18
ISSN 1679-4214 CPGravura – IA / Unicamp novembro 2003 número 2 Artigos Henrique M-S Luise Weiss Ensaio de imagens Amir Brito Cador André de Miranda Lygia Arcuri Eluf Marcio Périgo Entrevista Armando Sobral, por Roberto Shwafaty Documentos e Bibliografia Seleção Bibliográfica

p1_GRAVURA_2_nov_2003

Embed Size (px)

DESCRIPTION

apostila de gravura

Citation preview

  • ISSN 1679-4214

    CPGravura IA / Unicamp novembro 2003 nmero 2

    Artigos

    Henrique M-S Luise Weiss

    Ensaio de imagens

    Amir Brito Cador Andr de Miranda

    Lygia Arcuri Eluf Marcio Prigo

    Entrevista

    Armando Sobral, por Roberto Shwafaty

    Documentos e Bibliografia

    Seleo Bibliogrfica

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 2

    cadernos de [gravura] ISSN 1679-4214 no 2, novembro de 2003 www.iar.unicamp.br/cpgravura/cadernosdegravura Centro de Pesquisa em Gravura (CPGravura), Instituto de Artes, UNICAMP, 2003

    Editora responsvel: Paula Almozara Secretria: Valria de Souza Cruz Reviso: Maria Alice da Cruz Paula (Monotipias: algumas consideraes, Luise Weiss). Demais textos sob responsabilidade dos autores Layout: Paula Almozara Conselho Cientfico: Luise Weiss Lygia Arcuri Eluf Mrcio Prigo Marco Francesco Buti Paulo Mugayar Khl Universidade Estadual de Campinas Prof. Dr. Carlos Henrique de Brito Cruz Reitor Instituto de Artes Prof. Dr. Jos Roberto Zan Diretor CPGravura Centro de Pesquisa em Gravura Profa. Dra. Lygia Arcuri Eluf Coordenadora Artigos, imagens, textos (com fontes e documentos) e resenhas para publicao devem ser enviados ao CPGravura e sero submetidos ao Conselho Cientfico; se aceitos, sero publicados nos prximos nmeros. Endereo para correspondncia: CPGravura Instituto de Artes Departamento de Artes Plsticas Cidade Universitria Zeferino Vaz C.P. 6159 CEP 13083-970 Campinas - SP - Brasil fax: (19) 3788-7827 e-mail: [email protected] IMPORTANTE O material aqui publicado de propriedade intelectual de seus autores. A impresso da revista e sua distribuio, para fins acadmicos, esto autorizadas e devem ser gratuitas; citaes para fins acadmicos esto autorizadas, desde que mencionada a fonte. As opinies emitidas pelos autores so de sua exclusiva responsabilidade, no expressando necessariamente a opinio do Centro de Pesquisa em Gravura do Instituto de Artes da Unicamp.

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 3

    [editorial] No segundo nmero dos cadernos de [gravura] apresentamos trabalhos dos artistas e professores responsveis pelas disciplinas de gravura do Departamento de Artes Plsticas do Instituto de Artes da Unicamp e do Centro de Pesquisa em Gravura da Unicamp: Luise Weiss, Marcio Prigo e Lygia Eluf. Tambm neste caderno encontramos os trabalhos de dois jovens pesquisadores e artistas: Amir Brito Cador e Henrique Marques-Samn. Andr de Miranda mostra imagens de seu trabalho com linleo com um texto de apresentao da gravadora Anna Carolina Albernaz. Na seo de documentos e bibliografia realizamos uma primeira e pequena seleo bibliogrfica, com referncias sobre: ilustrao, tcnicas de gravura, histria do livro, artistas gravadores etc.

    Paula Almozara

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 4

    [sumrio] cadernos de [gravura], no 2, novembro de 2003

    artigos

    HENRIQUE MARQUES-SAMN. A Modernidade na Pedra: representaes do Fin-de-Sicle em litografias francesas do fim do sculo XIX

    5

    LUISE WEISS. Monotipias: algumas consideraes 19

    ensaio de imagens

    AMIR BRITO CADOR. Mutus Liber 24

    ANDR DE MIRANDA. Reino misterioso do inconsciente 28

    LYGIA ARCURI ELUF. Terra vista 36

    MARCIO PRIGO. Vigilar e ter uma leve esperana de idias tangentes

    44

    entrevista

    ARMANDO SOBRAL por Roberto Shwafaty 48

    documentos e bibliografia

    SELEO BIBLIOGRFICA 1 51

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 5

    [artigo]

    A Modernidade na Pedra: representaes do Fin-de-Sicle em litografias francesas do fim do sculo XIX

    Henrique Marques-Samn

    Bacharel em Filosofia, ps-graduando em Filosofia da Arte e Psicologia Social. Ensasta, tem textos publicados sobre arte e cultura em vrias revistas e peridicos. Colunista de fotografia nas revistas Fotosite e Moda Almanaque; editor, com a jornalista Laura Cnepa, da revista Anfiguri.

