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Polaris o Norte Lu Piras Todos os direitos reservados © 2012 ~ 1 ~ 1 - TERÇO Ela se despediu dizendo que ia ao banheiro retocar a maquiagem. Ele ficou a sua espera, ao lado do chafariz de Eros. Depois que deixaram a pista de dança, vários casais jovens se animaram e a festa oficialmente começou. Nate estava distraído observando Olívia e o pai dançando, quando sentiu um toque em seu ombro. Ao virar-se, Jéssica tinha um sorriso frouxo nos lábios, tentando disfarçar a notícia que trazia. “Clara desapareceu”, ele leu em sua mente. Ao lado dela, ainda mais nervoso e impaciente estava Marcus. O rapaz não podia vê-lo, mas olhava nos olhos de Nate. Ele falou por Jéssica: - Só você pode ajudar Clara. Ela saiu daqui com o Wotan. Vi quando entrou no carro dele. Jéssica tinha a expressão confusa mas, para a sua própria sorte, seus pensamentos não traduziam a realidade. Ela só pensava em como sua amiga poderia ter trocado a companhia de um “gato” pela de um “cara de pastel”. - Nate, não fique chateado... - dizia, desconcertada, refletindo longamente sobre cada palavra - minha amiga... ela não é esse tipo de garota... eu sei que ela gosta de você! Ele precisava se desmaterializar ali mesmo, o mais depressa possível. Tocou o ombro de Marcus, que sorriu de nervoso. - Obrigado. Não esquecerei o que fez. Nate precisava de um lugar fechado que abafasse a sua luz. Então correu dali e entrou na primeira porta que apareceu. O banheiro masculino estava vazio e ele trancou a porta. Era a sua primeira desmaterialização e ele não sabia ao certo se conseguiria concentrar sua energia naquele espaço tão pequeno, mas não tinha tempo para procurar um lugar mais afastado da festa. Lembrou-se das palavras que proferiu durante a sua materialização e fechou os olhos. Quando bateram à porta, ele já não estava lá para abrir. A trégua foi rompida. Isso nunca aconteceu, desde que a balança foi criada. Os renegados romperam o pacto sagrado e o pior é que havia testemunhas humanas. Isso não seria tolerado em Malkuth.

Polaris - o Norte

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Capítulos de Degustação da sequência da série Equinócio: Polaris - o Norte, de Lu Piras Manuscrito original da autora. Autorizado, porém não revisado pela editora. Todos os direitos reservados.

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Polaris – o Norte Lu Piras

Todos os direitos reservados © 2012 ~ 1 ~

1 - TERÇO

Ela se despediu dizendo que ia ao banheiro retocar a maquiagem. Ele ficou a sua espera,

ao lado do chafariz de Eros. Depois que deixaram a pista de dança, vários casais jovens se

animaram e a festa oficialmente começou. Nate estava distraído observando Olívia e o pai

dançando, quando sentiu um toque em seu ombro. Ao virar-se, Jéssica tinha um sorriso frouxo

nos lábios, tentando disfarçar a notícia que trazia.

“Clara desapareceu”, ele leu em sua mente. Ao lado dela, ainda mais nervoso e impaciente

estava Marcus. O rapaz não podia vê-lo, mas olhava nos olhos de Nate. Ele falou por Jéssica:

- Só você pode ajudar Clara. Ela saiu daqui com o Wotan. Vi quando entrou no carro dele.

Jéssica tinha a expressão confusa mas, para a sua própria sorte, seus pensamentos não

traduziam a realidade. Ela só pensava em como sua amiga poderia ter trocado a companhia de um

“gato” pela de um “cara de pastel”.

- Nate, não fique chateado... - dizia, desconcertada, refletindo longamente sobre cada

palavra - minha amiga... ela não é esse tipo de garota... eu sei que ela gosta de você!

Ele precisava se desmaterializar ali mesmo, o mais depressa possível. Tocou o ombro de

Marcus, que sorriu de nervoso.

- Obrigado. Não esquecerei o que fez.

Nate precisava de um lugar fechado que abafasse a sua luz. Então correu dali e entrou na

primeira porta que apareceu. O banheiro masculino estava vazio e ele trancou a porta. Era a sua

primeira desmaterialização e ele não sabia ao certo se conseguiria concentrar sua energia naquele

espaço tão pequeno, mas não tinha tempo para procurar um lugar mais afastado da festa.

Lembrou-se das palavras que proferiu durante a sua materialização e fechou os olhos.

Quando bateram à porta, ele já não estava lá para abrir.

A trégua foi rompida. Isso nunca aconteceu, desde que a balança foi criada. Os renegados

romperam o pacto sagrado e o pior é que havia testemunhas humanas. Isso não seria tolerado em

Malkuth.

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Nate sempre soube de que lado ficaria se a guerra fosse declarada antes da hora. O

passado, um luxo - ou um karma - a que nenhum outro Anjo tinha direito, o perseguia. Ele já

perdeu uma vez a humana que amou. Não iria perdê-la de novo. Mesmo que salvá-la significasse

abrir mão de si mesmo.

Estava escuro naquele galpão e, enquanto era arrastada pelo braço, tentava alcançar sua

bolsa pendurada no ombro. Wotan andava depressa e Clara tropeçava. Ela não sabia onde estava,

mas o cheiro era fétido e começava a lhe dar náuseas. Ela tateva alguns objetos em sua bolsa até

encontrar o terço. Segurou-o com força e entrelaçou-o nos dedos.

Ele não dizia nenhuma palavra, apesar das inúmeras tentativas de Clara de puxar conversa.

- Você não percebe que está pondo tudo a perder? Vocês aceitaram a trégua. Não vai

ganhar nada com isso, Wotan! Eu não vou te ajudar seja lá em que plano macabro você estiver

metido dessa vez!

Ele cansou de ouvi-la e sem que ela pudesse se defender diante da sua força, já tinha uma

fita adesiva colada na boca. Na tentativa de se desvencilhar, acabou deixando o cair o terço no

chão. Quando pararam, ele a forçou a sentar-se numa cadeira e amarrou-a com algumas cordas

velhas que estavam jogadas sobre o assento. Tudo estava preparado, alguém já os estava esperando

ali.

