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65 » noticiasmagazine 28.SET.2008 luthier O que é um A nm foi ver o que acontece num atelier de Lisboa onde se fa- bricam, restauram e consertam violinos e demais instrumen- tos da família das cordas friccionadas. ¬ Um métier exercido por muito poucos,e cuja história segue de perto a da evolução dos instrumentos (e também a do lugar e funções do músico na sociedade). ¬ O francês Thibaut Dumas é um desses artesãos. PROFISSÃO 64 » noticiasmagazine 28.SET.2008 O uve-se a Antena 2, a emissora de música clássica da RDP, que enche o atelier daque- la elevação natural à chamada grande músi- ca. O jovem francês, artesão especialista no restauro de instrumentos de cordas (violi- nos, violas, violoncelos), recebe-nos numa manhã de sábado, de avental e sorriso – e muito trabalho, para não variar. Trata-se de um métier absolutamente específico, conhe- cido por poucos, exercido por ainda menos. De vez em quando interrompemos a nossa conversa, porque a minúcia e a precisão exi- gidas pelo trabalho (com pedaços de madei- ra minúsculos, coisas que mal vemos, e con- tudo todas fundamentais num instrumento) não permitem distracções. Thibaut Dumas arranja o arco de um violino pertencente a um solista de uma orquestra portuguesa. «Os arcos são estruturas muito delicadas, cheias de pequeninas peças, cujo restauro requer toda a minha atenção e concentra- ção», explica, desculpando-se pela ausência momentânea. A voz dos músicos O atelier fica na cave de um apartamento nu- ma fronteira de Campo de Ourique. O con- texto urbano contrasta com o universo anti- go de onde tudo parece sair – os instrumen- tos, as ferramentas do artesão, a música de outros tempos que ressoa, um mundo analó- gico sobrevivido à era digital. Nas paredes há fotografias das estrelas do firmamento da música clássica internacional, grandes solis- tas, músicos excepcionais por ali passados, alguns tornados amigos de Christian Bayon (o mestre, também francês, com quem Thi- baut veio trabalhar), numa relação que nada deve à banalidade: os músicos orgulham-se TEXTO Sarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIA Clément Darrasse A música clássica enche esta cave de Lisboa onde Thibault montou o seu atelier.

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65»noticiasmagazine 28.SET.2008

luthierO queé um

A nm foi ver o que acontece num atelier de Lisboa onde se fa-bricam,restauram e consertam violinos e demais instrumen-tos da família das cordas friccionadas.¬ Um métier exercidopor muito poucos,e cuja história segue de perto a da evoluçãodos instrumentos (e também a do lugar e funções do músicona sociedade).¬O francêsThibaut Dumas é um desses artesãos.

PROFISSÃO

64»noticiasmagazine 28.SET.2008

O uve-se a Antena 2, aemissora de músicaclássica da RDP, queenche o atelierdaque-

la elevação natural à chamada grande músi-ca. O jovem francês, artesão especialista norestauro de instrumentos de cordas (violi-nos, violas, violoncelos), recebe-nos numamanhã de sábado, de avental e sorriso – emuito trabalho, para não variar. Trata-se deum métierabsolutamente específico, conhe-cido por poucos, exercido por ainda menos.De vez em quando interrompemos a nossaconversa, porque a minúcia e a precisão exi-gidas pelo trabalho (com pedaços de madei-ra minúsculos, coisas que mal vemos, e con-tudo todas fundamentais num instrumento)não permitem distracções. Thibaut Dumasarranja o arco de um violino pertencente aum solista de uma orquestra portuguesa.«Os arcos são estruturas muito delicadas,cheias de pequeninas peças, cujo restaurorequer toda a minha atenção e concentra-ção», explica, desculpando-se pela ausênciamomentânea.

A voz dos músicosO atelierfica na cave de um apartamento nu-ma fronteira de Campo de Ourique. O con-texto urbano contrasta com o universo anti-go de onde tudo parece sair – os instrumen-tos, as ferramentas do artesão, a música deoutros tempos que ressoa, um mundo analó-gico sobrevivido à era digital. Nas paredes háfotografias das estrelas do firmamento damúsica clássica internacional, grandes solis-tas, músicos excepcionais por ali passados,alguns tornados amigos de Christian Bayon(o mestre, também francês, com quem Thi-baut veio trabalhar), numa relação que nadadeve à banalidade: os músicos orgulham-se

TEXTO Sarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIA Clément Darrasse

A música clássica enche esta cave de Lisboa onde Thibault montou o seu atelier.

