade: Sobral e Ilha do Príncipe, na costa africana. Esses locais, se- gundo cálculos astronômicos e meteorológicos, ti- nham as condições mais favoráveis à observação do fenômeno. As duas expedições foram organiza- das sob a liderança do inglês Frank Dyson, mas so- mente a brasileira teve resultados conclusivos, já que o clima africano no dia do eclipse dificultou a observação. "O Observatório Nacional também participou da expedição e deu suporte à comissão inglesa, mas seu interesse estava concentrado em outros aspectos do eclipse", diz Tolmasquim.

Segundo o pesquisador, a visita de Einstein aos trópicos não mudou a realidade da ciência na re- gião. Porém contribuiu muito para a divulgação das novas idéias científicas no período. "Einstein mostrou-se também um bom observador do pon- to de vista etnográfico. Ao saber dos trabalhos do Marechal Rondon junto às comunidades indígenas brasileiras, chegou a escrever ao comitê do Nobel para sugerir uma possível indicação de Rondon ao Prêmio Nobel da Paz", conta Tolmasquim. A carta em nada resultou, mas sem dúvida mostrou mais uma faceta da incrível sensibilidade científica e hu- mana de Einstein.

Einstein e a cidade: criações mútuas Luiz ROBERTO ALVES*

ma sintaxe poderosa legitimou a his- tória, o conhecimento, aprece e o flu- xo articulado da introspecção. O fu- turo possui sua gramática específica!'

George Steiner

A cidade de Berna não deixou por menos. Sobre o ingresso à ex- posição do seu filho adotivo ilus- tre, Albert Einstein, fez imprimir a fórmula inesquecível: E = me2.

Massa e energia tanto para entender a teoria do seu cidadão de 1905 quanto para a prática da gestão ur- bana daquele tempo. No museu da cidade, às mar- gens do gelado Aare, a mostra iniciada em 15 de abril de 2005 está sendo prorrogada até outubro, na certe- za de público e divulgação crescentes. A capital suíça não somente se sente no direito de juntar documen- tos fundamentais sobre e do físico-politécnico e jo- vem trabalhador da seção municipal de propriedade intelectual como explicita uma importante referên- cia urbana, isto é, seus cidadãos e cidadãs, ilustres

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ou não, inventam-se e se reinventam na dinâmica urbana. Do mesmo modo, poderiam estagnar-se na cidade esquecida e desgovernada.

A vida e a obra de Einstein, primorosamente abertas para o olhar, as mãos e o coração em seu movimento de imagens, se mesclam à urbanidade bernesa em torno do annus mirabilis de 1905. No mesmo andar do museu em que se detalha a sua vida de estudante, amigo e amante, um amplo painel de mulheres trabalhadoras e suas crianças na Berna de fins do século 19 sinaliza as transformações urba- nas. Einstein vive na cidade em mutação. Nela elabo- ra textos básicos sobre a Teoria da Relatividade Res- trita e prepara os movimentos do espírito inquieto que levam a Berlim, ao Nobel de 1922 e ao polêmi- co retiro americano.

A sociedade multicultural de cem anos atrás, do- tada de educação liberal e estímulo ao saber e ao tra- balho, revive-se na memória do físico humanista. A recente exposição espalha pelos jardins e por vários andares do edifício localizado na Helvetiaplaz equi- pamentos, material documental e geringonças para a invenção e a imaginação das pessoas, principalmente crianças e adolescentes. Do mesmo modo faz ver que o jovem estudante que busca o primeiro emprego em Berna o faz porque acredita na cidade. Entre 1890 e 1910 Berna passa de 48 para 117 mil habi- tantes. Constrói pontes, organiza projetos ha- bitacionais, amplia a educação pública e ino- va no binômio ciência-tecnologia. O próprio museu da cidade foi construído entre 1892 e 1894. Costuma-se dizer que nessa época o jo- vem Estado helvético atraiu muitos intelectuais do norte e muitos trabalhadores braçais do sul. Na interseção desses atores sociais definiu sua di- nâmica urbana. A exposição sugere que não se es- queça do modo classista de organização da cidade, visto que apresenta o salário de Einsten e o compa- ra ao dos trabalhadores braçais. O jovem cientista ganhava 3.500 francos por mês, enquanto um casal de trabalhadores da construção civil recebia, con- juntamente, bem menos de 2 mil. Anota-se em cu- riosa descrição que para comprar 1 quilo de açúcar Einsten trabalhava 17 minutos; do seu lado, o casal de trabalhadores despendia 38 minutos de sua força de trabalho para adquirir o açúcar. Portanto, as questões de física e o jogo do tempo-espaço devem ter muito a ver com o açúcar de cada dia, que tem a ver com o duro trabalho humano. Como sabemos, no início do século 20 o jovem Albert Einstein dava pareceres na Prefeitura local sobre propostas de esta- belecimento de patentes de invenções no campo da física. Naquele tempo era casado com a cientista Mi- leva Maric'. Embora reservado e de amizades limi- tadas, em torno da mesa de salsicha, chá, queijo e frutas reunia a pequena galera de aficionados por fí- sica, música e filosofia. O grupo, denominado Aca- demia Olímpia, a par de noites inteiras de divagações,