Havia apenas uma lamparina iluminando a sala. Era um espaço grande, sem utilidade fazia

tempo. Havia baldes de tinta, sacos de cimento, placas de madeira empilhada e, ao fundo, três

grandes janelões cujos vidros estavam partidos. Clara observava tudo com os olhos arregalados,

ainda mais nervosa agora que não podia falar e que mal conseguia respirar com as cordas

pressionando seu torax. Demorou pouco mais de dez minutos até que ela percebesse alguma

movimentação. Passos pesados caminhavam para lá. Wotan, que estava escorado numa pilastra

desde que a tinha amarrado, desencostou-se.

Da penumbra surgiu um homem alto, vestindo um terno preto, cabelos negros,

aparentando cerca de trinta anos, algumas cicatrizes profundas, uma das quais cruzava o rosto de

lado a lado na diagonal. Se não fosse pela cicatriz tão pronunciada e os olhos escarlate, Clara o

acharia bonito. Ela não demorou mais do que alguns segundos para reconhecê-lo. Conhecia-o por

descrição. Uma cicatriz como aquela era como uma marca registrada. Sentiu pavor, repulsa e ódio

ao mesmo tempo. Tentou emitir alguns sons, mas não conseguia formar palavra alguma com a fita

apertando sua boca.

Naquele mesmo instante, Wotan começou a massagear o rosto com as duas mãos. Ele

abaixou a cabeça e continuou a esfregar, cada vez com mais força. Parecia que queria arrancar o

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rosto, que aos poucos foi se desfazendo e perdendo a forma. Como uma pasta de modelar, se

tornou um nada, vazio, sem olhos, sem nariz, sem boca. Clara quis gritar e ela até tentou, mas não

saiu nada senão grunhidos assustados. Quando pensou que o rosto daquele homem ia ficar

desfigurado daquele jeito, ele novamente começou a esfregá-lo até criar uma nova aparência.

Enquanto aquele que Clara pensava ser Wotan ainda reconstruía o próprio rosto, o outro

homem circulava em volta dela. Os sapatos lustrados de uma marca italiana arrastavam no chão de

cimento e aquele suspense a estava deixando mais irritada do que amedrontada. Ela sabia, ou pelo

menos pensava, que aquele homem não lhe faria mal. Se ela estava ali, era por que ele precisava

dela. E se ele precisava dela, ela tinha um trunfo nas mãos.

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2 – PASSADO

Meus pulsos estão feridos das tentativas de me desvencilhar das amarras. Quando levanto

meus olhos, vejo que o homem sinistro me observa com um ar de graça. É como se com o meu

desespero, eu estivesse alimentando o seu prazer.

- Foi tudo fruto da sua imaginação. Vocês humanos são tão... sonhadores.

Esperava que ele fosse dizer “idiotas”, pois é como me sinto neste momento.

Uma mão feminina surge por trás de mim e arranca a fita adesiva da minha boca. Um grito

fica preso na minha garganta.

A bela e jovem mulher está diante de mim com o mesmo vestido de tule azul do dia em

que me visitou em sonho. Por um instinto natural, esboço a palavra “mãe”, presa à ponta da

minha língua. Ao observar melhor, reparo que seus olhos em nada se assemelham aos de minha

mãe. Eles não espelham a luz; espelham as sombras.

- Você não tem esse direito! Como pode usar a memória da minha mãe para me

chantagear? Respeite-a, seu covarde!

- Quer que eu vá embora, querida? - o timbre grave da voz masculina se revela apenas na

última palavra, numa distorção assustadora.

Ele corrige a voz e, com requinte de maldade, reproduz fielmente o diálogo que tive com

minha mãe no sonho: “Você precisa acordar. E precisa ajudar seu pai”.

Wotan ludibriou a minha mente! Não foi fruto da minha imaginação! O meu desejo é pular

em seu pescoço e obrigá-lo a se calar!

Remexo-me, agitada, arrastando os pés da cadeira no chão de cimento. Ele prossegue com

sua encenação, mascarando o tom de sua voz e repetindo: “Me ajude a voltar.”. Ainda mantendo a

expressão angelical em seu rosto, seus olhos azuis cobrem-se de uma pigmentação vermelho-

sangue.

Minha voz fraqueja, mas engulo o choro e pergunto:

- O que querem de mim?

O homem olha para Wotan, que está de volta à sua forma original, e diz:

- Nós ainda não fomos apresentados.

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- Eu dispenso as apresentações.

Os dois desatam a rir e, por impulso, faço o mesmo. Rio para provocá-lo e rio de nervoso.

Talvez não tenha me dado conta de que por mais útil que eu seja para este homem, minha vida

não vale nada para ele.

De um momento para o outro, a risada cessou e a cadeira onde estou é arremessada longe.

Wotan já está por cima de mim, me prendendo contra o chão. Ele dá um simples peteleco na

minha testa e minha cabeça bate no cimento áspero. Sinto os cabelos molhados e grudentos e,

quando giro os olhos - apenas o que consigo mexer -, vejo sangue escorrendo por baixo de mim.

O meu sangue.

- Podem me matar agora. Porque o que quer que me peçam, eu não vou fazer.

- Então, você é corajosa, mulher? - Ele pergunta para mim, olhando para Wotan. - Não é à

toa que por criaturas como você, tantos de nós caíram.

Ele faz um gesto para o nephilim capacho, que sai de cima de mim. Quando as cordas se

soltam, levo minha mão à cabeça e me assusto com a quantidade de sangue.

- Não vai adiantar me chantagear. Quando aceitei vir com Wotan, sabia que seria o meu

fim.

Ele dá uma gargalhada arranhada que me obriga a tapar os ouvidos.

- Você não vai morrer enquanto for útil a Heilel. Tenho um acordo para lhe propor. O que

peço não tem importância nenhuma para você, perto do que pode receber.

Não quero ouvir o que o homem tem a dizer. Com medo, fecho os olhos, como se com

este gesto eu pudesse bloquear os outros sentidos. Ouço uma voz morna se sobrepondo à do

homem: “Eu vou cuidar de você. Não vou deixar que nada de mal aconteça a você, ahuvati.”.

O homem continuava falando quando abri os olhos.

- ...existe um passado escondido nas ruínas de um templo na Espanha. Você é o único

humano que pode entrar lá. Por isso, quero que me traga esse passado. Em troca, eu lhe darei o

futuro.

Lembrei-me daquelas máquinas de leitura de mão dos parques de diversão. Contudo, isso

não me soou nem um pouco divertido. Ele conseguiu atiçar a minha curiosidade quando disse que

sou a única. Este fato me tornaria alguém especial? Ou me tornaria amaldiçoada?