    Resumo O presente artigo um ensaio sobre representaes de aspectos sociais e culturais do perodo histrico conhecido como fin de sicle (ou seja: o fim do sculo XIX) em litografias francesas do sculo XIX. Apresenta-se uma contextualizao histrica do perodo mencionado, bem como anlises sobre litografias de Eugne Grasset, Toulouse-Lautrec, Guydo e Honor Daumier.

    Abstract This article is an essay on representations of the historical period known as fin de sicle in french lithographs of the 19th. Century. Are analised some graphics of artists as Eugne Grasset, Toulouse-Lautrec and Honor Daumier.

    I. Introduo

    Glorificar a vagabundagem e o que se pode chamar o boemismo. Charles Baudelaire, Meu corao desnudado

    Este artigo pretende analisar algumas litografias francesas do fim do

    sculo XIX, a fim de expor como nelas encontravam-se presentes representaes de aspectos scio-culturais caractersticos do Fin-de-Sicle. Comeo com uma contextualizao histrica do momento aqui abordado, concedendo especial ateno idia de decadncia ento em voga. A seguir, mostro as diferentes formas como os artistas reagiram ao ambiente niilista: alguns, criando uma arte inspirada em outros tempos, portadora de franco idealismo, como como os medievalistas ou os adeptos do japonesismo; outros, mergulhando no hedonismo e na decadnce, criando uma arte expressiva destas formas de vida. Analiso obras de Eugne Grasset, que curiosamente desenvolveu gravuras portadoras de referncias para as duas citadas vertentes; Toulouse-Lautrec, Honor Daumier e Guydo.

    II. Fin de Sicle e Decadnce

    Em seu estudo sobre a Frana da virada do sculo XIX para o XX, o historiador Eugen Weber dedica, sintomaticamente, vrias das pginas iniciais ao estudo da noo de decadncia. Embora seja esta uma idia h muito conhecida pela humanidade, neste perodo ela adquire facetas muito peculiares e particularmente prximas da vida cotidiana. J desde a poca da Revoluo Francesa, era comum a crena de que vivia-se em uma poca de decadncia: preguia, falta de bom gosto e excesso de capricho eram vistos como sintomas de uma sociedade que seguia o caminho para baixo sem sequer olhar para trs.

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 6

    Como bem percebeu contemporaneamente o socilogo Emile Durkheim, a sociedade francesa vivia uma profunda crise moral. As geraes francesas mais antigas haviam vivido nada menos que duas significativas derrotas militares, em 1814-5 e 1870-1; vrias formas de solidariedade haviam rudo junto com os valores que haviam sido abandonados notavelmente, os valores religiosos. Ademais, houve o sbito crescimento das cidades: no incio do sculo, Paris era a nica cidade com mais de cem mil habitantes; em 1911, quinze cidades atingem este patamar, alm de emergir um novo tipo de aglomerao urbana a periferia. Este crescimento urbano foi acompanhado por toda a srie de problemas decorrentes da industrializao: a diviso de trabalho industrial e os conflitos entre o empresariado e a classe operria. Por isso o termo Belle poque utilizado como referncia a esta poca traz em si, como nota o socilogo Renato Ortiz, um sentido nostlgico, algo como um passado ureo perdido para sempre1.

    Tudo isso ajudou a disseminar a crena de que a poca vivia uma franca decadncia. Duas matrizes amplificaram esta percepo: de um lado, a vulgarizao da teoria de Darwin, que concedeu um certo sentido hereditrio ao elitismo social no se tratava simplesmente de os homens no serem iguais, mas de as desigualdades serem hereditrias. No era o mrito, mas um elitismo predeterminado que traava os destinos dos homens e das sociedades. Ento para que se esforar?2 ; de outro, a popularizao, a partir da dcada de 1840, de estudos sociais que documentavam e dramatizavam a misria e suas causas patolgicas: a doena e o crime. A vida moderna, nas cidades, era responsabilizada pela deteriorao fsica e psquica. Em 1908, em um debate na Cmara, Louis Grard-Varet falou em uma espcie de neurastenia coletiva, um desarranjo da conscincia coletiva que o novo ritmo urbano suscitava em seus cidados3.

