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Revista Crítica
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n°11, vol. 1, 2015
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[-] Sumário # 11 vol. 1
EDITORIAL 4
OS MOVIMENTOS INDIGNADOS E AS LUTAS DE CLASSES 9
Entrevista de Charles Reeve a Stephane Julien e Marie Xaintrailles
ARTIGOS
ANTICAPITALISMO PARA O SÉCULO XXI 23
Um breve panorama da nova crítica do valor
Joelton Nascimento
ESTAMOS PERDENDO! 51
Do altermundialismo à indignação multitudinária:
balanço da resistência global quinze anos após Seattle
Raphael F. Alvarenga
A CATÁSTROFE COMO MODELO 74 Agronegócio, crise ambiental e movimentos sociais
durante o decênio 2003-2013
André Villar Gomez
Marcos Barreira
SOCIALISMO OU BARBÁRIE? 113 Daniel Cunha
A ESPUMA, A ONDA E O MAR DA REAÇÃO 118
Cruzando o fantasma autoritário brasileiro
Bob Klausen
O OTIMISMO E O PÊNDULO 134
O duro aprendizado de caminhar em terreno movediço
Douglas Anfra
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DESTINOS DO ÓDIO SOCIAL 140
E A ENCRUZILHADA DA ESQUERDA
Bruno Klein
“FOGO AMIGO” 144
A incubadora petista da avalanche conservadora
Paulo Marques
PASSEIO PELAS GREVES PARANAENSES 163
DA EDUCAÇÃO EM ALGUMAS NOTAS
G. Émeutes
SOBRE A MAIORIDADE PENAL 171
Uma ação preventiva do capital
Atanásio Mykonios
GERAÇÃO SARRAZIN 191
Breve esboço da gênese da nova direita alemã
Tomasz Konicz
ESTADO DE PESTE / ESTADO DE SÍTIO 202
Para reler A peste, de Camus
Cláudio R. Duarte
O QUE É UM COLABORADOR? 225
Jean-Paul Sartre
MISÉRIAS DO PRIMITIVISMO 238
Resenha de Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins
Daniel Cunha
COMUNIZAÇÃO NO PRESENTE 247
Théorie Communiste
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4
Editorial
―Nunca se viu tanto fim‖ – disse certa vez Robert Kurz – e ao que parece, antes
que o fim chegue e arranque de vez os fundamentos do chão, agora iremos penar
uma avalanche conservadora mundial cujo paralelo histórico será difícil de encontrar
nos livros, salvo nos anos da grande crise de 29, nos passos truncados e por fim
malogrados da esquerda nos anos subsequentes. Os anos da ascensão mais colossal
das forças reacionárias em escala planetária, momento que nos concerne de algum
modo ainda hoje, pois, como vaticinou Walter Benjamin, ―por trás de todo fascismo,
há uma revolução de esquerda fracassada‖.
Aqui circundamos o escopo desta edição de Sinal de Menos. Sem forçar a nota
nessa comparação histórica – mas sem tampouco abdicar de sua chave de leitura,
pois a barbárie neoliberal e as contraposições a ela tendem a recrudescer a partir de
agora – a atual avalanche conservadora brasileira e mundial e os obstáculos
teóricos e práticos de uma superação imanente da crise global são os temas mais
gerais deste volume da edição dupla da revista. Daí a encruzilhada sombria sugerida
pela capa de Felipe Drago.
Por aqui, em clave menor, a esquerda brasileira vai sofrendo mais uma grande
derrota histórica com a eleição do congresso nacional mais conservador desde 1964 e
a capitulação do governo petista recém-eleito em meio a uma crise econômica e
política em parte promovida por ele próprio, em parte porque vai inexoravelmente
batendo nos limites do financiamento interno, da concorrência e da crise globais.
No mundo todo, nessa conjuntura tenebrosa, brilha a luz bruxuleante de uma
grande presença-ausência: de um lado, ensaios de contestação teórica e prática da
sociedade das mercadorias, de outro, os aparelhos de coação e captura de todo
movimento vivo sob a jaula de aço das medidas de austeridade e de promoção
neoliberal de um mundo privado da razão, moldado pela economicização da vida até
a morte e as medidas de emergência reprodutoras do sistema.
No horizonte, apenas a ―tempestade perfeita‖ de uma ―direitização da direita‖
(Paulo Arantes) que ofusca toda visão e forja os seus filhotes mimados, amantes da
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jaula em que nasceram – nadando na superfície do mar de seus privilégios, ou muito
menos que isso – liberando o ódio e os cães de guarda contra quem pretende serrar
as suas barras. O risco é então o de regredirmos em toda linha numa espécie de
―contrarrevolução sem revolta‖, algo que vai dando nó na cabeça dos marcuseanos
herdeiros de 68. Com o que, para nós, então, é preciso repensar o que se tinha por
certo, a suposta rebelião ou revolução inscrita no curso do progresso das forças
produtivas, mas que é ainda pouco ou nada na falta da constituição de um
movimento prático de êxodo da imanência do Capital. Como já dizíamos na
apresentação da revista em nosso primeiro editorial: ―as crises que se desencadeiam
não são garantia alguma de superação social, tornando-se antes motivo para a
reflexão sobre as formas de converter tal negatividade cega em algo realmente
negativo e superador.‖
Após um longo intervalo devido à conjuntura movimentada do cenário
eleitoral, Sinal de Menos chega mais encorpada, com uma edição dupla. Este
primeiro volume contém artigos mais focados nos aspectos conjunturais, partindo de
uma ENTREVISTA de CHARLES REEVE sobre o renascer de movimentos
contestatórios no cenário mundial, da China à Europa e Estados Unidos, com
destaque para a crise social na Espanha e o movimento dos Indignados. O segundo
volume terá a honra de trazer uma entrevista com PAULO ARANTES, um dos
mestres da análise da formação brasileira e da crítica do estado de emergência
mundial, que se constitui como o pano de fundo teórico de muitas de nossas análises
nas duas edições.
A seção de ARTIGOS inicia-se com o texto de JOELTON NASCIMENTO,
ANTICAPITALISMO PARA O SÉCULO XXI – Um breve panorama da nova
crítica do valor, em que o autor apresenta em linhas gerais as teses defendidas pela
Nova Crítica do Valor (NCV), consolidada principalmente em torno das revistas
Krisis e Exit!, além da discussão de referências sobre alguns de seus precursores.
Escrito por ocasião dos 15 anos das manifestações de Seattle (novembro de
1999), o segundo artigo, ESTAMOS PERDENDO!, de RAPHAEL F. ALVARENGA,
propõe um balanço crítico do altermundialismo do início do século, contrastando-o
em seguida com formas de protesto e teorizações mais recentes.
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Em seguida, publicamos o ensaio de ANDRÉ VILLAR GOMEZ e MARCOS
BARREIRA, A CATÁSTROFE COMO MODELO – Agronegócio, crise ambiental
e movimentos sociais durante o decênio 2003-2013. Com riqueza de detalhes
empíricos e uma análise crítica refinada pelas lentes da crítica do valor, os autores
comparam e confrontam as ideologias e os reais custos socioambientais do complexo
agroindustrial brasileiro montado nas últimas décadas, apontando as
irracionalidades de tal modelo agrário.
Em SOCIALISMO OU BARBÁRIE?, DANIEL CUNHA comenta a reação
de certos setores da esquerda ao recente atentado na França. O que se desvela é que
certas ideologias identitárias pretensamente de esquerda do capitalismo de crise, na
falta de um arsenal crítico adequado, acabam por borrar a distinção entre as lutas
emancipatórias e o terrorismo e, no limite, acabam por legitimar a barbárie.
Na sequência, temos sete textos que pensam a ascensão conservadora no atual
contexto. Em A ESPUMA, A ONDA E O MAR DA REAÇÃO – Cruzando o
fantasma autoritário brasileiro, BOB KLAUSEN busca caracterizar as forças
conservadoras que retomaram o espaço público brasileiro nos últimos anos,
decifrando seu imaginário autoritário por meio das estruturas e práticas sociais que o
constituem. Em O OTIMISMO E O PÊNDULO: o duro aprendizado de caminhar
em terreno movediço, DOUGLAS ANFRA desdobra as dificuldades de organização
dos movimentos sociais na atual conjuntura, o que nos faz questionar todo
―otimismo da prática‖, considerando a relativa perda de força da mobilização de
esquerda e a ascensão da direita no país, ambos escapando a esquemas conceituais
prévios. No próximo artigo, DESTINOS DO ÓDIO SOCIAL E A
ENCRUZILHADA DA ESQUERDA, BRUNO KLEIN esboça uma fina análise
desse sentimento primário expresso pela direita nas ruas como uma espécie de
retorno do recalcado. O autor mede os possíveis riscos, nesse momento, de uma
adesão social dos oprimidos e estropiados a esse mecanismo compensatório, que os
levaria à identificação com uma classe cuja ideologia já não reivindica o menor verniz
de civilidade. Em “FOGO AMIGO” – A incubadora petista da avalanche
conservadora, PAULO MARQUES traça uma série de elementos históricos
envolvidos na capitulação do Partido dos Trabalhadores, da apologia indireta à
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participação direta na reprodução da ordem capitalista, por fim ajudando a chocar o
ovo da serpente desse ―fascismo à brasileira‖ que hoje vai pipocando nas ruas e no
espírito das massas. Em seguida, G. Émeutes, em PASSEIO PELAS GREVES
PARANAENSES DA EDUCAÇÃO EM ALGUMAS NOTAS, faz um balanço das
greves contra o governo tucano de Beto Richa e do processo de organização contra o
cerco autoritário que ele impõe. No próximo texto, temos o ensaio de ATANÁSIO
MYKONIOS, SOBRE A MAIORIDADE PENAL – Uma ação preventiva do
capital, o qual traça a relação entre o projeto de redução da maioridade penal e a
desvalorização da força de trabalho no país, segundo o jogo de determinações
econômicas, políticas e culturais. Finalmente, em GERAÇÃO SARRAZIN (Breve
esboço da gênese da nova direita alemã), de TOMASZ KONICZ, autor dos círculos
alemães de crítica do valor Krisis, Exit! e Streifzüge, passa-se à discussão da
configuração do neofascismo islamofóbico do PEGIDA e de outros aspectos da
reação e do caráter autoritário na Europa.
Em seguida, temos um texto de crítica literária. Trata-se da análise de um
romance clássico ainda hoje subestimado e mal interpretado: em ESTADO DE
PESTE / ESTADO DE SÍTIO – Para reler A peste, de Camus, CLÁUDIO R.
DUARTE busca arquitetar o ponto de vista de seus referentes históricos captados
pela malha de seus significantes enigmáticos, muitos inclusive surpreendentes, em
que é refletida tanto a experiência dos regimes de exceção, a partir da África colonial
francesa e da ocupação nazista na França, quanto a organização prática de uma
―revolta‖ fundada numa relação ética solidária entre indivíduo e grupos socialmente
construídos. Acompanhando esse ensaio, temos uma tradução de um texto
conhecido de JEAN-PAUL SARTRE, escrito logo após o fim da grande guerra: O
QUE É UM COLABORADOR? – o qual desenha uma fisionomia social e moral do
indivíduo que colabora com o domínio nazista e o governo de Vichy. Que fique aqui a
sugestão de se traçar um dia um paralelo deste colaborador sombrio com o
―colaborador‖ da empresa e do mundo neoliberal atual.
Em MISÉRIAS DO PRIMITIVISMO, DANIEL CUNHA resenha Há
mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins, de Débora Danowski e Eduardo
Viveiros de Castro. O autor critica as suas tendências malthusianas e regressivas, que
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resultam de um déficit dialético e materialista da crítica do capital e das forças
produtivas, que no entanto podem soar atraentes no clima de ―fim do mundo‖ da
crise ecológica global.
A revista fecha com COMUNIZAÇÃO NO PRESENTE, do grupo francês
THÉORIE COMMUNISTE. Os autores buscam articular as noções de classe e
proletariado no capitalismo de crise – o proletariado como classe negativa e como o
seu próprio limite, que coloca a comunização na ordem do dia, aliando crítica radical
do valor e perspectiva de classe. Trata-se, de certa forma, do avesso da conjuntura.
Abril de 2015.
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OS MOVIMENTOS INDIGNADOS
E AS LUTAS DE CLASSES Entrevista de Charles Reeve a Stephane Julien e Marie Xaintrailles
Charles Reeve é o pseudônimo de Jorge Valadas, português exilado na França
desde os anos 60, após desertar do exército colonial português. É autor de várias obras
de reflexão política de tendência libertária, participante nos Cadernos de
Circunstância (1969-71) e no jornal Combate (1974-78). Nesta entrevista são
abordadas as lutas operárias na China e a crise capitalista atual e as suas
consequências qualitativas para as lutas sociais, em especial os novos movimentos dos
―Indignados‖.
Você escreveu vários livros sobre o capitalismo de Estado chinês. A China
se converteu em uma potência comercial no capitalismo mundializado.
Alguns o explicam pela não-convertibilidade de sua moeda e seu regime
repressivo. Por outro lado, há lutas operárias, ou ao menos é o que se diz.
Na ausência de sindicalismo independente, as greves são sempre
selvagens ou a situação é mais complexa? São sempre lutas reduzidas a
uma única empresa ou existem formas de coordenação ou de extensão a
setores produtivos ou cidades?
Para começar... pode haver sindicalismo independente e greves selvagens. Uma
greve é selvagem em relação à estratégia da burocracia sindical, ainda que esta seja
independente dos partidos. E um sindicato independente que funciona segundo o
princípio da negociação e da cogestão se opõe a toda ação autônoma dos assalariados
que possa incomodar a sua natureza ―responsável‖ e ―realista‖. A greve selvagem é uma
ação que mostra que os interesses dos trabalhadores não coincidem necessariamente
com os objetivos do sindicato, instituição negociadora do preço da força de trabalho.
Inversamente, houve na história do movimento sindical greves selvagens com objetivos
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reacionários, às vezes até racistas, como nos Estados Unidos e na África do Sul.
Na China a situação é certamente complexa. O sindicato único (ACFTU, All
China Federation of Trade Unions) está ligado ao partido comunista e fez o papel de
polícia da classe trabalhadora durante e após o maoísmo. Depois da ―abertura‖ (ao
capitalismo privado), se converteu em uma gigantesca máquina de gestão da força de
trabalho a serviço das empresas, incluindo as empresas estrangeiras nas Zonas
Econômicas Especiais. Está totalmente desacreditado entre os trabalhadores. Ele é
percebido como polícia e como apêndice da direção das empresas. Há alguns anos a
burocracia do Partido Comunista fez esforços para restituir algo de sua credibilidade
ao sindicato. Por exemplo, foram feitas campanhas demagógicas para ―organizar‖ os
mingong, ou seja, para introduzir certo controle do partido nessas comunidades
operárias marginalizadas, formadas por imigrantes do interior sem papeis dentro do
seu próprio país. Mas não houve nem efeitos e nem consequências e a imagem do
ACFTU entre os trabalhadores não mudou. Às vezes o poder central pressiona para que
as instâncias do ACFTU se posicionem contra esta ou aquela direção de uma empresa
de capital estrangeiro. Por outro lado, em lutas recentes se voltou a ver os capangas do
sindicato atacarem os grevistas e piquetes em defesa dessa mesma empresa. Isso prova
que essa organização, pela sua natureza, segue sendo, no fundo, reacionária e está ao
lado do poder, de todos os poderes.
Curiosamente, algumas organizações de espírito sindicalista independente, tais
como a China Labour Bulletin (Hong Kong, http://www.clb.org.hk/en) continuam, na
contracorrente e contrariamente ao que eles mesmos analisam, falando de uma
possível transformação do sindicato único em um ―verdadeiro sindicato‖ de tipo
ocidental. Se apoiam na atitude de alguns burocratas locais e regionais (sobretudo no
sul, em Guangdong) que tentam desempenhar um papel negociador a fim de apaziguar
a explosiva situação existente. Os militantes dessas organizações independentes (como
o China Labour Bulletin) compartilham a visão tradicional do movimento operário.
Para eles, a organização ―natural‖ dos trabalhadores é o sindicato, e apenas o sindicato
pode expressar a consciência dos trabalhadores, que sem a ajuda dos ―políticos‖ não
pode superar a consciência meramente sindicalista. Conhecemos o discurso. São os
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valores e princípios do velho movimento operário que se aferra à velha ideia
socialdemocrata.
Na China não existe sindicalismo independente, e não existirá enquanto a
forma política do Partido-Estado perdurar. Considerando a força do movimento
grevista há anos, a ausência de organizações criadas a partir da base explica o grau de
repressão do poder. E todas as greves são, por definição, selvagens, pois devem ser
feitas sem autorização e controle do ACFTU. Pois bem, todo movimento, toda luta,
implica uma organização, princípio da luta operária. Na China, nos encontramos
com organizações efêmeras, comissões de greve informais, formadas pelas
trabalhadoras e pelos trabalhadores mais militantes. Essas organizações sempre
desaparecem depois da luta. A maior parte do tempo, os trabalhadores mais ativos e
valorosos pagam caro; são presos, desaparecendo no universo carcerário. Existe a
impressão, faz algum tempo, de que o poder está mais tolerante, menos feroz na
repressão. Essas organizações informais não são reconhecidas, mas são menos
reprimidas. Essa mudança de atitude corresponde à crise profunda e complexa da
classe política chinesa, de suas divisões internas. Uma das facetas dessa crise é a
fratura existente entre os poderes locais e o poder central, chegando este último por
vezes a apioar os grevistas para debilitar os potentados locais. Por sua parte, também
os grevistas tentam atuar sobre essas divisões e antagonismos para satisfazer as suas
reivindicações. E o sindicato único, atravessado pelas divisões e frações do poder
político, está cada vez mais paralisado.
A última tentativa de criação de uma estrutura operária permanente, de
espírito sindicalista e independente do Partido Comunista, data de 1989, quando da
Primavera de Pequim, com a constituição da União Autônoma dos Operários. O
massacre de Tiananmen, em 4 de junho, golpeou particularmente esses militantes.1
Hoje existe uma rede de ONG's, criadas majoritariamente em Hong Kong, que
preenchem o vazio e desempenham um papel sindical, evitando com precaução
1 Charles Reeve e Hsi Hsuan-wou, Bureaucratie, bagnes et business, Insomniaque, 1997. http://www.insomniaqueediteur.org/publications/bureaucratie-bagnes-et-business
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qualquer confronto político com o poder.2
Até recentemente as lutas operárias ficavam bastante isoladas em empresas
ou regiões. Não obstante, é preciso relativizar esse isolamento e reconhecer que a
situação muda. Isolamento não quer dizer separação. Há uma unificação que se
realiza mediante reivindicações comuns, pela consciência de compartilhar o enorme
descontentamento social, de pertencer à sociedade dos explorados, de opor-se à
máfia do poder e dos capitalistas vermelhos. O papel das novas tecnologias, da
blogosfera em particular, é primordial.3 Quase estaríamos tentados a dizer que as
informações circulam hoje mais depressa na China do que em sociedades de
―informação livre‖ como as nossas, onde se pode dizer e saber tudo e não se diz nem
se sabe de nada; onde a informação está submetida ao consenso do que é
―importante‖, do que se considera ―informação‖. Na China, graças à rede das novas
tecnologias, uma luta importante, uma revolta popular ou manifestações contra uma
fábrica poluidora são rapidamente compartilhadas por centenas de milhares de
trabalhadores. Não é habitual que existam ―forma de coordenação‖, e as que existem
são totalmente clandestinas. Não obstante, hoje podemos constatar uma nova
tendência nessas lutas: a sua extensão. Há algum tempo as lutas saem rapidamente
das empresas e se dirigem aos centros de poder local, locais do partido, polícia,
tribunais...
Igualmente observamos como se estendem e generalizam as lutas nas zonas
industriais. Aumenta a solidariedade de classe e há trabalhadores que se deslocam
para apoiar os que lutam em outro lugar. A presença dos mingong, comunidades de
trabalhadores sem direitos, violentamente explorados, desempenha um papel
importante nessa extensão. É um processo em curso, vivido muito conscientemente,
e muito político, no sentido de que transborda rapidamente das reivindicações
imediatas e enfrenta os órgãos de repressão e de decisão da classe dirigente. Político
também no sentido de que essas lutas expressam o desejo de uma sociedade
diferente, de uma sociedade não desigual, não repressiva, não controlada pela máfia
2 Pun Ngai, Avis au consommateur, Insomniaque, 2011. http://www.insomniaqueediteur.org/publications/avis-au-consommateur 3 Les mots qui font peur, Insomniaque. http://www.isomniaqueediteur.org/publications/avis-au-consommateur
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do partido. Com efeito, o projeto democrático parlamentar de tipo ocidental,
defendido por correntes dissidentes, pode fincar raízes. É inevitável e lógico. Que
possa impor-se, encerrando toda perspectiva de emancipação social, também é
possível. Tudo depende, em última instância, da amplitude e radicalidade dos
movimentos sociais.
Na nota biográfica sobre Paul Mattick (pai) que publicou em “Marxisme,
dernier refuge de la bourgeoisie?”, você fala de um “esgotamento do
projeto keynesiano”. É mais ou menos o que dizia Pierre Souyri em seu
livro póstumo e inacabado “La dynamique du capitalisme au XX siècle”:
a utilização do Estado para “domar” a luta de classes e dinamizar o
investimento e a produção não sobreviveu aos avatares da crise
petrolífera e à mobilidade mundial do capital. Desde então o Estado
parece ter se tornado o alvo. Mas não se veem sinais do esgotamento do
projeto neoliberal que substituiu o keynesianismo, quando as populações
resistem aos excessos privatizadores dos serviços e os capitalistas têm as
suas reservas sobre o capital fictício a partir da crise de 2008?
É uma ótima ideia partir de Paul Mattick4 para voltar a falar de Pierre Souyri.5
Dois teóricos próximos, apesar dos caminhos diferentes e dos distintos contextos
históricos. Os dois são bem pouco conhecidos, quase nunca estudados, ignorados fora
de pequenos círculos radicais. Souyri ainda menos que Mattick, apesar de ter uma
carreira universária depois da sua participação em Socialisme ou Barbarie (onde
assinava como Pierre Brune). Souyri era sensível às ideias de Mattick, de quem era
leitor atento. O seu livro póstumo La dynamique du capitalisme au XX siècle (Payot,
1983) passou quase desapercebido e quase nunca é citado.
Mattick e Souyri compartilham a mesma teoria da crise capitalista, fundada
sobre a queda da rentabilidade do capital e as dificuldades de extração de mais-valia
necessária para a acumulação. Ambos consideravam que, ao contrário do que
4 Paul Mattick (1904-1981): http://bataillesocialiste.wordpress.com/mattick-1904-1981 5 Pierre Souyri (1925-1979): http://bataillesocialiste.wordpress.com/souyri-1925-1979
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mantinha a maior parte das correntes do marxismo radical (em relação à
socialdemocracia), o problema que a acumulação capitalista enfrenta é o da extração
de mais-valia, e não o da sua realização. Eles se distinguiram daqueles que explicam a
crise a partir do subconsumo, que eram e seguem sendo, no essencial, marxistas
keynesianos... ou keynesianos marxistas. As ideias defendidas por Mattick formam
parte de uma corrente mais ampla, da qual fazem parte, entre outros, Souyri na França
e Tony Cliff na Grã-Bretanha.
Souyri via na crise petrolífera de 1974 o indício de uma inversão no ciclo da
acumulação capitalista ocorrido depois da guerra.6 Em Le jour de l'addition7, Paul
Mattick filho (que foi companheiro político de seu pai, outro ponto em comum com
Souyri pai e filho...) demonstra igualmente como a crise de 1974 significou um giro a
partir do qual o capitalismo tentou superar a sua crise de rentabilidade mediante o
recurso constante e crescente do endividamento.
Para Souyri, o marxismo clássico (a socialdemocracia e a sua esquerda
bolchevique) subestimou as transformações do capitalismo e a sua capacidade de
integrar a classe trabalhadora. Por sua parte, Mattick analisou incessantemente o papel
que desempenhavam as organizações do marxismo clássico nessa integração. O debate
sobre a função e os limites do keynesianismo parte de constatar dita subestimação.
Souyri se interessou pela questão da transição ao capitalismo planificado, onde o
Estado interviria não apenas para corrigir os desequilíbrios da acumulação, mas
também conduziria uma economia racionalizada.
Sabemos que essa ideia é compartilhada por eminentes teóricos da
socialdemocracia, como Hilferding. Para Souyri, essa transição tornaria necessária a
integração capitalista do proletariado, já que a persistência da luta de classes tornaria
impossível a planificação. E é por isso que, nos anos 70, pensava poder concluir que
essa transição, essa capacidade do Estado para planejar a economia, não ocorreria.
6 ―La Crise de 1974 et la riposte du capital‖ Annales, nº 4, 1983 http://bataillesocialiste.wordpress.com/2010/06/18/la-crise-de-1974-et-la-riposte-du-capital-souyri-
1979-1-linflation-et-lattaque-contre-les-salaires 7 Em Le Jour de l‟addition (Insomniaque, 2009) http://www.insomniaqueediteur.org/publications/le-jour-de-laddition Uma versão ampliada desse texto foi publicada nos Estados Unidos em 2012, editada pela Reaktion
Books, e na Alemanha, pela Edition Nautilus.
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Como podemos confrontar essa ideia com o período atual? Mais do que
integrado, o proletariado atual está cambaleante, devido às medidas de reestruturação
capitalista. A classe capitalista não endossa esse projeto de racionalização da
economia; voltou, antes, a ideia do laissez faire, da mão invisível do mercado.
Portanto, é preciso voltar a colocar a questão sobre outras coordenadas. É o que fazia
Souyri, para quem, para além dos antagonismos de classe, há um ―problema mais
profundo: o da rentabilidade do capital e sua decadência‖ (La dynamique du
capitalisme au XX siècle, p. 29). De outra parte, Souyri afirmava que a ação reguladora
do Estado só foi possível em períodos de crescimento, e que quando ele se interrompia
os limites da intervenção do Estado se tornavam visíveis, ―... os primeiros sintomas da
desestabilização do sistema permitem estabelecer que as verdadeiras barreiras que
fazem frente à acumulação contínua do capital são aquelas que limitam a extração de
uma quantidade suficiente de mais-valia‖ (p. 30). ―A crise de 1974 demonstra com
clareza que a planificação de um crescimento contínuo é um mito que desaba assim
que a taxa de crescimento se contrai‖ (p. 38).
Portanto, é no problema da rentabilidade e da queda tendencial da taxa de lucro
do setor privado que se deve procurar o esgotamento do projeto keynesiano, de suas
veleidades reguladoras do capitalismo. Aqui Souyri converge com a análise dos limites
da economia mista analisados por Mattick. Para Souyri e para Mattick ―a rentabilidade
do capital privado sofreu uma erosão gradual que lhe retirou a capacidade de
autoexpansão‖ (p. 35). O que Keynes também reconhecia, e por isso pretendia
contribuir com uma ―solução‖ capaz de evitar uma possível ruptura social e os seus
perigos revolucionários. Pois bem, argumenta Mattick, essa ―solução‖, o
intervencionismo econômico, faz desaparecer as condições mesmas que a torna eficaz,
se converte no novo problema. O crescimento da demanda através da intervenção do
Estado atua sobre a produção global sem chegar a restaurar a rentabilidade do capital
privado e tampouco a continuidade da acumulação. Aumenta o endividamento e coloca
ainda mais peso na insuficiência dos lucros privados.
Hoje, enquanto vivemos os efeitos de uma profunda crise do capitalismo, os
debates sobre a sua natureza são raros ou se desenvolve em meios secretos. Ainda se
fala em ―crise monetária‖ sem explicá-la. A crítica do keynesianismo vem
[-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n°11, vol. 1, 2015
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essencialmente dos neoliberais. E as vozes que se apartam do discurso oficial são de
economistas neokeynesianos. Esse é o caso, na França, do círculo Les économiste
atterrés ou de Fréderic Lordon, cujos discursos ocupam um lugar central na esfera de
influência pós-ATTAC e no Le Monde Diplomatique. Em um de seus últimos artigos,
Lordon propõe ―um grande compromisso político, o único que pode tornar o
capitalismo temporariamente admissível, o mínimo que deveria reivindicar uma linha
socialdemocrata minimamente séria (...)‖, que no essencial se resumiria na aceitação
da desestabilização criada pelo capitalismo em troca de um compromisso dos
capitalistas para ―assumir danos colaterais‖, ―fazer o capital pagar o preço das
desordens que ele recria incessantemente na sociedade com as suas relocalizações e
reestruturações‖. Esse ―grande compromisso‖ neo-socialdemocrata seria uma pálida
cópia daqueles do passado; nem sequer se trata de ―corrigir‖ ou ―evitar‖ as crises, mas
de ―viver com elas‖ e de ―pagar pelas desordens‖ engendradas pelo sistema (Fréderic
Lordon, ―Peugeot, choc social et point de basculhe‖, Le Monde Diplomatique, agosto
2012). Frente a essa ruína programática da ―esquerda‖ se pode medir a importância da
obra de Paul Mattick e da sua crítica do keynesianismo de um ponto de vista
anticapitalista.
Escreve Souyri: ―Entre uma economia onde o setor público está limitado e
subordinado ao capitalismo monopolista e uma economia onde o setor estatal é
predominante enquanto o setor privado tende a ser residual, existe uma diferença
quantitativa que tende a ser qualitativa. A sociedade burguesa não pode estatizar
completamente a economia sem deixar de ser sociedade burguesa‖ (Ibid., p. 18).
Esse debate, sobre a dinâmica do capitalismo e sua evolução possível em direção
a uma forma de capitalismo de Estado também está presente na obra de Mattick. Ele
considerava que os limites da economia mista podem colocar, no longo prazo, o
problema da expropriação do capitalismo privado pelas deduções do Estado,
transferências de lucros privados para o setor público. Tal dinâmica não pode deixar de
gerar a oposição da classe burguesa.
E a ―diferença qualitativa‖ suscita uma questão política importante. O
neoliberalismo atual é uma recriação ideológica militante frente a essa tendência e esse
perigo; é o reconhecimento pelos economistas burgueses dos limites da economia
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mista. Porém, e apesar do impacto desse discurso antikeynesiano, o nível da
intervenção do Estado desde o final da Segunda Guerra nunca foi tão alto. E, como
destacava Mattick, a diminuição dessa intervenção conduz as economias à recessão. A
asfixia do projeto neoliberal se encontra nessa margem estreita entre a ausência de
―capacidade de autoexpansão‖ do capitalismo privado e a impossibilidade de continuar
aumentando a intervenção do Estado na economia.
Assim sendo, esse perigo que ameaça a sociedade burguesa explica que os
capitalistas privados não possam contemporizar com as tendências intervencionistas.
E que as tendências políticas neoliberais não cedam. No longo prazo, a sobrevivência
da burguesia depende disso. O Estado não é a sua presa, ele segue sendo a sua
instituição política, da qual se servem para saquear o conjunto da economia, para
salvaguardar e fazer funcionar as redes de especulação, para apropriar-se dos
benefícios sem, para isso, reativar a acumulação. Não obstante, podemos imaginar
uma situação de levante social frente à qual a única forma de preservar o modo de
produção capitalista seria uma volta ao intervencionismo generalizado, a uma
estatização da economia, onde inclusive a burguesia se alinharia taticamente com um
programa ―socialista de Estado‖. Dotando novamente de sentido uma frase de Rosa
que Mattick retoma em uma epígrafe de seu último livro: ―A classe burguesa trava o
seu último combate sob uma bandeira impostora, a da própria revolução‖. Mas a
bandeira da socialdemocracia, do capitalismo de Estado disfarçado de ―socialismo
possível‖ está hoje em dia muito desacreditada. A socialdemocracia se extraviou no
pântano do neoliberalismo. Tendo em vista o estado de desenvolvimento das
sociedades e a experiência histórica acumulada, podemos esperar que tal situação
abriria a porta a outras possibilidades, a uma luta pela emancipação social.
Mas ainda não chegamos nesse ponto. Nesse momento os capitalistas se
assanham para aumentar a taxa de exploração, com a esperança de aumentar
substancialmente os lucros e inverter a tendência ao desinvestimento. Mas já em 1974
escrevia Souyri: ―Uma política excessivamente reacionária em matéria de salários
poderia fazer crescer no proletariado uma desesperança e uma ira perigosas, sem com
isso modificar sensivelmente a taxa de lucro de uma maneira positiva‖ (―La crise de
1974 et la riposte du capital‖, ibid). É a situação na qual nos encontramos hoje.
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Se a depressão das economias se aprofunda, isso provocará a desorganização
das sociedades. Também as lutas sociais sofrerão uma modificação qualitativa. A
resistência não será suficiente, a subversão da antiga ordem social aparecerá para
alguns como uma necessidade. Do ponto de vista do capitalismo, visto o nível de
acumulação a que se chegou, para reestabelecer a rentabilidade será necessário algo
mais do que a superexploração, uma destruição gigantesca de capital e de força de
trabalho. As guerras isoladas, delimitadas, como as que estão acontecendo, não serão
suficientes, enquanto o capitalismo, com a sua tecnologia nuclear, se encontra a partir
de agora frente à sua capacidade de autodestruição.
Estamos assistindo ao alvorecer de um longo período no qual o capitalismo
voltará a demonstrar a sua periculosidade como sistema. Ainda não somos capazes de
imaginar as consequências políticas. A alternativa ―emancipação social ou barbárie‖
volta a colocar-se em evidência. As formas que adotará um possível movimento
emancipador serão novas, assim como as da barbárie política, pois tampouco são
atuais as do velho fascismo, sistema político e social da contrarrevolução, variante
totalitária do intervencionismo de Estado. Ler hoje em dia Mattick e Souyri, entre
outros, pode nos ajudar a discernir onde nos encontramos e os caminhos a evitar.
As mobilizações atuais contra as medidas de “austeridade”, sob formas
diversas, como o movimento “Occupy” nos Estados Unidos ou os
“indignados” em outros países, constituem, para você, uma nova forma
da luta de classes? De maneira mais geral, como você analisa as reações
dos trabalhadores frente às consequências da crise capitalista que as
classes dirigentes nos fazem sofrer?
Podemos começar pelo final. Na Espanha, em 2011, os bancos arrancaram de
suas casas entre 160 e 200 pessoas por mês, evidentemente com a ajuda da polícia.
Esses números continuam aumentando. Ao mesmo tempo, o número de despejos
impedidos pelas mobilizações coletivas foi da ordem de um por dia. Se a desproporção
é enorme, isso não desfaz o fato de que existe um forte movimento de oposição aos
despejos. A partir daí ocorrem articulações com o desenvolvimento de ações de
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trabalhadores na rua para ocupar – ―liberar‖, como dizem – imóveis vazios que
pertencem a bancos e sociedades imobiliárias. Grandes propriedades agrícolas
(pertencentes à agroindústria ou aos bancos) começam também a ser ocupadas pelos
assalariados agrícolas e desempregados, sobretudo na Andaluzia, na província da
Córdoba.
Essas ações diretas são exemplos de novas formas de ação realizadas por
trabalhadores que sofrem diretamente os efeitos das políticas de austeridade. Na
Europa, o caso espanhol é, sem dúvida, onde as lutas estão se radicalizando mais. E
essa radicalização, a popularidade dessas ações, não podem ser separadas do impacto
dos movimentos dos indignados, na Espanha no 15M. Nos Estados Unidos, onde o
movimento Occupy foi esmagado por uma forte repressão do Estado federal e das
autoridades locais, os grupos locais que ainda se reivindicam como Occupy estão
empenhados, igualmente, na luta contra os despejos nos bairros populares. Essas lutas
se caracterizam porque saem do marco puramente quantitativo da reivindicação
imediata. Se dirigem contra a legalidade e colocam a questão da necessária
reapropriação das condições de vida para aquelas e aqueles que fazem funcionar a
sociedade.
Os movimentos dos Indignados percorreram o seu caminho, com diferenças e
contradições, segundo as condições específicas de cada sociedade. Estão cheios de
contradições e ambiguidades, mas são diferentes de todos os que conhecemos antes.
Onde a sua dinâmica foi mais intensa, onde o movimento conseguiu ocupar por mais
tempo o espaço público, na Espanha e nos Estados Unidos, as divergências acabaram
tomando uma forma organizada, entre reformistas e radicais. Progressivamente, esta
última tendência, oposta ao eleitoralismo e à negociação, investiu a sua energia e a sua
criatividade em ações diretas, como o apoio a greves e ocupações de edifícios vazios,
ações contra os despejos, contra os bancos. Se diferenciam de formas de ação
precedentes, incorporam os becos sem saída e as derrotas do passado recente,
discutem os princípios do compromisso e das táticas de negociação.
Muito críticos da classe política e da corrupção e ela associada, questionam, de
forma mais ou menos extrema, os fundamentos mesmos da democracia representativa.
Buscam novas vias, se interrogam sobre a prioridade do enfrentamento físico com os
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mercenários do Estado e são particularmente sensíveis à necessidade de ampliar o
movimento. Duvidam dos projetos de gestão do presente, rechaçam a lógica
produtivista capitalista atual e colocam a necessidade de uma sociedade diferente.8
Essas preocupações são claramente antinômicas da atividade consensual e
normativa das instituições partidárias e dos sindicatos tradicionais. A energia criativa
liberada por esses movimentos propiciou a sua extensão social, às vezes para além do
que se poderia prever. Um exemplo recente: o grande movimento estudantil que está
sacudindo a sociedade do Quebec, apesar de ter começado com simples reivindicações
corporativas.9
Entre as ideias aportadas por esses movimentos, a da Ocupação parece ter
encontrado amplo eco. Assim como a proposta segundo a qual os interessados devem
atuar diretamente, por si mesmos, para eles próprios, para resolver os seus próprios
problemas. A insistência posta na organização de base foi um elemento motor desses
movimentos, pela constituição de coletividades não hierárquicas, que desconfia das
manipulações políticas, insubmissas ao carisma dos chefes. Quando a imprensa mais
contemporizadora (Paris Match e Grazzia, para citar apenas dois exemplos recentes)
se interessa de maneira paternalista pelos Indignados, é para lamentar que se tenham
distanciado da vida política tradicional e tenham rechaçado munir-se de chefes,
carências que, evidentemente, são apontadas como a causa principal do seu fracasso.
Nos Estados Unidos o impacto do movimento Occupy e suas ideias foi enorme,
e é muito cedo para analisar o seu alcance e as suas consequências.10 Se de início afetou
sobretudo os jovens estudantes-trabalhadores precários, que constituem uma fração
crescente da ―classe trabalhadora‖ em termos sociológicos, o movimento atraiu em
seguida, como na Espanha, a grande massa de precarizados do capitalismo
contemporâneo, de excluídos, sem teto e outros itinerantes da vida. Em muitas cidades
grandes eles ao final constituíam uma parte importante dos acampados na rua. Mas o
8 Grupo Etcétera, ―A propos du caminar indignado‖, Barcelona, março de 2012, publicado em Courant Alternatif, maio 2012: http://oclibertaire.free.fr/spip.php?article1177 9 ―La grève étudiante québécoise générale et illimitée: quelques limites en perspective‖. http://oclibertaire.free.fr/spip.php?article1215 10 Charles Reeve, Occupy, cette agaçante interruption du “business as usual‖. http://www.article11.info/?Occupy-cette-agacante-interruption#a_titre
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Occupy também cativou os setores mais combativos do movimento operário, os
sindicalistas de base. Isso diz muito sobre o estado de desenvolvimento no qual se
encontram os trabalhadores conscientes do beco sem saída do sindicalismo frente à
crise e à violência do ataque capitalista.
O mote ―we are the 99%‖, para além do seu simplismo redutor, destroçou a
expressão ideológica da ―classe média‖, categoria na qual se havia integrado todo
assalariado, todo trabalhador com nível médio de consumo, obviamente a crédito.
Revelou igualmente a tendência atual do capitalismo, a concentração da riqueza e do
poder em uma ínfima parte da sociedade. Assim, portanto, depois do Occupy, os
conceitos de exploração, de classe, de sociedade de classes voltaram à superfície do
discurso público. Em um vasto território-continente como os Estados Unidos, onde
conflitos, greves, mobilizações estavam cada vez mais separados uns dos outros, a
palavra Occupy constitui a partir de agora uma referência unificadora em toda luta
local ou setorial.