Dou de ombros, desdenhando da sua proposta com o resto de orgulho que eu ainda me

dou ao direito de ter.

O semblante do homem se contorce. Dou dois passos para trás com os olhos congelados

do pior tipo de medo. Morrer nas mãos do braço direito de Heilel me parece o pior tipo de morte.

Lenta. Sanguinária. Excruciante.

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Quando chega perto de mim o suficiente para respirar meu cheiro, eu sinto o dele; um

odor ácido, condimentado, que faz meu nariz coçar. Ele então, diz, calma e pausadamente:

- Ouça bem. Vou lhe contar uma história.

Sua voz me envolveu e depois falou dentro de mim. Eu pude sentir o timbre grave, rouco

e sussurrado, passeando pela corrente sanguínia. Um frio na barriga, um soco no estômago, um nó

na garganta. Já tive estas sensações antes, mas todas ao mesmo tempo é uma experiência bem

desagradável.

O homem pronunciou o meu nome arrastando os fonemas. Pela primeira vez, soou-me

feio.

- Não gosto do seu nome. - Ele se interrompe diante do meu olhar agudo e monta uma

expressão cínica no rosto. - Desculpe! Que indelicadeza dizer isso à uma dama. Permita-me que eu

me corrija. É que seu outro nome, o antigo nome, era mais bonito.

Observo-o com cautela e desconfiança, sem interrompê-lo. Ele pergunta:

- Você tem conhecimento sobre a história da sua linhagem, mulher?

Faço que não. Eu não conheço o passado da minha família, mas sei que em algum

momento, uma antepassada minha, uma mulher chamada Lea Abravanel, conheceu um guardião

chamado Nate. Um arrepio amedrontador desce pelo meu pescoço percorrendo a linha da jugular,

os ombros e os braços. Quando me apercebo, é a respiração do homem sobre mim.

- Nath-Aniel foi muito imprudente não lhe contando nada quando percebeu que estava

envolvido novamente por você. - Ele ensaia um sorriso provocativo. - Amorosamente envolvido.

Do que você está falando? - Eu tentei perguntar, mas minha voz não saiu. O homem domina

os meus sentidos e quer que eu apenas ouça e ouça muito bem.

- Mais imprudente ainda foi quando deixou explícito este sentimento diante de nós em

Malkuth.

Você está enganado! Eu e Nate... não há nada entre nós! Ele é meu guardião e eu tenho muita gratidão

por ele. Não passa disso.

Eu sabia que negar era inútil, porém, a única defesa. Melhor do que calar.

- Você não quer que eu me apresente, mas me trata como se não me conhecesse.

O pânico cresce dentro de mim como ondas agitadas formando um maremoto.

Eu sei... eu sei quem você é! Lembro-me perfeitamente da descrição de papai em Malkuth.

Abbadon.

Sua risada arrogante ecoa pelos quatro cantos do galpão. Pensei que o restante das janelas

partidas fosse despencar de vez, mas não é o lugar que treme; sou eu. Enquanto procuro

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inutilmente parar de tremer, Wotan se diverte, contagiado pela gargalhada do seu mestre. Abbadon

se aproxima de mim e aperta meu maxilar com os dedos.

- Tão frágil... - sinto que ele pode estalar os meus ossos e parti-los se apertar mais. - O

gesto imprudente do seu guardião não passou despercebido por ninguém em Malkuth. Ele

desafiou sua legião para tomar a sua guarda.

Nate estava desempenhando a sua função. Eu sou sua protegida e minha vida estava sendo ameaçada. Ele

não fez nada além da sua obrigação.

Eu sei que meu argumento é insuficiente, mas foi no que acreditei quando Nate me salvou

de Balam. Pensei que fosse morrer naquele dia.

Ele gira meu queixo para o lado como se tencionasse deslocá-lo. Eu devia ficar calada.

Bem, de fato estou estou calada! Só não tenho como calar meu pensamento.

- Seu mal´hak perdeu o controle. Ele desobedeceu seu superior, Haileal, pois não suportou

ver a amada agonizando. Nath-Aniel agiu movido pelo sentimento mundano e não pelo dever de

proteção. - Quando ele finalmente liberta meu rosto, sinto a pele queimando onde ele a

pressionou. - Não precisa ser anjo ou demônio para perceber o que está acontecendo. Não é,

Wotan?

Encostado numa janela parcialmente quebrada, o nephilim me provoca com um sorriso

debochado. Seu mestre circula em torno da minha cadeira e eu me concentro na batida ritmada da

sola do seu sapato.

Não sei quanto tempo passou desde que entrei no carro de Wotan, mas começava a me

arrepender de ter cedido à chantagem. Talvez tivesse valido a pena pagar para ver. Talvez

pudéssemos ter negociado noutros termos. Eu não quero morrer aqui. Não desse jeito, pelas mãos

deste homem. Também não quero dar a ele o gostinho de me fazer dobrar. Entretanto, eu já não

posso suportar as dores. Meus músculos estão retesados há tempo demais, minha boca ressecada

implora líquido, os olhos ardem e toda minha cabeça lateja.

Pelo rumo da conversa, sei que é o meu fim. Se não o fim da minha vida, o fim da minha

história com Nate.

Um filme inteiro passa à minha frente e eu recordo o momento em que segurei a sua mão,

na primeira vez em que o vi como humano. Lembro-me de sentir um formigamento entre os

dedos. Seu toque era quente e ele segurou com força, me trasmitindo não só calor, mas a sua

energia etéra. Aquele tinha sido um sonho, ao contrário do que que aconteceu há poucas horas

quando me convidou para dançar, na última vez em que o vi como humano. É só deste Nate, o

Nate real, que eu sempre precisei para fugir dos meus medos. E é a mão que eu devo segurar nas

minhas lembranças.

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A voz ácida interrompeu meus pensamentos. Eu estava tão bem, segurando a mão de

Nate...

- O seu mal´hak prefere ignorar que foi colocado à prova pelo seu Mestre. Ele não quer

entender que ter sido designado para ser o guardião de Clara Abravanel Chevallier não foi mero

acaso. Ele deveria considerar que os acasos não existem para os anjos. Ah, mas é claro que ele não

quer saber disso! Ele é um anjo rebelde! Sempre foi.

Rebelde? Nate não é rebelde... eu não posso imaginar anjo mais puro do que ele.

