68
SAMIZDAT 27 www.evss.c abril 2010 ano III ficina Cães e Homens G. K. Chesterton analisa a relação entre

SAMIZDAT27

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 1/68

SAMIZDAT

27

www. ev s s .c

abril

2010

ano III

ficina

Cães e HomensG. K. Chesterton analisa a relação entre

Page 2: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 2/68

Edição, Capa e Diagramação:Henry Alfred Bugalho

Revisão GeralMaria de Fátima Romani

AutoresAna Cristina RodriguesCaio Rudá

Cirilo S. LemosGiselle Natsu SatoHenry Alfred Bugalho

Joaquim Bispo José Guilherme Vereza Jú BlasinaLeandro da SilvaLéo BorgesMarcia Szajnbok Maria de Fátima SantosMariana Valle

Maristela DevesPolyana de AlmeidaWellington Souza

Textos de:Emílio de MenesesG. K. Chesterton

Imagem da capa:http://www. ickr.com/photos/randysonofrobert/2144529026/sizes/l/

www.revistasamizdat.com

SAMIZDAT 27abril de 2010

Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedadaa Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.

Todas as imagens publicadas são de domínio público, royalty free ou sob licença Creative Commons.

Os textos publicados são de domínio público, com consenso ou autorização prévia dos autores, sob licença Creative Com- mons, ou se enquadram na doutrina de “fair use” da Lei de Copyright dos EUA (§107-112).

As idéias expressas são de inteira responsabilidade de seus autores. A aceitação da revisão proposta depende da vontade expressa dos colaboradores da revista.

E lA formação do cânone literário não é uma ciência exata.

Motivada por fatores políticos, culturais, acadêmicos e, porm, às vezes estéticos,A decisão coletiva entre qual escritor será lembrado, e

qual será esquecido é injusta, relega às sombras narradoresde povos dominados e exalta de dominadores, por vezes, aco-lhe o reacionário e reprime o revolucionário e, sem justi ca-tiva alguma, também realiza o caminho inverso.

Não há como prevermos quem, de nossa época, será lidopelos pósteros; nada garante que nossos grandes autores dehoje não acabarão abandonados em prateleiras empoeiradasde sebos. Não há garantias, não há certezas.

Os dois autores canônicos trazidos pela SAMIZDAT nestaedição, Emílio de Meneses e G. K. Chesterton, trazem emcomum a ironia de terem sido celebridades literárias em suasépocas, mas que gozam de pouco prestígio atualmente.

Um dos fãs mais importantes de Chesterton foi Jorge LuisBorges, mas nem as várias referências a ele feitas pelomaes- tro foram su cientes para retirar Chesterton das penumbrasda História.

Memória e esquecimento: estes são os motores da cânoneliterário.

Henry Alfred Bugalho

Page 3: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 3/68

SumárioPor quE Samizdat? 6

Henry Alfred Bugalho

autor Em LÍNGua PortuGuESaE íl e meneses, sá 8

miCroCoNtoSCaio Rudá de Oliveira 11

CoNtoSa Be 12

Ju Blasina

as c nções e p pel chê 14 Ana Cristina Rodrigues

S e 16Fátima Romani

Se B nc 18Henry Alfred Bugalho

C i 20Maria de Fátima Santos

C ii 21Maria de Fátima Santos

S plíc a e esc b e e é e 22Cirilo S. Lemos

o e g lh 26José Guilherme Vereza

a ep ls 28Léo Borges

F g en s: iii. o o al en 32Marcia Szajnbok

Page 4: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 4/68

Se p e há ve e... (P e 3) 34Maristela Scheuer Deves

Ínfmo Brilho 36Giselle Natsu Sato

traduÇÃoCães 38G. K. Chesterton

tEoria LitErÁriaEn g a ch n v 42

Leandro da Silva

CrÔNiCaa V ng nç e ze s 46Joaquim Bispo

apen s lhe 50Ju Blasina

N ss s f ls s necess es c n s 52Henry Alfred Bugalho

PoESia

Sobre mulheres e ores 54Caio Rudá de Oliveira

Bl v n s 56Ju Blasina

C nc s s 58Wellington Souza

P e s 59Mariana Valle

de e ç 60Polyana de Almeida

SoBrE oS autorES da Samizdat 62

Page 5: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 5/68

5ficina

www.ofcinaeditora.com

O lugar onde

a boa Literaturaé fabricada

hpwww

ckcomphoo32912172@N002959583359zeo

Page 6: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 6/68

6

incl sã e Excl sã

Nas relações humanas,sempre há uma dinâmica deinclusão e exclusão.

O grupo dominante, pelaprópria natureza restritivado poder, costuma excluir ouignorar tudo aquilo que nãopertença a seu projeto, ouque esteja contra seus prin-cípios.

Em regimes autoritários,esta exclusão é muito eviden-te, sob forma de perseguição,censura, exílio. Qualquer umque se interponha no cami-nho dos dirigentes é afastadoe ostracizado.

As razões disto são muitosimples de se compreender:o diferente, o dissidente éperigoso, pois apresentaalternativas, às vezes, muitomelhores do que o estabe-lecido. Por isto, é necessáriosuprimir, esconder, banir.

A União Soviética nãofoi muito diferente de de-mais regimes autocráticos.Origina-se como uma formade governo humanitária,igualitária, maslogo

se converte em uma ditadu-ra como qualquer outra. É amicrofísica do poder.

Em reação, aqueles quese acreditavam como livres-pensadores, que não que-riam, ou não conseguiam,fazer parte da máquinaadministrativa - que esti-pulava como deveria ser acultura, a informação, a vozdo povo -, encontraram naautopublicação clandestinaum meio de expressão.

Datilografando, mimeo-grafando, ou simplesmentemanuscrevendo, tais autoresrussos disseminavam suasidéias. E ao leitor era incum-bida a tarefa de continuar

esta cadeia, reproduzindo taisobras e também as passandoadiante. Este processo foidesignado "samizdat", quenada mais signi ca do que"autopublicado", em oposiçãoàs publicações o ciais doregime soviético.

P e S ?

“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,distribuo e posso ser preso por causa disto”

Vladimir Bukovsky

Henry Alfred [email protected]

Foto: exemplo de um samizdat. Corte- sia do Gulag Museum em Perm-36.

Page 7: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 7/68

7www.revistasamizdat.com 7www.revistasamizdat.com

E p e S ?

A indústria cultural - e omercado literário faz partedela - também realiza umprocesso de exclusão, base-ado no que se julga não ter

valor mercadológico. Inex-plicavelmente, estabeleceu-seque contos, poemas, autoresdesconhecidos não podemser comercializados, que não

vale a pena investir neles,pois os gastos seriam maio-res do que o lucro.

A indústria deseja o pro-duto pronto e com consumi-dores. Não basta qualidade,não basta competência; sehouver quem compre, mes-mo o lixo possui prioridadesna hora de ser absorvidopelo mercado.

E a autopublicação, comoem qualquer regime exclu-dente, torna-se a via paraprodutores culturais atingi-rem o público.

Este é um processo soli-tário e gradativo. O autorprecisa conquistar leitor aleitor. Não há grandes apa-ratos midiáticos - como TV,

revistas, jornais - onde elepossa divulgar seu trabalho.O único aspecto que conta éo prazer que a obra causa noleitor.

Enquanto que este é um

trabalho difícil, por outrolado, concede ao criador umaliberdade e uma autonomiatotal: ele é dono de sua pala-

vra, é o responsável pelo quediz, o culpado por seus erros,é quem recebe os louros porseus acertos.

E, com a internet, os au-tores possuem acesso diretoe imediato a seus leitores. A

repercussão do que escreve(quando há) surge em ques-tão de minutos.

A serem obrigados aburlar a indústria cultural,os autores conquistaram algoque jamais conseguiriam deoutro modo, o contato qua-se pessoal com os leitores,o diálogo capaz de tornar aobra melhor, a rede de conta-tos que, se não é tão in uen-te quanto a da grande mídia,faz do leitor um colaborador,um co-autor da obra que lê.Não há sucesso, não há gran-

des tiragens que substituamo prazer de ouvir o respal-do de leitores sinceros, quenão estão atrás de grandesautores populares, que nãoperseguem ansiosos os 10mais vendidos.

Os autores que compõemeste projeto não fazem partede nenhum movimentoliterário organizado, nãosão modernistas, pós- modernistas, vanguardistasou qualquer outra de niçãoque vise rotular e de nir aorientação dum grupo. Sãoapenas escritores interessadosem trocar experiências e

so sticarem suas escritas. Aqualidade deles não é umaorientação de estilo, mas sima heterogeneidade.

En m, “Samizdat” porque ainternet é um meio de auto-publicação, mas “Samizdat”porque também é um modode contornar um processode exclusão e de atingir oobjetivo fundamental da

escrita: ser lido por alguém.

SAMIZDAT é uma revista eletrônicamensal, escrita, editada e publicada pelosintegrantes da O cina de Escritores e TeoriaLiterária. Diariamente são incluídos novostextos de autores consagrados e de jovensescritores amadores, entusiastas e pro s-sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhasliterárias e muito mais.

www.revistasamizdat.com

Page 8: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 8/68

8 SAMIZDAT abril de 2010

E ílio de mene es,o sátiro

a e Líng P ges

h t t p : / / w w w .

i c k r . c o m / p h o t o s / s g m d i g i t a l / 2 4 2 3 6 3 2 9 4 5 / s i z e s / o /

Os textos a seguir foramtranscritos da seção "Colmeia" do jornal A Imprensa, onde o

autor mantinha periodicamen- te uma coluna literária.

Cartaz de ontem, à portade uma redação:

"O sr. senador... não com-parecerá hoje ao Senado."

Se começam a noticiartudo que não vai acontecer,

vão ter um noticiário supim-pa!

***Temos, graças a Deus! um

Instituto Poliartístico.Agora, só nos ca faltan-

do... a Arte.***

De um jornal da tarde de

ontem:"A história registra diaria-

mente fatos interessantes no

que diz respeito às crençasde cada um."Ahn! ... Palavra que não

sabia que a história zessesemelhante asneira.

***Isto é um país sui generis.

Está bem assentado que oanalfabetismo nos agela eque os que sabem ler não ofazem. Entretanto morre umhomem que nunca fez outracoisa senão vender livros edeixa ... uma fortuna de maisde sete mil contos. Palavraque não percebo!

***A nossa inefável polícia:Há um con ito. Dão-se

tiros de revólver- Chegam osrepórteres.

— Que houve aqui?— Nada. Uns tirozinhos

à-toa...— Mas vocês prenderam?— Sim, decerto. Prendemos

este revólver.***

Impressão de rua.O pobre petiz, no largo

do Paço, vende uma drogaqualquer para tirar nódoas;comprime-o um largo cír-culo de basbaques. "Se as

nódoas não saírem, devolve-se a importância!" cameloteiao pequeno.

Mas eis que surge umguarda municipal; o vende-dor não tem licença e o de-fensor dos interesses do scoleva-o ao primeiro posto aexplicar-se.

Bobo de camelo! que tão

Page 9: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 9/68

9www.revistasamizdat.com

mal roubas o sco! Por quediabo não te fazes contraban-dista de sedas, jóias e elefan-tes? Ganharias muito mais enão te levariam preso!

***

Trecho de um discursopatriótico, ontem pronun-ciado por uma professorasuburbana:

- A nossa bandeira é verde-amarela!

Nós temos dever de amarela!

***Filoso a moderna.

- O homem prático devetratar de conseguir o máxi-mo com o esforço mínimo... Olha, eu ando sem dinheiroe...

- Basta, já despendeste vinte palavras; toma lá cincotostões; é o máximo.

***- Por que é que se chama

de ano bom o ano que secomeça?

- Porque se tem a impres-são de que ele não poderáser igual ao que se acabou.

***Algumas das principais

profecias do Múcio, queserão brevemente publica-das no Almanaque do BarãoErgonte a sair à luz:

- O ano de 1912 terá 365dias, repartidos em quatrotrimestres de três meses cadaum.

- Haverá neste ano diver-sos fatos de grande impor-tância, outros de importânciamenor; a maior parte não

valerá nada.- O ano será fértil em

desastres de automóveis edescarrilamentos na Central.

- Morrerá neste ano umcidadão de avançada idade,muito estimado por seusamigos e a quem todos osseus netos chamam de vovô,exceto um, que ainda nãosabe falar.

- Haverá diversas reclama-ções sobre a falta d'água esobre o aumento das contasdo gás.

- Os telegramas da Euro-pa referir-se-ão amiudadas

vezes à questão do Orientee à polícia imperialista daAlemanha.

- Morrerão na Europatrês pessoas importantes queestiveram vivas durante esteano inteiro.

- Fará intenso frio na ilhade Spitzberg e o calor noSahara será insuportável no

verão.- O Brasil continuará à

beira de um abismo.

- Haverá diversas reformasem diversas repartições dediversos ministérios.

- O ano terminará impre-terìvelmente a 31 de dezem-bro.

***Está fazendo sucesso

na Europa o novo sistemapedagógico da dra. Montes-sori, que permite às criançasaprenderem a escrever antesde saber ler.

Olhem a grande novidade!Nós conhecemos no jornalis-mo muita gente que nuncaaprendeu a ler e que escreveque é uma beleza!

***Diz um telegrama de Nova

Iorque: reina frio intensíssi-

mo; em Chicago o termôme-tro registrou 32 e 40 grausabaixo de zero.

Há certos telegramas cujapublicação deve ser proibidapela Saúde Pública o citado,por exemplo. Lendo-o numdia de calor como o de on-tem, pode acontecer a qual-quer cidadão o que sucedeucomigo: dei trinta espirros econstipei-me por quinze dias.

***Foi preso ontem como ga-

tuno, um pobre-diabo encon-trado na caixa-d'água de umacasa de família.

Indagando o guarda que oprendeu o que fazia ele ali,nada respondeu o supostogatuno.

E fez bem: tal indagaçãoera simplesmente idiota; com36 graus à sombra não sepergunta a um homem oque faz numa caixa-d'água;refresca-se, naturalmente:

***

A questão do carnavalpreocupa atualmente todosos espíritos; o carnaval seráou não adiado?

O Brasil, tem-se dito erepetido: é um país essencial-mente carnavalesco; de formaque muitos cidadãos preca-

vidos já resolveram retirar-separa o interior, receosos deuma revolução.

Já se fala de uma organi-zação de ligas pró-Momo,pró-Zé Pereira, etc.

fonte: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/BT5529002.html

Page 10: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 10/68

10 SAMIZDAT abril de 2010

Emílio de Meneses

Era lho de Emílio Nunes Correia de Meneses e deMaria Emília Correia de Meneses, único homemdentre oito irmãs. Seu pai era também um poeta.

Faz seus estudos iniciais com João Batista Brandão Proença, e depois no Instituto Paranaense. Sem ser de família abastada, trabalha na farmácia de um

cunhado e, ainda com dezoito anos, muda-se parao Rio de Janeiro, deixando em Curitiba a marca deuma conduta já distoante ao formalismo vigente: nasroupas, no falar e nos costumes.

Boêmio, na capital do país encontra solo fértil paradestilar sua fértil imaginação, satírica como poucos.