A ocupação da rua não é a ocupação de um local de trabalho. Mas nos Estados
Unidos e na Espanha, o espírito do Occupy e do 15M contaminou o ―mundo
assalariado‖. Encontra eco nos trabalhadores conscientes o fato de que a luta sindical
do passado não aspira a derrocada, nem mesmo o enfraquecimento dos movimentos
do capitalismo e das decisões agressivas dos capitalistas. O seu único objetivo diante da
decadência dos setores industriais é lograr um salário melhor, vender a própria pele
por um bom valor. Nesse sentido, a luta dos trabalhadores da Continental é um
exemplo. Empenhar-se para tornar viável uma empresa qualquer, um setor qualquer,
só leva ao adormecimento das vítimas. A ideia de ―autogestionar‖ uma empresa isolada
parece hoje mais irrisória, dada a mundialização do capitalismo. Veremos que forma e
conteúdo terá a luta futura na indústria automobilística francesa; se conseguirá
unificar outras lutas, outros setores onde a classe capitalista golpeará. Em um primeiro
momento o governo e os sindicatos se limitam a um discurso de ―reestruturação‖,
ainda que o setor automobilístico esteja submetido a uma competição mundial nos
mercados já saturados. Os militantes da esquerda sindical (a última tarefa histórica
dos trotskistas!) farão o que sabem fazer e sempre fizeram: criar um comitê de luta, ter
acesso aos livros da empresa e reivindicar a proibição das demissões. Para além disso,
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não têm nada a dizer, ou se autocensuram por considerações táticas sobre o sentido
social, humano e ecológico da produção de automóveis e sobre como e por que
salvaguardar tal lógica, uma produção que consome os homens e as sociedades.
Podemos, é claro, criticar os movimentos dos Indignados, ressaltar as suas
contradições e ambiguidades. Mas como podemos comparar esses movimentos que
sacodem por alguns meses as sociedades modernas, com o estado letárgico das lutas
operárias, onde atualmente não aparece a menor proposta alternativa, a menor ideia
de um mundo diferente, a não ser a resistência e o desejo de uma volta ao passado
recente, o mesmo que disparou o estado presente? Os movimentos Indignados são
―uma nova forma de luta de classes‖? São, efetivamente, uma forma de luta que
corresponde ao período atual da luta de classes. Despertam a sociedade e os
explorados mais conscientes fazendo-lhes ver os perigos do capitalismo, da
necessidade de abandonar a litania clássica da reivindicação imediata para colocar
questões sobre o futuro da sociedade. O movimento operário está velho e não pode
oferecer nem oposição e nem alternativa aos ataques capitalistas em curso. Está
morrendo, e é vão querer remediá-lo. É preciso construir um novo movimento a partir
das lutas daquelas e daqueles que se demarcam dos velhos princípios e formas de ação.
Isso levará algum tempo. O Occupy e o 15M, entre outros, abriram caminhos, formas
de ação. O trabalho da toupeira fará o resto. É apenas um breve adeus, e as formas e
conteúdos desses movimentos reaparecerão transformados, em outro lugar e outro
momento, em outros movimentos, com novas dinâmicas.
(Entrevista concedida em 15 de agosto de 2012, publicada originalmente em:
La Bataille Socialiste:
(https://bataillesocialiste.wordpress.com/2012/08/16/entretien-avec-charles-reeve/)
e
Trasversales 27: (http://www.trasversales.net/t27reeve.pdf ) .
(Traduzido da versão em espanhol por Daniel Cunha.)
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ANTICAPITALISMO PARA O SÉCULO XXI
Um breve panorama da nova crítica do valor
Joelton Nascimento1
The sky is falling Human race that we run
It left me crawling Staring straight at the sun
[O céu está caindo
A corrida humana que corremos Me deixou rastejando
Encarando diretamente o sol]
Josh Homme, Nick Oliveri (Queens of the Stone Ages)
INTRODUÇÃO
Neste artigo temos a pretensão de apresentar em linhas gerais algumas das teses
defendidas pela Nova Crítica do Valor (NCV), além de referências sobre alguns de seus
precursores. Pela designação NCV entendemos uma frente da batalha de ideias
anticapitalistas, que surgiram e se desenvolvem em torno de coletivos teóricos que se
apresentam publicamente sobretudo por intermédio de publicações abertas, em especial
as revistas alemãs Krisis e Exit!.
Comecemos por explicitar o que entendemos por ―anticapitalismo‖. Como todo
―anti‖, o anticapitalismo se define por aquilo contra o que ele se opõe. Uma teoria
anticapitalista, portanto, só pode ser assim considerada como tal quando for possível a
definição elementar do que seja a realidade social que se encontra sob a denominação de
capitalismo.
A palavra ―capitalista‖ começa a ser utilizada pela primeira vez no século XVIII
por economistas, para designar a figura do detentor de bens e valores que os emprega
1 Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. Email: [email protected]
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para obter lucros. Foi usado nesse sentido por Adam Smith (1723-1790) e por Anne
Turgot (1727-1781), por exemplo. Se nos restringíssemos à definição dada por estes
autores capitalismo significaria o sistema econômico que tem em seu centro a figura do
capitalista. Anticapitalismo, neste contexto, seria apenas a teoria e a prática que
combateriam a figura do capitalista. Esta definição, todavia, seria extremamente
problemática, uma vez que para muitos dos autores deste período, como François
Quesnay (1694-1774) e o próprio Turgot, o representante mais exemplar de capitalista é
o fazendeiro e não o empreendedor da indústria (JESSUA, 2011). Seria preciso uma
ideia consistente sobre o que é o capitalismo para que sua crítica intelectual e prática
possa ter também consistência.
É neste sentido que dizemos que a teoria anticapitalista consistente nasceu
junto com o trabalho e a prática de Karl Marx (1818-1883) e seus colaboradores. E isto
pela simples razão de que antes dele ainda não era possível vislumbrar com nitidez os
contornos do que seria ―capitalismo‖. Do ponto de vista descritivo, a princípio,
poderíamos considerar o capitalismo como a grande indústria, movimentada pela
economia monetária do trabalho assalariado, regulada pelo estado-nação.
Poder-se-ia dizer que bem antes de Marx já havia ideias comunistas rondando a
modernidade, como as do publicista francês François Noël Babeuf. É perfeitamente
possível considerar Babeuf um comunista (ainda que um comunista ―primitivo‖ ou
―proto-comunista‖) pois é com ele que pela primeira vez se torna claro um programa
político e social de igualitarismo de tipo comunista (VOVELLE, 2000); trata-se de um
político e intelectual que se junta à longa corrente daqueles que fizeram de suas próprias
vidas uma batalha pela justiça e pela equidade. Contudo, dificilmente poderíamos
chamá-lo de anticapitalista, uma vez que a ordem social erguida pela grande indústria,
movimentada pela economia monetária do trabalho assalariado e regulada pelos
estados-nação, ainda não tinha se desenvolvido a ponto de delinear suas feições mais
básicas.
Talvez ele pudesse ser considerado anticapitalista no sentido que a palavra
―capitalista‖ tinha para Quesnay, isto é, no sentido de um sistema econômico centrado
na figura do capitalista individual, cujo exemplar mais típico é o fazendeiro. E, de fato, a
mais contundente das teses de Babeuf é contra a propriedade privada da terra, que,
segundo ele, deveria ser inteiramente nacionalizada e redistribuída equitativamente;
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imposta apenas como propriedade coletiva. A propriedade privada, todavia, não é um
princípio capaz de abarcar nenhum dos pilares principais do capitalismo mencionados
em nossa descrição do capitalismo dada acima.
Com Marx nasce uma teoria anticapitalista como delineamento de uma prática
comunista concreta, para além de objeções morais e de idealizações acerca de uma
sociedade futurista.
1. ELEMENTOS CENTRAIS DO MARXISMO TRADICIONAL
Ajudado pelo afastamento histórico, Ingo Elbe (2013)2 resumiu de modo
formidável as leituras da teoria marxiana centrais até então realizadas. Segundo ele,
depois dos escritos de Marx, temos em nosso acervo crítico o marxismo, ou o marxismo
tradicional, isto é, as interpretações dos escritos de Marx ligados primariamente aos
partidos políticos e representativos de trabalhadores. Temos, ainda, os marxismos, ou
modos dissidentes de leitura dos textos de Marx.
O marxismo tradicional é fundamentalmente aquele canonizado nas obras de
Engels e Kautstky e que serviram de base para o assim chamado marxismo-leninismo.
Esta leitura se acostumou e se adaptou inteiramente aos esquemas canônicos de leitura
voltados para as camadas ―exotéricas‖ das obras de Marx, isto é, os textos do filósofo e
líder operário que serviam sobretudo para a divulgação e para a agitação política3. Os
marxismos dissidentes, em especial o denominado marxismo ocidental e a Nova Leitura
de Marx (a neue Marx-Lektüre), se detiveram em uma leitura do Marx ―esotérico‖, isto
é, nos textos marxianos com maior densidade e alcance analítico e crítico.
Outrossim, os marxismos dissidentes se desenvolveram amiúde fora dos
partidos e mesmo de grandes instituições de pesquisa (exceção é a Escola de Frankfurt)
na condição sobretudo de um marxismo underground.
Ainda segundo Elbe, o marxismo tradicional tem como um de seus cânones
mais importantes a obra Anti-Dühring [1877] (1976) de Engels. Kautsky nunca
escondeu o fato de que todos os intelectuais à sua volta liam O Capital de Marx pelas
2 Todas as citações deste artigo de Elbe foram traduzidas pelo autor. 3 Segundo Marcel Van der Linden (1997, p. 448) o primeiro a propor a distinção entre um Marx
―exotérico‖ e um Marx ―esotérico‖ foi Stefan Breuer (1977). Distinção esta que exerceu um papel crucial em Robert Kurz ([1998], 2005) e nos demais autores da NCV.
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lentes deste livro de Engels; em grande medida pode-se dizer que o marxismo
tradicional é um ―engelsianismo‖ (2013, p. 2/13). Três são os pilares do marxismo
tradicional, segundo Elbe: 1) a tendência ao determinismo ontológico; 2) a interpretação
historicista do método formal-genético e 3) a crítica do estado restrita ao conteúdo.
Veremos a seguir rapidamente cada um destes pilares.
1.1- A tendência ao determinismo ontológico
A tendência ao determinismo ontológico é fruto bastante direto da busca
engelsiana de forjar a dialética como um método para se compreender, inclusive em
termos de determinação de causa e efeito, tanto os fenômenos da natureza quanto os
fenômenos de ordem social e histórica. A dialética é dividida drasticamente em ―dois
conjuntos de leis‖, a partir de onde se pode concluir que o pensamento ou a consciência
é entendida como uma imagem mental passiva do mundo externo. São pelo menos três
os desvios – e pode-se dizer, distorções – da concepção marxiana de práxis realizadas
pelo engelsianismo e que são fundadores do marxismo tradicional.
Segundo Marx, não só o objeto mas também a observação do objeto é
historicamente e praticamente mediada, e portanto não é externa ao modo de produção.
Engels, por seu turno, enfatiza que a observação da natureza tal e qual já constitui uma
observação ―materialista‖. ―O realismo ingênuo da teoria do reflexo sistematizada por
Lênin e outros – que resta presa à aparência reificada da imediação daquilo que é
socialmente mediado, do fetichismo de um em-si daquilo que existe apenas em uma
estrutura de atividade humana historicamente determinada – recebe seus fundamentos
já nos escritos de Engels‖ (ELBE, 2013, p. 2/13). Assim, uma visão pseudo-materialista
relaciona crua e não-mediadamente pensamento e ser, consciência e realidade material.
Em A Ideologia Alemã (1845-46), junto com Marx, Engels expressou o conceito
de derivação natural [Naturwüchsigkeit] como algo negativo, isto é, ali eles enunciaram
a ideia de superação das noções e leis sociais que permaneciam ocultas no inconsciente
dos agentes coletivos como se naturais fossem. Já no Engels de Ludwig Feuerbach e o
fim da filosofia clássica alemã (1886) desaparece este caráter negativo, para ele agora
era preciso apenas aplicar conscientemente no mundo social as ―leis gerais de
movimento‖ do mundo externo.
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Se nas Teses sobre Feuerbach (1845) Marx dizia que ―Todos os mistérios que
orientam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na prática humana
e na compreensão desta prática‖ (MARX, 1990, p. 34), Engels reduziu praxis à atividade
experiental das ciências naturais. De modo geral, ―Engels embrulhou junto [do
marxismo] o cientificismo de sua época, pavimentando o caminho para concepção
mecanicista e fatalista do materialismo histórico, mudando o enfoque de uma teoria
social da práxis para uma doutrina, uma teoria-reflexão contemplativa do
desenvolvimento‖ (id.).
Reduzida ainda mais às ―três leis da dialética‖ e aos ―cinco modos de produção‖,
a doutrina engelsiana do desenvolvimento foi elevada à categoria de doutrina oficial de
estado pelo stalinismo. A potência do estado soviético era constantemente proclamada
como advinda da capacidade de seus dirigentes de ―aplicar conscientemente‖ e de
―acelerar‖ os movimentos da história com base no conhecimento de suas ―leis‖, em um
misto paradoxal de voluntarismo e determinismo: a vontade tudo pode na medida em
que se conhece e aplica o conhecimento sobre as leis de movimento da realidade
objetiva independente dos agentes envolvidos nesta.
1.2 - A interpretação historicista do método formal-genético
Segundo Ingo Elbe, neste tópico o marxismo-leninismo é, ainda mais
explicitamente, engelsianismo. A interpretação de Engels da simultaneidade histórica e
lógica do livro 1 de O Capital é a dominante nos cem anos que sucederam a primeira
publicação deste livro.
Contra o pano de fundo de sua concepção de reflexo, Engels interpreta o primeiro capítulo de O Capital como uma apresentação simultaneamente lógica e histórica da ―produção simples de mercadorias‖ que se desenvolve no sentido das relações de trabalho assalariado capitalista, ―apenas despido de sua forma histórica e desviando das ocorrências casuais‖. O termo ―lógico‖ neste contexto não significa basicamente nada além de ―simplificado‖ (ELBE, 2013, p. 5/13)4.
4 As aspas indicam citações de Engels de sua resenha à Contribuição à Crítica da Economia Política
(1859) de Marx.
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A interpretação engelsiana da crítica da economia política marxiana como uma
obra fundamentalmente histórica, apenas refletindo ―logicamente‖ o desenvolvimento
histórico é o fundamento da tese de Hilferding de que ―de acordo com o método
dialético, a evolução conceitual corre em paralelo com a evolução histórica‖
(HILFERDING apud ELBE, 2013, p. 5/13). Mesmo um dos marxismos dissidentes, o
chamado marxismo ocidental, seguiu em grande medida esta tese de Engels-Hilferding.
O principal resultado desta tese é a visada ao passado com categorias e conceitos
próprios das sociedades capitalistas. Toda a história humana passa a, indiferentemente,
ser uma história da apropriação do trabalho alheio. Entretanto, a especificidade das
categorias valor e dinheiro são inteiramente subestimadas e a distinção marxiana entre
valor e forma valor fica inteiramente obscurecida5.
Até os anos 60, os teoremas de Engels continuam a ser transmitidos sem disputas. Junto com sua fórmula (uma vez mais tirada de Hegel) da liberdade como sendo a consciência da necessidade, e os paralelos esboçados entre as leis naturais e os processos sociais, eles deram sustentação para um ―conceito de emancipação‖ sócio-tecnológico de acordo com a seguinte premissa: a necessidade social (sobretudo a lei do valor), que opera anarquicamente e descontroladamente no capitalismo será, por meio do marxismo como ciência das leis objetivas da natureza e da sociedade, gerenciadas e aplicadas de acordo com um plano. Não o desaparecimento das determinações de forma capitalistas, mas, antes, seu uso alternativo é o que caracteriza este ―socialismo de adjetivos‖ (termo de Robert Kurz) e esta ―economia política socialista‖ (ELBE, 2013, p. 5/13).
1.3 - A crítica do estado restrita ao conteúdo
Observações engelsianas sobre o estado também encontramos em Anti-
Dühring, Ludwig Feuerbach e Origens da família, da propriedade privado e do Estado
(1884). Estes trabalhos são os cânones do marxismo tradicional a respeito do tema,
sendo tanto tomados como chaves da leitura para os textos do próprio Marx quanto
amalgamados indiferentemente com estes6.
5 A observação de Marx em uma nota de O Capital (1996, p. 205, n. 119) contra Smith e Ricardo,
caberiam, pois, como uma luva para o próprio Engels e seus seguidores. 6 Para um estudo marxológico que separa cuidadosamente as considerações de Marx das de Engels a
respeito do estado, cf. Tamy Pogrebinschi (2009), para um estudo confrontando os textos de Marx e os de Engels, cf. Norman Levine (1975).
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Em Ludwig Feuerbach Engels afirma que o fato de todas as necessidades nas sociedades de classe serem articuladas através da vontade do estado é ―o aspecto formal do tema – aquele que é autoevidente‖. A questão principal para uma teoria materialista do estado, entretanto, é ―qual é o conteúdo desta vontade meramente formal?‖ A resposta desta questão, baseada puramente baseada em conteúdo, concernente à vontade do estado é para Engels o reconhecimento de ―que na história moderna a vontade do estado é, como um todo, determinada pelas necessidades cambiantes da sociedade civil, em face da supremacia desta ou daquela classe, em última análise pelo desenvolvimento das forças produtivas e das relações de troca‖ (ELBE, 2013, p. 5/13)7.
Gert Schäfer (1990, p. 99) já havia compreendido bem os limites desta
concepção engelsiana:
Mais tarde [em relação a 1886, JN] Engels assegurou que ―nós todos‖ colocamos e tínhamos que colocar ―o acento principal na dedução das ideias políticas, jurídicas e semelhantes, bem como nas ações mediadas através destas ideias, a partir das relações econômicas básicas‖. ―E ao fazer isto descuidamos do lado formal em benefício do conteúdo: o modo como estas ideias, representações, etc., surgem‖. Engels considerou esta falta de mediação entre conteúdo e forma (―sempre dei por esta falta post festum‖) como um dos ―lados da coisa, a qual... todos nós descuidamos, muito mais do que ela merecia‖ (Engels a Franz Mehring, 14/07/1893).
Retomando as observações de Schäfer, Elbe percebe que, para Engels, o estado e
seus desdobramentos políticos e jurídicos passam a ser explicados quase que
inteiramente pelo seu respectivo poder e pertencimento de classe. ―A partir deste modo
de considerar o estado histórico-universalmente fixado no conteúdo, pode-se deduzir
que Engels perde de vista a questão realmente interessante, nomeadamente, sobre o
porquê do conteúdo de classe no capitalismo tomar a forma específica da autoridade
pública‖ (2013, p. 5/13).
O resultado mais importante desta visão estreita do marxismo tradicional é que
ele concebe o planejamento econômico estatal e a socialização direta como equivalentes.
A tarefa do movimento operário passaria a ser ―comandar‖ o poder centralizador,
planejador e monopolizador advindo do desenvolvimento mesmo do capitalismo,
alterando-lhe somente o conteúdo classista, que, ademais, seria uma consequência
natural da ―obsolescência‖ da classe burguesa. E aqui novamente, caberia uma longa
mas crucial observação de Gert Schäfer:
7 As aspas indicam citações de Engels de Ludwig Feuerbach.
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Engels (também Hilferding e Lênin) confunde a sociabilidade específica da produção capitalista de mercadorias e o seu modo característico de planejamento com a produção imediatamente social. A ―produção‖ capitalista ―privada‖ não desaparece pelo simples fato de ser um capital da sociedade, ―produção para a conta associada de muitos‖ capitalistas. Não se elimina a ―inexistência de planificação‖ no capitalismo a partir do momento em que os trusts e outras formas semelhantes de organização do capital passam a conceber planos em larga escala. De fato, Engels tinha empregado um conceito de produção privada que se referia àquilo que hoje chamamos de capitalismo do empresário, e a ―falta de planejamento‖ era entendida por ele num sentido limitado; no seu entender, o fim da ―falta de planejamento‖ dar-se-ia através do controle de mercados tal como é exercitado nos trusts, o qual permite um planejamento de vendas, das quantidades e dos preços, o que coloca em cheque a ideia de que a livre concorrência constitui a forma única e absoluta de movimentar o capital. Entretanto, Engels passou ao largo do problema decisivo, que é o da relação da lei do valor com as novas formas assumidas pela monopolização e pela intervenção estatal; e mais tarde Lênin identificou falsamente a ―anarquia‖ do modo capitalista de produção com a efetividade desenfreada da ―anarquia do mercado‖, com o assim chamado capitalismo da concorrência (SCHÄFER, 1990, p. 132-133).
O estado, concebido apenas por intermédio de uma fixação de conteúdo, passa a
ser determinado inteiramente pela classe social que tem dominância sobre seus
aparelhos, sendo as classes, por sua vez, determinadas sobretudo pela propriedade
privada dos meios de produção; sendo esta última determinação, não obstante,
inelutavelmente jurídica ela própria.
Lênin escrevia com toda clareza em 1917 que para ele ―transição socialista‖
significava que ―todos os cidadãos se tornam empregados e operários de um só truste
universal de Estado‖, e assim, a ―sociedade inteira não será mais do que um grande
escritório e uma grande fábrica, com igualdade de trabalho e igualdade de salário‖
(LÊNIN, 2011, p. 153). Este pode ser visto como um desenvolvimento político-prático da
―crítica‖ engelsiana do estado.
2. ELEMENTOS CENTRAIS DOS MARXISMOS DISSIDENTES
Os anos 20 do século XX assistiram a uma forte retomada criativa da crítica
anticapitalista e, no seu ensejo, de leituras mais próximas dos textos de Marx e que
abririam novas chaves para sua leitura. Quatro obras se destacam como representativas
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deste momento: História e Consciência de Classe (1923) de Geog Lukács, Marxismo e
Filosofia (1923) de Karl Korsch, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, de Evgeny
Pachukanis (1924) e A Teoria Marxista do Valor (1924) de Isaak Ilitch Rubin.
As duas primeiras obras, do jovem Lukács e a Korsch foram fundadoras daquilo
que Merleau-Ponty chamou de ―marxismo ocidental‖ (2006)8. A redescoberta das duas
últimas obras nos anos 60 foram propulsoras de outra vertente de marxismo dissidente,
a Nova Leitura de Marx que, por seu turno, recebeu forte influência do marxismo
ocidental.
Intelectuais como Georg Lukács (1895-1971), Ernst Bloch (1885-1977), Karl
Korsch (1886-1961), Antonio Gramsci (1891-1937), Max Horkheimer (1895-1973),
Theodor Adorno (1901-1969), Herbert Marcuse (1889-1979), Alfred Sohn-Rethel (1899-
1990), Lucio Coletti (1924-2001), Henri Lefebvre (1901-1991), Galvano Della Volpe
(1895-1968) e Louis Althusser (1918-1990) têm em comum o fato de que propuseram
novas leituras e fronteiras para o pensamento anticapitalista que iam além dos cânones
do marxismo-leninismo.
Gramsci, por exemplo, criticava a uso da Revolução Russa de Outubro como
paradigma de revolução para o ocidente. Lukács esclareceu em grande medida a real
posição teórico-crítica de Marx a respeito da dialética e do materialismo, para além de
algumas das distorções e reduções do engelsianismo, tarefa também que se deu Karl
Korsch. Alguns importantes aspectos do marxismo-leninismo, porém, permaneceram
no chamado ―marxismo ocidental‖, como por exemplo, em Lukács e Gramsci a
centralidade do papel revolucionário para o proletariado fabril (ELBE, 2013, p. 6/13).
Para Elbe, entretanto, o marxismo ocidental pode ser caracterizado também
pelo que ele silenciou sobre:
A característica geral desta formação marxista – sua sensibilidade para o legado hegeliano e o potencial crítico-humanista da teoria de Marx, a incorporação de abordagens ―burguesas‖ contemporâneas para elucidar a grande crise do movimentos dos trabalhadores, a orientação para a metodologia, a sensibilização para os fenômenos psicossociais e culturais em conexão com a questão referente às razões para a falha da revolução
8 A expressão ―marxismo ocidental‖, como lembra Elbe, parece ter vindo logo que História e Consciência
de Classe foi publicado. Ela serve como referência geral mas já foi bastante e acertadamente criticada como referência a um conjunto de teses ou uma ―escola‖. O uso da expressão foi consagrado por Perry Anderson (1976).
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no ―ocidente‖ - provê a estrutura para um novo tipo de exegese restrita de Marx. Esta se caracteriza essencialmente pela negligência em relação aos problemas da política e da teoria do estado, uma seletiva recepção da teoria do valor de Marx, e a predominância de uma ―ortodoxia silenciosa‖ concernente à crítica da economia política. (…) Até meados dos anos 60 parece que nenhum marxista ocidental estendeu seu debate com as tradicionais interpretações de Marx para o domínio da teoria do valor (ELBE, 2013, p. 6/13).
De acordo com o competente estudo panorâmico realizado pela revista/coletivo
Endnotes, das retomadas da leitura de Marx, em especial de O Capital nos anos 609, se
destacam aquelas realizadas pela Nova Leitura de Marx [neue Marx-Lektüre] na
Alemanha. As principais razões para a vantagem da releitura alemã de Marx, segundo
Endnotes é que:
… o grande recurso cultural que Marx usava na crítica da economia política – o idealismo clássico alemão – não estava sujeito aos mesmos problemas de recepção do pensamento hegeliano que em outros países. Assim, enquanto na Itália e na França as novas leituras de Marx tendiam para um preconceito anti-Hegel como reação em face dos modismos hegelianos anteriores e contra o ―marxismo hegeliano‖, os debates alemães conseguiram esboçar um quadro mais matizado e informado do vínculo Marx-Hegel. Um fato crucial foi que eles viram que ao descrever a estrutura lógica da totalidade real das relações capitalistas, Marx em O Capital ficou em dívida não tanto com a concepção de Hegel de história dialética, mas com a dialética sistemática da Lógica. Assim, o novo marxismo crítico, algumas vezes denominado depreciativamente de Kapitallogik tinha menos em comum com o marxismo crítico anterior de Lukács e de Korsch do que com o de Rubin e Pachukanis. A Nova Leitura de Marx não era uma escola homogênea mas uma abordagem crítica envolvendo sérios argumentos e discordâncias que não obstante compartilhavam um certo direcionamento (ENDNOTES, 2010, p. 5/17)
Três são os autores mais expressivos deste primeiro momento da Nova Leitura
de Marx: Hans-Jürgen Krahl10 (1943-1970) cujos escritos mais importantes foram
recolhidos em Constituição e Luta de Classes ([1971], 2008), Hans-Georg Backhaus,
cuja obra principal, que foi gestada desde esses anos é Dialética da forma-valor ([1997],
2011) e Helmut Reichelt, o mais conhecido deles, cuja obra Sobre a estrutura lógica do
9 Outras releituras importantes deste momento foram as de Tronti e do obreirismo na Itália e a do
estruturalismo de Althusser na França, que, todavia, estão mais próximas das tentativas de releitura de Marx do marxismo ocidental e de seus limites.
10 Curiosamente, Krahl foi um dos líderes do movimento estudantil antiautoritário que interrompeu uma aula de Adorno em protesto, e Adorno, em resposta, chamou a polícia em um polêmico episódio que antecedeu sua morte em 1969. Krahl morreu em um acidente de carro no ano seguinte.
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conceito de capital em Karl Marx (2013) , pode ser apontada como a mais importante
da primeira ―rodada‖ de debates da Nova Leitura de Marx. Krahl, Backhaus e Reichelt
significam tanto uma ruptura quanto um desenvolvimento da reflexão filosófico-crítica
da Escola de Frankfurt. Mais ainda: a Nova Leitura de Marx rompeu definitivamente
com os limites engelsianos que comprimiam a leitura dos textos de Marx e as críticas do
capitalismo delas derivadas.
Nos debates alemães, e subsequentemente internacionais, a autoridade de Engels – assim como do marxismo tradicional que dela dependiam – foi compreensivamente desafiada. A Nova Leitura de Marx argumentava que nem a interpretação engelsiana, nem qualquer uma das modificações a ela propostas fez justiça ao movimento por trás da ordem e do desenvolvimento das categorias em O Capital. Em lugar de um avanço partindo de um estágio não-capitalista, ou um modelo simplificado hipoteticamente da produção mercantil simples até chegar a uma etapa posterior, ou um modelo mais complexo de produção capitalista de mercadorias, era preciso captar o movimento de O Capital como uma apresentação da totalidade capitalista desde o princípio, que se movia do abstrato ao concreto. Em Sobre a estrutura lógica do conceito de capital de Karl Marx Helmut Reichelt desenvolveu uma concepção que, de um modo ou outro, agora é fundamental para os teóricos da dialética sistemática: que a ―lógica do conceito de capital‖ como processo autodeterminado corresponde a ir para além de si do conceito da Lógica de Hegel. De acordo com este ponto de vista o mundo do capital pode ser considerado como objetivamente idealista: por exemplo, a mercadoria como uma coisa ―suprassensível ainda que sensível‖. A dialética da forma-valor mostra como, partindo da forma-mercadoria mais simples, os aspectos materiais e concretos do processo da vida social estão dominados pelas formas sociais abstratas e ideais do valor (ENDNOTES, 2010, p. 6/17).
Saído diretamente do debate aberto pela Nova Leitura de Marx, o assim
chamado ―debate derivacionista‖ recolocou em questão o problema do estado, de um
modo profundamente divergente do modo engelsiano-leninista. O modo distinto
conforme o qual Pachukanis colocou o problema foi redescoberto. Lembremos da
proposição pachukaniana:
O conceito de direito é aqui [em Plekhanov] considerado exclusivamente do ponto de vista de seu conteúdo; a questão da forma jurídica enquanto tal não é colocada. Contudo não há dúvida de que a teoria marxista não deve apenas examinar o conteúdo concreto dos ordenamentos jurídicos nas diferentes épocas históricas, mas fornecer também uma explicação materialista do ordenamento jurídico como forma histórica determinada.
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Se renunciarmos à análise dos conceitos jurídicos fundamentais, obteremos apenas uma teoria jurídica explicativa da origem do ordenamento jurídico a partir das necessidades materiais da sociedade e, consequentemente, do fato de que as normas jurídicas correspondem aos interesses de tal ou qual classe social. Mas o próprio ordenamento jurídico permanece sem ser analisado enquanto forma, apesar da riqueza do conteúdo histórico que introduzimos neste conceito (PASUKANIS, 1988, p. 18-19).
Ainda que não se mostre consciente disso, Pachukanis colocou as premissas
engelsianas em cheque, de um modo muito semelhante àquele de Isaak Rubin (1980) ao
tratar dos problemas da crítica da economia política11. É por esta picada que avançam os
autores dos debates derivacionistas, dentre os quais se destaca Joachim Hirsch (1990,
2010)12.
Baseando-se na obra pioneira de Pachukanis, os participantes do debate da derivação do estado captaram a separação entre o ―econômico‖ e o ―político‖ como elemento próprio da dominação capitalista. Isto implicava que, longe de ser considerada como o estabelecimento de uma economia socialista e de um estado obreiro, como preconizava o marxismo tradicional, a revolução devia ser entendida como destruição tanto da ―economia‖ como do ―Estado‖. Apesar do caráter abstrato (e as vezes acadêmico) destes debates, começamos a ver agora como na Alemanha o retorno crítico a Marx sobre a base das lutas do final dos anos sessenta teve consequências concretas (e muito radicais) para a forma que concebemos a superação do modo de produção capitalista (ENDNOTES, 2010, p. 7/17)
O debate aberto pela Nova Leitura de Marx, que pode ser caracterizado pelo
recurso à dialética sistemática da forma valor se espalhou a seguir por vários países, sem
que necessariamente possamos encontrar nisso uma relação de influência direta, mas de
simultaneidade. Diversos autores mais ou menos ligados a movimentos sociais e mais
ou menos acadêmicos, se detiveram nas questões postas pela crítica marxiana das
formas sociais do valor. Estes autores podem ser relacionados aqui no que segue (de
modo não exaustivo): Roman Rosdolsky (2001), Cristopher Arthur (2004), Alfredo
Saad-Filho (2002), Werner Bonefeld (1992), Michael Eldred (2010), Michael Heinrich
(2004), Patrick Murray (2005), Geert Reuten (2005), Fred Moseley (2004), Felton
11 Como observa Endnotes (2010, p. 16/17, n. 51), Rubin pouco influenciou os debates alemães
inicialmente. 12 Para materiais sobre o debate derivacionista cf. (HOLLOWAY & PICCIOTO, 1978).
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Shortall (1994), Ruy Fausto (1983, 2002), Tony Smith (1993), Claudio Napoleoni (1980,
1988), Jean-Marie Vincent (1987), Ingo Elbe (2010, 2013), Massimo De Angelis (2007),
e, a nosso juízo, em destaque: Slavoj Žižek (2012, 2013), Moishe Postone (2006, 2014),
John Holloway (2003, 2013) e Kojin Karatani (2003, 2014).
3. A NOVA CRÍTICA DO VALOR
A expressão ―Nova Crítica do Valor‖ apareceu pela primeira vez no livro do
crítico social e ensaísta Anselm Jappe, As Aventuras da Mercadoria, publicado
originalmente em 2003 (JAPPE, 2006). Com esta expressão Jappe designava uma
vertente de teoria crítica anticapitalista à qual seu livro ainda é a mais poderosa síntese.
A NCV pode ser definida, inicialmente, como uma dupla releitura: ela é tanto
uma releitura da obra de Karl Marx quanto uma releitura do capitalismo, que toma
como base suas recentes transformações ocasionadas pelo decurso de seu próprio
desenvolvimento. Contudo, estas duas releituras se fundamentam mutuamente e de
modo complexo: a releitura de Marx é fundamento para uma nova teoria crítica do
capitalismo, e esta nova teoria crítica do capitalismo é o fundamento para uma nova
leitura de Marx. A NCV, desta forma, é uma tentativa de ir ―com Marx, para além de
Marx‖13 com fundamento em uma interpretação própria do desenvolvimento do
capitalismo após os anos 1970.
Não podemos, entretanto, deixar de notar que esta vertente teórico-crítica é, ao
mesmo tempo, uma ruptura e um desenvolvimento da Nova Leitura de Marx alemã. Ela
se delineia especificamente a partir do final dos anos 1980 junto com a atividade de
coletivos e de intelectuais independentes em torno da publicação Krisis14. Este esforço
se desdobra e se ramifica em diversas outras publicações, dentre elas a revista austríaca
Streifzüge (1996)15 e a mais importante, a nosso juízo, a alemã Exit! (2004)16. Tanto a
Krisis quanto a Exit!, entretanto, são publicações voltadas a estudiosos, com artigos
13 Este é o mote do projeto teórico do grupo alemão Exit! chamado Crítica do Capitalismo para o século
XXI. Há uma versão do projeto traduzida para o português em <http://obeco.planetaclix.pt/exit_projecto_teorico.htm>.
14 Cf. o material disponível em http://ww.krisis.org 15 Disponível em: http://www.streifzuege.org/ 16 Cf. material disponível em http://www.exit-online.org/
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teoricamente densos.
Esta vertente da crítica do capitalismo começou a ganhar alguma atenção no
Brasil quando da publicação do livro de Robert Kurz (1943-2012), O Colapso da
Modernização (1993), muito debatido, com defesas e críticas por parte de intelectuais
de esquerda brasileiros e que revelou uma diferente visão sobre as crises econômicas
dos anos 90. Outras obras de Kurz foram também traduzidas e publicadas (KURZ, 1997,
2004, 2010) a seguir; a manutenção de um portal eletrônico com textos da Nova Crítica
do Valor em Portugal também foi crucial para a divulgação dos trabalhos de autores
como Robert Kurz, Roswitha Scholz, Norbert Trenkle, Ernst Lohoff, Franz Schandl,
Claus Peter Ortlieb, Anselm Jappe e outros17.
3.1- A crítica do trabalho
A nosso juízo, um dos primeiros e mais expressivos pontos de
ruptura/desenvolvimento da NCV em relação à Nova Leitura de Marx se dá em 1995
com a publicação de um artigo de Kurz no nº 15 de Krisis, chamado Pós-marxismo e o
fetiche do trabalho ([1995], 2003). Trata-se aqui de um passo importante de construção
teórico-crítica do Manifesto Contra o Trabalho ([1999], 2003) que seria publicado 4
anos depois.
Desde os Grundrisse, chamado de ―laboratório de estudos‖ (Bellofiore)
marxianos de onde saiu O Capital, Marx se via às voltas com dois conceitos categoriais
de ―trabalho‖ dos quais a definição e a distinção seriam cruciais para sua madura crítica
da economia política. Em sua explanação metodológica – que na dialética marxiana não
se separa do objeto mesmo – Marx dá o exemplo da categoria de trabalho nos seguintes
elucidativos termos:
O trabalho parece uma categoria muito simples. A representação do trabalho nessa universalidade – como trabalho em geral – também é muito antiga. Contudo, concebido economicamente nessa simplicidade, o ‗trabalho‘ é uma categoria tão moderna quanto as relações que geram essa simples abstração. (...) A indiferença diante de um determinado tipo de trabalho pressupõe uma totalidade muito desenvolvida de tipos
17 Cf. <http://obeco.planetaclix.pt/>.
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efetivos de trabalhos, nenhum dos quais predomina sobre os demais. Portanto, as abstrações mais gerais surgem unicamente com o desenvolvimento concreto mais rico, ali onde um aspecto aparece como comum a muitos, comum a todos. Nesse caso, deixa de poder ser pensado exclusivamente em uma forma particular. Por outro lado, essa abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado mental de uma totalidade concreta de trabalhos. A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade em que os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro, e em que o tipo determinado de trabalho é para eles contingente e, por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio, não somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação da riqueza em geral e, como determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos em uma particularidade. Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau de desenvolvimento na mais moderna forma de existência da sociedade burguesa – os Estados Unidos. Logo, só nos Estados Unidos a abstração da categoria ‗trabalho‘, ‗trabalho em geral‘, trabalho puro e simples, o ponto de partida da Economia moderna, devém verdadeira na prática. Por conseguinte, a abstração mais simples, que a Economia moderna coloca no primeiro plano e que exprime uma relação muito antiga e válida para todas as formas de sociedade, tal abstração só aparece verdadeira na prática como categoria na sociedade mais moderna. (...) Esse exemplo do trabalho mostra com clareza como as próprias categorias mais abstratas, apesar de sua validade para todas as épocas – justamente por causa de sua abstração –, na determinabilidade dessa própria abstração, são igualmente produto de relações históricas e têm sua plena validade só para essas relações e no interior delas (MARX, 2011, pp. 57-58).
O trabalho, como categoria abstrata, poderia ser pensado fora do tempo
histórico capitalista?18 Se sim, a crítica do capitalismo pode ser tida como uma crítica
―do ponto de vista do trabalho‖, sendo este último concebido como um contraprincípio
trans-histórico ao capital. Mas se não, então a crítica do capitalismo é também uma
crítica da sociedade do trabalho sans phrase; do trabalho como categoria social formada
e formadora da ―economia‖ e da ―política‖ próprias da sociedade produtora de
mercadorias. O Marx dos Grundrisse não desempata a questão, ele oscila a respeito
dela.
NO Capital, Marx encaminha o problema elaborando os conceitos de trabalho
abstrato e trabalho concreto. Estes seriam os correspondentes respectivos da natureza
bífida da mercadoria (valor e utilidade). Sendo o primeiro, o de trabalho abstrato, o
conceito que define a atividade humana na dimensão em que esta transmite valor à
18 Cf. o exame minucioso de Moishe Postone desse problema em (2006), em livro recém-publicado no
Brasil pela Editora Boitempo. Ver ainda Duarte (2009 e 2015).
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mercadoria e o segundo, o de trabalho concreto, o conceito que define a atividade
humana que transmite valor de uso à mercadoria em sua dimensão material e simbólica.
Não se trata, como se percebe, de dois fenômenos distintos, mas de duas dimensões de
um mesmo fenômeno. A caracterização bífida do trabalho nos conceitos de trabalho
concreto e trabalho abstrato é o modo encontrado por Marx para resolver o problema da
abstração social-real que existe no trabalho das sociedades produtoras de mercadorias;
para resolver sua oscilação anterior entre uma caracterização ―ontológica‖ supra-
histórica do trabalho e ao mesmo tempo sua crítica do modo histórico que o trabalho
apresenta em sua subsunção ao capital. Entretanto, a oscilação só foi lançada para
adiante, permencendo latente.