- Ele sempre foi o anjo mais envolvido pelas causas humanas de que se tem notícia em

Malkuth. E se ele tem fama é por que aprontou muito. Aos olhos do Criador, o seu Nate é uma

ovelha desgarrada. Mas, ainda assim, Ele não quer perdê-lo para... - ele limpa a garganta - o nosso

rebanho.

Nate nunca entraria para o seu rebanho!

- Faltou muito pouco. - Ele ergue uma sobrancelha num ângulo diabólico. - E falta muito

pouco.

Minha garganta não está apenas bloqueada, está seca e irritada como se eu tivesse engolido

areia. A tensão é tanta, que eu mal consigo respirar.

- Ele pode esconder suas pinturas, mas não pode abafar seus sentimentos. Nath-Aniel se

apaixonou por Lea e deixou que os sentimentos mundanos a desviassem da missão sagrada que ela

tinha. - Ele dá um suspiro entediado. - Tudo o que é material e imaterial, todas as existências

físicas e metafísicas são um ciclo no Universo. E agora, séculos depois de Lea, o ciclo da vida está

se repetindo para você.

Mas o que Lea tem a ver comigo? O que eu tenho a ver com essa missão sagrada?

- Eu imagino o quanto você esteja curiosa sobre a semelhança entre você e Lea Abravanel.

Você existe, Clara, por causa de uma profecia. A sua vinda a esse mundo, a sua missão, é zelar pelo

maior segredo que existe entre o céu e a Terra. No entanto, você não poderia, não deveria saber

disso.

O que está me dizendo não faz sentido nenhum!

- A alma de Lea está presa à sua alma. Você é a nephesh ficta de Lea. Uma alma que precisa

existir para que outra regresse. E, assim, vocês foram unidas uma à outra para cumprir a profecia,

para seguir o caminho que estava pré-destinado, o de proteger os pergaminhos sagrados com a

própria vida.

Por que Nate não me contou nada disso? Ele não me omitiria algo tão importante...

- Ele só quer corrigir algo que não saiu conforme deveria. Pelo caráter sigiloso de sua

missão, seu guardião de tudo fará para que você não descubra nada sobre isso. Mas não o culpe.

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Ele também está tendo uma nova chance e quer fazer direito desta vez. Ele deve isso ao Criador.

O problema é que, nem passados tantos séculos, ele a esqueceu... nem ele e nem o Criador.

As lágrimas correm pelo meu rosto sem controle, gotejando pelo queixo e atingindo meu

vestido. Choro por tudo o que estou ouvindo e que não sei se é verdade. Choro pela verdade que

pode não ser.

Olho para a mancha molhada no tecido e tenho ainda mais vontade de chorar. Eu poderia

chorar pelo resto da vida, poderia encharcar todo o tecido e ainda assim, não secaria as minhas

lágrimas. Eu não sou eu? Sou eu e Lea? Ou Lea ou eu? Quem Nate ama... não sou eu? Não

entendo. Não quero entender. Não é por mim que eu choro. É por Nate. Que sina terrível...

Não adianta sumir da vida dele... ele sempre vai me achar. Sempre estará em minha vida. O que eu posso

fazer para salvar Nate?

- Você chegou à pergunta que enseja minha proposta. Se a história se repetir como já está

se repetindo, ele pedirá o nephal, mas as chances de consegui-lo, se o Criador ficar sabendo que o

anjo anda saindo da linha de novo, são... nulas. Eu não acho isso justo. Não acho justo que ele seja

humilhado, maltratado e, por fim, executado pelo Conselho. Os Serafins sabem ser muito cruéis

com os traidores.

Executado? Se o nephal for negado, Nate será executado?! Ele nunca me contou isso. Pois, é claro! Ele

vinha tentando me convencer a aceitar sua queda e sabia que se me contasse sobre a gravidade dos riscos, a minha

rejeição seria sumária.

- O Criador o colocou à prova e o anjo está falhando. Vocês são, neste momento, dois

marionetes nas mãos Dele. Mas não precisa ser assim. Posso fazer com que Nate escape desse

destino cruel. Vou preservá-lo, protegê-lo. - Olhei para sua boca a espera de ver uma língua de naja

saindo dela. - A liberdade de Nath-Aniel só depende de você.

Engulo o choro e digo, mesmo sem conseguir falar:

Eu sei quais são as suas verdadeiras intenções, por isso, me poupe do discurso piegas. Eu não caio na sua

lábia. Não me interessa se eu sou a nephe... sei lá o quê de Lea. A única verdade nisso tudo é que eu não estou a

venda. E nem vou negociar sobre o livre arbítrio de Nate com você.

Eu queria exaperar, mas nem para mim mesma eu conseguia inflamar as palavras. Ele

quase encosta o nariz no meu, me dirigindo um olhar cândido que destoa completamente das

intenções por trás do discurso. Como se diz e, neste caso, um ditado nunca se aplicou tão bem: de

boas intenções o inferno está cheio.

- Clara, baixe a sua guarda. Você ainda não percebeu que estou apenas querendo ajudar.

Infelizmente os meus serviços não são baratos, mas eu garanto que os resultados nunca

decepcionam.

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Eu queria cuspir no seu rosto, mas nem saliva eu tinha para isso. Eu queria não precisar

fazer esta pergunta, no entanto, neste momento, apesar de toda a minha ira e confusão mental,

preciso reconhecer que ainda sou refém dele.

Qual o seu preço pela liberdade de Nate?

- Eu quero os pergaminhos sagrados. Tudo o que você precisará fazer é entregá-los a mim.

Se minha missão é protegê-los com a vida, todos nós dependemos da segurança deles. Eu nunca vou entregá-

los a você.

- Independentemente dos pergaminhos sagrados, a sua sina, Clara, é enfeitiçar o guardião

até fazê-lo cair. E esta é a verdadeira sina de Nath-Aniel: proteger aquela que poderá levá-lo à

ruína. Ao entregá-los, você estará se libertando da nephesh de Lea, redimindo o anjo do destino que

o prende ao passado dela e libertando a humanidade de séculos de obscuridade e ignorância. Você,

seu anjo e toda a humanidade conquistarão o verdadeiro livre-arbítrio.

Ele falou de sina como se o meu destino e o de Nate fossem amaldiçoados. Depois que eu lhe

entregar os pergaminhos, o que vai acontecer com a humanidade, comigo e com Nate? Nos libertamos de uma sina e

nos escravizamos à você. Que livre-arbítrio é esse que você está propondo?

Ele riu com vontade. Havia uma ferocidade prazerosa naquela risada. Me senti a piada do

século. Piada de humor negro.