    No entanto, os efeitos que esta sensao de inevitvel decadncia tiveram nos cidados mostraram-se diversos. Para alguns, tratava-se de uma falncia social completa: o aumento da criminalidade, com o requinte do surgimento de novas modalidades de crime, como os ataques com cido; a multiplicao de bares, com o conseqente aumento do consumo de lcool; a impotncia da fora policial que, no bastasse sua incompetncia, ainda era mal vista pela populao. Alguns buscaram outras formas alternativas de lidar com esta atualidade que parecia caminhar para o vazio: muitos encontraram sadas na idealizao medievalista ou orientalista. Outros decidiram render-se sensao de inevitabilidade, o que teve como efeito uma aceitao de tal destino. Para estes, a vida transformou-se em uma espcie de afirmao da decadncia: o vcio tornou-se objeto de glorificao; o desregrado hedonismo, forma inevitvel de existncia. A inverso de valores a tal ponto chegou que, como nota Weber, a corrupo foi expurgada de todo o seu sentido negativo ou destrutivo; transfigurou-se em vivncia redentora, caminho para a transcendncia da mediocridade sufocante das convenes de todos os dias 4.

    Estas duas sadas, como logo veremos, s variaes artsticas presentes na Art Nouveau: de um lado, o chamado Japonesismo (ou Japonismo) e o Medievalismo, em verdade herdado da tendncia Pr-Rafaelita; de outro, a exaltao da transgresso e do decadentismo. No entanto, antes de mergulharmos neste exame mais detido destas tendncias, cabe compreender mais detidamente o papel da arte na modernidade precisamente o momento histrico acerca do qual trata este ensaio.

    1 Cf. Ortiz 1991: 52. 2 Weber 1988: 32. 3 Apud id. 4 Cf. ibid.: 26.

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 7

    III. Arte e modernidade

    O conceito de modernidade modernit foi introduzido por Charles Baudelaire em sua obra O pintor da vida moderna. A modernit caracterizada tanto como uma qualidade da vida moderna quanto como objeto de uma experincia artstica particular; em um e em outro, fundamental o papel da novidade, a nouveaut na poca, recentemente feita parte da vida cotidiana. Penso que h franca relao disto com a nova experincia moderna do consumo, que no existia no Antigo Regime na acepo que possui na modernidade. Em pocas anteriores, o vesturio e os acessrios pessoais faziam parte de uma escala hierrquica; traziam consigo a funo simblica de distinguir a nobreza; eram uma das formas de expresso do status ocupado pelos nobres no Estado. Mas isso muda com o decreto de 8 brumrio ano II, de 1793 onde se estabelece que nenhum cidado ou cidad poder ser obrigado a vestir-se de uma forma particular: cada um livre de usar as roupas de seu sexo, que lhe convm5. Com isso, abrem-se as portas para que a burguesia crie suas prprias normas, seus prprios princpios estticos e cdigos de vesturio; em outras palavras, nasce a moda e, com ela, o consumo moderno. As magasins de nouveauts so importante produto destes novos tempos. Surgindo na dcada de 1830, so locais onde se encontram venda todos os objetos e acessrios que podem ser comprados, organizados em sees e balces especficos, e que logo comeam a publicar nos jornais suas ofertas especiais. No h mais roupas e acessrios padronizados; tudo agora visa ser diferente e inovador, ocupando um local singular no mercado. Quando, no incio do sculo XX, surgirem os grands magasins, tudo isso ser ampliado para uma escala monumental, movimentando mais de cem milhes de francos anualmente. Mas qual o lugar do artista nessa nova sociedade? Para Baudelaire, o papel do artista precisamente o de capturar o efmero, a contingente novidade do presente. Como afirma em O pintor da vida moderna, o artista deve ser capaz de acompanhar a velocidade da modernidade em sua constante atualizao; deve tomar como objeto a transitoriedade do momento e todas as sugestes de eternidade que nele existem6.

