RIZEK Politica Social Gestao Negocio

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    Cibele Saliba Rizek, Caio Santo Amore,Camila Moreno de Camargo

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    POLTICA SOCIAL, GESTO E NEGCIO NA PRODUO DASCIDADES: o programa Minha Casa Minha Vida entidades

    Cibele Saliba Rizek*Caio Santo Amore**

    Camila Moreno de Camargo***

    Este texto apresenta resultados de pesquisa sobre o Programa Minha Casa Minha Vida Entidades, umadas modalidades da poltica de habitao inaugurada em 2009, no mbito da sua apreenso como parteda constelao de programas sociais dos governos Lula e Dilma Roussef. Esses resultados de pesquisaainda em curso apontam para dilemas, paradoxos e dimenses que envolvem a demanda, os opera-dores, os processos de produo dos conjuntos habitacionais e a produo e reproduo das formasde desigualdade e segregao socioespacial na cidade de So Paulo, assim como a constituio de umcampo de consensos que permeia as relaes entre movimentos de moradia e Estado, no interior do quese pode denominar de lulismo.

    PALAVRAS-CHAVE: Poltica de habitao. Movimentos de moradia. Polticas sociais. Periferias.

    *Doutora em Sociologia. Professora do Programa de Ps

    Graduao em Arquitetura e Urbanismo do IAU/Univer-sidade de So Paulo. Pesquisadora do Centro de Estudosdos Direitos da Cidadania, tambm da Universidade deSo Paulo.Av. Trabalhador So-Carlense, 400. Centro. Cep: 13566-590. So Carlos So Paulo Brasil. [email protected]**Doutor em Planejamento Urbano. Professor do Depto deTecnologia da Arquitetura e do Urbanismo da FAUUSP.Peabiru Trabalhos Comunitrios e Ambientais. Rua Vitori-no Carmilo, 453, casa 7. Barra Funda. Cep: 01153000 SoPaulo So Paulo Brasil. [email protected]***Arquiteta Urbanista. Doutoranda do Programa de Ps-Graduao do Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Uni-versidade de So PauloAvenida Trabalhador Sancarlense, 400. Cep: 13500-210. SoCarlos So Paulo Brasil. [email protected]

    D

    OSSI

    APRESENTAO

    Este texto apresenta resultados de umapesquisa em processo de finalizao, realizadanos ltimos dois anos e busca explicitar refle-xes que permearam (e ainda esto no hori-zonte inconcluso da investigao) a coleta dedados e de depoimentos: as incurses etnogr-ficas ainda no inteiramente concludas; e assistematizaes e anlises de dados quantita-tivos secundrios fornecidos pela Caixa Eco-nmica Federal ou por outras fontes oficiais.A pesquisa o resultado de um projeto sub-metido e aprovado em edital do Ministrio dasCidades e do CNPq, e tem envolvido pesqui-

    sadores ligados ao IAU/CENEDIC (Instituto deArquitetura e Urbanismo da Universidade deSo Paulo, campus So Carlos, e Centro de Es-tudos dos Direitos da Cidadania, FFLCH-USP)e assessoria tcnica Peabiru. O projeto e apesquisa em curso tem como objeto a produ-o realizada (ou ainda a se realizar) pelo Pro-grama Minha Casa Minha Vida Entidades noestado de So Paulo, embora a sistematizaode informaes secundrias, necessria para odimensionamento e a reflexo sobre o progra-ma, tenha se estendido ao mbito nacional.1

    O Programa Minha Casa Minha Vida(PMCMV) tem sido apresentado como uma dasgrandes realizaes dos governos Lula e Dilmae vem marcando as cidades brasileiras de for-

    ma indelvel. No mbito desse programa, fo-ram contratadas 3,4 milhes e entregues 1,7milhes de unidades habitacionais, incluindotodas as faixas de renda e todas as modalidades

    1Alm dos autores, a equipe de pesquisa constituda porAndrea Quintanilha de Castro (mestranda pelo IAU-USP/SC e arquiteta/urbanista da Peabiru), Rafael (mestrandopela FAU-USP e arquiteto/urbanista da Peabiru), DanielaPerre Rodrigues (arquiteta/urbanista da Peabiru), MarinaBarrio Pereira (arquiteta/urbanista da Peabiru), alm dosestudantes de graduao Ana Teresa Carvalho (FAU-USP),Caio Jacyntho e Giovanni Bussaglia (IAU-USP/SC), queparticiparam em perodos diversos.

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    de produo. Este texto tem como objeto a mo-dalidade Entidades, que compe a chamadafaixa 1 do programa (atendendo a famlias comat 1.600 reais de renda mensal). A produo

    dessa modalidade contratada por organiza-es populares, associaes, cooperativas, quecompem o universo de entidades, que de-vem se responsabilizar integralmente pela in-dicao das famlias e por todo o processo deproduo da pesquisa do terreno entregadas chaves, passando pelo desenvolvimentoe aprovaes de projeto e execuo das obrascivis. Trata-se, de um lado, de uma produonfima em termos quantitativos, se comparadaa toda produo do programa; de outro lado, a

    presena e permanncia (para no dizer insis-tncia) dessa modalidade tem uma dimensopoltica paradigmtica, apoiando-se na tradiode polticas habitacionais autogestionrias, en-volvendo os mais representativos movimentosde luta por moradia e reforma urbana do pas.Considerar, assim, o Programa Minha Casa Mi-nha Vida e sua modalidade Entidades comoparte das polticas sociais dos governos Lula eDilma, e como elemento da constelao de po-lticas sociais e urbanas que compem o novodiagrama de relaes entre Estado e pobreza,entre Estado e classes populares, uma das es-pecificidades de nossa abordagem.2

    A partir de um primeiro momento ex-ploratrio de pesquisa necessrio apreen-so do conjunto dos empreendimentos contra-tados, em obras ou concludos , foram sele-cionados dois empreendimentos em funo deuma srie de caractersticas e especificidadesdo local onde esto (ou sero) implantados,

    dos aspectos urbansticos, arquitetnicos e2Essa abordagem vem sendo desenvolvida em um conjun-to de projetos de pesquisa, seminrios, interlocues emespecial no mbito dos projetos A nova gesto da ques-to social no Brasil: entre participao e mercantilizao,CNPq-IRD, 2011-2015; Offre institutionnelle et logiquesdacteurs : femmes assistes dans six mtropoles dAmri-que latine, LATINASSIST - ANR Les Suds II, 2011-2014.Alm dessas dimenses, a experincia de pesquisa e deinterveno de Caio Santamore de Carvalho no mbito daPeabiru, bem como a pesquisa de Camila M. de Camargoforam imprescindveis para a apreenso da problematiza-o de algumas das dimenses desses resultados. Desta-quem-se, ainda, as anlises e dilogos da Rede de Pesquisasobre Insero Urbana dos projetos escolhidos pelo Minis-trio das cidades e CNPq.

    produtivos dos conjuntos, da composio oucriao da demanda, de pblicos-alvo ou be-neficirios das unidades habitacionais, e dasorigens e formas de organizao das entidades,

    suas tramas e tessituras associativas.Dessa perspectiva, para alm dos ele-mentos urbanos propriamente ditos que per-meiam a produo do PMCMV e de sua mo-dalidade Entidades, a anlise dos processosem curso dessa pesquisa procura alimentar e seinserir nas reflexes mais amplas sobre progra-mas e polticas sociais, uma vez que o progra-ma MCMV, particularmente em sua modalida-de Entidades, ajuda a desvendar o lugar (emsentido metafrico e literal) das polticas urba-

    nas e sociais no Brasil dos anos 2000, observan-do dimenses relativas insero e s (novas evelhas) formas de segregao urbana, reprodu-zidas ou aprofundadas pelo ciclo de produode moradias perifricas nas bordas da RegioMetropolitana de So Paulo. Procura, ainda, re-fletir a respeito dos protagonismos, prticas,universos de tenso entre as dimenses poli-tizantes e profundamente despolitizantes quepodem ser vistas como um dos destinos das as-sociaes e entidades, resultantes ou no doslongos processos de luta pela moradia e pelacidade no Brasil. Trabalhos de Ssifo ou con-quistas, na medida das urgncias, as polticasde moradia pensadas como polticas sociaispermitem que se possam vislumbrar desdobra-mentos e dimenses que cruzam a produodo espao urbano, da moradia e do quadro depactos e inflexes do chamado lulismo comoforma de arranjo poltico que caracteriza as re-laes de fora no Brasil contemporneo.3

    POLTICA DE HABITAO E POLTI-CA SOCIAL: urgncia e gesto

    Da perspectiva do momento em que sedesenha o Programa Minha Casa Minha Vida

    3Singer, A. et al. Capitalismo e modernizao perifrica noBrasil do Sculo XXI: desigual e combinado 2013 CENE-DIC, FFLCH. Mimeo.