- Pense bem, Clara. A segurança dos pergaminhos está atrelada ao livre-arbítrio de uma

humana e do seu guardião apaixonado. Por que o Criador faria isso? Por que você e Nath-Aniel

são as criaturas mais importantes de todo o universo? Não. Porque você e Nath-Aniel, um na

Terra e o outro no Céu, só existem para servir aos propósitos Dele, que é sempre testar e controlar

os limites do livre-arbítrio de suas criaturas. Por que você não podia saber nada disso? Porque

você poderia escolher libertar-se ou não desta... sina. Me responda, então, mulher: que espécie de

livre-arbítrio é esse que o Criador lhe deu?

A minha expressão de incredulidade não desestimulou a sua sordidez. Nos olhos dele,

fulgurou um brilho diferente, de uma vitória contida, como o de um jogador de xadrez que faz o

último movimento antecedendo o cheque-mate, confiante de que o jogo está ganho.

- Você e seu anjo poderão consumar a coabitação na Terra sem ferir nenhum preceito

divino, não haverá lei sagrada para impedi-los. Não haverá mais profecia para determinar os seus

destinos. Todos serão livres.

Eu seria o seu bode expiatório e Nate mais um grigori na sua coleção. Eu não poderia desejar nada

melhor. Não pude evitar a ironia, mesmo sabendo que o renegado não ia gostar nem um pouco.

- O que há nos pergaminhos que lhe interessa tanto?

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Surpreendi-me com a minha própria voz, encorpada novamente. A sequidão na garganta

desapareceu, eu voltei a ter domínio sobre mim e meus sentidos se estabilizaram.

O brilho vitorioso no olhar do homem se tornou uma sombra. Seus olhos haviam se

transformado nos olhos de Abbadon, com a íris escarlate ocupando todo o globo ocular. Noto

que há sangue vivo nas cicatrizes e o rosto do renegado começa a se desmanchar num borrão de

sangue. Antes que eu pudesse virar o rosto, ele segurou meu queixo com as unhas afiadas.

Procuro não olhar para ele, mas está perto demais.

- Seu mal’hak está chegando. É incrível como esse anjo está realmente destinado a cometer

o mesmo erro pela segunda vez.

- Nate?! Nate está aqui?

Ele liberta meu rosto das suas garras. Quando percebo que Wotan dispara na direção da

saída, não perco tempo e corro atrás dele com a minha maior velocidade. Consigo cruzar o salão,

mas sou impedida de sair por um bloqueio invisível, cuja energia é tão poderosa, que me projeta na

parede das janelas. Alguns estilhaços caem sobre mim, atingindo o bloqueio e sendo expelidos por

ele. Enquanto procuro focar a visão embaralhada com o impacto, ouço a voz do homem, ainda

mais grave e rouca do que me lembrava:

- Você pode ser egoísta, ignorar tudo o que lhe contei e permitir que Nath-Aniel caia por

você. Ou pode redimi-lo perante o Criador e fazer com que a história de Lea Abravanel, a sua

história, não tenha sido em vão.

Um estrondo traz uma nuvem de poeira e cinzas para dentro da sala. A única fonte de luz

se apaga. Sinto-me intoxicada pelo ar, denso e pesado demais para respirar. Apesar da ardência

insuportável nos olhos, consigo mantê-los abertos. Ainda que não possa enxergar, agacho-me e

engatinho até encontrar outra parede. Tateio algo vindo de encontro à minha mão. É o terço.

Depois disso, não ouvi, vi ou senti mais nada.

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3 - AMANHECER

É num lugar inóspito, de onde avisto uma imensa cordilheira como muralha e nenhuma

vegetação. O solo é arido e coberto por uma matéria oleosa e pegajosa como lama. Os tons da

paisagem daqui seguem uma variação monocromática, à exceção de mim, ainda com o vestido

fúcsia da festa, ou o que sobrou dele. Uma fina alça ainda o sustenta em meu corpo. Meus pés

estão imundos, descalços e escorregadios. O vento sibila melancolicamente em meus ouvidos e é

tão gelado, que sinto a pele repuxar como se farpas me atingissem o rosto.

Quando o vento silencia, percebo que estou num penhasco. Abaixo de mim, há um

abismo cujo fundo minha vista não pode alcançar. A negritude me faz lembrar um poço. Há uma

voz me chamando. Eu me aproximo e me apercebo que a voz não vem do fundo. Giro meu corpo

para procurar a direção.

É a voz quente, aveludada, familiar; a voz de Nate. Ele parece tão perto e tão longe.

Aperto os olhos e reconheço os seus contornos. Está mais adiante, do outro lado do penhasco.

Sua roupa preta se confunde com a imensidão do céu noturno sem estrelas.

Começo a correr para o seu encontro. O meu ímpeto incontrolado quase me leva a cair no

precipício. Ao parar, respiro fundo o ar fétido do abismo.

Nate continua a gritar meu nome, com a voz cada vez mais rouca. Ele não me vê, mesmo

quando chego bem perto. Suas roupas, uma camisa preta e uma calça jeans também preta estão

maltratadas, rasgadas e imundas. Ele está imobilizado por correntes nos tornozelos, a pele está

ressecada e queimada de sol e há feridas em todo o seu corpo, inclusive no seu lindo rosto.

Eu lhe digo “Estou aqui”, no entanto, ele não me ouve e só repete “Clara, Clara...”. Não

sei o que fazer. Tento soltar as correntes de seus pés, mas não tenho força. Pego uma pedra e bato

contra elas, mas nem um arranhão consigo fazer. Nate se senta aos meus pés, exausto e

desanimado. Por alguns instantes ele adormece. Faço carinho em seu cabelo e o abraço. Ele não se

move, não sente o meu toque, a minha presença. Quando acorda, seus olhos são vermelho-sangue.

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Ele se levanta me encarando com uma expressão de dor e ódio que eu nunca vi em seu

olhar. Suas asas, sempre tão brancas e luzidias, estão apagadas e sujas; ainda assim, continuam

imponentes.

Ele diz “Vamos! Estou pronto!” e eu não sei se está falando comigo. Pelo menos agora

olha para mim. Ele começa a se exaltar e sua voz já não é aveludada. É uma voz grave e rouca

como a voz de Abbadon, que diz: “Eu me entreguei ao Criador por você. Leve as minhas asas.