A amizade com intelectuais, entretanto, fez com quetivesse seu nome afastado do grupo inicial que funda -ra a Academia. Torna-se jornalista e, por intercessãodo escritor Nestor Vítor, trabalha com o Comendador Coruja, afamado educador. Em 1888 casa-se comuma lha deste, Maria Carlota Coruja, em 1888, comquem tem no ano seguinte seu lho, Plauto Sebastião.

Mas Emílio não estava fadado para a vida domésti -ca: neste mesmo ano separa-se da esposa, mantendoum romance com Rafaelina de Barros.

Autor de versos mordazes, eivados de críticas dasquais não escapavam os políticos da época, mestredos sonetos, Emílio de Meneses é portador de umatradição - iniciada com o Brasil, em Gregório deMatos.

Tendo sido nomeado para o recenseamento, como Escriturário do Departamento da Inspetoria Geral

de Terras e Colonização, em 1890, Emílio aposta naespeculação da falácia econõmica do Encilhamento,criada pelo Ministro da Fazenda Ruy Barbosa: comomuitos, fez rápida fortuna, esbanja e, terminada a

farsa, como todos os outros investidores, vai à falên -

cia. Não muda, entretanto, seus hábitos. Continuao mesmo boêmio de sempre, a povoar os jornais daépoca com suas percucientes anedotas.

Apesar de preterido pelo silogeu nacional, Emílioveio nalmente a ser eleito (15 de agosto de 1914)

segundo ocupante da cadeira 20, cujo patrono é Joaquim Manuel de Macedo, e na qual jamais veio atomar assento, falecendo em 1918. Seria saudado por

Luís Murat.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Em%C3%ADlio_ de_Meneses

ficinawww.ofcinaeditora.com

O lugar onde

a boa Literaturaé fabricada

h t t p : / / w w w . i c k r . c o m

/ p h o t o s / h i d d e n_ t r e a s u r e / 2 4 7 4 1 6 3 2 2 0 / s i z e s / l /

Page 11: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 11/68

11www.revistasamizdat.com

m c c n s

Caio Rudá de Oliveira

mini lis o insólito

S

A gravidez era psicológi-ca, mas nasceram dois gurissaudáveis.

h t t p : / / w w w .

i c k r . c o m / p h o t o s / e r i n_ r y a n / 2 7 1 8 8 8 5 8 0 8 / s i z e s / o /

Necroflia

O corpo jazia. Os libidi-nosos saprófagos comiam-nodespudoradamente.

G s n pl c iV

A vingança não seria maisum prato comido frio. Assa-ria seu inimigo.

Page 12: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 12/68

12 SAMIZDAT abril de 2010

Ju Blasinaa Be t

h t t p : / / w w w .

i c k r . c o m / p h o t o s / p a r a y e r / 4 3 1 1 9 3 9 3 6 / s i z e s / o /

C n s

Page 13: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 13/68

13www.revistasamizdat.com

Beth aparentava a típicabeata: os cabelos longos, jásem corte, geralmente guar-dados em trança, tocavam-lhe as coxas cobertas porsaias que terminavam juntoaos joelhos, sempre marca-dos pelas tantas horas emdevoção. Usava camisas lar-gas, na tentativa frustradade esconder os seios far-tos. Sempre abotoava até aúltima casa, sempre rezavaaté a última conta. O terçode madrepérola que carre-ga no pulso e o cruci xodo pescoço eram as únicas

jóias que exibia com orgu-lho. Percebendo isso, rezavapara afastar tal sentimentoegoísta.

Rezava também paraatrair a aprovação dos céus,para perdoar aqueles quelhe caçoavam, para casti-gar os que blasfemavam,para acordar e para dormir.Rezava para tudo! Antes decada refeição, antes de cadarelação — rezava muitopara satisfazer ao marido,tão exigente. E tendo as pre-ces atendidas, rezava aindamais depois.

Era a primeira a chegarà igreja e a última a sair.Não se misturava as outrasbeatas que lhe invejavam aolhos nus, tamanho cabelo,tamanho fervor, tamanhadisciplina, e secretamente,tamanha beleza, tamanhacasa, tamanho marido.

Ao avistá-la adentrando aigreja, o padre sempre fugiatemendo o pedido de outracon ssão. Tão temente eraela... Não omitia um deta-lha sequer de seus pecados.Contava ao padre tudo, em

seus mínimos detalhes. Epecava, a noite toda, todaa noite... As demais beatas,na tentativa de proteger opadre daquela monopolistareligiosa, faziam la à portado confessionário. Mas Bethera abençoada pelo dom dapaciência e não esmorecia

jamais!Só o padre sabia o por-

quê de tanta oração, doscabelos tão longos e bemcuidados, do corpo tão es-condido nas roupas com-portadas. O padre e o belomarido sadomasoquista. Oúltimo gostava de puxar-lhe os cabelos enquanto apenetrava. O primeiro nãoconfessava, mas gostava deimaginar a cena. O sexo

violento, que tanto agradavaa ambos, tinha seu preçonas marcas deixadas nocorpo e na alma da beata.Sorte que, para os pecadoshavia as orações, e para oshematomas, pomada. A rezaera a pomada de sua almae o padre, o doutor que aprescrevia. E todo dia elaprecisa de uma nova dose.

Não falhava uma missasequer, para desespero dopadre, desgosto das outrasbeatas e principalmente,satisfação do marido — oque para ela, era tudo oque importava. Que Beth, abeata, era uma boa esposa,disso nem Deus discordava.

Já se era tão boa enquantobeata, depois de tantas con-

ssões, até o padre tinha lásuas dúvidas...

Nova Yorkpara Mãos-de-VAca

G U I A Henry Alfred Bugalho

O Guia do Viajante Inteligente

www.maosdevaca.com

Page 14: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 14/68

14 SAMIZDAT abril de 2010

As canções de papel machê Ana Cristina Rodrigues

C n s

14 SAMIZDAT abril de 2010

Page 15: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 15/68

15www.revistasamizdat.com

Eu consegui minha pri-meira guitarra no verão de1969. Para isso passei umano inteiro guardando o di-nheiro ganho ajudando meupai na mercearia. Empacoteimilhares de dúzias de ovos,ensaquei compras para todasas senhoras de perfume enjo-ativo da vizinhança, esfregueio chão até ele car brilhan-do. E valeu a pena.

A primeira semana de fé-rias, passei trancado no meuquarto. Eu e a guitarra. To-quei até meus dedos sangra-rem e criarem calos. Quandoachei que dava para enganar,dei o passo seguinte: criaruma banda. Eu na guitarra,

João, meu melhor amigo,no baixo e a irmã dele nabateria. Judite era mais velha,mas apoiou o projeto desdeo início.

Só faltava uma voz. Pre-cisávamos de alguém paracantar, e Dite trouxe Claricepara minha vida. Desde aprimeira vez que a vi, noprimeiro ensaio sério denossa banda, seu olhos docesno rosto calmo e o sorriso

sereno caram marcados naminha memória.Ali começara a carreira

efêmera do “Papel Machê”,nome sugerido pela própriaClarice. Sabia que não dura-ríamos muito, mesmo assimforam os melhores dias deminha vida. Os bailinhosde sábado do quarteirãoeram animados por nóscom versões dos grandessucessos da época. A voz deClarice adoçava tudo, e viver valia a pena. Toda a tarde,tocávamos na sorveteria dobairro. Nosso pagamento eraa banana split especial, quepodia ser dividida com folgapelos quatro. E vez por outra,uma festa não renumeradade algum amigo.

Claro, algumas confusõesaconteceram. Na festa deaniversário da minha prima,

um amigo dela fez um convi-te para a nossa baterista.Ele não sabia que Mario, onamorado gigantesco da Dite,também estava presente. Abriga generalizou-se, Joãoquebrou o nariz e Judite trêsunhas, mas os instrumentosnão sofreram nada.

No m do verão, demosnosso último show. Dite iriacasar-se e depois da confu-são, Mario havia se tornadocontrário à participação delana banda. João e eu, ambosfazendo dezoito anos, ia-mos prestar serviço militar.Depois do nal do baile,nos despedimos, prometen-do uma reunião da bandaem breve. Os dois irmãosforam para casa, enquantoeu acompanhei Clarice, quemorava mais perto de mim.Os sentimentos entaladosna garganta, por meses a o,pareciam sentir o m daestação. Queriam irromper,aproveitar os últimos dias decalor, antes que tudo termi-nasse.

Não consegui. Andávamoslado a lado, como zéramos

tantas vezes naquele verão.Discutimos sobre tudo o quenão era importante. Lembra-mos os shows, as confusões,as brigas de João e Dite porqualquer bobagem...

Paramos em frente à casadela e continuamos a conver-sa, encostados no Porshe damãe de Clarice.

Ela tava as estrelas, quepareciam reluzir no seuolhar Evitava virar o rostopara mim enquanto falava.De repente, após um súbitosilêncio, ela suspirou e olhoupara mim.

- Sabe porque eu sugeri onome “Papel Maché”?

- Eu nem sei o que é...- É uma forma de artesa-

nato. Pedacinhos de papelamassados e colados... Sozi-

nha, cada parte é lixo, mas juntas fazem lindos objetos.Como nós...

- A banda?- Sim, eu queria que esse

verão não acabasse nunca... Abanda, cantar... A companhiade vocês. Principalmente asua, Paulo. Você foi impor-tante demais para mim.

O coração bateu, descom-passado. Era agora.

- Clarice, eu...- Meu pai foi transferido

para outro estado. Mudamos-nos em uma semana. Passeio verão inteiro querendo nãopensar nisso, em tudo o que

vou perder. E vocês consegui-ram, mesmo que agora eu váperder ainda mais coisas doque antes...

Beijou-me de leve na bocae foi em direção à casa. Eu

quei ali, parado, olhando elase afastar, o coração apertadocom tudo o que eu não dissee nunca ia dizer.

Assim terminou o verãode 1969. Cresci, casei, tive

lhos e enviuvei. Em cima da

mesa do meu escritório, asfotos da minha família. Emum canto especial, um porta-retrato de papel maché, comuma foto dos quatro inte-grantes do conjunto, tiradaantes da última reunião pelopai dos dois irmãos... Juditeme enviara alguns anos de-pois. Ela atrás, abraçada com

João, os dois fazendo careta.No primeiro plano, Claricee eu, rindo. Nunca mais vinenhum deles.

Penso que aquele verãopoderia ter durado para sem-pre. Foram os melhores diasda minha vida, os do verãode 1969.

Page 16: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 16/68

16 SAMIZDAT abril de 2010

SaudadeFátima Romani

C n s

Page 17: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 17/68

17www.revistasamizdat.com

Acordou em uma camade hospital, sem entenderdireito ainda o que haviaacontecido. Só se lembravada derrapagem, da chuva,da dor quando fora jogadapara fora do carro, quebran-do as costelas e mais nada.Onde estavam os outros?Ela estava a sós naquelequarto. Desespero, solidão...

Estava muito longe decasa, era uma viagem deférias, estavam a caminhode uma praia distante, umacampamento, gostavamtanto disso, principalmenteCarlinhos, que levava tudona brincadeira. Seu lho,um menino lindo de dezanos que amava a naturezae aventuras.

E Paulo? Sempre fora umbom motorista e a veloci-dade nem estava tão alta,mas a estrada mal cuidadae a chuva forte e inesperadanão lhe haviam dado chan-ce de escapar da derrapa-gem.

Olhou para si mesma,as costelas enfaixadas, porcausa da fratura, com certe-za. Ainda sentia dores, masparecia que estava tudo nolugar. Apertou a campainhaao lado cama, precisava ur-gentemente de informações,alguém que lhe dissesseonde estavam seu marido eseu lho. Depois de algunsminutos transformados emhoras pela ansiedade e pelaincerteza, uma enfermeiraentrou, nalmente.

“Por favor, onde estãomeu marido e meu lho?”

“Calma, senhora, preci-so do nome e do telefone

de alguém que possa virbuscá-la.”

“Depois... Porque não mediz logo? Estão em estadograve?”

“Infelizmente, só vai po-der saber depois que o mé-dico que a atendeu chegar.”

Quando o médico, umortopedista, chegou, não

veio só, estavam com eleuma assistente social e umpsiquiatra. A notícia eramais séria do que ela pen-sava. Em primeiro lugar lhederam um tranquilizanteforte, depois, foram lhe con-tando todos os detalhes.

O carro tinha capotado,rolado pelo barranco, cadocompletamente destruído,Paulo e Carlinhos presosnas ferragens, ela só escapa-ra por ter sido jogada parafora. Estar dopada salvou-ade novo, o choque não amatou ali mesmo, naque-le momento, ao saber danotícia.

Teria que voltar à suacasa, rever tudo, não pode-ria abandonar tudo o queseu marido e ela haviamconstruido juntos, desdenamorados. Agora, não esta-

va mais inteira, haviam-lhearrancado, de repente, aspartes mais importantes desua vida. Como na cançãode Chico Buarque:

Oh pedaço de mimOh metade arrancada de

mimLeva o teu olhar Que a saudade é o pior

tormento É pior do que o esqueci-

mento É pior do que se entrevar...Ela e Paulo sempre

tinham sido como duasmetades, é muito difícilencontrar alguém como ele,alguém com quem se en-contra paz, só de olhar, olhono olho, coração pra cora-ção. E Carlinhos, tambémseu lho tinha ido embora.Uma mãe não foi feita paraperder um lho. O contrá-rio sempre acontece, é alei natural, os mais velhos

vão primeiro. Enterrar umlho é enterrar um pedaço

da gente, que foi tirada dedentro da gente, cresceu ali,nove meses, e depois ain-da continua ligada a nós...Outro trecho da mesmacanção:

Que a saudade é o revés de um parto

A saudade é arrumar o quarto

Do flho que já morreu...Eles foram embora e ela

cou...Não poderia segui-losagora, tinha muito ain-da que viver, pessoas quepoderiam precisar dela.Precisaria retrabalhar esseluto, transformá-lo em algoque lhe permitisse viver.Lembrou-se de uma fraseque lera um dia:

“Saudade é o amor queca.” Ela cara, o imensoamor pelos dois cara, jun-to com a saudade.

Page 18: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 18/68

18 SAMIZDAT abril de 2010

Exausto, larguei armas echapéu e meti a cara no rio.Caminhava há dias, apóshaver sido destacado paraas fronteiras do Norte. OImperador Qinzong temiaos revoltosos que se proli-feravam na região e concla-mara guerreiros de todos osrincões do mundo.

Ouvi som de auta e mepus em alerta, espalhava-se o rumor de que bandosde ladrões e assassinos seescondiam na oresta, masavistei um senhor, cabelos

agrisalhados, descendo emdireção ao rio.

Saudei-o e recebi aresposta de que vinha empaz. O viajante se sentouao meu lado e acendeuuma fogueira. Anoitecia ecompartilhamos um jantarimprovisado.

Decorridas horas de si-lêncio, o senhor falou:

Estou cansado, vivi mui-tas di culdades nestesúltimos meses e não encon-tro pouso em lugar algum.

Já ouviu algo a respeito do“Homem de Branco”?