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nos batem à porta pela primeira vez, os mú-sicos deixam apenas o arco a arranjar (mu-dar as crinas) e depois, se gostam do traba-lho, voltam com o instrumento. É comum aconfiança ganhar-se assim, a partir do arco.»

Vida novaAinda em França, porém decidido a dar umnovo rumo à sua vida, Thibaut manteve-seatento a todo o tipo de novas oportunidadesque pudessem surgir. «Não fazia sentido al-gum ter feito uma formação especializadapara dar comigo a fazer móveis...» E foi en-tão que veio a Lisboa falar com ChristianBayon, mestre a trabalhar em Portugal háperto de 18 anos, experimentado no restau-ro, entretanto tornado especialista no fabri-co de novos instrumentos, «algo a que um jo-vem não costuma ter acesso, porque pressu-põe caminho feito e reconhecimento nomeio musical». Thibaut veio trabalhar comChristian durante uma semana, à experiên-cia, e foi nesse momento que compreendeuque o seu futuro próximo estava em Lisboa.«Ainda tenho muito a aprender, mas o desa-fio do Christian foi para mim muito apelati-vo, porque me permitia não apenas investirno meu aperfeiçoamento, mas também dar-me novas responsabilidades (trabalhamospor conta própria, temos de gerir uma car-teira de clientes) e ainda a possibilidade deaprender uma nova língua, integrar-menum país e numa cultura.»

Escolha inspiradaFilho de mãe checa, Thibaut é neto de umcompositor formado na escola soviética,amigo de Shostakovitch, que contudo o jo-vem francês nunca chegou a conhecer. «A história de vida do meu avô sempre meinspirou muito, e foi por causa dela que es-colhi entrar no mundo da música. Comeceia tocar violino aos sete anos. O restauro deinstrumentos só veio mais tarde, quando foiquestão de escolher uma via profissional.

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de tocar os instrumentos assinados pelos ar-tesãos («doravante a minha voz», escreveualguém numa fotografia oferecida a Chris-tian Bayon), estes orgulham-se de cuidar davoz de instrumentistas extraordinários. Pe-lo atelier de Christian Bayon e Thibaut Du-mas passam os músicos que integram asgrandes orquestras portuguesas, a Metro-politana, a Gulbenkian, a Orquestra do Tea-tro São Carlos, e outras, bem como os alunosdas escolas de música portuguesas. «Por ve-zes, quando vou aos concertos, os músicosreconhecem-me e fazem-me sinal, e esse re-conhecimento e essa gratidão são muitogratificantes; sentir que tenho esse lugar navida deles, um lugar invisível mas da maiorimportância para eles, como aliás para mim.Os músicos têm vidas excepcionais, porém,quando vêm ver-me, são pessoas iguais àsoutras. Mas vê-los tocar um instrumentoque passou pelas minhas mãos é algo sem-pre muito forte.»

Portugal mais musical E por todo o lado violinos (talvez uma ou ou-tra viola de arco, um violino um poucomaior) à espera de serem levantados pelosseus proprietários ou finalmente arranja-dos. Thibaut Dumas considera que Portugalcomeçou a crescer musicalmente há cercade 15 anos, que os jovens começaram a inte-ressar-se pela música clássica, a entrar nasescolas e conservatórios, a integrar as or-questras. Em Avignon, onde vivia antes devir para Portugal, a atmosfera musical nãoera assim estimulante, antes dominada pordinâmicas de grande competição entre osmúsicos, conta. Diz que a oportunidade detrabalhar com Christian Bayon (discípulode Etienne Vatelot, mestre francês na artede construir e consertar instrumentos decordas, que conta com clientes de prestígiointernacional, caso dos violinistas IsaacStern, Yehudi Menuhin, Anne-Sophie Mut-ter ou dos violoncelistas Yo-Yo Ma ou Msti-

lav Rostropovitch e também discípulo deJean-Frédéric Schmitt, outra referência depeso na área do restauro de instrumentos)foi para ele uma imensa alegria – para alémde uma viragem na vida. Antes da chegadade Christian Bayon, o restauro de instru-mentos clássicos em Portugal estava prati-camente todo nas mãos de uma única famí-lia de artesãos, a famosa família Capela, deEspinho, o que implicava que os músicos ti-vessem de se deslocar ao atelier nortenho.

Arcos francesesEntre nós há cerca de um ano e meio, Thi-baut Dumas, 28 anos, fez a sua formação emInglaterra, após o que regressou a França,onde trabalhou durante quatro anos numatelier de especialistas em arcos. «No ramodos arcos, os franceses são os que vão à fren-te. Os arcos de maior prestígio vêm de Paris.