Vamos! Arranque-as!”. Eu balanço a cabeça, atordoada, e começo a me afastar. Ele tenta me

alcançar, mas ao esticar as correntes, elas o puxam para trás e ele desaba no chão. Está tão fraco

que não consegue se reerguer.

Assustada, dou alguns passos para trás e despenco no abismo. O calor é sufocante e meu

grito ecoa abafado, ricocheteando nas paredes. Então, me dou conta de que abismos não têm

paredes.

Eu não estou em um abismo e sim em queda livre num túnel lávico. Pergunto-me o que

haverá no fundo e a resposta, a imagem de uma piscina caudalosa de lava, afugenta qualquer

esperança de sobrevivência. Devo estar descendo até o centro da Terra. Inúmeros pensamentos

mórbidos tomam conta de mim. Não enxergo nada, mas à velocidade que estou caindo, já percorri

quilômetros. Em determinado momento, perco a noção de quanto já desci. Tento recaptular

momentos da minha vida, pois dizem que ajuda a distrair quando estamos frente a frente com a

morte certa, no entanto, a única imagem que vejo é a de Nate. Eu e Nate na pedra do Arpoador,

vendo as estrelas cadentes, na noite do Equinócio de primavera.

No melhor momento da lembrança, meu corpo mergulha em alguma coisa. Minha queda

foi amortecida por um colchão de plumas. Plumas brancas, macias, sedosas, cheirando à Nate.

Penso que posso nadar nessa piscina de plumas; ou que posso me afogar nelas. E é o que

acontece: não consigo me manter à superfície e começo a submergir.

Não consigo encontrar foco. Meus olhos estão pesados e embaçados, como se uma cortina

de fumaça estivesse ainda a me envolver, ainda que não sinta o seu cheiro característico. Não sinto

cheiro de nada. Não vejo direito. Não consigo pensar.

Levanto-me, tonta e trôpega, gritando, em desespero:

- Socorro! Socorro...

O grito estava engasgado e saiu rouco, fraco demais para produzir algum som, mas o mais

alto que meus pulmões intoxicados me permitiram. Antes das pernas fraquejarem, um braço

apoiou minha cintura e me levantou do solo. Meus olhos estavam quase se fechando quando

encontrei os dele...

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Duas esmeraldas.

Foram a última coisa que vi e a primeira quando tornei a abrir os olhos. Nate estava no

mesmo lugar, mas eu não. Ele havia me colocado na minha cama e agora inclinava-se sobre mim,

me observando com uma ruga entre as sobrancelhas. E eu sei que sou a única responsável por ela.

- Como se sente? – ele pergunta.

- Um pouco tonta...

Suas mãos massageiam a minha testa sem me tocar. Na verdade, ele não pode me tocar

porque eu não estou acordada. Estou dormindo. Eu tive um pesadelo. Mas, acordei. Ou dormi de

novo? Ou será que... morri?

- Você está viva e acordada, Clara. Eu é que não estou aqui.

Levo minha mão à testa, trespassando a dele. O local está quente, mas eu sei que é do

tratamento mágico de Nate.

- Está melhorando. - asseguro-lhe.

Ele mal consegue sorrir. Está descontente, para não dizer, decepcionado comigo. Eu

também não aprovo o que eu fiz e, muito menos, o que preciso fazer. Custa acreditar que estive

frente a frente com Abbadon. Seria bom se a chantagem que me fez não tivesse passado mesmo

de um pesadelo.

- O que aconteceu? Como me encontrou? – pergunto.

Seus olhos mudam de direção e estacionam no terço sobre a mesa de cabeceira.

- A última coisa que me lembro foi de ter encontrado o terço...

- Abbadon e Wotan fugiram antes que eu pudesse lhes perguntar. - Ele se interrompe,

tornando a olhar para mim. – Então, pergunto a você, Clara. O que aconteceu?

Não consigo encará-lo.

- Wotan apareceu na festa e me chantageou.

Nate se levanta bruscamente. Se ele não fosse apenas uma imagem truva à minha frente,

podia jurar ter ouvido seus passos firmes encontrando o chão. No entanto, ele mal o toca. Flutua

até a janela, por onde ameaça sair, quando se volta para mim.

- Você tem ideia do risco que correu?

- Nate, eu não tive escolha.

- Não confiou em mim.

- Ele me enganou! Usou a minha mãe para me sensibilizar... eu estava... enfeitiçada... não

sei...

- Enfeitiçada? - seu tom foi zombeteiro. Não combina com ele.

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- Não sei... eu acreditei que minha mãe tivesse algum recado para mim. Ele me fez

acreditar nisso. Ela era tão real...

Uma lágrima nasce no canto do olho e de repente eu estou chorando. Ele continua no

mesmo lugar, olhando fixamente para mim, mas sem expressar nada.

- Clara, você se deixou enganar.

- E o que você queria?! - Engulo o choro. - Por que eu não posso acreditar naquilo que

vejo, se tudo o que eu antes não acreditava é real? Como eu posso saber o que é ou não verdade,

em que devo ou não acreditar?

- Clara, Clara... - ele balança a cabeça, contrariado. - Eu pensei que você acreditasse no que

eu te digo.

- Você mesmo me disse que não há verdade absoluta, Nate. Os referenciais mudam. Há

verdades ocultas... coisas que ainda não sei. Que você talvez não queira... ou não possa me contar.

- Do que está falando?

Abaixo o olhar. Estou falando dos pergaminhos sagrados. De Lea Abravanel. De eu ser uma neph-sei-

lá-o-que-ficta de Lea. Do seu passado... e do meu também. Prefiro não verbalizar.

Ele respira fundo e diz:

- Se eu não tivesse me materializado, isso não teria acontecido.

- O que quer dizer?! Está arrependido?

Aqueles momentos com ele tinham sido os mais felizes da minha vida e a mera hipótese de

não tê-los vivido, arranca de mim algo que eu já tinha como meu por direito adquirido: amar Nate

e ter este amor correspondido. Naquela noite, consumamos mais do que um beijo; consumamos a

nossa decisão de estarmos juntos e enfrentarmos as consequências das nossas escolhas.

Quando eu aceitei ir com Wotan, não estava abdicando de Nate, embora eu soubesse que

estava arriscando perdê-lo. Independentemente das ameaças de Abbadon e do que possa esperar

do futuro, aquele momento em que eu e Nate dançamos e nos beijamos, valeu e valeria por todo e

qualquer risco que corremos. E eu faria tudo de novo. Por um momento, breve e eterno, como

aquele.