    H deste modo presente a exigncia de uma contemporaneidade do artista. Se a vida moderna transitria e efmera, se gira em torno da incessante irrupo de nouveauts, funo do artista acompanhar este ritmo: seus passos devem acompanhar esta acelerada marcha. Essa insero do artista no mundo em que habita foi objeto da reflexo de Georg Simmel, que encontrou a essncia da modernidade precisamente nessa experincia e interpretao do mundo em uma esfera psicolgica; quer dizer: a modernidade uma forma particular da experincia vivida, que se d nesta relao recproca entre a vida interior e o mundo no qual se habita. E a arte justamente a forma de expresso humana que pode capturar e dar forma fluidez destas experincias interiores. Eis porque a arte moderna assiste ao fim do naturalismo: porque no mais pretende ser verdadeira em relao ao mundo, quer dizer, no dele que tira sua referncia, nem para ele que pretende se afirmar como verdadeira. Por outro lado: a referncia para a arte, na modernidade, a prpria interioridade humana. Da Simmel afirmar que a arte moderna no apenas possui a verdade, ela a verdade7.

    A Art Nouveau representa uma primeira manifestao artstica desta nova relao entre o homem e seu tempo justamente por no se limitar a ser um movimento na esfera artstica; mas sim uma afirmao integrada, que se d no s no campo das artes, mas que simultaneamente a expresso de uma nova forma de vida. A Art Nouveau no estava apenas nas telas, mas no mundo de

    5 Apud Ortiz ibid.: 129. 6 Cf. Frisby 1986: 16-7. 7 Apud ibid.: 47. Traduo minha.

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 8

    todos aqueles que a abraaram. Estava em vasos, casas, mveis, talheres. Pensemos nas casas de Victor Horta, nos vasos de Auguste e Antonin Daum, nas moblias de Eugne Vallin ou Charles Mackintosh. No era preciso ir s galerias para contemplar a Art Nouveau; vivia-se dentro dela e rodeado por ela.

    Sintomaticamente, no houve sequer uma variao artstica relacionada Art Nouveau que no fosse a legtima expresso de um ethos, de uma forma de vida. Aqueles que pintavam cenas dos Cafconcs, os cafs-concerto como o Moulin Rouge ou o Eldorado, estavam pintando suas prprias vidas, e em certa medida fazendo uma apologia desta havia ali uma defesa de valores, uma afirmao axiolgica. Da mesma forma, os Pr-Rafaelitas estavam, em suas telas, a defender os valores sobre os quais edificavam suas prprias vidas. Aprofundarei estes pontos com algumas anlises sobre diferentes litografias deste perodo, que classificarei, de maneira ampla, em duas vertentes idealista e hedonista que identifico a atitudes diante daquela situao histria.

    IV. O Idealismo: Orientalismo e Medievalismo

    O niilista ambiente da Frana do fin de sicle era, sem dvida, frtil terreno para idealismos de toda a espcie. No toa, assistiu a um verdadeiro florescimento de seitas esotricas e doutrinas do gnero; podemos at mesmo encontrar uma intitulada Decadncia Crist entre as religies que surgiram na poca. Isso pode parecer paradoxal, se pensarmos que o sculo XIX assistiu a tantos progressos tecnolgicos; no entanto, as coisas no eram assim to mutuamente excludentes. Ao menos para os que viviam naquele contexto, no parecia muito difcil resolver tais contradies. Charles Richet, professor da Sorbonne e cientista de renome na rea mdica, publicou um prefcio em um tratado de Metapsquica de oitocentas pginas, em que pretendia colocar em um mesmo plano as pesquisas sobre cincia, fsica, botnica, patologia e paranormalidade; Alfred Russel Wallace tornou-se defensor das doutrinas de M. H. Rivail, vulgo Allan Kardec; Sir Oliver Lodge participou da fundao de uma Sociedade Britnica de Pesquisa Cientfica8.

    Em Paris, assistia-se a (mais um) reflorescimento dos movimentos rosacrucianistas. O historiador Christopher McIntosh considerou Josphin Pladan, um dos participantes deste renascimento, uma personagem que encarnou tudo quanto era excntrico e fin de sicle. Depois de haver trabalhado como empregado em bancos, passou a nomear-se Sar Mrodack Pladan (sendo Sar um ttulo assrio de nobreza e Mrodack o deus caldeu associado a Jpiter) e comeou a desfilar pelos cafs de Montmartre, ora com hbito de monje, ora com um gibo com cales de veludo rendados. Quando fundou, em 1890, sua Ordem da Rosa Cruz Catlica cujas reunies eram realizadas em seu apartamento na Rue Notre-Dame-des-Champs, onde Pladan oficiava vestido em um traje de monge com uma cruz rosada no peito , comeou a organizar exposies de arte com temas esotricos e catlicos, na qual no era admitido nada de naturalista ou experimental; e que eram freqentadas por gente como Gustave Moreau e Georges Rouault9, alm de garbosas damas vestidas la nophyte, costumes martyre e saias fantasmagricas feitas de seda Liberty. Estamos, afinal, a falar de uma sociedade onde os teatros encenavam peas pretensamente msticas (Pladan jurou haver reencontrado duas peas de squilo, alm de ser autor de Babylone, que considerava uma tragdia wagneriana em quatro atos); Sarah