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    e sua modalidade Entidades, em 2009, preciso ter como referncia o fato de que umconjunto nada desprezvel de processos e in-junes tinha levado o Brasil a se configurar

    como a sexta economia capitalista do mundo,combinando crescimento econmico e suasoscilaes, com a reproduo de desigualda-des,4o que parece ao que indicam alguns au-tores diminuir relativamente menos do que apobreza e a misria. Foram tempos marcadospor uma relativa estabilidade do mercado detrabalho, apesar da desacelerao dos anos re-centes (Leite, 2011), pela criao de empregosformais, embora caracterizados por baixos sa-lrios e postos de trabalho precarizados. O mo-

    mento aponta, assim, duplicidades, disjunese processos de conformao complexa, que pa-recem se relacionar a uma transformao dacomposio do emprego a partir das redefini-es da insero brasileira nos processos mun-dializados de financeirizao desde os anosnoventa. Em conjunto com a ampliao dabase do assalariamento, o perodo tambm foimarcado pela instituio das polticas sociaisredistributivas, como o Bolsa-Famlia e porum significativo aumento do salrio mnimo,desde o incio do primeiro Governo Lula. Aomesmo tempo, com o prprio aumento da mas-sa de empregados, alguns autores indicam umrecrudescimento das condies de trabalho,que so notadas pelo nmero de acidentes emortes no trabalho, pela rotatividade da forade trabalho e pelo aumento das terceirizaes.

    A hiptese inicial de pesquisa era a deque seria possvel pensar numa dualidade queperpassaria a montagem do quadro de polti-

    cas sociais no Brasil, estendendo-se s moda-lidades do Programa Minha Casa Minha Vidae Minha Casa Minha Vida Entidades.5Essa

    4Singer, A. et al., idem.5Hiptese que orientou o projeto de pesquisa mais amplocom o qual dialoga: Emergncia e reinveno: novas evelhas polticas sociais no Brasil, projeto de pesquisaUniversidade de So Paulo (USP-FFLCH-Cenedic) / IRD nombito do convnio de cooperao cientfica CNPq / IRD(Edital CNPq N 17/2013), 2013 2016, coordenado porCibele Saliba Rizek e Isabel Georges. Ver tambm a esserespeito o Projeto Singer, A. et al. Capitalismo e Moderni-zao perifrica no Brasil do Sculo XXI: desigual e com-

    mesma dualidade poderia ser percebida numleque mais amplo de programas e proposies:na poltica de apoio ao agronegcio qual sesoma o incentivo agricultura familiar; na so-

    matria de incentivos produtividade do tra-balho com intensificao, acidentes e mortesao mesmo tempo em que se criava uma peque-na secretaria de economia solidria; ou mes-mo na combinao entre expanso do ensinopblico universitrio com um programa derepasse de verbas ao ensino superior privadopor meio do PROUNI, entre outros exemplos.Do nosso ponto de vista, por hiptese, essamesma dualidade ocorreria com o programaMinha Casa Minha Vida. De um lado, a produ-

    o habitacional se situa em escala, altamentesubsidiada e voltada para as famlias de maisbaixa renda (numa proporo que talvez nemos mais otimistas do campo da reforma urbanaimaginariam), como forma de incentivo econ-mico cadeia produtiva da construo civil e aoutros ramos industriais (da fabricao de in-sumos indstria de mobilirio, eletrodoms-ticos e linha branca), com importantes desdo-bramentos relativos aos vnculos entre capitalfinanceiro e capital imobilirio (grandes cons-trutoras frente), alta generalizada de preosde imveis e aluguis, produo de novas pe-riferias e ao aprofundamento da segregao so-cioterritorial. De outro lado, h a modalidadeEntidades, que poderia conferir alguma pos-sibilidade de produo habitacional, dentro doquadro de lutas e conquistas dos movimentossociais por moradia. Entretanto, dentro dessacomplexa engrenagem, o Programa MCMV namodalidade Entidades, de acordo com dados

    oficiais coletados na pesquisa (e a despeito deuma baixa confiabilidade desses dados), ape-sar da meta de compor 3% de toda a produodo programa em mbito nacional, at o final de2013, tinha contratado menos de 1% de todasas unidades habitacionais do Programa. Seria,ento, possvel, indicar um vnculo complexo,com transformaes nada desprezveis, en-

    binado 2013 CENEDIC, FFLCH, cuja investigao estem curso e cujo trmino est previsto para 2015.

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    tre o amplo apoio dos movimentos de luta pormoradia e reforma urbana e as transformaesefetuadas no mbito da poltica urbana e habi-tacional do governo, incluindo a formulao da

    verso Entidades. Tal vnculo teria consequ-ncias importantes para um rearranjo do cam-po de foras nas relaes e tenses entre essaspartes, para a operao de um novo diagramade relaes entre produo de moradia e lutapela apropriao da cidade (ou seu avesso, maisuma vez, na disjuno entre moradia e cidade,que perpassa a produo pblica de moradiasdesde o BNH), assim como para os limites poro-sos entre as prticas de entidades e movimentosligados ao programa, o mercado imobilirio e a

    construo de mercadorias polticas.6Esses processos poderiam apontar talvez

    menos para uma dualidade do que para mo-dulaes importantes, com fortes consequn-cias polticas no sentido da construo de umcampo de consenso fora do qual seria difcil ouquase impossvel a produo de moradia paraas camadas mais pobres da populao, a partirde uma perspectiva de afirmao ou de conso-lidao dos movimentos vinculados luta pelahabitao popular. Nesse caso, talvez se possaafirmar menos dualidade do que modulaes,com consequncias importantes para um re-arranjo das relaes de fora e poder entre oEstado e os movimentos sociais, devidamentetransformados em operadores do programa.