O silêncio prolongado só confirma o que eu temia ouvir. Ele está arrependido. Como pode

um anjo ser capaz de ferir meu coração?

- Clara, se há coisas que eu não contei é por que este é o único jeito de proteger você. Mas

se até assim eu falhei, de que adianta ser o seu anjo da guarda?

- É... de que adianta, Nate? - contenho as lágrimas que se prendem aos meus olhos.

Ele se aproxima de mim e senta à beira da cama.

- Eu preciso cair. Preciso da sua permissão.

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Se ele tem o direito de calar sobre tantas coisas do nosso passado, eu também tenho.

Apesar disso e mesmo correndo todos os riscos, este não é o momento de calar. É difícil, mas eu

não posso esperar nem mais um dia: preciso libertá-lo de mim antes que Abbadon reúna mais

provas para incriminá-lo.

Como pode o amor ser considerado um crime, eu não sei. Nunca vou entender. No

entanto, se Nate precisa arriscar a vida pela chance de viver ao meu lado na Terra, então eu não

tenho outra alternativa senão libertá-lo de mim. Se já era difícil aceitar que ele entregasse sua

eternidade, permitir o risco de que seja executado, já é egoísmo demais.

Antes que Nate canse de esperar por uma resposta minha e peça o nephal à minha revelia,

antes que ele se perca tentando me encontrar, ou tentando encontrar Lea em mim, preciso libertá-

lo. Como posso ser capaz de ferir o coração de um anjo?

Minha tensão alimenta a sua expectativa a espera da resposta. Cada músculo do seu rosto

está concentrado em cada músculo do meu rosto. Seus olhos são só meus. Ele não está em mais

lugar nenhum, só aqui comigo. Neste momento, eu sou sua única protegida.

- Nate, eu não me arrependo de nada que vivemos. Cada lembrança está guardada no meu

coração. - eu queria pegar sua mão, mas o máximo que consigo é sobrepor a minha na dele,

sentindo nada além da textura do leçol e um leve formigamento. - Esta noite...

Tive que parar para segurar as lágrimas. A voz estava começando a falhar. Não conseguirei

dizer o que preciso se continuar encarando seus olhos verdes.

- Esta noite eu tomei uma decisão muito importante sobre nós.

Sinto um calor na região do queixo e percebo que ele me toca com os dedos, tentando

elevar minha cabeça. Felizmente ele não consegue.

- Não. – digo-lhe. Ele me observa com a expressão confusa e atordoada, mas não diz nada

e espera que eu continue. - Não te dou permissão.

Ele balança a cabeça.

- Clara, eu quero cair. Eu preciso. Preciso de você.

- Eu já ouvi isso várias vezes.

Ele aperta os olhos, não me reconhecendo. E eu, tampouco.

- O que há com você?

- Eu tenho que te pedir uma coisa.

Acendo um breve fulgor em seu olhar e meu coração se encolhe, dolorido.

- Peça! Peça tudo. Qualquer coisa! – ele exclama.

Os olhos verdes, intensos, inebriantes, hipnotizantes, onde tantas vezes me encontrei e

agora estou prestes a perder para sempre, esquadrinham cada centímetro do meu rosto.

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- Não me procure mais.

Ele se levanta bruscamente. Suas asas se estendem a meio arco sobre nós, só não abrindo

por completo por falta de espaço no meu quarto. Ele as sacode duas vezes e o vento perfumado

de jasmim fresco recém regado pela chuva, me lembra a primeira vez em que vi suas asas; a

segunda, a terceira e todas as vezes que senti o aconchego de suas plumas macias.

- Que pedido é esse? - ele pergunta, me despertando do sonho. - Clara, o que fizeram com

você?

- É uma decisão minha.

- Eu não posso deixar de ser o seu guardião.

- Não quero que deixe de ser meu guardião. Eu só não quero ver você... Nunca mais.

De tão desnorteado, Nate parece procurar o chão sob os pés, como se realmente

precisasse de uma superfície para se equilibrar.

- Por quê? Por que quer terminar tudo?

Ouvir Nate questionar sobre nós como se fôssemos um casal me faz arquejar. Por um

instante, penso em desistir do que estou fazendo, dar uma banana para Abbadon e aceitar que

Nate peça o nephal. Qual seria o problema de assumir o risco do deferimento? Nós já nos

arriscamos tanto!

Os pensamentos travam uma luta insana na minha cabeça e eu já não consigo pensar com

clareza.

E se os serafins não deferirem o pedido? Até onde vai a fúria de Abbadon? E se Nate

perder as asas em vão? E se eu for a ruína de Nate?

Lembro do pesadelo que me despertou esta manhã. As correntes. Os olhos vermelhos. O

abismo. As penas. O nosso fim.

- Terminar?! - entono cinicamente. - Nate... nós mal começamos!

Ele encheu o peito de ar.

- Ontem nos beijamos e eu... – ele se interrompe e baixa os olhos. – Eu senti como se já

tivesse caído. Tudo o que eu senti foi tão real!

Como ele consegue ser tão suave e passar feito um trator por cima de mim?

- Eu pensei que estivesse arrependido de ter se materializado por mim.

- Nunca me arrependi de nada que fiz por você - ele me olha com ternura e desespero ao

mesmo tempo. - Bishvili at nehederet. Você é maravilhosa.

Ele deve saber que eu me derreto quando ele me elogia em sua língua angelical. Minha

vontade é abraçá-lo com toda a minha força, me aninhar em seu peito e me fechar como concha

debaixo de suas asas.

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- Nunca quis deixar você vulnerável. Mas... ao me materializar, eu deixei de lado a minha

função de mal’hak e fui o seu par de baile. Eu falhei. Não posso ser as duas coisas ao mesmo

tempo.

Essa é a minha deixa. Se eu usar um argumento que o faça pensar que é prejudicial à mim,

tenho certeza que não me contestará. Tudo o que ele quer, tudo o que sempre quis, é a minha

proteção, o meu bem-estar. Se eu conseguir convencê-lo de que ele me faz mal... mas como? Ele me

faz tão bem!

- Exatamente. Você se envolve demais com os humanos e se envolveu demais comigo. Em

parte a culpa é minha, pois eu deixei, eu quis. Eu estava muito curiosa sobre você, afinal, nunca

nem tive um namorado de verdade, nunca vivi essas emoções. E, de repente, eu namoro um anjo...

e...

Em meio aos traços fundos de preocupação, seus olhos engrandecem e um sorriso

timidamente abre passagem em seus lábios.