    8 Apud Weber: ibid.: 48-9. 9 McIntosh : 111-4.

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 9

    Bernhardt recitava o mistrio da Paixo no Cirque dHiver10, e Erik Satie era fundador de uma certa Igreja Metropolitana da Arte de Jesus, o Regente11.

    No possvel falar no idealismo da Art Nouveau de modo satisfatrio sem referir o movimento Pr-Rafaelita ainda que, em meio a tantas excentricidades, a obsesso medievalista dos Pr-Rafaelitas possa at mesmo parecer um tanto quanto ingnua. A Confraria Pr-Rafaelita tem ultimamente sido lembrada apenas como um movimento artstico anti-acadmico, um combate aos cnones que limitavam-se a reproduzir os princpios estabelecidos por Rafael. No entanto, o movimento muito mais rico que isso. O grande terico do Pr-Rafaelismo, John Ruskin, fora um seguidor das idias de Augustin Pugin este, um arquiteto catlico de cuja pena surgiu, na primeira metade do sculo XIX, uma srie de livros defendendo um retorno da arquitetura aos princpios medievais. Ruskin deu seguimento misso de Pugin. Nascido em famlia rica, pde dedicar seus anos de juventude a viagens atravs da Europa, nas quais defendeu a adoo, contemporaneamente, dos princpios arquitetnicos medievais. E tudo isto culmina em 1848, com a fundao da Confraria dos Pr-Rafaelitas.

    preciso dizer que, a princpio, Ruskin autor dos principais textos tericos do movimento rechaou veementemente que houvesse relaes entre o Pr-Rafaelismo e o medievalismo. Mas tal recusa tinha sua razo de ser: nesta poca, estava em moda o Romanismo, uma espcie de mania artstica que tomava como modelo a arte Romnica. No entanto, o tom dos discursos mudaria mais tarde; no que Ruskin aceitasse qualquer vinculao com o Romanismo; porm, estabeleceria uma franca relao com um outro tipo de medievalismo na verdade, uma construo idealizada do que seria a arte medieval. A argumentao de Ruskin elaborada: acusa Rafael de ser o autor de uma ruptura entre a arte e religio, referindo os afrescos rafaelitas que mostram Cristo presidindo o mundo teolgico, enquanto Apolo preside o mundo da poesia; e utiliza, como referncia para sua idia de medievalismo, um tempo em que as convenes da arte harmoniosamente incorporavam a devoo religiosa12. Em um ponto mais extremo, Ruskin chega a comparar Rafael a Lcifer. Rafael, consoante o pintor pr-rafaelita, foi o inaugurador de uma esttica espria, que sacrificou a verdade em nome do orgulho. E o argumento de Ruskin adquire matizes ainda mais religiosas quando afirma que Rafael serviu mpia luxria do Vaticano, que espalhou um veneno que infectou milhes de cristos13.

    Julguei pertinente fazer esta breve apresentao do Pr-Rafaelismo para chegar ao ponto crucial: o fato de que, escapando s limitaes de um movimento exclusivamente artstico, havia ali a pretenso de realizar uma legtima reforma social. Tratava-se de um resgate de princpios, valores e ideais. William Morris, a grande ponte entre o movimento Pr-Rafaelita e a Art Nouveau, enfatizar este aspecto social do movimento. Se Pugin pretendia duplicar os princpios da arte medieval a ponto de desencadear um revivalismo do gtico , Morris preocupa-se com uma espcie de atualizao de um sentido artstico h muito esquecido: o resgate do elo entre arte e artesanato; o fim da ciso entre artes maiores e menores; a recuperao do personalismo da manufatura contra o padronizado produto industrializado. Ainda que as pretenses sociais de Ruskin estivessem destinadas ao fracasso, devido s imensas vantagens econmicas da produo industrial, suas propostas estticas efetivamente obtiveram sucesso. Seus tecidos, ornamentados com motivos naturalistas estilizados, foram um sucesso comercial; o jardim ingls espalhou-se por toda a Europa; o domestic revival arquitetnico, inimigo da arquitetura do ferro, consolidou-se como tendncia inovadora.