    Assim, no mbito mais geral das pol-ticas sociais brasileiras, esses processos per-mitiriam identificar menos dualidades quemodulaes, mutaes e deslizamentos resul-tantes de um processo econmico que combi-

    na crescimento com importantes dficits dedireitos sociais, remediados de modo bastantefocalizado e pontual, na medida das urgnciasmais flagrantes, entre as quais, a moradia. Es-ses dficits e as carncias de resoluo mais

    6Quanto a essa noo, ver MISSE, Michel. Rio como umbazar, a converso da ilegalidade em mercadoria poltica.Rio de Janeiro: Insight Inteligncia, v. 3, n. 5, 2002, p. 12-16.Disponvel em: http://www.necvu.ifcs.ufrj.br/images/2orio-comoumbazar.pdf. Consultado em 23 de agosto de 2013.

    urgente7foram sendo construdos ao longo dahistria brasileira em um processo de contnuaatualizao, sem que se alterassem os marcose as formas mais agudas de desigualdade, so-

    bretudo no que se refere s relaes de classe.8

    Na verdade, possvel ainda apontar para umconjunto de modulaes, atualizaes e com-binaes que desenham formas de consenso eacabam por se constituir quase como modo deregulao de conflitos dentro de um quadrode formas de dominao redesenhadas.9talvezcomo rearranjo e atualizao dos jeites e jei-tinhos transformados em regra no escrita dasrelaes micro e macrossociais.

    nesse conjunto de questes sobre a so-

    ciabilidade poltica brasileira, suas conforma-es e seus deslizamentos, que se inserem areflexo e a pesquisa a respeito das polticassociais recentes. Como pensar a constelaoBolsa-famlia, PRONAF, PROUNI, Minha CasaMinha Vida? So sadas para a extrema po-breza, ou formas de diminuio da desigual-dade histrica brasileira? Constituem a gestoda pobreza e de suas urgncias? Constroemportas de sada para as desigualdades? As res-postas devem ser contempladas a partir de umprograma complexo de pesquisa e reflexo. Talprograma se situa no cruzamento dos diversosprojetos em andamento j mencionados, em-

    7A questo do dficit de moradia no simples nem podeser naturalizada. Como se sabe, h uma importante discus-so a esse respeito entre arquitetos, urbanistas e cientistassociais brasileiros. Basta lembrar que o nmero de imveisdesocupados se equipara a um suposto dficit, cuja com-posio se ancora fortemente na carncia de habitaespara a faixa de renda de 0 a 3 salrios mnimos. As dis-cusses e seminrios das equipes de pesquisa sobre o PM-CMV no mbito dos projetos CNPq e Ministrio das Cida-des tm apontado essa diferena de modo bastante claro.

    8Como afirmou em texto clssico Oliveira ([1972] 2003),o avano capitalista no pas foi feito sob a gide do atraso,o que parece, primeira vista, um paradoxo, mesmo queseja necessrio redefinir, a cada momento da histria eco-nmica e sociopoltica do pas, o que se entende por atrasoe por modernizao.9Francisco de Oliveira. Jeitinho e jeito, Piau, outubrode 2012. Oliveira ainda aponta que, dentro dessa matrizda sociabilidade do jeitinho, da proximidade e cordiali-dade, ou dos antagonismos em equilbrio, ou do horror sdistncias, est a falta de uma soluo para a questo doestatuto social do trabalho. Ele se configura em uma dasmaiores marcas do moderno atraso brasileiro, combinadoe talvez pouco superado pelas formas de nossa moderni-zao, constituindo um complexo de caractersticas quepoderiam definir um ethos transversal s relaes sociais.

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    bora seja fundamental perceber que, do pontode vista cultural e poltico, o alvio das carn-cias enseja situaes bastante diversas, indicaperspectivas de conquista de direitos voltados

    reduo das desigualdades sociais, e expres-sa melhoria das condies de vida privada,sem necessariamente sinalizar para um maiorenvolvimento com as questes pblicas e po-lticas. Por meio dessas incurses no campodas polticas sociais, tem sido possvel identi-ficar um novo diagrama de relaes, em que seancoram permanncias e redefinies de umcampo de foras e de tenses entre sociabili-dades e suas formas de expresso, quer no m-bito da politizao, quer no mbito da despo-

    litizao das relaes entre pobreza e cidade.10Um amplo conjunto de dimenses so-

    cioculturais e poltico-ideolgicas relevantesse impe como possibilidade de pesquisa einvestigao, especialmente em regies peri-fricas das grandes cidades, onde populaesde baixa renda ou submetidas a vulnerabili-dades de toda ordem esto em interao comuma diversidade de novos agentes nos ltimos15 a 20 anos. Entre tais agentes, incluem-se:ONGs, OSs, Fundaes e associaes e enti-dades de diversas origens (desde aquelas vin-culadas a movimentos sociais at aquelas deorigem empresarial, passando por entidadesconfessionais), coletivos culturais, funcion-rios pblicos de diversas instncias e grupospoltico-partidrios, estabelecendo-se relaesque remetem a prticas de assistncia social,cultura, qualificao profissional, melhoriasurbanas, regularizao e acesso moradia, en-tre outras. Esse novo contexto vem implicando

    reconfiguraes nos modos de pensar, viver ecompreender as desigualdades e a pobreza, asperspectivas de melhora ou alvio das situa-es de urgncia que as afligem: vo de umamelhor insero no mercado de trabalho por10Em algumas das reunies dos grupos formados pelas en-tidades em consrcio, encontramos os mais pobres entreos pobres em situaes muito evidentes de nomadismourbano involuntrio, marcado no raro por situaes deviolncia de gnero, por expulses, remoes ou mesmoviolncias domsticas, cujos relatos permitem pensar emsituaes que autores como Agamben caracterizariamcomo vida nua.

    meio de capacitaes das mais diversas, oupor meio de incurses no universo dos empre-endedorismos no mbito econmico, socialou cultural at a demanda por direitos da

    cidadania, passando por uma suposta integra-o cidade por meio da propriedade (ou dapromessa da) da habitao, assim como porformas de insero social por meio de cur-sos e atividades. Assim, o rendimento obtidopelo Programa Bolsa-Famlia e o acesso casaprpria por meio do Programa Minha Casa Mi-nha Vida, entre as demais aes de integraodos pobres citadas anteriormente, poderiamse configurar como direitos, seriam novas fi-guraes, conformariam sujeitos de direitos?

    Esses direitos descortinariam novas lingua-gens do que seja direito e novas reivindica-es por direitos, ao propiciar expectativas dereduo das enormes desigualdades sociais?Ou estaramos diante de outras questes, decunho econmico especialmente em relaoao aquecimento do mercado imobilirio, comlanamentos relativos ao segmento econmi-co, e (ou) aquecimento da economia a partir daincorporao pelo consumo e pelo crdito? Ouainda, de uma combinao aparentemente in-slita e nebulosa entre polticas anticclicas decunho econmico e a constituio de cliente-las de novo tipo, dimenses que se dissolvemumas nas outras?11Seria possvel flagrar, pormeio da anlise do Programa Minha Casa Mi-nha Vida Entidades, outro diagrama de lei-tura e de inteligibilidade das muitas relaesentre movimentos, associaes, Estado, formasde operao e populaes-alvo, cujas narrati-vas, descries e anlises estejam ancoradas

    em novas formas de nomeao e categorizao,que combinam as velhas e as novas precarie-dades e formas de pobreza, bem como velhos

    11Essa dimenso tem como pano de fundo as questes co-locadas pela hiptese da hegemonia s avessas (Bello, 2012e Oliveira, 2007, Oliveira, Braga e Rizek, 2010), na medidaem que ela sugere que a perspectiva dos direitos teria sidomuito enfraquecida por processos que estariam contribuin-do para a naturalizao da desigualdade reproduzida pelomercado. Nesse contexto, o aumento da integrao sociale os ganhos salariais das categorias mais mobilizadas noestariam propiciando uma significativa politizao acercadaquelas questes, tendendo a manter os seus interessescircunscritos ao plano da estrita necessidade.