chegou a construir um potenciômetro, consta que jamais usado.

De fato, a Suíça de Einstein vem de estabelecer- se como Estado moderno a partir da Constituição federativa de 1874. A apologia em torno da supos- ta neutralidade faz esquecer efetivos valores da con- federação no quadro europeu do tempo: espaço in- tercultural, com educação diferenciada, formas plurais de religiosidade e capacidade de atração de inovações. Por isso, a família Einstein se move de Ulm, Alemanha, onde nasceu - 1879 - o menino que a mãe considerava muito grande e desajeitado, para Munique, depois Itália e Aarau, Suíça. Albert, tido como problemático e questionador na escola católica de Munique, por vezes pouco brilhante na ótica da escola rígida e conteudista, sofre insucesso na primeira tentativa, mas entra para o famoso Ins- tituto Politécnico de Zurique em 1896. Seguem-se outros tropeços na tentativa de ser professor. Cida- dão suíço, torna-se técnico e daí ajuda decisivamen- te a recriar o nosso mundo físico e político.

exposição enche os olhos das crianças, adolescentes e adultos, pois cria relações entre as teorias e o cotidiano do cidadão. Uma mostra para as famílias da cidade. Na qual a cidade também é sujeito histórico. O que se vê na inteireza da mostra é o cená- rio da cidade transfigurada em memória e fenômenos do cotidiano. A vida do cientis- ta, do trabalhador, do cidadão, que cruza- va a ponte de Kirchenfeld a pé e seguia para o trabalho, que gastava 18 minutos de tempo para levar à casa o quilo de açú- car, que usou o dinheiro do Prêmio Nobel

para comprar algumas casas em Zurique e provi- denciar o pagamento mensal aos filhos que teve com Mileva. Que se formou humanista na observa- ção do perigoso quadro europeu que rumava para as duas guerras. Que assumiu a integridade política da fama e afirmou com todas as letras o seu horror à construção crescente da violência. Que imortali- zou discursos sobre a igualdade de direitos e oportu- nidades, a par da proteção econômica das pessoas. Einstein, na ótica de Berna, reinventa-se na cidade modernizada. Entre luz, velocidade, tempo-espaço, filosofia e música o cientista patrocinou o que de al- gum modo Walter Benjamin queria dizer com a habitação da cidade em nós. Os frutos do habitar e ser habitado somente podem servir ao mundo na medida em que se ajustam ao destino do que é lo- cal, do que é político, polis. A partir daí poderemos discutir e questionar a globalização. •

* Luiz Roberto Alves é professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e atualmente pesquisador visitante na Universidade de Florença, com o apoio do CNPq.

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Resenha

O homem é o lobo do homem Gilberto Dupas alerta para a desumanização da tecnologia

CARLOS HAAG

ara definir a pe- quenez de Ri- chard Wagner, Nietzsche usou a

imagem do "humano, demasiado humano". Hoje é preciso repen- sar a diatribe como uma nova virtude: o humano nunca é de- masiado e os tempos modernos, de conquistas e progresso científico e tecnológico, embota- ram a sensibilidade do homem, a ponto de ele deixar para trás a priorização do que é sua melhor (e pior) característica: justamente a sua humanidade. "Apesar de todo o encanta- mento das conquistas que se nos apresentam como possíveis para o novo século, as preocu- pações com as graves eventuais conseqüências das direções em marcha ainda estão em fase de gestão dialética", escreve Gilberto Dupas em seu mais novo livro, O mito do progresso, um erudito e fascinante percurso de alerta so- bre o entusiasmo acrítico que ainda mante- mos sobre a visão baconiana da conquista da natureza. "Saber é poder", dizia Bacon, indi- cando que a ciência tinha condições ilimita- das de gerar alternativas positivas para que os homens pudessem melhorar seu universo pes- soal e sua condição social. Mas será que esta- mos pensando certo? "Caso contrário, parece claro que podemos dar um passo largo em di- reção a um quadro civilizatório que pode sig- nificar uma ruptura de humanidade com suas responsabilidades de auto-sobrevivência en- quanto cultura e espécie", observa Dupas. Para ele, o progresso do discurso das elites, do neo- liberalismo, não passaria de um mito renovado por um aparelho ideológico que nos quer con- vencer de que a história tem um destino certo e