No princípio, os arcos tinham uma formacôncava, falo da forma primária do arco vin-do do Norte de África. No século XIX, Tourte[François Xavier Tourte, 1747-1835] teve aideia de usar um novo tipo de madeira, quepermitia a curvatura inversa, o que viria amudar a história destes instrumentos. Osmúsicos e os artesãos fizeram juntos a histó-ria mais recente da música clássica, entrea-judando-se e evoluindo ambos. Paganininão poderia ter sido quem foi se não tivessetido um arco Tourte. A nova forma do arcotrouxe uma tensão e uma precisão novas aoacto de tocar, pôs o violino a dialogar maisde perto com o arco, aumentando os desa-fios para o músico. Um arco pode custar umafortuna. No outro dia arranjei um que estáavaliado em cerca de trinta mil dólares.» Umbom arco custa dinheiro e é «tão importan-te como o instrumento. Por vezes, quando

«Gosto muito de tocar, mas os instrumentos dos outros ocupam-me demasiado.»

Músicos«O seu reconheci-

mento é muito gratificante.

E vê-los tocar uminstrumento que

passou pelas minhasmãos é algo sempre

muito forte.»

Precisão e minúcia num métier cujos métodos ainda hoje não são desvendados.

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A experiência de passar pelos ateliers ondese construíam e consertavam os violinosmostrou-me que era um caminho que pode-ria talvez ser interessante para mim. É umuniverso que para mim é mágico, o trabalhocom a madeira, por um lado, e a evolução daarte de construir um violino, que tem umahistória longa e apaixonante, por outro. Fizo liceu e fui para Inglaterra aprender estaprofissão.»

Humidade prejudicialThibaut, que assumirá em breve a responsa-bilidade de manter em perfeitas condiçõesos instrumentos do Conservatório de Lisboa,é também quem arranja os do Conservatóriode Música de São Miguel, nos Açores, ondevai regularmente para consertar os violinose violoncelos dos músicos residentes naque-las ilhas. Conta, a propósito da designação doseu métier, que quando foi a primeira vez aosAçores em missão (carregado de ferramen-tas e de instrumentos) recebeu um bilhete deavião em nome de Jean Luthier. Ri-se da con-fusão, de quem tomou a palavra luthier porum apelido. «Tive de apanhar um outroavião, nesse mesmo dia mas mais tarde, por-que o nome não correspondia [risos].» E ex-plica que nos Açores a humidade danifica osinstrumentos, «de maneira que tenho sem-pre muito que fazer quando vou lá. Os desu-mificadores tiram sete ou oito litros de águapor assoalhada por dia, e isso faz com que osinstrumentos se danifiquem, se deformemcom grande facilidade. Numa semana arran-jo cerca de trinta instrumentos, é uma mara-tona, um bocado improvisada, porque nãotenho as mesmas condições de trabalho quetenho no meu atelierem Lisboa. Os violonce-los, por exemplo, têm um bico que precisa deestar sempre bem afiado, para poder ser fi-xado ao chão, e isso é algo de que me ocupotambém.»

Músico-artesãoThibaut é também ele próprio um músico,embora nesta profissão nem sempre seja as-sim. «Seja como for, são coisas que se tocam,é o mesmo universo. Claro que há tambémmúsicos frustrados, que se dedicaram a istoporque não conseguiram fazer uma carrei-ra na música propriamente dita. Há depoispessoas que são apaixonadas pelo trabalhocom a madeira, e este trabalho é porventuraa sua versão mais sofisticada.»

Depois da escola de música do conservató-rio, onde aprendeu a tocar violino, o jovemsentiu dificuldades em fazer o percurso desacrifício e disciplina férrea de que costu-mam depender todas as carreiras na músicaclássica. «Há também, convém não esquecê--lo, músicos extremamente dotados quetambém não conseguem. Na música comoem muitas outras coisas na vida, não bastaser dotado, é preciso trabalhar muito. E tersorte, claro.» Depois de algumas experiên-

cias como músico (em Inglaterra e em Fran-ça), Thibaut decidiu consagrar a maior par-te do seu tempo à lutherie. «Não tenho muitotempo para fazer música, os instrumentosdos outros ocupam-me demasiado nestemomento. Mas gosto muito de tocar, sim.»