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    e novos modos de enquadr-las, geri-las, aco-mod-las na dobra entre programas e polticassociais, no encolhimento e enquadramento daao de movimentos, associaes e lideranas

    no avesso da constituio de sujeitos polticosdotados de um horizonte de autonomia?Entretanto, cabe mencionar, com Sanfe-

    lici (2013), que o empenho de especialistas earautos desse novo modelo de crdito imobili-rio em apresent-lo como uma soluo parao equacionamento do dficit habitacional noBrasil. Essa necessidade de justificar o mode-lo liberalizante atravs de metas sociais paracuja soluo ele visivelmente no est aptoleva algumas publicaes a ambiguidades no-

    tveis. A publicao da FGV Projetos sobrecrdito imobilirio, por exemplo, reconhecea concentrao do dficit habitacional bra-sileiro nos estratos de renda de at 5 salriosmnimos e admite a necessidade de subsdiospara erradicar esse dficit. Porm, aps elogiosaos modelos de financiamento securitizadoimplantados em pases como Espanha, EUA eChile, o documento sugere que quase 80% dodficit no Brasil pode ser eliminado por me-canismos de mercado. Alm disso, no que serefere aos subsdios oferecidos para os restan-tes 20%, o documento recomenda que o pasreproduza o modelo chileno de condicionali-dades para a concesso dos subsdios: o pre-tendente ao subsdio deveria comprovar umapoupana prvia, algo como 15% do valor doimvel financiado [...] O prprio documentoadmitira, poucas pginas antes, que o modelochileno deixou de fora justamente a populaomais pobre que , por razes bvias, incapaz

    de poupar [...] (Sanfelici, 2013, p.107).Como apontam alguns autores, os pa-

    ses da Amrica Latina, tal como se evidenciapela ltima citao, se apresentam como umaespcie de laboratrio de uma nova geraode polticas sociais, tidas como intermediriasentre a proteo social e a luta contra a pobre-za (Lautier, 2012; Latinassist, 2010; Destremaue Georges, 2014). Essas polticas so o palco daao de um conjunto de atores instituies p-

    blicas, nos seus respectivos nveis territoriais,organizaes internacionais, nacionais e locais,ONGs, empresas, associaes e uma grande di-versidade de atores privados intermedirios.

    Torna-se, ento, uma questo de pesquisa anecessidade de desvendar, em cada faixa depolticas e programas, permanncias, continui-dades e pontos de inflexo que permitiriam per-guntar sobre os critrios de periodizao, rede-finies, deslizamentos, reconfiguraes.12

    Alm da caracterizao de pontos de in-flexo e de sua magnitude, possvel acompa-nhar alguns pesquisadores que apontam a im-portncia das relaes entre setores e polticassetoriais no que tange ao nvel das intermedia-

    es de seus agentes entre o Estado e a assimchamada sociedade civil, isto , os operado-res dessas polticas (Rizek, 2013). Dessa forma,para alm de tentar flagrar supostas lgicasnacionais ou setoriais, talvez seja necessriobuscar os mecanismos que levam tanto miti-gao como (re) produo das desigualdadessociais no seu mbito mais visvel a produ-o do espao urbano, as grandes cidades.

    As situaes de carncia e desigualdadeshabitacionais e urbanas se conformam, assim,como um dos ndices mais evidentes e visveisdas modulaes contemporneas da questosocial brasileira.13Se essa afirmao tem algu-ma validade, se ela ganha um contorno signifi-cativo dessa inveno moderna do social tobem flagrada por Hannah Arendt , possvelapontar que, por meio dela, se desenham al-guns dos principais embates sobre a pobreza,sobre suas configuraes, para alm do traado

    12Dessa perspectiva, seria possvel indagar as mudanase permanncias entre o Plano Nacional de Habitao herdeiro do Projeto Moradia, elaborado por quadros doPartido dos Trabalhadores e por intelectuais vinculados questo urbana e o Programa Minha Casa Minha Vida.13 Dessa perspectiva cabe salientar alguns eventos nombito da cidade de So Paulo que permitem problemati-zar, por um lado, a diferena entre dficit habitacional edemanda do PMCMV e MCMV- Entidades. Por outro lado,algumas ocupaes na zona Sul e Leste da cidade, especial-mente aquelas que foram lideradas pelo MTST (Movimentodos trabalhadores sem teto), Nova Palestina e Copa do Povo,parecem apontar algumas dimenses que permitem afirmarque os programas e polticas sociais esto longe de se confi-gurar um equacionamento mais permanente dos desdobra-mentos da questo social no mbito da moradia e da cidade.

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    e dos caminhos que conduzem para uma refle-xo sociolgica da adaptao e legitimao dasformas de contagem, classificao, clculo, ges-to, governo moral14 e controle dos pobres.

    No caso dos programas de habitao, como par-te de uma complexa cadeia produtiva de im-portncia econmica inegvel, so dimensesde dinamizao econmica que se sobrepem dimenso da moradia como direito, ou sobre adimenso do direito vida urbana e cidade?As polticas recentes de proviso de moradiadizem respeito moradia como direito e formade insero urbana, ou se constituem, princi-palmente, como desdobramentos da produode uma habitao social de mercado (Shimbo,

    2012) no caso da pesquisa relatada, suposta-mente mediada por associaes e movimentosde cunho popular? possvel problematizaras dimenses e resultados dos programas deproduo de moradia no cruzamento entre for-mas de integrao ao universo da propriedadeda casa (dispositivo que merece e precisa serquestionado e tensionado como tal) e ao uni-verso urbano (condio inescapvel de maisde 80% da populao brasileira), bem como dereproduo e aprofundamento de importantesdesigualdades socioespaciais?15

    Tendo em conta a poltica habitacionalcomo parte das polticas sociais, cabe apontarsua centralidade em relao a uma polmicainconclusa que atravessa a montagem, a nar-rativa e os projetos que conferiram forma esentido questo social e seus paradoxos, bem14Ver, a esse respeito, Gouvernement moral des pauvres etdpolitisation des politiques publiques en Amrique lati-ne in Borgeaud-Garcianda N., Bruno Lautier L., PeafielR., Tizziani A. (dir.), Penser le politique en Amrique la-tine: la recration des espaces et des formes du politique.

    Paris, Karthala, p. 19-36.15Ver, a esse respeito, um conjunto de referncias como,por exemplo, Ivo, 2008 onde se l: Alm das questes re-lativas abrangncia de tais solues, especialmente nassociedades perifricas, em que a grandeza quantitativa doexcedente (setor informal) torna ainda mais urgente e, aomesmo tempo, mais complexa a ao do Estado, o con-fronto dessas colaboraes recoloca, no centro do debate,as relaes intrnsecas e contraditrias entre a proteo dacidadania e o universo do trabalho e dos trabalhadores.Ou seja, at que ponto a generalizao dos mnimos, nosprogramas de renda mnima de cidadania, por exemplo,contribuem para reduzir formas de integrao no mbitoda sociedade do trabalho ou contribuem, igualmente paraaprofundar as condies das desigualdades sociais? (Ivo,2008: p. 107); (Shimbo, 2012); (Rolnik e Nakano, 2009).

    como seus desdobramentos contemporneosno Brasil. Das grandes questes s concepesde pobreza, desigualdades, excluso e vulne-rabilidade social como formas de nomeao

    e identificao e, nessa medida, como dimen-ses polticas, essas noes impem normasde percepo do prprio objeto, em seu pro-cesso de apropriao, que se inscrevem comorealidade, conformando a prtica dos sujeitossociais. Assim, a pesquisa e as estatsticas for-muladas por instituies, como o Estado, ar-ticulam-se diretamente com o mundo social econstituem um construto que resulta e interfe-re, constantemente, sobre as prticas de atorese agentes sociais. Talvez dessa perspectiva,

    as nomeaes e clculos do dficit de mora-dias no Brasil seja, de fato, exemplar. Mas aobjetivao das noes e categorias de nature-za cientfica, quando se transformam apenasna agregao de informaes, sem refernciass condies de produo da histria social,acabam por se instituir como tcnica dissocia-da das formas concretas de como se reprodu-zem dimenses polticas e injunes sociais(Ivo, 2008: p. 107). Como parecem demonstrarfragilidade e incerteza relativa aos dados sobrea produo de moradia do programa MCMVe, especificamente de sua modalidade Enti-dades, preciso observar um vnculo entreas formas de identificao e assinao da po-breza e as questes histricas que emolduramas relaes entre pobreza e industrializao,pobreza e suas expresses urbanas desde acolnia, bem como o binmio que ocupouparte significativa do debate das cincias so-ciais na segunda metade do sculo XX: os vn-

    culos contraditrios entre desenvolvimento epobreza.16 Se houve uma assimilao da po-breza s situaes informais de trabalho, quereceberam nomes diversificados ao longo dahistria social brasileira, a dissociao entrepobreza e trabalho parece se conformar clara-16Essa discusso, de escopo macrossocial, desenha e rede-senha a pobreza como marginalidade, massa marginal, tra-balho excedente, excluso e apartheid social, entre outrasdesignaes ao longo do pensamento social brasileiro. Podese citar, como exemplo, a discusso sobre as categorias su-bemprego ou subocupao entre os anos de 1970 e 1980.