Nas seguintes passagens de O Capital, ela reaparece:
Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza (1996, p. 297). O processo de trabalho, como o apresentamos em seus elementos simples e abstratos, é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a Natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as formas sociais (1996, p. 303).
Assim, o processo de trabalho só pode ser concebido como processo que ―regula,
controla, e media o metabolismo do homem com a natureza‖, e portanto, como condição
eterna e independente de qualquer forma histórica de vida quando é pensado em sua
forma ―simples e abstrata‖! O trabalho concreto, criador de valor de uso, só pode ser
pensado trans-historicamente quando submetido a uma maneira ―simples e abstrata‖ de
raciocínio, que remete ao modo histórico de sua subsunção ao capital – tal como vimos
na passagem acima dos Grundrisse. É flagrante a oscilação marxiana em muitas
passagens como estas.
Em um artigo publicado na revista Krisis em 1995 Robert Kurz criticou esta
―duplicação‖ do conceito de trabalho, afirmando que, com ele, Marx apenas ―rasgou em
dois‖ a abstração real que se encontra no trabalho produtor de mercadorias. Seguindo a
própria argumentação marxiana, a ―dialética da forma valor‖, a conclusão mais
consistente a que se deveria chegar é que, assim como a mercadoria apresenta natureza
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bífida, o trabalho que a faz existir também a possui. Entretanto, Marx faz do aspecto
material, sensível, uma suposta ―âncora ontológica‖ onde uma dimensão do trabalho
pode aparecer como independente de sua determinação pela forma. Assim, na
caracterização da natureza bífida do trabalho produtor de mercadorias que se encontra
nos conceitos de trabalho abstrato e trabalho concreto, Marx persegue pois, apenas o
trabalho determinado pela forma, deixando de lado a aspecto social-real da abstração
contida no conceito mesmo de ―trabalho‖.
O famoso conceito de trabalho abstracto que daí surge é na verdade uma expressão estranha, uma duplicação retórica, como se falássemos de um ―verde abstracto‖, visto que a definição de algo como verde já é em si uma abstração. Marx por assim dizer rasga em dois a abstracção real: sua forma seria historicamente limitada, sua substância ou seu conteúdo seria ontológico. Assim temos, portanto, o ―trabalho‖ como eterna necessidade natural e o ―trabalho abstracto‖ como determinação histórica do sistema produtor de mercadorias. Marx prolonga por um lado a abstracção real decalcada na forma rumo ao ontológico e, de outro, tenciona salvar-lhe o caráter histórico e, desse modo, sua superação (KURZ, 2003, p. 9).
Segundo a interpretação de Kurz, este ―rasgo em dois‖ da abstração do trabalho
foi o tributo pago por Marx à ―imagem necessária e imanente que o movimento operário
faz de si mesmo‖ e que, segundo ele, pesa em diversos momentos da elaboração teórica
de Marx, a fazendo oscilar. Contudo, como ele observa: ―O marxismo do movimento
operário teve pouco a fazer com o conceito de ‗trabalho abstracto‘ e não o mobilizou
criticamente; em vez disso, preferiu prender-se ao conceito ontológico de trabalho
(enobrecido ‗conforme o valor de uso‘), a fim de legitimar-se de forma histórico-
filosófica‖ (id., ib.)19.
E o que é, pois, a abstração real do trabalho, visto pela sua essência ou
conteúdo?
Tal bipartição acha-se novamente na determinação daquilo que afinal é realmente abstracto no trabalho abstracto. Marx a desenvolve principalmente numa única direcção – a direcção da forma: como
19 Kurz retoma de modo minucioso seu estudo sobre o destino do conceito de trabalho abstrato em
(KURZ, 2005). Uma abordagem mais recente recoloca com bastante pertinência o problema marxiano do duplo caráter do trabalho, em um sentido bastante semelhante ao de Kurz. Cf. (HOLLOWAY, 2013). Para um comentário comparativo entre a abordagem de Holloway e a da Nova Crítica do Valor, Cf. Daniel Cunha (2014).
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abstracção real ―do‖ conteúdo material, como indiferença ao momento sensível, representada pela forma do valor e seu desdobramento no dinheiro, a coisa ―realmente abstracta‖. Não resta dúvida de que isso é de grande relevância. Mas o ―trabalho‖ produtor de mercadorias também é ―realmente abstracto‖ em um segundo sentido, que Marx não desenvolve sistematicamente: em sua existência como esfera diferenciada, separada de outras esferas como a cultura, a política, a religião, a sexualidade, etc., ou, noutro plano, separada igualmente do tempo livre... (id., ib.).
Para a NCV é impossível restringir-se à crítica do trabalho abstrato e não se
lançar na crítica da abstração do trabalho. E as implicações da crítica não apenas do
trabalho abstrato, mas da abstração-real do trabalho são muitas e variadas, e não cabem
nem preliminarmente no espaço deste artigo.
Começa neste ponto, a nosso ver, o ―pós-marxismo‖ da NCV. A ruptura com um
importante e basilar conceito da letra de Marx, em favor de seu espírito, a saber, a
dialética da forma valor. Em 1999, com a publicação do Manifesto Contra o Trabalho
(2003), no Brasil oferecido ao público pela editora Conrad, tais reflexões críticas do
trabalho irrompem com a força polêmica do manifesto20.
3.2 - Formas sociais de fetiche e luta de classes
Outro eixo controverso dos debates inflamados pela Nova Crítica do Valor – e
que um exame mesmo superficial é capaz de relacionar com a crítica do trabalho – é o
da obsolescência da luta de classes, tal como esta foi pensada pelo marxismo tradicional,
mas também pelo marxismo ocidental. No estilo cáustico que lhe era peculiar, Kurz
escreveu que quando se trata do tema das ―classes‖ e da ―luta de classes‖, é comum ver
as lágrimas escorrerem pelos olhos dos marxistas do movimento operário (2003b).
A ideia tão propagada e aceita de que o único anticapitalismo efetivo é aquele
que se coloca ―do ponto de vista do trabalho‖ e, por conseguinte, do ponto de vista do
contraprincípio sempiterno ao capital é o fundamento da visão da classe trabalhadora
20 Cf. o resumo e algumas teses complementares ao Manifesto contra o trabalho em (NASCIMENTO,
2014).
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como demiurgo da história de superação do capitalismo. Nas palavras de Kurz:
O aparelho conceptual da crítica radical tem de ser liberto do pó. A ―classe revolucionária‖ de Marx foi inequivocamente o proletariado fabril do século XIX. Unida e organizada através do próprio capital, tornar-se-ia o seu coveiro. Os grupos sociais, dependentes de salário das áreas derivadas de serviços, infra estruturas, etc. estatais e comerciais, podiam ser juntos ao ―proletariado‖ apenas como uma espécie de grupos auxiliares, e mesmo isto só enquanto este ainda dominava como núcleo de massas sociais nas fábricas produtoras de capital. Com uma inversão das proporções numéricas, como se tinha esboçado já desde o início do século XX (e fora reflectido apenas de forma superficial pelo antigo marxismo, p. ex. no debate de Bernstein) o esquema tradicional de classes e de revolução não podia continuar a passar (KURZ, 2003).
No marxismo-leninismo, como vimos, voluntarismo e determinismo se fundiam
em uma amálgama que muito bem se prestou a ser uma doutrina de estado autoritário.
Algo desse amálgama se contrabandeia para a teoria anticapitalista quando se trata de
conceber a ―luta de classes‖ como uma narrativa demiúrgica da história. Quanto mais
ela é invocada como razão teórica, menos há disposição para explicar o que ela poderia
significar nos tempos atuais. Em face das muitas transformações recentes, dentre elas,
em especial, a revolução industrial microeletrônica:
A ―luta de classes‖ está dissolvida como parte integrante deste sistema da concorrência universal, e tem-se revelado como mero caso especial desta, que de modo algum consegue transcender o capital. Pelo contrário, num baixo nível de desenvolvimento, ela foi directamente a sua forma de movimento imanente, quando ainda se tratava de reconhecer os proletários fabris como sujeitos civis neste sistema. Para poder concorrer, tem de se agir nas mesmas formas comuns. O capital e o trabalho são no fundo diferentes estados de agregação de uma mesma substância social. O trabalho é capital vivo e o capital é trabalho morto. A nova crise porém consiste precisamente no facto de que, através do desenvolvimento capitalista, a própria substância do ―trabalho abstracto‖ é derretida como base de produção de capital (KURZ, 2003).
As formas sociais constitutivas das sociedades produtoras de mercadorias
(valor, capital, estado) aparecem como naturalizações e, por conseguinte, como
―naturezas‖ secundárias da socialização. A luta por interesses sócio-econômicos
imanentes a estas categorias, como por exemplo, as lutas pelos direitos ao trabalho e ao
―justo‖ assalariamento foram importantes molas propulsoras da modernização
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capitalista. Não há como se negar este fato. Mas nas condições atuais de
desenvolvimento elas perderam o condão para guiar a transição para além do capital.
Nas palavras de Kurz:
Assim, a noção da ―luta de classes‖ perde a sua luminiscência metafísica, aparentemente transcendente. Os novos movimentos já não podem definir-se a si próprios, ―objectivística‖ e formalmente através de uma ontologia do "trabalho abstracto" e através da sua ―posição no processo produtivo‖. Eles podem definir-se apenas pelo conteúdo através daquilo que querem. Nomeadamente, o que querem impedir: a destruição da reprodução social através da falsa objectividade dos constrangimentos formais capitalistas. E o que querem ganhar como futuro: o emprego racional comum das forças produtivas alcançadas, de acordo com as suas necessidades em vez de conforme os critérios doidos da lógica capitalista. A sua comunidade já só pode ser a comunidade da fixação emancipatória do objectivo, e não a comunidade de uma objectivação definida pela própria relação do capital. A teoria ainda tem de encontrar um conceito para aquilo que a prática já está a executar tacteando no escuro. Só então os novos movimentos podem tornar-se radicalmente críticos de capitalismo, de uma maneira também nova, para lá do velho mito da luta de classes (2003).
Este tema tem provocado importantes debates. Alguns, por exemplo,
propugnam uma conciliação entre o tema da luta de classes e a crítica das formas sociais
da NCV (CUNHA, 2009).
3.3 - O limite absoluto interno da sociedade da mercadoria
Também fortemente atada tanto à crítica do trabalho quanto à crítica ao caráter
transcendente da luta de classes está a tese do limite interno absoluto das sociedades
produtoras de mercadorias. Anselm Jappe resumiu bastante bem esta tese em suas três
dimensões principais.
3.3.1 A contradição entre a realidade material e sua forma valor
Segundo Jappe (2006, p. 137), a crise ecológica de nosso tempo é a
externalização de uma contradição interna:
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O que vem hoje à luz do dia é uma crise muito mais profunda do que as que no passado desencadeavam desproporções quantitativas momentâneas. A contradição entre o conteúdo material e a forma valor conduz à destruição do primeiro. Esta contradição torna-se particularmente visível na crise ecológica e apresenta-se então como um ―produtivismo‖, como produção tautológica de bens de uso – produção essa que, contudo, mais não é do que a consequência da transformação tautológica do trabalho abstrato em dinheiro.
3.3.2 A contradição entre as necessidades de uso e sua forma valor
Esta contradição também se torna visível nos efeitos danosos de desigualdades
sociais, regionais e internacionais; ela se manifesta, por exemplo, na crise alimentar
global.
A produção de valor e de mais-valia, o único objectivo dos sujeitos da mercadoria, pode comportar também uma diminuição da produção de valores de uso, mesmo dos mais importantes. É o que se verifica no caso cada vez mais frequente da desindustrialização de países inteiros nos quais a produção se reduz aos sectores cujos produtos são suscetíveis de ser exportados, mesmo que se trate apenas de amendoim. A ―produção pela produção‖ significa a maior acumulação possível de trabalho morto. Os ganhos de produtividade, designadamente o aumento da produção de valores de uso, em nada alteram o valor produzido em cada unidade de tempo. Uma hora de trabalho continua a ser uma hora de trabalho, e se nessa hora se produzem sessenta cadeiras em vez de uma, tal significa que em cada cadeira está contida apenas a sexagésima parte de uma hora: a cadeira ―vale‖ assim apenas um minuto. O aumento das forças produtivas, empurrado pela concorrência, não aumenta de modo algum o valor de cada unidade de tempo: este facto constitui um limite inultrapassável à criação de mais-valia, cujo crescimento se torna progressivamente mais difícil. Para produzir a mesma quantidade de valor torna-se necessária uma produção sempre mais ampliada de valores de uso e consequentemente um consumo acrescido de recursos naturais. Ao proprietário do capital, se não quer ser eliminado pela concorrência, torna-se necessário produzir as sessenta cadeiras na esperança de encontrar uma procura compensadora. Pode inclusivamente tentar criar essa procura, sem levar em conta a relação real entre necessidades e recursos no interior da sociedade (JAPPE, 2006, p. 138-139).
3.3.3 A contradição entre a produtividade do trabalho e sua forma valor
As constantes inovações tecnológicas que, por um lado, foram impulsionadas
pelas urgências de aumentar a produtividade do trabalho subsumido ao capital, por
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outro lado entram constante e progressivamente em colisão com a lucratividade do
próprio capital.
...essa produtividade acrescida do trabalho – que enquanto tal poderia ser naturalmente um bem para toda a humanidade – produz de uma maneira directa o desmoronamento da sociedade baseada no valor. Paradoxalmente, o capitalismo atinge o seu próprio limite em virtude de sua força, a saber, a libertação das forças produtivas: o dispêndio individual de força de trabalho é cada vez menos o factor principal da produção. São as ciências aplicadas, bem como os saberes e capacidades difundidos ao nível social, que se tornam directamente a força produtiva principal. A necessidade de calcular o trabalho efectuado por cada um, e portanto o valor que lhe compete, transforma-se então numa ―couraça‖ que sufoca as possibilidades produtivas, porque o trabalho individual deixa de ser mensurável. O dispêndio de trabalho deixa de poder constituir a forma social da riqueza e deixa de ser a condição para que o indivíduo participe nos respectivos frutos. (…) Hoje em dia, porém, a separação dos produtores já não tem base material ou técnica e deriva exclusivamente da forma do valor abstracto, a qual perde assim definitivamente a sua função histórica (JAPPE, 2006, p. 140-141).
No desenvolvimento contemporâneo do capitalismo, a lógica do valor deixou de
ser um fator histórico ―civilizador‖ – como ainda parecia para o Engels e o Marx dO
Manifesto Comunista – para se tornar uma ―arcaica camisa-de-força‖ (2006, p. 141).
Fundamentalmente o que acontece é o seguinte:
Dissemos acima que a queda da taxa de lucro acompanhou toda a evolução do capitalismo. Mas durante muito tempo essa queda foi compensada, e mesmo sobrerecompensada, pelo aumento da massa de lucro. Bastava que o modo de produção se ampliasse mais rapidamente que a queda da taxa de lucro: se em dez anos, graças à utilização de novas tecnologias, a parte do capital variável (ou seja, a parte do salário) contida numa mercadoria decresce 20 a 10%, e portanto a taxa de lucro (supondo uma taxa de mais-valia, ou seja, uma grau de exploração, estável a 50%) diminui 10 a 5%, mas se ao mesmo tempo se produz três vezes mais mercadorias, então a massa de lucro cresceu 50% e pode portanto alimentar um ciclo alargado de produção. Esta possibilidade foi prevista por Marx e realizou-se efectivamente durante mais de um século. Contudo, é evidente que esta evolução há-de chegar um dia a um ponto em que a massa de lucro do capital global começará a diminuir até atingir um limite absoluto (JAPPE, 2006, p. 142).
O que nos mostra Jappe é que tais contradições estão como que ―armadas‖
desde a forma simples do valor e da mercadoria. E assim a ―sufocação progressiva da
produção de valor em virtude do aumento dos falsos encargos e do trabalho
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improdutivo, bem como a diminuição da massa de lucro que daí resulta, são, no plano
lógico, uma consequência inelutável das contradições de base da mercadoria‖ (JAPPE,
2006, p. 146).
Atingir tal limite, entretanto, ainda não leva a nenhum ―caos da crise‖. Ao
contrário, é a razão para outro salto para frente por parte do capital. Este salto, todavia,
só adia por pouco tempo as consequências inelutáveis do limite absoluto, e torna-os
ainda maiores. Assistimos, desde os anos 70, à financeirização e à ―ficcionalização‖ no
capitalismo (JAPPE, 2006, p. 148 e ss.; 2013, p. 35 e ss).
Rosa Luxemburgo considerava este limite interno absoluto teoricamente
verdadeiro, mas acreditava também que a ―luta de classes‖ encerraria o capitalismo
antes disso. Esse limite interno era como que a ―extinção do sol‖ de tão longínquo. Em
nossos dias, entretanto, parece que o ―sol‖ está minguando a olhos vistos a cada dia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A NCV ainda é uma vertente marginal nos debates anticapitalistas e sua
produção ainda se coloca sob o signo do subterrâneo, do underground Ŕ ainda que
alguns de seus impulsionadores, em especial Robert Kurz, Anselm Jappe e Roswitha
Scholz sejam relativamente bem conhecidos. A NCV não aparece no mapeamento de
Göran Therborn (2008) dos marxismos e dos pós-marxismo atuais; também não
aparece na enciclopédia dos marxismos contemporâneo organizada por Jacques Bidet e
Stathis Kouvelakis (2009), por exemplo.
Entretanto, são as condições de crise, que Foster e McChesney (2012)
denominaram de ―crise sem fim‖, que tornam as teses expostam pela NCV não menos
que urgentes. E neste particular, deveríamos aplicar ao próprio anticapitalismo o
conteúdo da 2ª Tese sobre Feuerbach de Marx: é na realidade prática e efetiva que a
força e o caráter terreno do pensamento devem ser julgados. Que tipo de teoria
anticapitalista é a mais verdadeira diante de uma crise sem precedentes da sociedade
produtora de mercadorias?
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ESTAMOS PERDENDO! Do altermundialismo à indignação multitudinária:
balanço da resistência global quinze anos após Seattle
Raphael F. Alvarenga
A Mathieu Hilgers in memoriam
Daqueles que virão, não esperamos que nos agradeçam por nossos triunfos, mas que se lembrem de nossas derrotas.
Walter Benjamin
Num momento em que a doutrina do ―fim da história‖ era lugar-comum e que ser
de esquerda, mesmo moderada, equivalia praticamente a andar por aí com uma lasca de
osso enfiada no nariz, não é o menor dos méritos do ―povo de Seattle e de Porto Alegre‖
ter colocado em questão o ―pensamento único‖, como se dizia então. Após dez anos de
sono dogmático neoliberal, novamente fora possível, pelo menos durante um breve
espaço de tempo, pensar e agir como se o capitalismo não fosse um fenômeno da
natureza. Não à toa, o movimento altermundialista foi visto por alguns como o mais
importante acontecimento de resistência antissistêmica dos últimos tempos1. Apenas
uma década após a queda espetacular do bloco soviético – hipócrita e histrionicamente
celebrada no momento em que escrevia estas linhas, com os 25 anos da derrubada do
Muro de Berlim, como se inúmeros outros muros, cercas e barreiras de controle, de todo
tipo e escala, não tivessem sido erigidos em todo o mundo de lá pra cá2 –, o chamado
―movimento dos movimentos‖ teria chegado perto de lograr algo como uma Primeira
Internacional em pleno século XXI, reunindo ecologistas, sindicalistas, trabalhadores
imigrantes sans papier, desempregados, indígenas e camponeses sem terra, feministas,
1 Cf. Michael Löwy, ―Négativité et utopie du mouvement altermondialiste‖, Contretemps, n° 11 (sept.
2004), pp. 44-50. 2 Cf. Mike Davis, ―The Great Wall of Capital‖, The Socialist Review, n° 282 (feb. 2004), retomado em I.
Stavans (org.), Border Culture, Santa Barbara, Abc-Clio, 2010, pp. 27-29.
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socialdemocratas, marxistas e libertários3. Tal tese foi reforçada por Slavoj Žižek, que à
época chegou a aventar a ideia de que, mais do que uma resposta ao 11 de setembro, a
subsequente Guerra ao Terror talvez tivesse sido, justamente, uma reação ao rápido
crescimento do movimento altermundialista, ―um meio de contê-lo e afastar a atenção
dele‖4. Também a repressão ao mesmo – a violência policial desmesurada, as agressões
e prisões arbitrárias, o controle abusivo, o fichamento e até casos reportados de tortura
de militantes em delegacias de polícia, não esquecendo o assassinato de Carlo Giuliani –
indicaria que a sua dimensão a um tempo global e concretamente universal5 era
encarada mais e mais como uma real ameaça aos poderes estabelecidos.
Salvo engano, não é o que pensam os amigos alemães, apesar de reconhecerem a
importância do caráter internacional do fenômeno. Para Anselm Jappe, por exemplo,
movimentos como a Attac (para ficarmos com o mais explicitamente reformista, talvez),
em lugar de criticarem radicalmente a ―valorização do valor‖ de certa forma ocuparam
―o lugar dos partidos sociais-democratas europeus a partir do momento em que estes
passaram completamente para o campo neoliberal‖; sua perspectiva, apesar de ―certa
retórica anticapitalista‖, além de ―totalmente reformista‖, encerrada ―dentro do universo
da política tradicional‖, seria ingênua ao opor a ―democracia‖ ao ―mundo descontrolado
das finanças‖6. Resumindo assim, parece realmente ser o caso. Ocorre que muita coisa
fica de fora nessa versão, em que se esquece uma lição fundamental formulada por Marx
na crítica ao programa dos partidários de Lassalle, a saber, que ―[c]ada passo do
3 Cf. Tom Mertes (org.), A Movement of Movements. Is Another World Really Possible?, London/New
York, Verso, 2004, e Philippe Corcuff & Michael Löwy, ―Pour une Première Internationale au XXIe siècle‖, Contretemps, n° 6 (fév. 2003), pp. 8-10.
4 Slavoj Žižek, ―Prefácio à edição brasileira: um ano depois‖, em Bem-vindo ao deserto do real! Cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas (2002), trad. P. C. Castanheira, São Paulo, Boitempo, 2003, p. 14.
5 Cf. Slavoj Žižek, ―Posfácio: a escolha de Lenin‖ (2002), trad. L. B. Pericás e F. Rigout, em S. Žižek (org.), Às portas da Revolução. Escritos de Lenin de 1917, São Paulo, Boitempo, 2005, pp. 328-29: ―A promessa do movimento de ‗Seattle‘ está em ele ser o oposto do que a mídia diz que é (‗protesto antiglobalização‘): ele é o primeiro núcleo de um movimento global – global no que diz respeito a seu conteúdo (busca um confronto global com o capitalismo) e a sua forma (é um movimento global, uma rede móvel internacional, pronta a intervir em qualquer lugar, de Seattle a Praga). É mais global do que o ‗capitalismo global‘, já que chama suas vítimas para o jogo – isto é, os que estão excluídos da globalização capitalista, assim como aqueles que estão incluídos de uma maneira que os reduz à miséria proletária. [...] a globalização capitalista é ‗abstrata‘, centrada no movimento especulativo do Capital, ao passo que o movimento ‗de Seattle‘ representa a universalidade ‗concreta‘, tanto a totalidade do capitalismo global quanto seu lado obscuro e excluído.‖
6 Anselm Jappe, As aventuras da mercadoria. Para uma nova crítica do valor (2003), trad. J. M. Justo, Lisboa, Antígona, 2006, pp. 250-51.
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movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas‖7. Ora, no escrito em
questão, Jappe critica tão-somente programas, cita frases isoladas de ―manifestos‖ – os
quais estão de fato, ainda em termos de Marx no referido texto, repletos de ―superstição
democrática‖ e ―credulidade servil ao Estado‖ –, como se resumissem o fenômeno
altermundialista como um todo. O que se perde por aí é precisamente os meandros e os
vaivéns do movimento social real, o tortuoso (mas necessário) processo prático-coletivo
de conscientização, que inclui enganos teóricos, desenganos práticos, incontáveis
debates internos e entre os diferentes grupos, alianças e rupturas, preparações e táticas
formuladas ad hoc para lidar com impasses e conflitos reais8 (um exemplo típico: como
combater as tendências oligárquicas e as práticas oportunistas que costumam ter lugar
em tantos movimentos e organizações militantes?).
O mais grave em leituras assim, para ir direto ao ponto, é que elas passam ao
largo da dimensão fundamentalmente formadora de tal experiência de luta coletiva:
muitos estudantes e trabalhadores de diferentes estratos se politizaram com efeito no
fluxo contestatório desencadeado naqueles anos, sem mencionar a produção coletiva de
uma verdadeira contracultura política internacional, algo que há muito não se via9. Na
conclusão de seu livro-síntese sobre ―as aventuras da mercadoria‖, Jappe afirma que
para encontrar uma alternativa à sociedade capitalista – que na perspectiva da ―nova
crítica do valor‖ morrerá de morte natural e, segundo consta, em breve – não é preciso
elaborar utopias, bastando retomar, ―como verdadeira finalidade da sociedade‖, a velha
ideia aristotélica da ―vida boa‖, em torno da qual dever-se-ia ―organizar a reapropriação
dos recursos‖ expropriados pelo capital10. Ora, um ponto cego desta crítica consiste
justamente em supor como dada a capacidade de os sujeitos não somente quebrarem
coletivamente o feitiço da mercadoria, ou arrebentarem a mordaça do valor, mas a
própria capacidade de agirem em concerto (de fato, o que leva hoje, num contexto de
7 Karl Marx, carta a Wilhelm Bracke (5/5/1875), em Crítica do programa de Gotha, trad. R. Enderle, São
Paulo, Boitempo, 2012, p. 20. 8 No seio da própria Attac, diga-se de passagem, logo se destacou uma ala mais radical, composta por
marxistas e anarquistas, que se opôs aos mais moderados, à maioria neokeynesiana, dando lugar a verdadeiras cisões no interior de certas células, algo que ocorreu também em vários outros grupos altermundialistas. Cf. Sophie Heine, Le mouvement Attac en Belgique, Bruxelles, Centre de recherche et d‘information socio-politiques, 2008.
9 Para se ter uma ideia do que se tratava, veja-se Notes from Nowhere (org.), We are everywhere. The irresistible rise of global anticapitalism, London/New York, Verso, 2003.
10 Anselm Jappe, As aventuras da mercadoria, ed. cit., p. 266.
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concorrência universal e individualismo ferrenho, as pessoas a se agruparem em torno a
algum ideal ou objetivo elevado?), visando ao bem-viver em sociedade, na reapropriação
da riqueza socialmente produzida. Como se não houvesse resistências, dificuldades ou
obstáculos – subjetivos como objetivos – à produção coletiva autônoma de formas de
vida não capitalistas; como se não houvesse luta e interesses contraditórios, pontos de
vista inconciliáveis acerca do que seria a vida boa. Salvo má leitura, implícita na crítica
dos amigos alemães, ou ainda em diversas outras críticas semelhantes dirigidas ao
altermundialismo, haveria a suposição de uma propensão espontânea dos sujeitos (ou
das massas) à criação das normas do bem-viver coletivo, enquanto que a questão das
condições da formação de sujeitos capazes de agir autônoma e coletivamente na criação
da nova sociedade, bem como a questão das condições da constituição de uma cultura
comum da resistência no contexto do capitalismo em crise raramente são colocadas de
forma explícita. Sob este prisma, o rechaço de movimentos e lutas sociais imanentes é
precipitado, haja vista o fosso existente entre a construção da ordem social superior e a
capacidade intersubjetiva de se produzir e aprender novos comportamentos, os quais
não são dados de antemão, tampouco surgem espontaneamente em contexto de crise
das categorias sistêmicas fundamentais, mas costumam ter lugar precisamente no seio
de formas coletivas de resistência e transformação social11.
Com algumas exceções, a produção teórica altermundialista pode ter deixado a
desejar no que diz respeito à crítica ao capital, o que não impede que diversos grupos
militantes anticapitalistas da maior relevância, grupos de reflexão e de ação dos mais
radicais e bem embasados, como o nosso MPL, por exemplo, tenham tomado forma no
bojo da contestação altermundialista das inúmeras separações cavadas pela lógica
mercantil nas mais diversas esferas da vida cotidiana. Caberia não esquecer que as
experiências e os conhecimentos coletivos, o desejo de se apropriar coletivamente do
que há de mais avançado na busca de saídas para o presente, as interrupções do curso
espetacular do mundo pela vida real em alguns altos momentos, a intensidade e a
11 Para a questão da criatividade normativa e da força de resistência pressupostas mas não tematizadas
(supposées données) por diversas teorias sociais atuais, inspiro-me livremente de Marc Maesschalck, ―Subjectivation et transformation sociale: critique du renouveau en théorie de l‘action à partir de Karl Lévêque, Étienne Balibar et Louis Althusser‖, Les Carnets du Centre de Philosophie du Droit, n° 158 (2013), p. 6, bem como de Alain Loute, La création sociale des normes. De la socio-économie des conventions à la philosophie de l‟action de Paul Ricœur, Hildesheim, Georg Olms, 2008, pp. 271 ss.
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produtividade de certas amizades e a promessa vivida de uma existência menos
mesquinha e danificada... tudo isso participa já, de um jeito ou de outro, da utopia. Ou
por outra, como bem sabia Brecht, ―elementos da nova cultura [...] sempre vêm à tona
da maneira mais vigorosa no contexto da luta‖12. Rechaçar a totalidade daquele
movimento como reformista, tradicional ou ingênuo por desconhecer ou por não criticar
suficientemente ―o valor‖, equivale – para empregar uma fórmula algo batida mas não
menos justa neste caso – a jogar fora o bebê junto com a água do banho.
A par da contestação mais explicitamente anticapitalista, resumida pela fórmula
―No logo‖ (como se sabe, título de um influente livro de Naomi Klein, publicado quase
que concomitantemente às manifestações de Seattle), as bandeiras altermundialistas
mais conhecidas – dentre as quais haveria que destacar a democratização (ou um maior
controle popular democrático) de órgãos internacionais como a OMC, a OCDE, o FMI e
o Banco Mundial, o imposto progressivo sobre grandes fortunas e a taxação das
transações financeiras internacionais como meio de frear o capital especulativo (as
―bolhas‖ e os paraísos fiscais) e relançar o investimento do capital produtivo, a anulação
completa da dívida dos países do Terceiro Mundo, a quebra do monopólio da mídia
corporativa através da criação de canais alternativos de informação e debate de ideias (a
concepção da Indymedia foi um marco na época), a luta contra o agronegócio e o cultivo
de OGMs, por um ―comércio equitável‖ e uma ―economia solidária‖, e a denúncia do
Processo de Bolonha (que não se restringia a estabelecer as bases da privatização do
ensino superior em toda a Europa, mas cuja implementação, como o disse Žižek na
esteira de Kant, constituiu um verdadeiro assalto ao uso público da razão) – são decerto
demandas imanentes, ou reformistas, como se queira, mas que, além de revelarem a
regressão neoliberal então em curso, faziam avançar a compreensão tanto dos processos
sociais objetivos como das artimanhas de classe em jogo nas mais diversas esferas
(comércio, finanças, comunicação, cultura, produção alimentícia, educação...): as
supracitadas instituições internacionais deixaram claro que não eram democratizáveis,
ou seja, que quem ditava as regras do jogo era mesmo o capital, e apesar de factível em
teoria, digamos de forma um tanto sumária, a demanda pela taxação dos fluxos de
capitais não tem como ser atendida, não em termos capitalistas pelo menos (a nível
12 Bertolt Brecht, Diário de trabalho, vol. I: 1938-1941, trad. R. Guarany e J. L. de Melo, Rio de Janeiro,
Rocco, 2002, p. 103.
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nacional provocaria fuga de capitais, e a nível internacional, a tarefa se complica por
óbvias razões), e assim por diante. Mas por isso mesmo, com tais demandas, a um
tempo exequíveis em termos gerais e aparentemente impossíveis nas coordenadas da
presente ordem econômica mundial, e com a visibilidade que o movimento adquiriu a
nível internacional no início dos anos 2000, os donos do poder, o ―povo de Davos‖ (com
exceção de figuras circenses como Bono Vox, que jogavam para a plateia), foram
forçados a dar as caras sem carapuça. Como se sabe, nos anos 1990, após a queda do
Muro, prevalecia o consenso de que globalização do capital, que viera para ficar e diante
da qual não havia alternativa, era pós-ideológica e não sectária, além de sinônimo de
prosperidade geral; existia o mito de que ―livre-comércio‖ equivalia a ―povo livre‖, o que
significava que toda e qualquer dissidência era encarada como terrorista. Depois do
altermundialismo, que de fato expôs o reverso da medalha, já não se ignora tanto como
antes que a globalização do capital tem efeitos nefastos e que o jogo é esse mesmo, ou
seja, os interesses e a dominação de classe são algo menos dissimulados do que antes,
por vezes mesmo ditos com todas as letras, pelos principais protagonistas: ―It‘s class
warfare. My class is winning, but they shouldn‘t be.‖13 ―There‘s class warfare, all right,
but it‘s my class, the rich class, that‘s making war, and we‘re winning.‖14
***
Longe de significar o advento de um mundo mais democrático, plural e solidário,
ou de uma política internacional orientada no sentido da superação do corporativismo,
que lograsse efetivamente pôr o ser humano e a vida social acima do lucro das grandes
empresas e corporações, o relativo declínio em importância de instituições associadas
imediatamente à globalização neoliberal (OMC, FMI, Banco Mundial), contra as quais a
―galáxia altermundialista‖ primeiramente se constituiu, fez com que os movimentos que
a integraram tivessem que se confrontar com novos dilemas ligados a uma nova
conjuntura internacional15. Para além do cinismo esclarecido dos de cima, bem como do
aumento e da intensificação da repressão ao movimento, nada desprezíveis (em Gênova,
em 2001, começou a cair a ficha de que, ao contrário do que gostávamos de dizer então,
13 Warren Buffet, em entrevista a Lou Dobbs na CNN (25/05/2005). 14 Warren Buffet, cit. em Ben Stein, ―It‘s Class Warfare, Guess Which Class is Winning‖, The New York
Times (26/11/2006). 15 Cf. François Polet, Clés de lecture de l‟altermondialisme, Charleroi, Couleur Livres, 2008.
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não estávamos ganhando), houve de forma geral como que um esgotamento objetivo, já
mais do que patente quando da cúpula do G8 em Heiligendamm, em 2007 (a bem dizer,
e salvo engano, a explosão das revoltas nas banlieues francesas em 2005, deixando um
lastro de milhares de automóveis queimados, com estado de sítio declarado e tudo,
indicavam já, de forma um tanto sintomática, a derrocada do altermundialismo). Seja
como for, por volta de 2003 já se sentia que o que antes fora uma experiência política
bastante viva fixava-se mais e mais numa representação.
De toda evidência, em nível da própria práxis militante, não se pode deixar de
mencionar o desgaste das formas mais usuais dos protestos e encontros (manifestações
internacionais contra a guerra, sit-ins diante de embaixadas, bloqueios de conferências
de lideranças internacionais), que perderam bastante do appeal (sobretudo midiático)
de que gozaram de 1999 a 2003 aproximadamente, sem falar nos fóruns sociais
nacionais e mundiais, que se assemelhavam às vezes a uma versão esquerdista do
turismo de massa16. Além disso, ocorreu no seio de muitos grupos uma deterioração da
militância anticapitalista, que sub-repticiamente, sem que se percebesse exatamente
como, virava um fim em si, militantismo profissional, quando não dava lugar a uma
mercantilização da contestação, turning rebellion into money. Em muitos casos, com
efeito, o ―engajamento‖ já quase não se distinguia do ―empreendedorismo de si‖, isto é,
de um autocelebrador ativismo cidadão responsável, o qual acabaria assumindo um
papel de destaque na perpetuação da ordem social estabelecida cuja lógica de início se
criticava: a solidariedade e o voluntariado viraram mesmo moeda de troca17, e ao
movimento real de resistência global sobreveio a ―ideologia cidadã-negriana‖18, vale
dizer, a ideia do cidadão como cogestor da pacificação social – jovens de periferia (de
guetos, banlieues e favelas mundo afora, sendo os experimentos pacificadores cariocas
ponta de lança no processo) tornaram-se um alvo privilegiado: mobilizados e implicados
16 Nas palavras de Luiz Hernandez Navarro, quando do FSM de Belém em 2009: ―Depois de Nairóbi [em
2007], em que até empresas privadas financiaram o Fórum, teve quem falasse que a frase ‗outro mundo é possível‘ deveria ser trocada para ‗outro turismo é possível‘. Não estou exagerando. Dava impressão de que o modelo nascido em Porto Alegre encontrava seu esgotamento.‖ – cit. em C. Pont, ―O mundo mudou e está em crise. E o Fórum Social Mundial?‖, Carta Maior (31/01/2009).
17 Fenômeno para o qual já chamava a atenção, lá no início, Paulo E. Arantes, ―Esquerda e direita no espelho das ONGs‖ (2000), em Zero à esquerda, São Paulo, Conrad, 2004, pp. 165-189.
18 A expressão é do coletivo Tiqqun, Ceci n‟est pas un programme, Paris, Vlcp, 2006, p. 116.
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na própria exploração, passaram a participar do governo de si mesmos, interiorizando
todos os códigos, normas e práticas requisitados para governar, conduzir e... obedecer19.
Concomitantemente, em nível do discurso, a despeito da intenção progressista de
reconfigurar a política e a sociedade como um todo pela reafirmação de antigas
conquistas sociais bem como pela obtenção de novos direitos, de expandir o espaço
público para além da forma individualista burguesa, de aprofundar a democracia nos
mais diversos âmbitos da vida social e de reinventar novas formas de representação,
através do dissenso notadamente, verificou-se que ―o discurso político dos direitos da
cidadania – cuja validade intrínseca não o impediu de ser recuperado pela verbiagem
gerencial-solidária das mil parcerias fajutas entre tudo e qualquer coisa – estava
correndo por uma pista inexistente‖; constatou-se, enfim, ―que o neoliberalismo não era
apenas uma política econômica perversa a ser descartada assim que a correlação de
forças fosse menos desfavorável e substituída por uma macroeconomia de esquerda‖20.
Por último, mas não menos importante, em nível da vida cotidiana, que costuma
ser relegada a segundo plano em análises deste tipo, o aniquilamento da ação coletiva
altermundialista se deveu muito ao recrudescimento do neoliberalismo, esse monstro de
sete cabeças, cujos contornos e natureza real custamos a discernir, e que no fim das
contas diz respeito menos à ideologia do livre-comércio, ou da desregulamentação dos
mercados, do que à imposição de formas de seleção e eliminação mediante uma
construção política que institucionaliza a concorrência mais acirrada (ou seja, situações
e comportamentos de mercado) em âmbitos em que não se produz mercadoria (como na
universidade, para ficarmos com um exemplo emblemático)21. Tratar-se-ia então de
uma verdadeira fábrica de indivíduos empreendedores de si mesmos, dispostos a tudo, a
sofrer e a infligir sofrimento, para que o mundo gire a seu favor, ou, no limite, para não
19 Como vêm mostrando, entre outros, autores como Livia de Tommasi, Dafne Velazco, Maurílio Lima
Botelho e Fábio Magalhães Candotti, citados e comentados em Paulo E. Arantes, ―Depois de junho a paz será total‖ (2014), em O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência, São Paulo, Boitempo, 2014, pp. 371-76.
20 Paulo E. Arantes, ―Qual política?‖ (2006), em Extinção, São Paulo, Boitempo, 2007, p. 287. 21 Cf. Pierre Dardot & Christian Laval, La nouvelle raison du monde. Essai sur la société néolibérale,
Paris, La Découverte, 2009. Embora os autores procurem demonstrar que tal construção política não é mera decorrência de processos imanentes à dinâmica espontânea dos mercados, ou seja, não é mero efeito automático das leis imanentes do capital, no que têm razão, não podemos deixar de frisar, em contrapartida, que tampouco foi por acaso que tenha começado a ser implementada no fim dos anos 1970, num contexto de crise sistêmica mundial, a qual tem obviamente a ver com a própria lógica do capital, com as determinações da produção, o desenvolvimento das forças produtivas...