    10 Cf. Weber: op. cit.: p. 48. 11 Cf. McIntosh: op. cit.: 114. 12 Leahy 1999 (traduo minha). 13 Ibid.

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 10

    A influncia do Pr-Rafaelismo na Art Nouveau, portanto, dupla: diz respeito tanto ao medievalismo, no tocante ao resgate do artesanato e na construo de uma nova arquitetura pensemos na Escola de Nancy ou em Hector Guimard , quanto no tocante prpria temtica desenvolvida por alguns de seus representantes na pintura e na gravura. Eugne Grasset, suo naturalizado francs, virtualmente o maior representante da tendncia medievalista na arte grfica francesa. Sua litografia na capa do peridico simbolista La Plume, em um volume publicado em 1894, alis dedicado sua obra, apresenta temtica de ntida relao com o Pr-Rafaelismo. No apenas os costumes so medievalistas, como tambm a composio dominada por linhas curvas e motivos que sugerem folhas e caules, em uma estilizao geomtrica que remete aos padres ornamentais consagrados por Morris e seus afiliados.

    Todavia, no era esta a nica vertente idealista do perodo. Uma outra, mais antiga, ainda encontrava-se em voga, encontrando amplos desenvolvimentos: o Japonesismo, ou Japonismo em verdade, apenas uma nova variao do orientalismo que j se fazia presente, desde h muito, na arte europia. Pode-se, a princpio, encarar este olhar para o Oriente como uma busca por nova inspirao artstica; entretanto, afirm-lo recusar o fato de que, muitas vezes, o que h ali no meramente uma influncia tcnica ou formal, mas apenas um circular em torno de imagens e esteretipos que tentam criar cenas tipicamente orientais. Nesta medida, estamos a falar de um orientalismo na acepo que ao termo foi dada por Edward Said o Oriente como uma idia que tem uma histria e uma tradio de pensamento, imagstica e vocabulrio que lhe deram realidade e presena no e para o Ocidente14. Em outras palavras, a questo no o Oriente tal e qual, mas enquanto uma criao ocidental baseada no lugar especial ocupado pelo Oriente na experincia ocidental europia15. As japonaiseries criadas pelos artistas europeus desta poca obedecem inegavelmente a este princpio. Ainda que tomem as gravuras japonesas como modelos, ainda que muitos se tornem conhecidos como especialistas na criao desta artetipicamente japonesa, suas obras na maior parte das vezes no passam de pastiches. o caso da litografia de Guydo que ilustra o cartaz por este criado para divulgao do licor Amara Blanqui. A composio, pobre e trivial, reduz a rica bidimensionalidade das gravuras japonesas a uma construo bvia e ingnua; ademais, o trao no possui a delicadeza e a graa caractersticas da obras japonesas nas quais certamente esta obra foi inspirada.

    V. O Combate Burguesia

    As origens da esttica antiburguesa devem ser buscadas j nas primeiras dcadas do sculo XIX; tratava-se de uma mescla, como bem notou Dolf Oehler, de uma profunda perplexidade diante da burguesia como fenmeno e uma ingenuidade romntica diante da funo histrica da nova classe dominante16. Na Frana, nota Arnold Hauser, a bomia atravessou trs fases: a romntica, constituda por jovens artistas e estudantes em quem a oposio sociedade dominante era usualmente fruto de uma mera exuberncia e rebeldia juvenis; a naturalista, gente que se situava alm das fronteiras da sociedade burguesa e cuja luta contra a burguesia era no um jogo animado, mas uma necessidade amarga; e a impressionista, talvez melhor se definida como ps-naturalista, formada por artistas que j formavam uma horda de vagabundos e marginais... um grupo de desesperados, que rompem no s com a sociedade burguesa mas

    14 Cf. Said 1990: 17. 15 Cf. ibid. p. 13. 16 Oehler 1997: 11.

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 11

    com toda a civilizao europia 17. So principalmente estes ltimos os que nos interessam. So eles que, para fortalecer esta linha que os separa da sociedade burguesa, cuidam de glorificar ao extremo tudo o que sugere decadncia, tudo o que vai de encontro s convenes burguesas.