Neguei.O nome de nascimento

dele era Bai Hong-nu, -

lho duma família humilde,educado para ser soldado,assim como vejo que vocêé. Lutou em muitas guerrase caiu nas graças do Im-perador. Foi promovido ageneral, senhor de muitosguerreiros, e venceu todasas batalhas na quais pe-lejou. Porém, numa noite,quando o Imperador aden-

Seda Branca

Henry Alfred Bugalho

C n s

h t t p : / / w w w . j a p a n e s e p r i n t s - l o n d o n . c o m / i m a g e s / H P I M 0 6 2 3 . j p g

Page 19: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 19/68

19www.revistasamizdat.com

trou o alojamento da con-cubina favorita, encontrouHong-nu adormecido nosbraços dela.

Enfurecido, o Imperadorconclamou a guarda, com

ordens para executar Hong-nu, porém, este, com expe-riência de anos a serviço doImperador, conhecia bem ocastelo e suas incontáveispassagens secretas; neste la-birinto, Hong-nu se embre-nhou e escapou da sanhainclemente do Imperador.Fugiu para o Norte e apa-gou seu passado. Vestia-seapenas de branco, na ausên-cia dum nome, nos povoa-dos onde passava, alcunha-ram-no Wán, o homem daseda branca.

Wán olvidou seu passadode guerra e, de vila em vila,evitando as grandes cida-des, pregava uma inusitadamensagem de paz e perdão.Arrebanhou discípulos, queouviam fervorosamenteseus ensinamentos. E eramtantos, que fundaram umpovoado.

Pessoas vinham de todasas partes para escutarem aslições de Wán e sua reputa-ção alcançou o grande Céu.Guerreiros baixavam armase se uniam aos acólitos deWán, esposas abandonavamseus lares para acompanha-rem o sábio.

Porém, sutil e impercep-tivelmente, o conteúdo dadoutrina de Wán começoua mudar. Da paz, abnegaçãoe perdão incondicionais,Wán instruía que para tudoneste mundo há exceção, deque não há claridade semsombras, e que o mal e a

guerra eram contrapartesdo bem e da paz. Aos seusdiscípulos, propagava queo tempo de paz estava porterminar e que, em breve,quem o amava teria debrandir armas contra umpoderoso oponente.

Assim, no início da pri-mavera, Wán e um exércitode cem mil combatentesse dirigiram ao Sul, com amissão de matar e destro-nar o Imperador Qinzong.Wán era um dissimulado,durante todo este período,ele apenas buscava umaoportunidade para se vin-gar do Imperador que odegradou e lhe retirou amulher amada, à qual, di-ziam, Qinzong havia man-dado decapitar.

Inevitavelmente, o Impe-rador designou tropas paradeter o exército de Wán.Durante três meses, Wándesbaratou o contingenteimperial, porém, a escassezde suprimentos, o cansaçoe as chuvas incessantes do

verão foram responsáveispelos primeiros revezes. Re-cuaram para as montanhas.

Vendo a grande oportu-nidade para derrotar o opo-nente, o Imperador enviouum grande exército, quecercou Wán e seus guerrei-ros. Emboscados nas monta-nhas, o m era evidente.

O exército de Wán tinhaduas escolhas, lutar até amorte e os que fossem cap-turados sofreriam torturase ultrajes inimagináveis, oudesistirem e privarem-se desuas próprias vidas.

Wán deliberou com seuscapitães e concluíram que,

por ser a morte inadiável,todos se matariam ao nas-cer do sol.

Quando os tamboresdo Imperador soaram e astropas iniciaram a marcha

rumo ao bastião de Wán,trinta mil revoltosos, pu-nhais mirados para o cora-ção, sangraram até a morte.

As tropas imperiais nãoencontraram sobreviventealgum.

E você estava entre ossoldados do imperador, parasaber tudo isto? Perguntei.

O senhor acendeu umcigarro e, com um sorrisoiluminado pela claridade dafogueira, respondeu.

Não. Estive com o pu-nhal a ado no peito, mas,no último instante, re eti:Somos muitos, não conse-guiremos escapar, mas umsó homem facilmente seenvereda nas montanhas esome.

Sou Bai Hong-nu, conhe-cido como Wán, o homemda seda branca. O punhalnão entrou no meu coração.Vivo e congrego um novoexército. E você será meuprimeiro guerreiro.

Com que forças eu pode-ria resistir àquele homem,

que trazia no olhar a ener-gia do Céu, da Terra, doFogo e dos Ventos?

A minha espada é sua,Wán. Respondi. Até a mor-te.

Page 20: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 20/68

20 SAMIZDAT abril de 2010

Maria de Fátima Santos

C n s

Minha querida Matilde

Escrevo-te de um lugar de guerraUm lugar sem nomeEscrevo-te num dia da semana entre dois

domingos – será hoje dia santo?!E nem sei se é Janeiro, ou se será Dezem-

bro, ou um outro mês que que de per-meio

Mas o ano em que escrevo, esse, sei: milnovecentos e sessenta e oito

Eu já z vinte anos e tu farás dezoito.Matilde bem amadaConsolação da minha alma triste. Can-

ção que me cantam os anjos quando andode arma em punho a catar sei lá eu bemque inimigo.

Tão calmos que eram os teus abraços.Neles me aninho em sonhos doces, comodoce é o teu regaço onde irei deitar-metodos os dias que me restarem depois destedegredo.

No teu colo macio é onde durmo quan-do tenho a bênção de um recolhimento. Erevivo-te.

Meu querubim, minha alfazema, meutesouro ignoto de preciosas pedras. Minhaabelha rainha, imensamente nua daquelepano.

Tu a unires as sobrancelhas, a franzir osteus olhos mais verdes do que os muitos

verdes por onde me caminho.Tu a dizer-me: a capulana, deixa estar,

Tiago, que ela há-de soltar-se.

E rias-te, desengonçavas o teu corpo mui-to virgem para rires do meu desassossego,das minhas mãos tremendo por não sabe-rem como desatar os nós dos teus vestidos,não terem o mister de retirar os panoscom que tapavas os segredos do teu corpo.

Naquela tarde, a tua capulana estavaatada com um nó corrido. Quando o nó sedesfez, assim num por acaso, surgiu o teucorpo livre de mais atavios. Sublime.

Tu, minha Matilde, a mostrares-te nua, eeu de olhos piscos como se os entonteces-sem luzes de meio-dia em Agosto.

Ai Matilde, minha doce Matilde, que na-quela tarde cheiravas a sargaço e a limos.Ou seria de estarmos na maré vaza e ocheiro vinha dos caranguejos que por alise passeavam, e das lapas, curiosas, a solta-rem-se das rochas?

Seria o cheiro que tu tinhas, ou seria amaresia, minha doce amante, minha queri-da?

Mas que importa saber a que cheiravas,se eu sei que o teu perfume é o dos líriosno altar de todas as Nossas Senhoras quehá por esse mundo?!

Minha adorada Matilde!Deste lugar de sangue e ódio, deste localtão longe, envio-te mãos cheias, cordões emais cordões de letras a dizerem: Amo-te.Que a palavra se repita, que reverbere delao ar dos locais onde respires.

Este que será teu para toda a eternidadeTiago

a carta I

20 SAMIZDAT abril de 2010

Page 21: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 21/68

21www.revistasamizdat.com

h t t p : / / w w w . i c k r . c o m

/ p h o t o s / p h o t o s h o p r o a d m a p / 3 3 6 9 3 5 8 6 6 2 / s i z e s / l /

Meu querido António

É madrugada e eu levantei-me zonza desono. Acordei com o lençol gelado. A camatão fria na zona onde devias deitar-te. E éhoje, que estamos no Inverno, e chove, e tematé nevado. Mas foi assim tal e qual no pinodo Agosto.

Tenho a mantilha preta sobre os ombros etirito. Vou ligar o aquecimento. Agora estoumelhor. Mas este frio é outro.

Este frio não se acomoda com as molé-culas subindo moles pelas paredes da salaonde te escrevo. Este meu frio não vem doar circundante que dança numa roda de arquente. Este frio não me arrefece as solas dospés que estão morninhas metidos nas pantu-fas que me deste num Natal passado.

O frio que me tolhe, não impede que osdedos das minhas mãos escrevam cada letra:eu a querer dizer-te, simplesmente, amo-te,morro de saudades, e eles a inventarem pala-

vras soltas, a dizerem do frio que me enrege-la a alma desde há tantas noites.

Não lhes perdi o conto.Aponto-as, uma após a outra, tal como as

manhãs e as tardes.Com giz da cor do fogo, faço um traço

em cruz como me ensinaste, numa folha decalendário que pendurei na parede. Aquelaparede branca da cozinha.

Um dia olhaste para ela de cima abaixo, epediste, mais ou menos com estas palavras,e os teus olhos luziam com a luz que lhesera de costume, aquela que me alumia hojeapenas de recordá-la:

Não pendures nada neste muro.Nada que não seja, um dia que aconteça,

um calendário em que, um de nós, o destinosabe qual da gente há-de aí escrever, um diaa seguir ao outro, o tempo de falta para nosreencontrarmos, seja no céu ou no espaço,em forma de anjos ou em partículas liberta-das de cada um dos nossos átomos.

Foi assim que disseste, e agora deu-se: foi

no Natal passado que deixaste de ser o Antó-nio a entrar, risonho ou rabugento, as botasenlameadas a pisarem cada bocado de tapete.

Serás anjo ou pedaço desintegrado, amo-tedemais para car chorando.

Estas cartas de amor, como lhes chamo,fazem abater em mim o frio de que padeço, e

volto para a cama certa de que um dia destestenha resposta tua no correio.

Maria Angélica

Maria de Fátima Santos

a carta II

21www.revistasamizdat.com

Page 22: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 22/68

22 SAMIZDAT abril de 2010

Cirilo S. Lemos

C n s

Simplício Aroeiradescobre o que é a Morte

h t t p : / / w w w . i c k r . c o m

/ p h o t o s / k e v i n k e m m e r e r / 3 7 7 9 5 6 9 4 4 0 / s i z e s / l /

22 SAMIZDAT abril de 2010

Page 23: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 23/68

23www.revistasamizdat.com

O nó precisa ter sete voltas e correr sem im-pedimento quando eu meatirar ribanceira abaixo. Aalvorada é boa hora paramorrer. Quando a passara-da começa a algazarra e asabelhas voam e os besou-ros zumbem e as ores seabrem. Alegria besta, essado bosque, de esfregar naminha cara que tudo vaicontinuar igual quando eume for.

Escolho uma mangueiramorta para pendurar olaço. Que nada vivo divi-da comigo o crédito pelaminha morte.

O morro não é muitoalto: arredondado, cortadopor um barranco onde

vagabundo despeja carcaçade carro, lixo e, descon o,corpo de gente. Encosta-

dinha na borda, a árvoremorta, cuspindo raiz paraalém do barro seco. Atrásde nós, a estrada de terrade onde vim.

A forca me espera, masnão posso deixar de es-piar os urubus trocandoolhares, sussurrando rapi-nagens de urubus. Estãofalando de mim, aguardan-do ansiosos para saborearmeu cadáver.

Isso vai ser um proble-ma.

Bebo um grande goleda garrafa de cachaça quecarrego dentro do paletó.

Meu cadáver é para apo-drecer na terra, alimentaras ervas que crescem emtufos por entre os carroscalcinados, adubar esse pe-dacinho da mãe terra. Nãopra engordar urubu. Nãopra virar bosta de urubu.Se eu quisesse ser bosta,bastaria continuar vivo.

Mais um gole de cacha-ça, que é pra compensar otempo perdido.

Esse sou eu: velho, po-bre, bêbado, quase um

mendigo. O que foi queconstruí nessa vida? Deque me valeram todosaqueles livros lidos, todasaquelas besteiras escritas,toda aquela abstinênciade álcool? O tesouro queacumulei é esta barbadesgrenhada e cinza a semisturar com o cabelo, é

essa bengala, é esse cache-col imenso pendurado nopescoço nem sei pra quê.

Dá trabalho subir nosgalhos secos da mangueira,mas eu consigo. Passo onó corrediço no pescoço eo ajusto com cuidado. Nãohá para que ter pressa:suicídio é arte, um teatrocujos atos devem ser exe-cutados bem devagar. Háque se degustar cada sen-sação, o toque do vento edo sol e da corda na pele,saborear a textura de cadauma, o doce e o amargona saliva, o medo de vivere a angústia de morrer.

Morrer é, sim, uma experi-ência da vida. Pois vamoslá.

Equilibro-me no galho,a corda no pescoço. Daquiposso ver a serra azuladacontornando o horizonte,ondulando feito o álcoolno meu sangue. Estufo opeito, recito versos de umpoeta morto e pulo.

A traquéia quebra, maso que me impressionamais é o estalo do galhose partindo logo acima de

mim. Rolo pela ribancei-ra como um pneu velho,um turbilhão de trapose cabelos quicando naspedras e raízes. A poeirame entra nos olhos, boca,ouvidos, nariz, em cadaporo e cada orifício, en-quanto eu penso: isso nãoacaba nunca?

Mas acaba. Deitado emmeio ao lixo, aos cacos de

vidro, aos dejetos e todasorte de sujeira, eu vejoque acaba. Ossos que-brados, cortes profundose sangue vazando pelaboca, um gosto enjoativode ferrugem e cachaça. Opescoço parece não existirmais. Só resta a sensaçãonem boa nem ruim de umcompleto vazio onde deve-ria estar o corpo.

A visão agora é umquadro desfocado e imutá-

vel: uma parede de lixo aolado esquerdo, uma árvoreressequida coalhada de

23www.revistasamizdat.com

Page 24: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 24/68

24 SAMIZDAT abril de 2010

urubus assustados e umcéu de chumbo brotandodo chão e preenchendotodo o fundo. Algumacoisa está muito errada.O céu não deveria sair dochão nem o lixo formaruma parede vertical. Issosó se explicaria se eu esti-

vesse deitado com o ladoesquerdo no solo. Achoque é isso, então. Nãodá para saber ao certo, a

visão vai e volta e eu nãoconsigo perceber nenhumoutro sentido funcionando.Olfato, paladar, audição,nada disso é acessívelagora.

Quanto tempo se pas-sou desde que saltei dobarranco?

Agora que não passode uma cabeça confusapresa a um corpo evanes-cente, o tempo se desfeznum único e interminávelagora. No nal das contas,morrer não é exatamen-te como eu imaginei. Amesma monotonia de estar

vivo, mas não se pode cha-tear ninguém com recla-mações.

Sonho: uma ruiva gri-tando comigo na porta deum bar, nós dois bêbadoso su ciente para discu-tir nossa vida sexual empúblico. Ela não é minhamulher, não tenho idéia dequem possa ter sido.

Um avião passa fazendosombra no meu rosto.

Não posso ouvi-lo, ape-nas preencher com a ima-ginação seus movimentosmudos.

É outro devaneio, penso.Mas vejo que não: é um

lagarto gigantesco acimade minha cabeça.

Não, nem lagarto, nemavião. Consigo distinguir obico nojento, a pele sar-nenta debaixo das penasescuras e fedorentas. Seuolho a me observar talqual um planeta imensopairando nas alturas. Emalgum lugar abaixo dopescoço, meu corpo deveestar tendo calafrios depavor.

A primeira bicada ar-ranca-me o lábio superior.