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    mente a partir da reverso das expectativas deintegrao por meio do trabalho assalariado,por meio do que se poderia identificar comocondio salarial. Mais recentemente, a par-

    tir dessa reverso, possvel encontrar exem-plos de formalizao mais ou menos aparentes(Georges; Vidal, 2012) a partir de polticas deestmulo ao empreendedorismo popular sob omanto da qualificao profissional e pessoal,de empreendedorismo de si (Silva, 2002) e deempreendedorismo social.17 Nessas zonascinzentas18 entre formalizao e informali-dade, direito e negcio, movimento social eempresariamento, tais polticas (assistnciasocial, sade, trabalho e renda, programas de

    incentivo s artes e cultura, assim como rela-tivas ao microempreendedorismo e economiasolidria, construo em mutiro e, mais re-centemente o MCMV Entidades), de um modogeral, apresentariam uma face de comprome-timento e participao, enfatizariam o ideriopartipacionista e autogestionrio. Mas, de fato,poderiam ser identificadas, pelo menos no m-bito discursivo, como polticas de ativao,19como expedientes de natureza, em alguma me-dida, individualizante, conforme a retrica eo horizonte neoliberal (Hibou, 2011; Dardot;Laval, 2013). Assim, modulam-se as dimen-ses e os significados da pobreza e do enigmabrasileiro com algumas das passagens que con-duzem do indolente massa marginal, dessamarginalidade condio de trabalhador,mesmo que na informalidade, do trabalhador

    17E talvez aqui seja necessrio perceber as iniciativas e em-preendimentos habitacionais dos movimentos e associa-es populares sob o signo de prticas e discursos relativoss dimenses desse mesmo empreendedorismo social.18A noo utilizada por Telles e Cabanes, bem como porAzas, mas est ancorada, ao que tudo parece indicar, emAgamben, G. Homo Sacer O poder Soberano e a VidaNua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002 e Estado de Exce-o. So Paulo: Boitempo, 2004. Ver, a esse respeito, Telles,V. e Cabanes, R. (org.) Nas Tramas da Cidade trajetriasurbanas e seus territrios. So Paulo: Humanitas, 2006.19Desde as iniciativas de organizaes internacionais, taiso Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvi-mento (BID), possvel identificar como polticas de ativa-o aquelas que exigem ao individual em contrapartidaaos benefcios alcanados, na contramo de sua concep-o como direitos. A idia est ancorada em especial emRizek, C. e Georges, I - Emergncia e Reinveno: Novase velhas polticas sociais no Brasil, anteriormente citado.

    informal ao excludo e da excluso (de cer-to modo fetichizada) condio de apartaosocial, do beneficirio de programas e polticasao microempreendedor capacitado. Mas as re-

    laes entre as palavras e as coisas, os modosde enunciao e de designao acabam por seconfigurar como um segundo enigma que serepe e se redesenha no horizonte das cinciassociais no Brasil.

    Nos anos 2000, a polarizao das polti-cas sociais e a criao crescente de um fossoentre um horizonte de acesso aos direitos detipo universalista e de possibilidades efetivasde insero social e profissional (por meio depolticas de acesso sade, assistncia, mora-

    dia ou trabalho e renda), ou seja, a emergnciade um potencial de conflito e de luta por di-reitos encontraria desdobramentos na concreti-zao das polticas e programas habitacionais.Em suas formas autogestionrias, ainda queresiduais em termos quantitativos, confere-seimportncia e peso s entidades de intermedia-o, de cunho poltico, comunitrio, privado,religioso, articuladas ou no com a histria dosmovimentos populares e com os movimentosde luta por moradia em particular. Essa arti-culao parece ser um dos eixos mais interes-santes das consideraes relativas ao programaMCMV em sua modalidade Entidades.

    QUANTIDADES EM CAIXAS PRE-TAS: o programa Minha Casa MinhaVida entidades em nmeros

    A modalidade Entidades foi, ao que

    tudo indica, no contexto do programa MCMV,conquistada pelos movimentos, por intera-es e articulao nacional com o governo fe-deral, presena institucional nos conselhos par-ticipativos ou interlocuo permanente entrelideranas e tcnicos do Ministrio das Cidadese da Caixa Econmica Federal. O discurso sobrea insero de movimentos e entidades popula-res no programa afirma, frequentemente, queno tinham opo se quisessem participar da

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    festa, atender a suas bases e realizar uma pro-duo de outra natureza, que se diferenciassequalitativamente da produo convencional.20

    MCMV Entidades e os movimen-tos por moradia: da produo dademanda ao monoplio de organi-zao?

    A produo do Entidades se localizana chamada faixa 1 do programa (atende a fa-mlias com renda de at R$ 1.600,00) e se sub-mete praticamente s mesmas regras da pro-duo empreendida pelas construtoras, com

    algumas especificidades. Herdeiro do progra-ma Crdito Solidrio, operando o mesmo fun-do (FDS Fundo de Desenvolvimento Social),agora alimentado com recursos oramentriosda Unio, a modalidade se diferencia no con-texto geral do MCMV por confiar EntidadeOrganizadora a responsabilidade pelo contra-to, pela seleo, organizao e indicao dosbeneficirios os quais devem se enquadrarnas regras gerais do programa, o que inclui ainscrio e a submisso aos critrios do Ca-dnico. O Entidades tambm se diferenciapela possibilidade de se estabelecer um con-trato preliminar, especfico para a compra doterreno e pagamento antecipado dos projetos.Essa foi uma vantagem competitiva dada sassociaes nas disputas por terra em um mer-cado bastante aquecido pelo prprio MCMV,permitindo que os proprietrios recebessemos valores relativos ao terreno to logo se com-provasse junto Caixa a viabilidade tcnica e

    financeira do empreendimento. Com o terrenona mo, inicia-se uma nova (e longa) jornadaque envolve licenciamentos nos rgos pbli-

    20Na sede de uma das entidades que promovem um dosempreendimentos que escolhemos para acompanhar pormeio de nossas incurses etnogrficas, encontramos, nomural, as fotos orgulhosas da liderana ao lado de Lula,outra ao lado da ento prefeita Luisa Erundina e outra ain-da ao lado da tambm ento prefeita Marta Suplicy. O jogopoltico que confere legitimidade a essa mesma lideranapermite mesmo que se alterem os locais de insero dosgrupos de futuros moradores no Cadastro nico nego-ciao que foi garantida por cima, isto , no mbito dasnegociaes com o Ministrio das Cidades.

    cos, desenvolvimento dos projetos executivos(implantao, redes de infraestrutura inter-na, arquitetura, estrutura e fundaes, insta-laes), oramentos e suas aprovaes. So

    processos que levam, no mnimo, um ano emeio e podem chegar a quatro anos facilmen-te.21S ento se contrata a obra propriamen-te dita, a qual pode ser executada em regimede administrao direta em que compras econtrataes de materiais e servios so feitasdiretamente pela entidade com a supervisode uma assessoria ou de tcnicos responsveispelas obras ou por empreitada global pro-cesso em que a entidade contrata uma constru-tora para executar a obra integralmente. Nos

    processos executados, as dimenses de admi-nistrao adquirem outra especificidade, ouvantagem competitiva, que leva em conta anatureza sem fins lucrativos das associaes ea consequente inexistncia do capital de giro:a execuo das obras ocorre com a antecipaode at duas parcelas dos recursos, dando boascondies de negociao nas compras e con-trataes pelas entidades.