- Eu sou seu namorado?

- Nate, isso não importa. Eu quero que acabe. Antes que nos envolvamos mais e que eu

me torne responsável por algo que não sei se quero. Eu quero viver a minha vida normal, sem

sobressaltos, sem medos, sem coisas sobrenaturais tirando meus pés do chão. Eu quero ter um par

de baile que não não precise abdicar de nada para estar comigo.

Pelo seu olhar perdido, acho que consegui convencê-lo.

- Eu pensei que gostasse de voar nos meus braços.

Posso sentir o frescor do vento embaraçando meus cabelos e seu cheiro de jasmim me

envolvendo entre as nuvens, o calor do seu peito e posso até ouvir as batidas do seu coração.

Assim fica quase impossível prosseguir.

- Nate, eu estou colocando um ponto final na nossa história. Pelo meu bem, por favor, não

apareça mais.

Eu não podia pensar nele agora. Se eu começasse a pensar na sua dor de guardião, tendo

que olhar por mim sem poder me tocar, sem poder conversar comigo, acompanhando todos os

meus passos e me vendo tropeçar sem poder intervir, eu não conseguiria ser firme.

Ele me surpreende quando desaparece da minha frente e reaparece por trás de mim. Sinto

sua respiração quente no lóbulo da minha orelha, fazendo cócegas. Não sei como isso é possível.

Ele é um espectro. A sensação deve ser fruto da minha imaginação, me pregando peças para

dificultar a minha vida. Eu posso derreter se continuar nessa posição, então me afasto. Ele não

pode me impedir.

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- Clara, eu entendo que você precise da sua vida normal. Eu nunca quis atrapalhar a sua

vida. É por isso que eu quero cair. Mas eu vejo que esse não é o real motivo para você pedir que

eu não te procure mais. Você está querendo me proteger. - Ele fala com segurança, como se

pudesse enxergar o inferno que acontece dentro de mim.

Ao contrário de Nate, sereno como a pomba da paz, eu me debato comigo mesma, minhas

mãos tremem e tenho mais rugas na testa do que seria capaz de contar.

- Eu conheço você pelo timbre da voz, pelos gestos, por cada traço do seu rosto e já nem

preciso estudar seus olhos ou invadir seus pensamentos. Mas ainda melhor que você, eu conheço

as estratégias de Abbadon – prossegue Nate. - Foram séculos de história. Seja qual for a proposta

que ele fez a você, Clara, não confie em Abbadon.

É claro que eu não confio. A minha vantagem é que o trunfo está comigo desde o início.

Eu sou a única capaz de encontrar os pergaminhos. Só eu posso libertar Nate. O renegado foi tolo

se pensou que me compraria com a liberdade que apenas eu posso dar à Nate; se pensou que eu

lhe entregaria um tesouro sagrado sob o qual carrego uma responsabilidade hereditária de séculos

sem nem saber o valor que ele tem.

Nate aproxima o rosto espectral do meu e está tão perto que eu posso sentir seu seu calor,

como se ele fosse tangível. Então, depois de um longo silêncio, por fim, ele diz:

- Eu confio em você.

Pedir para Nate desaparecer é a provação mais difícil da minha vida, mas é o sensato a

fazer. É o certo. Se ele respeitar o meu pedido, não correremos riscos.

Não consigo pensar em como viver daqui pra frente sem ele. A morte certamente é menos

dolorosa do que todos os dias em que precisarei me lembrar de que não o verei mais. Contudo, o

que mais dói neste sacrifício é não poder contar a ele o motivo e precisar me convencer de que o

meu amor por ele é a sua sentença de morte.

- Nate, eu ainda não sei bem o que eu quero. Mas tenho certeza do que eu não quero. E eu

não quero mais você na minha vida.

Eu sei que ele perscruta o meu rosto ainda procurando respostas para dissipar as dúvidas

que eu coloquei em sua cabeça.

- Mas, se precisar de mim, vai me deixar salvar você? - ele faz um ar jocoso, mas eu não

vejo graça alguma.

- Nate, o que eu preciso é esquecer você.

Levo a mão à garganta. Minha vontade era apertar até sufocar. Como fui capaz de dizer isso?

Ele não parece tão abalado quanto deveria, mas um pedaço do seu muro de segurança se desfez.

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- Não o que vivemos. - emendo, tentando consertar. - Mas preciso esquecer o que quase

vivemos. Entende?

Ele faz que sim e a seguir faz que não.

- Assim ficou muito melhor, ahuvati.

Deixo escapar um suspiro quando ele se aproxima de mim.

Nate ergue a mão e desenha um carinho, contornando toda a minha face direita e

deslizando o verso da mão até o meu colo. Ele a pousa aí durante algum tempo e sobe para a

minha nuca, que acaricia com ternura. Enreda fios do meu cabelo nos dedos e solta,

delicadamente, formando cachinhos. Ele faz isso algumas vezes. Eu sinto um suave arrepio. Não

sei como é possível Nate me tocar nestas condições. Eu também não podia ter estas sensações,

mas nossa conexão está tão forte, que talvez estejamos ultrapassando alguma barreira metafísica.

Não importa por que, nem importa como; o que está acontecendo é sobrenatural. Pela primeira e

última vez, nós fizemos mágica juntos.

Nate se afasta de mim e se dirige para a janela. Antes de desaparecer da minha vida, ele diz:

- Be'libi at shocenet netzurah le'olam. Você viverá no meu coração para sempre.

Quero correr e agarrá-lo, beijá-lo, dizer que o amo e que não seria capaz de viver sem ele.

Em vez disso, eu apenas chamo seu nome.

- Nate?

Ele desprende sua atenção dos raios de sol que atravessam seu corpo.

Não posso tocá-lo, mas quero sentir sua presença uma última vez. Quando me aproximo,

sua energia faz os pelos do meu braço se elevarem. Fecho os olhos e digo:

- Você também viverá no meu coração para sempre.

Quando os torno a abrir, ele já não está aqui.

Ao longo do dia, o mais longo de que terei lembrança, esgotarei todas as canções de amor

do meu iPod, mas uma em especial, To Where You Are, eu precisarei ouvir mais do que uma vez.

Expulsar Nate da minha vida, é matar um pedaço de mim.

Saiba mais sobre Polaris – o Norte, a aguardada sequência de Equinócio – a Primavera, nos sites da autora:

www.lupiras.wix.com/equinocioaserie

www.equinocioaserie.com