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ficarem de fora, não serem excluídos do jogo da concorrência mortal22. À vista disso, é
de se compreender que, em determinado momento (por volta de 2004, 2005, sobretudo
na Europa, mas não exclusivamente), muitos jovens (dentre os quais um número grande
de ex-militantes) buscaram na sociabilidade libertária e extática das noites sem fim das
grandes metrópoles, na beleza convulsiva e na pulsação viva de seus ambientes
aparentemente mais inclusivos e democráticos, experiências de deslocamento, ou uma
posição de alteridade radical, e por isso mesmo de atrito, vis-à-vis da existência posta;
buscaram, por outras palavras, uma saída ou alternativa utópica à ―claridade enganosa
do mundo invertido‖23, ao universo alienado, empobrecido e brutal do trabalho e do
consumo dirigido de massas, bem como ao circo da política oficial burguesa e à
militância reduzida ao business dos empreendimentos sociais e culturais. Naquele
contexto, a música eletrônica, ―música do tempo infinito‖, condicionava uma urgência,
mas o fato de não haver mais futuro, ou de o futuro já ter chegado, de só existir o aqui e
agora, paradoxalmente era percebido como uma abertura para uma radicalização da
experimentação o mais livre possível de outras razões de viver. Seja como for, embora
houvesse uma dimensão profundamente verdadeira no conteúdo onírico de tal
movimento de dissipação e evasão da vida ordinária (em todos os sentidos do termo), ―o
valor de uso social das drogas e da noite‖ não deixava de cair, de um jeito ou de outro,
nas malhas da alienação cultural administrada, que captura e sufoca as potencialidades
utópicas que por ventura contenha tal viagem aos confins da noite: ―O tempo da
tentativa de congregar em um vértice geral afetivo e estético uma juventude
desarticulada ante o fim do estado de bem-estar social europeu e pela radicalização do
individualismo de mercado, sonhando com uma identidade amorosa livre diante do
mundo nada livre do neoliberalismo confirmado, o projeto político festivo e coletivo do
sujeito do ecstasy, simplesmente se dissolveu na simbólica mais concreta e poderosa da
sociedade de mercado total. [...] A noite tecno administrada, indústria cultural da
autodissolução consentida, corresponde fortemente ao movimento da valorização
espetacular, empresarial e de massas, da cultura, como ordem compensatória de
existência e de vetor ideológico certo no capitalismo contemporâneo.‖24
22 Cf. Silvia Viana, Rituais de sofrimento, São Paulo, Boitempo, 2013. 23 Guy Debord, In girum imus nocte et consumimur igni (1978), em Œuvres, Paris, Quarto-Gallimard,
2006, p. 1780. 24 Tales A. M. Ab‘Sáber, A música do tempo infinito, São Paulo, Cosac Naify, 2012, pp. 88, 111 e 135.
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Ainda em nível das transformações ocorridas na vida cotidiana, é digno de nota
que aqueles foram os últimos anos em que a maioria das pessoas vivia mais na ―vida
real‖ do que diante de uma tela de computador, conectada ao não-mundo do
ciberespaço; as amizades, por sua vez, não haviam ainda degenerado em virtualidades
narcísicas, e o bem-estar individual não dependia tanto da apreciação e da aprovação
alheias, que nos dias atuais parecem se medir quase que exclusivamente pela
quantidade de curtições/likes que se obtém no curso de um dia... Para além das
platitudes usuais sobre as maravilhas tecnológicas informacionais e analógicas ou sobre
as incríveis possibilidades do admirável mundo novo das redes sociais virtuais
(ingenuamente celebradas como ―plataformas nas quais vozes dissonantes se conectam
e ganham escala‖), um estudo sério ainda está por ser realizado, destrinchando o laço
que une a introdução massiva das novas tecnologias digitais e microeletrônicas na vida
das pessoas – o que possibilitou uma nova volta no parafuso da cultura da acomodação
e do entretenimento infantilizado embrutecedor25 – à demissão, igualmente massiva, da
ação coletiva, notadamente a nível internacional26.
***
―Quando a pessoa atua através de uma dessas redes [Twitter e Facebook], não
reporta simplesmente. Inventa, articula, muda. Vive. [...] Talvez esta nova geração,
auxiliada pelas trocas e conexões possibilitadas pela tecnologia, faça a diferença de uma
forma que os que vieram antes não conseguiram.‖27 Curioso como, num outro texto, o
autor destas linhas deslumbradas chega à conclusão de que ―[m]uitos desses jovens
estão descontentes, mas não sabem o que querem. [...] cobrados de uma resposta sobre
sua insatisfação, no fundo, no fundo, conseguem perceber um grande vazio‖28. Em vez
25 Cf. Luli Radfahrer, ―Moleques mimados‖, Folha de São Paulo (29/09/2014), p. F6: ―Em muitos
aspectos, a Web parece ter se tornado o pátio de recreio do ensino médio, em que palhaços, valentões, escandalosos e esquisitos (incluindo na categoria fanboys, geeks e nerds) disputam espaço com seus draminhas pessoais, aparentemente incapazes de crescer ou enxergar além de seu próprio umbigo.‖
26 A respeito do impacto do ciberespaço sobre a vida social, veja-se a análise pioneira de Slavoj Žižek, The Plague of Fantasies, London/New York, Verso, 1997, cap. 4: ―Cyberspace, or, the unbearable closure of being‖.
27 Leonardo Sakamoto, contracapa de D. Harvey & outros, Occupy. Movimentos de protesto que tomaram as ruas, São Paulo, Boitempo/Carta Maior, 2012.
28 Leonardo Sakamoto, ―Em São Paulo, o Facebook e o Twitter foram às ruas‖, em E. Maricato & outros, Cidades rebeldes. Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, São Paulo, Boitempo/Carta Maior, 2013, p. 100.
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de exaltar o que supostamente se ganhou com o processo decentralizado brotando como
que por geração espontânea – portanto sem as mediações tradicionais de partidos,
sindicatos e movimentos sociais organizados – da insatisfação genérica e generalizada
da população com os problemas que não se resolvem por si sós, ou que não são
resolvidos – como se ouve com frequência – por ―incompetência congênita‖ dos
representantes políticos, talvez devêssemos ao contrário, até para contrabalançar o
entediante entusiasmo reinante a respeito, questionar o que se perdeu no caminho.
Diferentemente dos protestos altermundialistas dos anos 2000, que apesar da
heterogeneidade eram mais pontuais e precisos em suas críticas e exigências – pelo
menos no início, antes que suas reivindicações mais importantes não degradassem em
slogans inofensivos –, as mobilizações que tiveram lugar a partir da crise desencadeada
fins de 2008 pela queda do Lehman Brothers, resumidas por denominações como
―Indignados‖, ―Occupy‖, ―99%‖ ou ―A Voz das Ruas‖, possuem (para falar como os
detratores à direita) uma pauta um tanto difusa, ainda que também inclua a censura ao
sistema financeiro global e a defesa da criação, a partir de baixo, de novas formas de
partilha dos bens comuns. A exemplo do que se viu nas manifestações contra as políticas
de austeridade na Europa, a crise manifesta da democracia representativa dá vazão a um
rechaço generalizado (não de todo injustificado, mas no mais das vezes assaz abstrato)
dos governos e da representação política tradicional: ―Não nos representam!‖ é o seu
grito de guerra29. Os altermundialistas, não esqueçamos, também preconizavam a
radicalização da democracia e a reapropriação dos ―comuns‖ (reclaiming the commons
fora uma de suas principais bandeiras), como também já manifestavam reticências em
relação a partidos e governos (basta lembrar, por exemplo, o slogan Not in my name!
quando da segunda Guerra do Iraque, em 2003). A diferença principal, salvo engano, é
que, ao contrário do altermundialismo, como visto um movimento de movimentos, de
escala internacional, interligando lutas distintas contra um inimigo comum em todo o
mundo, a nova geração de manifestantes reúne, quando muito a nível nacional,
multidões de indivíduos isolados descrentes nas instituições, sejam quais forem. Daí a
pergunta (geralmente dirigida a eles pela direita): Ma che vuoi? Porque a multiplicidade
de ―demandas únicas‖ tem levado à dispersão, não surte efeito, sem mencionar a inépcia
29 Ou, de forma mais debochada: ―Que nos gobiernen, juzguen y cuiden las putas, ya que sus hijos nos han
fallado!‖
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organizativa (apesar de todo o enaltecimento entusiasmado das redes sociais virtuais
como formas mais avançadas e eficazes de mobilização), que faz com que pouca coisa ou
nada se acumule e se consolide30. Nestes quesitos, para dizer o mínimo, o MPL (surgido
em 2005) foi mais consistente e esteve muito à frente.
Por certo: ―Os herdeiros de Seattle, ou [das Revoltas do Buzu de] Salvador/
Florianópolis, levaram uma década para descobrir que não é nem a Economia nem a
Questão Urbana (estúpido?), mas os vinte centavos. Para tanto [...] foram necessários
que vários consensos-tabu fossem quebrados ao longo do processo, abrindo caminho até
esse resultado.‖31 Mas por isso mesmo, caberia não esquecer que não se tratou apenas (e
ponha-se aspas em apenas) da profanação da estratégia da não-violência32. Dito de
outro modo, foi preciso também passar pela economia e pela questão urbana, mais
precisamente, pela percepção da necessidade de se frear a especulação e os fluxos de
capital financeiro e pela reivindicação do direito à cidade, e foi preciso, outrossim,
reafirmar com todas as letras que outro mundo é possível/necessário (num momento
em que tal asserção estava longe de ser óbvia) e que o mundo não é (nem sempre foi,
nem deveria ser, embora esteja se tornando) uma mercadoria, para enfim chegar à
reivindicação maior da tarifa zero para o transporte coletivo, utopia concreta (para falar
como Ernst Bloch) que remete em questão nada menos que todo o sistema de alienações
ligado à economia política capitalista33. Em suma, para retomar o que dizíamos mais
acima, embora pareça evidente, o tempo da práxis não é exatamente o mesmo da teoria,
30 A propósito, Daniel Cunha lembra que, desde Junho, as passeatas mais ―coxinhas‖ – cada um com o seu
cartaz com mensagem individual, sem acúmulo, despolitizada – têm forma semelhante ao feed do Facebook, uma sequência de mensagens em geral individual-exibicionistas.
31 Paulo E. Arantes, ―Depois de junho a paz será total‖ (2014), em O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência, São Paulo, Boitempo, 2014, pp. 421-22.
32 No mesmo texto (p. 434), Arantes explica: ―Os vinte centavos não caíram do céu. Tampouco o céu foi tomado de assalto à maneira clássica. Foi preciso muito bloqueio, muito ônibus depredado, muita lixeira queimada, muito enfrentamento com a polícia, mas também muita assembleia de rua. [...] foi preciso, enfim, adicionar à desobediência civil uma forte dose de todas aquelas práticas que a paz armada de nossa interminável transição colocou na ilegalidade – ou manteve. Para que os vinte centavos caíssem foi preciso profanar, nos termos de nosso visionário Silvio Mieli – algo muito mais intolerável que as vidraças quebradas de agências bancárias e assemelhados de marca de luxo –, os santuários do único monopólio que realmente importa [nada menos que o monopólio da vida pública por parte do Estado, das instituições e das autoridades estabelecidas], e pior, por gente comum, autoconvocada [...].‖
33 Ainda nas palavras de Paulo E. Arantes, ―O futuro que passou‖ (entrevista), O Estado de São Paulo (23/06/2013), p. E2: ―Pelo tênue fio da tarifa é todo o sistema que desaba, do valor da força de trabalho a caminho de seu local de exploração à violência da cidade segregada rumo ao colapso ecológico.‖
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a qual tampouco é irrelevante, muito pelo contrário, e toda experiência digna do nome,
como sabe qualquer leitor de Hegel, implica de alguma maneira um processo de
aprendizagem que envolve engano e desengano, ilusão e quebra da ilusão, sem falar que
toda luta consequente exige organização, objetivos claramente definidos, planejamento
estratégico e acúmulo de forças – ou não? A crítica abstrata da luta política – tal como
encontramos em diversos grupos neoanarquistas – faz com que nos ludibriemos pela
solução definitiva, a ser arrancada de um só golpe no dia da insurreição que vem...
Dito isso, não se trata de enaltecer abstratamente a virtude da paciência, uma
espécie de estoicismo deslocado, tampouco de buscar uma posição de equilíbrio,
equidistante dos dois extremos, mas, talvez, se não for extrapolar, não faria mal
ressuscitar aquela ―dialética da paciência e da impaciência‖ que enformou boa parte do
pensamento, da atitude e do trabalho de Brecht durante os anos de guerra e exílio34.
Estranhamente, os que se mostram hoje mais impacientes, os que não querem mais
saber de mediações ou instituições, malgrado toda a agitação, todo o quebra-quebra,
põem-se de fato a esperar, pacientemente, pela insurreição a caminho. Salvo erro de
percepção, o momento atual exige exatamente o contrário, a saber, que sejamos
impacientes quanto ao fim, e menos quanto aos meios. Melhor dizendo, se apenas
esperarmos pela transformação radical, esta nunca virá; é preciso ―começar com
tentativas ‗prematuras‘ que – aí reside a ‗pedagogia da revolução‘ – no fracasso em
atingir o fim professado criam as condições (subjetivas) para o momento ‗adequado‘‖35.
Tentativa e erro, errar novamente, errar melhor. A tarefa mais difícil, abandonada
precipitadamente por quem acha que o desmoronamento do sistema se dará em virtude
de um desdobramento automático da lógica do capital, ou que o sujeito revolucionário
brotará, como que por geração espontânea, do seio do próprio processo produtivo
capitalista, consiste precisamente em conceber ―mediações culturais e políticas das
quais resultará a contestação do modo e das finalidades da produção‖36.
***
34 Cf. Leandro Konder, A poesia de Brecht e a história, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1996, cap. 4. 35 Slavoj Žižek, In Defense of Lost Causes, London/New York, Verso, 2008, p. 360. 36 André Gorz, Misérias do presente, riqueza do possível (1997), trad. A. Montoia, São Paulo, Annablume,
2004, p. 52.
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Se o sujeito da transformação qualitativa não brota espontaneamente do modo
de produção capitalista (ao contrário do que reza a lenda da multidão supostamente
cooperativa, que já estaria socializando direta e positivamente os resultados da
produção), cabe não esquecer que no capitalismo o trabalho, práxis social alienada e
negativa que obstrui qualquer tipo de experiência formadora num sentido emancipador,
segue sendo a fonte de negatividade da qual ―pode emergir em ato a negação
determinada‖37. De novo, estamos na contramão da ideologia negriana atualmente em
voga, para a qual o trabalho imaterial das multidões ―autônomas‖ não teria nada de
negativo em si. Por certo, no curso do desenvolvimento do capitalismo observa-se, para
falar como Debord, uma queda tendencial do valor de uso: enquanto medida capitalista
da riqueza, objetivação do tempo de trabalho imediato, o valor entra progressivamente
em contradição com as possibilidades criadoras de riqueza criadas pelo tempo de
trabalho passado objetivado. Ocorre que a perspectiva negriana fica aquém de uma
análise minimamente satisfatória do problema. A este respeito, vale retomar, como
contraponto, a leitura de um autor como Moishe Postone, que procura mostrar que o
aspecto não-idêntico do valor de uso (que diz respeito à acumulação do tempo de
trabalho e de conhecimentos passados preservados) não encontra expressão nas formas
de aparição determinadas pelo valor (donde o caráter cada dia mais supérfluo de parte
considerável da atividade produtiva), razão pela qual novas formas de consciência,
ainda que vagas, tendem a emergir da tensão crescente entre o tipo alienado de trabalho
que continuamos a exercer (uma vez que o tempo de trabalho no capitalismo segue
sendo a única medida da riqueza socialmente produzida) e os tipos de atividade que
(não fossem os imperativos irracionais do capital) poderíamos ter como resultado da
acumulação do tempo de trabalho passado objetivado. É na experiência negativa do
trabalho notadamente que reside a possibilidade de descontentamento para com a
forma atual do trabalho, por conseguinte a possibilidade de surgimento da necessidade
social de atividades significativas como condição de uma plena realização individual e
coletiva, que só pode ser atingia por formas adequadas ao potencial implícito
37 Cláudio R. Duarte, ―A greve dos garis no Rio: são as águas de março fechando o verão sangrento com
vitória‖ (2014): <militante-imaginario.blogspot.com.br>
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desenvolvido nas forças sociais produtivas38. Com John Holloway, acrescentaríamos que
tal possibilidade, para que não permaneça apenas possibilidade vazia, para que se torne
impulso real, deve se enraizar nas lutas presentes, principalmente naquelas em que vem
à tona o antagonismo vivo entre o desenvolvimento das forças sociais produtivas e as
relações de produção vigentes39. Justamente essa tensão dialética se perde, apesar das
aparências, na perspectiva negriana, que põe a ―cooperação‖, a ―autonomia‖ e a
―liberdade‖ nas condições atuais da produção (o que em si já é uma enormidade) como
qualidades da ―democracia absoluta‖, da sociedade cooperativa de indivíduos livres e
autônomos, praticamente ao alcance da mão. Na esteira de André Gorz, diríamos que
Negri e Hardt escamoteiam questões das mais fundamentais, para as quais o capital tem
obviamente respostas próprias, que ademais são subtraídas a qualquer debate ou
contestação: ―[O] sistema de produção é concebido, gerido e organizado de maneira a
assegurar a maior autonomia possível dos trabalhadores em seu trabalho e em sua vida
fora do trabalho? A que e a quem servem os resultados de seu trabalho? De onde se
originam as necessidades que os produtos devem satisfazer? Quem define a maneira
pela qual as necessidades ou os desejos devem ser satisfeitos e, através deles, o modelo
de consumo e de civilização? E, sobretudo: que relações entretêm os participantes
atuais do processo de produção com os participantes potenciais ou periféricos, isto é,
com os desempregados, os intermitentes, os precários, os autônomos e os trabalhadores
das empresas subcontratadas?‖40
No início de novembro passado, três grandes sindicatos belgas organizaram uma
manifestação nacional que levou num único dia cerca de 150 mil pessoas às ruas em
Bruxelas. As razões para o protesto e para as greves regionais e a nível nacional que se
seguiram podem parecer anódinas ou insuficientemente anticapitalistas aos olhos de
autoproclamados críticos radicais, que veem com desprezo qualquer manifestação da
―finada luta de classes em torno do trabalho‖. Tampouco se trata de uma multidão de
indivíduos indignados demonstrando sua insatisfação com ―a corrupção‖, com ―os
38 Cf. Moishe Postone, ―Necessity, Labour and Time: A Reinterpretation of the Marxian Critique of
Capitalism‖, Social Research, vol. 45 (1978), pp. 739-88. Para uma boa leitura crítica desta perspectiva, cf. Cláudio R. Duarte, ―A potência do abstrato: resenha com questões para o livro de Moishe Postone‖, Sinal de Menos, nº 11, vol. 2, 2015.
39 Cf. John Holloway, Fissurar o capitalismo (2010), trad. D. Cunha, São Paulo, Publisher Brasil, 2013, p. 239.
40 André Gorz, Misérias do presente, riqueza do possível, ed. cit. p. 52.
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políticos‖, ou com a ―representação política‖ em geral, com a própria forma da política
burguesa, mas, em sua maioria, de trabalhadores que protestam contra um acordo
governamental a nível federal (que entre outras coisas prevê novas políticas securitárias
de exceção e o aumento da idade de aposentadoria de 65 para 67 anos até 2030, medida
esta vendida como ―um serviço de interesse geral para os desempregados de longa
data‖), sentido como prejudicial para a classe trabalhadora. Para além da questão do
poder popular, que também se põe de forma incisiva em momentos assim, é a questão
da verdadeira natureza do poder dos trabalhadores que se coloca de maneira
contundente. Ao invés de se retrair, como quando nos contentamos em dizer que ―não
nos representam, mas exigimos assim mesmo...‖, o campo do jogo político se amplifica
consideravelmente no momento em que a classe trabalhadora organizada mostra sua
força e busca impor (e não apenas influenciar indiretamente) o andamento das coisas.
Além disso, e mais importante, completando o que dizíamos acima, a recusa coletiva de
trabalhar mais abre espaço para ideias libertárias e comportamentos antissistêmicos,
ou, nos termos de dois autores franceses, pode dar vazão a ―contracondutas de
cooperação‖, imprescindíveis na produção de formas de vida emancipadas41 – este o
ponto cego de muitas teorias atualmente em voga, que, como visto, supõem como dados
tais comportamentos e contracondutas, em vez de algo que se forma paulatinamente no
seio de um movimento contestatório coletivo organizado.
O passo seguinte, como lembra Žižek a propósito de outros movimentos na
Europa, seria rejeitar explicitamente a tentação populista e nacionalista e reorganizar
novamente a luta anticapitalista a nível internacional, haja vista que medidas
antitrabalhistas (de austeridade, revogação de conquistas sociais, sucateamento de
serviços públicos etc.) estão sendo tomadas por toda parte42. Na mesma linha, seguindo
Simon Choat, diríamos que, ao invés de recorrer às fantasias espontaneístas sobre a
―multidão‖, precisamos mesmo é de uma nova articulação política em que alianças
sejam formadas e as diversas lutas (feminista, ecologista etc.) unificadas, alianças que –
41 Cf. Pierre Dardot & Christian Laval, La nouvelle raison du monde, ed. cit., p. 480. 42 Cf. Slavoj Žižek, ―Problemas no Paraíso‖, trad. N. Gonzaga, em E. Maricato & outros, Cidades rebeldes,
ed. cit., p. 108.
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eis o ponto – enraízem-se nas experiências concretas do desemprego e da exploração do
trabalho, sem nenhuma necessidade de evocar o ―povo‖ ou coisa parecida43.
***
―Não é a urgência dos problemas que impede a elaboração de projetos
alternativos de ruptura, mas antes a ausência de tais projetos que nos submete à tirania
da urgência.‖44 Não é a menor das ironias que uma das ―bíblias‖ do altermundialismo
tivesse por principal bagagem teórica a filosofia antidialética que consagra a ausência de
alternativas sob a alcunha de ―plano de imanência‖. Por outro lado, não admira que no
início dos anos 2000, quando as ruas de grandes cidades em todo o mundo vinham
sendo reclamadas por multidões ―nômades‖, aparentemente desgovernadas, a narrativa
de Império, calhamaço então recém-publicado, parecesse atraente e convincente aos
olhos de muitos participantes e simpatizantes dos protestos contra a globalização
corporativa e as guerras neoimperialistas que a acompanhavam: podíamos de fato
―sentir, nas entrelinhas, os odores e sons de Seattle, Gênova, e os zapatistas‖, o que faz
com que os limites da perspectiva negriana, de certo modo, digam algo a respeito dos
limites do próprio movimento de resistência global anticapitalista45. Tratava-se – a
exemplo do fizeram precedentemente, à direita, teóricos como Francis Fukuyama e
Samuel Huntington – de uma reabilitação extemporânea da Filosofia da História, mais
precisamente na forma de um discurso também ele sobre o ―fim da história‖46.
Diferentemente da perspectiva marxista clássica, aqui a contradição entre relações
sociais capitalistas e forças sociais produtivas não conduz a um impasse – ao nó górdio a
ser cortado pela instauração de uma verdadeira emergência, o estado de exceção dos
despossuídos –, mas a uma época em que, tendo-se superado a produção material
43 Simon Choat, ―Crowd, Power and Post-democracy in the 21st Century‖ (entrevista de 2013), em:
<http://obsoletecapitalism.blogspot.com.br/2013/10/simon-choats-interview-on-crowd-power_5.html>.
44 Jérome Bindé, ―Éthique du futur: pourquoi faut-il retrouver le temps perdu?‖, Futuribles (déc. 1997), p. 21, cit. em P. E. Arantes, ―Alarme de incêndio no gueto francês‖ (2006), em O novo tempo do mundo, ed. cit., p. 260.
45 Slavoj Žižek, The Paralax View, Cambridge/London, MIT, 2006, p. 261. 46 Cf. Paulo E. Arantes, ―Alarme de incêndio no gueto francês‖, art. cit., p. 277.
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fordista e taylorista47, ao capital só resta confiscar e expropriar os potenciais de
criatividade e cooperação coletiva inerentes ao celebrado trabalho imaterial. Tudo se
passa como se o capitalismo atual precisasse apenas de um empurrãozinho por parte da
multidão proletária informatizada para liberar o que de certa maneira já disponibiliza,
ao mesmo tempo em que captura e limita o acesso: ―Hoje a produtividade, a riqueza e a
criação de excedentes sociais tomam a forma da interatividade cooperativa através de
redes linguísticas, comunicacionais e afetivas. Na expressão de suas próprias energias
criativas, o trabalho imaterial parece assim fornecer o potencial para uma espécie de
comunismo espontâneo e elementar.‖48
Nesta perspectiva, que na superfície coincide com a marxista clássica, a produção
já estaria sendo socializada diretamente, em seu próprio conteúdo, demonstrando não
mais necessitar da forma capitalista que continua contudo a revesti-la (a mordaça do
valor, o fetichismo da forma mercantil, os imperativos da concorrência e da
rentabilidade...). Acontece que na atual fase, como salienta Žižek, o capital não é
47 Trata-se de uma história mal contada, para dizer o mínimo. Decerto, para o scholar que, pela janela de
seu bureau no campus de uma universidade europeia ou estadunidense, não vê mais fábricas ou indústrias fordistas, a tendência parece óbvia. Acontece que, globalmente, os números contradizem a suposta evidência. Para início de conversa, o trabalho está longe de estar sumindo do mapa: no início dos anos 1990 havia 2,2 bilhões de trabalhadores produzindo valor, ao passo que atualmente o número chega a 3,2 bilhões. Ademais, a revolução microeletrônica não suplantou de todo a produção industrial fordista (nos setores de manufatura, mineração, energia etc.). Houve de fato desindustrialização – e subsequente aumento do desemprego – nas economias mais desenvolvidas, onde a mão de obra industrial diminuiu em 18% entre 1991 e 2012. No mesmo período, entretanto, a nível global, a força de trabalho industrial cresceu 46%, o que significa que o mundo, ao contrário do que se costuma pensar, não está se desindustrializando. Para estes e outros dados, cf. Michael Roberts, ―De-industrialisation and socialism‖ (2014), em <https://thenextrecession.wordpress. com/2014/10/21/de-industrialisation-and-socialism>. Por essas e outras, há que se concordar com Mario Tronti, ―Per una critica dell‘immaterialismo storico‖, Alfabeta2, n° 9 (maggio 2011), p. 11: ―[...] não podemos jogar o knowledge worker, e nem mesmo os trabalhadores autônomos de segunda ou terceira geração, contra os operários de fábrica, que não são um resíduo em via de extinção, são uma considerável realidade social, civil e humana [...] na arena global do mundo que está por vir.‖ Na mesma linha, Daniel Cunha me chamou a atenção para o fato de que o ―trabalho imaterial‖ só é imaterial se se considera exclusivamente a última ponta da cadeia produtiva, porque a fabricação de laptops, iPhones, câmeras digitais, tablets etc. exige enorme dispêndio material, humano e energético, ou seja, mineração em locais muito específicos e nada etéreos – como o Congo, onde vige o trabalho escravo e infantil nas minas e uma guerra civil interminável em torno do ―ouro negro‖ (o país contém 70% das reservas mundiais de coltan, metal utilizado na fabricação de qualquer telefone celular), que já levou à morte mais de 4 milhões de pessoas – e exploração brutal do trabalho proletarizado em fábricas asiáticas – como a Foxconn, com suas altas taxas de suicídio –, sem falar no consumismo imbecilizado e anestesiador no ocidente (que também passa sob silêncio em Negri e Hardt), a reciclagem em condições insalubres... Aliás, outro aspecto material nada negligenciável do ―trabalho imaterial‖, como lembra ainda Daniel, é que ele produz grande quantidade de lixo, o chamado e-waste (ou resíduo eletrônico, repleto de substâncias nocivas), muito do qual vai parar de volta na África.
48 Antonio Negri & Michael Hardt, Empire, Cambridge/London, Harvard University, 2000, p. 294.
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simplesmente parasita das forças produtivas, mas exerce ainda um papel fundamental
na organização da produção, fazendo a mediação entre produção material e trabalho
com informação49. Acresce, por outro lado, que Negri e Hardt não podem ignorar que
―não há mercado por geração espontânea, quer dizer, sem a mão visível do poder
político‖50. Como se sabe, os dois autores jogam abstratamente com duas lógicas opostas
e heterogêneas (algo como um Fla-Flu filosófico entre o infeliz Descartes e o bom
Espinosa): a lógica da representação e a da expressão. A primeira, encarnada pelo
Estado e os partidos políticos, redundaria – e de fato redunda – numa democracia
insuficiente, limitada; já na segunda a democracia seria ―absoluta‖, uma vez que
indivíduos e movimentos sociais expressariam a pluralidade espontânea e a criatividade
livre da ―multidão‖ (devidamente informatizada, ça va de soi, conectada em rede e com
software de última geração a tiracolo).
Mas o que é a multidão? Num breve artigo publicado em fins dos anos 60
Pasolini tentava dar uma resposta à pergunta. Segundo o grande cineasta, do mesmo
modo que o público de teatro se distingue qualitativamente do público do cinema, assim
também a multidão se distinguiria da massa, a qual ―só é representável nas estatísticas
ou nas prestações de contas, e obedece a regras reativas médias, identificadas por
abstração‖. A multidão seria ao contrário um fenômeno urbano, que teria surgido com
os primeiros mercados, como o da antiga Alepo, na Síria. Por isso, teria por primeira
característica ―se mesclar com sua mercadoria: objetos de troca, de mercado e, hoje, de
consumo‖. Ela seria caracterizada ainda pela presença em carne e osso de um grande
número de indivíduos que teriam, por vezes, sentimentos comuns, como nos casos de
linchamento, ou ainda, de uma torcida num estádio durante uma partida de futebol51.
Sob este prisma, é curioso como Negri e Hardt, numa espécie de hegelianismo
distorcido, positivizam completamente o conceito e tomam a multidão como encarnação
da racionalidade no espaço público, como se não fosse travejada de paixões das mais
49 Cf. Slavoj Žižek, In Defense of Lost Causes, ed. cit., pp. 357-59. De passagem, sublinhe-se que,
examinado de perto, o discurso sociológico que exalta a ―sociedade do conhecimento‖, ou ―sociedade da informação‖, aparece como uma maneira assaz grosseira de legitimar ideologicamente o privilégio e a dominação das classes que têm acesso à educação superior, à informação e ao conhecimento (devo a observação a Cláudio R. Duarte).
50 Paulo E. Arantes, ―Alarme de incêndio no gueto francês‖, art. cit., p. 277. 51 Pier Paolo Pasolini, ―O que é multidão?‖ (1969), em Caos. Crônicas políticas, trad. C. N. Coutinho, São
Paulo, Brasiliense, 1982, pp. 197-99.
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diversas e conflituosas. Curioso igualmente como distorcem até a filosofia de Espinosa
de que em grande medida se reivindicam. Decerto, para o filósofo holandês a multidão
não se reduz a uma turba exaltada e manipulável, politicamente incompetente, o que
não quer dizer que tudo o que venha dela seja bom e positivo. Como lembra Marilena
Chaui: ―A multitudo espinosana é, ao mesmo tempo, a guardiã da democracia e o maior
perigo contra a democracia. Essa contradição é o coração da política. [...] as paixões
[multitudinárias] não têm freios, e quando elas estão ligadas à forma da propriedade e
ao exercício do governo, você tem de realmente segurar a explosão passional ilimitada.‖
Donde a necessidade, em Espinosa, de o conflito das paixões ser ―mediado pelo direito
coletivo, garantindo um poder que sustente uma sociabilidade segura, pacífica e livre, ou
seja, o que Espinosa chama de democracia ou poder popular absoluto‖52.
Em resumo, digamos que o erro básico em que incorrem os inimigos da dialética
é separar as manifestações multitudinárias dos seus conteúdos específicos. Por que
razão mobiliza-se a multidão? Por que vai às ruas? Contra e/ou a favor de quê? Ora, de
tais questões não se ocupam Negri e Hardt, para os quais o verdadeiro problema reside
no fato de a dita multidão, que já encarnaria, sem mediação, a democracia absoluta, ser
ainda apenas em si53. Mas o que seria uma multidão para si? No caso da classe,
entende-se: o em si é posto pelo próprio processo capitalista, isto é, pela valorização do
valor, que tem por fundamento contraditório a exploração do trabalho, e a passagem ao
para si supõe conscientização desfetichizante, organização, formação prático-teórica de
um sujeito coletivo, ou de um grupo sujeito, um grupo que devém sujeito em luta, na e
pela luta de classe, que se subjetiviza primeiramente como força social antagonista do
capital. A despeito da aparência subversiva, para os autores de Império a história é um
pouco diferente, desnecessário frisar. Se os habermasianos, como se sabe, forneceram o
quadro conceitual de legitimação do Estado-Providência do pós-guerra e, mais adiante,
de seus desdobramentos belicistas cosmopolitas em nome da Paz Perpétua kantiana
(com todas as ―contradições performativas‖, Marcuse pelo menos nunca ignorou que
welfare, em contexto capitalista, de desenvolvimento desigual e combinado das nações,
52 Marilena Chaui, ―Pela responsabilidade intelectual e política‖ (entrevista), Cult, n° 182 (agosto de
2013), p. 15. 53 Detratores notórios do hegelianismo e da dialética, não deixa de ter sua graça notar a presença de uma
série de categorias hegelianas em seu discurso, usadas da maneira um tanto superficial, como notou ainda Slavoj Žižek, In Defense of Lost Causes, ed. cit., p. 353.
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costumava rimar com warfare), Negri e Hardt, a seu turno, encarregaram-se de
legitimar – se bem que o propósito aparentemente fosse o exato contrário, sedicioso – a
nova ordem mundial imperial. Noves fora o jargão pós-estruturalista, o torrencial jorro
poético-filosófico de inspiração deleuziana, o discurso da dupla difere relativamente
pouco, ao final, do discurso dominante. Em ambos a cidadania ativa aparece como ideal,
ou melhor, imperativo, e a multidão desgovernada (ou ―ingovernável‖, ―demoníaca‖, por
isso mesmo, na versão imperial, devendo ser administrada por medidas de exceção) não
passaria de uma sigla ideológica para ―sociedade‖, a qual não demandaria outra coisa
senão a permissão para ingressar no mercado da cidadania, com seus direitos e
responsabilidades. Uma multidão para si seria deste modo uma multidão proativa e
propositiva, composta de singularidades protagonistas responsáveis, e assim por diante.
As contradições de tal discurso saltam à vista: ―Fantasias de onipotência alternam-se
com ataques de impotência; a megalomania transforma-se abruptamente em depressão.
Por um lado, eles celebram o sujeito ‗multidão‘ como Criador de tudo; por outro lado,
ele é constantemente rebaixado pelo poder incompreensível do capital ou do ‗Império‘,
que transforma todos os seus ataques em derrotas.‖54
***
Para terminarmos com uma nota local, lembremos que foi preciso os protestos de
junho e julho de 2013 para que a onda negriana chegasse com tudo às praias
tupiniquins. Com acentos tropicalistas, como não podia deixar de ser, pairando a 10 mil
metros acima de esquerda e direita, a Rede Universidade Nômade é o retrato
involuntariamente satírico das teses sobre a ―multidão‖ e a ―constituição do comum‖,
conjugando num mesmo discurso pregação do êxodo e subordinação ao establishment,
resistência ―nômade‖ aos aparelhos de dominação do Estado e luta pela criação e
universalização dos direitos, tudo ligado ao ―desafio da mudança‖, quer dizer, para além
de toda polaridade, ―o desafio de construir uma política produzida por muitos e
diferentes olhares‖. Nos textos mais caricaturescos, publicados na ―revista nômade‖
54 Norbert Trenkle, ―As sutilezas metafísicas da luta de classes: sobre as premissas táticas de um estranho
discurso nostálgico‖ (2005), trad. P. Rocha, M. Barreira e D. Cunha, Sinal de Menos, n° 10 (2014), pp. 183-84. Discordo, de resto, de muita coisa neste texto, e lembraria, como contraponto, um importante artigo de Daniel Cunha, ―Penúltimos combates: a luta de classes como desejo reprimido no Krisis/Exit‖, Sinal de Menos, n° 1 (2009), pp. 80-92.
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Global Brasil, a multidão assume a forma de ―um enxame‖, que toma as mídias, ruas e
praças; o comum é descrito como ―um conceito em aberto‖, ―monstro em constituição‖,
―confluência de axés‖, ―quilombismo como ética‖...
Por essas e outras, mais do que nunca, contra a moralização da política, faz-se
absolutamente necessário politizar a moral. Um espírito desabusado, ou um caráter
destrutivo, daqueles que assume de bom grado o risco de ser mal interpretado,
sustentaria talvez que o principal ―avanço‖ das fatídicas Jornadas de Junho e Julho de
2013 não decorreu das tragicômicas conquistas imediatas (da revogação espetacular do
aumento da passagem, pouco tempo depois reimplementado, à promessa vaga de uma
Constituinte exclusiva para a reforma política, passando pelo Decreto n° 8243/14, que o
jornalismo delinquente, em nome da ―democracia‖, chegou ao cúmulo de chamar de
―comuno-fascistoide‖, ―o embrião de uma Justiça paralela‖, e que, na ressaca das
recentes eleições presidenciais, foi derrubado por uma Câmara de Deputados raivosa),
mas, quiçá ao contrário, do engendramento de uma contrarrevolução violentíssima
(durante a Copa tivemos uma pequena amostra do que se trata e do que teremos que
encarar daqui pra frente), o surgimento de um oponente compacto, que não teme
mostrar a que veio, um adversário potente (contando com o respaldo de toda a mídia
corporativa), no combate contra o qual – para além da ingênua crença espontaneísta
nas multidões negrianas, que, despolitizadas e desorganizadas, desprovidas de objetivos
estratégicos claramente à esquerda, acabaram apostando suas patéticas fichas na onda
―pós-política‖ da última salvadora da pátria – reside possivelmente a única esperança de
as forças progressistas que se insurgiram em Junho alcançarem a maturidade de um
verdadeiro movimento organizado de transformação social. É contra o retrocesso, o
embotamento geral e o irracionalismo endêmico, no combate à crescente tosqueira
fundamentalista, bem como ao conservadorismo e ao reacionarismo difusos, que as
classes espoliadas e as organizações de esquerda deverão se unir e elaborar
coletivamente uma estratégia de luta comum55. Mas não nos iludamos: a par da união
contra o inimigo comum, que não seria pouca coisa, mas que por si só não garante nada,
falta formação de base, em larga escala, falta politizar a contestação e defender uma
55 Para uma perspectiva crítica da conjuntura pós-Junho e seus recentes desdobramentos, veja-se os
textos de Cláudio R. Duarte publicados em seu blog: <militante-imaginario.blogspot.com.br>
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democracia popular radical contra as elites oligárquicas da Casa Grande e seus porta-
vozes na grande mídia golpista.
Tudo somado, não há razão para desesperar, embora estejamos de fato perdendo.
Como disse João Pedro Stédile após as últimas eleições: ―Nunca estive tão otimista.
Agora as coisas estão mais claras.‖
(verão de 2014-2015)
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A CATÁSTROFE COMO MODELO
Agronegócio, crise ambiental e movimentos sociais
durante o decênio 2003-2013
André Villar Gomez
Marcos Barreira
O setor agropecuário é considerado o mais ―eficiente‖ e ―competitivo‖ da
economia brasileira. Desde há alguns anos, ele vem ganhando mercados no exterior e
garantindo o saldo positivo da balança comercial. Mesmo sofrendo contestação de
ambientalistas e ativistas sociais, o modelo do agronegócio – considerado não no
sentido técnico da mera comercialização da atividade agrícola, mas em seu sentido
político atual – tornou-se, para a maior parte da opinião pública, um exemplo de
sucesso. Os números apresentados por seus defensores apontam que, em 2012, o
agronegócio foi responsável por 23% do PIB e 37% dos empregos (levando em conta a
indústria e o comércio ligados ao setor) gerados no Brasil.1
A formação dos primeiros complexos da indústria agrícola data dos anos 1960-
70, período de aceleração da modernização econômica nacional. Mas foi a partir da
década de 1990 que as bases do modelo atual foram lançadas. Com a
internacionalização das cadeias produtivas, a carne e os grãos se tornaram os principais
produtos nacionais de exportação. Este foi o efeito de duas décadas de políticas de
crédito subsidiado e de preço mínimo, praticadas em benefício dos grandes produtores.