    O programa Entidades tem, portan-to, os requisitos que caracterizam a produohabitacional autogestionria brasileira (ouo discurso sobre essa produo): permite queos futuros beneficirios, potencialmente sele-cionados e conhecidos antes dos processos deobra, participem dos projetos e das obras, co-nheam os terrenos e seus entornos, opinem naconcepo, acompanhem o modo como os re-cursos so empregados na execuo das obras,apropriem-se dos excedentes que resultam debons processos de compra e contrataes e os

    reinvistam na melhoria da qualidade das mo-radias. Esses processos, to ricos quanto com-plexos, poderiam representar uma cunha nocontexto geral do MCMV.

    Mas no exatamente o que temos vistocomo resultado da pesquisa. Nessa espcie degincana ou corrida de obstculos, a dimenso

    21 Um dos empreendimentos que estamos acompanhan-do mais de perto se iniciou dentro do Programa CrditoSolidrio h aproximadamente sete anos, conforme depoi-mento coletado por uma futura moradora.

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    urbana desses conjuntos torna-se, aos olhosdas entidades promotoras e dos benefici-rios, quase secundria. Praticamente a tota-lidade dos empreendimentos contratados no

    estado de So Paulo est sendo viabilizada emterrenos comprados no mercado, localizadosem bairros perifricos precariamente consoli-dados, ou nas franjas da mancha urbana me-tropolitana. Reproduzem, de modo no raroagravado, a m localizao dos empreendi-mentos, produzida pelas outras modalidades,numa integrao precarssima daqueles queRolnik chamou de os sem cidade. Com o va-lor do terreno embutido no valor da unidade,vale a velha lgica do terreno mais barato, com

    dimenses que tornem o empreendimento eco-nomicamente vivel tambm pela quantidadede unidades a serem produzidas. Terrenos demenor porte e bem localizados, com acesso aequipamentos, servios urbanos e comrcioque atendam, no apenas demanda existente,mas comportem o aumento da populao dobairro decorrente da implantao dos conjun-tos, no cabem no programa.22

    esse o contexto que aambarca, inclu-sive, a ao de movimentos historicamentevinculados luta por moradia no centro que,desde os fins dos anos de 1990, promoveramuma srie de ocupaes em edifcios vaziosnessas localizaes, configurando uma tenta-tiva de l promover moradia popular. Comoj flagrara Maia (2012), em pesquisa de cunhoetnogrfico, em edifcios ocupados no centropaulistano, a conquista da moradia definitivapelas famlias que moravam nas ocupaes serealizava mediante um retorno periferia, s

    regies sul e leste do municpio, em especial Cidade Tiradentes, que continuava a ser o

    22Durante o processo de pesquisa, pelo acompanhamen-to das atividades dos grupos e pelas entrevistas com seisinformantes, foi possvel constatar que apenas um delesconhecia a rea e o terreno onde seria (ser) construdoo conjunto. A grande maioria nunca esteve na rea e noconhece suas condies de acesso, sua localizao ou aquantidade e qualidade dos equipamentos prximos suafutura moradia. Tambm significativo que as associa-es locais algumas bastante conhecidas e enraizadas navida associativa do pedao do bairro no tm nenhumconhecimento do destino da rea reservada e compradapara a construo do conjunto.

    destino das famlias submetidas a remoes ereintegraes de posse dos imveis das reascentrais. Movimentos como o Frum de Cor-tios e o MMC (que mudou o significado do

    C de sua sigla de Centro para Cidade), porexemplo, esto viabilizando empreendimentosnos bairros perifricos do Lajeado, Guaianasese Cidade Tiradentes, depois de anos de luta emtorno das possibilidades de produo habita-cional no centro. As dimenses dos terrenosviveis pelo alto potencial construtivo, pelaquantidade de unidades a serem construdas tm levado a uma prtica de consrcios demovimentos e associaes, situao que Maia(2012) tambm j tinha notado nas ocupaes

    que eram compartilhadas por diversas siglasde movimentos e suas bases. Entidades habili-tadas junto ao Ministrio das Cidades, muitasvezes com trajetrias e filiaes polticas dis-tintas, tm estabelecido parcerias, compondoe constituindo demandas,23indicando fam-lias de suas bases, para que se viabilizem con-juntos que chegam marca de mil unidadeshabitacionais, dividindo o empreendimentoem diversos contratos para que sejam respei-tados os limites de 300 unidades da normativaque regulamenta o programa.

    Essas prticas configurariam uma guina-da e (ou) uma nova caracterizao para os mo-vimentos de moradia? Em outros termos, quaisas redefinies desses campos de fora que tan-genciam a questo das lutas pela moradia, asconformaes e espacializaes da pobreza e daprecariedade, os movimentos e as formas de as-sociativismo e suas reconverses? Como pensarainda a reconverso de entidades que passaram

    a se constituir como mquinas de produo(na verdade, de contratao) de unidades ha-bitacionais? O MCMV Entidades constitui-se,enfim, como um enorme campo de consensofora do qual no possvel vislumbrar nenhu-ma sada, nenhuma outra possibilidade de con-

    23A produo da demanda, como prtica de legitimaoou justificao de entidades de intermediao ou opera-dores de programas e servios, uma forma de governovigente igualmente no setor da assistncia, como foi mos-trado por Georges e Santos, 2013.

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    quista organizada da moradia. No por acaso,portanto, que as aes do MTST em So Paulo,que envolveram milhares de famlias em duasgrandes ocupaes de terra a Nova Palestina,

    no extremo Sul, e a Copa do Povo, nos arredo-res do estdio do Itaquero desembocam emnegociaes em torno do MCMV.24

    A Via Crucisdas entidades

    Habilitar-se junto ao Ministrio das Ci-dades, pesquisar terrenos, negociar com pro-prietrios, realizar ocupaes e aes diretas,negociaes com prefeituras; organizar, sele-

    cionar e cadastrar possveis beneficirios; re-alizar estudos de viabilidade, licenciamentos,oramentos; gerir os processos produtivos nocanteiro [...] So eventos-chave de uma verda-deira via crucis que revelam uma sequnciade entraves que ajudam a justificar uma pro-duo que nfima e muito inferior s metasestabelecidas, a despeito das imprecises e dabaixa credibilidade dos dados oficiais, obtidosde fontes diversas. Nacionalmente, o Entida-des representa 0,25% dos recursos investidose 0,83% das unidades habitacionais contrata-das no programa MCMV como um todo. Maisque isso, mostra-se menos efetiva que as de-mais modalidades, pois apenas 0,36% de todasas moradias concludas e 0,18% das entregues,com todas as legalizaes exigidas no progra-ma, foram produzidos pela modalidade.

    Havia, no estado de So Paulo, at no-vembro de 2013, 39 contratos, que, analisadosmais cuidadosamente, eliminando as duplici-

    dades contidas nas bases de dados, represen-tadas pelos contratos de Compra Antecipadae as divises dos conjuntos entre entidadesconsorciadas, representam 3 empreendimen-tos. Desses, apenas 1 empreendimento con-siderado entregue; outros 3 esto com as obrasconcludas, somando 4 conjuntos habitados(apenas 2 na Regio Metropolitana de So

    24Cf. Andr Dal B e Cibele Rizek. O MTST: origens e lu-tas. So Paulo, mimeo, 2014.