    Na dcada de 1880, surge uma multido de excntricas confrarias com nomes que sugerem marginalidade e mistificao Hidropatas, Hirsutos, Incoerentes. A fundao de Le Dcadent, na mesma poca, sintetiza o esprito que impulsionava o nascimento de to estranhas crias: Religion, moeurs, justice, tout dcade... A sociedade se desintegra sob a ao corrosiva de uma civilizao deliqescente... refinamento de apetites, sensaes, gosto, luxo, prazeres; neurose, histeria, hipnotismo, morfinomania, impostura cientfica, extremo schopenhaeurismo, esses so os sintomas premonitrios da evoluo social18. Lembremo-nos da anotao de Baudelaire em seu dirio: do dio do povo beleza19!. Decerto que, para boa parte destes apocalpticos, os culpados por esta degenerescncia da sociedade eram... os burgueses! Principalmente porque estes haviam se aproximado perigosamente de um terreno antes ocupado apenas por uns poucos escolhidos como nota Eric Hobsbawm, o desejo crescente da burguesia em acercar-se das artes multiplicou os candidatos em abra-las estudantes de arte, aspirantes a escritores, etc. ... talvez houvesse na segunda metade do sculo entre 10 e 20 mil pessoas em Paris denominando-se a si mesmos de artistas20. Se havia uma ciso que perpassava a sociedade nesta poca, era aquela que a dividia entre os burgueses e os artistas e era atravs do culto ao belo que o artiste se afirmava contra os desmandos do bourgeois21.

    Eis, portanto, as razes dos ferozes ataques desferidos pelos artistas contra a burguesia. As principais formas que tais golpes assumiram foram virulentos ataques contra o estilo de vida burgus seus valores, sua rotina; e os meios utilizados para tal combate foram essencialmente aqueles que, permitindo ampla reproduo, acompanhavam o surgimento dos meios de comunicao de massa, notavelmente as litografias. Tomaremos como objeto de anlise aqui duas obras que atacavam frontalmente as convenes amorosas da burguesia: uma litografia de 1840, de Honor Daumier, que representa ironicamente a falncia do casamento burgus certamente muito anterior ao perodo aqui analisado, mas na qual j encontramos um ataque com o mesmo esprito que encontraremos nas obras do fin de sicle; e um cartaz de Toulouse-Lautrec que, ao exaltar os espetculos dos Cafs-Concerto, simultaneamente atacava frontalmente a moral burguesa.

    Como nota Dolf Oehler, j desde a primeira metade do sculo XIX era comum representar formas no-convencionais de relacionamentos amorosos como antteses dos relacionamentos burgueses, e encontrar naquelas um conjunto de valores que nestes j no se encontravam presentes. Da, por exemplo, a exaltao baudelairiana do amor entre as mulheres. Somente Lesbos... faz desabrochar os sonhos de profunda delicadeza e paixo que no sobrevivem a uma noite sequer na heterossexualidade, sobretudo no casamento. No amor lsbico, confiana, intimidade, delicadeza, dedicao, paixo e volpia, na relao sexual burguesa, insensibilidade, egosmo, brutalidade, violncia, terror e barbarismo22. E esta runa do casamento burgus o que encontramos em As sabe-tudo, dos Costumes Conjugais de Daumier. A legenda da gravura (Ah, quer dizer que voc passou a noite no escritrio?); o marido acuado; a esposa pouco atraente e com ar de megera, os objetos partidos no cho elementos do pattico 17 Hauser 1994: 919-21. 18 Apud Weber ibid.: 36. 19 Baudelaire 1981: 94. 20 Hobsbawm 1979: 305-6. 21 Oehler ibid.: 13. 22 Apud ibid.: 248.

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 12

    cenrio do inferno conjugal, mergulhado na mediocridade da rotina e na indiferena dos compromissos assumidos fora. Perfeita anttese, decerto, do festivo cenrio que encontramos na gravura de Lautrec que, alis, adequa-se ainda mais nossa anlise por sintetizar praticamente tudo o que a boemia exaltava contra a burguesia. A lasciva abertura de pernas da dana de Louise Weber, sugesto de uma sexualidade intensa que permanecia distante dos frios lares burgueses (ou assim indubitavelmente acreditavam os bomios); a apologia vida de vcio e excessos, dado que o apelido La Goulue com o qual a danarina fora batizada fazia referncia justamente facilidade com que esvaziava taas de bebida no Moulin Rouge; e mesmo uma indireta referncia ao amor no-convencional, j que era conhecido o fato de que Louise vivia com uma mulher a gorducha Mme Fromage23. Se o casamento burgus habitava uma casa em runas, o palcio dos cafs-concerto era o refgio onde ainda era possvel viver de uma forma menos montona...

