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DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL E HISTÓRIA ECONÔMICA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO e-ISSN 2316-9141 ISSN 0034-8309 2º SEMESTRE DE 2014 RH 171.indb 1 09/12/14 20:26

RH 171

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Inquisição e Justiça Eclesiástica

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  • DEPARTAMENTO DE HISTRIA DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANASPROGRAMAS DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL E HISTRIA ECONMICA

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    e-ISSN 2316-9141ISSN 0034-8309

    2 S E M E S T R E D E 2 0 1 4

    RH 171.indb 1 09/12/14 20:26

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULOReitor: prof. dr. Marco Antonio ZagoVice-reitor: prof. dr. Vahan Agopyan

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANASDiretor: prof. dr. Srgio Frana Adorno de Abreu

    Vice-diretor: prof. dr. Joo Roberto Gomes de Faria

    DEPARTAMENTO DE HISTRIAChefe: prof. dr. Osvaldo Luis Angel Coggiola

    Suplente: profa. dra. Sara Albieri

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIALCoordenador: prof. dr. Marcos Napolitano de Eugenio

    Vice-coordenadora: profa. dra. Gabriela Pellegrino Soares

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA ECONMICACoordenadora: profa. dra. Sara Albieri

    Vice-coordenador: prof. dr. Rodrigo Monteferrante Ricupero

    EDITORESJos Geraldo Vinci de Moraes - editor (Universidade de So Paulo - So Paulo - SP - Brasil) Miguel Soares Palmeira - vice-editor (Universidade de So Paulo - So Paulo - SP - Brasil)

    COMISSO EDITORIALris Kantor (Universidade de So Paulo - So Paulo - SP - Brasil), Jlio Csar Pimentel Pinto Filho (Universidade de So Paulo - So Paulo - SP - Brasil), Mrcia Regina Barros da Silva (Universidade de So Paulo - So Paulo - SP - Brasil), Maria Lda Oliveira Alves da Silva (Universidade de So Paulo - So Paulo - SP - Brasil) e Maria Cristina Correia Leandro Pereira (Universidade de So Paulo - So Paulo - SP - Brasil)

    CREDENCIAMENTO E APOIO FINANCEIRO DO:PROGRAMA DE APOIO S PUBLICAES CIENTFICAS PERIDICAS DA USPCOMISSO DE CREDENCIAMENTO

    http://revhistoria.usp.br

    Marcus J. M. de Carvalho Universidade Federal de Pernambuco - Recife - PE - Brasil

    Maria Emlia Madeira Santos Instituto de Investigao Cientfi ca Tropical de Lisboa

    Lisboa - Portugal

    Rafael Sagredo Pontifcia Universidad Catlica de Chile - Santiago - Chile

    Robert Slenes Universidade Estadual de Campinas - Campinas - SP - Brasil

    Serge Gruzinski cole des Hautes tudes en Sciences Sociales - Paris - Frana

    Sueann Caulfi eld University of Michigan - Ann Arbor - Michigan - Estados Unidos

    Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses Universidade de So Paulo - So Paulo - SP - Brasil

    PRODUOSecretrio: Joceley Vieira de Souza

    Estagirio: Jos Eduardo Martin RoquettiProjeto grfi co do miolo/capa: Paulo Alves de Lima

    Editorao: Joceley Vieira de SouzaReviso: Regina Maria Nogueira

    ENDEREOS PARA CORRESPONDNCIA

    CONSELHO EDITORIAL

    ngela de Castro Gomes Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do

    Brasil CPDOC / Fundao Getlio VargasRio de Janeiro - RJ - Brasil

    Barbara Weinstein University of Maryland - College Park - Maryland - Estados Unidos

    Eliana Regina de Freitas Dutra Universidade Federal de Minas Gerais - Belo Horizonte - MG - Brasil

    Emlia Viotti da Costa Yale University - New Haven - Connecticut - Estados Unidos

    Guillermo Palacios Colegio de Mxico - Cidade do Mxico - DF - Mxico

    Joo Jos Reis Universidade Federal da Bahia - Salvador - BA - Brasil

    Lus Miguel Carolino Museu de Astronomia e Cincias Afi ns/Conselho Nacional de

    Pesquisa - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

    Comisso Editorial e SecretariaAv. Professor Lineu Prestes, 338 Cidade Universitria

    05508-900 So Paulo SP BrasilCaixa postal: 8.105 fax: (011) 3032-2314

    Tel.: (011) 3091-3701e-mail: [email protected]

    rgo ofi cial do Departamento de Histria da Faculdade de Filosofi a, Letras e Cincias Humanas FFLCH/USPFundada em 1950 pelo professor Eurpedes Simes de Paula, seu diretor at seu falecimento em 1977

    Este nmero contou com o apoio fi nanceiro dos Programas de Ps-Graduao em Histria Social e Histria Econmica Faculdade de Filosofi a, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo

    Copyright 2014 dos autores. Os direitos de publicao desta edio so da Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofi a, Letras e Cincias Humanas - Departamento de Histria/USP dezembro/2014

    VendasHumanitas Livraria FFLCH

    Rua do Lago, 717 Cidade Universitria05508-900 So Paulo SP Brasil

    Tel./fax: (011) 3091-4589e-mail: pubfl [email protected]

    IMAGEM DA CAPA

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  • e-ISSN 2316-9141ISSN 0034-8309

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  • Ficha Catalogrfi ca

    (Catalogao realizada pelo Servio de Biblioteca e Documentao da Faculdade de Filosofi a, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo

    Revista de Histria / Departamento de Histria. Faculdade de Filosofi a, Letras e Cincias Humanas. Universidade de So Paulo. n. 1 (1950). So Paulo: FFLCH / USP, 1950-

    Nova srie - 1 semestre, 1983 Terceira srie - 1 semestre, 1998

    Semestral ISSN 2316-9141

    1. Histria I. Universidade de So Paulo. Faculdade de Filosofi a, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Histria.

    CDD 900

    Av. Professor Lineu Prestes, 338 Cidade Universitria05508-900 So Paulo SP Brasile-mail: [email protected]

    Indexada em:

    Fundada em 1950 pelo professor Eurpedes Simes de Paula, a Revista de Histria (RH) um dos mais antigos peridicos acadmicos do Brasil especializado nessa disciplina. Publicada pelo Departamento de Histria da Faculdade de Filosofi a, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo (DH/FFLCH/USP), sua misso divulgar artigos em portugus e espanhol, originais inditos ou traduzidos, resenhas e edies crticas de fontes na rea de Histria e afi ns. Seu principal objetivo contribuir para o debate acadmico nessa rea e nas Cincias Humanas em geral, alm de servir como meio de divulgao da produo acadmica a um pblico mais amplo. Sua periodicidade semestral e sua publicao conta com o apoio fi nanceiro dos dois programas de ps-graduao do Departamento de Histria da Faculdade de Filosofi a Letras e Cincias Humanas (FFLCH) Histria Social e Histria Econmica e do Programa de Apoio s Publicaes Peridicas Cientfi cas da USP.

    REVISTA DE HISTRIA (RH), an offi cial publication of the Departamento de Histria of the Faculdade de Filo-sofi a, Letras e Cincias Humanas of the Universidade de So Paulo (DH/FFLCH/USP), is one of Brazils oldest specialized History journals, founded in 1950 by professor Eurpedes Simes de Paula. Revista de Histria dedi-cates itself to the publication of original articles, as well as translations, book reviews and critical editions of documents in the History area and related fi elds of study. Texts in Spanish may be published, as long as they are previously approved by the Editorial Council. RH is released every semester, and has the fi nancial support of both of the History Departments post-graduate programs Social History Studies and Economic History Studies and of USPs Scientifi c Periodic Publications Supporting Programme.

    Portal de Peridicos

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  • SUM

    RI

    O

    rev. hist. (So Paulo), n. 171, jul.-dez., 2014

    11Jos Geraldo Vinci de Morais

    Editorial

    ARTIGOS15

    Guida MarquesDo ndio gentio ao gentio brbaro: usos e deslizes da guerra justa na Bahia seiscentista

    49Mrcio Couto Henrique e Laura Trindade de Morais

    Estradas lquidas, comrcio slido: ndios e regates na Amaznia (sculo XIX)

    83Eduardo Santos Neumann

    Um s no escapa de pegar em armas: as populaes indgenas na Guerra dos Farrapos (1835-1845)

    111Ktia Lorena Novais Almeida

    Os mltiplos significados da alforria em uma rea mineradora perifrica da Amrica portuguesa: Rio de Contas, Bahia sculo XVIII

    141Agnaldo Valentim e Jos Flvio Motta

    O primeiro sacramento batismos de escravos em Iguape (1811-1850)

    175Rubens Leonardo Panegassi

    Os artifcios da perfeio: Joo de Barros por Manuel Severim de Faria

    213Fabiano Vilaa dos Santos

    Administrao colonial e governao na Amrica portuguesa: a propsito de uma memria sobre as capitanias da Paraba e do Cear (1816)

    245Pablo Antonio Iglesias Magalhes

    Deus e o diabo na biblioteca de um cnego da Bahia: o inventrio dos livros do padre Manoel Dend Bus em 1836

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  • SUMRIOrev. hist. (So Paulo), n. 171, jul.-dez., 2014

    287Pollyanna Gouveia Mendona Muniz e Yllan de Mattos

    Vigiar a ortodoxia: limites e complementaridades entre a justia eclesistica e a inquisioo na Amrica portuguesa

    317Rafael Ruiz

    Formao da conscincia do juiz no Vice-reinado do Peru

    351Isabele de Matos Pereira de Mello

    Os ministros da justia na Amrica portuguesa: ouvidores-gerais e juzes de fora na administrao colonial (sc. XVIII)

    383Regiane Augusto de Mattos

    A dinmica das relaes no norte de Moambique no final do sculo XIX e incio do sculo XX

    RESENHAS423

    Marcos GutermanNEITZEL, Snke & WELTZER, Harald. Soldados sobre lutar, matar e morrer.

    So Paulo: Companhia das Letras, 2014

    433Isabel Corra da Silva

    HECHT, Susanna B. The scramble for the Amazon and the lost Paradise of Euclides da Cunha. Chicago: Chicago University Press, 2013.

    443Samuel Silva Rodrigues de Oliveira

    MOTTA, Rodrigo Patto S; REIS, Daniel Aaro; RIDENTI, Marcelo (org.). A ditadura que mudou o Brasil 50 anos do Golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

    455Jeocasta Juliet Oliveira Martins

    PAIVA, Eduardo Frana; SANTOS, Vanicleia Silva (org.). frica e Brasil no mundo moderno. So Paulo: Annablume; Belo Horizonte: Programa de Ps-Graduao em Histria-UFMG, 2012.

    461Marco Aurlio dos Santos

    MEDRADO, Joana. Terra de vaqueiros: relaes de trabalho e cultura poltica no serto da Bahia, 1880-1900. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.

    467Laurent Azevedo Marques de Saes

    MORIN, Tania Machado. Virtuosas e perigosas: as mulheres na Revoluo Francesa. So Paulo: Alameda, 2013, 370 p.