Na agricultura, ganhou forma a dicotomia entre o segmento empresarial
internacionalizado (com base nas grandes propriedades) e uma ampla camada de
pequenos produtores rurais que permaneceram à margem das políticas de
financiamento estatal. O resultado foi a expulsão em massa das famílias pobres,
consideradas de ―baixa produtividade‖, que se deslocaram para as periferias dos centros
1 Roberto Rodrigues, ―Rumos do agronegócio brasileiro‖. Folha de São Paulo, 27 de set, 2012.
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urbanos. No início do século XXI, o setor agropecuário brasileiro deu um salto ainda
maior que o das décadas anteriores, tornando-se o segundo exportador mundial (atrás
dos Estados Unidos). O crescimento foi tão grande que esbarrou nos problemas de
infraestrutura e logística para escoar a produção. Desde então, é cada vez maior a
demanda dos produtores rurais por um sistema integrado de transporte e portos capaz
de acompanhar a mudança do modelo.
Um panorama desse setor revela grande diversidade: produção variegada de
alimentos, fibras, energia e outros produtos. Na produção da soja, entre 2000 e 2009, o
desempenho do Brasil passou de 4,2 bilhões de dólares para 17 bilhões. O complexo da
soja (grão, farelo e óleo) se espalhou por vários estados, liderados pelo Mato Grosso, que
concentrou quase 30% da safra 2011/2012. Em menos de 20 anos, a cultura da soja se
difundiu nos estados meridionais, passando pelo Centro-Oeste, até alcançar o Oeste da
Bahia e o cerrado maranhense. A agricultura desenvolvida nos últimos anos apresenta
elevado grau de tecnificação: na produção de fibras, uma variedade de eucalipto
transgênico foi desenvolvida diretamente para a fabricação de celulose. No estado de
São Paulo, a lavoura da cana-de-açúcar possui uma produção altamente mecanizada,
cerca de 70% do total. Quanto ao cultivo de grãos, especialmente nos casos da soja e do
milho, a tecnologia aplicada tem permitido aos produtores – considerados isoladamente
– a redução de suas áreas cultivadas (por outro lado, a maior produtividade estimulou a
ampliação da demanda, exigindo novas terras e mais produtores, além de resultar na
elevação do preço da terra). A maior parte dessa produção (130 milhões de toneladas na
última safra) é destinada à ração animal. Uma comparação com a produção de
alimentos como o arroz e o feijão, que atingiram, respectivamente, 12 e 3 milhões de
toneladas, permite calcular a importância econômica dos novos produtos. Outra
característica do modelo agrícola atual, tal como no caso da soja, é o seu caráter
exportador: das 38 milhões de toneladas de açúcar produzidas no Brasil, 26 vão para o
exterior; 75% da plantação de laranja, que tem no Brasil a maior produção mundial,
também é exportada. O algodão produzido no Centro-Oeste (com variedades
transgênicas mais resistentes) fez com que, em 10 anos, o país mudasse sua condição de
maior comprador para exportador. No entanto, grande parte do que aparece nas
estatísticas como ―riqueza nacional‖ é, na realidade, um resultado da integração do
campo às cadeias transnacionais, nas quais as terras locais são usadas como plataformas
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de exportação de grandes empresas globais. Por fim, além da capitalização da produção
de alimentos e ração animal, a agroindústria é responsável por aproximadamente 18%
da matriz energética brasileira, concentrando-se na fabricação do etanol (derivado da
cana-de-açúcar) e do biodiesel (óleos vegetais).2
1. “Exportar é o que importa”
Durante o período de crescimento econômico das décadas de 1960-70, a política
agrícola do regime militar caracterizou-se pelo subsídio (na forma do crédito rural e do
financiamento da comercialização) aos produtores com grande capacidade empresarial
e uma política de expansão da fronteira agrícola e colonização. Parte da ―modernização
conservadora‖, os complexos agroindustriais montados naquele período tornaram-se,
nos últimos dez anos, exportadores de commodities em uma escala e nível tecnológico
que não podem ser alcançados fora do modelo das grandes propriedades. A produção de
alimentos para o mercado interno, sem contar o que não é comercializado, continua
bastante dependente da agricultura familiar. Em alguns casos, ela é a principal
responsável pelo abastecimento da população (mandioca, feijão, milho, etc.).3 Por outro
lado, é pouco significativa a participação destes nos principais produtos da pauta de
exportações. Além disso, a grande propriedade exportadora ocupa uma pequena parcela
da força de trabalho. Com pouco mais de 24% das terras, a pequena agricultura é
responsável por 74% das pessoas ocupadas no campo.4
2 Em 2004, foi lançado o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel, integrado aos projetos de
geração de renda e desenvolvimento regional. O Programa tem como objetivo produzir biodiesel a partir de diferentes fontes e em diferentes regiões. Cf. ―Balanço energético nacional‖. https://ben.epe.gov.br/downloads/Resultados_Pre_BEN_2012.pdf
3 Não é segredo que a maior parte do que vai para a mesa dos brasileiros é produzida por pequenos agricultores. Essa situação apenas reforça uma longa tradição, que tem origem no latifúndio colonial, de privilegiar as grandes monoculturas exportadoras. Na formação histórica do território brasileiro, os primeiros centros urbanos do período colonial também foram abastecidos pelos pequenos produtores. Tratava-se, é claro, de uma produção vital para a reprodução da vida social, mas economicamente secundária em relação à exportação de produtos como o açúcar e depois o algodão ou o café. Nesse sentido, pode-se falar, com A. P. Guimarães, num ―tradicional desprezo votado pelo latifúndio às culturas alimentares‖. Citado por Graziano Neto. ―Questão Agrária e Ecologia: crítica da agricultura moderna‖. São Paulo, Editora Brasiliense, 1985 [segunda edição], p. 59.
4 Os números de 2006 apontam a mudança em curso no campo brasileiro: no censo agropecuário de 1995/6 (IBGE), a pequena agricultura, que ocupava 30% das terras, ainda era responsável por 86,6% dos empregos diretos e ao latifúndio cabiam apenas 2,5%. As propriedades de tamanho médio respondiam por 10,9% das ocupações. Cf. ―Censo agropecuário 2006‖.
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/agropecuaria/censoagro/2006/agropecuario.pdf
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O padrão produtivo que aparece hoje como um consenso entre analistas
econômicos e representantes do governo é menos uma evolução ―natural‖ da
concorrência econômica do que uma opção política. Ainda que a política agrícola vigente
esteja submetida a grandes pressões externas – tanto no que diz respeito às inovações
tecnológicas quanto à reorientação da produção – a velocidade com que se deu a
transformação do campo brasileiro indica a existência de um projeto bem definido.
Note-se ainda que, nos últimos anos, o BNDES tem sido usado como instrumento para
favorecer grandes empresas brasileiras, o que inclui o segmento do agronegócio. Não
obstante, o papel das exportações e os números referentes à geração de empregos fazem
parte dos mitos em torno da produtividade do agronegócio. Em primeiro lugar, porque a
orientação para a exportação exige uma mudança do perfil da agricultura, que passa a
privilegiar as demandas de crescimento de economias periféricas (notadamente a
China) em detrimento da produção de alimentos. Em meio a essa alteração, o Brasil
voltou a importar uma série de itens alimentares básicos, antes produzidos
internamente. Quanto à geração de emprego-renda, o setor agropecuário tem
apresentando uma tendência negativa devido ao padrão tecnológico utilizado. A
mecanização da lavoura é a principal responsável por essa tendência. Se comparado ao
volume de suas atividades, empresas que lideram o setor, como a Cargill ou o grupo
Maggi, criam poucos empregos diretos. Os números apresentados pelos defensores do
modelo atual para caracterizar a sua participação no PIB só podem ser obtidos com a
adição dos empregos relativos ao processamento industrial e à comercialização dos
produtos derivados dos novos complexos agroindustriais. Não se referem, portanto, à
ocupação no setor agropecuário, mas a uma imbricação de diferentes esferas da
economia que torna obsoletas as classificações da composição setorial e cujos números,
de fato, podem ser manipulados de acordo com os respectivos interesses.5 Em todo caso,
os êxitos maiores ou menores do modelo em questão têm sido aferidos em termos
5 Estamos diante dos processos – já bem avançados – de urbanização do meio rural (que inclui o
desenvolvimento de atividades não-agrícolas) e de industrialização da agricultura. Essas tendências acompanharam o decrescimento dos setores industriais tradicionais. Assim, o crescimento industrial verificado nos últimos anos refere-se à agroindústria, que, no entanto, continua a ser representada em muitas análises como um setor ―primário‖. Só assim o nível de ocupação na produção industrial pôde se manter estável (24% das ocupações) entre 1980 e 2008, como se vê, por exemplo, num livro recente de Márcio Pochmann. ―Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira‖. São Paulo: Boitempo, 2012.
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puramente quantitativos, sem consideração pelas suas implicações socioambientais.
Mesmo assim, as toneladas de grãos usadas como critério de ―desenvolvimento‖ não
podem dissimular a pressão dos grandes produtores rurais – através da chamada
bancada ruralista – para a não atualização dos índices de produtividade. Isso significa
que, ao lado de empreendimentos altamente bem-sucedidos, encontram-se as terras
improdutivas que sempre caracterizaram o espaço agrário brasileiro, agora disfarçadas
pelas cifras das exportações.6
A opção pelo padrão empresarial-exportador começou a se fortalecer na segunda
metade da década de 1990. Nesse período, ocorreu um novo salto tecnológico baseado
nos processos de mecanização e automação. As empresas transnacionais que dominam
o mercado da mecanização também se voltaram para o Brasil. Tudo isso tornou visível o
potencial de exploração agrícola do país. Mas, ao mesmo tempo, o período em questão
foi marcado pelo esvaziamento econômico, refletido nos altos índices de desemprego, na
desindustrialização e no endividamento dos produtores rurais. A abertura dos mercados
expôs à concorrência uma produção local (grandes, médios e pequenos) com baixa
produtividade e dificuldades de financiamento.7 De modo contraditório, o cenário da
segunda metade dos anos 1990 era de grande expectativa positiva, a despeito da
conjuntura recessiva, com dívidas elevadas e preços agrícolas despencando. Em 1997,
Fábio Meirelles, então presidente da Faesp, afirmava: ―a agricultura é que vai equilibrar
a balança comercial brasileira no longo prazo. Não será a indústria ou os
semimanufaturados, que até agora não conseguiram atingir o ponto de equilíbrio‖.8 O
motivo de tanta confiança era a base tecnológica, praticamente pronta para dar o
6 Uma vez que parte considerável dessas propriedades funciona como estoque de terras paradas das
empresas ―campeãs de produtividade‖, torna-se absurda a exigência do lobby da bancada ruralista –
ou Frente Parlamentar da Agricultura –, pela modificação do Código Florestal com o fim de expandir as atividades econômicas.
7 Em 1999, uma marcha de agropecuaristas chegou à Brasília trazendo como reivindicação a renegociação dos empréstimos com o Banco do Brasil. De acordo com o repórter Lúcio Vaz, que investigou os bastidores da negociação política envolvendo os interesses dos produtores rurais no Congresso, ―grandes produtores deviam milhões de reais, mas eles falavam que a maior parte da dívida era de pequenos e médios agricultores. Um projeto de lei tramitando na Câmara previa o perdão de até 60% de algumas dívidas [...] O interesse pessoal de alguns parlamentares na aprovação do tal projeto já estava evidente. [...] Um grupo de apenas 2% dos produtores rurais que tomaram empréstimos no banco oficial respondia por mais da metade dos créditos agrícolas concedidos pela instituição – algo próximo de R$ 13,7 bilhões‖. Lúcio Vaz. ―A ética da malandragem‖. São Paulo, Geração editorial, 2005, p. 149-150.
8 ―Um ano otimista para a agricultura‖. Manchete Rural, numero 118, abril de 1997, p. 26.
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―grande salto‖. Faltava apenas um projeto de reestruturação agropecuária. O principal
articulador político do agronegócio no período pré-Lula, Roberto Rodrigues, foi outro
idealizador da mudança necessária. Para ele, o setor agropecuário possuía dois
extremos: a agricultura de negócios, baseada na grande propriedade e ligada aos
complexos agroindustriais; e a agricultura de subsistência, sem condições de concorrer
no mercado. Entre elas, uma agricultura familiar com potencial competitivo a ser
integrada. Na perspectiva de Rodrigues, a massa de pequenos proprietários e sem-terras
teria que assumir ―outras funções‖ na sociedade. Para reverter os efeitos de duas
décadas de crise no campo essa massa seria subsidiada ―franca e abertamente‖ pelo
Estado, ―por um período de duas gerações‖.9 De presidente da Aliança Cooperativa
Internacional, um organismo mundial com sede na Suíça, Rodrigues tornou-se ministro
da Agricultura do primeiro governo Lula, em 2003. Pensando a agricultura sob a ótica
dos mercados internacionais, o novo governo desenvolveu um projeto abrangente que
combinava desenvolvimento tecnológico, demandas externas e programas sociais para
os desempregados do campo – exatamente o modelo propagado por Rodrigues no final
dos anos 1990. Desse modo, tornou-se evidente, no interior do governo Lula, a
contradição – que logo seria resolvida – entre dois modelos agrícolas.10 Ao invés de um
programa de modificação da estrutura fundiária capaz de conter o desemprego no
campo, o governo, com suporte na Lei complementar nº 87 (de 1996), que isentou de
impostos os produtos e serviços destinados à exportação, preferiu orientar-se pela alta
conjuntural do mercado de commodities.
No início do governo Lula, mais de 70% da força de trabalho do campo estava
ligada à pequena produção. Nos movimentos sociais – e também dentro do próprio PT –
desde há muito era debatido um programa de criação de empregos e geração de renda
através do incentivo à agricultura familiar, algo que só se tornaria viável com um novo
9 ―Política no prato‖. Globo Rural, número 157, nov. 1998, p. 100. 10 Essa contradição se manifestou nas perspectivas diferentes – ou até mesmo opostas – do Ministério da
Agricultura, capitaneado por Roberto Rodrigues e o Ministério do Desenvolvimento Agrário, a cargo de Miguel Rossetto, um quadro da ala esquerda do Partido dos Trabalhadores. De início, quando as exportações ainda não haviam deslanchado, ambos os ministérios entraram em conflito com a política recessiva de ―superávit primário‖ do ministro Antônio Palocci.
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Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA).11 No campo político de esquerda, a reforma
agrária não era tratada apenas como um instrumento de compensação social; era, ao
contrário, uma peça fundamental no projeto de ―mudança‖ e de combate ao desemprego
que deu o tom da campanha eleitoral de Lula em 2002. Mas essa via foi dificultada pela
expansão do mercado externo para os produtos primários, especialmente as
commodities agrícolas. Criou-se, a partir daí, uma nova correlação de forças.12 No final
de 2003, ocorreu um incremento de 10% nas exportações e uma queda da atividade
econômica nos demais setores (processo que continuou nos anos seguintes e veio a ser
chamado de ―primarização‖ da economia).13 No governo, um defensor da política
agrícola voltada para os grandes produtores foi José Graziano, ministro extraordinário
de Segurança Alimentar (depois incorporado ao Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome) durante o primeiro mandato de Lula. Nesse período, desenvolveu-se o
Fome Zero, definido como programa de segurança alimentar, mas igualmente como
―apoio à expansão local do emprego e da renda‖.14 Em 2007, como representante
regional da FAO, Graziano afirmava que ―as condições de mercado impostas pela
globalização – alta produtividade, escala elevada e sofisticação comercial –, tornaram
cada vez mais complexas a produção e a sobrevivência no campo‖, o que, segundo ele,
―descarta utopias agrárias ancoradas na mera repartição de lotes de famílias de
11 O Plano foi lançado no final de 2003. No entanto, o novo governo não estava disposto a realizar uma
intervenção na estrutura fundiária visando a desconcentração da propriedade. Tampouco foram criadas as condições para o desenvolvimento de uma cadeia produtiva baseada na agricultura familiar. Algumas medidas, como o Plano Safra, representaram um avanço parcial, mas não escondiam a prioridade do governo. Dos 20 Bilhões aplicados pelo Banco do Brasil na safra 2003/2004, 3,3 bilhões foram destinados à agricultura familiar (que teve grande dificuldade para liberar os recursos) e 16,7 aos demais setores.
12 Nos primeiros anos do governo Lula, antes que a economia se tornasse mais dependente da agricultura, a situação no campo brasileiro era mais favorável às mudanças de caráter distributivista: ―... existe muita terra ociosa no país e o grande capital não quer essa terra, ou, ao menos, não a está disputando. O governo poderia perfeitamente fazer um acordo com o agronegócio e fazer a Reforma Agrária apenas nas terras do latifúndio improdutivo, que estão muito baratas. Outro aspecto importante é que a população brasileira hoje é urbana. Isso quer dizer que o latifúndio não tem mais o peso político que tinha, não tem eleitorado que o sustente. Por outro lado, existem movimentos sociais organizados reivindicando a Reforma Agrária, que é uma bandeira de grande peso, simbólica para a esquerda‖. César Benjamin.―As transformações do PT e os rumos da esquerda no Brasil‖. Coord. Felipe Demier, Rio de Janeiro, Bom Texto, 2003. P. 85.
13 Para Frei Betto, que ocupou cargo de Assessor Especial da Presidência da Republica, dedicando-se ao programa Fome Zero, ―Lula afirmou na campanha que, antes de exportar alimentos, era preciso matar a fome do povo brasileiro. Ao chegar ao Planalto, mudou o enfoque, sobretudo porque a bóia de salvação econômica do governo, hoje, são as exportações agrícolas‖. A observação data de março de 2003. ―O calendário do poder‖. Rio de Janeiro, Rocco, 2007, p. 102.
14 José Graziano. ―Segurança alimentar: uma agenda republicana‖. Estudos Avançados, 17, 2003.
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produtores isolados para sua própria subsistência‖.15 Em 2012, Graziano volta à carga e
defende abertamente o agronegócio como parceiro no combate à insegurança
alimentar.16 O texto conjunto com Suma Chakrabarti, presidente do Banco Europeu
para a Reconstrução e o Desenvolvimento, publicado no Wall Street Journal, aposta no
papel do setor privado na ―missão de alimentar o mundo‖ e nas estruturas políticas
estáveis, isto é, aqueles países que oferecem melhores condições para os investidores
externos. Para os dois autores, não há oposição entre os pequenos agricultores e as
grandes empresas. Daí as propostas de estímulo à agricultura familiar, cuja
incongruência com a cadeia produtiva do agronegócio parece resolvida de antemão na
subordinação da pequena produção local ao negócio agrícola global.17
O modelo agropecuário consolidado na última década, ao contrário do que
presumem os representantes dos organismos internacionais, é tudo, menos seguro. No
caso brasileiro, ele tem se mostrado vulnerável à oscilação dos preços internacionais, o
que exige sempre mais subsídios estatais. Assim, a viabilidade econômica das
exportações continua dependendo dos fundos públicos: ―o tesouro gasta por ano cerca
de 9 bilhões de reais para sustentar a dívida dos ruralistas. Isso ocorre de diferentes
formas, incluindo a securitização‖.18 Números recentes, justamente no aniversário de
uma década do ―grande salto‖, indicam que o modelo atual, além de promover a
expropriação das terras e dos modos de vida ―tradicionais‖, desorganiza a produção e
ameaça a segurança alimentar – como se pode ver na necessidade crescente de
importação de itens básicos. Em 2012, o Brasil precisou ampliar em 50% a compra de
arroz: ―A colheita brasileira é estimada em 11,6 milhões de toneladas, representando
baixa de 15,1%, em razão da menor incidência de chuvas e redirecionamento da lavoura
para outras commodities de melhor remuneração‖.19 Pouco depois, o Ministério da
15 José Graziano. ―Reforma agrária no século XXI‖.
http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=44023 16 ―Hungry for Investment‖.
http://online.wsj.com/article/SB10000872396390443686004577633080190871456.html 17 ―Investir no combate à fome deixa um extraordinário retorno‖.
http://envolverde.com.br/noticias/―investir-no-combate-a-fome-deixa-um-extraordinario-retorno‖/ 18 Ariovaldo Umbelino de Oliveira. ―Soberania alimentar requer rompimento com o agronegócio‖.
http://www.mst.org.br/node/1862 19 ―Brasil vai aumentar em 50% a importação de arroz, diz FAO‖. http://economia.uol.com.br/ultimas-
noticias/valor/2012/08/06/brasil-vai-aumentar-em-50-a-importacao-de-arroz-diz-fao.jhtm
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Agricultura anunciou a importação de 200 mil toneladas de feijão para equilibrar o
mercado e conter a alta dos preços.20
Com a ―era Lula‖, o que se vê no campo brasileiro é o mesmo padrão produtivo
adotado pelo governo anterior, num contexto de enorme crescimento da demanda
externa, que ocasionou a subida dos preços das matérias-primas e produtos agrícolas.
Essa escalada dos preços, somada à desvalorização do Real a partir das medidas de
urgência adotadas em 1999 para debelar a crise financeira, fez do agronegócio
exportador uma prioridade do governo. Passada uma década, o latifúndio se renovou.21
Ainda que permaneça grande o número de terras improdutivas, a exclusão social no
meio rural ocorre, nos dias de hoje, também devido à alta produtividade – o que tende a
colocar em xeque a ideologia do desenvolvimentismo agrário. Trata-se, no entanto, de
uma produtividade destrutiva do ponto de vista ambiental, que intensifica a
concentração de terras e de poder político, representando uma espécie de ―revolução
conservadora‖ no campo. Por isso, o governo encabeçado pelo PT, que funciona através
de alianças com os grandes grupos econômicos, precisa travar a reforma agrária e evitar
o confronto com as empresas que atuam no território brasileiro. A fraqueza das políticas
de proteção aos pequenos agricultores resulta na subordinação das culturas autóctones
a uma lógica econômica segundo a qual é mais sensato degradar a terra produzindo
ração para porcos do que abastecer com alimentos as populações locais. Assim, as
estruturas arcaicas de poder no campo se modificam, mas a presença dos novos
empreendimentos subverte o sentido da produção agroalimentar em favor das
demandas do mercado.
20 ―Brasil precisará importar 200 mil toneladas de feijão, diz ministro‖.
http://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2013/06/brasil-precisara-importar-200-mil-t-de-feijao-para-equilibrar-mercado.html
21 A começar pelo processo de internacionalização: ―A incorporação de grandes extensões de terra, sobretudo, para a cultura de grãos tem sido fundamental para as grandes empresas do agronegócio. Enquanto no ano de 2001 em Iowa, nos Estados Unidos, um hectare de terra custava US$ 350, em Mato Grosso custava apenas US$ 57, o que está ensejando, inclusive, uma corrida de compra de terras de fazendeiros estadunidenses no Brasil como já se pode comprovar na Bahia, em Goiás, Tocantins, em Mato Grosso e no Maranhão‖. Carlos Walter Porto-Gonçalves. ―A globalização da natureza e a natureza da globalização‖. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. P. 248.
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2. Acumulação de catástrofes
A soja começou a aparecer nas estatísticas nacionais na década de 1950. Um
maior investimento ocorreu duas décadas depois, nas áreas de cultivo do Sul do país,
transformando a soja num dos maiores produtos da pauta nacional de exportação.22 Até
o final dos anos 1990 o estado do Paraná ainda era o maior produtor nacional.
Tradicionalmente, a cultura da soja utilizava, nos meses mais quentes, a mesma área e
os mesmos equipamentos usados no cultivo do trigo durante o inverno.23 Em 1970,
menos de 2% da soja produzida no Brasil vinha da região central. Dez anos depois, como
resultado da política de incentivos fiscais, o percentual havia chegado aos 20%. Desde a
criação da Embrapa Soja, em 1975, foram desenvolvidas ―adaptações‖ do cultivo
tradicional ao clima tropical predominante no Cerrado. Com estímulo econômico e
aperfeiçoamento técnico, a região central se converteu na maior produtora nacional de
grãos. Em 1990, ela já era responsável por mais de 40% da sojicultura – e continuou a
ampliar esse percentual nas décadas seguintes. Um terceiro fator decisivo: a abundância
de terras disponíveis a baixo preço se comparado aos estados meridionais. Essa marcha
para o Cerrado, porém, não indica uma transferência das culturas do Sul para o Brasil
central e sim um crescimento – em ritmos desproporcionais – nas duas regiões.
A expansão da agricultura comercial no Cerrado foi estimulada por iniciativas
como o POLOCENTRO, criado durante o governo do general Geisel, em 1975, para
desenvolver tecnologias aplicadas à região. Mas foi com o ―projeto piloto‖ do
PRODECER (Programa de Desenvolvimento dos Cerrados), quatro anos depois, que se
consolidou a ocupação produtiva através de um acordo entre Brasil e Japão para a
plantação de soja. Esse tipo de política indicava a escassez de novas áreas para a
agricultura no Sul e no Sudeste. No entanto, a cultura da soja ainda demoraria a
22 ―Foi no Sul do país, especialmente no Rio Grande do Sul e Paraná, que se deu a maior expansão da
produção de trigo e de soja, geralmente em áreas de colonização mais recente ou de emigrantes europeus (...) Portanto, a maior parte da produção é levada a cabo por pequenos proprietários, utilizando-se pouco trabalho assalariado e com a produção sendo comercializada principalmente por cooperativas‖. Bernardo Sorj, Estado e classes sociais na agricultura brasileira, Rio de Janeiro, Zahar, 1980, p. 53.
23 ―O acoplamento entre trigo e soja é natural, na medida em que eles se utilizam praticamente da mesma maquinaria e seu cultivo se dá em épocas diferentes do ano. Se, no início, a produção de soja foi até certo ponto atrelada à produção de trigo, a partir da década de 1970, com o boom dos seus preços internacionais, a soja passou a comandar a expansão do binômio‖. Idem.
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desenvolver todo o seu potencial econômico, e não só por razões de mercado. No final
dos anos 1990, a safra atingiu a marca de 30 milhões de toneladas. Foi o período de
maior ampliação da área agricultável da soja, que se consolidou em estados como Mato
Grosso, Goiás e Minas Gerais. Mas o salto que levaria o Brasil à condição de maior
produtor mundial – quase 90 milhões de toneladas em 2013 – só ocorreu a partir da
criação de um pacote tecnológico específico para os novos celeiros. Na realidade, seria
mais exato dizer que as tecnologias aplicadas ao clima e aos solos do Cerrado – como as
variedades com ciclo de maturação prolongado – são uma ―adequação‖ da região à
produção que se faz presente nos outros biomas, isto é, uma maneira de desenvolver no
Brasil central as mesmas culturas desenvolvidas em outras regiões.24 Nesse sentido, o
processo de adaptação do Cerrado à cultura da soja foi acompanhado da disseminação
de um grande número de doenças.25 Com o crescimento da produção, intensificaram-se
pesquisas para aumentar a resistência da lavoura às doenças causadas por bactérias e
fungos. Contudo, a expansão da monocultura, ainda nos anos 1990, fez com que
surgissem novos e maiores problemas fitossanitários. Na Safra de 2001/2002, aparece
uma nova praga, conhecida como ―ferrugem asiática‖, provocada pelo fungo
Phakopsora pachyrhizi, que se espalhou pelas plantações do Rio Grande do Sul ao Mato
Grosso. Neste último, a soja foi atacada em 1994 pelo Nematóide de Cisto e, em 1995,
pelo Cancro de Haste; no mesmo período, a plantação de algodão foi dizimada. Desde
então, foram introduzidas no mercado as variedades de soja ―resistentes‖ com base no
―melhoramento genético‖. Em geral, as doenças e pragas estão associadas a
desequilíbrios causados pela falta de rotação das culturas (a homogeneidade das
24 Do mesmo modo, muitos consideram que a exigência da utilização das máquinas e insumos industriais
que invadiram o campo brasileiro nos anos 1970 foi antes uma necessidade das indústrias que ofereciam tais produtos do que uma demanda real dos agricultores que os consumiram. Aqui, pode-se ver a força da ideologia da ―modernização tecnológica‖ – que tem sua base material (e política) no vínculo imposto aos produtores entre o crédito rural e a utilização dos insumos e maquinário industrial. Do outro lado da cadeia produtiva, à jusante, os padrões ―modernos‖ de comercialização dos produtos primários retiram ainda mais a autonomia dos produtores absorvidos pelos complexos agroindustriais. Note-se também que, antes da abertura econômica para o mercado mundial em curso nos últimos vinte anos, a agricultura brasileira chegou a vivenciar, durante a crise dos anos 1980, um período de ―regressão tecnológica‖ em decorrência da elevação do preço do petróleo e seus derivados. Cf. Francisco Graziano Neto. Op.cit. p. 74.
25 Segundo os técnicos da Embrapa, as perdas anuais causadas por mais de 40 tipos de doenças chega a 20% da produção. ―Tecnologias de produção de soja – Região Central do Brasil, 2004‖. http://www.cnpso.embrapa.br/producaosoja/doenca.htm
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plantações desencadeia e facilita a disseminação de pragas).26 O modo encontrado pelos
produtores para lidar com tais dificuldades não foi uma forma alternativa ou ―orgânica‖
de cultivo – inclusive porque é pequena a fração da produção destinada à alimentação
humana – e sim o controle químico do solo. Desde 1997, a Embrapa Soja atua em
pesquisas com sementes transgênicas. Em parceria com a empresa Monsanto, ela
incorporou às suas cultivares o gene de tolerância ao glifosato.27 A princípio, os novos
grãos usados para estabilizar o cultivo foram contrabandeados da Argentina. Em 2003,
a despeito do alerta de pesquisadores e ambientalistas, que levou muitos países
(especialmente a Comunidade Européia) a limitar e controlar a produção de alimentos
geneticamente modificados, o presidente Lula liberou o uso das sementes através de
Medida Provisória. Dois anos depois, era aprovada no Congresso a lei nacional de
biossegurança. O Brasil, que poderia ter se tornado uma ―reserva‖ livre da manipulação
genética, rapidamente tornou-se o segundo maior país em área plantada com
transgênicos.28
A cultura do milho é um exemplo ainda mais significativo da estruturação do
novo modelo agrícola: nos anos 80, ainda predominavam as pequenas e médias
propriedades pulverizadas em várias regiões. A abertura econômica e a nova onda da
―modernização‖ impulsionaram a produção de carne de frango (que chegou a se tornar
26José Lutzenberger já alertava que ―um ecossistema simplificado é tanto mais vulnerável quanto maior
for a simplificação. A ‗praga‘ é consequencia direta desta simplificação. Um desequilíbrio traz outro e inicia-se um ciclo diabólico que leva a agressões sempre mais violentas‖. ―O Fim do futuro? Manifesto Ecológico Brasileiro‖. Porto Alegre. Editora Movimento, 1980, p. 24. Assim, as alterações físicas, químicas e biológicas dos solos causados pelas monoculturas criam a demanda por novos agroquímicos. Este círculo vicioso de destruição, no qual as intervenções técnicas exigem procedimentos ainda mais agressivos, também pode ser observado nas condições cada vez mais artificiais da criação de aves ou bovinos, que facilitam a incidência e a propagação de doenças. Cf. Mike Davis, ―O mostro bate à nossa porta. A ameaça global da gripe aviária‖. Rio de Janeiro, Record, 2006.
27 O processo de modificação genética da soja ocorre a partir de um gene extraído de uma bactéria e ―bombardeado‖ sobre a semente para torná-la tolerante ao uso de herbicidas. Desse modo, é possível exterminar plantas daninhas sem afetar a soja. A marca comercial mais usada é a Roundup, da Monsanto, um herbicida sistêmico a base de glifosato que elimina toda a vegetação não ―programada‖ geneticamente para resistir.
28 Hoje, quase 90% da soja brasileira é geneticamente modificada. Isso coloca o Brasil na contramão da tendência atual. Inicialmente liberados com uma série de regulamentos e restrições, os alimentos transgênicos começam a ser contestados na Europa. São inúmeras as proibições, a exemplo do milho GM na Alemanha, que foi seguida por outros países. Dentro da Comunidade Européia instaura-se uma contradição entre países produtores (especialmente a Espanha) e consumidores. Isso demonstra que o interesse econômico é o principal argumento para a liberação dos transgênicos. Recentemente, a Hungria destruiu todas as suas plantações contendo sementes transgênicas. Na América Latina, o Peru proibiu todos os cultivos com transgênicos alegando defender os pequenos agricultores e a biodiversidade.
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um símbolo da fase de implantação do Plano Real). Consolidado o modelo, já no final da
década de 1990, a cultura do grão se tornou muito mais concentrada e orientada para a
produção de ração animal. Em pouco tempo o Brasil se tornou um dos maiores
exportadores mundiais. Conforme aumentavam a produção e os lucros, também
aumentava a presença das sementes transgênicas: ―Na safra 2009/10, do total de
sementes de milho comercializadas, 39% eram transgênicas. Esse índice saltou para
64% em 2010/11, considerando safra de verão e segunda safra. Já na safra 2011/12, os
materiais geneticamente modificados (GM) devem superar 70% das sementes
adquiridas pelos produtores‖.29
O incentivo às monoculturas de exportação transformou os novos celeiros
agrícolas em áreas de experimentação de tecnologias logo disseminadas por toda parte.
A maioria das pesquisas e avaliações dos riscos dos transgênicos é patrocinada pela
própria indústria da biotecnologia.30 Na perspectiva dos grandes produtores, as normas
da biossegurança são vistas como entraves ao ―desenvolvimento‖ e o princípio da
precaução no controle dos alimentos é atacado como reação ―ideológica‖ ao progresso
tecnológico. Por outro lado, a pesquisa avançada se aparenta cada vez mais com um
suporte técnico ―neutro‖ para empreendimentos econômicos potencialmente
destrutivos. Os efeitos imprevisíveis dos transgênicos sobre o organismo humano não
representaram um obstáculo. Nos Estados Unidos, onde foi criada a agricultura
altamente tecnificada que se alastra pelo mundo como uma praga, as leis de
biossegurança foram impotentes ante o poder das corporações. Lá o agronegócio se
consolidou usando a ―desregulamentação‖ da década de 1980, que, em nome do lucro,
transformava a saúde pública e a segurança ambiental em ―entraves burocráticos‖. O
Brasil, que vem seguindo o modelo norte-americano, tem metade de sua área cultivada
dominada pelos transgênicos. Por isso se tornou o segundo mercado da Companhia
29 Embrapa: ―Adoção do milho transgênico no Brasil é tema de debates‖.
http://www.embrapa.br/imprensa/noticias/2012/marco/2a-semana/adocao-do-milho-transgenico-no-brasil-e-tema-de-debates/
30 Durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, João Elmo Scheiner afirmava: ―Nascida nos laboratórios de biologia molecular, de bioquímica e de genética das universidades – instituições públicas de pesquisa – a biotecnologia está hoje sob o controle de gigantescas corporações privadas, que controlam desde a pesquisa até os mercados. Após apenas uma década de biotecnologia comercial, o quadro está definido: as decisões passarão a ser tomadas por megaempresas privadas‖. Citado por César Benjamin. ―Diálogo sobre ecologia, ciência e política‖. Rio de Janeiro, Nova Fronteira: Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, 1993, p. 173 n.
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Monsanto, a controladora do negócio das sementes GM e pesticidas. Esta empresa ficou
conhecida pelos métodos que empregou, junto ao governo dos Estados Unidos, para
fazer aprovar leis permissivas de biossegurança e pela forma como impõe seus produtos
aos agricultores.31 Recentemente, a divisão agrícola da multinacional alemã Bayer, cuja
atuação no mercado brasileiro ainda é incipiente, anunciou sua primeira variedade de
soja, que será comercializada a partir de 2015.
A unificação de segmentos como agricultura e biotecnologia tem sua origem no
esgotamento do modelo agrícola criado a partir da Revolução Verde – esta, por sua vez,
é um subproduto da hipertrofia da indústria química da II Guerra Mundial. A crescente
preocupação com os problemas ambientais levou ao questionamento do modelo de
agricultura praticado em larga escala nas décadas de 1960 e 1970, com seu ―pacote
tecnológico‖ baseado no uso intensivo de fertilizantes e pesticidas. Por isso, os primeiros
produtos derivados da biotecnologia foram apresentados como parte de uma ―agenda
ecológica‖ de soluções para a agricultura e o meio ambiente. Mas ao invés de buscar
tecnologias sustentáveis, o novo campo de pesquisas seguia em primeiro lugar o
princípio da lucratividade. As pesquisas em biotecnologia não podem ser pensadas sem
levar em consideração a necessidade das empresas de agroquímicos ampliarem sua
oferta de produtos num contexto de reestruturação da economia global após a crise do
petróleo em meados da década de 1970. De ameaça potencial, as técnicas de mutação
genética foram incorporadas por este setor, o que tornou possível condicionar o uso das
novas sementes aos seus produtos. O Roundup, comercializado pela Monsanto há mais
de trinta anos e vendido junto com a soja resistente ao glifosato, é apenas um exemplo
dessa agricultura ―sustentável‖ baseada na destruição química e na ameaça à
estabilidade genética. Essa mesma empresa é também responsável pela criação de
aditivos alimentares nocivos, como o aspartame, e pela fabricação dos herbicidas 2,4-D
31 São inúmeros os relatos de ações de corrupção, cooptação de autoridades, perseguição de pequenos
produtores e condenações na justiça por graves danos causados ao meio-ambiente e à saúde das pessoas, além de práticas econômicas desleais.
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e 2,4,5-T, que combinados resultam num desfolhante conhecido como Agente Laranja.32
Nada disso é acidental. Desde o século XIX, a indústria química tem se empenhado
numa produção de alimentos cada vez mais tóxica. Essa indústria se desenvolveu
alternando pesquisas entre a agricultura e a guerra – um dos símbolos dessa junção é o
cientista alemão Fritz Haber, Prêmio Nobel de química em 1918, que dividia suas
atividades entre a produção de fertilizantes e gases letais. Foi para atender necessidades
militares que surgiram produtos aparentemente inofensivos como a Margarina ou a
comida enlatada. Do mesmo modo, a empresa DuPont, criadora do composto químico
da marca comercial teflon, era em sua origem uma fábrica de pólvora. Na tradição
patriótica de Haber, fabricantes de pesticidas como as empresas alemãs Degesch e Tesch
produziam o gás Zyklon B, a base de ácido cianídrico, e abasteceram o empreendimento
de extermínio em escala industrial do regime nazista na década de 1940 – utilizado na
agricultura mundial, o mesmo veneno persiste em sua carreira genocida, contribuindo
para a disseminação de doenças provocadas pela ingestão de químicos.
Declarações de guerra à natureza têm feito parte, pelo menos desde o advento da
Revolução Industrial, da visão ocidental do processo técnico que se espalhou pelo
mundo. Longe de ser uma forma neutra de agir, a aplicação tecnológica da ciência tem
se caracterizado, especialmente nas últimas décadas, pela tentativa de subjugar a
natureza ou até mesmo de recriá-la conforme os princípios capitalistas de organização
social. Os experimentos de engenharia genética e a transgenia não constituem um ―mau
uso‖ da ciência. Na verdade, eles nos dizem algo sobre a essência da mentalidade
moderna e fazem, por assim dizer, com que esta se ―realize‖ plenamente. Só assim se
compreende que, nos dias de hoje, genes compatíveis com venenos empregados nas
lavouras sejam ―bombardeados‖ nos núcleos celulares das sementes ou que seja possível
criar um tomate mais resistente introduzindo-lhe um gene de peixe ou ainda recriar
32 Durante os anos 1965-9, a Monsanto foi uma das principais fabricantes do Agente Laranja, usado pelo
Exército dos EUA nas florestas da Indochina. O site da empresa esclarece a participação da mesma na Guerra do Vietnã: ―Temos grande respeito pelos soldados enviados para a guerra e por todos que foram afetados pelo conflito no Vietnã [...] Um dos legados daquela guerra é o Agente Laranja, para o qual as perguntas permanecem quase 40 anos depois. As forças armadas dos EUA utilizaram o Agente Laranja de 1961 até 1971 para salvar as vidas dos soldados americanos e aliados desfolhando a densa vegetação das selvas vietnamitas e, portanto, reduzindo as possibilidades de uma emboscada‖. http://www.monsanto.com.br/institucional/para_sua_informacao/agente-laranja.asp
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uma espécie com crescimento acelerado a partir da mistura com espécies não
relacionadas.33
As pesquisas com transgênicos são um caso exemplar, pois levam até o fim a
tentativa de produzir, em seu campo de observação, a fragmentação de elementos que se
apresentam de forma complexa na natureza. É menos uma forma de conhecimento do
meio natural do que um modo de intervir nele: trata-se de isolar determinados
elementos para introduzi-los em outros organismos, modificando o seu funcionamento
natural.34 No caso dos produtos transgênicos, o resultado dessa intervenção, que possui
algo do que o filósofo alemão Günther Anders chamou de ―cegueira ante o apocalipse‖,
não é apenas um aumento da produtividade, mas todo um conjunto de efeitos
descontrolados sobre o meio-ambiente e o organismo humano cujas causas mal podem
ser identificadas por procedimentos técnicos. Nesse sentido, é no corpo dos indivíduos
ou nos ecossistemas que os elementos separados em laboratório se unificam. A
instabilidade genética ou a contaminação do ar, das águas e dos alimentos que
consumimos não derivam de intervenções isoladas. Há uma multiplicidade de fatores
complexos que o método das ciências naturais, por definição, não é capaz de abranger.