0 mito do progresso

Gilberto Dupas

(jilbertq Dupas Editora Unesp 312 páginas R$ 35,00

sempre para melhor. Engana-se quem pensa ser o autor um retró- grado contrário à ciên- cia. O dilema do pro- gresso não pede uma paralisação da ciência e da tecnologia, ape- nas um novo modelo de lidar com essas con-

quistas, de forma que elas sirvam ao bem co- mum, e não a poucos, ao mercado. Para tanto, Dupas pede "apenas" cidadãos vigilantes e crí- ticos, não consumidores fascinados. Tarefa que parece árdua, mas passa pelo mais objeti- vo dos crivos: a escola e seus professores, que teriam de educar, e não só informar. Sem isso, estamos condenados a um vazio ético, uma sociedade nas mãos das regras de mercado, em que os valores são econômicos. Nesse mundo, humano é demasiado humano e o valor da vida geral e o bem-estar de todos são secundários diante do prazer do consumo, da absorção direta de todas as conquistas cientí- ficas, seja o novo tênis, seja os transgênicos. Tu- do é válido se for economicamente viável. Du- pas deseja o retorno de uma macroética, de uma ética da responsabilidade, nos moldes do pensador alemão Hans Jonas, em que é preci- so pensar o presente ao mesmo tempo que se olha para o futuro para construir um univer- so saudável para todos. "Aja de modo que os efeitos de sua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana sobre a Terra; de modo que sua ação não comprometa a possibilidade futura de tal vida", observa Jonas, fazendo eco no belo estu- do de Dupas, um libelo denso e bem-escrito sobre o que nos espera se não formos capazes de exercer a nossa crítica.

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Livros

A desintegração americana Paul Krugman Editora Record 546 páginas, R$ 62,90

O economista americano Paul Krugman é um comentarista respeitável e sua visão de como se deu a implosão da bolha econômica

americana é de grande lucidez. Krugman avalia o efeito dos escândalos corporativos, comenta a crise energética na Califórnia, revela por que Bush lutou tanto para ir guerrear no Iraque e fala da conspiração dos falcões da direita.

Editora Record (21) 2585-2000 www.editorarecord.com.br

O sagrado selvagem Roger Bastide Companhia das Letras 275 páginas, R$ 42,00

Uma coletânea de artigos e ensaios do sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974), em que ele discute sobre Deus e a revolução até a paixão humana inevitável pelo sagrado,

passando ainda pela mitologia moderna, em que Marx é convidado a participar de uma curiosa digressão sobre a multiplicação dos mitos na modernidade, ao contrário do que se esperava. Sem um olhar preconceituoso eurocentrista, Bastide analisa manifestações sagradas de várias culturas de forma crítica.

Companhia das Letras (11) 3707-3500 www.companhiadasletras.com.br

Perfis brasileiros Boris Eausto, Evaldo Cabral de Mello, Isabel Lustosa, Alberto da Costa e Silva Companhia das Letras vários preços

A coleção traz, em formato agradável e tamanho ideal, biografias de grandes personagens da história nacional

escritas por intelectuais de peso como Boris Fausto, que assina Getúlio Vargas, Isabel Lustosa, autora de D. Pedro I, Alberto da Costa e Silva, biógrafo de Castro Alves, e o historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello, que traz uma esperada biografia de Maurício de Nassau.

Companhia das Letras (11) 3707-3500 www.companhiadasletras.com.br

CUBA | UM* NOVA HISTORIA]

Cuba: uma nova história Richard Gott Jorge Zahar Editor 427 páginas, R$ 49,90

Num momento em que se fala tanto na retomada do populismo na América Latina, com ecos castristas, o livro do historiador britânico

traz boas pistas sobre como foi a evolução do país que ainda permanece uma das poucas ditaduras comunistas. Para Gott, não se pode entender a Revolução Cubana sem se repensar a identidade nacional do país, forjada sobre desigualdade e problemas racias.