    477NORMAS EDITORIAIS

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  • CON

    TEN

    TS

    rev. hist. (So Paulo), n. 171, jul.-dez., 2014

    11Jos Geraldo Vinci de Moraes

    Editorial

    ARTICLES15

    Guida MarquesFrom the ndio gentio to the gentio brbaro:

    uses and abuses of just war in seventeenth century Bahia

    49Mrcio Couto Henrique e Laura Trindade de Morais

    Liquid roads, solid trade: indians and regates in the Amazon (XIX century)

    83Eduardo Santos Neumann

    Not a single soul escapes taking to arms: the indigenous populations in the Farrapos War (1835-1845)

    111Ktia Lorena Novais Almeida

    The multiple meanings os manumission in a peripheral mining rea in the portuguese America: Rio de Contas, Bahia 18th century

    141Agnaldo Valentim e Jos Flvio Motta

    The first sacrament baptisms of slaves in Iguape (1811-1850)

    175Rubens Leonardo Panegassi

    The artifices of perfection: Joo de Barros by Manuel Severim de Faria

    213Fabiano Vilaa dos Santos

    Colonial administration and governance in portuguese amrica: the purpose of a memory on the captaincies os Paraba and Cear (1816)

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  • CONTENTSrev. hist. (So Paulo), n. 171, jul.-dez., 2014

    245Pablo Antonio Iglesias Magalhes

    God and the devil in the library of a canon of the Bahia: the inventory of books of the priest Manoel Dend Bus in 1836

    287Pollyanna Gouveia Mendona Muniz e Yllan de MattosWatch ortodoxy: limitations and complementarities between the

    inquisition and ecclesiastical justice in portuguese America

    317Rafael Ruiz

    The judges conscience formation in the viceroyalty of Peru

    351Isabele de Matos Pereira de Mello

    The ministers of justice in Portuguese America: the magistrates in colonial administration (18th century)

    383Regiane Augusto de Mattos

    The dynamics of relationships in northern Mozambique at the end of the nineteenth century anda t the early twentieth

    REVIEW ESSAYS423

    Marcos GutermanNEITZEL, Snke & WELTZER, Harald. Soldados sobre lutar, matar e morrer.

    So Paulo: Companhia das Letras, 2014

    433Isabel Corra da Silva

    HECHT, Susanna B. The scramble for the Amazon and the lost Paradise of Euclides da Cunha. Chicago: Chicago University Press, 2013

    443Samuel Silva Rodrigues de Oliveira

    MOTTA, Rodrigo Patto S; REIS, Daniel Aaro; RIDENTI, Marcelo (org.). A ditadura que mudou o Brasil 50 anos do Golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

    455Jeocasta Juliet Oliveira Martins

    PAIVA, Eduardo Frana; SANTOS, Vanicleia Silva (org.). frica e Brasil no mundo moderno. So Paulo: Annablume; Belo Horizonte: Programa de Ps-Graduao em Histria- UFMG, 2012.

    461Marco Aurlio dos Santos

    MEDRADO, Joana. Terra de vaqueiros: relaes de trabalho e cultura poltica no serto da Bahia, 1880-1900. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.

    467Laurent Azevedo Marques de Saes

    MORIN, Tania Machado. Virtuosas e perigosas: as mulheres na Revoluo Francesa. So Paulo: Alameda, 2013, 370 p.

    481EDITORIAL RULES

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  • EDITO

    RIA

    L

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    rev. hist. (So Paulo), n. 170, p. 11-12, jul.-dez., 2014http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.v0i170p11-12

    Jos Geraldo Vinci de MoraisEditorial

    EDITORIAL

    Neste volume 171 da Revista de Histria o leitor poder aproveitar os artigos de duas maneiras distintas: a leitura individual de cada um deles, como usu-al, mas poder tambm reuni-los em uma cadeia temtica bastante atraente. Os trs primeiros textos, por exemplo, concentram-se na questo indgena no Brasil entre os sculos XVII e XIX. O primeiro, escrito por uma pesquisa-dora portuguesa, aborda a conquista do serto baiano ocorrida na segunda metade do sculo XVII e seus desdobramentos. Ela discute como as prticas e relaes institucionais emanadas da metrpole se relacionam com as din-micas locais e seus impactos para as populaes indgenas da regio. O texto seguinte trata das atividades comerciais dos regates nos rios amaznicos durante o sculo XIX. Naquelas autnticas estradas lquidas se manifestava um dinmico comrcio ambulante em que os indgenas tinham participa-o bastante ativa, diferente do que a historiografia quase sempre apresen-tou. Por fim, o terceiro artigo discute a presena e a participao indgena na Guerra dos Farrapos. Segundo seu autor, as populaes amerndias, ao con-trrio de que se pensava, participaram ativamente dos conflitos, mas haveria um certo silencio historiogrfico sobre o assunto e que ele quer discutir.

    J os dois textos seguintes debatem aspectos da escravido nos sculos XVIII e XIX. O universo dos alforriados, por exemplo, observado e dis-cutido na Vila de Rio de Contas, capitania da Bahia, uma rea mineradora secundaria da colnia portuguesa. Em outra regio economicamente peri-frica, a Vila de Iguape, no Vale do Ribeira, So Paulo, os autores procuram entender as relaes entre o batismo dos escravos e a dinmica da produo de arroz na primeira metade do sculo XIX.

    A memria em suas mltiplas aparncias eixo que agrupa um ou-tro conjunto de textos com assuntos distintos. Ela se revela, por exemplo, no artigo que discute como Manuel Severim de Faria escreveu, no sculo XVII, uma celebrao heroica na biografia do historiador, literato e huma-

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    rev. hist. (So Paulo), n. 171, p. 11-12, jul.-dez., 2014http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.v0i170p11-12

    Jos Geraldo Vinci de MoraisEditorial

    nista portugus Joo de Barros. Outro texto apresenta a transcrio de um documento que uma memria sobre as capitanias da Paraba e do Cear, escrita em 1816. O autor expe os traos biogrficos de seu autor, as linhas gerais do seu discurso relacionado estrutura de governo das capitanias da Amrica portuguesa e faz uma anlise crtica do documento recuperado. A memria se exterioriza tambm no inventrio que recupera o catlogo da biblioteca particular do cnego da S da Bahia, Manoel Jos de Freitas Baptista Mascarenhas (Manoel Dend Bus), e que o autor discute a partir de uma histria do livro e da leitura.

    As relaes entre o mundo poltico, judicial e religioso esto presentes em trs artigos e formam uma outra srie. Um debate as afinidades entre e Justia Eclesistica e a Inquisio na Amrica portuguesa, e as particula-ridades que assumiram no tempo e espao. Outro revela como uma certa Teologia Moral, como aquela presente na obra do telogo jesuta peruano Juan de Alloza, foi decisiva para que juzes proferissem suas sentenas na Amrica Espanhola nos sculo XVII e XVIII. E um terceiro prope uma re-flexo sobre o papel dos ouvidores-gerais e juzes-de-fora como principais responsveis pela justia na Amrica portuguesa ao longo do sculo XVIII, e como as questes religiosas tambm estavam ali presentes.

    Finalmente, o ltimo texto apresenta as aes que, no final do sculo XIX, desencadearam e mobilizaram tribos e lderes islmicos contra as po-lticas colnias portuguesas na costa oriental africana. Na regio atual de Moambique ocorreu sistematicamente o trfico de armas, de munies e troca de guerreiros tendo em vista ataques e aes simultneas a postos administrativos e militares portugueses.

    Boa leitura.

    Jos Geraldo Vinci de MoraesEditor

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    rev. hist. (So Paulo), n. 171, p. 15-48, jul.-dez., 2014http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.v0i171p15-48

    Guida MarquesDo ndio gentio ao gentio brbaro: usos e deslizes da guerra justa na Bahia setecentista

    ART

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    Guida MarquesDo ndio gentio ao gentio brbaro: usos e deslizes da guerra justa na Bahia setecentista

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    Guida MarquesDo ndio gentio ao gentio brbaro: usos e deslizes da guerra justa na Bahia setecentista

    DO NDIO GENTIO AO GENTIO BRBARO: USOS E DESLIZES DA GUERRA JUSTA NA BAHIA SEISCENTISTA*

    Guida Marques**Universidade Nova de Lisboa

    Resumo

    Trata-se, neste artigo, de examinar o processo de legitimao que acompanhou a conquista do serto baiano durante a segunda metade do sculo XVII, e de explorar as interaes entre as dinmicas locais e imperiais que levaram a uma situao de violncia institucionalizada contra as populaes indgenas do inte-rior da Bahia.

    Palavras chave

    Bahia Imprio serto ndios representaes

    ContatoRua do Vigrio, 58-4

    1100-616 Lisboa Portugal E-mail: [email protected]

    * Esta pesquisa foi desenvolvida no mbito do meu projeto de investigao de ps-doutora-mento, financiado pela FCT. Integra igualmente o projeto Bahia 16-19 [Marie Curie Actions PIRSES-GA-2012-318988]. Agradeo a leitura atenta de Evergton Sales Souza e Carlos Zeron, assim como os comentrios dos pareceristas annimos.

    ** Bolsista de Ps-Doutoramento e Investigadora integrada ao Centro de Histria dAqum e dAlm-Mar CHAM, Faculdade de Cincias Sociais e Humanas.

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    Guida MarquesDo ndio gentio ao gentio brbaro: usos e deslizes da guerra justa na Bahia setecentista

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    FROM THE NDIO GENTIO TO THE GENTIO BRBARO: USES AND ABUSES OF JUST WAR IN SEVENTEENTH CENTURY BAHIA

    Guida MarquesUniversidade Nova de Lisboa

    Abstract

    This article examines the justification process of the expansion towards the hin-terlands of Salvador da Bahia in the Seventeenth century. It focuses the inte-ractions between the local and imperial dynamics, which lead to a situation of institutionalized violence against the Indian native populations.

    Keywords

    Bahia Portuguese Empire serto Indians representations

    ContactRua do Vigrio, 58-4

    1100-616 Lisboa Portugal E-mail: [email protected]

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    rev. hist. (So Paulo), n. 171, p. 15-48, jul.-dez., 2014http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.v0i171p15-48

    Guida MarquesDo ndio gentio ao gentio brbaro: usos e deslizes da guerra justa na Bahia setecentista

    Protestando contra o assento que se lhes tinham dado nas Cortes de 1668, e reivindicando um lugar no primeiro banco, os oficiais da Cmara de Salvador dirigiam-se ao rei em 1673,

    obrigados a pedir a Vossa Alteza seja servido fazer-lhe merc de que tenha seu lugar no primeiro e nos mais actos que se celebrarem pois concorrem nella todas as razoens de merecimento para esta honra que podem pedirse e no serem maiores as da cidade de Goa a quem se concedeo porque este estado do Brazil he da grandeza e importancia ao servio de Vossa Alteza e esta cidade cabea dele.1

    Esta carta do Senado que acabamos de citar interessante por mui-tos respeitos, nomeadamente pelas representaes investidas no processo de capitalizao da cidade de Salvador.2 No entanto, importa considerar mais detidamente os servios referidos pela cmara para fundamentar o seu requerimento. No meio deles e, na verdade, logo a seguir s guerras dos Olandeses e antes do muito importante sustento da infantaria, encontramos a guerra contra o gentio brbaro, aparecendo como outro tanto valioso servio feito Coroa portuguesa. A proclamao, por parte da Cmara de Salvador, da guerra contra o ndio gentio como servio ao rei, tornando-se mais um elemento de valorizao e um argumento de negociao para apoiar este seu pedido, merece, de fato, toda a ateno.3

    Os oficiais da cmara referiam-se dessa maneira s vrias entradas or-ganizadas contra o ndio gentio, durante a segunda metade do sculo XVII, que desembocaram na conquista do serto baiano.4 Estas jornadas do serto ocupam ento um lugar indito na comunicao poltica com a Coroa, en-contrando-se vrias ocorrncias tanto nas correspondncias dos sucessivos governadores-gerais e da Cmara de Salvador quanto nas consultas do Con-

    1 Cartas do Senado. Documentos Histricos do Arquivo Municipal, Salvador, Prefeitura do Mu-nicpio de Salvador, vol. 1, 1951, p. 118, Registo de huma carta para sua Alteza sobre o lugar no banco de cortes nesta cidade, 9.03.1673.