Ainda que as pesquisas sobre os efeitos dos transgênicos fossem independentes dos
interesses dos fabricantes de produtos GM – o que está muito distante da realidade – o
entrelaçamento dos elementos desencadeados por sucessivas intervenções dos sistemas
técnicos torna cada vez mais difícil apontar relações diretas de causa e efeito, por
exemplo, entre um produto específico e uma doença. Tal fato tem servido de álibi para
33 ―É verdade que os seres humanos utilizam algum tipo de biotecnologia nas atividades agropecuárias há
mais de 10 mil anos (desde a revolução neolítica), e, portanto, produzem conhecimentos e técnicas aplicadas sobre os seres vivos. No entanto, essa forma de intervenção é qualitativamente diferente do que faz a engenharia genética. Até então só era possível fazer cruzamentos de variedades ou espécies aparentadas. Hoje, porém, tais barreiras foram franqueadas, tornando-se possível intercambiar artificialmente o material genético de dois organismos escolhidos ao acaso. Portanto, a manipulação genética passa por cima das barreiras biológicas que separam as espécies. Os mecanismos orgânicos naturais de evolução são colocados de lado e passa-se a realizar intervenções nas interações gênicas naturais‖. André Villar Gomez. ―Renovação tecnológica e capitalismo: tópicos sobre a destruição e a criação de uma outra natureza‖. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010, p. 96.
34 ―Vistos através da ótica do método científico-matemático, [os acontecimentos naturais] se apresentam como efeito de um conjunto de leis da natureza. Para conhecer uma única destas leis, é preciso eliminar as outras, ou seja, assegurar que seus efeitos se mantenham constantes. Neste procedimento analítico, na decomposição dos acontecimentos em fatores isolados, reside o vínculo entre as ciências da natureza e a técnica: à medida que se consiga isolar os fatores individuais, resulta possível recompô-los infinitamente e sintetizá-los em sistemas técnicos‖. Claus Peter Ortlieb. ―Objetividade inconsciente. Aspectos de uma crítica das ciências matemáticas da natureza‖. http://obeco.planetaclix.pt/cpo_pt.htm [Publicado na revista Krisis, n. 21-22, Nuremberg, 1998].
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liberar todo tipo de produtos e isentar de responsabilidade os seus fabricantes. É como
se as alterações no material genético não modificassem características essenciais de um
alimento e como se a falta de evidências sobre riscos imediatos de um produto específico
constituísse uma evidência científica da ausência de riscos. E mesmo produtos
reconhecidamente nocivos são usados sem restrições: quando, na cidade de Lucas do
Rio Verde, pólo econômico do interior mato-grossense, uma pesquisa constatou a
contaminação da água e do leite materno pelo uso de agrotóxicos, os defensores do
agronegócio não contestaram as análises, mas argumentaram que a enorme variedade
de produtos utilizados na região não permitia identificar os responsáveis diretos pela
contaminação das mulheres.
Outro caso de tecnificação em nível elevado ocorre na monocultura do eucalipto,
que vem se expandindo tão rápido no Brasil quanto a soja – e com o mesmo modelo de
produção em grande escala voltada para a exportação. A plantação do eucalipto é
tratada como uma colheita florestal de ciclo curto. Como um processo industrial
convencional, produz-se a biomassa que alimenta madeireiras, fabricantes de celulose e
carvão vegetal, o que excede em muito a simples extração de recursos naturais. Todo o
ciclo, que envolve o viveiro das mudas, o plantio e o tratamento da madeira é realizado
em grande escala, como um sistema racionalizado de produção em massa. Inicialmente,
são usados métodos de clonagem de matrizes selecionadas em laboratório – apenas 10%
do plantio segue as técnicas convencionais de semeadura. Recentemente, tornou-se
possível obter maior volume de madeira a partir das variedades transgênicas. As mudas
clonais, tratadas quimicamente no plantio, garantem uma produção uniforme que
facilita o manejo e dispensa mão-de-obra. Assim, as plantações de eucaliptos ganham a
forma de coberturas vegetais homogêneas e compactas. Essas ―florestas industriais‖ –
também chamadas de ―desertos verdes‖ – compõem uma massa vegetal que drena os
solos e elimina toda a biodiversidade.
O eucalipto é uma árvore comum na Austrália e na Indonésia e começou a ser
―importado‖ no início do século passado, no estado de São Paulo, para prover a
expansão das estradas de ferro no interior. Começou a ser plantado em pequena
quantidade, em vários locais e em convívio com outras culturas. No final do século XX, o
eucalipto era a árvore mais cultivada do Brasil. Isso se explica pelo seu crescimento
rápido (em cinco ou seis anos é possível cortá-las para determinados usos, embora o
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valor comercial das árvores mais antigas seja maior). Com a produção de celulose, os
grandes empreendimentos de eucalipto expandiram-se para além das áreas tradicionais
do Sul e do interior paulista, ocupando uma grande região no norte do Espírito Santo,
sul da Bahia e parte de Minas Gerais. Um programa de fomento desenvolvido a partir
dos anos 1990 pela Aracruz Celulose abrange mais de 50 municípios somente no pólo
produtor constituído por esses três estados – e para o qual foi desenvolvida, através do
melhoramento genético, uma espécie hibrida mais resistente. E a expansão continua.
Depois do impacto destrutivo do eucalipto nos Campos do Sul, surgiram novas frentes:
na região de Três Lagoas, Mato Grosso do Sul, está em operação a maior fábrica de
celulose em linha única do mundo; no estado do Amapá, já se pode ver a substituição
das florestas primárias pelo cultivo da espécie originária da Oceania. Todo esse processo
foi fortalecido nos últimos anos pelo governo brasileiro, via BNDES. O resultado mais
recente dessa intervenção é a FIBRIA, criada em 2009 a partir da fusão das empresas
VCP (Votorantim), que atua no setor desde o início dos anos 1980, e a Aracruz Celulose.
O banco estatal é acionista e financiador da fusão, que integra a estratégia de
fortalecimento de grandes empresas nacionais.35
Para atender a escala e o ritmo da produção de madeira, a monocultura do
eucalipto provoca graves desequilíbrios ambientais. Além de concentrar as terras, ela
consome muita água, deteriora o solo e contamina o entorno. Embora tais impactos
sejam evidentes, não falta quem defenda o eucalipto, afirmando que seu plantio em
grande escala reduz a pressão sobre as florestas nativas e permite o ―reflorestamento‖ de
solos degradados.36 Independente da controvérsia sobre os usos e abusos das espécies
que compõe o gênero Eucalyptus, é fácil notar que nem só os solos e recursos hídricos
são atingidos, mas também os pequenos produtores expropriados de suas terras e as
populações remanescentes. No Espírito Santo, em Barra do Riacho, onde se localiza o
35 ―BNDES vai ajudar negócio entre Aracruz e VCP com até R$ 2,4 bilhões‖.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u492165.shtml 36 No entanto, sempre se pode argumentar que monocultura não é reflorestamento. Este não existe sem
que haja um crescimento espontâneo de espécies nativas variadas, com recuperação da biodiversidade e proteção das nascentes e beiras dos rios. O efeito da monocultura, ao contrário, é extinguir a maior parte das formas de vida. No Brasil, a velocidade da destruição provocada pelo monocultivo do
eucalipto foi tão grande que obrigou os produtores mais visados pelos órgãos fiscalizadores – sempre
com incentivos fiscais – a usarem novas técnicas de manejo, como entremear de matas nativas as novas plantações para minimizar os efeitos negativos da ―floresta industrial‖.
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único porto especializado no embarque de celulose, uma barragem da Aracruz assoreou
os rios da região e a empresa foi apontada por ambientalistas como responsável direta
pela contaminação das águas e dos animais. Ao destruir o entorno, a monocultura e o
tratamento da madeira se impõem como a única alternativa econômica. Cercando e
inviabilizado o cultivo tradicional da região, a indústria do papel passa a absorver, como
fornecedores de matéria-prima, as populações empobrecidas que antes viviam da pesca,
das pequenas roças e do extrativismo. Entre as mais afetadas na região estão as
comunidades indígenas Tupiniquins e Guaranis, que tiveram suas terras expropriadas.37
A construção da fábrica de celulose em Aracruz-ES também deslocou a força
populações indígenas e pescadores artesanais. Em 1998, um acordo de devolução parcial
das terras devolutas tradicionalmente ocupadas por estas comunidades foi firmado, mas
ficou reduzido a poucas famílias divididas entre a subordinação econômica à empresa e
a recomposição das áreas de mata nativa. Desse modo, parte dos povos da região foi
obrigada a participar da atividade do corte das árvores para garantir sua subsistência.
Em Encruzilhada do Sul, como em outros municípios gaúchos, a situação é semelhante.
Enquanto o governo estadual estimulava a ocupação das terras pelos grupos econômicos
responsáveis pela extração da madeira, a monocultura derrubava a mata nativa, cercava
as pequenas propriedades e poluía os rios: ―quem ainda não vendeu suas terrinhas e
insiste em ficar, convive com as visitas dos desesperados animaizinhos que fogem da
invasão. São mulitas, mão-pelada, gato-do-mato, ratões e capivaras famintos que
devoram tudo que vêem pela frente‖.38
A expansão do complexo agroindustrial da cana teve uma trajetória diferente dos
casos descritos anteriormente. Criado em 1975 a fim de impulsionar a indústria dos
biocombustíveis, o ProÁlcool declinou a partir de meados dos anos 1980 após o
chamado ―contra-choque do petróleo‖, que reduziu bruscamente o preço do barril de
37 A formação da sociedade brasileira se baseou nas monoculturas e no regime escravista. Estas práticas
eram uma condição para o processo de colonização voltado para o exterior, isto é, constituíam uma estrutura de produção que era indiferente a tudo que não pudesse alimentar o mercado mundial em formação. O fim destes que estão entre os últimos sobreviventes de um processo sistemático e brutal de extermínio dos povos nativos nos faz recordar a análise clássica de Caio Prado Junior sobre o ―sentido da colonização‖. Caio Prado descreve o papel das monoculturas de exportação na transformação do vasto território incorporado ao Império português em um fornecedor de gêneros tropicais, a partir da formação da economia da colônia como uma empresa ―destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu‖. ―Formação do Brasil contemporâneo: Colônia‖. São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 31.
38 ―A monocultura que vai terminar na pobreza‖. http://www.mst.org.br/node/8258
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óleo bruto. Foi um período em que a distribuição do crédito rural demonstrou
claramente a opção do governo militar pelas culturas voltadas para a exportação e a
transformação em combustível. O programa foi retomado em 2000, depois de um
processo de redefinição. Ocorreu assim nova expansão dos canaviais, nas áreas
tradicionais do interior de São Paulo e litoral nordestino, avançando em seguida pelos
cerrados. Dessa vez, o programa de álcool combustível foi estimulado por uma
tecnologia de motores que permite o seu uso combinado com o da gasolina – uma
tecnologia desenvolvida para atender as exigências das leis de estímulo à produção de
etanol. Um novo cenário se desenhou nos últimos anos, fazendo com que o mesmo
programa de modernização adotado no passado fosse resgatado, mas agora como
estratégia energética sustentável para o século XXI. Desse modo, o etanol da cana-de-
açúcar foi apresentado como matriz energética renovável e alternativa aos combustíveis
derivados do petróleo.
Muito se pode dizer a respeito dessa ―alternativa sustentável‖. Antes de tudo,
deve-se considerar que a aceleração do consumo energético é determinada por um
modelo irracional de transporte e circulação intra-urbana. Também o processo de
produção da matéria prima dos novos combustíveis reforça uma tendência mundial de
destinação das terras agrícolas à produção de ―culturas energéticas‖.39 Essa nova
legitimação dos padrões de consumo exigidos pela indústria não obedece a critérios
reais de sustentabilidade; seu fundamento é uma racionalidade puramente econômica.
O que está por trás do desempenho recente do Brasil como um dos maiores produtores
mundiais e o maior exportador de etanol é o crescimento da produção de veículos e não
uma suposta sensibilidade ambiental. Esse é apenas o primeiro momento de uma
renovação da matriz energética mundial para a manutenção dos fins automotivos.
Enquanto muitos países começavam a substituir parte da gasolina pelo etanol, o
39 ―Calcula-se que o agroetanol da cana-de-açúcar no Brasil tem um equilíbrio de energia muito melhor do
que qualquer outro biodiesel, principalmente daqueles que são produzidos em regiões temperadas. A poupança de carbono do agroetanol da cana-de-açúcar brasileira é também, de longe, maior do que qualquer outro agrocombustível. No entanto, esse saldo positivo em energia e carbono ficaria substancialmente reduzido se fossem incluídos os custos de infraestrutura e exportação, mas, sobretudo, se forem contabilizados os demais impactos sociais e ecológicos de todo o processo de produção de agroetanol – incluindo o problema da segurança alimentar‖. André Vilar Gomez, op.cit., p. 175
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governo Lula aproveitou a demanda crescente para estimular a agroenergia com
incentivos à ampliação da oferta de cana e instalação de novas usinas.40
Desde o início da ―era Lula‖, o etanol se destacou como fornecedor de energia a
partir da biomassa. Na safra 2005/2006, a produção nacional foi de 17,47 bilhões de
litros, 10,8% maior do que a safra anterior. Em 2006/2007, os números foram ainda
maiores. No segundo mandato de Lula, essa tendência se reforçou. A prioridade da
política energética era construir grandes hidrelétricas e desenvolver a produção de
etanol. O novo ciclo de expansão da cana fazia parte da estratégia econômica adotada
pelo Brasil em parceria com os Estados Unidos, como atesta a aliança, firmada em 2007,
entre o então presidente George W. Bush e Lula para a produção de biocombustíveis
cujo objetivo estratégico era criar um mercado mundial de etanol.41 Dentro e fora do
país, surgiram críticas ao projeto, especialmente no que diz respeito ao problema da
ameaça à segurança alimentar. Em dezembro de 2009, Lula e Dilma Rousseff, sua
ministra de Minas e Energia durante o primeiro mandato, defenderam, no festejado
encontro de Copenhague, a transferência de tecnologia para a produção de etanol em
países pobres. Por trás da retórica humanitária e ambiental, o governo brasileiro
estimulava ao mesmo tempo a cadeia produtiva interna do etanol e a diversificação da
produção, necessária para viabilizá-lo como commodity no mercado mundial. Daí as
críticas ao efeito dessa política na redução das superfícies agrícolas voltadas para a
produção de alimentos – que vem resultando, em várias partes do mundo, em aumento
dos preços. No plano interno, as críticas foram rebatidas por porta-vozes do agronegócio
como Roberto Rodrigues, sempre enfatizando os ―ganhos de produtividade‖ induzidos
pelas pesquisas em biotecloogia, que supostamente permitiriam limitar o crescimento
espacial da agroenergia. No entanto, esse ponto de vista logo se modifica quando entra
em questão o potencial do setor: ―São 200 milhões de hectares ocupados com pastagens,
40 A região Centro-Sul é responsável por, aproximadamente, 90% da produção nacional de etanol, com o
estado de São Paulo produzindo 60%. Só a região de Ribeirão Preto, tradicional na indústria sucroalcooleira, conta com mais de 40 usinas e alta tecnologia. Os outros 10% são produzidos de modo mais rudimentar na região litorânea do Nordeste.
41 Em 2007, Roberto Rodrigues, já como ex-ministro, falava sobre o cenário que se avizinhava: ―É importante ressaltar que hoje ainda não existe um mercado para etanol, mas é fato que ele existirá. E para que isso aconteça, para que o etanol se torne commodity, o Brasil deve efetivamente criar estímulos para que outros países também produzam cana, concorrência que torna menor o nosso custo médio de produção e que incentiva o desenvolvimento para políticas de produção e comércio‖. Entrevista de Roberto Rodrigues, concedida em 29/08/2007 ao Conselho de Informações sobre Biotecnologia. http://www.cib.org.br/entrevista.php?id=47-
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dos quais 90 milhões são aptos para agricultura (entre eles, 22 milhões aptos para a
cana). Assim, estima-se que o País pode ampliar a sua área de cana para produção para
etanol em até sete vezes‖.42 Outra argumentação notável é a de Wladimir Pomar,
ideólogo da ―ala esquerda‖ do lulismo, encarregado de pensar a incorporação dos
movimentos populares do campo à lógica do negócio agrícola global numa duvidosa
união: ―Marcha-se para uma certa aliança, entre correntes contraditórias, de que é
necessário incorporar à produção agrícola todas as forças possíveis, na perspectiva de
aumentar substancialmente a produção de alimentos e de biocombustíveis. Isto
introduz nas questões agrícola e agrária brasileiras elementos novos, criando uma
situação que justifica o assentamento rápido dos 3 a 4 milhões de trabalhadores sem-
terra‖.43 Reciclando teorias modernizadoras sobre o caráter ―progressista‖ da expansão
da agricultura capitalista, Pomar afirma a atualidade de uma reforma agrária
democrática contra o ―subsistema do latifúndio improdutivo‖, isto é, uma reforma capaz
de ―desconcentrar e democratizar a parte não capitalista da estrutura agrária‖.44
Todas as grandes monoculturas estão relacionadas com processos locais de
desmatamento. Nas extensas áreas de cerrado – o bioma mais atingido pela ação
antrópica – o impacto é devastador: números oficiais indicam que 45% da vegetação
desapareceu, principalmente nos estados mais ao sul, mas a destruição avança com
rapidez nas fronteiras agrícolas. Com a desertificação dos solos e a demanda por novas
terras, estima-se que o cerrado do Brasil central pode se extinguir em poucas décadas.
Além da cobertura vegetal, também são visíveis os efeitos das atividades econômicas
sobre o subsolo, no qual se encontram amplos reservatórios aqüíferos que alimentam
várias bacias hidrográficas. O Cerrado sempre foi mais desprotegido em termos legais
do que outros biomas. Considerado ―pobre‖ em termos de recursos (mesmo sendo um
dos biomas que apresenta maior diversidade), ele não foi incluído na condição de
42 Roberto Rodrigues, ―O limite para crescimento da agroenergia tem a ver também com o tamanho do
espaço que daremos à biotecnologia nesse processo‖. http://www.cib.org.br/entrevista.php?id=47- 43 Wladimir Pomar, ―Os latifundiários‖. São Paulo: Editora Página 13, 2009, p. 117. 44 Ibidem, p. 122. Em seguida, o autor em questão especula sobre a passagem da grande propriedade
capitalista para uma estrutura de propriedade ―social‖, de modo que esse processo ainda teria o mérito de criar as bases para a supressão da propriedade privada. Ocorre que não só a correlação de forças do início de 2003 se inverteu nos últimos dez anos, uma vez que os antigos latifundiários começaram a perder espaço para os bancos e corporações internacionais, mas, além disso, numa conjuntura econômica desfavorável às exportações, os grandes produtores fariam rapidamente um giro para o mercado interno de alimentos – um cenário que já se desenha desde os impactos da crise de 2008, p.e. no setor sucroalcooleiro -, colocando em risco o que resta da agricultura familiar.
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―Patrimônio Nacional‖ na legislação em vigor, graças a uma visão que o considerava
uma simples reserva de terras. Foi a pecuária que liderou o desmatamento no Centro-
Oeste. Nos últimos 30 anos, o desenvolvimento técnico da agricultura começou a exigir
novas terras e mesmo os ―ganhos de produtividade‖ em terras ocupadas estimulou a
ocupação de novas áreas. Além disso, os projetos do Arco Norte e as novas hidrovias têm
permitido a expansão da soja para a Amazônia. Uma nova rota para escoar os grãos
permite a redução dos custos de transporte ligando diretamente áreas produtoras do
Oeste e Noroeste mato-grossenses e da região de Vilhena (RO) aos portos do Norte,
através de Porto Velho e Itacoatiara (AM), no coração da selva amazônica. Em
Rondônia, um dos estados mais desmatados, quase metade do território, a maior parte
da mesorregião Leste, foi arrasada. O que restou da cobertura florestal encontra-se em
Unidades de Conservação ou em Terras Indígenas que resistem às pressões econômicas
(especialmente a extração ilegal da madeira).
Na Amazônia, a dinâmica do desmatamento tem seguido um padrão bem
conhecido: as madeireiras abrem os caminhos na selva, enquanto as grandes
monoculturas do planalto central deslocam a pecuária e os cultivos menos rentáveis
para as áreas de floresta recém-derrubada. A floresta é substituída por pastagens e, em
seguida, pelas lavouras. O cultivo da soja e do milho tem se desenvolvido, desde o final
dos anos 1990, nas fronteiras consolidadas. Em Rondônia, este foi o tripé do
―crescimento econômico‖: pecuária extensiva, exploração madeireira sem regulação e
grandes lavouras mecanizadas nas áreas mais desmatadas. A exploração da madeira não
é a única atividade irregular. Os maiores produtores de soja da região são também os
campeões da grilagem, o que produz uma estrutura fundiária altamente concentrada. A
concentração da propriedade das terras – sempre maior nas regiões de elevada
produtividade – faz as cidades transbordarem em periferias abandonadas e obriga os
pequenos agricultores a buscarem terras mais baratas, avançando o desmatamento.
Desse modo, os complexos agroindustriais contribuem de duas maneiras indiretas para
a destruição das florestas: deslocando o gado e atividades menos estruturadas e
produzindo uma estrutura fundiária que não deixa alternativa de sobrevivência aos
pequenos agricultores senão ocupar áreas preservadas. Mas isso, obviamente, não exclui
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os casos de desmatamento direto para o plantio.45 Os dados referentes à safra 2011/12
contabilizados na ―Moratória da Soja‖, um pacto ambiental entre produtores do setor,
Ministério do Meio Ambiente e ONGs, revelam mais de 18 mil hectares de área
desmatada de forma ilegal na Amazônia.46 Esse monitoramento demonstra que a soja
continua a avançar pelo centro-norte do Cerrado e pelos estados de Rondônia e Pará. Se
a expansão da sojicultura não pode ser considerada a maior responsável pelo
desmatamento atual, também é pouco provável que ela se adapte às condições da
Amazônia. Nesta região, as áreas mais propícias para o cultivo da soja são as manchas
de cerrado, com seus solos planos e clima regular. De acordo com a WWF Brasil, nos
últimos anos, os maiores focos de desmatamento ligados diretamente à soja situam-se
nos estados do Maranhão, Bahia, Piauí e Tocantins.47 Mas é preciso ficar claro que a
Floresta Amazônica encontra-se fortemente ameaçada não por uma cultura em
particular, e sim pelo modelo agroindustrial, ao qual podemos somar a construção das
grandes barragens.48 A lógica destrutiva tende a se acelerar com o esforço do Brasil de
aproveitar a ―janela de oportunidades‖ surgida com a produção dos agrocombustíveis.
Essa concepção de ―desenvolvimento‖ baseada em grandes projetos enxerga as áreas de
floresta, em primeiro lugar, como fronteiras agrícolas e energéticas. Para os
pesquisadores da Embrapa, por exemplo, a Amazônia é considerada um trunfo
econômico, possuindo ―o maior potencial para o plantio de dendê do mundo, com área
estimada de 70 milhões de hectares‖.49 Além da indústria do óleo de palma, cuja
demanda internacional provocou a destruição das florestas do Sudeste Asiático, tem
45 ―Desmatamento na Amazônia para o plantio de soja cresceu 85% em 2011‖.
http://www.rondoniadinamica.com/arquivo/desmatamento-na-amazonia-para-o-plantio-de-soja-cresceu-85-em-2011-,26689.shtml
46 ―Plantio de soja na Amazônia resultou no desmatamento de mais de 18 mil hectares.‖ http://acritica.uol.com.br/amazonia/Manaus-Amazonia-soja-Moratoria_da_Soja_na_Amazonia-Plantio-Amazonia-resultou-desmatamento-hectares_0_799120140.html
47 ―Ambientalistas tentam minimizar impacto da expansão da soja‖. http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/01/130109_soja_ambientalistas_pai_jf.shtml
48 Segundo Paulo Artaxo, especialista em mudanças climáticas do Laboratório de Física Atmosférica da USP, quando o desmatamento atingir 20% da vegetação, a floresta pode entrar em um processo de regressão. Os números podem ser discutidos. De todo modo, conforme dados oficiais, 18% da floresta já foi desmatada. O que é importante frisar é que não é preciso que todas as árvores da floresta sejam destruídas para ela chegar ao fim. Quando o seu ponto de equilíbrio é atingido, os resultados negativos da destruição anterior impulsionam novos processos de decomposição, numa espiral de implosão de colapso do sistema sobre o qual ela se apoia. Cf. ―A marcha dos insensatos‖. http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Meio-Ambiente/A-marcha-dos-insensatos/3/17758
49 Peres Rodrigues, José Roberto. Et.al. ―Biocombustíveis. Uma Oportunidade para o Agronegócio Brasileiro‖. Revista de Política Agrícola. Ano XIV No. 1. 2005. Ministério de Agricultura. Brasília.
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crescido a pressão econômica para a produção de etanol de cana-de-açúcar. Por isso, em
maio de 2013, foi aprovado pela comissão de Meio Ambiente do Senado Federal o
Projeto de Lei 626/2011, que ―dispõe sobre o cultivo sustentável de cana-de-açúcar em
áreas alteradas e nos biomas Cerrado e Campos Gerais situados na Amazônia legal‖50.
Deste modo, a floresta é consumida pelas bordas, notadamente nas partes Sul e Leste,
seguindo o padrão de desmatamento responsável pela supressão de grandes porções do
Cerrado, até que se afete o seu ponto de equilíbrio, seja através da soja, do eucalipto, da
criação extensiva ou das novas culturas ―energéticas‖, enquanto os rios são poluídos e os
modos de vida tradicionais inviabilizados.
As diferentes monoculturas produzem impactos sócio-ambientais desiguais, mas
possuem um denominador comum: de alguma forma elas contribuem para concentrar a
estrutura fundiária, contaminar ou exaurir recursos naturais e modificar a lógica da
produção em prejuízo dos mais pobres e da sustentabilidade. O resultado mais visível da
expansão agrícola é mudança nos ciclos hídricos, sinal da perturbação da estabilidade
do ecossistema. A contaminação das bacias e o uso intensivo de agrotóxicos ou o
desgaste no revezamento das culturas de milho e soja, que impele os produtores para
―terras virgens‖, são fatos indiscutíveis. Tomando o exemplo das plantações de cana-de-
açúcar, é possível identificar, nas regiões com menor desempenho econômico, como no
Espírito Santo, Minas Gerais ou Pernambuco, o grau de brutalização das relações
sociais. Em termos gerais, as lavouras que se desenvolveram a partir de 2001 geram
poucos empregos e não criam cadeias produtivas fortes, mas nesses estados a cultura da
cana-de-açúcar figura entre as atividades com maior incidência da exploração em
condições análogas à escravidão. O mesmo vale para as lavouras da soja nas regiões
mais remotas do país. As novas feições do trabalho escravo – um aspecto que sempre se
fez presente nas relações de trabalho no campo, como parte da nossa tradição, e que só
há poucos anos começou a ser combatido e assim mesmo de forma pouco decidida – são
as atividades forçadas, a servidão por dívida e o trabalho em condições exaustivas.51 A
partir de 2003, teve início um combate mais efetivo ao trabalho escravo por parte do
50 http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=127683&tp=1 51 Sobre a nova legislação contra o trabalho escravo cf. Ricardo Rezende Figueira e Neide Esterci.
―Escravidão contemporânea: disputas, leis e políticas públicas‖. Estados da plebe no capitalismo contemporâneo. Org. Cleusa Santos, Marildo Menegat, Ricardo Rezende Ferreira. São Paulo, Outras expressões, 2013.
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governo federal, com o lançamento do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho
Escravo. No final daquele ano, o Ministério do Trabalho e a Polícia Federal libertaram
uma grande quantidade de trabalhadores. Essa política tem colocado em oposição
alguns setores do governo e os representantes do agronegócio e do latifúndio. A
mudança do texto do Código Penal (artigo 149) fez surgir uma nova concepção de
trabalho escravo que não se limita ao trabalho sob coerção, o que gerou, como resposta
dos grandes produtores rurais, a exigência de uma melhor definição do conceito de
―trabalho análogo à escravidão‖.52 Do mesmo modo, o governo tem enfrentado forte
resistência para aprovar a Proposta de Emenda Constitucional 438/2001, que expropria
para fins de reforma agrária terras nas quais há registro de condições de trabalho que
atentam contra a dignidade humana. Os conflitos políticos não são a única dificuldade.
Em 2004, na cidade de Unaí, em Minas Gerais, três auditores fiscais e um motorista do
Ministério do Trabalho foram assassinados no exercício de suas funções. De lá para cá
houve pouco avanço na esfera penal, com poucas denúncias e condenações (a começar
pela chacina de Unaí, cuja decisão sobre a condenação dos mandantes permanece
adiada pelo STF). Também na região situada entre o norte do Espírito Santo e o sul da
Bahia, as sobras do eucalipto são transformadas em carvão vegetal por trabalhadores
em situação ilegal – em grande parte mão-de-obra infantil – que vivem em condições
insalubres, sem direitos, expostos a resíduos químicos e jornadas extenuantes. Ao invés
de um combate sistemático a tais práticas e do estímulo às cooperativas, o governo
federal adotou, em 2007, a MP 410 (convertida na Lei 11.718 no ano seguinte), que torna
oficial a precarização das relações de trabalho no campo, permitindo ao empregador
―realizar contratação de trabalhador rural por pequeno prazo para o exercício de
atividades de natureza temporária‖.53
Ao contrário das aparências, as formas de exploração intensiva da mão-de-obra
dos trabalhadores rurais não estão reduzidas a um Brasil ―arcaico‖, como se fossem
resíduos de um passado de tradição escravista. Para José de Souza Martins, ―ao invés da
expansão capitalista no campo ter modernizado a mentalidade política dos grandes
52 ―Tendo em vista a nova redação do artigo 149, a categoria [trabalho escravo] tem sido compreendida
por procuradores e juízes do trabalho com um sentido amplo: basta haver condições degradantes de trabalho para ser tipificado como ‗crime de trabalho análogo à condição de escravo‘‖. Ricardo Rezende Figueira e Neide Esterci, op.cit, p. 23.
53 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/Lei/L11718.htm
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proprietários, acabou comprometendo a mentalidade dos capitalistas com os interesses
do latifúndio‖.54 Embora Martins considere essa inversão da ―missão civilizatória‖ do
capital como um obstáculo para a verdadeira entrada do campo brasileiro no mundo
moderno, o fato de as grandes empresas se tornarem proprietárias de terras e
reproduzirem novas modalidades de exploração representa apenas um aspecto
contraditório da ―modernização‖ ditada pelo atual estado do desenvolvimento
produtivo. Nos setores mais avançados do agrocapitalismo não é mais possível
empregar de forma rentável grandes quantidade de força de trabalho em lavouras e
colheitas. O incremento técnico resulta, então, na degradação das condições de trabalho
para alguns e no desemprego em massa para a maioria. Nas plantações de cana e
laranjais paulistas, a área agrícola mais desenvolvida do país, são cada vez mais comuns
os casos de morte por acidente ou por excesso de trabalho. As máquinas colheitadeiras
de cana (com altas taxas de produtividade) impõem à mão-de-obra remanescente um
prolongamento da jornada com intensificação do ritmo de trabalho. Trata-se de um
efeito direto da mecanização da lavoura: ―Na década de 1980, a ‗média‘ (produtividade)
exigida era de 5 a 8 toneladas de cana cortada/dia; em 1990, passa para 8 a 9; em 2000,
para 10, e em 2004, para 12 a 15 toneladas‖.55 Em face dessa busca incessante de
desenvolvimento tecnológico, a questão da ―mentalidade‖ dos proprietários torna-se
menos decisiva do que o padrão de competitividade dos mercados globais. Os salários
baixos – que indicam um retorno da mais-valia absoluta – são a condição para a
agricultura brasileira concorrer no mercado mundial, vale dizer, são antes uma
exigência do nível crescente das forças produtivas do que uma forma capitalista de
54 ―Mecanismos perversos de exclusão: a questão agrária‖. Exclusão social e a nova desigualdade. São
Paulo: Paulus, 1997, p. 85. 55 Cf. Maria Aparecida de Moraes Silva. “Mortes e acidentes nas profundezas do „mar de cana‟ e dos
laranjais paulistas‖. http://www.revistas.sp.senac.br/index.php/ITF/article/viewFile/112/129.
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reprodução de relações pré-modernas.56 Na mesorregião de Ribeirão Preto (SP), a
extrema exploração é constatada pela ocorrência de 21 mortes, supostamente por
excesso de esforço durante o corte da cana, no período de 2004 a 2007, além de elevado
número de acidentes.57 O modelo empresarial da modernização agrícola atual reduz
drasticamente a população de trabalhadores rurais. A maior parte deles não será
reintegrada e não apenas por causa da baixa qualificação, mas devido aos elevados
padrões de produtividade. Mesmo a expansão das atividades industriais de
beneficiamento é insuficiente. Para ficarmos com um exemplo revelador: a cidade de
Ribeirão Preto, centro econômico de um dos pólos mais dinâmicos do agronegócio
brasileiro, praticamente extinguiu sua população ocupada na agricultura. Junto com a
riqueza da cana-de-açúcar, que se concentra em poucas mãos, crescem as favelas e
prisões. Em 2012, mesmo após uma série de remoções, as favelas ainda concentram
uma população de 25 mil moradores. Já o número de presos é algo em torno de 4 mil.
Com a taxa da ocupação em atividades rurais correspondente a 0,03%, este setor
tornou-se numericamente inferior à população carcerária da cidade.58 Nas regiões mais
pobres do país o fenômeno se repete. A concentração de terras continua a produzir um
excedente populacional que ocupa até as periferias das cidades de porte médio. Para
além dos casos de precariedade das condições de vida causadas pela modernização do
campo, erroneamente atribuídos ao ―poder do atraso‖, a visibilidade dos êxitos
econômicos do agronegócio dissimula outro grande produto do capitalismo mais
avançado, a reprodução ampliada da pobreza urbana.
56 O processo de globalização produz uma uniformização dos ―tempos históricos‖. O que aparece como
arcaico e pré-moderno é a expressão direta de uma modernização que perdeu seu horizonte de progresso social. Na periferia do capitalismo essa modernidade se exprime no processo de regulamentação da precariedade, enquanto a força-de-trabalho das economias centrais é ―flexibilizada‖ – ambos de acordo com o nível crescente das forças produtivas. Nesse quadro, a ―produção ‗high tech‘ ou trabalho barato ‗low-tech‘ são para [as empresas transnacionais] pura e simplesmente opções que, de acordo com o cálculo dos investimentos necessários, situação do mercado, risco, situação da concorrência e demais condições estruturais, se podem utilizar e até combinar‖. Cf. Norbert Trenkle. ―Nem os baixos salários vos salvam! A ilusão do capitalismo da miséria e das prestações de serviços‖. http://www.krisis.org/1999/nem-os-baixos-salarios-vos-salvam
57 Maria Aparecida de Moraes Silva. Op.cit.
58 ―Agronegócio multiplica favelas e prisões‖. http://www.brasildefato.com.br/node/773
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3. Movimentos sociais e Reforma Agrária
Enquanto a absorção da agricultura pelo sistema industrial gera desemprego e
miséria urbana, os agricultores que permanecem produzindo são cercados pelas
monoculturas e têm suas opções reduzidas, como no caso da dependência em relação ao
mercado de sementes e equipamentos. As grandes propriedades impõem determinados
produtos e uma escala de produção que avança sobre o espaço das iniciativas
autônomas. Essa pressão duplamente negativa da modernização capitalista do campo
colocou os movimentos sociais de trabalhadores rurais em uma posição defensiva.
Desde o início do governo Lula, agravou-se a concentração de terras, de renda e
de poder no campo brasileiro. Isso significa que o modelo agrário continua a produzir
trabalhadores ―sem-terra‖.59 No entanto, a quantidade de novos assentamentos
diminuiu em relação aos governos anteriores. Na última década, não só as populações
continuaram a ser expulsas de suas terras, mas houve um aumento da violência no
campo causada pelas expectativas em torno da vitoria de Lula em 2002. O mesmo fator
subjetivo que serviu para ampliar a mobilização popular, também provocou um
aumento do temor dos ruralistas quanto a uma possível política distributivista no
campo. Lula atuou como mediador dos conflitos e – em contraposição ao período
anterior – o diálogo com os movimentos sociais foi ampliado. Mas, ao mesmo tempo em
que reconhecia a legitimidade da luta pela reforma agrária, o governo se articulava para
atender reivindicações dos grandes produtores. Nesse aspecto, o ―capital político‖ do PT
junto aos movimentos populares foi bastante vantajoso para os representantes da
modernização capitalista do setor agropecuário. Enquanto concentrava sua política de
distribuição de terras na Amazônia Legal – para não realizar desapropriações nas áreas
de concentração do agronegócio -, o governo liberava áreas de propriedade do INCRA
para a produção intensiva de soja em várias cidades do Mato Grosso e Rondônia. A
atitude complacente em relação à ―grilagem‖ das terras mostra que ―a política de
59 Defensores do governo, como o já citado W. Pomar, reconhecem que ―continua ocorrendo um constante
e perverso processo de expropriação dos lavradores proprietários. Eles vêm perdendo seus imóveis, em virtude de dívidas bancárias e outros motivos, numa média de 100 mil a cada ano. Se aceitarmos que o governo assentou, entre 2002 e 2007, cerca de 350 mil sem-terra em novas propriedades, isso significa que, ao invés de diminuir, o número de sem-terra aumentou, nesse mesmo período, em cerca de 150 mil. Essa situação tende a enfraquecer a possibilidade de um abastecimento seguro de alimentos para o mercado interno brasileiro‖. Wladimir Pomar, op.cit, p. 124.
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reforma agrária do governo Lula está marcada por dois princípios: não fazê-la nas áreas
de domínio do agronegócio e, fazê-la nas áreas onde ela possa ‗ajudar‘ o agronegócio‖.60
Na Amazônia Legal a questão da ―grilagem‖ é ainda mais complexa e se confunde com
as ―parcerias‖ que transformam assentamentos de reforma agrária em apêndices da
indústria madeireira. Aqui a postura do governo foi muito além da permissividade: seu
objetivo era ―legalizar a grilagem de mais de 182 milhões de hectares de terras públicas e
devolutas, constitucionalmente da reforma agrária, dos povos indígenas, dos
remanescentes de quilombolas e da proteção ambiental‖.61 Desse modo, uma ―reforma
agrária‖ reduzida à colonização de terras baratas foi colocada a serviço do agronegócio,
como também ocorre na relação entre os assentamentos rurais do Oeste paulista e os
usineiros da cana-de-açúcar, igualmente sob a forma de ―parcerias‖, para a produção do
biodiesel. Seguindo essa orientação, o Ministério do Desenvolvimento Agrário criou
linhas de financiamento idênticas para projetos agroflorestais de assentamentos rurais
com eucaliptos. A integração aos complexos agroindustriais ―continua a fomentar o
drama vivido pelas famílias, ocasionando distorção das perspectivas de cooperação
comunitária, imposição de valores competitivos e danos ambientais‖.62 Esse tipo de
política, que tem dividido o Movimento dos Sem-Terra (MST), elimina as práticas de
diversidade de culturas e constrange os assentados a se tornarem fornecedores de
matéria-prima para as fábricas e usinas ou a ceder parcelas de seus lotes para as
empresas encarregadas da produção.