    Havia, no entanto, ainda uma outra trilha disposio daqueles que haviam optado por habitar nestas niilistas paragens. Esta era, afinal, a poca em que as drogas tinham entrado na moda, principalmente a partir de 1870, quando comearam a se tornar mais acessveis. O haxixe, em voga desde tempos mais antigos, era o preferido dos comedores de sonhos; morangos embebidos em ter constituam um requintado aperitivo, embora o ter tambm fosse consumido com conhaque e talvez injetado; a partir da dcada de 1880, a cocana tornou-se de tal modo popular que Freud a usava at para soltar a lngua24. Mas a preferida das mulheres, como vemos na gravura de Grasset Morphineuse, era a morfina. Tema de romances e poemas, amplamente utilizada em crculos elegantes, movia um comrcio ao seu redor eram fabricadas seringas especiais de prata banhadas ou folheadas a ouro para os mais requintados e foi por Dumas Filho considerada o absinto das mulheres. Desta forma, a dama que vemos na litogravura de Grasset, ao injetar em sua coxa a adorada morfina, nada faz seno repetir um pequeno gesto em toda a grande celebrao da Belle poque estes tempos em que, para muitos, o mundo parecia mergulhar no ltimo abismo da degenerescncia; mas que, para tantos outros, era uma poca em que, mais que nunca, as emoes pareciam infinitas.

    VI. Bibliografia Baudelaire, C. Meu corao desnudado. Trad. Aurlio Buarque de Holanda. Rio de

    Janeiro: Nova Fronteira, 1981. Champigneulle, B. A Art Nouveau. Trad. Maria Jorge Viana. So Paulo: Verbo:

    Edusp: 1976. Frisby, D. Fragments of modernity: studies in contemporany German social though.

    Cambridge: MIT, 1986. Hobsbawm, E. A era do capital: 1848-1875. Trad. Luciano Costa Neto. 2a. ed. Rio

    de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Leahy, A. Ruskin and the Pre-Raphaelites in the 1850s. In: PaGes: Arts

    Postgraduate Research in Progress. Vol. 6. University College Dublin, 1999. McIntosh, C. Os mistrios da Rosa-Cruz. Trad. Aydano Arruda. So Paulo:

    IBRASA, 1987. Oehler, Dolf. Quadros parisienses (1830-1848): esttica anti-burguesa em

    Baudelaire, Daumier e Heine. Trad. Jos Macedo, Samuel Tintan Jr. So Paulo: Cia. das Letras, 1997.

    Ortiz, R. Cultura e modernidade: a Frana no sculo XIX. So Paulo: Brasiliense, 1991.

    23 Cf. Weber ibid.: 52. 24 Ibid.: 46.

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 13

    Said, E. Orientalismo: o Oriente como inveno do Ocidente. Trad. Toms Bueno. So Paulo: Cia. das Letras, 1990.

    Weber, E. Frana fin-de-sicle. Trad. Rosaura Eichenberg. So Paulo: Cia. das Letras, 1988.

    VII. Lista de Imagens Daumier, Honor. As sabe-tudo. Litografia de Costumes conjugais. 1840. Grasset, Eugne Samuel. Morphineuse. Litografia de Lalbum destampes originales de la Galerie Vollard. 1897. Grasset, Eugne Samuel. Capa da revista La Plume. Litografia. 1894. Guydo. Cartaz para o licor Amara Blanqui. Litografia. 1893. Toulouse-Lautrec, Henri de. Au Moulin Rouge, La Goulue. Cartaz (litografia). 1892.

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 14

    Daumier, Honor. As sabe-tudo. Litografia de Costumes conjugais. 1840.

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 15

    Grasset, Eugne Samuel. Capa da revista La Plume. Litografia. 1894.

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 16

    Grasset, Eugne Samuel. Morphineuse. Litografia de Lalbum destampes originales de la Galerie Vollard. 1897.

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 17

    Guydo. Cartaz para o licor Amara Blanqui. Litografia. 1893.

  • cadernos de [gravura] no 2, novembro de 2003 18

    Toulouse-Lautrec, Henri de. Au Moulin Rouge, La Goulue. Cartaz (litografia). 1892.

    [capa][expediente][editorial][sumrio]A Modernidade na Pedra [artigo]