    2 MARQUES, Guida. Por ser cabea do Estado do Brasil. As representaes da cidade da Bahia no sculo XVII. In: SOUZA, Evergton Sales; MARQUES, Guida; SILVA, Hugo Ribeiro da (org.). Salva-dor da Bahia. Retratos duma cidade atlntica (sculo XVII-XIX). Lisboa/Salvador: Cham/UFBA (no prelo).

    3 Por ndio gentio entendem-se os ndios livres que no tinham sido integrados na ordem colonial. Era o gentio vizinho daquele Estado (do Brasil), sempre qualificado de bravo. Para uma abordagem geral, CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1992.

    4 TOLEDO, Maria Ftima de Melo. Desolado serto: a colonizao portuguesa do serto da Bahia (1654-1704). Tese de doutorado, Universidade de So Paulo, 2006; SANTOS, Mrcio Roberto Alves dos. Fronteiras do serto baiano: 1640-1750. Tese de doutorado, Universidade de So Paulo, 2010.

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    Guida MarquesDo ndio gentio ao gentio brbaro: usos e deslizes da guerra justa na Bahia setecentista

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    selho Ultramarino em Lisboa. Mais, a crescente solicitao por parte deste Senado, visando a participao da Coroa neste empreendimento, constitui outra novidade, tal como o discurso que a acompanha, pretendendo legiti-mar a guerra contra o gentio vizinho daquele Estado.5 Se olharmos para as entradas realizadas no serto baiano no final do sculo XVI, e nas primei-ras dcadas do sculo XVII, a evoluo tanto mais bvia.6

    margem da guerra dos Brbaros, interessa-nos examinar o processo de legitimao que acompanhou a conquista do serto baiano durante a se-gunda metade do sculo XVII.7 Mais do que as etapas da expanso terri-torial, focamos aqui os discursos e as representaes visando justificar a guerra contra os ndios. Trata-se, assim, de desvendar as vrias dimenses dessa conquista que a historiografia tende muitas vezes a simplificar.8 Assim, o recurso da guerra justa aparece ento na documentao com uma intensi-dade inusitada. Da mesma maneira, importante atentar para a mobilizao singular da categoria de brbaro nessa situao, e entender as suas significa-es na Bahia seiscentista, tendo em vista a institucionalizao da Amri-ca portuguesa durante este perodo, ou ainda o investimento da cidade de Salvador na sua dimenso imperial.9 Importa encarar como uma e outra se encontram investidas de um novo significado, questionando afinal os fun-damentos teolgico-polticos do Imprio portugus.10

    5 O gentio ndio era assim designado pelos reis Habsburgos durante a unio das Coroas. MARQUES, Guida Linvention du Brsil entre deux monarchies. Gouvernement et pratiques politiques de lAmrique portugaise dans lUnion ibrique (1580-1640), Tese de doutorado, EHESS, Paris, 2009, p. 265. A expresso encontra-se de novo no regimento de Roque da Costa Barreto, em 1677, publicado in: Documentos Histricos, vol. 6, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, p. 353.

    6 METCALF, Alida. The Entradas of Bahia of the sixteenth century. The Americas, 61 (3), 2005, p. 373-400.7 Sobre a chamada guerra dos Brbaros, PUNTONI, Pedro. A guerra dos Brbaros. Povos indgenas e

    a colonizao do serto nordeste do Brasil, 1650-1720. So Paulo: Hucitec, 2002.8 Em geral, a historiografia associou o surgimento dos conflitos com os ndios com a expanso

    da pecuria, numa relao de causalidade. Para uma reflexo renovada, CHAMBOULEYRON, Rafael & MELO, Vanice Siqueira de. Governadores e ndios, guerras e terras entre o Maranho e o Piau (primeira metade do sculo XVIII). Revista de Histria (So Paulo), 168, 2013, p. 167-200.

    9 GOUVEIA, Maria Ftima. Poder poltico e administrao na formao do complexo atlntico portugus (1645-1808). In: FRAGOSO, Joo; GOUVEIA, Maria Ftima; BICALHO, Maria Fernanda (org.). O Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa (sc. XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001, p. 285-315; MARQUES, Guida. De um governo ultramarino: a ins-titucionalizao da Amrica portuguesa durante a unio das Coroas (1580-1640). In: CARDIM, Pedro; COSTA, Leonor Freire; CUNHA, Mafalda Soares da. (org.). Portugal na Monarquia espanhola. Dinmicas de integrao e de conflito. Lisboa: Cham, 2013.

    10 MARCOCCI, Giuseppe. A conscincia de um Imprio. Portugal e o seu mundo (sc. XV-XVII). Coimbra: Imprensa da Universidade, 2012.

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    Guida MarquesDo ndio gentio ao gentio brbaro: usos e deslizes da guerra justa na Bahia setecentista

    Considerar esses usos e deslizes permite esclarecer de outra manei-ra tanto o processo de expanso territorial quanto a formao poltica da sociedade colonial baiana ou, ainda, a organizao da economia colonial. Leva igualmente a revisitar o papel da Coroa, geralmente considerada como o agente principal da conquista do serto baiano, e a realar as dinmicas locais.11 Lembrando a atualidade e a importncia da questo da escravizao dos indgenas na segunda metade do sculo XVII, trata-se, afinal, de enten-der como o ndio gentio vizinho daquele estado se tornou gentio brbaro, inimigo da Repblica, e atingir a importncia dessa busca de legitimao na Bahia da segunda metade do sculo XVII. Ou seja, entender como a explorao da fronteira do gentio bravo abrange os prprios processos de identificao dos nobres brasilienses da Bahia e a sua relao com o Imprio portugus.12

    Nessa perspectiva, iremos considerar as entradas no serto baiano do final do sculo XVI chamada guerra dos Brbaros; as metamorfoses da guerra justa no quadro da justificativa da conquista do serto baiano; e, por fim, os laos entre o serto e o Atlntico, e as suas ressonncias imperiais.

    Das entradas ao serto guerra dos Brbaros

    As entradas realizadas no interior da Bahia durante a segunda metade do sculo XVII marcam o incio da chamada guerra dos Brbaros.13 No entanto, essas jornadas do serto eram prtica antiga e costumeira e muitas haviam sido organizadas no sculo XVI e princpio do sculo XVII. Deixamos de lado a discusso relativa distino entre entradas e bandeiras estabe-lecida pela historiografia da primeira metade do sculo XX.14 Na verdade, tal distino faz pouco sentido, umas e outras tendo praticamente o mesmo

    11 MORAES, Antonio Carlos Robert. Bases da formao territorial do Brasil: o territrio colonial brasileiro no longo sculo XVI. So Paulo: Hucitec, 2000; SANTOS, Mrcio Roberto Alves dos. Fronteiras do serto baiano: 1640-1750. Tese de doutorado, Universidade de So Paulo, 2010. Se para Moraes, a Coroa continua a ser o agente impulsionador do processo de conquista, o estudo de Mrcio Santos leva a considerar mais detidamente o papel dos agentes envolvidos e das dinmicas locais.

    12 Esta expresso, usada por Juan Lopes Sierra, designa os moradores da Bahia. SIERRA, Juan Lopes. O panegrico fnebre a d. Afonso Furtado [1676]. In: SCHWARTZ, Stuart B. & PCORA, Alcir (org.). As excelncias do governador, O panegrico fnebre a d. Afonso Furtado de Juan Lopes Sierra. So Paulo: Companhia das Letras, 2002.

    13 A guerra dos Brbaros geralmente reduzida guerra do Au (1687-1704). Contudo, Pedro Puntoni prope uma nova cronologia que adotamos aqui, inserindo a conquista do serto baiano nesse ciclo de guerras. PUNTONI, Pedro. A guerra dos Brbaros. Povos indgenas e a colonizao do serto nordeste do Brasil, 1650-1720. So Paulo: Hucitec, 2002.

    14 PUNTONI, Pedro, op. cit., p. 196-197; SANTOS, Mrcio, op. cit., p. 62 ss.

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    objetivo de prender ndios, sejam elas organizadas a fins de explorao e busca de minas, ou de represso. A intensidade dessas entradas no serto baiano foi grande depois de 1570 e vem lembrar a importncia da escraviza-o dos ndios, mesmo depois da chegada de escravos africanos, e apesar da legislao rgia.15 Organizadas localmente, elas beneficiavam por vezes da superviso do prprio governo-geral.16 A despesa da expedio era igual-mente assumida localmente.17 Segundo o jesuta Ferno Cardim, milhares de ndios tinham sido assim descidos do serto. Na voz dos colonos, tais entra-das eram expedies de paz destinadas ao resgate de ndios do serto.18 Mas na sequncia dos abusos cometidos, a lei de 1587 mandava fechar o serto, declarando que ningum poderia ir mais ao serto buscar ndios com armas sem licena do governador.19 No entanto, a sucesso de leis sobre os ndios durante esses anos tanto indica a preocupao rgia com o assunto quanto revela o seu no respeito e o vigor da governana local.20

    15 A lei de 1570 proclamava a liberdade dos ndios, permitindo, no entanto, o seu cativeiro em caso de guerra justa, determinada pelo governador-geral, ou ainda o seu resgate em determina-das situaes. Sobre a legislao indigenista, THOMAS, Georg. Poltica indigenista dos portugueses no Brasil, 1500-1640. So Paulo: Ed. Loyola, 1982; PERRONE-MOISS, Beatriz. ndios livres e ndios escravos: os princpios da legislao indigenista do perodo colonial (sc. XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 115-132. Sobre a transio para a escravido africana, SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1988; ALENCASTRO, Luis Felipe de. O trato dos viventes. So Paulo: Companhia das Letras, 2000.

    16 As entradas visando a busca de minas eram geralmente supervisadas pelo governador-ge-ral, mas havia outros casos, como, por exemplo, no descimento de ndios autorizado pelo governador-geral Diogo Botelho para as terras do conde de Linhares. IAN/TT, Cartrio dos Jesutas, mao 8, doc. 75, Carta de Diogo Botelho ao conde de Linhares, Olinda, 3.03.1603; ou quando o prprio rei ordenou tal descimento, tendo em vista o povoamento do Cabo Frio. Livro Segundo do Governo do Brasil, doc. 5, Carta e proviso de Smgde sobre as aldeias que se ho de passar ao Cabo Frio, 1616.