Jorge Zahar Editor (21) 2240-0226 www.zahar.com.br

Navegação nos séculos XVII e XVIII Rumo: Brasil Lucy Maffei Hutter Edusp 403 páginas, R$ 68,00

A historiadora da USP traz um livro fascinante sobre as dificuldades

enfrentadas pelos navegadores para chegar ao Brasil por meio de seus problemas técnicos e econômicos. São relatos de portugueses, holandeses, espanhóis, ingleses e franceses, sempre extraídos de fontes originais, que dão um panorama intenso de como era a preparação, a navegação e o cotidiano desses marinheiros.

Edusp (11) 3091-4008 www.edusp.com.br

As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política

^^ Muniz Sodré Editora Vozes, 232 páginas, R$ 39,00

O novo livro de Muniz Sodré reúne ^^™^^^^ artigos sobre temas aparentemente díspares, mas que o autor, com sabedoria, sabe reunir sobre a tríade afeto, mídia e política, tendo como interlocutores Baudrillard, Bobbio, Rorty, Deleuze, Vattimo. Seja analisando a presença do celular na nossa vida e de que maneira ele nos permite falar à vontade, fotografar e, ao mesmo tempo, mandar matar de um presídio, seja falando de Lula, Sodré é boa leitura. Editora Vozes (024) 2233-9000 www.vozes.com.br

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O escavador do futuro Diário de bordo de um trombonista (1977-2042)

ão Paulo, 15 de março de 2041 - O Homem mal pisou em Marte. A cantora ia além dos quartos de tom e os auto-afinadores em mi- lésimos de segundo já faziam daqueles uivos

dós ou dós sustenidos: não há mais constrangimen- to; assim será a missa de meu enterro? Ando por aí: Je- dai aposentado empunhando espectros de som, ouvin- do minha consciência como um estudo de trombone. No tronco, ainda um formigueiro: vou carregando minhas células: umas vivas, outras mortas. Valerão al- guma coisa? Já se dispensa o sêmen em pó, meus ne- tos são coisas do passado: instantâneos. Miles Davis fi- nalmente foi clonado, mas parece que já não se fazem mais ouvidos como antigamente, o menino permane- ce chorando diante das câmeras. O Homem mal dor- miu na Lua e os cientistas da Terra anunciam que os ratos do Ibirapuera aprenderam a imitar sabiás.

São Paulo, 20 de março de 2041 - Encontrada uma gruta no morro do Cantagalo, Rio de Janeiro, na qual é possível escutar sambas inéditos do início do sécu- lo 20. As vozes daquele povo que habitava as encostas desbarrancadas na eternidade ricocheteiam. Acústi- ca: a orquestra mais fenomenal que habita o cérebro de um surdo. Tudo aquilo que Alguém deixou de me dizer. Essas coisas que ficam ressoando. Essas coisas que tiram o sono. São duas da manhã e a luz do sol já me chega assim queimando pelas fibras ópticas. A tarde caindo sobre o Japão. Jogo o jato de luz sobre a antena do vizinho ao lado: são uns olhos que bri- lham: uma coruja saberá amanhecer?

Itaim, 23 de março de 2041 - Compus um quinteto de sopros sobre um velho tema: um choro azul que batizei de Celacanto. Fizemos sua estréia naquele ve- lho supermercado. Num determinado momento a polícia apareceu: está proibido o consumo do peixe abissal. Motivo: alergia nos andróides superiores.

São Paulo, 24 de março de 2041 - Mais uma peça: agora um duo de violino e trombone, Nosferatu me

MANU MALTEZ

pareceu o nome mais apropriado. Acho que perdi o senso, peguei o jeito: viver nessa penumbra em ininter- rupto alumbramento: para nunca mais fazer distinção: entre um enterro e um nascimento, entre um segundo e um milênio: entre o gás carbônico e o oxigênio.

São Paulo, 25 de março de 2041 - Este novo diafrag- ma que me arrumaram está de vento em popa. Me sinto um elefante africano, sol acima da quarta linha suplementar da clave de sol. E todo ele feito a partir de mim, eu e minha célula-tronco: nós estamos real- mente destinados à originalidade: cresceu durante três meses no aquário à base de hormônios e um ou outro mosquito que caía na superfície.

São Paulo, 28 de março de 2041 - Este rosto: cada vinco é um vínculo desfeito. Este rosto, este espelho. Este espelho, este vínculo. Este rosto, este vinco. Esses cacos. Hoje meu filho me matriculou num curso de como refazer poemas. Recomendaram-me nanocáp- sulas de farinha de pulmão bovino, fingi que engoli e guardei no bolso.

São Paulo, 29 de março de 2041 - Esta tarde desfize- ram o último poema. Agora só falta domesticarem os espelhos.