Posso senti-lo descarnado,deixando à mostra partedas gengivas roxas e dosdentes. O urubu ergue acabeça para engolir a car-ne. O movimento de suagarganta empurrando meulábio para seu estômago éengraçado. Dou-me contade que nunca vi um bicho

desses tão de perto. Eleabre suas asas e arrancamais um naco da minhaboca, esculpindo-me umsorriso perpétuo. Maisurubus se aproximam, osbicos escancarados. Quan-do um deles estoura meuolho, é como uma explo-

são de luz e fogos verme-lhos por todo o universo.Então só resta escuridão eum banquete.

Três sonhos a me ocu-par nessa letargia monó-tona.

Uma moça da minha juventude, que se abaixagraciosa para apreciarum desenho feito a giz nacalçada, os cabelos de umcastanho escuro que reful-ge um brilho prateado. Elasorri para mim depois defalar de alguém queridoque sofrera morte fortuita.Um sorriso de pura tris-teza, e ainda assim o maisbelo que eu já vi.

Um livro de Nietzs-che me cuspindo na caraque Cristo era um idiota,assombrando-me compalavras hereges e sujas,até ser usado por minhatia para alimentar uma pe-quena fogueira nos fundosdo quintal.

A visita a uma casa derepouso próxima à Cen-tral do Brasil. Por foraa beleza da arquitetura,

por dentro os corredoresde cerâmica ensebada,abarrotado de espectroshumanos revolvendo-sena própria sujeira. Umacelebração ao que somoslá no fundo.

Imagino, abrigado den-tro da treva profunda, que

Page 25: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 25/68

25www.revistasamizdat.com

não tenho mais rosto, sóuma massa pútrida de res-tos de carne e ossos escu-recidos. Nesta eternidadeque estou aqui – um diaou mil anos – muito re e-ti sobre o que é a morte.E cheguei à conclusão deque é como uma la debanco, só que bichos car-niceiros fazem coisas comseu cadáver. Isso é a mor-te. Nada de harpa, nada detridente. Apenas um longoe tedioso aguardar.

Algo mordisca a bordada minha consciência.

Um intruso em meu vazio?

“Quem está aí?”A resposta vem na

forma de um serpentarna base do pensamento.Assusto-me: algo se ali-menta da única coisa queainda cou de mim.

Um novo serpentearme agita a mente. Seja oque for, parece procurarpor algo. Reconheço asensação de mordida. Pelaprimeira vez desde queme matei, sinto algo se-melhante a dor. Vem em

ondas, irradiadas a partirdo ponto onde o invasorse conecta comigo atravésdo abocanhar agudo.

Posso ouvir sua voz,tocar seus sentimentosdoentes e a partir dissodelinear sua forma: um

verme. Formado por cente-

nas de outros vermes.“Podemos nos alimen-

tar de você, querido?”, elesibila, uma forma de cobrahorrenda, translúcida,leitosa.

Minha mente estreme-ce e se encolhe. O vermeavança e devora outropedaço dela. De mim. Eleri do meu desespero, sabo-reando lembranças minhasda infância, sonhos, emo-ções. Outra mordida e láse vai a imagem da moça

graciosa de cabelos casta-nhos, o sorriso inesquecí- vel transformando-se numsuco adocicado a escorrerpela boca arreganhada do

verme.Bocado por bocado, ele

vai comendo tudo o quefui. Contorce o corpo deprazer a cada mordida. Eume torno cada vez menor,até que tudo o que restade mim, de todas as coisasque fui e de cada aspectoque assumi, é o medo daúltima mordida.

E quando ela vem, atémesmo o medo se dissipa.Nem o verme me assus-

ta mais. Agora eu e elesomos um, e juntos ras-tejamos de volta para asprofundezas do nada.

Um detetive...Uma loira gostosa...

Um assassinato...

E o pau comendo entreas máfas italiana echinesa.

O COvildo

inOCentes

www.c v l s n cen es.bl gsp .c

d o w n l o a d g r á t i s

Page 26: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 26/68

26 SAMIZDAT abril de 2010

José Guilherme Vereza

o e g lh

h t t p : / / w w w . i c

k r . c o m / p h o t o s / s y y m z a / 3 9 5 2 4 2 9 5 7 1 / s i z e s / l /

C n s

Que coragem que nada.Bastou Maria Neuza ouvirdizer da maior atração donovo parque de diversõesda cidade, um bungee jumpde 130 metros de altura,para despertar sua inquietacuriosidade pelo desconhe-cido. Decidiu pelo mer-gulho e pronto, ninguémprecisou saber disso.

Foi num dia comum,logo que o parque abriusuas portas, entre dez eonze da manhã.Olhou alonjura do topo da torre até

doer o pescoço. Fez sinalda cruz, pegou o elevador -uma gaiola que subia ran-gendo e deixando a cidadeem miniatura. Lá em cima,deixou-se amarrar. E nempestanejou.

A primeira sensação foio vento cortando o rosto,criando rugas e pregas comsobras de pele. Os olhosforam obrigados pela ob-

viedade da física a carembem fechados,o que im-pedia qualquer espiadelapara ver o que estava acon-

tecendo em volta. Tentoumovimentar pernas e bra-ços, mas percebeu que nãotinha controle sobre nada.Era um cruci xo estático

voando de cabeça para bai-xo. En m, o nada.

Os ares de uma liberda-de jamais provada forambatendo no seu corpo, numa

velocidade fria e vertical.Veio também a certezaplena e incontestável de quenão podia deixar escapar aúnica chance na vida de sesentir dona absoluta de si

Page 27: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 27/68

27www.revistasamizdat.com

mesma.E Maria Neuza viajou.Primeiro foi à Europa,

onde se entupiu de vinho,museus e perfumes. Depois,à África negra, quando assavanas e as hienas pare-ciam jardins e bichinhosde estimação. Achou chato.Partiu logo depois para aOceania, aportou em HongKong, deslumbrou-se comos néons de Tóquio, foi di-reto para Nova York, ondeencheu sacolas e o sacode tanto passar cartão decrédito.

Cansou.Preferiu sensações maisintimistas. Como por exem-plo, a felicidade secreta deser reconhecida, rica, famo-sa, respeitada. Experimentoutambém o aconchego deuma família amorosa, coma completude de um raromarido, lhos, empregadade forno e fogão,faxineira,

passadeira, carro do anona garagem e cachorro quenão faz cocô no tapete. Dos

lhos, deu pra ver bem assuas caras. Eram lindos,sadios e inteligentes. Osprimeiros já eram adultosformados pela vida e pelamelhor das universidades. Acaçulinha, uma coisa lindae espevitada, olhos azuis epele dourada preferiu ou-tras trilhas: foi nalista no

Big Brother e acabou posan-do nua na Playboy. Que sedanem os vizinhos. Naque-les instantes intermináveis e

vertiginosos,Maria Neuza era senhora

absoluta das suas opiniões,caprichos e desejos,e emnome deles mergulhou maisainda.

Comeu pato assadocom carambola, strogonoff de salsichão,bebeu vinhobranco com picanha, cus-piu arroz trufado e pediudoce de abóbora de sobre-mesa.Mostrou a língua promaitre metido a besta earrotou.

Gostosos momentos.Resolveu variar os sabo-

res. Da mesa do restaurantegran no, saiu à cata dosmeninos que não namorounos tempos da escola e,mesmo podendo encon-trar todos, preferiu um só,exatamente aquele de quem

nunca tinha recebido aomenos um picolé.E foi fundo. Urrou de

gozar por todos os poros.Revisitou seus âmagos omais que pode, tantas vezesquis.

Enjoou do rapaz, ascosúbito. Pegou outro, maisoutro e mais outro, tantosque en leiravam-se aosseus pés. Recebeu oresde cada um deles, a cada

dia seguinte. Experimentouo Kama Sutra em praias,poltronas de primeiraclasse de avião,últimas lasde cinemas, caçambas deroda gigante, bancos defusquinha. E ainda inventounovas formas de amar e seramada.

Quando se sentiu reali-zada e feliz, fez uma forçaimensa para abrir os olhos,enfrentando o vento quecastigava as bochechas, lhecomprimia os peitos, e eter-nizava um sorriso sincero erestaurador. Precisava espiarsó um pouquinho o que defato e de real se passava emsua volta.

Dos sonhos, restavamapenas alguns centímetros.

Nem teve tempo de sen-tir saudade.

Foi puxada subitamen-te para cima pelo feixe deelásticos e nylon, preso aospés e à cintura. E como um

iô-iô perdendo a sua força,lembrou que tinha esque-cido a panela de feijão nofogo.

Talvez queimasse o almo-ço.

Talvez apanhasse domarido.

Page 28: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 28/68

28 SAMIZDAT abril de 2010

C n s

Léo Borges

a ep ls

h t t p : / / w w w . i c k

r . c o m / p h o t o s / b o b y d i m i t r o v / 2 9 6 1 8 0 5 1 9 8 / s i z e s / o /

Page 29: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 29/68

29www.revistasamizdat.com

Ana, nas aulas de dese-nho, sofria com a humi-lhação dos coleguinhas.Diziam que a menina sósabia encher os papéis comcontornos esquisitos, linhasperdidas que pareciam pos-suir signi cado apenas paraela. Naquele dia, entretanto,enxergaram algo em seustraços.

Só que o que viram nãofoi um jardim orido ounuvens escondendo o sol,paisagens que, normalmente,habitam o imaginário infan-til. E apesar de Ana garantirque seu desenho era umfofo bebê, ele foi entendidopelas outras crianças comoo mais asqueroso dos inse-tos: “Ela desenhou uma ba-rata!”, enojaram-se. Algumaschegaram mesmo a vomitare a menina foi admoesta-da por um dos instrutores:“não desenhe mais esse tipode coisa!”. A forma que oamontoado de riscos tomou

teria sido apenas repulsivase o transtorno que passou acausar não fosse tão pertur-bador. Mas, mesmo assim,Ana não se livrou de suaestranha arte, guardando-acomo a mãe que protege o

lho aleijado das injúrias emaldades.

De início, se entristeceuprofundamente com a oje-

riza criada. Percebeu, con-tudo, que se viram sentidono desenho, pelo menos foicompreendida. O importan-te para ela era conquistar aatenção através das linhas e,por isso, mesmo com um re-sultado tido como medonho,o inverso do que pretendia,

cou alegre.Para melhor defender

sua criação, re etiu sobre omedo que as pessoas tinhampor baratas e não enxergoufundamento nesse temor. Seelas transmitiam doençasé porque andavam sobre olixo e excrementos que ospróprios humanos produ-ziam. Não era incomumAna se deparar com estespequenos artrópodes nosarmários da cozinha, pelosralos, sob o fogão e até mis-turados ao enxoval do ir-mão que ainda não nascera.E a impressão que tinha, emqualquer dessas situações,era sempre a mesma: bichos

inocentes, fugidios, com-panheiros do lar, criaturasdivinas que, inadvertidamen-te, se expunham, prontaspara serem esmagadas. Oproblema, como cava claropara a garota, não eramos insetos, mas as pessoas,cujo pânico nada mais eraque um sinal inequívoco defraqueza.

Ana, naquela noite, resol- veu escrever em seu diário oocorrido na escola e men-cionou que omitira o fato desua mãe. Na rápida conversaque mantiveram no jantar,Fergônia estranhou o sorrisoque não deixava a lha. Nãoa via assim desde que com-prara as canetas para colo-rir. Na ocasião, pediu paraque Ana desenhasse em seupróprio ventre, no sexto mêsde gestação, um rosto sor-ridente em homenagem aobebê – o varão que os fami-liares tanto queriam. “Dese-nhe direito, Ana, é um sermuito precioso o que estáaí”. A menina, que passavaa repudiar a ideia de terum irmão tanto quanto o

fato de não saber desenhar,tratou os rabiscos com umaraiva incontida, apertando aponta da caneta na barrigada mãe numa ingênua tenta-tiva de ferir o nascituro, emgestos que, se não fossemtão infantis, seriam realmen-te macabros.

O que alimentava seu ci-úme era o amor despropor-cional que todos tinham poraquele feto, um endeusamen-to desmedido que cresciadia a dia, transformando-se numa adoração tal queacabava por manter Ananum estado permanente deinsigni cância. “Está me ma-chucando, Ana”. “Estou meesforçando, mãe! Quero queele nasça parecido com meudesenho!”. O castigo de Anapor esse episódio não che-gou a ser tão longo quan-to o que recebera quandoencharcou com inseticida oberço do bebê vindouro. Enem tão ruim, pois, tranca-

da no quarto, ela teve tempopara treinar seus rabiscosnos papéis que encontroupela frente.

Fergônia considerava araiva de Ana uma coisabesta e torcia para que seubom senso a orasse e a

lha pudesse, en m, feste- jar também a chegada domenino. Ana pensava pouco

nisso, queria apenas contarsobre sua conquista artística,mas este assunto não eraimportante; secundário, tor-nava-se proibido para que oapetite da mãe na mesa de

jantar não fosse incomoda-do. Fergônia possuía pavormortal de baratas, de modoque amores como o que porora a oravam, certamente,

Page 30: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 30/68

30 SAMIZDAT abril de 2010

teriam um impacto arrasa-dor no convívio familiar.

“Desenhei um bebê, masminhas amigas enxergaramuma barata. Fizeram cara denojo, como minha mãe tam-bém já fez. Sentem repulsade meus trabalhos. Eu detes-to as pessoas, seres cruéis enojentos. Seria bom se todosfossem como os insetos, que

vivem sem arrogância. Se oque criei foi feio, que tenhasido apenas para os outros.O bebê de minha mãe, aocontrário, não é horrívelpara ninguém, só pra mim”.

Ana, enquanto escrevia,percebeu o pequeno vultona sua casinha de bonecas.As compridas e nas an-tenas oscilantes não dei-xavam dúvidas: era umabarata! Sem ser apenas maisuma entre as inúmeras queexistiam pelos cômodos,esta parecia mais íntima eprovava isso, andando livredo comportamento ariscoque caracteriza a espécie.O coraçãozinho da meninapulsou forte pela alegriado encontro. A barata, cujasombra aumentava à medidaque se contrapunha à luzdo abajur, transitava commansidão entre as canetasde colorir. Já a menina, quecurtia o farfalhar típico, de-sejou que sua mãe também

viesse apreciar a casinhade plástico servindo comopalco para o des le de tãorejeitado ser.

Estacionada perto de umdos brinquedos, a barata, desúbito, se espremeu e entroupela roupinha de uma bone-ca sem braço, inchando-a ecausando-lhe a impressão deestar gestante. Ana lembrou-

se imediatamente da imensabarriga da mãe e do que omédico falara: “não se colo-que em situações de grandeimpacto emocional”. Veraquela cena foi uma coisaque lhe encheu de prazer,porém, chamar a mãe paracompartilhar do seu deleitepoderia ser de uma nefas-ta imprudência. Ou talveznão. Quem sabe não seriaesta a grande oportunidadepara Fergônia se reconciliarcom a verdadeira humilda-de, aquela que só os bichosrepulsivos possuem?