    Paulo); 6 esto com obras contratadas; 6 comobras iniciadas e 7 esto apenas com os ter-renos comprados, enfrentando os rduos pro-cessos de licenciamento e desenvolvimento de

    projetos e oramentos. Desse modo, a pesquisaqualitativa, as incurses etnogrficas e as visi-tas aos empreendimentos permitiram um frtildilogo entre quantidades e qualidades, o que,por sua vez, possibilita uma apreenso trans-versal e um trabalho de dentro e de perto quepermite clarear o que significam os nmerosdas planilhas oficiais.

    Para alm dos dados e informaes, oPrograma MCMV em sua modalidade Entida-des permite mais um conjunto de indagaes

    sobre a natureza das relaes que conformame emolduram as novas e velhas formas da so-ciabilidade poltica brasileira a partir de umaarticulao complexa de programas sociais.25Se essa indagao ganhasse corpo, ela acabariapor exigir tambm novas lentes, novos pris-mas, que permitam qualificar o capitalismobrasileiro em sua face financeirizada, confor-mando, de maneira at certo ponto indita, asrelaes de classe, as modulaes das formasde sociabilidade poltica e das relaes depoder. Haveria, assim, uma nova conforma-o dos modos de dominao e de construo(mais ou menos frustrada ou bem sucedida)de hegemonia e consenso nos quais os pro-gramas e polticas sociais de transferncia derenda e de moradia recobertos pela aura doprotagonismo, da autogesto, dos empreende-dorismos sociais, da participao da socieda-de civil ocupariam um lugar central. Dentrodesses rearranjos e reconfiguraes, tampouco

    seria possvel qualificar as classes popularescomo protagonistas clssicas desse novo pa-tamar de desenvolvimento, marcado, assim,por truncamentos que operam entre e nas si-tuaes e dimenses estruturantes das posi-

    25Cabe mencionar, como se ver adiante, que os projetos eempreendimentos do Programa MCMV Entidades exigema incluso dos futuros moradores no Cadastro nico deassistncia, configurando necessariamente uma demandade baixa renda para os empreendimentos. A inscrio noCadastro nico parte da via crucis de construo dapossibilidade de efetivao dos empreendimentos.

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    es de classe, assim como em suas formas deatuao e expresso cultural e poltica. Seria,ento, possvel perguntar quais so as relaesentre esses truncamentos, obstrues e o cha-

    mado lulismo, por suas determinaes, bemcomo pelos seus campos de conflito e relaesde fora, por suas ambiguidades e coalizes.

    Ao buscar um exame da ponta mais frgildo programa MCMV a modalidade Entidades, algumas dimenses sociopolticas acabaramdespontando como questes possivelmente es-truturantes do problema de pesquisa que aquise desdobra. Ele diz respeito a uma perguntasobre a face da pobreza no Brasil urbano, sobresuas eventuais especificidades contemporne-

    as, sobre a impossibilidade de caracterizar omomento presente como avano ou retroces-so, exigindo, de fato, que se enfrente sua novaconformao, o que acaba por demandar, deum lado, procedimentos descritivos que per-mitam apreender tanto o desenho e a proposi-o do programa e suas transformaes comosua ponta final na produo e reproduo doespao e da vida da cidade.

    Flagrar continuidades e pontos de in-flexo talvez tambm seja tarefa que exija umesforo terico de percepo dos processos definanceirizao e seus sentidos em seus vncu-los com a produo do espao, seus desdobra-mentos cotidianos, novas clivagens e recom-posies, que talvez coloquem no horizonte,ao lado da necessidade de pensar o presente,um esforo de construo de novas categorias,de atualizao de nomeaes, de apreenso dedeslizamentos que permitam afinal perguntar:que cidade essa? Como vm se reconfiguran-

    do a pobreza e a desigualdade urbanas e quetenses, tores e conflitos vm ganhandodensidade? Que Brasil urbano emerge desseconjunto mltiplo de processos? Que diagra-mas permitem descrever e pensar as novasconfiguraes que combinam cidade, pobreza,programas e polticas pblicas, seus operado-res, programas de produo de moradia, movi-mentos sociais e suas mutaes, em particularno mbito da cidade de So Paulo?

    CONSIDERAES FINAIS: direitos,negcios e gesto

    Ainda sem necessariamente sistemati-

    zar as informaes provenientes da pesquisaetnogrfica nos dois empreendimentos sele-cionados, mesmo que essa constelao de in-formaes seja inevitavelmente subjacente, asinformaes e a reflexo que compem essetexto permitem apontar algumas concluses eproblematizaes que cruzam a poltica habita-cional com as polticas sociais do Brasil lulista.

    A primeira diz respeito ao modo peloqual o programa acaba por se constituir, comdespolitizao da questo da moradia e, so-

    bretudo, do acesso cidade. A construo dademanda dos grupos de candidatos a benefi-cirios dos empreendimentos se d, sobretudo,por meio de relaes de mbito privado re-laes de parentesco ou amizade, oriundas derelaes pessoais e raro, entre os grupospesquisados, encontrar algum com ntida tra-jetria de luta no movimento de moradia, comtempo de participao que exceda o tempo deformao do grupo para a assinatura do con-

    trato.

    26

    Ao serem perguntados como chegaramao grupo e entidade, nossos entrevistados,em sua maioria, responderam que foi por meiode um amigo, parente ou conhecido, que te-ria apontado o longo caminho para a aquisioda casa prpria. So relaes que, somadas converso de entidades produo de mora-dia, acabamos por denominar associativismode ocasio. Nesse contexto, , no mnimo,curioso perceber que, mesmo em So Paulo sede dos quatro movimentos de articulao

    nacional27 que tm assento no Conselho Na-cional das Cidades, capacidade institucionalpara interferir nos rumos da poltica pela pro-ximidade e interlocuo com o governo fede-ral, responsveis diretos pelas formulaes e26Entre as entidades pesquisadas, h uma exceo, na qualos beneficirios tinham trajetria mais antiga, com partici-pao frequente em atos, manifestaes e ocupaes.27CONAM (Confederao Nacional de Associaes de Mo-radores), CMP (Central de Movimentos Populares), MNLM(Movimento Nacional de Luta pela Moradia) e UNMP(Unio Nacional por Moradia Popular)

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    reformulaes do programa , os empreendi-mentos, em mais da metade (12 entre os 23),tenham sido contratados por entidades queno possuem vnculo algum com os quatro

    grandes movimentos. Uma situao que podeser lida pelo vis republicano do acesso dequalquer associao ao programa (com origense prticas diversas na assistncia social, educa-o popular, melhorias urbanas e regularizaofundiria), desde que consiga superar os vriosobstculos. Mas esse elemento oferece novaspistas para uma despolitizao do problema damoradia e das possibilidades que o programa,em sua modalidade entidades, permite: a am-plitude do escopo dessas mesmas associaes

    e sua vinculao e (ou) desvinculao possvelcom a longa e difcil trajetria de luta urbana ehabitacional nas cidades brasileiras no mbitodas lutas pela reforma urbana e pelo direito cidade.28 Essas associaes externas acaba-ram se convertendo produo da moradia (nomais na perspectiva de melhorias, urbanizao,regularizao fundiria) a partir das oportuni-dades de negcio, ou de uma espcie de nichode mercado criado pelo programa, o que possi-bilita uma forte afinidade com os empreende-dorismos, inclusive os de natureza social.