São Paulo, 31 de março de 2041 - A mais antiga ser- pente: estavam à cata de seu fóssil. Um grande valor em prêmio para quem encontrasse. Um homem che- gou carregando a coluna vertebral de uma mulher.

São Paulo, 32 de março de 2041 - Os "anjos" apare- ceram pela primeira vez naquela manhã de agosto. Deus já havia lhes dado de tudo, mas eles queriam mais; mais bondade, mais inocência, mais gratidão. Então Deus arrancou suas asas e desses buracos fo- ram nascendo essas mãos.

São Paulo, 33 de março de 2041 - Fui renovar mi- nha carteira de identidade e minha impressão digital já tinha mudado novamente. Uns dizem que é por causa de nossa comida, outros, que seria devido à nos-

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sa água. Penso que estamos cada vez mais parecidos com nossos pensamentos.

São Paulo, 1o de abril de 2041 - Não percebo mais certos harmônicos da minha voz, mas eles estão lá, eu sei: como tubarões num mar negro, se devorando. Fiz uma peça eletroacústica usando apenas harmônicos que não consigo mais escutar (segundo meu último exame). Uma elegia à Beethoven, uma coleção de cas- cas de cigarra dos verões rachados. Também não ouço mais aplausos.

Campos Elíseos, 13 de maio de 2042 - "Na dieta destes animais, a ferrugem é indispensável." Dizia o apresenta- dor da Discovery, enquanto nós em meio aos passantes. Concordei, mas por via das dúvidas saí de férias.

Itatiba, 18 de maio de 2042 - Estradas de terra ver- melha: já mastiguei muito tijolo, já senti o gosto do meu sangue. A gente pegando na mão esta terra mor- na que eles estão trazendo agora do planeta vizinho: parece que foi ontem que eu andava de Vinhedo até Itatiba sem pisar num asfalto, parece que o futuro é como o passado, só que uma oitava abaixo; e bota vi- brato nisso.

Vinhedo, 21 de maio de 2042 - Eucaliptos: árvores de aço - postes de osso. Ouço suas folhagens: quando essas árvores pegam a andar de madrugada, vê-se bem que elas não são daqui. Espécies invasoras: olha- mos com furiosa saudade das estrelas.

São Paulo, 7 de junho de 2042 - "Depois que o últi- mo prédio for demolido, o minhocão se libertará e todos poderão comprovar sua beleza." Tocamos on- tem na posse do prefeito: no repertório, a Re-encar- nação da primavera.

São Paulo, 2 julho de 2042 - Um menino, quando envelhece, escreve estas coisas. São as águas de Mar- te. Chegam assim: em pílulas com gosto de lágrima. Dizem que é bom para as rugas: 150 anos de vida e haja poesia. O trombone ainda vibrando em serpen-

tes de pensamento: memória ou saudade? Consciên- cia ou paciência?

... Prefiro andar através dos campos gravitacionais.

São Paulo, 4 agosto de 2042 - Minhas escavações aqui no quintal prosseguem: o cóccix de uma pregui- ça gigante ou o crânio da cachorra Graúna? Uma las- ca de machado de sílex ou aquele dente escurecido do Jucá? Sigo escavando.

São Paulo, noite de 37 de agosto de 2042 - O fura- cão não passou por aqui. Mesmo com toda essa pa- rafernália, os metereologistas são uns astrólogos. Que pena, já tinha estendido aquelas roupas que você nunca veio buscar, já tinha me amarrado na antena - uma pena...

São Paulo, 38 de agosto de 2042 - Através dos so- nhos, que agora são registrados e podemos revê-los na manhã seguinte nas telas tridimensionais, percebi que você me tinha. Paralisei o sonho num determi- nado momento em que sorriu dentro de mim e ago- ra se evaporam minhas dúvidas. Por isso te mando aí uma cópia pra que vejas com seus próprios olhos hu- manos de gente feminina que a terra não agüenta mais comer, que não canso de tanto olhar.

Igreja do Sumaré, tarde de 38 de agosto de 2042 - Uma vela para Heitor, outra para Bela e mais uma para Igor. Estes amavam realmente os trombonistas.

São Paulo, 39 de agosto de 2042 - Doa-se um trombone.

Espaço sideral... — Fui. — O primeiro que ler este diário, por favor, cuide

dos "anjos" trancados no armário.

MANUMALTEZ nasceu em 1977, é músico, compositor e desenhista. Está lançando seu primeiro CD, As neves do Kilimanjaro.

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 97