Outra iniciativa do governo Lula, que figura entre as suas ―grandes realizações‖,
embora inacabada, é a chamada ―transposição‖ do Rio São Francisco. Na realidade, o
projeto consiste na integração desse rio que avança pelo semi-árido em direção às bacias
hidrográficas do Nordeste Setentrional. A obra, com centenas de quilômetros de canais
para a irrigação, contém todos os traços dos projetos faraônicos da era
desenvolvimentista e só é comparável, em termos de impacto ambiental, à construção
60 Ariovaldo Umbelino de Oliveira. ―Lula dá adeus à Reforma Agrária‖.
http://www.mst.org.br/node/6375 61 Ariovaldo Umbelino de Oliveira.―A questão agrária no Brasil: não reforma e contrarreforma agrária no
governo Lula‖. In Os anos Lula: contribuições para um balanço crítico 2003-2010. Rio de Janeiro: Garamond, 2010, p. 316.
62 Vera Lucia Silveira Botta Ferrante e Luís Antonio Barone. ―‗Parcerias‘ com a cana-de-açúcar: tensões e contradições no desenvolvimento das experiências de assentamentos rurais em São Paulo‖. Sociologias, vol.13, n. 26, Porto Alegre, 2011.
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de grandes barragens. Ao seu modo, ela também indica a falta de compromisso com a
Reforma Agrária: ao invés de apostar nas obras de pequeno e médio porte, a baixo custo
e sem impactos significativos, como o projeto P1MC de captação de água das chuvas, o
governo optou pelos interesses das construtoras e das grandes monoculturas que já
começaram a se desenvolver na região.63 Na Bahia, também governada pelo PT, onde a
irrigação começou a funcionar, ficou evidente o porquê da grandiosidade do projeto:
trata-se de viabilizar a escala da produção do agronegócio, beneficiando aqueles que
concentram a propriedade da terra, mesmo com os custos sociais e ambientais
implicados nessa alternativa. Desse modo, foi possível criar uma sólida base de
sustentação política, sem ameaçar as estruturas locais de poder.
Tudo isso nos coloca diante do problema da pobreza no campo. Se as populações
das áreas cobiçadas pela agroindústria capitalista continuam a ser deslocadas e se não
há disposição de modificar a estrutura fundiária nem mesmo das regiões mais
―atrasadas‖ em termos econômicos, antes se optando por transformá-las, através do
investimento estatal, em novas áreas de alta produtividade reservadas aos grandes
produtores, resta saber como gerir a miséria rural e urbana provocada por esse modelo.
Como se sabe, a principal resposta do governo foi a adoção dos programas de
transferência direta de renda para famílias em situação de extrema pobreza,
principalmente nas áreas de concentração do agronegócio voltado para a exportação.
Com 11 milhões de famílias assistidas, o ―Bolsa Família‖ – nascido no interior do
programa Fome Zero – está enfraquecendo as bases da luta pela reforma agrária, que
são recrutadas nas zonas rurais e nas periferias pobres das cidades. Depois da
implantação dos programas sociais de renda mínima, o número de acampados que
permanecem mobilizados caiu para menos da metade. Hoje o MST conta com cerca de
80 mil famílias acampadas, além do vínculo com centenas de milhares de assentados
63 O projeto P1MC foi iniciado em 2003 com financiamento do governo federal. Criado por uma rede de
organizações da sociedade civil que atuam na região do semiárido, ele estimula a participação da comunidade em um esquema descentralizado de mutirão para a construção das cisternas familiares e capacitação da população envolvida para a gestão dos recursos hídricos. Inicialmente, o governo visava a criação de 1 milhão de cisternas de placas de cimento. Em dez anos, foram construídas mais de 400 mil. Ao longo desse período, o atraso no repasse de recursos foi frequente e o projeto sofreu mudanças significativas, quando o Ministério da Integração Nacional privilegiou a compra de cisternas de plástico polietileno, material que se degrada com facilidade e duplica os custos do programa, sem falar na interrupção do processo de participação das famílias locais e na burocratização do processo de instalação, o que beneficia apenas os novos fornecedores.
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distribuídos pelo território nacional. Sua base social é constituída por famílias pobres
que não possuíam alternativa imediata de sobrevivência a não ser a ocupação de terras.
É comum a afirmação de que não existe relação direta entre a diminuição
continuada do número de ocupações e o ―Bolsa Família‖, como se essa redução se
devesse mais ao apoio dos movimentos sociais ao governo do que à desmobilização no
campo. No entanto, a própria Direção Nacional do MST assegura que esse tipo de
política tende a gerar apatia e acomodação nas famílias assistidas.64 É nas regiões que
concentram a porção mais carente da população rural que se estabelece com mais força
a relação entre pobreza e sujeição aos governos locais. Em tais circunstâncias, os
programas de transferência direta de dinheiro tendem a se perpetuar, forjando novas
relações de dependência.
A origem das lutas sociais protagonizadas pelo MST remonta ao final da ditadura
militar. A estratégia usada pelo governo para acabar com a guerra pela posse de terras
foi esvaziar o conflito através da colonização de áreas remotas. Esses projetos atraíram
trabalhadores rurais oriundos, em sua maioria, da região do semi-árido, que passaram a
viver das atividades temporárias disponíveis na nova fronteira agrícola. Nos anos 1980,
o ressurgimento da mobilização popular no campo – uma parte essencial da
―redemocratização‖ – evidenciava o fracasso do tipo de colonização incentivado pelo
governo. A maior parte dos trabalhadores que começavam a se organizar era formada
por ―posseiros‖ expulsos das terras por milícias rurais a serviço dos proprietários ou
simplesmente era composta por pessoas ―deslocadas‖ pelos projetos estatais de
construção de barragens. Tanto a colonização quanto o processo de militarização do
conflito, no início dos anos 1980, eram formas de contornar o problema da propriedade:
―em nenhum país do mundo titulou-se tantas vezes o mesmo pedaço de terra. A julgar
pelas escrituras registradas nos cartórios, a extensão territorial do Brasil está muito
acima dos 8 milhões de quilômetros quadrados estabelecidos pelos acordos
internacionais desde os tempos da colônia‖.65 Diante desse quadro, confrontaram-se no
campo brasileiro os proprietários apoiados em documentos falsificados e um ―explosivo
exército de agricultores sem-terra, estimado hoje em mais de 9,5 milhões de famílias‖.66
64 ―Stédile vê contra-reforma agrária no país‖. Estado de São Paulo, 27 fev., 2008. 65 ―A ordem subvertida‖. Veja, 13 de fevereiro de 1980, p. 22. 66 Ibidem, p. 23.
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O outro lado do conflito era a disputa judicial entre grandes proprietários: ―a indefinição
da propriedade gerou o comércio em larga escala de títulos de posse obtidos pelos mais
variados expedientes. Estabelece-se uma espécie de corrida, geralmente entre os
grandes e médios proprietários, na disputa por um mesmo lote: cada um aposta na
validade de seu papel, muitas vezes auxiliado por ‗forças de persuasão‘ formadas
sobretudo por jagunços e autoridades locais sensíveis ao suborno‖.67
Com o tempo, a pacificação das disputas no interior das elites rurais fez com que
as atenções se voltassem para o MST, que durante toda a década de 1990, período
marcado pela crise do sindicalismo, atuou como uma espécie de vanguarda dos
movimentos sociais.68 No período em questão, os movimentos ―camponeses‖
pressionaram os governos e conseguiram arrancar algumas conquistas, angariando
ampla base social. De qualquer forma, a maior parte dos assentamentos rurais que
resultaram da mobilização popular foi feita em lugares de difícil acesso e sem assistência
técnica adequada. Isto porque a distribuição de terras, além de insuficiente, foi apenas
um meio para evitar os conflitos e não uma reforma da estrutura agrária que ampliasse
a viabilidade econômica da agricultura familiar.
Levando em consideração os novos assentamentos e o modo de lidar com as
alternativas populares ao agronegócio, pode-se dizer que, num primeiro momento, o
governo Lula apenas deu continuidade ao programa ―residual‖ da reforma agrária
iniciado com o governo de F. H. Cardoso. Em 2003, já era possível constatar a falta de
iniciativa política em relação à reforma. As primeiras reivindicações do MST frente ao
novo governo, sempre identificado como aliado, diziam respeito à necessidade de
reestruturação do INCRA e à redefinição dos critérios de desapropriação das terras. Ao
mesmo tempo, o movimento estimulou a ampliação dos acampamentos na beira das
estradas como forma pacífica de pressão. Em janeiro de 2004, foi estabelecido como
meta o assentamento de mais de 10 mil famílias por mês. No entanto, as metas não
foram cumpridas. O governo fechou 2003 com apenas 14 mil famílias assentadas. Em
parte, a responsabilidade por esses números coube à política de superávit do ministério
67 Idem. 68 Não se pode esquecer que ―... a década de 1990 foi marcada por altos índices de violência contra os
camponeses. De acordo com a CPT, houve 197 assassinatos de sem-terra entre 1997 e 2002 por milícias financiadas por fazendeiros‖. João Alexandre Peschanski. ―A construção do socialismo sem-terra‖. Margem Esquerda Ŕ ensaios marxistas, número 11. Boitempo Editorial, 2008, p. 126.
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da Fazenda, que não liberou recursos. A partir da elaboração do novo PNRA, negociado
com os movimentos e o núcleo de gestores da política econômica, com estes defendendo
metas muito mais modestas, ficou estabelecido um novo objetivo: 400 mil famílias entre
2004 e 2006. Novamente, os números ficaram abaixo do esperado.69 Além disso, o
desrespeito sistemático às leis trabalhistas e ambientais continuou a ocorrer sem que o
governo assumisse uma postura firme para regular as relações no campo. As iniciativas
pareciam se concentrar todas na redução da situação de miséria, que atingia
preferencialmente um segmento desmobilizado da população. De acordo com João
Pedro Stédile, essa massa era composta por mais de quatro milhões de sem-terras,
muito pobres e ―pulverizados‖ nas fazendas do Nordeste e do Sul.70 Logo as ações de
combate à pobreza alcançaram a base social dos movimentos ou os segmentos que ainda
poderiam se organizar. As famílias acampadas nas estradas ou dispersas em áreas
afastadas dos centros urbanos foram cadastradas e passaram a receber cestas básicas.
Em muitas zonas rurais, o ―Bolsa Família‖ se tornou a principal fonte de renda. Diante
desse quadro, o MST assumiu uma posição de defesa das políticas públicas
emergenciais, mas não deixou de caracterizá-las como práticas assistencialistas. Um
comunicado da Secretaria Nacional do Movimento sobre a política de transferência de
renda afirma que ―a solução para os trabalhadores rurais é a realização de uma Reforma
Agrária Popular e um programa de agroindústrias em todas as cooperativas de
assentamentos, para garantir a produção de alimentos para toda a população e a
geração de renda para as famílias assentadas‖.71
Na concepção do MST, a reforma agrária é uma alternativa de desenvolvimento
nacional e não um instrumento compensatório ou uma luta corporativa dos
trabalhadores rurais. As lideranças do MST avaliavam que o maior empecilho às
mudanças estruturais no campo durante o governo Lula era a política econômica,
69 Para Ariovaldo Umbelino de Oliveira, ―os resultados finais do II PNRA indicam que (...) havia apenas
163 mil famílias referentes aos assentamentos novos‖. Quanto à regularização fundiária, os números ficaram ainda mais distantes das metas negociadas. Para Umbelino, o não cumprimento das metas foi uma política deliberada do MDA/INCRA. Outros setores do governo, especialmente a equipe econômica, ligada ao modelo do agronegócio, pretendia limitar ainda mais os recursos e o número de famílias. Op.cit, p. 308. Sobre os números da ―reforma agrária‖ nos primeiros anos do governo Lula ver também Frei Betto, ―O calendário do poder‖, Rio de Janeiro, Rocco, 2007, pp. 368 e 505.
70 ―Sociedade em crise‖. Entrevista aos jornalistas Luiz Gonzaga Belluzzo, Mino Carta e Sergio Lirio. Carta Capital, São Paulo, 21 de set., 2005.
71 MST. ―Posição sobre a inclusão de acampados no Bolsa Família‖. 6 jul., 2009. Disponível em http://www.mst.org.br/node/6873
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sempre caracterizada como ―neoliberal‖. Ao longo do primeiro mandato do presidente
Lula, os movimentos criticaram a composição das alianças políticas do PT e
continuaram a reivindicar um projeto de desenvolvimento com distribuição de renda e
formação de mercado interno. Esse projeto, apresentado como um contraponto à
―hegemonia conservadora‖ no governo, se baseava no pensamento desenvolvimentista
latino-americano das décadas de 1950-60. Em resumo, o que estava em questão não era
apenas a reivindicação de mais recursos para os assentamentos, mas um projeto
nacional com uma clara compreensão do antagonismo entre a situação periférica do
Brasil na economia mundial e a perspectiva da reforma agrária. Do ponto de vista do
MST, essa compreensão exigia outro modelo de organização da produção: ―O governo
precisaria pensar uma política mais estável, que de fato priorize a organização de toda a
produção agrícola, baseada na pequena e media agricultura. Os grandes produtores,
auto-suficientes no agronegócio, que se virassem no mercado‖.72 A reivindicação de uma
política orientada para os pequenos e médios produtores, aliada à luta contra os
transgênicos, constituía um projeto em defesa da ―segurança alimentar‖ ameaçada pelo
latifúndio e pelo agrocapitalismo global. Mas, ao contrário das expectativas dos
movimentos sociais, o governo agia primordialmente em favor dos grandes
proprietários e do capital transnacional. Também as desapropriações foram caindo ano
após ano: ―Em 2007, o total desapropriado foi pífio: apenas 107 mil hectares, sem
contar outros 166 mil hectares referentes a processos concluídos em dezembro. Ainda
assim, muito aquém dos 555 mil de 2006, ou dos 977 mil de 2005‖.73 Em 2008, o
número de famílias assentadas foi ainda menor em comparação com o ano anterior.74
No segundo mandato, era grande o descontentamento dos movimentos aliados
face às posições do governo na questão agrária. Para Ariovaldo Umbelino de Oliveira, ―o
MST detectou corretamente que o governo atual apóia o agronegócio‖.75 As lideranças
do movimento reconheciam que, no governo Lula, a reforma agrária havia saído da
72 Entrevista com J. P. Stedile. ―A crise na agricultura brasileira‖. http://www.mst.org.br/node/1865 73 Phydia de Athayde e Rodrigo Martins. ―Por que não anda a Reforma Agrária?‖ Carta Capital. 31 jan.,
2008. 74 ―Número de famílias assentadas cai 68% em comparação a 2007‖. O ESTADO DE SÃO PAULO. 18 nov.,
2008. 75 Ariovaldo Umbelino Oliveira. ―Sem enfrentamento, não há Reforma Agrária‖. Correio da Cidadania. 23
mai, 2007.
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pauta. No entanto, essa conclusão não foi suficiente para que retirassem seu apoio ao
governo. Essa contradição pode ser explicada em função da conjuntura de crescimento
do emprego e da renda, verificada a partir de 2006. O período de crescimento foi
interpretado pela maioria da Direção Nacional do MST, bem como pela maior parte da
esquerda brasileira, como sendo produto de uma postura ―neodesenvolvimentista‖
adotada pelo governo – ainda que não fique claro no discurso dessas lideranças em qual
momento se deu a alegada ruptura com o ―neoliberalismo‖. Na avaliação do MST, o
fortalecimento do agronegócio decorre das alianças conservadoras as quais o PT se
submeteu. A ―composição de classe‖ do governo (fala-se com frequência do ―apoio de
uma fração da burguesia‖) forçou sua ala progressista a rejeitar o modelo de agricultura
baseado na pequena e na média propriedade. O caráter ―pós-neoliberal‖ atribuído por
um segmento da esquerda à administração petista se deve a uma política de recuperação
dos investimentos estatais nos setores produtivos e aos programas de transferência de
renda. Assim, nos últimos anos, várias lideranças do MST substituíram a crítica do
modelo econômico por uma crítica mais localizada do modelo agrícola vigente. Para
esses críticos, a conjuntura inaugurada em 2006 – e de forma ainda mais evidente
durante a crise financeira de 2008 – seria marcada pela contradição entre a orientação
geral ―neodesenvolvimentista‖ e um modelo agrícola de caráter conservador. O limite
dessa crítica é dúplice: para além das interpretações acerca de um desenvolvimento
distributivista, o caso é que a expansão da economia encontra no agronegócio
exportador um dos seus pilares, de modo que não é possível separá-los como se
houvesse mais antagonismo do que convergência entre o investimento estatal
―produtivo‖ e a exportação de commodities. Pode-se dizer até mesmo que o modelo em
questão foi pensado a partir da vinculação com a plataforma exportadora do
agronegócio e não ―apesar‖ dela. Outro limite desse tipo de avaliação é a oposição entre
capital produtivo e capital financeiro (expressão que, na maioria das vezes, pretende
designar o rentismo e a especulação), tendo em vista que o assim chamado
―neodesenvolvimentismo‖ se baseia na dilatação do crédito ao consumo, o que converte
em ideologia a pregação em nome dos setores ―produtivos‖ contra o capital que rende
juros. É verdade que essa crítica limitada aos mecanismos de financiamento se deve às
dificuldades de aquisição de crédito por parte dos pequenos produtores, que tem menor
capacidade de investimento. Nesse sentido, ela não deixa de refletir um problema real,
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ainda que de forma truncada. Podemos acrescentar que, em tese, a ―reforma agrária
popular‖ defendida por figuras representativas como J. P. Stédile não está muito
distante das especulações de W. Pomar sobre o desenvolvimento do capitalismo
nacional – com a diferença de que este empurra o problema da socialização para um
futuro distante, numa conjuntura puramente imaginária, enquanto, aqui e agora, a
propriedade capitalista da terra destrói as bases da sobrevivência dos pobres do campo.
Já os ideólogos do MST não podem passar ao largo dos problemas imediatos da
população rural. Por isso, o discurso pró-desenvolvimento entra em contradição com as
demandas do movimento.76 Enquanto os governos encabeçados pelo PT se apóiam no
latifúndio exportador e executam as políticas sociais idealizadas pelos representantes
deste setor, os movimentos sociais – com o MST à frente – continuam a defender a
bandeira da modificação das estruturas agrária e fundiária visando a redução dos custos
dos alimentos e a proteção de rios e florestas. Também aqui uma posição coerente de
defesa da segurança alimentar, do cooperativismo e da viabilidade sócio-ambiental da
agricultura só pode conduzir à crítica do modelo de ―desenvolvimento‖ atual. 77
O crescimento das monoculturas de exportação pode ser comparado a um ―novo
ciclo‖ – ainda que efêmero – da economia brasileira. Seu impacto sobre a estrutura
social é literalmente devastador. A mistura de concentração da propriedade e
mecanização intensiva resulta obrigatoriamente na expulsão da mão-de-obra do campo,
76 Para os movimentos o resultado da administração petista da crise foi a desmobilização. Como destaca Raúl Zibechi, ―na década de governo do PT os conflitos pela terra não diminuíram, mas o primeiro escalão da organização (do MST), os acampamentos, tiveram um claro retrocesso. De 285 em 2003, ano da chegada de Lula ao governo, caíram para um mínimo de 13 acampamentos em 2012‖. Cf. ―El fin del consenso lulista‖. http://gara.naiz.eus/paperezkoa/20130707/411971/es/El-fin-consenso-lulista. Em entrevista recente, Gilmar Mauro, dirigente do MST, afirma que o governo Dilma só se compara, em termos de desapropriações de terras e políticas de assentamento, ao período militar. O movimento foi empurrado para uma posição ainda mais defensiva: as políticas sociais que, no período Lula, ainda eram criticadas como desmobilizadoras, tornaram-se a única referência ―positiva‖ do governo Dilma. ―O governo Dilma não fez nada em termos de reforma agrária‖. Entrevista a Piero Locatelli. Carta Capital, São Paulo, 10 de fev., 2014.
77 De qualquer forma, o modelo petista já apresenta limites evidentes, decorrentes do fim do período de crescimento econômico. Não é só nos grandes centros urbanos que surgem manifestações claras de descontentamento. A crise do breve ciclo extrativista atingiu vários setores do complexo agroindustrial – alguns deles, como o festejado setor sucroalcooleiro, tornaram-se deficitários. A crise do modelo baseado na demanda externa por produtos primários redefiniu os alinhamentos políticos nas regiões de concentração do agronegócio: enquanto a fronteira agrícola, mais dependente de crédito governamental e infraestrutura, preserva aliança com o governo, os setores consolidados, nos estados mais ao sul (São Paulo, Paraná, partes de Minas Gerais e Goiás, etc.), transformam-se em importantes redutos de oposição ao pacto lulista.
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isto é, na ampliação do número de pessoas ―sem-terra‖ e sem emprego. É um
crescimento sem desenvolvimento. No entanto, assistimos durante a última década ao
esvaziamento do debate sobre a reforma agrária e a restauração oportunista da tese da
vocação agrícola do Brasil. Muitos sustentam que a reforma agrária envelheceu, que não
cabe mais distribuir a terra, mas garantir uma condição digna para os agricultores que
permanecem ―com terra‖. Argumenta-se que novos assentamentos estariam fadados ao
fracasso econômico e que nem mesmo o número crescente de famílias expulsas do
campo justifica uma mudança de rumo. Ao mesmo tempo, o agronegócio – por maiores
que sejam as catástrofes sócio-ambientais que ele engendra – foi elevado à condição de
modelo. O ex-presidente Lula tratou os usineiros do setor sucroalcooleiro como
―heróis‖, enquanto Roberto Rodrigues apresenta os grandes produtores do Cerrado
como exemplo de sustentabilidade e uma senadora ruralista se vangloria da produção de
alimentos envenenados para a população de baixa renda. Ainda mais arrebatado é o
elogio que se pode ler na página da Embrapa, segundo o qual a soja é responsável por
nada menos que a implantação de uma ―nova civilização no Brasil Central‖.78
O desafio imediato para os movimentos sociais e para o pensamento de esquerda
é recolocar em pauta o sentido da produção e o combate à concentração de poder,
contra a ideia de que é possível ampliar indefinidamente – e com efeitos colaterais
desastrosos – a produtividade agroindustrial. Se os assentamentos rurais não se
desenvolvem por falta de investimento em uma cadeia alternativa de produção, isso
pode apenas significar que eles não serão integrados nos termos atuais e
consequentemente a pauta da reforma agrária se mantém viva. Além do mais, a
distribuição de terras pode ser considerada, por si só, desconcentração de poder. Trata-
se apenas de um primeiro passo para mudar a relação entre produção e consumo – e a
própria relação cidade-campo. Não se pode imaginar a criação de novas estruturas de
organização da produção agrícola, e o controle das suas etapas e da tecnologia
empregada, bem como a integração do cultivo do solo a outras esferas da vida social,
78 Cegos aos efeitos dessa ―nova civilização‖, aqueles que protestam contra as ―utopias distributivistas‖
são, para usarmos uma expressão de Günther Anders, ―utopistas invertidos‖. ―O dilema básico de nossa era é que ‗somos menores do que nós mesmos‘, incapazes de realizar mentalmente as realidades que nós mesmos produzimos. Portanto, podemos chamar a nós mesmos de ‗Utopistas invertidos‘: enquanto os Utopistas comuns são incapazes de produzir de fato o que são capazes de imaginar, nós somos incapazes de imaginar o que estamos de fato produzindo‖. Günther Anders, ―Teses para a Era Atômica‖. Sopro, n. 87, abr., 2013.
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sem que esse passo seja dado. Só assim será possível pensar um projeto agrícola voltado
para as necessidades sociais ao invés do mercado. Não é o caso de incorporar a
produção familiar aos segmentos produtivos, mas de fortalecer o seu papel na
reprodução social, ainda que ela permaneça secundária em termos econômicos. Esse
tipo de ―socialização‖ nada tem a ver com uma simples eliminação da propriedade
jurídica da terra na qual os produtores continuam dependendo do Estado para se
apropriar dos recursos. O que está em questão é a subordinação da produção a uma
racionalidade diferente, baseada na cooperação e na sensibilidade ambiental, ou seja,
num novo modo de conviver e produzir.
(Nov. 2013)
Post-scriptum
Os governos liderados pelo PT não apenas apoiaram poluidores, desmatadores e
adeptos do trabalho forçado, mas durante vários anos converteram essas práticas em
um ―modelo de sucesso‖. Agora, é com grande indignação que uma parte da esquerda
reage à nomeação de Kátia Abreu para o novo ministério. A senadora que mudou de
partido duas vezes para permanecer no palanque de Dilma representa uma facção do
agronegócio concentrada nas áreas de expansão da fronteira agrícola. Trata-se de um
segmento mais dependente dos recursos estatais do que os setores mais consolidados no
Centro-Sul. É difícil imaginar uma figura política que represente melhor o conjunto de
catástrofes produzidas pelo modelo agroexportador. Além disso, nas últimas eleições, o
peso político da facção liderada por Kátia Abreu foi certamente maior que o do ―voto
crítico‖ de esquerda. O que chamam de traição é apenas coerência.
(Jan. 2015)
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SOCIALISMO OU BARBÁRIE?
Daniel Cunha
Quem possui cópias da revista francesa Socialisme ou Barbarie deveria guardá-
las para a posteridade como registro histórico.1 Houve uma época na qual a esquerda
não tinha dúvidas sobre a escolha correta. Os debates e opiniões imediatamente
posteriores ao atentado terrorista à redação do Charlie Hebdo na França, porém,
mostram que em segmentos da esquerda militante brasileira atual, não se tem muita
clareza sobre que posição tomar. Aqui não nos referimos à esquerda mais
institucionalizada – PSOL, PSTU e PCB de uma ou outra forma se manifestaram contra
o terrorismo – mas principalmente àqueles que se identificam com o paradigma do pós-
modernismo e da ―multidão‖.
Muitas reações imediatas ao ocorrido foram de relativização – tentativas de
explicar e justificar o ocorrido a partir da crítica da obra dos caricaturistas assassinados.
Como se houvesse alguma maneira de justificar ou relativizar o feito a partir de algumas
caricaturas, quaisquer que fossem. Diante da cena do horror ensanguentado, buscou-se
explicações nas atitudes das vítimas, e não dos assassinos. O outro lado da mesma
moeda foi o chauvinismo: ―e as nossas vítimas?‖, ―sou Amarildô‖, etc. Publicaram-se
capas da revista fora de contexto e cheias de acusações, antes mesmo dos corpos dos
assassinados esfriarem. Aqui parece que emergiu uma espécie de ressentimento
culpabilizador de esquerda que merece estudos mais profundos. Žižek falou em
sentimento de culpa de esquerdistas liberais ocidentais: ―para estes falsos esquerdistas,
qualquer crítica ao Islã é rechaçada como expressão da islamofobia ocidental: Salman
Rushdie foi acusado de ter provocado desnecessariamente os muçulmanos, e é portanto
responsável (ao menos em parte) pelo fatwa que o condenou à morte.‖2
Mas qual a forma política dessa relativização e desse chauvinismo, da perda dos
1 Inspiro-me aqui em observação de Leo Vinicius. 2 Slavoj ŽIŽEK (2014), Pensar o atentado ao Charlie Hebdo, disponível em
http://blogdaboitempo.com.br/2015/01/12/zizek-pensar-o-atentado-ao-charlie-hebdo/
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princípios básicos de solidariedade da esquerda internacionalista, ou até mesmo da
orientação da solidariedade em direção aos assassinos fanáticos? Aqui é preciso voltar-
se para a ascensão do pós-modernismo e das políticas identitárias. Se não há princípios
universais, então a ―identidade‖ islâmica tem tanta legitimidade quanto a ―identidade‖
francesa, e sendo a primeira a parte ―oprimida‖, o excesso de horror por parte desta está
legitimado. Assim, a política identitária e o pós-modernismo levam a esquerda ao
pântano da simpatia pelo jihadismo, sem perceber que ele é o outro lado da moeda do
liberalismo, tanto quanto o fascismo ocidental. Não por acaso, o discurso de Le Pen e
dos pós-modernos sobre o corpo ensanguentado dos cartunistas foi formalmente
similar: enquanto os multiculturalistas os chamavam de ―racistas‖ e ―xenófobos‖, Le Pen
os acusava de ―anarco-trotskistas‖.3 Condenar com firmeza a atrocidade dos
fundamentalistas, para pós-modernos identitários, seria dar armas à xenofobia de Le
Pen. Tratam como incapazes e objetivam, assim, os próprios muçulmanos que querem
defender, como se todos eles tivessem o impulso irresistível de metralhar pessoas
quando veem uma caricatura de Maomé à sua frente. Não percebem que o que reforça a
xenofobia é, pelo contrário, a relativização da barbárie fundamentalista. Não percebem
que a identidade nacional ocidental e a identidade islâmica fundamentalista se reforçam
mutuamente, são os extremos de uma mesma constelação, cujo centro de gravidade é o
multiculturalismo liberal.
A face patética dessa esquerda desorientada em nosso país é que a solidariedade
e a defesa dos valores universais foram deixadas à trupe da Veja que, obviamente, as
apresentou com cores fortemente conservadoras e direitistas, mas ocupou o vácuo
deixado pela esquerda. A face trágica é que não perceberam que os assassinados eram
da esquerda. Os cartunistas do Charlie Hebdo são conhecidos na França como
esquerdistas que articulam o anticlericalismo, a iconoclastia e a polêmica – valores
caros à esquerda iluminista e libertária, ainda que tenham perdido a força crítica no
capitalismo avançado e certamente não agrade a todos. Opunham-se ao racismo, ao
fascismo, ao imperialismo francês. Recentemente haviam participado em um álbum em
homenagem a argelinos assassinados pela polícia francesa nos anos 60. E se não
3 Sobre a posição de LE PEN, ver http://www.publico.pt/mundo/noticia/lamento-mas-eu-nao-sou-
charlie-hebdo-declara-jeanmarie-le-pen-1681784
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poupavam a própria esquerda quando essa fazia papel ridículo, isto não os torna menos
esquerdistas, muito pelo contrário.4
A vacuidade teórica do pós-modernismo não lhe permite ver que a raiz tanto do
fascismo ocidental quanto do islâmico é a economia política. Quando, no contexto da
crise da valorização capitalista, simultaneamente nativos europeus perdem direitos em
programas de ―austeridade‖ e imigrantes são usados como exércitos de reserva para
baratear a força de trabalho, está feito o barril de pólvora nos países do Centro para o
surgimento de coisas como a Frente Nacional na França e o PEGIDA na Alemanha, e a
chance de detonação é tanto maior quanto mais fraca e desorientada for a esquerda.5 Na
periferia sem perspectiva do capitalismo (com financiamento de países do Centro)
floresce a outra face da mesma moeda, as verdadeiras empresas da morte que atendem
pelos nomes de Estado Islâmico, Boko Haram e outros, um novo tipo de fascismo
clerical globalizado, bem financiado e altamente profissionalizado.6 Ao mesmo tempo, a
experiência do PYD em Rojava, um enclave libertário, secular, internacionalista e
feminista em pleno Oriente Médio, é solenemente ignorada por essa esquerda
particularista que, ao que parece, assumiu que a ―revolução é impossível‖ e prefere o
irracionalismo da jihad e a defesa da cultura da burka.7 As comunidades curdas não
titubearam, chamando os terroristas de fascistas e pedindo solidariedade internacional
contra o terrorismo islâmico.8 Já a falta de critérios do multiculturalismo teve o seu
desfecho lógico.
A tragédia histórica para a esquerda consiste no fato que o islamismo integrista
chegou ao poder após a derrocada do socialismo real, que, por mais que tenha revertido
a um capitalismo de estado, garantia as condições da laicidade na vida social. Esses
grupos integristas colocaram a enorme regressão nos países do norte da África e do
Oriente Médio na conta do ―mundo ocidental‖, de forma ―concretamente‖ redutora, e
4 Cf., por exemplo, o relato de Michel LÖWY na entrevista ―Quem por último‖, O Estado de São Paulo,
10.01.2015. Disponível em http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,quem-ri-por-ultimo,1617840 5 Sobre o PEGIDA, ver o texto de Tomasz Konicz nesta edição da Sinal de Menos. 6 Sobre o novo fascismo islâmico globalizado, ver Tomas KONICZ, Barbárie globalizada: uma tentativa
de entender o fenômeno do Estado Islâmico. Disponível em http://o-beco-pt.blogspot.com.br/2014/10/tomasz-konicz-barbarie-globalizada.html
7 Sobre Rojava, ver o artigo de David GRAEBER, Porque é que o mundo ignora os revolucionários curdos na Síria? Disponível em http://www.esquerda.net/artigo/porque-e-que-o-mundo-ignora-os-revolucionarios-curdos-na-siria/34432.
8 Ver a nota das Comunidades Curdas: KCK Statement on the Paris Massacre, disponível em https://rojavareport.wordpress.com/2015/01/08/kck-statement-on-the-paris-massacre/
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não no sistema capitalista. Ironicamente, muitos desses ―antiocidentais‖ hoje vêm do
próprio Ocidente para somar-se às fileiras do Estado Islâmico, onde contribuem
inclusive para configurar a sua ―estética da crueldade‖ com as últimas técnicas do
Ocidente, da internet ao videoclipe profissional.9 O islamismo integrista é um fenômeno
moderno derivado da globalização do capitalismo de crise.10
Assim, a luta emancipatória é anticulturalista. O ponto de vista da liberação, sob
as condições do capitalismo globalizado, só pode ser o da desculturalização.11 Ou, como
diz John Holloway, ―proclamar uma identidade sem simultaneamente proclamar a sua
inadequação, dar a nós mesmos uma identidade sem simultaneamente afirmar que
existimos dentro-contra-e-mais-além desta identidade, significa fortalecer os muros da
prisão capitalista (...) Muito mais efetiva do que qualquer polícia secreta, a identidade é
a reprodução do capital dentro da luta anticapitalista‖.12
Que se deve combater o Estado policial e a xenofobia, não passa de obviedade de
ativistas. Mas que pós-modernos e identitários não sejam capazes de reconhecer o
fascismo em um assassinato coletivo covarde de cartunistas em seu local de criação por
um bando de fanáticos religiosos devido a alguns desenhos que não lhes agradam
denuncia a insuficiência teórica grave desse tipo de pensamento. Enquanto não houver
uma solidarização internacionalista, classista e secular de peso, não há chance de barrar
o processo de barbarização em curso e há grande chance de haver novos massacres
militares ocidentais no Oriente Médio, atingindo também inocentes. As retaliações aos
muçulmanos na França não demoraram a aparecer, inclusive na forma da defesa da
pena de morte e endurecimento contra os imigrantes, e o ―Je suis Charlie‖ em boa
medida se tornou uma espécie de ―coxinhismo‖ à francesa.
O irônico é que na relativização da barbárie e na culpabilização das vítimas do
atentado os pós-modernos tenham se encontrado com certos grupos de marxistas
ultraortodoxos e com o papa. Para o último, ―matar em nome de Deus é uma aberração.
9 Cf. Florian RÖTZER (2015), ―Ästhetik der Grausamkeit‖, Telepolis 17.01.2015. Disponível em
http://www.heise.de/tp/artikel/43/43886/1.html 10 Cf. Norbert TRENKLE (2015) Gottverdammt modern: warum der Islamismus nicht aus der Religion
erklärt werden kann. Disponível em http://www.krisis.org/2015/gottverdammt-modern 11 Cf. Ernst LOHOFF (2006) ―Gott kriegt die Krise‖, Jungle World 39, 27.09.2006. Disponível em
http://jungle-world.com/artikel/2006/39/18275.html 12 John HOLLOWAY (2013) Fissurar o capitalismo, Trad. Daniel Cunha, São Paulo: Publisher, 2013, p.
110-1.
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117
Mas não também não podemos provocar nem insultar a fé dos outros.‖13 Para os
primeiros, ―a causa da violência é o imperialismo e não o fundamentalismo religioso.‖14
Talvez a falta de ―disciplina‖ do Charlie lhes fosse insuportável, o que se junta a uma
visão de mundo dualista petrificada da época da Guerra Fria: quem luta contra o poder
imperial de alguma forma está comigo, não importa o que faça.15
Hoje, Socialisme ou Barbarie talvez precisasse de um subtítulo explicativo ou ao
menos de uma nota de rodapé. A esquerda sem universalismo secular regride à
legitimação da barbárie. Contra os fascismos, é a bandeira vermelha que tem de ser
erguida.16
13 http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2015/01/16/interna_mundo,466733/papa-
francisco-diz-que-daria-um-soco-em-quem-ofendesse-sua-mae.shtml 14
http://lcligacomunista.blogspot.com.br/2015/01/declaracao-do-clqi-sobre-o-caso-charlie.html 15 Para um argumento elaborado nesse sentido, ver Moishe Postone, ―History and Helplessness: Mass
Mobilization and Contemporary Forms of Anticapitalism‖, Public Culture 18 (1): 93-110. Disponível em português em http://o-beco.planetaclix.pt/mpostone5.htm.
16 Como diz Alain Badiou, que, mesmo critico do Charlie Hebdo, não deixa de chamar o atentado de ―crime fascista‖. Ver Alain BADIOU, Le rouge et le tricolore, http://www.lemonde.fr/idees/article/2015/01/27/le-rouge-et-le-tricolore_4564083_3232.html. Disponível em português (com má tradução do título) em http://blogdaboitempo.com.br/2015/02/04/o-vermelho-e-o-tricolor-alain-badiou-sobre-o-charlie-hebdo/
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118
A ESPUMA, A ONDA E O MAR DA REAÇÃO
Cruzando o fantasma autoritário brasileiro
Bob Klausen
―Custa muito ver que os vultos não são pedra mas sim gente. Esses vadios, meliantes, conspiradores, prostitutas, migrantes, trânsfugas de toda cor e marca, que em outro tempo Sua Excelência destinou àquele lugar, já não são mais gente tampouco, tem-se que desconfiar do que se vê. Vultos apenas. Não se movem, Senhor; ao menos não se movem com movimento de gente, e se por casualidade me equivoco, seu movimento há de ser mais lento que o da tartaruga‖. (Augusto Roa Bastos, Yo el Supremo)
1- Demorou mas a esquerda brasileira chegou a um consenso: há alguns anos
estamos sob o ataque da mais forte reação conservadora desde 1964.1 E é preciso
superar urgentemente diferenças internas para combater um inimigo de classe concreto,
embora difuso e com um momento fantasmático – nada menos que um imaginário
nacional autoritário, muito superior às nossas forças atuais.
2- O poder é por definição conservador e reprodutor do existente. No Brasil,
porém, como há muito observado pelos clássicos desde Machado de Assis, as estruturas
de poder são mais do que conservadoras (personalistas, patrimonialistas,
1 Ver as posições do MST, MTST, PCB, PSOL, PSTU e do sindicalismo (CUT, Conlutas, Intersindical etc.).
Cf. BOULOS, Guilherme. ―Sobre o 15 de março‖ e ―O pensamento coxinha‖ (ambos de 2015: http://controversia.com.br/15761 e http://controversia.com.br/15489); SAFATLE, Vladimir. ―Impeachment é pouco‖ (2015) e ―Escala F‖ (2012) (http://controversia.com.br/15000) ; IASI, Mauro. ―De onde vem o conservadorismo?‖ (2015) (http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/15/de-onde-vem-o-conservadorismo/) Acessos em 22.04.2015.
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territorialistas): são autoritárias e reacionárias até mostrarem eventualmente sua careta
ditatorial, fascista e exterminista. Isso, contudo, sem nunca perder a máscara do
liberalismo, da modernização, do nacionalismo, do moralismo, do cristianismo e do
familismo, encarnados socialmente pela autoproclamada ―gente de bem‖ ou ―gente
direita‖ (em que se ouve quase um ato falho: de bens e de direita).2 Seu telos
fantasmático é paralisar todo movimento social imanente do andar de baixo. Foi assim
em 64, na constelação oscilante de ―liberais conservadores, conservadores arcaicos,
liberais-internacionalistas, corporativistas-estatais, anticomunistas radicais‖, unificando
militares, empresariado nacional e internacional, classes médias urbanas, quadros
político-burocráticos e o imperialismo ianque.3 E está sendo assim após as Jornadas de
Junho4 e as eleições de 2014, conforme uma nova constelação de poder que inclui
funestamente um Partido que veio da esquerda.