– Mãe!O espetáculo fez a meni-

na imaginar a mãe parin-do uma barata gigantesca:primeiro as indefectíveisantenas aparecendo pela va-gina, logo a robusta carcaçaáspera e, por m, as longase inquietas patas emergindocom suas inúmeras micros-serras a adas. O obstetra,primeira testemunha do ex-traordinário acontecimento,usaria de ácida frieza paracomunicar o nascimento dacriatura: “é bastante saudá-

vel, dona Fergônia...”, diria,com o horror escapando-lhesob a forma de suor, contro-lado apenas pelo interessesombrio que certos eventoscausam, “esta não veio peloesgoto, veio mesmo por seu

útero...”.Ao se desgrudar do ventre sintético, a baratacontinuou com o passeioerrante, monitorada peloolhar maravilhado de Ana.Passou por cima do desenhoque seria seu espelho, atéencontrar restos de biscoi-tos. Feliz, Ana rastejou-se

vagarosamente para perto.

Espichou uma das mãos e,com singeleza, alcançou oinseto, que cou estático. Ocarinho, embora socialmentegrotesco, era sinceramenteafetuoso. Mas, um súbitoe aterrorizante grito pôs

m àquela aliança. Com violentas contrações, Fergô-nia – que surgira após serchamada pela lha – caíatonta, entrando em trabalhode parto.

Os vizinhos, assustadoscom o que ouviram, arrom-baram a porta e foram pres-tar auxílio. A indiferença deAna diante da cena só foimenos perturbadora que aaparência inumana daquelebebê, cuja pele possuía umarepugnante textura.

– Nasceu prematuro – foia explicação inventada poruma perplexa socorrista aoter em mãos a massa amar-ronzada que emitia os pri-meiros grunhidos de choro.

Levaram mãe e lhospara o hospital. Com osolhos esbugalhados, uma dasmulheres, acuada no cantoda sala, não saiu do lugar– possivelmente paralisadapelo medo de acompanharaquilo a que chamavam decriança. Para que sua pre-sença ali fosse de algumaforma útil, limpou o quartoàs pressas. Esqueceu-se ape-nas de certo papel largadono chão. Nele, listras malfei-tas lembravam uma barata,mas as lágrimas e o sangueda placenta que o man-chavam, destruíam a sua jápouca clareza.

Page 31: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 31/68

31ficina

www.ofcinaeditora.com

O lugar onde

a boa Literaturaé fabricada

hpwww

ckcomphoo32912172@N002959583359zeo

Page 32: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 32/68

32 SAMIZDAT abril de 2010

C n s

Marcia Szajnbok

F g en s:iii. o al en

http://www. ickr.com/photos/goodmami/249171435/sizes/l/

Page 33: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 33/68

33www.revistasamizdat.com

O importante é picartudo bem picadinho.Os tomates em cubos,as abobrinhas emcubos, os pimentões,as berinjelas, tudo emperfeitos e simétricoscubos. Seria bom ver omundo sempre assim,a vida posta em sime-trias bem medidas. Afaca é rápida nas mãostreinadas e os cubos

se amontoam lindos ecoloridos sobre a tábua.Como seria fazer-seem cubos? Cortar-seem pequenos pedaços,a começar pelos pés?Os dedos fatiados um aum, como em máquina

de cortar frios. As per-nas, as cobiçadas per-nas, cortadas em tiras,músculos des ados emmeio ao sangue escuroe grosso. Picando oslegumes, pensava nocorpo. Via-se ali des-pedaçada, reduzida aosátomos, despida do serque já não aguentavacarregar. A faca a adanão hesitaria nas vísce-ras moles, empapadas.Nesse ponto, nada desimetrias ou capri-

chos: cortes rápidos,pura ira dilacerandoos interiores. As berin-

jelas, é preciso que seponham na água paranão carem escureci-das. Depois, os peitossem leite. E o rosto.O rosto transformadonuma tela de Picasso,mas sem olhos. Doisfuros, dois vazios emseu lugar. No m, o que

restaria? Os ossos. Umacarcaça. Uma cela decalcáreo, uma concha.Era uma vez um mo-lusco que fez de contaque era uma mulher,mas nunca soube comosair de sua concha. O

molusco morre, a con-cha permanece. Nãoestá mais lá, o molusco.Só o invólucro. A me-nina na praia apanha aconcha, leva-a consigo,cuida do pedaço decálcio morto como selá houvesse vida. Ah,como é fácil enganar omundo! É simples fazer-se de vivo quando vida

já não há. Devem rir-semuito, os espíritos dosmoluscos, tão livresagora, tão livres. Livres

da concha e das mãossujas da menina inde-licada. Livres. O azeitebom vai na panela.

Junte o alho. Esprema aberijela num guardana-po branco e limpo. Porúltimo, pique as cebo-las. Benditas as cebolase bendito quem inven-tou de picá-las. Elascedem. As camadas sedesmancham ao con-

tato do metal da faca ea água vem, brota emondas, encharca.A portaabre-se sem cerimônia:“’tá chorando, mãe?”.Não, lho, não. São ascebolas, só as cebolas...

Fragmentos é umasérie de textos curtos, em

geral de parágrafo único,que descrevem uma situ- ação da realidade e seus ecos no mundo interno dos personagens, como se, num documentário da vida real, uma voz de fundo narrasse o que se passa no íntimo dos atores-autores, que aliás

poderiam ser qualquer um de nós...

Page 34: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 34/68

34 SAMIZDAT abril de 2010

C n s

Maristela Scheuer Deves

Se p e há ve e....

(P e 3)

h t t p : / / w w w . i c

k r . c o m / p h o t o s / p a p a z i m o u r i s / 2 9 2 0 1 6 5 9 2 0 / s i z e s / l /

34 SAMIZDAT abril de 2010

Page 35: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 35/68

35

Passei o resto da ma-nhã vomitando. Gripe,com certeza, insistiuminha mãe, mas nãoconseguiu fazer com queeu tomasse mais chá. Eununca fora muito fã dealho, mas naquele diaele decididamente meembrulhava o estômago.Na verdade, era pior: asimples visão do chá mefazia suar ainda mais, aomesmo tempo em quesentia o frio se apossandodo meu corpo.

Achei melhor voltarpara a cama, até porquea claridade do sol pare-cia ferir meus olhos. Acabeça doía com a luz,e eu só queria o escurodo meu quarto, com as

janelas fechadas e a ca-beça sob as cobertas. Omal estar continuou o diatodo, e não quis sequeralmoçar. À noite, minhamãe conseguiu me con-

vencer a sair da cama,prometendo fazer o queeu quisesse para jantar.

— Bife, um bom bifemal passado — pedi,surpreendendo-me assimque as palavras deixarama minha boca. Eu, quenunca comia nada queestivesse de nitivamentetorrado, querendo carnemal passada? No entanto,

o simples pensamento dobife escorrendo sangueme fazia salivar.

A situação se repetiunos dias seguintes: euacordava e, embora nãotivesse febre (ao contrá-rio, minha temperaturaparecia estar até mes-mo mais baixa do que onormal), cava mal assimque botava os pés parafora do quarto. Só con-seguia comer carnes mal

passadas e me recusavaterminantemente a ir aomédico — não por medo,mas porque sair ao solme deixava quase cega dedor.

O pior, no entanto,eram os sonhos. Oupesadelos, talvez eu devadizer. Neles, eu andavanas ruas, no meio da noi-te, escondendo-me furti-

vamente nas sombras. Erauma caçada, mas dessa

vez eu não era eu a caça:eu era a caçadora. E que-ria sangue.

(continua no próximomês...)

h t t p : / / g u i s a l l a . l e s . w o r d p r e s s . c o m / 2 0 0 8 / 0 9 / m a c h a d o 1 . j p g

ficina

h t t p : / / w w w . i

c k r . c o m / p h o t o s / o o o c h a / 2 6 3 0 3 6 0 4 9 2 / s i z e s / l /

www.ofcinaeditora.org

O lugar onde

a boa Literaturaé fabricada

35

Page 36: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 36/68

36 SAMIZDAT abril de 2010

C n s

Giselle Sato

Ínfmo brilho

Page 37: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 37/68

37www.revistasamizdat.com

Ela observava as ondas, deixando queas marolas lambessem seus pés descal-ços, ignorando a areia grossa, maresiae gosto de sal. A barra da saia negraacumulando fragmentos de conchas epedrinhas, formando um rastro atrásde si.

Seguia a solidão e só havia o vento ea água gelada. Mar revolto, vento forte,o céu não tomou suas dores e exibiuo por do sol mais bonito. Sentiu-seafrontada e apontou o dedo acusador:-Sem compaixão ou misericórdia, mila-gres ou acalanto. Vazio! Nada mais tem

sentido...O sol em um suspiro tímido, deixou

escapar um níssimo raio, um toquesutil, leve demais...

Percebendo o ín mo brilho, aceitouo sinal e estendeu a mão cuidadosa.Sentiu o calor, a mágoa e o rancor en-fraquecidos, aquietaram-se. Então com-

preendeu, pela primeira vez, em tantose tantos anos.

E o som do seu coração, encheu osares...Vida!

A mulher guardou o o de esperan-ça no peito, e em segundos a escuridãoabraçou seu mundo de saudades.

http://www. ickr.com/photos/robertpaulyoung/2770018939/sizes/l/

Page 38: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 38/68

38 SAMIZDAT abril de 2010

t çã

CãesG. K. Chestertontrad.: Henry Alfred Bugalho

38 SAMIZDAT abril de 2010

Page 39: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 39/68

39www.revistasamizdat.com

m

Cínicos geralmente falamdos decepcionantes efeitosda experiência, mas, graçasa uma, descobri que quasetodas as coisas não malignassão melhores na experiên-cia do que na teoria. Pegue,

por exemplo, a inovação queintroduzi tardiamente emminha vida doméstica; elaé uma inovação com qua-tro patas na forma de umTerrier Escocês. Sempre meimaginei como um amantede todos os animais, porquenunca encontrei qualqueranimal que de nitivamenteme desagradasse. A maioriadas pessoas traça o limi-te em algum lugar. LordeRoberts não gostava de gatos;a melhor mulher que conhe-ço tem objeções a aranhas;um teoso sta que conheçoprotege, mas detesta, ratos; emuitos importantes huma-nitários tem uma objeção aseres humanos.

Se o cão é amado, ele éamado como um cão; nãocomo um compatriota, oucomo um ídolo, como um

mascote, ou como um pro-duto da evolução. A partirdo momento em que você éresponsável por um estimadoanimal, naquele momen-to abre-se um abismo tão

vasto quanto o mundo entrecrueldade e a coerção neces-sária de animais. Há algumaspessoas que falam daquiloque chamam de “puniçãocorporal”, e classi cam sobeste título a tortura medonhain igida a cidadãos desafor-tunados em nossas prisões efábricas, e também ao pe-teleco que alguém dá a ummenino travesso, ou à chico-tada num terrier intolerável.Você até pode inventar umaexpressão chamada “concus-são recíproca” e deixá-la paraentender que você inclui sobeste título beijar, chutar, a

colisão de barcos no mar, oabraço de jovens alemães eo encontro de cometas noespaço.

Este é o segundo valormoral da coisa; a partir domomento em que você tem

um animal sob seus cuida-dos, logo você descobre oque é de fato crueldade paraos animais, e o que é ape-nas gentileza. Por exemplo,algumas pessoas chamaram-me de inconsistente por serum anti-vivisseccionista e,mesmo assim, apoiar espor-tes comuns. E apenas possodizer que eu até me imagi-no dando um tiro em meucachorro, mas que eu não meimagino vivisseccionando-o.Mas há algo mais profun-do no assunto do que tudoisto, mas já é tarde da noite,e tanto o cão quanto eu esta-mos sonolentos demais parainterpretá-lo. Ele está deitadodiante de mim, aconchegadodiante do fogo, assim comomuitos cachorros devem terse deitado diante de muitosfogos. Eu estou sentado aolado da lareira, assim comomuitos homens devem ter sesentado ao lado de várias la-reiras. De algum modo, estacriatura completou a mi-nha humanidade; de algummodo, não consigo explicar oporquê, um homem precisater um cachorro. Um homemprecisa ter seis pernas; aque-las outras quatro patas sãopartes dele. Nossa aliança émais antiga do que as passa-geiras e pedantes explicaçõesque são oferecidas sobre nósdois; antes de haver evolução,existíamos nós. Você podeencontrar escrito num livroque eu sou mero sobreviven-te de um embate de macacosantropóides; e talvez eu seja.Estou certo que não tenhoobjeção. Mas meu cão sabeque sou um homem, e você

não encontrará o signi ca-do desta palavra escrita emqualquer livro tão claramentequanto está escrita em minhaalma.

Pode estar escrito em umlivro que meu cachorro é

um canino; e disto pode-sededuzir que ele deveria caçarcom uma matilha, pois todosos caninos caçam com umamatilha. Portanto, pode-se ar-gumentar (neste livro) que, seeu tenho um Terrier Escocês,eu preciso ter vinte e cincoTerriers Escoceses. Mas meucão sabe que eu não lhe peçopara caçar com uma matilha;ele sabe que eu não dou amínima se ele é um caninoou não, enquanto ele for meucachorro. Este é o segredoreal do assunto que evolucio-nistas super ciais parecemnão captar. Se a históriaconhecida for a prova, a civi-lização é muito mais antigaque a selvageria da evolu-ção. O cão civilizado é maisantigo que o cão selvagem daciência. O homem civilizadoé muito mais primitivo queo homem da ciência. Sen-timos em nossos ossos quesomos primordiais, e que as

visões da biologia são excên-tricas e efêmeras. Os livrosnão importam; a noite estáchegando e está escuro de-mais para ler livros. Contraa luz da lareira que se apaga,obscuramente pode-se traçaros contornos do homem pré-histórico e do cão.

(Este ensaio foi extraídode um artigo do Daily News,mais tarde reunido como“On Keeping a Dog” em Lu-nacy and Letters).

http://www.cse.dmu.ac.uk/~mward/gkc/books/dogs.html

Page 40: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 40/68

40 SAMIZDAT abril de 201040 SAMIZDAT abril de 2010

Page 41: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 41/68

41www.revistasamizdat.com

Gilbert Keith Chesterton, co -nhecido como G. K. Chester -ton, (Londres, 29 de maio de1874 — Beacons eld, 14 de

junho de 1936) foi um escritor, poeta, narrador, ensaísta, jor-nalista, historiador, biógrafo,teólogo, lósofo, desenhista econferencista britânico.

Era o segundo de três irmãos. Filho de Edward Chestertone de Marie Louise Grosjean.Casou-se com Frances Blogg.Concluiu os estudos secundá -rios no colégio de São Paulo

Hammersmith onde rece -beu prêmio literário por um

poema sobre São Francisco Xavier. Ingressa na escola dearte Slade School de Londres(1893) onde inicia a carrei -ra de pintura que vai depoisabandonar para se dedicar ao

jornalismo e à literatura. Es -creveu no Daily News. Nasci -do de família anglicana, maistarde converteu-se ao catoli -cismo em 1922 por in uência

do escritor católico Hilaire Belloc, com quem desde 1900manteve uma amizade muito

próxima.

Ao falecer deixou todos os seus bens para a Igreja Ca-tólica. A sua obra foi reunidaem quase quarenta volumescontendo os mais variadostemas sob os mais variados

gêneros. O Papa Pio XI foi grande admirador de Chester -ton a quem conhecera pesso -almente.