    17 Ferno Cardim descreve-as na poca como verdadeiras empresas de apresamento de escravos, financiadas por investidores privados e chefiadas por homens da governana que chegavam a ser nomeados capites, ao serem autorizados pelo governador geral para fazer a jornada. CARDIM, Ferno. Articles touching the duties of the king Majesty our lord and to the common good of all the estate of Brasil. In: PURCHAS, Samuel. Hakluytus Posthumus or Purchas his Pilgrims, vol. XVI. Glasgow, 1906, p. 505-507.

    18 METCALF, Alida. The Entradas of Bahia of the sixteenth century. The Americas, 61 (3), 2005, p. 398.19 Lei de 22 de agosto de 1587 sobre os indios do Brasil que no podem ser captivos e nella se

    declara os que o podem ser confirmando-se a lei de 20 de maro de 1570. IAN/TT, livro I de leis, fol. 168. Seguem sobre o mesmo assunto as leis de 1595, 1596, 1609 e 1611.

    20 Biblioteca da Ajuda, 51-VII-15, fl. 190-101, Informao dos cativeiros que governando Diogo Botelho este Estado se fasem contra muitas cartas, alvaras e leys impressas de Vmgde faita em novembro de 1605.

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    importante lembrar que muitas dessas entradas devem ter escapado ao registro. Importa ainda observar que, mesmo quando ficaram documen-tadas, poucas tm recorrido ao conceito de guerra justa.21 No princpio do sculo XVII, a justificativa das entradas, que precisavam doravante ser auto-rizadas pelo governador-geral, era antes de mais nada a busca de minas e os escravos fugidos, ou ainda o gentio da Santidade.22 Em 1627, o governador-geral Diogo de Oliveira ainda menciona esse gentio da Santidade para dar conta da entrada que ia fazer o capito Afonso Rodrigues Adorno no serto da Bahia, mas a expresso acaba por desaparecer da documentao.23 Nos meados de Seiscentos, o gentio da Santidade deixa lugar a outro, falando-se ento cada vez mais do gentio brbaro. Entretanto, houve o conflito luso--holands, durante o qual o papel dos indgenas foi tudo menos andino.24

    A agncia dos ndios, sejam eles aldeados, aliados ou inimigos, foi de-terminante no decorrer da guerra do Brasil, influenciando-a de diversas maneiras.25 O surgimento dos brasilianos ao lado dos holandeses, o peso

    21 Suscitando, alis, as crticas dos jesutas. Cf. ANCHIETA. Informao dos primeiros aldeamen-tos na Bahia. In: Idem. Cartas, informaes, fragmentos histricos e sermes. Rio de Janeiro: Officina industrial Graphica, 1933, p. 379-85; CARDIM, Ferno, op. cit., p. 505-507.

    22 Carta de Gaspar de Sousa de 26.10.1612 e 24.05.1613 sobre a mudana dos ndios da aldea de Santo Antonio. In: Cartas de Gaspar de Sousa. Lisboa: CNCDP, 2000, doc. 60 e 88; Carta do rei a Gaspar de Sousa, 1613. In: Ibidem, p. 190; Carta de Cristovo da Rocha para Gaspar de Sousa, 1617, sobre a entrada que ia fazer em busca de minas. In: Livro Primeiro do Governo do Brasil. Lisboa: CNCDP, 2000, p. 203; Carta de Melchior Dias Morea para dom Luis de Sousa, 26.04.1619, referindo-se a jornada sobre minas. In: Livro Primeiro do Governo do Brasil, op. cit., p. 274. Sobre o gentio da Santidade, que provocou, no final do sculo XVI, uma sria preocupao no meio das autoridades coloniais, VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos ndios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1995; METCALF, Alida. Millenarian slaves? The Santidade de Jaguaripe and slave resistance in the Americas. American Historical Review, 104, 1999, p. 1531-1559.

    23 Traslado do auto que mandou fazer o capito geral e governador deste estado do Brasil, Diogo Luis de Oliveira sobre a resoluo que tomou na junta que fes com os prelados das religioens, ouvidor geral, provedores, juises e vereadores desta cidade acerca de dar guerra ao inimigo gentio alevantado, e outro que se lhe tinha acoadunado no lemite da Sanctidade e seu dis-tricto, 10.12.1627. In: Livro Segundo do Governo do Brasil. Lisboa: CNCDP, 2000, p. 174, doc. 117; Atas da Cmara. Documentos Histricos do Arquivo Municipal, vol. 1, Salvador, Prefeitura do Municpio de Salvador, 1949, p. 80, Assento que se fez com o capito Afonso Rodrigues Adorno sobre a entrada que se ha de fazer a dar guerra ao gentio da Santidade, 19.12.1627.

    24 Sobre a guerra com os holandeses, entre muitos estudos, MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada. Guerra e acar no Nordeste, 1630-1654. 2a edio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.

    25 Ver, por exemplo, PUNTONI, Pedro. A arte da guerra no Brasil: tecnologia e estratgia militares na expanso da fronteira da Amrica portuguesa (1550-1700). In: CASTRO, Celso (dir.). Nova histria militar brasileira. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2004, p. 43-66; MEUWESE, Marcus P. For the peace and well-being of the country: intercultural mediators and Dutch Indian relations in New Netherland and Dutch Brazil (1600-1664). PhD, University of Notre-Dame, 2003.

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    das alianas com as naes indgenas independentes, a poltica de atrao de que foram objeto por parte dos holandeses como dos luso-castelhanos e, finalmente, as prprias lgicas indgenas vieram interferir nas rivalidades europeias, e acabaram por alterar as polticas imperiais.26 O reconhecimento unnime da sua importncia para a colonizao vai, no entanto, de par com a denncia dos seus malefcios. Se alguns foram agradecidos pela Coroa, na esteira de dom Antonio Felipe Camaro, nomeado capito-mor de todos os ndios, e integraram a economia da merc vigente no Imprio portugus, a guerra do Brasil veio igualmente favorecer as crticas dirigidas contra os n-dios, justificando em breve nada menos de que a sua destruio.27 Como es-crevia a Cmara da Bahia logo em 1640, os ndios gentio natural da terra da banda do norte foi o que mais apressou a runa da capitania de Pernambuco e o que maiores crueldades uzou com os moradores.28 E muitos concorda-riam com a opinio daquele colono, escrevendo ao rei, que se bem se consi-derar os males que ao Estado do Brazil vieram causados pelos ndios, no so-mente os dero por cativos mas tambm se mandaro acabar por hua vez.29

    De fato, as alianas de algumas naes indgenas com os holandeses e a converso de outras f reformada foram bastante ressentidas, tornan-do-as ento rebeldes ao rei e f catlica.30 A guerra do Brasil gerou assim

    26 Biblioteca Nacional de Madrid, Ms 3014, fol. 272, Para o conde de Castel Novo, 25.03.1633, sobre as cousas que se devem enviar a Pernambuco para conservar os ndios; Cartas do conde da Torre, vol. 1. Lisboa: CNCDP, 2001, p. 27: em carta de SMgd escripta pelo governo em 14.09.1638 em que se da a entender ao senhor conde da Torre as mercs que Smgd tem feito aos ndios no-meados nella, dos quaes ha em primeiro lugar dom Antonio Felipe Camaro. Do lado holands, cf. BOOGAART, Ernst van den. Infernal allies: the Dutch WIC and the Tarairiu, 1631-1654. In: Idem (ed.). Johan Maurits van Nassau Siegen: A humanist prince in Europe and Brazil. The Hague, 1979. No que diz respeito construo das categorias Tupi/Tapuia, MONTEIRO, John M. The heathen castes of sixteenth c. Portuguese America: unity, diversity and the invention of the Brazilian Indians. Hispanic American Historical Review, 80 (4), 2000, p. 697-719. Uma reflexo global sobre esses temas em ALDERMAN, Jeremy & ARON, Stephen. From borderlands to borders: empire, nation-states and the people in between in North American history. American Historical Review, 104, June 1999.

    27 Cartas do conde da Torre, vol. 1. Lisboa: CNCDP, p. 27, p. 63-35, onde se refere o muito que convem ter contentes aos indios. Cf. RAMINELLI, Ronald. Privilegios y malogros de la familia Camaro. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [em linha]. Colloques, 2008. Disponvel em: http://nuevo-mundo.revues.org/27802. Acesso em: 10.04.2010.

    28 Cartas do Senado, vol. 1, 1640.29 Arquivo Histrico Ultramarino [AHU], Pernambuco, doc. 374, Consulta do Conselho Ultrama-

    rino com a petio inclusa do que Manuel da Cunha de Andrade morador em Pernambuco se queixa de duas escravas suas que descobriro segredos aos Olandeses em muito dano seu e esto dadas por livres na Bahia, 14.11.1648.

    30 HULSMAN, Lodewijk. ndios do Brasil na Repblica dos Pases Baixos: as representaes de Antonio Paraupaba para os Estados gerais em 1654 e 1656. Revista de Histria (So Paulo), 154, 1, 2006, p. 37-69.

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    medos e suspeitas, levando sua designao como inimigo interior. E essa acusao abrangia, por vezes, todos e quaisquer ndios, que necessariamente teriam trato com os do serto.31 Essa ideia permanece e encontra-se ainda na segunda metade do sculo XVII, na carta que Antonio de Couros Carneiro escreveu ao rei em 1665, pedindo a sua interveno na conquista do serto baiano, porque se Vmgd no acodir com se mandar castigar com brevidade arriscado esta o Brasil; este gentio pelo que temos alcanado he o que esta entre nos muito ladino e no duvidamos que se comunique com o do ser-to.32 De fato, na esteira da guerra do Brasil, das vicissitudes da campanha e do caos provocado, os movimentos indgenas pelo interior intensificaram-se, aproximando-se do Recncavo e ameaando as freguesias mais distantes de Jaguaripe e Paraguassu. Tal situao deu lugar a um assento do governador geral Telles da Silva, logo em 1643, no qual se refere ao dos Tapuias, s suas crueldades e latrocnios com os moradores, ficando planeada a guerra contra eles.33 Na verdade, nem sempre esses brbaros, como foram desde en-to designados, desciam para fazer guerra. Mas, como observava anos mais tarde o governador-geral Francisco Barreto, o receio de sua ferocidade obra o mesmo efeito que a experincia dela.34

    Assim, se os levantes indgenas aparecem muitas vezes, nas dcadas seguintes, como reaes s provocaes e aos ataques injustificados dos mo-radores, preciso ter em conta alguma mudana no comportamento desses chamados tapuias.35 As suas alianas com os holandeses, como a incorpora-

    31 Sobre o perigo de os ndios do Camaro se passarem a Pernambuco aos Holandeses, cf. Cartas do conde da Torre, vol. 1, p. 294-295.

    32 AHU, Bahia (LF), cx. 18, doc. 2112, Carta de Antonio Couros Carneiro ao rei, 1665. Antonio de Couros Carneiro era capito-mor dos Ilhus. Ele continua, avisando que isto sem castigo e verem os mulatos que so infinitos, tenho medo de huma ruina, a que com dificuldade se possa acudir e considere Vmgde que o Brasil todo alem do gentio que he todo povoado de escravos e he necessario acudir e castigar.