    A obteno da casa se configura comoponto de chegada de uma trajetria vista e vi-vida como pessoal que resulta do esforo empermanecer e acreditar nas lideranas e gruposdas associaes. A conquista se reveste, assim,de um carter moral que premia a persistncia,a confiana nas lideranas e a f de queminha casa vai sair. A construo da deman-da pelas entidades tambm passa por tcnicas

    de produo de informaes e por estratgiasde cadastro que viabilizem o teto de renda,R$ 1600,00 por ms, o que, em So Paulo, sig-nifica pouco mais de dois salrios mnimos re-gionais. So essas estratgias que se somam a

    28 interessante notar o deslizamento da bela noo de Le-febvre no mbito de sua apropriao pelos movimentos queintegraram a luta pela reforma urbana ou a luta pelo direito moradia no Brasil. Essas apropriaes, com sentidos diversosdo original, acabaram por configurar a expresso direito cidade como uma espcie de categoria nativa, com signifi-cados prprios ao longo das ltimas dcadas no Brasil.

    tantas outras, num processo de transformaodos movimentos, entidades e associaes de-las resultantes em mquinas de produo decasas, em operadores do programa e em inter-

    medirios entre a Caixa Econmica Federal eos agenciamentos do mercado imobilirio ondequer que ainda seja possvel encontrar um ter-reno que satisfaa as exigncias desenhadas nombito do PMCMV Entidades. Essa operao, frequentemente, uma poderosa armadilha, etoda sorte de negcios imobilirios acaba porcompor uma frente que combina preos, aces-sos, contatos, em um contexto de forte valori-zao de terrenos nas regies metropolitanas.Alm de determinarem localizaes distantes

    de equipamentos, infraestrutura e servios ur-banos considerados como elementos de umacidade plenamente constituda, nas bordas dotecido urbano, de costas para a cidade, as ne-gociaes imobilirias para as quais o programaempurra as entidades resultam em procedimen-tos que esto nas dobras entre o lcito e o ilcito,entre as dimenses legais e ilegais praticadasnesse mesmo nicho do mercado imobilirio.

    Esses elementos, em um campo de for-as que guarda importantes afinidades comos processos de empresariamento social e as-sociativo, permitem que se entreveja que aproduo de moradia pelo programa tem umcarter paradigmtico no que se refere cons-truo e manuteno de pactos entre Estado,incorporadoras, grandes e pequenas constru-toras, por um lado, e, com um investimentoquase insignificante face ao conjunto da pro-duo, os movimentos sociais por moradia,que conformaram uma trajetria de luta desde

    pelo menos os anos oitenta. Essa mesma pro-duo que, afinal, acontece onde possvel,isto , nas piores localizaes , subsidiada porfundos pblicos, acaba por reforar, quandono agrava severamente, as linhas de segrega-o socioespacial. Casa de pobre para pobre,lugar de pobre para pobre. Mesmo quando foipossvel perceber uma melhora importantena qualidade de projeto e de execuo, isto ,quando houve intermediaes importantes do

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    movimento social organizado e de assessoriastcnicas e polticas experincias excepcionaise virtuosas, nos termos de Oliveira (2006) , asformas de segregao determinadas pelas regras

    do mercado de terras se mostraram soberanaspara no dizer incontornveis. Talvez esse re-sultado seja o elemento sobre o qual seja preci-so refletir, no cruzamento do universo dos direi-tos da casa e da cidade como direitos, e do queLautier chamou governo moral dos pobres,entre conquista e negcio, entre politizao etecnologias de acomodao e gesto da vida.

    Recebido para publicao em 06 de Agosto de 2014

    Aceito em 30 de setembro de 2014

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    SOCIAL POLICIES, MANAGEMENT ANDBUSINESS IN THE PRODUCTION OF CITIES: the

    programMinha Casa, Minha Vida- Entities

    Cibele Saliba Rizek

    Caio Santo AmoreCamila Moreno de Camargo

    This text presents the results of a research about theprogramMinha Casa, Minha Vida Entities, oneof the social housing policies launched in 2009, asto its part in the group of social welfare programsof the governments of Lula and Dilma Rousseff.These results from a research which is still goingon point to dilemmas, paradoxes, and dimensionswhich involve the demand, the operators, theproduction processes of the housing compounds,and the production and reproduction of inequalityand segregation in the city of So Paulo. Also, it

    points to the constitution of a field of agreementswhich permeates the relations between movementsfor housing and the State inside what can be called

    Lulismo.

    KEYWORDS: Housing policies. Housing movements.Social welfare. Outskirts.

    POLITIQUE SOCIALE, GESTION ET AFFAIRESDANS LA PRODUCTION DES VILLES: leprogramme ma maison, ma vie entits

    Cibele Saliba Rizek

    Caio Santo AmoreCamila Moreno de Camargo

    Ce texte prsente les rsultats dune recherche concer-nant le Programme Ma Maison Ma vie Entits,lune des politiques du logement inaugure en 2009dans le cadre de la constellation de programmessociaux des gouvernements de Lula et de DilmaRoussef. Les rsultats de cette recherche, toujours encours, indiquent des dilemmes, des paradoxes et desdimensions portant sur la demande, les oprateurs,les processus de production de lensemble deslogements, la production et la reproduction desformes dingalits et de sgrgation socio-spatiale

    dans la ville de So Paulo ainsi que la cration dunchamp de consensus qui imprgne les relations entreles mouvements pour le logement et ltat au sein dece que lon pourrait appeler le lulisme.

    MOTS-CLES: Politique du logement. Mouvements enfaveur de lhabitation. Politiques sociales. Banlieues.

    Cibele Saliba Rizek Doutora em Sociologia. Professora do Programa de Ps Graduao em Arquiteturae Urbanismo do IAU/ Universidade de So Paulo. Pesquisadora do Centro de Estudos dos Direitos daCidadania, tambm da Universidade de So Paulo. Tem experincia na rea de Sociologia, com nfaseem Outras Sociologias Especficas, atuando principalmente nos seguintes temas: cidades, reestruturaoprodutiva, habitao, espao pblico e cidadania. Publicaes recentes: A coragem da crtica radical.Revista Em Pauta, v. 11, p. 215-218, 2013; Etnografias urbanas. ReDObRa, v. 12, p. 19-25, 2013; Uma

    Homenagem a Robert Castel. Revista Latinoamericana de Estudios del Trabajo, v. 18, p. 299-310, 2013;Polticas sociais e polticas de cultura: territrios e privatizaes cruzadas. Revista Brasileira de EstudosUrbanos e Regionais, v. 15, p. 199, 2013.

    Caio Santo AmoreDoutor em Planejamento Urbano (2013) pela mesma instituio. Desde 2005 atuacomo professor universitrio, lecionando disciplinas de tecnologia aplicada, projeto arquitetnico eurbanismo e orientando Trabalhos Finais de Graduao (TFG). Em 2014 foi indicado em concurso parao cargo de Professor Doutor no Depto de Tecnologia da Arquitetura e do Urbanismo da FAUUSP. Desde1998, atua como arquiteto na ONG de assessoria tcnica Peabiru Trabalhos Comunitrios e Ambientais,com cargo atual de coordenador geral. Tem experincia na rea de Arquitetura e Urbanismo, com nfase

    em ensino superior e em projetos de arquitetura, planos e estudos urbansticos, coordenao de equipe,atuando sobretudo em temas ligados habitao de interesse social, reas de urbanizao precria eassessoria tcnica a movimentos sociais e populares

    Camila Moreno de CamargoArquiteta Urbanista pela Universidade Metodista de Piracicaba (2004),Mestre em Teoria e Histria de Arquietura e Urbanismo pela Universidade de So Paulo (2010),com pesquisa sob o ttulo: Habitao Coletiva Popular na rea Central de Campinas: tendncias ecaracterizao. Doutoranda junto ao Programa de Ps-Graduao do Instituto de Arquitetura e Urbanismo,Universidade de So Paulo, com pesquisa voltada para a produo habitacional autogestionria e areestruturao das prticas de consumo contemporneas no Brasil. Atua como docente do curso deArquitetura e Urbanismo da Associao de Escolas Reunidas - Rio Claro, e profissionalmente enfocandotemas como: Planejamento Urbano e Regional, Polticas Pblicas de Habitao de Interesse Social eMobilidade Urbana.