Na sua introdução a “SãoTomás de Aquino” deixouescrito:

“Assim como se pode conside -rar São Francisco o protótipodos aspectos romanescos eemotivos da vida, assim SantoTomás é o protótipo do seuaspecto racional, razão por que, em muitos aspectos, estesdois santos se completam. Umdos paradoxos da história é que cada geração é converti -da pelo santo que se encontramais em contradição com ela.

E, assim como São Francisco se dirigia ao século XIX pro- saico, assim São Tomás temmensagem especial que dirigir à nossa geração um tantoinclinada a descrer do valor

da razão.”

Em uma de suas principaisobras, “Ortodoxia”, defendeos valores cristãos contra oschamados valores moder -nos, a saber, o cienti cismoreducionista e determinista.

Dono de uma retórica exem - plar, coloca em debate críticoidéias como as de Mark Twain

e Nietzsche.

http://www.platypusinnovation.com/static/eif/image/chesterton.jpg

Page 42: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 42/68

42 SAMIZDAT abril de 2010

te L e á

Leandro da Silva

En g a ch n v

S b e el çã en e e l g c p l s , l e e e ó ,s b e s f n en ções h s ó c -c l s p s e s h n sc ncens s g .

Ao se lembrar de fatose personagens, totalmenteesquecidos e que originarampercepções, temáticas e rea-lidades, a sensação é estar àsós, como cou o protagonis-ta do assunto deste artigo.

Liberdade de expressão,descentralização da culturae literatura livre, pautas quepassam por através dos tem-pos, e que têm como referên-

cia o que se aconteceu nosanos stalinistas da União So-

viética, e a luta propriamenteclandestina. Em um Estadoque tentava controlar a tudoe massi car ao máximo acultura, as pessoas para satis-fazer suas necessidades cultu-rais tinham como instrumen-to o chamado Samizdat, umaauto-publicação em baixatiragem e artesanal, passa-

da de mãos-em-mãos. Sejauma publicação estritamentepolítica, ou político-cultural,ou um simples poema. Assimos povos da União Soviética

viam como uma das alter-nativas tal instrumento, quefez parte dos embates com amegaestrutura stalinista.

Um homem simples, umoperário russo que passoupor todos os processos políti-

Page 43: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 43/68

43www.revistasamizdat.com

co-sociais anteriores, durante,e após a Revolução Russa,se não é um dos principaisagentes que zeram possí-

veis um confronto com todoum Estado, e principalmentea fé de que é possível sem-pre expressar-se mesmo nascondições mais opressoras.Nem se tem uma “tradução”precisa de seu nome para oportuguês, próximo à Archi-nov ou Arshinov, por intei-ro: Piotr Andrievich MarinArchinov.

Poucas fontes para es-crever um artigo sobre suarelação com a liberdade deexpressão e produção literá-ria. A maioria das fontes hu-manas foram “desaparecidas”ou assassinadas bem comoas fontes bibliográ cas foramqueimadas ou “recicladas”.No entanto, pode-se dizer oque é o cial para o EstadoRusso atual ou o que é reco-nhecido a partir dos pouquís-simos registros, um persona-gem histórico nascido numa

aldeia russa, que ao entrarem contato com os primei-ros grupos bolcheviques nacategoria ferroviária, tornou-se militante, e após algunsconfrontos com o sistematzarista, ao sofrer a repressãoteve contato com anarquistas,e assim abandonou o marxis-mo. Participou de várias gre-

ves e confrontos, organizouos anarquistas russos, virouuma referência, foi persegui-do publicamente pelo Estado.Condenado à morte, fugiu daprisão, se exilou na França,depois retornou, continuousuas atividades, o Estado ocapturou de novo, tudo issonos primeiros anos do séculoXX. Preso, na capital russa,conheceu Nestor Makhno,outro anarquista, e lá cou

enclausurado até eclodir aRevolução de 1º de Marçode 1917, e ser libertado juntoà Makhno e os principaisinimigos do Estado e sistematzarista.

Retornou com Makhnopara a terra dele, a Ucrânia,onde a Revolução tambémestava acontecendo, sobretu-do no campo, onde Makhnoera como a um herói dospovos camponeses. Dali, uni-ram as vilas e formaram umExército Insurrecional pró-prio a nado ideologicamentecom a ideologia anarquistaporém, aberto a todos oscamponeses que queriamlutar pelos direitos maisnobres, principalmente pelareforma agrária e autogestão.São reconhecidos os feitos doExército Insurrecional Makh-novista, enfrentou os exérci-tos “brancos”, aliou-se com oExército Vermelho dos bol-cheviques e o salvou por vá-rias vezes nas batalhas contraa burguesia e aristocracia

locais e internacionais, nocenário pós-guerra mundial.Foi quando após con itoscom os bolcheviques, sobre-tudo na tentativa de criaçãoda “ditadura do proletaria-do”, a partir da capital russa,Lenin e Trotsky considerouo exército que já os salvouuma ameaça. Em uma bata-lha considerada de traição,o Exército Vermelho massa-crou pelos ancos o ExércitoInsurrecional Makhnovista,e assim foi eliminada umagrande oposição aos planosde centralização bolchevi-que, junto ao marinheiros deKronstadtff, também inspira-dos pela corrente libertária (anarquista ). Archinov, contatudo isso e muito mais emseu livro “História da Makh-

novischina”.Sobreviventes por sor-

te e feridos, os poucos queconseguiram, se exilaram naFrança, Archinov, Makhno,entre outros. Juntos lançaramnovas ideias para o anarquis-mo mundial após as experi-ências do anarquismo russoe ucraniano. Escreveram“Plataforma InsurrecionalAnarquista” um documentoque pede a todos militanteslibertários do mundo a seorganizarem melhor, pois ofracasso na Revolução Russafoi em parte re exo da de-

sunião entre anarquistas, quezeram várias lutas isoladasque não puderam conter ogolpe da “ditadura do pro-letariado”. O documentofoi mal recepcionado, poisos anarquistas do mundo ointerpretaram como umaordem de organização “for-çada” em que todos deveriamestar dentro para sobreviver,

Page 44: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 44/68

44 SAMIZDAT abril de 2010

Errico Malatesta, foi um dosque rejeitaram as ideias deMakhno e Archinov.

Isolados e frustrados, osanos 20 passaram-se vendoda França o stalinismo frearas conquistas da revoluçãoe eliminar a oposição socia-lista brutalmente na novaUnião Soviética.

Foi quando numa opor-tunidade, Archinov quisreverter toda sua frustração,pois na França ainda perse-guiam os sobreviventes doExército Insurrecional Makh-novista, aproveitou o fato deser expulso da França, para

gerar uma condição e darrealidade a um antigo plano:retornar para a Rússia.

Lançou pan etos quenegam a importância doanarquismo, rejeitou a cor-rente libertária e defendeu ostalinismo, fazendo saudaçõesà política da União Soviéticado momento. Em considera-ção com a enorme importân-cia de Archinov para a re-

volução e até mesmo para aformação dos primeiros anosdo bolchevismo, anteriores asua adesão ao anarquismo,Stalin “perdoou” Archinov e aceitou sua repatriação e

liação no Partido Comunis-ta. Ferido e doente, Makhno

cou surpreso com a atitudede Archinov, e o considerounão só um traidor, mas al-

guém que renegou o que ele viveu, após ter feita a famosa“autocrítica soviética”.

De volta a sua terra natal,Archinov em pleno stali-nismo, ocupou funções doPartido Comunista, e atuoucomo revisor em Moscou. Osanarquistas do mundo intei-ro o consideraram como adecepção dos anos 30.

Pouco depois, durante apurga stalinista, em 1937,Archinov some. Ninguémsabe o que aconteceu, poucosse manifestam. Após algunsanos e depois com a quedado stalinismo, é revelado seuparadeiro e o registro do seusumiço aparece: “Deportadopor acusação de restaurar oanarquismo na Rússia So-

viética”. Parece que ele foilmado em 1937 na depor-

tação. Mas, mal se sabe aocerto para onde foi e aondefoi enterrado.

Como assim?Décadas após décadas,

as gestões do Estado sejana antiga União Soviéticaquanto na nova FederaçãoRussa, desde o tempo deLenin e Trotsky, escondemos arquivos das atrocidadescometidas como crimes pró-prios de Estado. Uma gestãoapós outra, foi apagando taisarquivos, de acordo com oque era bom ou ruim para oregime. Assim foi com todaa produção literária e aindaestá sendo, mal se sabe seuma obra da época foi ounão forjada, ou se uma fotofoi ou não remontada. A cul-tura sujeita a uma dimensãoque reduz as manifestaçõesindividuais e coletivas, sem-pre estará propícia a encon-trar meios paralelos para sepropagar, pois são as pessoasque a fazem, o que precisame o que sentem.

Archinov, não pôde irao enterro de Makhno e seesclarecer. Makhno morreupensando que fora totalmen-te repudiado, pelos anarquis-tas espalhados pelo mundo afora, e por seu velho compa-nheiro, Archinov.

Há quem acredite que

Archinov fez algo extraordi-nário.

“Há uma escola de pen-samento que crê que Ar-shinov colocou seu repúdioao anarquismo como umacortina de fumaça para queele pudesse retornar à Rús-sia para ajudar a organizaro movimento anarquistaclandestino lá. Nós sabemosque o grupo Dielo Troudamanteve contato com essemovimento, e Ante Ciliga noEnigma Russo se refere a elecomo extremamente bem or-ganizado. Nós não podemoster a certeza de uma formaou de outra, até que todosos registros mantidos pelasautoridades russas sejamolhados pelos pesquisadores.Esperamos que algum pes-quisador faça em breve.”

Ed, em Libcom no artigoBiográ co sobre Archinov,http://libcom.org/history/arshinov-peter-1887-1937

Por m, aí está uma parteda construção moderna dodireitos fundamentais docidadão, esquecida, provavel-mente em forma de ossos nosantigos campos siberianos detrabalho forçado, cemitériosenevados do stalinismo.

F n es:

*Arquivo Público Históri-co de Moscou

*História da Makhnovis-china, de Archinov

*www.libcom.org*www.nestormakhno.info

Page 45: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 45/68

45www.revistasamizdat.com

Page 46: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 46/68

46 SAMIZDAT abril de 2010

Joaquim Bispo

a Ving nç de zeus h t t p : / / w w w . a b c

g a l l e r y . c o m

/ I / i n g r e s / i n g r e s 2

0 . J P G

C ôn c

Page 47: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 47/68

47www.revistasamizdat.com

Nos tempos de Homero, era

público que os deuses interfe-

riam na vida dos homens, às

vezes por motivos mesquinhos

e de maneira impertinente.

Nos tempos que correm, não

pensamos em deuses traqui-

nas quando as nossas vidas

tomam rumos inesperados,

mas fcamos desconfados da

qualidade do argumentista da

nossa realidade.

Há tempos, na Alemanha,um casal, desesperando de

não conseguir ter flhos, como

tantos outros, obteve dos tes-

tes de fertilidade a mais cruel

das respostas: o marido era

infértil.

Para qualquer ser humano,

esta é uma notícia perturbado-

ra. O seu eu físico, genético,

fca por ali, não se prolonga

para lá dele, a eternidade fca

condenada. Resta a possibi-

lidade de prolongar o seu eu

cultural, memético, que, para

muitos, é até mais identitá-rio. Para isso, há que arranjar

uma criança, dê por onde der:

adopção, barriga de aluguer,

inseminação artifcial. Nesta

última, ao menos, a parte ge-

nética da esposa está presente.

Foi isso que os membros do

casal alemão – ele de ascen-

dência grega, 29 anos, e ela

por aí – decidiram, mas, em

vez de recorrerem a um banco

de esperma, contrataram um

vizinho para cumprir a par-

te do fornecimento seminal,

devido ao facto de ter extra-

ordinárias parecenças físicas

com o marido infértil. Além

disso, o vizinho dava garantias

de sucesso: era casado e pai

de dois flhos, bem bonitos,

por sinal.

Será que, a partir daí,

entregaram o processo a um

laboratório que se encarregas-

se de recolher o esperma do

vizinho e o colocasse no útero

da mulher? Não. Fosse porquedesconfam da tecnologia, ou

por outra razão não revelada,

o combinado foi que o vizinho

copulasse com a senhora, de

modo natural, três vezes por

semana, até que ela engravi-

dasse.

Não sabemos o que sentiu

o vizinho quando foi con-

vidado, mas adivinhamos.

Deve ter agradecido a todos

os deuses do panteão germâ-

nico a graça que lhe tombou

na cama. Copular de forma

descomprometida, sem ame-

aças de responsabilidades

futuras, é a ambição de quase

todos os homens. Todas as

fantasias masculinas tilintam

de alegria ante tão excitan-

te perspectiva. Além disso,

consta que a senhora é uma

estampa de mulher, pelo que

não se percebe por que foi

preciso pagar 2000 euros ao

vizinho que, com 34 anos, não

devia precisar de tal incentivo.

Estamos, certamente, peran-

te um excelente negociador

que obteve um pagamento

pelo que teria feito de graça,

alegremente. Na verdade, foi

só com o dinheiro que estava

a ganhar que ele argumen-

tou à própria esposa, quando

ela tomou conhecimento do

propósito das inúmeras saídas

nocturnas do marido.

Neste ponto, tudo pare-

cia correr bem e a contento

de todos: o vizinho tinha o

melhor trabalho do mundo; a

sua mulher confortava-se com

a entrada da receita extra; o

homem esperava ter em casa,

brevemente, uma criança

parecida consigo, para educar;

a mulher iria, fnalmente, ser

mãe, de maneira totalmente

Page 48: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 48/68

48 SAMIZDAT abril de 2010

humanizada, sem ter de recor-

rer a impessoais burocracias e

frios procedimentos laborato-

riais. Mas, pode-se especular

que o facto de saber quem

era o pai poderia vir a ser de

enorme utilidade, se fosse

necessário apontar a paterni-

dade biológica, em caso de

futuras carências económicas

da criança – que estas contas

não se pensam, mas estão

sempre presentes na contabili-

dade genética inconsciente de

cada um – que os genes não

brincam na hora de garantir a

preservação.

Foi neste ínterim que Zeus

– quem mais? – interveio,

para gorar os planos deste gru-

po tão bem conluiado. Talvezse tenha apiedado da posição

humilhada do seu infértil

compatriota, talvez tenha

querido mostrar a Odin qual

o panteão mais poderoso, ou

talvez tenha fcado invejoso

da sorte olímpica do vizinho

– que ele, apesar de Zeus, tem

de tomar formas de cisne, de

touro, ou outras, para conse-

guir unir-se à mulher ou até à

deusa que deseja.

Bem que o vizinho ale-

mão se esforçava, pontual e

assiduamente, mas a senhora

não engravidava. A efciên -

cia do copulador contratado

não merecia reparos, mas, ao

fm de seis meses e setenta e

duas jornadas de trabalho, o

casal começou a duvidar da

sua efcácia para terminar a

obra dentro do prazo previsto

e intimaram-no a provar as

habilitações. Mais uma vez,

a resposta laboratorial foi de-

soladora – também o vizinho

era infértil – só que, desta

vez, com consequências mais

devastadoras.

O alegre copulador passou,

repentinamente, de o mais

feliz dos homens para um dos

mais castigados pela sorte:

não só a mulher o tinha traído,como os flhos não eram seus

e – supremo golpe – não po-

deria vir a tê-los.