    33AHU, Bahia (LF), cx. 18, doc. 2115, Treslado do assento que se tomou com o governador que foi deste estado Antonio Telles da Silva sobre a guerra que se devia dar ao gentio, 6.04.1643; AHU, Bahia (LF), cx. 13, doc. 1583, 1655.

    34AHU, Bahia (LF), cx. 16, doc. 1889, 1662. Outra referncia ao temor causado nos moradores de Jaguaripe em Documentos Histricos, vol. 3, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, p. 192.

    35 Para uma viso geral, DANTAS, Beatriz; SAMPAIO, Jos Augusto; CARVALHO, Maria Rosrio de. Os povos indgenas no nordeste brasileiro. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 431-456; WRIGHT, Robin M. & CUNHA, Manuela Carneiro da. Destruction, resistance and transformation southern, coastal and northern Brazil (1580-1890). In: SALOMON, Frank & SCHWARTZ, Stuart B. (ed.). The Cam-bridge history of the native peoples of the Americas, vol. III. South America. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 287-440.

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    o de tcnicas militares europeias, tornaram manifestas no s a sua im-portncia como a sua resistncia. Barleus referia assim como a fora de ar-mas defendem os indgenas do serto as suas terras contra os portugueses.36 E se muitos fugiram para o interior, uma vez os holandeses expulsos, outros resistiram, multiplicando-se os ataques contra os portugueses da Bahia at o Maranho.37 De algum modo, eles tambm fizeram ento a sua aprendiza-gem poltica do Imprio.38

    Finalmente, a guerra do Brasil contribuiu claramente para fazer evo-luir estas entradas ao serto de um assunto local, decidido e levado a cabo localmente, para sua projeo imperial. A sua integrao nos circuitos de comunicao poltica com a Coroa testemunha o processo de institucionali-zao que conhecem ento essas entradas, convergindo para a conquista do serto baiano. A partir da segunda metade do sculo XVII, multiplicam-se as cartas enviadas do Brasil ao rei sobre o assunto, emanando tanto do go-vernador-geral, quanto da Cmara de Salvador, ou ainda dos moradores das freguesias mais afastadas. A sua intensificao, durante os anos 1660, deve ser notada. Chegam ento ao rei, como jamais antes, vrios papis referentes ao serto baiano, entre os quais a representao dos moradores da Bahia queixando-se de ataques do gentio brbaro que destri os engenhos;39 a carta de Antnio de Couros Carneiro ao rei sobre os ataques do gentio bra-vo na Bahia;40 ou ainda a carta dos oficiais da Cmara da Bahia para o rei

    36 GASPAR, Barlu. Histria dos feitos recentes praticados durante oito anos no Brasil. So Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1974 [1647]. A relao de Roulox Baro refere-se igualmente a esse argumento usado pelos holandeses para obter a aliana das naes Tapuyas. BARO, Roulox. Voyage au pays des Tapuyas. In: MOREAU, Pierre. Histoire des derniers troubles au Brsil. Paris, 1651. Voltamos a encontrar tal argumento, desta vez numa carta da Cmara de Salvador, em 1684, para denunciar a presena dos capuchinhos franceses no serto da Bahia. Estes, segundo a Cmara, lhes dizem [aos ndios] que estas terras no so nossas seno dos mesmos ndios. Cartas do Senado, vol. 2, p. 77-80.

    37 Assim, para o Maranho, ARANHA, Manuel Guedes. Papel poltico sobre o Estado do Mara-nho [1682]. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, Rio de Janeiro, IHGB, t. 46, 1883, p. 3.

    38 Para uma abordagem at recentemente pouco explorada das diversas estratgias desenvolvidas pelos ndios frente colonizao no final do sculo XVII, MAIA, Lgio de Oliveira. Aldeias e misses nas capitanias do Cear e Rio Grande: catequese, violncia e rivalidades. Revista Tempo, vol. 13, 35, 2013, p. 7-22.

    39 AHU, Bahia (LF), cx. 16, doc. 1868, 1662.40 AHU, Bahia (LF), cx. 16, doc. 2113 e doc. 2114, Consulta do Conselho Ultramarino sobre o

    que escreve Antonio de Couros Carneiro acerca das insolncias que faz o gentio barbaro aos moradores das vilas de Cairu, Boipeba e outras partes, Lisboa 5.06.1665.

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    queixando-se dos ataques do gentio em Maragogipe, Cachoeira, Jaguaripe e Boipeba, datada de 1669.41

    Essa crescente solicitao perante a Coroa vem reforada pelas instru-es dirigidas aos sucessivos procuradores da Bahia junto Corte sobre a necessidade da guerra e da extino do gentio bravo.42 Acabada a guerra dos holandeses, a defesa contra os ataques indgenas vai ligada, na correspon-dncia com a Coroa, nada menos que com a conservao do prprio Esta-do do Brasil, sendo a Bahia a sua cabea. Assim, segundo o procurador da Bahia, bem se verifica que destas hostilidades se vai originando a infalivel ruyna no so daquella capitania mas de todo o estado do Brazil porque da cabea delle depende a sua conservao.43 No entraremos no relato por-menorizado dos eventos que j foram devidamente estudados.44 Basta aqui lembrar brevemente a cronologia das guerras levadas contra o ndio gentio no serto baiano. Se foi decidida logo em 1643 pelo governador-geral Telles da Silva, ela foi adiada at a dcada seguinte. Entre 1651 e 1656, realizam-se vrias jornadas do serto contra os Tapuias rebelados que ameaavam o Re-cncavo baiano atacando as freguesias de Paraguau, Jaguaripe e Cachoeira. Entre 1657 e 1659, decorre a guerra do Orob contra os mesmos Tapuias no mdio Paraguau. De 1669 at 1673, a guerra do Apor. Entre 1674 e 1679, ocorrem as guerras no So Francisco. A partir de 1687, e at 1709, tem lugar a guerra do Au no Rio Grande do Norte, que geralmente considerada como o incio da guerra dos Brbaros.

    Importa sublinhar que aparecem sempre, na documentao, como en-tradas no serto da Bahia. A superviso dividida entre o governador-geral e a Cmara de Salvador lembra ainda as expedies do perodo anterior. Da mesma maneira, poucas patentes militares foram emitidas para a ocasio. No entanto, das entradas do final do sculo XVI ao final do sculo seguinte, se

    41 AHU, Bahia (LF), cx. 20, doc. 2332, 1669.42 Cartas do Senado, Documentos Histricos do Arquivo Municipal, vol. 1, Salvador, 1949, p. 73,

    81, Registro de carta que se escreveo ao Procurador Jos Moreira de Azevedo, 1669.43 AHU, Bahia (LF), cx. 20, doc. 2333, Representao do procurador do estado do Brasil pedindo

    a SA que mande o governador do Brasil continuar a guerra ao gentio bravo, 1669. Vale a pena observar que tal raciocnio lembra outra representao, surgida nos anos 1630, sobre os destinos ligados da Amrica portuguesa e da Monarquia catlica. Cf. MARQUES, Guida. Linvention du Brsil entre deux monarchies. Gouvernement et pratiques politiques de lAmrique portugaise dans lUnion ibrique (1580-1640). Tese de doutorado, EHESS, Paris, 2009.

    44 PUNTONI, Pedro. A guerra dos Brbaros. Povos indgenas e a colonizao do serto nordeste do Brasil, 1650-1720. So Paulo: Hucitec, 2002; POMPA, Cristina. Religio como traduo. So Paulo: Edusc, 2003; SANTOS, Mrcio. Fronteiras do serto baiano: 1640-1750, Tese de doutorado, Universidade de So Paulo, 2010.

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    a prtica costumeira continua, a evoluo da sua formalidade evidente.45 A sua oficializao, junto com o envolvimento dos sucessivos governadores-gerais e a participao de soldados pagos pela Coroa e, sobretudo, a busca de legitimao a que do agora lugar, testemunham uma mudana profunda. O empenho em legitimar essas expedies, durante a segunda metade do sculo XVII, leva ao uso e abuso da guerra justa. Este vai de par com a mobi-lizao oportuna da categoria de brbaro.

    Das metamorfoses da guerra justa e a legitimao da conquista do serto baiano

    De fato, tratava-se de uma justificativa necessria, na esteira da lei de 1611 sobre a liberdade do gentio da terra e a guerra que se lhe pode fazer.46 Constituindo um retrocesso em relao lei anterior de 1609, que declarava a liberdade dos ndios sem condio, a lei de 1611 recolocava a legalidade do cativeiro em caso de guerra justa ou de resgate. A partir de ento, a guerra justa poderia ser declarada por uma junta composta pelo governador geral, o bispo, os membros da Relao da Bahia, assim como representantes dos missionrios. Ao estabelecer ttulos legtimos de reduo escravido, abria-se, na verdade, a via para acomodamentos locais, que os colonos sempre souberem explorar.47

    Este o processo que foi encaminhado pelo governador geral Telles da Silva em 1643, referindo-se expressamente lei de 1611. Em cumprimento dela, Telles da Silva mandou reunir uma junta, e votando cada hum pera sy com as rezes que se lhe offerecero na materia concordaro uniformes que a guerra se devia fazer logo ao dito gentio (...) porque a guerra confor-me a direito he justa pellas causas que se apponto e sircunstancias que se declaro.48 Como dissemos, a guerra ento decretada pelo governador geral

    45 Empregamos a expresso na perspectiva desenvolvida por Michel de Certeau no seu cap-tulo La formalit des pratiques: du systme religieux lthique des Lumires (XVIe-XVIIIe sicle). In : Idem. Lcriture de lhistoire. Paris: Gallimard, 1975.

    46 Lei de 10 de setembro de 1611 sobre a liberdade dos indios. In : SILVA, Jos Justino de Andrade e. Colleo chronologica da legislao portuguesa (1603-1612), p. 309-312. Disponvel em: http//www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt.

    47 Da mesma maneira, as leis editadas em 1647 e 1680, sobre a liberdade dos ndios, fizeram o objeto de compromissos locais entre a administrao colonial, os colonos e os jesutas. Cf. ZERON, Carlos. Ligne de foi: La Compagnie de Jsus et lesclavage dans le processus de formation de la socit coloniale en Amrique portugaise (XVIe-XVIIe sicles). Paris: Honor Champion, 2009.

    48 AHU, Bahia (LF), cx. 18, doc. 2115. Referia a explicitamente a lei de 1611 sobre a liberdade concedida aos gentios da terra deste Estado em que ordeno que sejo livres de seu nascimen-

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    no foi empreendida. No entanto, este assento estabelece claramente o qua-dro da justificativa da conquista do serto baiano. Este mesmo documento assim rememorado uma dcada mais tarde no governo do conde de Atou-guia, tratando-se de legitimar uma nova jornada contra o ndio gentio.49 Ele constitui a partir da uma referncia inegvel. Seguindo o mesmo padro, planejando-se a guerra contra os ndios de Cayru, em 1671, a guerra justa novamente decretada.50 Afinal, a decretao da guerra justa perdura at 1701 com a conquista do serto dos Maracs.