VocaçõesÀs vezes batem-lhe à porta músicos, em ge-ral jovens, com dificuldades económicas,pessoas para quem mandar arranjar um ins-trumento constitui um esforço financeironem sempre possível. Outros há que têm asorte de poder contar com a generosidadedos professores, que por vezes escolhem sereles a pagar os arranjos. Há depois músicosque vêm de famílias pobres e numerosas, emque todos, ou pelo menos vários, são músi-cos (muitas vezes a música é uma coisa defamília). Thibaut explica a este propósitoque há músicos talentosíssimos, que apesardas fragilidades económicas conseguem fa-zer grandes carreiras. «E é nesses exemplosque podemos ver a motivação de cada um,porque há quem tenha todas as condiçõeseconómicas e não consiga.» Sobre os tem-pos difíceis que correm, Thibaut pensa queisso é generalizado. «Em França é até se ca-lhar mais difícil do que em Portugal, porqueé tudo mais caro, e a competição entre osmúsicos é muito mais feroz.»

Violinos do chinêsEm Portugal acontece muitas vezes uma si-tuação caricata: a de «estudantes que com-pram violinos na loja chinesa, que depois nãoservem para as aulas, e que chegam ao meuatelier a querer arranjá-los, sem contudo per-ceberem que o meu orçamento será sempresuperior ao preço que pagaram pelos instru-mentos. Trata-se de madeiras e cordas semqualidade, é impossível tocar muito bemcom um instrumento que custou cem euros,comprado na loja do chinês. São madeiraschinesas novas, que não têm nada a ver comas nossas madeiras europeias, e tudo isso in-flui na qualidade do som e na longevidade deum instrumento. Eu levo pelo menos cemeuros para montar um violino, e cinquentapelas cordas, o que equivale ao preço pagopor um violino no chinês. Por vezes, os paisdesses estudantes não compreendem isto.Outras vezes, acontece-me fazer uma repa-ração que precisamente porque é bem feitanão se vê. São os ossos do ofício. Mas sim, deuma forma geral tenho em consideração a si-tuação financeira das pessoas, não sou insen-sível às suas dificuldades». Um violino paraestudar pode custar entre 300 e 4000 euros(a partir de 1500 euros no caso de um violinosemi-industrial do século XX), passando pelagama média vinda do chinês, que custa cer-ca de mil euros. O princípio é o de que quan-to menos tempo levou a ser fabricado (quan-to mais industrializado tiver sido o processo)pior é o instrumento.«

Luthier (do francês) designa o arte-são que constrói, conserta e restau-ra instrumentos de caixa de resso-nância e cordas friccionadas, taiscomo o violino, a viola de arco, o vio-loncelo ou o contrabaixo. A palavraderiva de alaúde, em francês luth,sendo por vezes aportuguesadapara luteiro. Trata-se de um trabalhoartesanal, que envolve princípios eprocessos em tudo opostos ao fa-brico em série industrial – coisas co-mo por exemplo a escolha ou o res-tauro das madeiras, podendo garan-tir longevidade e determinadaspropriedades sonoras, o uso de ferramentas específicas paratrabalhar as cerca de oitenta partesque compõem um instrumento ouainda a manutenção dos arcos. Umaprofissão em desuso, exercida pormuito poucos, apesar da suaenorme importância, já que deladependem os instrumentistas. Ummétier cuja história evoluiu com a daforma e funções dos instrumentosde que trata, que de uma única peçaà qual se sobrepunha uma segunda,contendo apenas três cordasfriccionadas por um arco côncavo,passou a ostentar um braço e umaquarta corda, num processo longode que resultariam instrumentosbaseados nas proporções huma-nas. Uma história rica de outras his-tórias, como por exemplo a queexplica que ao lugar protagonistaconquistado pelos músicosvirtuosos no século XVIII tivesse cor-respondido um novo tipo de instru-mento, com e outras qualidadessonoras. Antonio Giacomo Stradivari(Cremona, Itália, 1648-1737) é o maisfamoso luthier de sempre, notabili-zado por fabricar instrumentosexcepcionais a partir de madeiras dequalidade superior, trabalhadas peloartesão segundo métodos aindahoje não totalmente desvendados.Mas entre os músicos outros nomesse associam à excelência de uminstrumento. Paganini, para dar umexemplo grandioso, tocava um Guar-nierius (Giuseppe Guarneri, 1698-1745), mestre italiano que construiuo violino que a famosa leiloeiraSotheby’s vendeu já este ano poruma quantia consideravelmentesuperior àquela anteriormente arrebatada por um Stradivariusrecordista: a saber 2,42 milhões deeuros. Instrumentos excepcionais,cheios das assimetrias próprias às coisas vivas.

Luth, luteiro, alaúde