Ela, quando confrontada

sobre a origem da prole, ainda

tentou desculpar-se com Odin,

disfarçado de padeiro, umavez, e de técnico de televisão

por cabo, da outra, mas o ma-

rido já não vai em mitologias

e exigiu o divórcio.

Do casal de soluções

criativas, a mulher voltou à

estaca zero, ou antes, à estaca

um, e, provavelmente, tenta

lembrar-se onde é que viu um

outro homem parecido com o

marido; este, dada a ausência

de resultados do contrato em

que tanto investiu, sente-se o

mais manso dos herbívoros e,

para readquirir alguma dig-

nidade, lançou um processo

judicial contra o vizinho, para

tentar recuperar, ao menos, os

2000 euros. Além disso, deve

precisar deles para o próximo

contrato.

O vizinho, que também

pode vir a precisar, foi quem

mais perdeu, apesar das be-

nesses. Não quer devolvê-los,

argumentando que forneceu

a mão-de-obra – salvo seja – conforme combinado, mas

nunca garantiu a consecução

do projecto.

O caso está para ser decidi-

do pelo tribunal de Estugarda,

e é por isso que dele tomámos

conhecimento, através do jornal Bild – que pela boca de

Zeus jamais o saberíamos.

Page 49: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 49/68

49www.revistasamizdat.com

SAMIZDAT — GiuliaMoon é, segundo fontesseguras (rsrs) um nomeartístico. Como é o seunome de batismo, e por

que a opção pela adoçãode um pseudônimo? Vocêpublica textos como “vocêmesma”, diferentes dostextos escritos como Giu-lia Moon?GIULIA —O meu nomereal é Sueli Tsumori. “Giu-lia Moon” é um nicknameque adotei quando entrei

na Tinta Rubra. Ao in- vés de escolher, como osoutros, um nome romeno

vampiresco com títulos denobreza como “condessa”e “lady”, reuni dois nomescurtos que tivessem algumtipo de signi cado paramim. Eu sempre gostei donome “Giulia”, porque soavasensual, gracioso e fácil deser pronunciado. E “Moon”,porque sou uma apaixo-nada pela lua, adoro cardevaneando sob uma luacheia ou ler histórias queenvolvam noites de luar –além de achar a gra a de“moon” muito legal, com os“o”s lado a lado, lembrandodois olhos arregalados deespanto. Quando lancei oprimeiro livro, não haviarazão para assinar de outraforma, já que a maioria dosmeus leitores me conhe-cia como “Giulia Moon”. Eassim cou. Nunca publi-quei nada como Sueli, poisGiulia continua sendo, pelomenos para mim, o meu

lado vampiresco, noturno,aventureiro – en m, o meueu que passava as noitesteclando com amigos so-turnos e escrevendo contoscruéis na Tinta Rubra.

SAMIZDAT — Os vampi-ros são um dos temas que,de tempos em tempos,

voltam a ser moda. A que você atribui este fascínioque temos por estas cria-turas?GIULIA —Acho que aspessoas gostam de vampirosporque são, em primeirolugar, vilões com um bomlayout. São parecidos comos seres humanos, têm as

vantagens da juventudeeterna, imortalidade, donspsíquicos, força física. Éum monstro que tem umarsenal de armas variado:a força, o poder psíquico, asedução, a esperteza. Podeagir com a “mão pesada” oucom sutileza, dependendoda situação. Mas tambémpode ser sentimental, frágil,en m, pode ter todas as fra-quezas da mente humana,pois já foram humanos umdia. Para o autor, é um per-sonagem muito estimulante,e isso faz com que o produ-

to da criação tenha grandeschances de car bom. E,para o leitor, é aquele vilão(ou vilã) bonitão, sacanae malvado que adoramosodiar. Vilões assim sempre

zeram sucesso, pois adora-mos esses contrastes: belezacom maldade, delicadezacom crueldade, e assim por

diante.

SAMIZDAT — Com tan-tos autores, nacionais eestrangeiros, abordandoo vampirismo, é possívelfugir de certos clichêsdo gênero, ou ao fazê-locorre-se o risco de desca-racterizar o tema?GIULIA —Bem, não existeuma lei que diga que taise tais características sãoobrigatórias para um perso-nagem vampiro. Acho quedepende do bom senso decada autor. Um bom sensoque o faça reconhecer que,sem algumas característicasbásicas, o seu personagemnão é um vampiro, masalguma outra criatura. Os

vampiros do meu livroKaori são os vampiros clás-sicos: predadores, bebemsangue (e só sangue), nãoandam a luz do dia, têmmuita força e capacidade dese regenerar de ferimentos.Mas já escrevi contos emque os vampiros são seresmicroscópicos, por exem-plo. Os clichês ruins sãoapenas aqueles que são maltrabalhados pelo autor.

SAMIZDAT — Muitosautores da nova geraçãoencantaram-se com os

vampiros por causa dos jogos de RPG, especial-mente “Vampiro: a Más-cara” (publicado no Brasilpela Devir). Você perten-ce a este grupo ou seuinteresse é anterior? Qual

h t t p : / / w w w . i c k r . c o m

/ p h o t o s / e r z s / 1 3 5 7 4 1 3 2 8 0 / s i z e s / o /

nome de “O Canto daSereia de Bach”, já que abela melodia sempre semostrava como um fatale irresistível convite ao

além-túmulo.Quase um ano após o

início das mortes, passavapela região um viajanteaustríaco, excepcionalestudante de música,chamado Wolfgang Ama-deus Mozart. Quandosoube da maldição, nãose alarmou, disse apenasque gostaria de ouvir otal concerto fúnebre e deconhecer o seu autor. Foialertado de que a históriaera verdadeira, de que aspessoas já não queriammais estudar música, e

ele poderia ser o próxi-mo, e o dia fatal estavase aproximando... Nadadisso o espantou.

Dia vinte e oito, “Toca-ta e Fuga em Ré Menor”,tudo como haviam dito,e lá estava Mozart den-tro do cemitério. Com osolhos fechados, deixava-seextasiar com as compo-sições de Johann Sebas-tian Bach, num estadode euforia sobrenatural.Subitamente, o som seextinguiu. O jovem des-pertou do transe e dirigiu

sua visão ao concertista.Aquela mesma gura ca-davérica, que levara tan-tos a sucumbir, apontava-lhe seus terríveis olhos

ausentes. E como todos osoutros, também Mozartparalisou-se. Junto à ima-gem macabra, sentiu ocheiro da putrefação. Asnáuseas dominaram-no,o que o fez libertar-se daparalisia, caindo de joe-lhos a largos vômitos. Emmeio a engasgos, tosses eânsias, ouviu a frase mor-tal: “Termine a música”.

Confuso, desnorte-ado, Mozart tentou selevantar apoiando-seno órgão, que sua mãoatravessou como se nada

ali estivesse. Caiu sobreo vômito, começando arecobrar a razão e ten-tando afastar-se daqueleprenúncio da morte.De bruços sobre a terra,sentiu algo prendendo-opelo pé. Não teve cora-gem de olhar para ver o

que era. E novamente a voz suave suplicou: “Ter-mine a música”. Fazendouma desesperada oraçãomental, tateou o solo atéencontrar uma pedrapontiaguda. Com ela,começou a desenhar no

chão a partitura do nalde uma recente compo-sição sua – a primeira alembrar que estava emharmonia com a música

inacabada de Bach. Ter-minando, viu que a perna já estava livre. Correu omais rápido que pôde,sem olhar para trás. Osom de sua composiçãoservia de trilha sonorapara a fuga, enquantoele pensava como, até omomento, aquela músicanunca havia lhe parecidotão viva e tão mórbida.Prometeu não mais tocá-la.

No dia seguinte, o jovem Mozart já não seencontrava pela cidade.

“Mais um levado peloCanto da Sereia de Bach”,diziam. Contudo, soube-se na hospedaria que elehavia partido durante amadrugada, são e salvo,após o sinistro concerto.No cemitério, ao invés doesperado músico morto,

foi encontrada apenasuma inscrição na terra,parecida com o trecho dealguma partitura. Desdeentão, não se noticioumais vítimas do “Cantoda Sereia de Bach”.

h t t p : / / w w w . l o s t s e e d . c o m

/ e x t r a s / f r e e - g r a p h i c s / i m a g e s / j e s u s - p i c t u r e s / j e s u s - c r u c i e d . j p g

ficinawww.ofcinaeditora.com

Ele nha diante de si

a mais difcil das missões :

cumprir a vontade de Deus

Henry Alfred BugAlHo

O Rei dos Judeus

o w n l o a d á t i s

49

Page 50: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 50/68

50 SAMIZDAT abril de 2010

C ôn c

Ju Blasina

apen s lhe

http://faculty.umf.maine.edu/~walters/web%20104/ww1%20women%20RR%20mechanics.jpg

Page 51: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 51/68

51www.revistasamizdat.com

Sentada numa cadeirasimples de sua casa humilde,ela é apenas uma mulhertentando fazer o seu melhor,buscando dividir o tempoentre trabalho e família,entre contas e calendários,

rezando por um melhor ma-rido, lutando por um melhoremprego, sonhando com ummelhor armário. Apenas umamulher... Como se algumamulher no mundo fosse “ape-nas” alguma coisa. Ela é mãe,é lha, é amante, é amiga, éirmã. Ela é mulher.

Mais tarde, deitada nacama que divide com as

lhas, ela pensa no futuro.

Não somente no seu, mas nofuturo das mulheres que ain-da não nasceram. No futurode suas lhas e das lhasde suas lhas. Num futurodistante, bem distante da suatriste realidade.

Amanhã será um diaimportante, um dia daquelesque exigem coragem, toda acoragem que puder reunir,e ela sabe onde encontrá-la.

Com o sono roubado pelaansiedade, ela deixa a camapé por pé, rumo as suasarmas mais letais: esmaltes,batons e bobs — parecem ob-

jetos inofensivos, mas comomulher ela sabe reconhecero poder que eles trazem.

Prepara-se para a guerra,se sente invencível e malpercebe o amanhã chegar an-tes do desenrolar do último

cacho. Não há tempo paradelongas, não há muito parao café, mas sempre há umúltimo olhar em seu maiortesouro: as lhas, que dor-mem seguras na cama des-confortável. Pede a Deus queesteja com elas na sua ausên-cia — o que, graças às tantashoras de trabalho, tem sidomais frequente do que gosta-ria de admitir. Se ao menos

fosse melhor recompensada,poderia dar a elas uma camamelhor, uma vida melhor, umfuturo melhor. Mas por hora,tudo que pode lhes dar é umbreve beijo de despedida.

Mas hoje, ah... Hoje tudo vai mudar! Manifestarãoseu descontentamento comas deploráveis condições detrabalho, com o salário in-

justo, com a excessiva cargahorária, com a proibiçãoao voto, com tantas coisas...Se ao menos uma delas forouvida, serão vitoriosas! Emseus planos tudo pareciaperfeito, mas a realidade ésempre imprevisível. Alguns

chamam de destino, outros,de fatalidade, mas a mulhertrancada naquela fábricachamou de fracasso.

Ela veri ca novamenteas portas na esperança tolade que a força de vontadepossa aportar-lhes uma saída,mas não... Para seu desespe-ro, todas as portas parecemtrancadas. Neste momen-to, ela sabe que é o m do

caminho, todas elas sabem etalvez muitas já antes sou-bessem, porém, ainda assimprecisavam lutar, valia a penatentar...

O que ela não sabe éque, junto com as cento etrinta outras mulheres quesucumbiram naquele incên-dio, num fatídico oito demarço, ela acabava de abrir amais importante de todas as

portas. Uma porta por ondeos sonhos ousam atravessar.Uma porta, através da qualela poderá passar milhares emilhares de vezes, em outrotempo, em outra vida, emoutro corpo, na força e naliberdade que habita a almade cada mulher.

Page 52: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 52/68

52 SAMIZDAT abril de 2010

C ôn c

Henry Alfred Bugalho

N ss s f ls snecess es c n s

F o t o : H e n r y

A l f r e d B u g a l h o

Page 53: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 53/68

53

Não gosto de telefonescelulares. Nunca gostei.

Quando todo mundo jácarregava um celular nocinto, ostentando o novoclamor da modernidade, eu

relutava. Já era adepto dainternet, mas do celular -Deus me livre!

Mas não dá para lutarcontra o óbvio.

Enquanto que, algunsanos atrás, quando duaspessoas iam se encontrar,era preciso marcar data,local e hora exatos, senãoo desencontro era inevitá-

vel, hoje as pessoas andam,falam e perguntam: “onde você está? Ah, sim, estou te vendo!”

Antes, se não se encon-travam, era assunto encer-rado; cada um ia para suacasa e m.

Rendi-me e também te-nho meu telefone celular... Eme indago como conseguí-amos viver sem ele antes.Há 15 anos, praticamenteninguém tinha; há 25 anos,até telefone xo era rarida-de. Minha mãe era uma daspoucas a ter telefone emcasa no quarteirão, por isto,as vizinhas passavam o nos-so número e anotávamoso recado para elas quandoalguém ligava.

Há 150 anos, que pareceser muito tempo, mas parao curso da História é me-nos que um segundo, nemsequer existia o telefone.

E hoje mal conseguíamosconceber como seria a vidasem ele, assim como é difí-cil pensarmos num mundo

sem TV, computador, carros,energia elétrica, internet.Acostumamo-nos e nosacomodamos com falsasnecessidades.

As inovações parecem se

apegar ao nosso ser de talmaneira que o humano seconfunde com elas.

A realidade do homemprimitivo, caçando com lan-ça, residindo em cavernase descobrindo o fogo, é tãoalienígena para nós quantoum suposto marciano verdeem sua nave espacial.

As falsas necessidadessão tão poderosas que em-burrecemos e nos atro a-mos. Se, por acaso, há umaqueda de luz no prédionuma noite de tempestade,desesperamo-nos, tateandono breu, e não sossegamosaté ver a lâmpada se acen-dendo mais uma vez.

Ao sermos libertadosde certas restrições pelamodernidade, tornamo-nosen m seus escravos.

Temos acesso a todas asinformações do mundo, po-demos nos comunicar compessoas do outro lado doplaneta, tudo instantânea eimediatamente, mas somosmutilados. Arranque-nosdeste acomodamento e en-colheremos, até sumirmosdiante da nossa insigni -cância.

Temos tudo à mão, ape-nas para mascarar o nadaque nos tornamos.

O futuro aniquilou anossa humanidade.

h t t p : / / g u i s a l l a . l e s . w o r d p r e s s . c o m / 2 0 0 8 / 0 9 / m a c h a d o 1 . j p g

ficina

h t t p : / / w w w . i

c k r . c o m / p h o t o s / o o o c h a / 2 6 3 0 3 6 0 4 9 2 / s i z e s / l /

www.ofcinaeditora.org

O lugar onde

a boa Literaturaé fabricada

53

Page 54: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 54/68

54 SAMIZDAT abril de 2010

P es

espe e lhe ¹

o despertar de uma mulheré uma melodia serenafeito um balanço no parquelá e cá, deslizando no arum movimento leve e pacientecadenciado, contra o qual insurgemlapsos de descompasso

não importam as intermitências

o despertar de uma mulher é sutil e eleganteé uma or com hora certa para desabrochar

¹ Este poema segue a poética do concludo. Parasaber mais sobre ele, con ra a teoria, aqui mes-mo na Samizdat, no artigo Teorizando o conclu-do.