    Essa preocupao com a justificativa da guerra ao gentio na Bahia da segunda metade do sculo XVII vem, antes de tudo, lembrar a atualidade da escravizao dos ndios. Uma atualidade que no se restringia ao Estado do Maranho, ou s bandeiras paulistas.51 No por acaso, a Crnica de Simo de Vasconcelos, publicada em 1663, fazia justamente da escravizao indgena um ponto central que dizia respeito a toda a sociedade luso-brasileira.52 O interesse na decretao da guerra justa evidente. Ela significa, antes de tudo, a autorizao do apresamento de escravos.53 Ao atribuir um carter legal a essas entradas, ela garantia os direitos dos conquistadores de manterem os cativos e lhes fornecia estmulos para continuar a conquista.54. A legiti-mao da conquista enquanto guerra justa permitia a sua institucionaliza-

    to, e que socedindo que o dito gentio mova guerra, Rebellio e alevantamento o governador deste estado faa junta com o Bispo sendo prezente e com o chanceller e desembargadores da Rellao e todos os prelados das ordens que fossem presentes no lugar onde se fizer a junta, e que nelle se averigue se convem e he necessario ao bem do estado fazerse guerra ao dito gentio e se he justa e que se faa disso assento de que se inviara o treslado a sua mgde com rellao das causas que ha para se fazer a dita guerra e que aprovando Sua Magde que a guerra he justa e se faa todo o gentio que nella se tomar seja captivo.

    49 AHU, Bahia (LF), cx. 13, doc. 1583, 14.01.1655.50 SILVA, Accioli de Cerqueira e. Memrias histricas e polticas da provncia da Bahia, vol. 2. Bahia:

    Imprensa Official do Estado, 1925. 51 preciso ter em vista o contexto legislativo do conjunto da Amrica portuguesa, e encarar a

    eventual influncia da legislao produzida para outras partes.52 ZERON, Carlos. Ligne de foi: La Compagnie de Jsus et lesclavage dans le processus de formation de la socit

    coloniale en Amrique portugaise (XVIe-XVIIe sicles). Paris: Honor Champion, 2009.53 Objetivo, alis, declarado pelos prprios governadores-gerais como na fonte referida a seguir.54 AHU, Bahia (LF), cx. 13, doc. 1583, 14.01.1655, E porque os mesmos barbaros jusitificaram

    tanto aquella guerra e esta jornada se nam poderia conseguir sem se declararem por cativos os que se prisionassem resistindo pois no ha infantaria algua e a ambiam da preza podia fazer mais suave o trabalho e mais numero de gente a padecello fundando me no referido assento, na necessidade publica e ser ja stillo praticado em todas as guerras que houve neste estado contra o gentio: mandey lanar bando pelo qual declarey por escravos a todos os que prizionassem em guerra viva. De que me pareceu dar conta a Vmgde a Vmgde com copia do mesmo assento proposta e bando para que tudo seja prezente a Vmgde.

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    o, as solicitaes feitas Coroa visando a sua participao e, sobretudo, a remunerao de servios. Assim, como sublinhou Pedro Puntoni, o debate sobre a guerra justa no pode ser tomado como uma luta pela justia (...) mas antes de mais nada como uma busca de legitimao.55 nessa busca de legitimao que se devem entender os seus deslizes, e entrever algo mais acerca dessa conquista do serto baiano.56

    O assento, estabelecido na Relao da Bahia em maro de 1669, em res-posta s representaes da Cmara de Salvador e dos moradores de algumas freguesias ameaadas, permite entender melhor como essa construo vai sendo movimentada entre o recurso jurdico da guerra justa e o investimento da categoria de brbaro, recorrendo ainda prpria experincia da coloni-zao e s imagens desde j constitudas em torno dos ndios.57 Assim, este documento comea por uma longa digresso pelo passado, recuando at o final do sculo XVI, para lembrar os damnos e traies que fizero sempre as naes brbaras do gentio da terra e as suas hostilidades costumadas. As referncias recorrentes crueldade, ao canibalismo, ou ainda incons-tncia desses ndios, pontuam a evocao dos latrocnios, mortes, e danos ocorridos em vrias partes do Recncavo. No meio, a referncia aos autos passados por Antnio Telles da Silva, em 1643, e pelo conde de Atouguia, em 1654, referindo-se, por sua vez, ao anterior, assim como carta rgia de d. Joo IV, aprovando esse mesmo assento, vm reforar a legalidade da guerra que se pretende.58 A experincia ganha, por seu turno, fora de autoridade, pois que eram to notrios os exemplos que havia na Amrica, de que s com o rigor padecido se aquietaro as insolncias dos brbaros que nellas conquistaro.59 Contudo, o coro da argumentao reside nas gravssimas

    55 PUNTONI, Pedro. A guerra dos Brbaros. Povos indgenas e a colonizao do serto nordeste do Brasil, 1650-1720. So Paulo: Hucitec, 2002.

    56 Recordam-se, no sculo XVI, as crticas de Nobrega ou de Ferno Cardim contra o abuso da guerra justa pelos colonos. A bibliografia sobre o conceito de guerra justa vastssima. Reenvia-mos aqui aos estudos de HFFNER, Josef. La tica colonial espaola del siglo de oro. Madri: Ediciones Cultura Hispnica, 1957; DIAS, Jos Sebastio da Silva. Os descobrimentos e a problemtica cultural do sculo XVI. Coimbra: Seminrio de Cultura Portuguesa, 1973; ZERON, Carlos. Ligne de foi: la Compagnie de Jsus et lesclavage dans le processus de formation de la socit coloniale en Amrique portugaise (XVIe-XVIIe sicles). Paris: Champion, 2009.

    57 SILVA, Ignacio Accioli de Cerqueira e. Memrias histricas e polticas da provncia da Bahia, vol. 2. Bahia, 1925.58 Referia-se, por fim, ordem mandada pelo prprio monarca, em 20 de fevereiro de 1668,

    encarregando [ao governador geral] castigasse o desaforo e atrevimento do dito gentio, fa-zendo-lhe guerra e ser ella por todos estes fundamentos e circunstncia to justa.

    59 Reiterando-se pouco depois o terem mostrado todas as experincias que so na origem se ha de atalhar este damno publico destruindo e extinguindo totalmente as aldeas dos barbaros.

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    consequncias de uns e outros despovoarem suas fazendas e lavouras de que to principalmente pende o total sustento desta praa e conservao dos engenhos delas, lenhas e farinhas, que de uma e outra parte lhes vem.60 A guerra, portanto, era justa e assim foi outra vez decretada.61

    No encontramos aqui nem sequer uma referncia evangelizao do gentio.62 Estamos, pelo contrrio, resolutamente, no registro da guerra. Fala-se de invaso, de assaltos do gentio bravo, de indomvel brbaro, matan-do e roubando.63 O atrevimento do gentio legitima, afinal, a aplicao do direito blico, para castigar a (sua) insolncia.64 Estes trechos repetem o que encontramos ento nas atas e nas cartas do Senado de Salvador ao rei. No en-tanto, importa observar a ligao explcita estabelecida entre os damnos dos ndios e a lavoura impedida. Segundo os oficiais da Cmara de Salvador, a guerra necessria athe que de todo se extingue a cruelade deste barbaro gentio que se seno atalhar a elle temos por certo que faltaro os engenhos com que se despovoarem os destrictos.65 Este mesmo raciocnio desenvol-vido por Juan Lopes Sierra no seu conhecido panegrico fnebre, onde no faltam as referncias aos ataques do gentio barbaro que destroi os engenhos.

    Este lao fundamental implica logo outro, devidamente explorado pela Cmara, ligando-o prpria Fazenda Real, e estreitando assim a sua rela-o com a Coroa. Como lembra a Cmara de Salvador, s com sua extino vivero estes moradores quietos as terras se cultivaro a fazenda de Vmgde hira em crescimento e os frutos hiro em maior nmero as alfndegas desse

    60 O documento termina declarando E consideradas as razes da proposta referida pelo chanceler e mais desembargadores pareceo a todos conformamente que a guerra era justa e que para se executar na forma da dita lei de 1611 no necessitava de mais assento que o de 6.04.1643 confirmado e aprovado pelo senhor rei D. Joo.

    61 A guerra justa remete afinal para a legitimidade da autoridade de quem a faz. Por outros termos, como notou Silva Dias, a justia da guerra baseava-se em apreciaes polticas. DIAS, Jos Sebastio da Silva. Os descobrimentos e a problemtica cultural do sculo XVI. Coimbra, 1973, p. 210.

    62 Ora, este era, finalmente, o nico ttulo verdadeiramente relevante para a guerra e a conquista. O que, tendo em vista os vrios conflitos ocorridos com as misses no serto baiano durante a segunda metade do sculo, no deixa de levantar muitas questes.

    63 Tantas expresses que encontramos igualmente em SIERRA, Juan Lopes. O panegrico fnebre a d. Afonso Furtado [1676]. In: SCHWARTZ, Stuart B. & PCORA, Alcir (org.). As excelncias do governa-dor, O panegtico fnebre a d. Afonso Furtado de Juan Lopes Sierra. So Paulo: Companhia das Letras, 2002.

    64 Nessa perspectiva, encontramos igualmente, em vrios documentos, a proteo dos inocentes como fundamento para legitimar a guerra repressiva. Ver, por exemplo, Documentos Histricos, vol. 3, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, p. 117; ibid., p. 407.

    65 Cartas do Senado, Documentos Histricos do Arquivo Municipal, vol. 1, Salvador, 1949, p. 77, 1669.

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    reino que so os de que depende sua conservao.66 Por esse vis, afirma-se nada menos que os destinos ligados do serto, dos engenhos e do prprio reino. Por fim, recorda-se a relao de servio ligando a cidade da Bahia ao monarca portugus, obrigando de alguma maneira o envolvimento da Co-roa. Porque, segundo os oficiais da Cmara,

    este povo se acha em to mizeravel estado com as grandes contribuies que paga pe-dimos umildamente a Vossa Alteza mande assestir com sua real fazenda ao dispendio desta guerra e que se fao com os soldados desta praa porque no he izento que se lhe pague soldo estando ociozos nella e que os moradores a vo fazer e os sustentem.67

    Finalmente, perpassando o discurso todo, a referncia constante ao ini-migo, enquanto brbaro, vem legitimar, em ltima instncia, a sua destruio.

    Para descrever as populaes indgenas que no tinham sido integradas na rbita colonial luso-brasileira, esse gentio vizinho daquele estado, usa-va-se os termos de brbaros, selvagens, bravos, gentio, ou ainda tapuia sem muita distino.68 No entanto, durante a segunda metade do sculo XVII, tanto nos discursos da Cmara de Salvador, quanto na correspondncia do governo geral, os ndios gentios deixam de ser somente uns selvagens, como eram ainda descritos nesses mesmos anos pelo capuchinho Martin de Nantes, para se tornar uns brbaros.69 A recorrncia desse termo no pode deixar de ser significativa no quadro da comunicao poltica da cida-de de Salvador com a Coroa. Com ele, pretendia-se reforar a legitimidade da dita guerra justa, investindo-o num sentido de algum modo diferente.70

    66 Cartas do Senado, Documentos Histricos do Arquivo Municipal, vol.1, Salvador, 1949 (1638-1673), p. 81.

    67 Cartas do Senado, ibid.68 MONTEIRO, John Manuel Tupis, Tapuias e historiadores. Estudos de histria indgena e do indigenismo,

    Tese de livre docncia, Unicamp. Campinas, 2001. Para o mbito hispnico, WEBER, David J. Brbaros. Spaniards and their savages in the age of enlightenment. New Haven: Yale University Press, 2005.