Caio Rudá de Oliveira

Sobre mulheres e ores

54 SAMIZDAT abril de 2010

Page 55: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 55/68

55www.revistasamizdat.com

h t t p : / / w w w . i c k r . c o m

/ p h o t o s / r e m o n r i j p e r / 3 4 4 5 8 1 9 0 0 4 / s i z e s / o /

nunca me dê ores, meu bem

nunca me dê ores, meu bem já demais as tenhoademais, far-te-á enciumado

elas me lembram todos que por minha vida passarame tu sabes, nunca fui só tua

querias-me donzelalamento, não a pude serganhaste-me cheia de máculasporém o amor é redentor, tu sabiascultivaste-me assim mesmocomo fez o jardineiro

que a ti vendeu essas ores

mas repito, meu bem, nunca me dê oresdeixa-as no jardimcomo não fez o jardineiroque a ti e a todos que te imitam o gesto as vendeudeixa-as perfazerem sua biogra abrotar, fertilizar e secar

não é demais dizernunca me dê ores, meu bem

já demais as tenhoademais, hoje somos as ores, o jardim e eu uma coisa sósó te peço que não sejas meu jardineiropois não sou mais tua nem de ninguéme assim serei para sempre virgem

55www.revistasamizdat.com

Page 56: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 56/68

56 SAMIZDAT abril de 2010

P es

Ju Blasina

Bl v n sBLaViNo 20 — t c- c

Tic

Tac-tic Já são doze

Badaladas horasEm dias seguidos porNoites em claro. Ouço eu

O tilintar das moedas caídas

Ao chão feito migalhas dou--rando o tempo perdidoPara não passar

Sem ti atéO tic-tac

Dói

56 SAMIZDAT abril de 2010

Page 57: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 57/68

Page 58: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 58/68

58 SAMIZDAT abril de 2010

Wellington Souza

P es

amor VirtuaL

São dois cegosapaixonados– não mais a dizer.

ParaFraSEaNdo aLGuÉm

Depois de ti,hasteei bandeirabrancae pedi paz.

aCordar

Todas as noites podo minhas asaspecaminosas

que teimam em amanhecer.

dESataNdo-NoS

...e mais uma vezcalçaremosas botas machadianas.

C nc s s

h t t p : / / w w w . i c k r . c o m

/ p h o t o s / t r o j a n g u y / 2 8 8 0 0 8 5 3 8 4 / s i z e s / l /

Page 59: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 59/68

59www.revistasamizdat.com

h t t p : / / w w w . i c k r . c o m

/ p h o t o s / t h o m a s h a w k / 2 4 4 2 3 7 1 1 7 6 / s i z e s / l /

quEm

Quem espera não alcança, dança.Quem arrisca não se arrepende, apenas não se rende ao medo.Para quem vai à luta, não existem segredos para o sucesso.Quem corre atrás garante o ingresso.

Aquele que omite, não mente, mas deixa de dizer a verdade.Quem nunca vai embora não inspira saudade.Quem não chora, mama sim, e nem precisa ser criança...Quem ama sem medo não perde a esperança.Quem não pergunta, não sabe responder.Quem não aprende também não ensina.Quem está em cima, sempre pode descer...E, en m, quem está lendo, também pode escrever.Quem é você e o que tem a dizer?

P e sMariana Valle

tEmPo

Tudo na vida passa.Não há desgraçaque não se abrande,não há feridaque não cicatrize,não há dorque se eternize.Quão divino remédioé o tempo,senhor dos mistérios,

maravilha de invento!

59www.revistasamizdat.com

Page 60: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 60/68

60 SAMIZDAT abril de 2010

Trilha centelhanavalha sentidos.Estraçalhados.Eu cativa.Março não chega.

Eu conto um.Eu conto dois.Eu conto in nitos,meses destinos.Uma lança à espreita en a,rasga a carne,peito arreganhado:

vê como bate,como desejaum coração desesperado?Até março.

Ao mês do impossível se faz a espera,a espera que diz:não corra tanto. Que há na correntezaalém do devir?Por que não ca aí contente com esse nada?Por que espera que na corrida se desfaça o nada?

Esse nada será um outro nada,invariavelmente.

Mas conto os grãos da ampulheta,leves,eu cardíaca,escoam serenos,em tortura.(escorre sangue dos meus olhos,

P es

Polyana de Almeida

de e ç

Page 61: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 61/68

61www.revistasamizdat.com

retina pétrea,acorrentados)

Ao mês do impassível se faz a guerra,a guerra que diz:não sofra tanto. Que há no sofrimentoalém do sentir?Por que não ultrapassa de vez a trincheira?Por que não deixa que os tiros abatam logo?O abatimento se dará em qualquer lado,invariavelmente.

Luz exíguainstiga futuros.Mundos.

Eu vida.Dez de Março...

Eu conto um.Eu conto dois.Eu conto vaziosdias vestígios.Esvaziados,me esvaindo em pedaços.

E sinto esvoaçar,sinto fugir a pele,carne etérea,não sou nem mesmo mais corpo:

vê como transcendo o tempo,como me espalhosobre o tempo,quando não há mais corpo?

Amanhã menos um.Depois de amanhã menos dois.Depois de depois de amanhã, três.E março.

Mas março não chega.

(Há um ano, uma espera fez-se presente; e hoje, ausente,diz que há mortes que sim, que carregam no bojo o soproda vida)

h t t p : / / w w w . i c k r . c o m

/ p h o t o s / 1 9 7 9 9 7 1 4 @ N 0 0 / 1 6 7 2 2 0 1 9 7 5 / s i z e s / o /

Page 62: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 62/68

62 SAMIZDAT abril de 2010

SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT

Hen y alf e B g lhFormado em Filoso a pela UFPR, com ênfase em

Estética. Especialista em Literatura e História. Autorde quatro romances e de duas coletâneas de contos.Editor da Revista SAMIZDAT e um dos fundadoresda O cina Editora. Autor do livro best-selling “GuiaNova York para Mãos-de-Vaca”. Mora, atualmente, emNova York, com sua esposa Denise e Bia, sua cachor-rinha.

[email protected]

Edição, diagramação e capa

62

m e Fá B s l r nNasceu em SP em 1957 mas mudou-se para Salvador

em 1984 onde reside até hoje. É arquiteta e artista plás-

tica, além de tradutora (inglês e italiano) e revisora detextos. Escreve poesias esporadicamente desde adoles-cente e há cerca de um ano começou a escrever contos.Pretende concorrer ao mestrado em Artes Cênicas naEscola de Teatro da Ufba.

Revisão

SAMIZDAT abril de 2010

Page 63: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 63/68

63www.revistasamizdat.com 63www.revistasamizdat.com

m n V llePor um amor não correspondido, a carioca de

Copacabana começou a poetar aos 12 anos. Veio obeijo e o príncipe virou sapo. Mas a poesia virou suaamante. Fez o cina literária e deu pra encharcar opapel com erotismo. E também com seu choro. Emreação à hipocrisia e ao machismo da sociedade.Atuou como jornalista em várias empresas, mas foina TV Globo onde aprimorou as técnicas de reda-ção e cção. E hoje as usa para contar suas própriashistórias. Algumas publicadas em seu primeiro livroe outras divulgadas nos links listados em seu blogpessoal:www.marianavalle.com

h t t p : / / w w w . p h o

t o s h o p t a l e n t . c o m

/ i m a g e s / c o n t e s t s / s p i d e r %

2 0 w e b / f u

l l s i z e / s o u r c e i m a g e .

j p g

m e Fá S n sNasceu em Lagos, Algarve, Portugla em 1948. Vi-

veu a adolescência em Angola e reside em Lagos.Licenciada em Física, é aposentada de professora doEnsino Secundário. Já participou na SAMIZDAT e porafazeres de vida afastou-se. Tem poemas em diversasantologias, e publicou em Janeiro de 2009 um livri-nho com pequenas histórias, aquelas que lhe voamno teclado: Papoilas de Janeiro é o título, com ilus-trações de TCA do blogue http://abstractoconcreto.blogspot.com/ Muito material está publicado nosblogues e www.intervalos.blogspot.com e http://tris-teabsurda.blogspot.com/ Escreve pelo gosto de deixarque as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.

Colaboração

Lé B gesNasceu em setembro de 1974, é carioca, servidorpúblico e amante da literatura. Formado em Comu-nicação Social pela FACHA - Faculdades IntegradasHélio Alonso, participou da antologia de crônicas“Retratos Urbanos” em 2008 pela Editora Andross.

Page 64: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 64/68

64 SAMIZDAT abril de 2010

G selle SAutora de Meninas Malvadas, A Pequena Baila-

rina e Contos de Terror Selecionados. Se autode neapenas como uma contadora de histórias carioca.Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária debordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-sea textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,funcionando como um e ciente panorama da socie-dade em que vivemos.

Jú Bl s nGaúcha de Porto Alegre. Não gosta de mensurar

a vida em números (idade, peso, altura, salário). Nãose julga muito sã e coleciona papéis - alguns a r-mam que é bióloga, mestre em siologia animal eetc, mas ela os nega dizendo-se escritora e ponto -nal. Disso não resta dúvida, mas como nem sempreuma palavra sincera basta, voltou à faculdade comoestudante de letras, de onde obterá mais papéis paraaumentar a sua pilha. É cronista do Caderno Mulher(Jornal Agora - Rio Grande - RS), mantém atualiza-do seu blog “P+ 2 T” e participa de fóruns e o cinas

virtuais, além de projetos secretos sustentados à basede chocolate e vinho, nas madrugadas da vida.

64

Le n S lvPampeano, gaúcho das tecnologias “rústicas” dos

ancestrais indígenas. Estudante de espanhol. Escrevepara complementar a realidade, crendo que todospodem escrever e, que isso não é pro ssão e sim,

humanização. Relacionando sociedade, ideologia ememória coletiva, principalmente. Sobre o pampa,literatura de cção cientí ca e africanismo, unindo-os ou não,.

SAMIZDAT abril de 2010

Page 65: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 65/68

65www.revistasamizdat.com

h t t p : / / w w w . p h o

t o s h o p t a l e n t . c o m

/ i m a g e s / c o n t e s t s / s p i d e r %

2 0 w e b / f u

l l s i z e / s o u r c e i m a g e .

j p g

65www.revistasamizdat.com

J B spEx-técnico de televisão, xadrezista e pintor ama-

dor, licenciado recente em História da Arte, experi-menta agora o prazer da escrita, em Lisboa.

[email protected]

J sé G lhe e Ve ePublicitário, redator, executivo, professor, aluno, marido,pai, lho, cunhado, tio, sobrinho, genro, sogro, amigo, bota-foguense, tijucano, lebloniano, neopaulistano, escritor, leitor,eleitor, metido a cozinheiro, guloso, nem gordo nem magro,motorista categoria B, pedestre, caminhante, viajante, seden-tário, telespectador, pilhado, zen, carnívoro, beatlemaníaco,cinemeiro, desa nado, sinfônico, acústico, capricorniano,calorento, alérgico a ditaduras, sonhador, delirante, insone,objetivo, subjetivo, pragmático, enérgico, banana, introspec-

tivo, extrovertido, goleiro, blogueiro, colunista do Bolsa deMulher, colaborador do Mundo Mundano, tem livro publi-cado, conto premiado, teve texto encenado no teatro, fez ro-teiros para televisão, criou uma in nidade de comerciais eaprendeu que aproveitar a vida intensamente é ser de tudoum muito. Samizdat é seu mais recente energético..

C r áBahiano do interior, hoje mora na capital. Estuda

Psicologia na Universidade Federal da Bahia e esperaum dia entender o ser humano. Enquanto isso não

acontece, vai escrevendo a vida, decodi cando o enig-ma da existência. Não tem livro publicado, prêmio,

reconhecimento e sequer duas décadas de vida. Mascomo consolo, um potencial asseverado pela mãe.

Page 66: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 66/68

66 SAMIZDAT abril de 2010

m c S jnb kMédica formada pela Faculdade de Medicina da

Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatrae psicanalista. Apaixonada por literatura e línguasestrangeiras, lê sempre que pode e brinca de es-crever de vez em quando. Paulistana convicta, vivedesde sempre em São Paulo.

Well ng n SPaulistano, mas morou também em Ribeirão

Preto, onde cursou economia na Universidade de SãoPaulo. Hoje, reside novamente no bairro em que nas-ceu. Participou das antologias do concurso Nacionalde Contos da Cidade de Porto Seguro e do Poetasde Gaveta/USP. Escreve poemas, contos, crônicas eensaios literáios em um blog (Hiper-link), na revistadigital SAMIZDAT e no portal Sociedade Literária.“Escrever é um modo de ser outro ser”.

C l S. Le sNasceu em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense,

em 1982, nove anos antes do antológico Ten, doPearl Jam. Foi ajudante de marceneiro, de pedreiro,de sorveteiro, de marmorista e mais um monte decoisas. Fritou hambúrgueres, vendeu ores, crioupeixes briguentos. Chorou pela avó, chorou por seuscachorros. Então cansou dessa vida e foi estudarHistória. Desde então se dedica a escrever, trabalharcomo voluntário numa escola municipal e fazer feliza moça ingênua que aceitou ser mãe dos seus lhos.

Page 67: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 67/68

67www.revistasamizdat.com

h t t p : / / w w w . p h o

t o s h o p t a l e n t . c o m

/ i m a g e s / c o n t e s t s / s p i d e r %

2 0 w e b / f u

l l s i z e / s o u r c e i m a g e .

j p g

SAMIZDAT fevereiro de 2010

P ly n e al ePaulistana, 28 anos. Escritora, publicitária, mestre

em Literatura Russa, sonhadora, amante do passado,apologista da nostalgia. Entre os afazeres da escritae do cotidiano, contempla o mundo e questiona: “há

vida sem arte?” No meio do caminho, trôpega, emdesalinho, ela vai se perdendo, caindo, decaindo, aresponder: “sem arte, para mim, vida não há.” E le-

vanta: palavras, palavras, palavras. Corpo. E o sanguea pulsar.

an C s n r g esHistoriadora e escritora lusocarioca, fascinada

pela exploração de novos mundos: seja no passa-do, no futuro ou em tempos que ainda não existi-ram. Uma contista que se esforça arduamente paratornar-se romancista um dia, além disso coordenaantologias, comunidades e coletivos de escritores.Publicou contos em vários zines e antologias no Bra-sil e no exterior, além do livro ‘AnaCrônicas’, umacoletânea de contos curtos.

Page 68: SAMIZDAT27

8/9/2019 SAMIZDAT27

http://slidepdf.com/reader/full/samizdat27 68/68

Também nesta edição , textos de

an C s n r g es

C r á

C l S. Le s

G selle N s S

Hen y alf e B g lh

J B sp

J sé G lhe e Ve e

Le n S lv

Lé B ges

m c S jnb k

m e Fá S n s

m n V lle

m s el deves

P ly n e al ew w . i c k r . c o m / p h o t o s / j i m m y b r o w n / 3 3 2 3 7 8 0 7 4 7 / s i z e s / l /