    69 Capuchinho francs presente no serto nordeste da Bahia durante esse perodo, Martin de Nantes descreve os ndios gentios essencialmente como pobres selvagens, pobres ndios, mais bestas do que homens. Da mesma maneira, na Crnica de Simo de Vasconcelos, todas estas naes de gentes falando em geral, e enquanto habitam seus sertes e seguem sua gen-tilidade so feras, selvagens, montanhesas e desumanas. NANTES, Martin de. Relation succinte et sincre de la mission du pre (...). Paris, 1706; VASCONCELOS, Simo de. Notcias curiosas e necessrias das cousas do Brasil [1663]. Lisboa: CNCDP, 2001.

    70 certo que a palavra brbaro era corrente para designar ou classificar os indgenas do Novo Mundo. Cf. PAGDEN, Anthony. The fall of natural man. The American Indian and the origins of comparative ethnology. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.

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    A construo do Tapuia, durante as dcadas anteriores, como alteridade absoluta, foi, com certeza, essencial nesse processo.71 As caractersticas desses ndios do serto baiano tambm favoreciam o uso da palavra brbaro na sua verso clssica.72 Na sua maioria, no sedentrios, eles caracterizavam-se por sua heterogeneidade, suas migraes sazonais e sua diversidade lingustica.73 Sendo assim, o termo de brbaro, no contexto peculiar da conquista do ser-to baiano, permitia evitar o de Tapuia e ocultar nomeadamente que a guer-ra conduzida ento pelos luso-brasileiros contava, de fato, com o apoio e a aliana de algumas dessas naes, tanto contra outros Tapuias quanto contra Tupis, considerados eles tambm inimigos.74 Ocultava-se ainda a sua conota-o por muito brasileira, e o desprezo geralmente associado guerra contra os ndios, em relao guerra europeia.75 O seu uso preferencial sugere assim a tentativa, por parte dos atores baianos, de revalorizar a guerra contra os ndios em relao guerra holandesa. Para tanto, era necessrio negar que se tratava de simples selvagens, tornando-os adversrios dignos de serem com-batidos segundo as regras da lei, legitimando ainda a pretenso dos conquis-tadores em relao s terras assim adquiridas e aos poderes associados a elas.76

    Importa assim ter em conta a flexibilidade e at o relativismo contido no termo de brbaro.77 Afinal, por detrs deste termo, encontram-se uma va-riedade de naes indgenas, que as autoridades coloniais sabiam muito bem

    71 MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias e historiadores. Estudos de histria indgena e do indigenismo. Tese de livre doccia, Unicamp. Campinas, 2001; POMPA, Cristina. Religio como traduo. Mis-sionrios, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. So Paulo: Edusc, 2003.

    72 Assim, evocando os ndios do Brasil, Giovanni Botero via no seu nomadismo e, logo, na sua incapacidade em formar cidades, a causa profunda da sua barbaridade, no podendo tornar-se por isso mesmo uma verdadeira sociedade. Cf. PAGDEN, Anthony. The fall of natural man. The American Indian and the origins of comparative ethnology. Londres: Cambridge University Press, 1981.

    73 VASCONCELOS, Simo de. Notcias curiosas e necessrias das cousas do Brasil [1663]. Lisboa: CNCDP, 2001.74 Esse foi o caso nomeadamente dos topins, pertencente ao grupo Tupi e, portanto, segundo a

    classificao em uso, no Tapuias. Mas foram tidos por brbaros e, portanto, como inimigos a serem combatidos. SANTOS, Mrcio, op. cit., p. 68. Houve, por outro lado, vrias alianas com Tapuyas amigos, ao longo desse perodo. Cf. Documentos Histricos, vol. 3, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, p. 114, 227, 264; Documentos Histricos, vol. 4, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, p. 55, 62.

    75 PUNTONI, Pedro, op. cit., p. 186 ss; MARQUES, Guida. Linvention du Brsil entre deux monarchies. Gouvernement et pratiques politiques de lAmrique portugaise dans lunion ibrique (1580-1640). Tese de doutorado, EHESS. Paris, 2009.

    76 POCOCK, J. G. A. Barbarism and religion, vol. 4: Barbarians, savages and empires. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 29.

    77 Para alm dos trabalhos referidos de Pagden e Pocock, ver igualmente o muito importante estudo de HARTOG, Franois. Le miroir dHrodote. Essai sur la reprsentation de lautre. Paris: Gallimard, 2001.

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    distinguir quando isso fosse necessrio.78 Essa reduo semntica deve ser entendida enquanto parte de uma estratgia discursiva, procurando eficcia poltica, ao designar o inimigo interior a ser combatido e extinguido. Ela ainda tem outra funo. No por acaso, o gentio tornado brbaro aparece na documentao claramente como inimigo da Repblica. Repblica enquanto territrio e lugar de jurisdies.79 Ou seja, a cidade da Bahia e o seu Recn-cavo. Mais uma vez, voltamos a encontrar essa mesma ideia no texto de Juan Lopes Sierra, ao falar dos brbaros que so o mal desta repblica, e desen-volvendo os pblicos e grandes danos que ocasionam os brbaros a esta re-pblica.80 Por isso mesmo, as guerras provocadas entre as diferentes naes de Tapuia podiam o ser com o pretexto de serem perturbadores da paz pbli-ca, permitindo reduz-los escravido, ou ainda despoj-los das suas terras.81

    Afinal, a diferena entre o brbaro e o selvagem reside nesta rela-o.82 Importa lembrar que esse perodo corresponde a uma fase de ins-titucionalizao importante da Amrica portuguesa, levando sua plena integrao poltica no Imprio. A maior densidade do sistema poltico-ad-ministrativo vigente vai acompanhada da intensificao notvel da comu-nicao poltica com a Coroa, envolvendo ainda as relaes de servio e a sua remunerao.83 E este movimento torna-se mais particularmen-te evidente na cabea do Estado do Brasil. Junto com este processo, ve-rifica-se, na Amrica portuguesa, uma ateno maior para a sua prpria histria. Surgida na esteira da perda e restaurao da Bahia em 1624-25,

    78 Documentos Histricos, vol. 4, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, p. 62 ss, Regimento que levou o capito Bartholomeu Aires que foi por cabo de quatro companhias fazer guerra ao gentio brbaro, 1658.

    79 Para a importncia da cidade enquanto repbica no mundo ibrico, LEMPERIERE, Annick. Entre Dieu et le roi, la Rpublique. Mexico, XVIe-XIXe sicles. Paris: Les Belles Lettres, 2004. Por outro lado, como observou Foucault, o brbaro acaba por ser definido somente em oposio ao civilizado, quer dizer vivendo numa urbe bem ordenada. Cf. FOUCAULT, Michel. Il faut dfendre la socit. Paris: Hautes Etudes/Gallimard/Seuil, 1997, p. 169 ss.

    80 SIERRA, Juan Lopes, op. cit.81 ARSI, Bras., 9, 449v, citado por POMPA, op. cit., p. 274.82 Acompanhamos aqui Foucault na sua reflexo.83 Sobre as mudanas poltico-institucionais ocorridas desde os finais do sculo XVI, ver

    GOUVEIA, Ftima, op. cit.; PUNTONI, Pedro. O governo geral e o Estado do Brasil: poderes intermdios e administrao (1549-1720). In: Idem. O Estado do Brasil: poder e poltica na Bahia colonial. So Paulo: Alameda, 2014, cap. 1; MARQUES, Guida. De um governo ultramarino. A institucionalizao da Amrica portuguesa no tempo da unio das Coroas (1580-1640). In: CARDIM, Pedro; COSTA, Leonor Freire; CUNHA, Mafalda Soares da (orgs.). Portugal na Monarquia hispnica. Dinmicas de integrao e conflito. Lisboa: Cham, 2013, p. 231-252.

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    tal preocupao intensificou-se com a guerra do Brasil, dando lugar a v-rios escritos histricos.84 E exatamente depois de 1650 que vem expres-sa a pretenso da Cmara da Bahia de ver escrita a histria da Amrica portuguesa, solicitando para tanto a nomeao de um cronista-mor.85 Des-de ento, ao falar de brbaros, procura-se igualmente conferir guerra contra o ndio gentio outra dimenso, projetando-a no prprio imprio.

    A importncia das dinmicas locais na conquista do serto baiano j foi realada por alguns autores.86 Isso no significa, porm, que este processo esteja desconectado. Antes pelo contrrio, o empenho na prpria justifi-cativa da guerra e a busca de legitimao que lhe diz respeito, revela uma interao importante com a Coroa, e a importncia do quadro do Imprio. O investimento imperial por parte dos atores locais e, em primeiro lugar, da Cmara de Salvador, acaba por dar certa coerncia ao processo todo, para alm do conjunto disforme de aes de grupos semiautnomos.87

    Assim, a Coroa, tal como o governo-geral na Bahia, no faziam mais que responder s demandas locais.88 O j referido assento de 1643, tomado por Ant-nio Telles da Silva, vinha em resposta das cartas que tinha do capito de Jagua-ripe e de outros moradores. O prprio governador-geral quem lembra que

    os ditos moradores requerem a elle governador e capito geral com grande carecimento lhe mande dar guerra e seno que despovoaro suas fazendas e assy lho requerem tambem os officiaes da camera desta cidade por hum requerimento que por escrito lhe fizero de que se inviara o treslado a sua mgde com o deste assento em que lhe repre-

    84 MARQUES, Guida. As ressonncias da restaurao da Bahia (1625) e a insero da Amrica portuguesa na Unio ibrica. In: HERNANDEZ, Santiago Martinez (dir.). Governo, poltica e repre-sentaes do poder no Portugal Hasburgo e nos seus territrios ultramarinos (1581-1640). Lisboa: Cham, 2011, p. 121-146.

    85 Em 1655, os procuradores do Estado do Brasil requerem da Coroa que a exemplo da India e outros reinos manda se cria hum cronista que desde o principio escreva toda a histria do Brasil. Diogo Gomes Carneiro nomeado cronista do Brasil em 1663. AHU, Bahia (L.F.), caixa 20, doc. 2316 & 2317, Consulta do Conselho Ultramarino sobre Diogo Gomes Carneiro, encarregado de escrever a historia do Brasil com 200 mil reis de ordenado, a pedido dos procuradores daquele estado, Lisboa, 9.08.1669.

    86 Essa a perspectiva central escolhida por SANTOS, Mrcio. Fronteiras do serto baiano: 1640-1750. Tese de doutorado, Universidade de So Paulo, 2010. Mas tal dimenso encontra-se igualmente desenvolvida nos estudos de Pedro Puntoni e Cristina Pompa.

    87 SANTOS, Mrcio, op. cit., p. 24.88 Como observou Mrcio Santos, a expanso da fronteira (no serto baiano) era do ponto de

    vista da Coroa e das autoridades coloniais quase aleatria. Mostra-se difcil encontrar um foco, um projeto ou uma poltica de colonizao nas aes administrativas da coroa e do governo geral voltadas para o serto baiano. SANTOS, op. cit., p. 311.

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    sento alem das prezentes causas que so notorias a todos outras rebellies, alevanta-mentos e treio dos indios deste estado contra a nao portuguesa de que sam crueis e capitaes inimigos, e pedem lhe dem guerra e os hajam por captivos na forma da dita ley.89

    Da mesma maneira, a decretao da guerra justa, em 1654, segue a repre-sentao dos moradores do Peroassu e de Jaguaripe.90 Na dcada de 1660, o go-vernador comunicava ao rei o novo requerimento da cmara, voltando a referir estes danos e os que se seguiam aos engenhos se se nam evitasse o despovoarem aquellas duas freguezias de que elles tinham tam conhecidas dependencias.91

    No entanto, o papel dos governadores-gerais deve ser realado, ao res-ponder os e at liderar com os anseios desses vassalos. Verifica-se, com efei-to, que nem todos os governadores-gerais deram a mesma nfase ao proble-ma do gentio brbaro durante os seus governos respectivos, nem privilegiaram da mesma maneira as jornadas do serto. Devemos ainda ter em conta as relaes que os governadores-gerais estabeleciam localmente, procurando assentar a sua prpria influncia poltica. Essas guerras contra os ndios bem podiam constituir um mecanismo de poder importante no meio das relaes de poder locais, mas tambm um lugar de tenso. Assim, no deve-mos esquecer que muitas das tropas de ndios mansos, indispensveis para essas jornadas, eram de particulares.92 Por fim, como veremos, a concesso de sesmarias, que estava nas mos dos governadores-gerais, acompanhou estreitamente o decorrer das entradas no serto baiano.93 Este quadro vem

    89AHU, Bahia (LF), cx. 18, doc. 2115.90 Atas da Cmara, vol. 3 (1649-59), p. 271, Junta que se fes sobre a jornada do serto, 16.10.1654/

    (...) e juntos todos lhe representaro em como os moradores de Peroassu e de Jaguaripe aviam feito este senado uma petio em que ediam se fizee entrada ao gentio que por tantas vezes os avia assaltado matando gente consideravel e empedindo a lavoura, com a qual fizero um papel com as razes que delle consta ao senhor de Atouguia governador e caitam geral deste estado pedindo lhe fizee a dita entrada que o dito senhor consedeu e se conformou com o nosso voto.

    91 AHU, Bahia (LF), cx. 13, doc. 1583, Carta do governador ao rei onde escreve que representou-me a camera estes danos e os que se seguiam aos engenhos se se nam evitasse o despovoarem aquellas duas freguezias de que elles tinham tam conhecidas dependencias.

    92 Assim, Joo Peixoto Viegas, Pedro Gomes, tal como os Adorno ou os Garcia dvila, tinham em seu poder muitos ndios. Este fenmeno de administrao particular dos ndios na Bahia lembra obviamente a mais conhecida experincia paulista. Cf. MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra. ndios e bandeirantes nas origens de So Paulo. So Paulo: Companhia das Letras, 1994, max. cap. IV.

    93 AHU, Bahia (L.F.), caixa 23, doc. 2750 & 2751, Requerimento de Pedro Gomes, mestre de campo, morador na Bahia que pede confirmao de uma sesmaria no distrito de Peroassu que lhe deu o governador Conde de Atouguia e demarcao dela, 22.12.1676; Carta de sesmaria dada a Pedro Gomes, Bahia, 4.05.1656.

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    sugerir as imbricadas relaes que envolvem a conquista do serto baiano e o jogo complexo das dinmicas locais.94

    Sendo assim, avalizando os pedidos reiterados daqueles vassalos, o Conselho Ultramarino, tal como o prprio monarca, acabam por considerar nos mesmos termos os danos referidos feitos pelo dito gentio naquelles mo-radores, declarando, em 1665, ser muito justo e conveniente que se acuda ao remedio dos vassalos de Vmgde moradores no Brazil que to avexados se vem com as tiranias deste gentio barbaro.95 A carta rgia de 1668, orde-nando ao governador geral do Brasil, Alexandre de Sousa Freire, que se faa entradas contra os gentios nas vilas de Camamu, Cairu e Boipeba, reitera o mesmo raciocnio, ao encarregar-lhe que se execute este negocio em forma que fique remediado por assim convir a quietao desses meus vassalos e conservao desse estado.96 A resposta do rei aos moradores de So Bertho-lomeu de Maragogipe, em 1677, ainda do mesmo teor.97 Assim, o governo metropolitano integra a mesma expresso de gentio brbaro, e o campo semntico que lhe era associado. De fato, somente no final dos anos 1660 que se levanta o problema dessa guerra contra o ndio gentio, e que surgem algumas dvidas acerca do seu cativeiro. Aparecem, na verdade, margem de uma consulta do Conselho Ultramarino no parecer do procurador da Fa-zenda, que declarava que estas materias do gentio do Brazil trazem consigo grandes escrupulos de consciencia.98 No entanto, o Conselho Ultramarino

    94 Da mesma maneira, no Maranho, a articulao das guerras contra os ndios e da concesso de sesmarias, revela a imbricada relao que, por meio do poder dos governadores, assumiam essas mltiplas formas de ocupao do espao. CHAMBOULEYRON, Rafael & MELO, Vanice Siqueira de. Governadores e ndios, guerras e terras entre o Maranho e o Piau (primeira metade do sculo XVIII). Revista de Histria (So Paulo), 168, 2013, p. 167-200.

    95 AHU, Bahia (LF), cx. 18, doc. 2114, 1665. 96 AHU_CU_005, cx. 2, doc. 164, 20.02.1668.97 AHU, CU, cod. 245, fol. 33v, 28.06.1677, (...) mandando eu considerar esta materia com ateno

    que ella pedia por ser de consequencia que estes vassalos represento e desejar eu muito alevialos das hostilidades que padecem me parece o encomendarvos como por esta o fao que por servio de Deos e meu ordeneis que nesta guerra se no pare na conformidade que Affonso Furtado o tinha desposto athe que aquelle gentio seja extinguido de todo e os ditos moradores vivo com socego sem experimentarem os incomodos e assaltos que aponto (...).

    98 AHU, Bahia (LF), cx. 20, doc. 2331. Ele terminava declarando ainda assim digo senhor que eu no so tenho obrigao de procurar a fazenda de VA mas de segurar lhe a sua consciencia e sobre os particulares desta carta me parece que os indios nem devem ser degolados nem cativos sem primeiro se justificar a causa da justa guerra e que esta justificao a nam devem fazer aquelles ministros da guerra por razo dos postos vam interessados nos cativeiros pello lucro davenda dos escravos mas que a fao os ministros da relao e ainda os prelados das religies que tem obrigao de saber se concorrem as causas que fazem a guerra justa e quais foro os principios

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    permanece por muito tempo pragmtico, pronunciando-se claramente em favor da continuao da guerra.99 Afinal, esta busca de legitimao resultou s mil maravilhas, obtendo no s a autorizao da Coroa, mas igualmente a sua participao financeira, aceitando nomeadamente o desvio do dinheiro da dote e paz de Holanda para este fim.100 Talvez ainda mais importante para os atores locais fosse o reconhecimento dos servios feitos na guerra aos ndios, levando portanto sua remunerao.101 Voltamos assim s dinmicas locais e s suas ligaes imperiais.

    Os laos serto/Atlntico e as suas ressonncias imperiais

    A guerra do Brasil desdobrou-se atravs do Atlntico com a tomada pe-los holandeses do forte de So Jorge da Mina, em 1637, e do reino de Angola, em 1641, provocando uma interrupo do trfico negreiro para a Amrica portuguesa.102 A falta de negros de Angola aumentou, com certeza, a presso econmica ressentida na Bahia. Mas a relao estreita estabelecida entre a ruptura do trfico e o recrudescimento do cativeiro indgena no parece to evidente.103 Houve, no entanto, quem estabelecesse oportunamente uma ligao entre esta falta e os ndios do serto, num arbtrio de 1644 sobre os remdios misria do Brasil, ao declarar que

    que tivero estas causas por que nestes o acerto de todas a resoluo E sobre o degolar ou transplantar os indios mansos (...) parece que em nenhum modo se deve seguir tal arbitrio.

    99 AHU, CU, 005, cx. 2, doc. 182, 12.07.1673. Do mesmo teor ainda o parecer do Conselho Ul-tramarino sobre a carta do governador Roque da Costa Barreto referindo essa guerra e seus abusos, publ. in Documentos Histricos, vol. 88, p. 168-171.

    100 Cartas do Senado, Documentos Histricos do Arquivo Municipal, vol. 1, Salvador, 1949, p. 104: onde se refere o atraso no pagamento do dote e paz de Olanda, devido ao fato de se haver mandado vir de So Paulo conquistadores para fazerem oposio ao tapuia barbaro.

    101 A partir do final do sculo, encontram-se remunerados servios feitos nessa guerra contra o gentio brbaro, novidade para ser sublinhada. AHU, cod. 245, fl. 10v, Lisboa, 20.10.1673, Sobre as mercs que se devio fazer aos cabos e capites das conquistas do gentio barbaro do serto das ilhas de Cairu e as mais do seu distrito; AHU, Bahia (LF), cx. 23, doc. 2784, Consulta do Conselho Ultramarino sobre Manuel de Inojosa que por servios teve do governador Afonso Furtado de Castro a merc do posto de ajudante e capito de todos os ndios que da Bahia forem a conquista do gentio brbaro, Lisboa, 1677.

    102 BOXER, Charles R. Salvador de S and the struggle for Brazil and Angola. Londres: University of Lon-don, the Atholon Press, 1952; PUNTONI, Pedro. A msera sorte. Escravido africana no Brasil holands e as guerras do trfico no Atlntico Sul, 1621-1648. So Paulo: Hucitec, 1999.

    103 Luiz Felipe de Alencastro avanou tal ligao, mas os estudos de John Manuel Monteiro, e mais recentemente de Mrcio Santos, mostram que no se trata de um efeito mecnico, como o sugere, alis, a prpria cronologia da conquista do serto baiano.

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    a experincia tem mostrado o damno que recebe o Brazil com a falta de Angola (...) pello que pellas particulares noticias que tenho das cousas do Brazil hey alcanado que o unico remedio daquelle estado consiste em Vmgde dar licena aos moradores que conquistem o serto para trazerem Indios com que se sirvo.104

    A ligao estabelecida aqui entre trfico atlntico e serto prolonga-se na relao entre ndio gentio e mocambos, sugerindo outros processos de interao.

    Outra ligao do serto baiano com o Imprio atlntico reside na re-lao estabelecida entre as entradas ao serto e a segurana do Recncavo baiano. Tal relao aparece de maneira recorrente na correspondncia dos governadores gerais desde a dcada de 1650.105 Nesta, como em outros docu-mentos, desenvolvendo os danos dos ndios e o pre