3- Historicamente, seria válido dizer que as estruturas de poder no país foram
sitiadas – e que elas têm ―donos‖, estando voltadas apenas a manter os seus quadros
burocráticos, seu balcão de negócios e cargos, seus privilégios e a sua clientela. Uma tal
estrutura histórica tragou o Partido dos Trabalhadores, que por fim se lambuzou nesse
mar de lama e se entregou sem resistência a sua lógica mafiosa de pilhagem social,
servindo ao velho esquema da acumulação feroz, há muito conhecida na periferia. Um
2 Dentre a imensa bibliografia citável que move o nosso raciocínio, cf. em especial: SCHWARZ, Roberto.
Ao vencedor as batatas. São Paulo: Ed. 34/Duas Cidades, 2000; Idem, Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973; FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005; FAORO, Raymundo. Os donos do poder. São Paulo: Publifolha, 2000, 2 vols. Além do bom resumo de: ARANTES, Paulo. Sentimento da dialética (na experiência intelectual brasileira). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
3 REIS, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil. (Do golpe de 1964 à Constituição de 1988). Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 53; R. DREYFUSS, 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 2008.
4 Desde junho de 2013 uma onda conservadora havia prevalecido nas ruas e no clima cultural do país: ver os textos do Número especial de Sinal de Menos (2013): além da entrevista a Jungle World, os textos de Cláudio R. DUARTE, ―O gigante que acordou Ŕ ou o que resta da ditadura? Protofascismo, a doença senil do consevadorismo‖; Paulo MARQUES, ―A revolta e seu duplo‖; cf. também: Alexandre VASILENSKAS, ―O ovo da serpente nacional‖. Sinal de menos, nº 10, 2014.
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governo de ―ex-querda‖, sem mais nenhuma ―molécula de anticapitalismo‖5, que
terminou por terceirizar seu poder para as forças mais reacionárias do Brasil
oligárquico, latifundiário e burguês, em que o pequeno-burguês, real ou imaginário,
sonha em participar.
4- E assim também, ou pior, para as outras instâncias de governo. Em tudo, a
marca de uma verdadeira sociedade sem oposição, mais volúvel e ambígua do que a
diagnosticada por Marcuse na sociedade afluente americana: das câmaras de vereadores
municipais ao congresso nacional mais conservador das últimas décadas, passando
pelos governos estaduais com destaque para o Tucanistão paulista e para os consórcios
de saqueadores de Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro, com apoio maciço das
câmaras, do Judiciário, das polícias, da grande imprensa, das camadas médias. Depois
da curta ascensão da classe trabalhadora ao consumo via crédito, ganhos salariais reais,
incorporação de novos membros da família (em especial as mulheres) ao mercado de
trabalho, alguns programas sociais de inclusão, emprego formal e vários estímulos
estatais ao crescimento econômico, a porta finalmente vai se fechando até despedaçar o
mito da grande classe média.6 No rastilho da crise econômica aberta a partir de 2012-
2013, em que se vê a sombra dos machados da concorrência, do desemprego estrutural
(duplo: do capital e do trabalho) e da crise global numa era de emergência permanente,
o bloco conservador parece querer agora lacrar a porta do clube para sempre e encerrar
um pacto silencioso contra toda transformação qualitativa: uma espécie de
―contrarrevolução sem revolta‖, para parafrasear novamente o crítico alemão.
5- A atual cruzada contra a esquerda visa primeiramente a eliminar a
legitimidade e o poder de todo movimento social das classes subalternas e grupos
5 ―É totalmente vã a procura do sujeito antagônico clássico, pois seu apodrecimento ocorre pela
inexistência de qualquer molécula anticapitalista. A gangrena de um sistema que não cresce mais e só produz dívidas se alastra sendo todos a favor. Enquanto houver planeta para consumir, governos que cortam gastos e liquidam ativos públicos continuarão a ser reeleitos. E os governos autointitulados progressistas da América Latina estão entre os principais devoradores do planeta, sem falar que, como mostrou recentemente uma pesquisa de Lena Lavinas, para o Sul Global, o modelo de Transferências Monetárias Condicionadas (CCT, na sigla em inglês) revelou-se uma eficiente política de financeirização da pobreza‖. (ARANTES, Paulo. ―Entre os destroços do presente‖, Entrevista na revista Caros Amigos, 2015. http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/10/paulo-arantes-entre-os-destrocos-do-presente/ Acesso em 20.04.2015
6 POCHMANN, Marcio. O mito da grande classe média. São Paulo: Boitempo, 2014.
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socialmente discriminados e prejudicados. Depois do estelionato das eleições de
outubro, com o forte ajuste neoliberal, parcialmente forçado por tais interesses, que
ataca investimentos sociais e direitos conquistados, trata-se também de um acerto de
contas terrorista contra o que sai da linha justa da economia totalitária. Pois visa,
segundo os interessados, à retomada do ritmo ―normal‖ da acumulação, principalmente
em tempos de concorrência acirrada – isto é, e aqui eles silenciam, em tempos de crise
mundial e aprofundamento da dependência estrutural, que se tornaram a regra. E com
ela cada vez mais a necessidade de superexploração da força de trabalho e de redução de
custos face aos padrões de produtividade mundial praticamente inalcançáveis pelos
agentes e os lugares perdedores. O admirável mundo novo neoliberalizado tende a
atualizar e normalizar o velho apartheid nacional.7
6- Após os ataques especulativos contra a Petrobras e os bancos estatais, novas
privatizações, sucateamento do ensino básico e superior e da saúde via demolição do
SUS, redução de direitos estudantis e trabalhistas como seguro desemprego, paralisação
da reforma agrária e da demarcação de terras indígenas, depois do PL para a destruição
da CLT via terceirização geral e da recente tentativa de ―flexibilização‖ da definição de
escravidão (!), do PL para a redução da maioridade penal, da difamação e neutralização
política do que sobrou do PT e de tudo o que é tido como entulho ―estatista‖ ou
―populista‖ proveniente da era Vargas, a próxima cartada será evidentemente
neutralizar, criminalizar e destroçar movimentos combativos e independentes como o
MST, o MTST ou o MPL. Poder Legislativo, Judiciário e grande mídia, com Globo,
Folha, Estadão e Veja à frente, querem retomar as rédeas da velha ordem conservadora
sob o figurino atualizado da ―austeridade‖, o novo nome da pilhagem neoliberal. Que
aliás renasceu após as cinzas aparentes de 2008, pois não se trata de uma ideologia ou
de uma simples política opiniática, mas de um agenciamento social e político ligado à
dominação total da forma-mercadoria como determinação da ação e do pensamento
contemporâneos e que se manifesta concretamente como tal reação às conquistas
7 KURZ, Robert. O colapso da modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996; Idem, ―Totalitarismo
econômico – Quem é totalitário?‖ In:__. Com todo vapor ao colapso. Rio de Janeiro: Pazulin, 2004.
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sociais passadas e a retomada do poder de classe.8 Além disso, temas da luta social
reformista como as cotas raciais, os direitos indígenas, a agenda ambiental, a legalização
do aborto e da maconha, as pautas feministas e de gênero já estão também no alvo das
forças mais reacionárias da direita, com sua paranoia securitária e punitivista. Com a
esquerda enfraquecida e com o acúmulo sem par de tecnologias de repressão e controle
social, que vão do descrédito geral do marxismo ou de governos ―bolivarianos‖ (tidos
como ―socialistas‖) à perseguição de professores e conteúdos didáticos nas escolas tidos
como ―doutrinários e ideológicos‖ (não, é claro, dos think tanks neoliberais e capitalistas
em geral)9, das prisões preventivas de manifestantes à legislação antiterrorismo, dos
novos blindados a novos métodos de controle de multidões incluindo drones, além do já
tradicional gás lacrimogêneo, UPPs e caveirões, um novo golpe militar se torna
totalmente desnecessário por prazo indeterminado. Os lunáticos que pedem intervenção
militar ―constitucional‖ (!) conseguirão tornar o que hoje parece ridículo em simples
realidade. Pois na verdade o que está em curso, nesse estado de exceção surdo que vai se
instalando, em que reluz uma vez mais a ausência de revolta consistente ou realmente
ameaçadora do status quo, é mais que a neutralização de toda oposição política: é uma
guerra de extermínio, muito além do pensamento, contra os de baixo. Trabalho precário
em vias de se tornar praticamente absolutizado, desemprego e dessolidarização geral de
classe, desenraizamento social e econômico, estigmatização, exclusão e políticas baratas
de assistência social vão confinando com a lógica do encarceramento em massa e do
massacre diário de sujeitos ―descartáveis‖ e ―sem-valor‖.
7- Com o desmonte ou enfraquecimento da esquerda, a tarefa crítica, ao que tudo
indica, irá se tornar tendencialmente a partir de agora algo semelhante a uma
resistência à ditadura e ao fascismo histórico: nas ruas, nas empresas, nas escolas e
universidades, na mídia, nas redes sociais, nas câmaras legislativas, fóruns de discussão,
tribunais e vida cotidiana. A esquerda terá de repensar sua teoria, seu vocabulário, suas
táticas e estratégias de confronto. Reinventar sua formação de quadros e de bases de
8 Aqui, nos distanciamos um pouco de Harvey, ou de Foucault e Dardot & Laval (apresentados por:
ARANTES, O novo tempo do mundo, op. cit.) e nos aproximamos da crítica do valor de KURZ, ibid. 9 Ver o artigo de R. CONSTANTINO, ―Escola sem partido já!‖, 06.03.2015 – http://naofo.de/3gbp (acesso
em 10-04-2015), e os projetos de lei que estão sendo propostos nesse sentido em Brasília, Rio de Janeiro, Pará e outros estados da federação.
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mobilização, sua agenda política, suas bandeiras e, conforme a paranoia anticomunista
recrudescer, até mesmo suas cores e símbolos. O segredo será colocar no centro do
debate a reinvenção da crítica da economia política numa era de ofensiva neoliberal e de
crise estrutural da valorização enquanto crítica concreta de modelos de crescimento,
hoje fortemente excludentes, e das ilusões de um ―neodesenvolvimentismo‖ catastrófico,
que nem desenvolvimento é, pois cobra subordinações ao grande capital, reforça
dependências e destrói seus fundamentos econômicos e socioambientais – em suma, a
realização de um trabalho sujo velado por ideologias modernizadoras.10 O sinal negativo
de que sem megaendividamento público/privado e hecatombes socioambientais
periódicas não se sai da recessão programada pela estrutura do capitalismo atual – e
isso apenas adiando a hora de crises mais profundas, que já atingem também o centro
do sistema e que dificilmente podem ser evitadas sem cortes e ajustes como os de 2015
(a não ser é claro, e em tese por enquanto, através de uma política de esquerda de aberto
confronto com o capital). O capitalismo vencedor está emperrado e apenas consegue
adiar sua desvalorização e bancarrota – e a ativação de uma luta social de classes
generalizada.
8- Na base da questão da resistência, no entanto, está para ser travada uma
crítica das relações de dominação e de subjetivação em sua especificidade brasileira.
Porque no fundo nunca saímos do grande mar conservador – o país profundo das elites
personalistas e liberais de fachada, o país do homem cordial e volúvel, cruzando amiúde
os espectros de classe, sem qualquer compromisso social com o outro, o que tem suas
origens coloniais e prolongamentos ditatoriais e pós-ditatoriais. Ilusões à parte –
provenientes do espírito crítico formado durante certo tempo pelas universidades
públicas, os movimentos de esquerda e os setores liberais mais esclarecidos em
circunstâncias especiais, ou ainda do otimismo surgido com os governos petistas mais
populares e com a pequena ascensão de setores mais pobres da classe trabalhadora na
fase do reformismo fraco lulista – esse grande mar sempre provocou ondas periódicas
de reação conservadora e autoritária, além da espoliação e da violência cotidianas
10 Cf. o André VILLAR GOMEZ e Marcos BARREIRA, ―A catástrofe como modelo: agronegócio, crise
ambiental e movimentos sociais durante o decênio 2003-2013‖, nesta edição de Sinal de Menos; ARANTES, op. cit.
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sofridas pelos membros do enorme exército de trabalhadores baratos à disposição. Os
―avanços‖, quando se deram, foram sempre nessa areia movediça, com o andar de cima
de certa maneira ―consentindo‖ com a divisão do bolo, também com o fito de que nossa
desgraceira social (na opinião pública, na mídia, principalmente no estrangeiro) não
parecesse mais feia do que realmente é. Esta aliás a especialidade diplomática do
conselheiro Ayres, personagem dos dois últimos romances de Machado de Assis. Por
incrível que pareça, a ensaística crítica nacional, salvo as exceções de praxe11, ainda não
fez muita coisa na direção de identificar e caracterizar melhor as figuras mais recentes
desse mar de reação com fachada liberal, suas ondas e sua espuma autoritária ou
―fascista‖ (ou pelo menos que se assemelham a ele ou às nossas arcaicas figuras de
dominação do passado colonial).12
9- Isso não se trata de um diagnóstico governista como parte da esquerda
pseudorradical gostaria que fosse, sempre com a boa fé populista nas ―massas‖, que
estariam sempre ―vencendo‖. O fato é que a esquerda dormiu no ponto e se deslumbrou
com a aparente pacificação lulista até esquecer do clima profundamente hostil à
esquerda anterior e posterior a 89. Um clima que nunca deixou de ventilar os porões
reacionários ou os discursos liberais dominantes, mesmo durante a ―hegemonia às
avessas‖ da década passada. Se se quiser realmente traçar um diagnóstico do adversário
difuso de classe e da estrutura de poder autoritária, que muitas vezes reúne a elite e o
povão numa amálgama de posições ameaçadoras, temos de traçar uma longa linha de
continuidade, com inserção de descontinuidades importantes, mas que não
transformam radicalmente sua ―essência‖, apenas as repõem num nível mais alto de
violência, mais camuflada e mais misturada com novos elementos autoritários dentro
da lógica darwinista de apartheid social neoliberal. Esta última é impulsionada pela
nova era de concorrência total e cristalizada/reforçada territorialmente pelas
metrópoles bunkerizadas e segregadas, que não apenas ―isolam, confinam e banem o
11 Carecemos de algo como o excelente estudo de Antônio Flávio PIERUCCI, ―As bases da nova direita‖.
Novos Estudos Cebrap, nº19, São Paulo, 1987. 12 É óbvio que nunca tivemos fascismo propriamente dito, mas algo como um ―semifascismo verde-
amarelo‖ e simpatias fascistoides ou autoritárias no governo Vargas. Cf. CANDIDO, Antonio. ―Integralismo = fascismo?‖ in: __. Teresina etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 122.
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outro‖ como vão consolidando, no limite, uma ―mentalidade exterminatória‖.13 Em
especial, aqui, difundem-se os conteúdos ideológicos importados, principalmente pela
Revista de marginais instalada na Marginal do Pinheiros, diretamente da direita neocon
americana e europeia e dos think tanks ultraliberais, que incluem as ideias de
privatização geral e do Estado mínimo, ―meritocracia‖, restrição absoluta da política à
representação parlamentar plutocrática e aos poderes estabelecidos e coisificados, caça
aos direitos sociais e discursos de culpabilização e responsabilização individual pelo
sucesso ou o fracasso no acesso ao trabalho e ao consumo.14 O que hoje se traduz
cotidianamente, por exemplo, na difamação geral de cotistas e bolsistas de programas
sociais tidos como parasitas ou inimputáveis políticos, na crítica carrocêntrica a
ciclovias ou na perseguição às políticas de ocupação de terras ou de moradias no centro
ou em áreas limitadas de alguns bairros nobres (conforme o Plano Diretor de cidades
como São Paulo). A nova direita perdeu a vergonha de mostrar a que veio. Novo no front
passam a ser, então, a afirmação aberta e orgulhosa da direita como Direita
conservadora, a ressurgência do anticomunismo e a estratégia descarada de ―blaming
the poor” e ―blaming the Left‖ (―a culpa é do PT!‖), o que alguns anos atrás ainda
parecia aos sociólogos atentos uma exclusividade norte-americana.15
10- Por isso mesmo, no entanto, a tese da ―onda conservadora‖ precisa ser
criticada, mediada e superada. Porque não se trata exatamente de uma onda,
compreendida como um fenômeno passageiro, que vai e volta sem razão, mas de um
13 KOWARICK, Lúcio. Viver em risco. Sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. São Paulo: Ed. 34,
2009, p. 92. 14 Para uma gênese dessa nova razão do mundo: HARVEY, David. A Brief History of Neoliberalism.
Oxford: Oxford University Press, 2005; ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014. Para uma análise da gestação dessa ideologia na imprensa dominante: SILVA, Carla Luciana. ―VEJA: o indispensável partido neoliberal (1989-2002)‖. Niterói: UFF/UNIOESTE, 2005 (tese de doutorado em História), disponível em: http://www.historia.uff.br/stricto/td/508.pdf (acesso em 01.03.2015)
15 Cf. PIERUCCI, op. cit. Como lembra Kowarick, a estratégia neocon americana consiste em ―blaming the victim, aberta e feroz culpabilização das pessoas que se encontram em precárias condições sociais e econômicas, pois esta situação é vista como fruto de sua própria e única (ir)responsabilidade. Mais ainda: nesta visão do problema, as políticas públicas só serviriam para reproduzir ou aumentar a anomia, a ociosidade, a indolência, a desestruturação familiar, o consumo de drogas e as várias formas de criminalidade‖ (KOWARICK, op. cit., p. 28). Para o autor essa culpabilização é trocada no Brasil pelo descompromisso social. De 2005 em diante, após o escândalo do mensalão e da forte inserção brasileira na economia global, não assistiríamos à ascensão da ideologia meritocrática e da culpabilização geral dos pobres?
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verdadeiro mar conservador formando um oceano aparentemente calmo, liso, com
vasos comunicantes dentro do sistema moldado pela grande ofensiva neoliberal
mundial. É o que permite entender processos sociais em curso na Grécia e na Europa
neofascista, em especial na Alemanha, França, Ucrânia, Hungria e Romênia, e também
na periferia mais exposta às tormentas do livre mercado e suas resistências sociais,
como na Tailândia, Venezuela, México ou Paraguai, muito além das zonas britânica e
estadunidense em que a agressão liberal renasceu, escondendo processos globais
completamente assimétricos e autoritários de ―acumulação por espoliação‖.16
11- No Brasil, tal ofensiva ganha ares mais fascistóides por motivos internos,
cujas raízes se encontram em sua formação histórica. Não se trata é claro do fascismo no
sentido histórico exato, um regime há muito superado17, mas de um movimento que a
ele às vezes se assemelha, a começar pela mobilização de cunho nacionalista,
apartidário, supostamente acima das classes. Afinal, será possível alguém se assumir
como fascista hoje? Por suposto, praticamente ninguém o fará, salvo a fauna neonazista
e neointegralista rediviva, apesar de se ver nas ruas e redes hoje diversas viúvas da
ditadura, fãs de torturadores e ditadores, ―bandeirantes‖ separatistas paulistas e
ultracatólicos da TFP com cheiro de naftalina e hálito de morte, às vezes transfigurados
em uma curiosa versão soft na forma do direitoso simpatizante da ―ditabranda‖ e de
toda velharia da propaganda anticomunista da Guerra Fria. Uma continuidade nessa
linha parece óbvia: basta pensar como foi tratada a esquerda radical na República Velha,
depois na era Vargas ou durante os governos oligárquicos, sem mencionar o seu ápice
no regime de 64, e a forma que os manifestantes dessa nova direita vão articulando seu
discurso de ódio no qual o impeachment de Dilma é apenas um detalhe num projeto
maior de vingança e ―rebelião das elites‖ (C. Lasch). O anjo benjaminiano da história
veria aí uma vez mais nesse continuum uma ―pilha de escombros‖.
16 Cf. HARVEY, op. cit., cap. 6. Para um panorama da nova direita na Alemanha ver o artigo de KONICZ,
nesta edição dupla de Sinal de Menos. Para uma visão geral da direita e extrema-direita nacional, ver os dossiês: http://www.esquerda.net/topics/dossier-221-nova-direita-populista-europeia http://marxismo21.org/direitas-politica-ideologia/
17 ―Trabalhos empíricos mais detalhados mostraram (...) que os verdadeiros capitalistas, mesmo quando rejeitaram a democracia, preferiram governos autoritários a fascistas‖. (PAXTON, Robert O. The Anatomy of Fascism. New York: Alfred A. Knopf, 2004, p. 227).
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12- Na superfície desse mar aparentemente liso, portanto, há o que poderíamos
denominar o homo economicus liberal – constituído por uma certa elite (ou candidata a
tal) flutuante, que inclui em si as grandes personificações do capital até a nebulosa de
microempresários e profissionais liberais, trabalhadores intelectuais e formadores de
opinião, e enfim os setores da classe média real ou imaginária (a chamada ―direita pão
com ovo‖), que cultivaram o fantasma aecista do ano passado. Sua fisionomia é mais ou
menos visível a olho nu nas ruas e nas redes: na série de ―capitalistas sem capital‖,
comediantes remediados hiperindividualistas com alergia a movimentos sociais e
sindicais, uma massa eleitora de tucanos, devota de FHC, Alckmin, Serra ou Aécio, ou
de qualquer direita ―antipetralha‖ tipo Eduardo Cunha ou Ronaldo Caiado, ensandecida
pelo moralismo seletivo anticorrupção (já que no fundo, no fundo ela pouco se importa
com as cifras bilionárias do Trensalão, do Suiçalão ou da Operação Zelotes, ou por
outra, com o desgoverno, o autoritarismo e o caos hídrico-social do Tucanistão
paulista), quando não fãs de privatizações e até da terceirização geral, enquanto a parte
mais elevada dessa turba mostra-se cínica e orgulhosamente como sonegadora de
impostos18, além do mais como turistas que ameaçam a três por dois fugir do Brasil para
Miami, uma ―gente diferenciada‖, racista ou criptorracista, em especial paulistas e
sulistas das ―varandas gourmet‖, em parte ainda fortemente machista e homofóbica,
mas em geral antenada e aberta ao ―Cosmos‖ da Oscar Freire, Alphaville ou Las Vegas,
todos amantes das vantagens da globalização, tida como puro processo técnico à
disposição dos mais esforçados, consumistas vidrados em smartphones e no culto da
própria imagem na internet, criando uma nação orgulhosamente capitalista, liberal nos
costumes e ―democrática‖, inimiga de Cuba, Venezuela ou Rússia (mas nunca de Arábia
Saudita, Dubai, China ou Israel). Uma conjunção terminal de semianalfabetos políticos
(―coxinhas‖) e com ódio da política, em geral especialistas em sua área profissional mas
semiformados e sobretudo acuados pelo medo da queda na dura competição do
mercado. Individualismo de massa, mentalidade narcísica de sobrevivência, darwinismo
social e cegueira histórica se reforçam mutuamente.19 No limite, uma massa que aparece
18 A defesa mais canalha dos grandes canalhas sonegadores foi feita pelo comentarista Paulo Martins em
rede de televisão, em 10-06-2013: ―A sonegação está alta, ainda bem!‖ https://www.youtube.com/watch?v=1kdGNNTYOjICf (Acesso em 10/04/2015).
19 LASCH, Cristopher. O mínimo eu. (Sobrevivência psíquica em tempos difíceis). São Paulo: Brasiliense, 1986.
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hoje totalmente zumbificada pelas redes e a grande mídia golpista (que invocou
ostensivamente as duas grandes manifestações de março e abril), servindo como cães de
guarda da elite, até caírem totalmente sob boatos de internet e visões conspiratórias da
história (p. ex., 42,6% de manifestantes do dia 12 de março de 2015 em São Paulo
acreditam que ―O PT trouxe 50 mil haitianos para votar na Dilma nas últimas eleições‖;
64,1% crê que ―o PT quer implantar um regime comunista no Brasil‖ e 55,9% crê que ―o
Foro de São Paulo quer criar uma ditadura bolivariana no Brasil‖).20 O detalhe do
horror, além das selfies com a PM, é que grande parte dessa classe média ―neoudenista‖
– que votou em Aécio mas que é contra o Governo que está implantando justamente o
seu programa privatizador – tem aceitado marchar ao lado de corruptos históricos,
militaristas, neofascistas e torturadores. São os oportunistas à la Tancredi, d‘O
Leopardo de Lampedusa: ―A não ser que nos salvemos dando-nos as mãos agora, eles
nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo
mude‖.
13- A esquerda e os ―petralhas‖ nesse esquema servem como um bode expiatório
geral: a infame quadrilha de vigaristas diretamente responsável por grandes roubos e
uma crise nacional catastrófica (esqueceram os anos 80 e 90?), que no inconsciente
deve soar como uma espécie violação generalizada da lei e um roubo de gozo.21 Nessa
ocasião, ―falar em fascismo pode até tranquilizar, na medida em que pensamos saber
algo a respeito.‖22 Digamos contudo que esse processo de ―direitização da direita‖
tradicional atualiza ―algo‖ da nossa fantasmática autoritária com seus elementos
parafascistas, acrescentando-lhe componentes neoliberais radicais. E que por isso
mesmo, aliás, torna-se muito mais perigosa para nós hoje do que o fascismo, na medida
em que é muito mais inconsciente e capciosa, pois tal fantasmática só dá bandeira
quando se percebe o processo ora em curso de desmonte de leis e proteções sociais, a
espoliação generalizada do trabalho, o extermínio de pobres e, em seu bojo, a
neutralização de toda oposição política digna de menção. No Brasil, o outro não existirá
20 Cf. a pesquisa empírica coordenada por Pablo ORTELLADO e Esther SOLANO em São Paulo, no dia
12.04.2015. (http://www.lage.ib.usp.br/manif/ Acesso em 20.04.2015). 21 Cf. DUARTE, ―O gigante que acordou – ou o que resta da ditadura?‖, op. cit. Antônio Flávio PIERUCCI
(op. cit.) já havia identificado algo desse processo nos anos 1980. 22 Paulo ARANTES, Entrevista para Sinal de Menos, no segundo volume deste número duplo da revista.
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mais: um processo de liquidação geral da inteligência que desponta como vimos em
tendências paranoicas coletivas, tal como desencadeadas nas democracias de baixa
intensidade no pré- e no pós-2ª guerra, segundo diagnosticadas por Adorno e
Horkheimer em seu livro clássico. O novo ―trabalho sujo‖ neoliberal não é possível sem
zelo colaboracionista de amplos setores, de um lado, e frieza e indiferença diante do
sofrimento alheio, do outro.23
14- A partir desse mar brasileiro constituído refluem ondas conservadoras de
tempos em tempos nas ruas, pelo menos desde 2013, agora manobradas pela grande
mídia e por grupos de centro-direita como o ―Vem pra rua‖ ou pela direita neocon mais
convicta como o ―MBL‖ e os ―Revoltados on line‖, em geral fãs de Reinaldo de Azevedo,
Rachel Sheherazade, Marco A. Villa, Olavo de Carvalho, Joaquim Barbosa e Jair
Bolsonaro, mas também da ideologia de Mises, FHC, Armínio Fraga ou Constantino. Em
meio ao ―vazio de representação‖, diagnosticado por diversos analistas, é esse conteúdo
cretino e autoritário que marcha nas ruas, querendo se impor no grito, com caminhões,
motocicletas e a tropa de choque: que tudo mude para ficar tudo como estava. Por fim,
na crista dessa onda, a espuma mais revolta, às vezes abertamente paranoica: a
extrema-direita e os grupos intervencionistas, de olavetes a adoradores da ROTA e das
Forças Armadas, em geral pedindo golpe militar ―constitucional‖ ou o extermínio puro e
simples do PT e da esquerda em geral (o bicho-papão Foro de São Paulo); grupos que
não são minorias irrisórias como se costuma pensar, além de possuírem um discurso
virulento que se espalha rapidamente.24 Que não nos enganemos, portanto, com essa
graduação: a passagem do mar à espuma furiosa de um tsunami reacionário seria mais
fácil do que se imagina. Para se ter uma ideia, em pesquisa empírica feita no dia 12 de
abril em Belo Horizonte, 50,5% dos manifestantes concordaram parcial ou totalmente
23 HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985; ARANTES, Paulo. ―Sale boulot‖ in:__. O novo tempo do mundo, op. cit. Ver também o ensaio de Jean-Paul SARTRE, ―O que é um colaborador?‖, nesta edição de Sinal de Menos.
24 Basta acompanhar nas redes sociais os grupos pró intervenção militar e de fanáticos das FFAA. Sobre as ondas neofascistas anteriores a 2013, além dos dossiês supracitados, ver também: Fábio Chang de ALMEIDA, ―Neofascismo, internet e história do tempo presente‖ in: Sousa, Fernando P. e Silva, Michel G. (orgs.). Ditadura, repressão e conservadorismo. Florianópolis: Ed. UFSC, 2011. No dia 15/03 tais grupos deram o tom geral nos cartazes e no barulho da rua, tanto é que na segunda manifestação, no dia 12/04, os grupos ―democráticos‖ buscaram se afastar dos outros no espaço das avenidas para ficar menos feio.
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com uma intervenção militar em caso de desordem civil no país25 – o que para muitos,
como se pode imaginar, já estaríamos vivendo, pelo menos quando se toma como fato
uma ―ditadura bolivariana‖ do PT.
15- O que sustenta essa massa de direita nas redes é a expressão aberta de um
ódio social de classe, tão volátil quanto persistente, quando não se organiza nas ruas
(milagrosamente, pois só o faz mediante a bomba incendiária da mídia golpista). Nesse
momento ele se torna um fenômeno de transe coletivo. Noutros termos, um moralismo
cego e seletivo de tintas nacionalistas, que forma uma comunidade unânime diante de
um inimigo nacional, que os identifica como os ―justos‖, os ―pagadores de impostos‖ –
roubados pelo partido de socializadores do alheio e os populistas, pior ainda quando
têm eles a cara do povo. Um transe que lhes permite submergir a consciência numa
massa furiosa, expulsar o ódio de si e concretizá-lo num outro. Pode ser até mesmo
alguém vestido de vermelho ou um sósia do ex-presidente Lula (como no caso dum
repórter espancado por manifestantes). Por um lado, então, temos aqui um
masoquismo irrefletido, dado pela integral submissão ao sistema de poder e exploração
capitalista, por outro um sadismo explícito mas difuso, totalmente conformista e oposto
a qualquer subversão da ordem social. Uma ―simbiose‖ fantasmática gozosa contida no
coração dessa massa, oscilando entre tais posições subjetivas, que lhes dá uma face
dupla: o burguês cínico-voraz por dinheiro e o bom cidadão depenado, eriçado pela
causa nacional, o patrão explorador que é ―explorado‖ e vice-versa, o democrata liberal
que defende oligarquias e sonegadores, colaboracionista secreto da velha direita
latifundiária, terceirizadora e neoescravista, com o que nos aproximamos aliás da
configuração de classe da matriz colonial. Simbiose e ambivalência presentes no ―caráter
autoritário‖ tal como há muito estudadas por Reich, Fromm e os frankfurtianos, que
Machado mais uma vez foi um dos primeiros a apontar com o registro de seus detalhes
locais mais sórdidos na camada dos proprietários brasileiros, por exemplo na filosofia
25 LONGO, Ivan. ―Belo Horizonte: Manifestação contra o governo em perfil conservador e intolerante a
políticas sociais‖, Revista Forum, 14-04-2015. Acesso em 21-04.2015: http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/04/belo-horizonte-manifestacao-contra-o-governo-tem-
perfil-conservador-e-intolerante-a-politicas-sociais/
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non sense do Humanitismo, de tipo social-darwinista escarnecedor26; algo que Sérgio
Buarque identificou, por via conceitual, como o pêndulo do ―homem cordial‖: o
personalismo intimista, o ―horror às distâncias‖, junto ao descompromisso e ao
individualismo mais antissocial; de um lado, o arbítrio sem medidas, de outro, a
obediência cega às autoridades e a indiferença moderna para com os desvalidos. Quem
acompanha a defesa midiático-empresarial do PL da terceirização geral captura esse
fenômeno ao vivo e a cores. A zumbificação golpista então ganha pleno vapor: nas caixas
de comentários de jornais e revistas da mídia burguesa nas redes, um laboratório ao
vivo para entender os novos processos regressivos. Alienação do trabalho, coisificação,
ideologia e pseudocultura associados a um ódio cínico por tudo o que lembre
trabalhador, pobre e movimentos de origem na esquerda. Ao contrário, um amor pelo
trabalho alienado e pela nação plutocrática.
16- Pode sempre parecer que o "transe" moralista-autoritário será menor amanhã
e depois de amanhã, até mesmo – alto lá! – por efeito da aprovação da redução da
maioridade penal, da terceirização geral, da sangria e enterro do PT ou da
criminalização e neutralização final de toda oposição crítica. Não será isso um
laboratório de tendências para- ou protofascistas, que poderão ganhar nova hegemonia
após o interregno da chamada ―abertura democrática‖? Valeria testar empiricamente
um dia, como já sugeriram Safatle e Boulos, a presença de conteúdos da Escala F
(Fascismo) proposta em The Authoritarian Personality:27
1. Convencionalismo. Adesão rígida a valores convencionais, de classe média.
2. Submissão autoritária. Atitude submissa, acrítica diante de autoridades morais
idealizadas do próprio grupo.
3. Agressão autoritária. Tendência para procurar e condenar, rejeitar e punir pessoas
que violam os valores convencionais.
26 Cf. REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo [1933]. Porto: Escorpião, 1973; FROMM, Erich.
O medo à liberdade [1941]. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1983, p. 130-4; ADORNO, FRENKEL-BRUNSWIK, E., LEVINSON, D., SANFORD, R. The Authoritarian Personality. New York: Harper & Brothers, 1950; SCHWARZ, Um mestre na periferia do capitalismo, op. cit.; DUARTE, Cláudio R. ―Literatura, Geografia e Modernização social – espaço, alienação e morte na literatura moderna‖. São Paulo: FFLCH-USP, 2010 (tese de doutoramento).
27 ADORNO et alli, ibidem, p. 228-34, 248-50.
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4. Anti-intracepção. Oposição ao subjetivo, ao imaginativo, ao compassivo e ao sensível-
terno.
5. Superstição e estereotipia. A crença em determinantes místicas do destino do
indivíduo; a disposição para pensar em categorias rígidas.
6. Poder e ―Dureza‖. Preocupação com a dimensão submissão-dominação, forte-fraco,
líder-seguidores; identificação com figuras do poder; sobrevalorização dos atributos
convencionalizados do eu; asserção exagerada da força e da dureza.
7. Destrutividade e cinismo. Hostilidade generalizada, aviltamento do humano.
8. Projetividade. A disposição para acreditar que coisas selvagens e perigosas continuam
no mundo; a projeção exterior de impulsos emocionais inconscientes.
9. Sexo. Preocupação exagerada com ―comportamentos‖ sexuais.
Seria nos grupos de extrema-direita, abertamente intervencionistas e
reacionários – segundo minhas estimativas uns 50 mil entre os 300 mil na maior
manifestação em São Paulo no dia 15/03 –, que teríamos muitos itens da Escala F
contemplados, formando uma onda de sociopatia quase-paranoica. Os setores de
centro-direita (classe média e pobres), mais céticos e indecisos, compartilhariam talvez
de maneira plena os itens 1, 2 e 3. De modo fraco e parcial, os itens 4, 5 e 6, embora
como vimos eles pensem mediante categorias rígidas (a começar pelo próprio ideal do
impeachment e da ideia fixa da corrupção) e teorias conspiratórias.
No todo, advirta-se como tais itens têm se tornado hoje elementos de integração
na concorrência, que espremem a classe média contra a parede, em ―rituais de
sofrimento‖28: valorização de um Eu forte e aguerrido, disposto à competição ferrenha,
submissão às hierarquias e aos líderes tidos como naturais; moralismo de tipo linchador
ou seletivo contra quem pareça inútil, descuidado ou gozar "sem trabalhar"; anti-
intelectualismo e pragmatismo ferrenhos; disposição a pensar misticamente, seja via
dogmas religiosos, espiritismo, livros de autoajuda ou astrologia; e a afirmação de
hostilidade ao diferente, desprezo pelo próximo e mesmo aos direitos humanos.
17- Cruzar o fantasma autoritário brasileiro é superar o imobilismo que ele
28 VIANA, Silvia. Rituais de sofrimento. São Paulo: Boitempo, 2013.
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agencia, institui e difunde como ideologia. É parar a máquina social de precarização,
culpabilização, invisibilização e carnificina através da crítica de suas estruturas sociais e
materiais de reprodução. A crítica da ideologia não significa nada sem o ataque à lógica
do mercado e de seu Estado em fim de linha.
(Outubro 2014-Abril de 2015).
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O OTIMISMO E O PÊNDULO
O duro aprendizado de caminhar em terreno movediço
Douglas Anfra
Estou chocado como estamos embebidos em otimismo, mesmo quando nos
achamos pessimistas.
Os partidários do PT acham que o partido é de esquerda e que haverá uma
mobilização a seu favor, com apoio dos trabalhadores, mesmo com o corte de direitos
sociais e trabalhistas neste momento de crise – cortes tanto de autoria do segundo
mandato de Dilma quanto de ameaças vindas do Congresso.
Os tucanos e a Folha de S. Paulo, que praticamente são a mesma coisa, acham
que controlarão placidamente a massa que estão invocando e acreditam que lhe darão
direção.
E, enquanto isso, militantes de esquerda e de movimentos sociais acham que uma
pauta racional dará forma a uma mobilização com tons profundamente emotivos, que
junta classes diversas, apesar da maior participação da chamada elite conservadora nas
ruas, conseguindo disputá-la.
Basta lembrar que a Folha e a grande mídia conseguiram pela primeira vez
chamar, praticamente sozinhas, gente à rua, sem depender da disputa de pautas contra
uma manifestação previamente convocada por movimentos sociais. No entanto, quem
foi às ruas não se colou nem na esquerda que achava que era dona das ruas, nem na
direita tradicional, que não conseguiu dar forma aos seus desejos corruptos, nem em
nada do que até agora se manifestou. Seu futuro é incerto, não pelas características
pontuais de sua vanguarda visível, que mais deseja manter privilégios que direitos, mas
por uma massa que apoia essas manifestações por outras razões mais concretas e
difusas, desde o aumento da luz e da gasolina até os cortes em direitos trabalhistas,
justamente algo que os diferencia de sua vanguarda e os aproximaria, na verdade, da
esquerda tradicional.
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A vanguarda dos atos pró-impeachment se distingue em blocos, ainda que
encontrem seu palco preferencial na aglutinação caoticamente orquestrada em torno de
algumas características comuns, como certa crença em um mérito exclusivo que
distinguiria os presentes em relação ao resto da população, opondo-se à pauta de
igualdade, defesa de minorias ou de direitos sociais. Sobre essa diferença, cabe notar
como certo senso político os impede ainda de seguir a fundo seus ideais, estratificando-
os ainda mais, com os privatistas, que resistem partir para uma campanha alucinada
pela defesa da privatização de serviços como saúde e educação, como fez o Tea Party
norte-americano, ou pelo fim dos direitos trabalhistas como um todo em nome do
patronato, ou, ainda, com grupos que enunciam o desejo de um golpe militar fundindo a
ideia de um golpe ditatorial como um prosseguimento da democracia.
Por curiosos que sejam, eles encontram apoio numa forma contraditória de
pensar, como fica evidente nas declarações individuais de suas lideranças, bem como na
própria prática, que demanda uma aglomeração social para a defesa de um
individualismo totalmente contrário a qualquer ideia de solidariedade, dando vazão a
uma intensa disputa cultural. Disputa que se coloca nas redes sociais por vloggers,
formas de comunicadores novos e jovens, e boots profissionais divulgando boatos pela
rede. Fica a impressão de que essas manifestações se inspiram em Gramsci, na intensa
disputa cultural, ao mesmo tempo em que acusam esta estratégia em seus inimigos à
esquerda (em geral, cabe lembrar, esses gramscianos são dos menos ouvidos na
esquerda quando levantam a importância da cultura).
Tudo isso traz um quadro novo que assusta e inspira pessimismo. Mas é preciso
dizer que isso é pouco, pois o pessimismo com o momento presente, que se assusta com
o volume de pessoas e as pautas que saem às ruas, volta-se à energia de um momento
específico, que não reflete toda a sua dinâmica. Como diria João Bernardo, a presença
de uma ideologia antissocial e antissolidária não nos deve causar estranhamento, uma
vez que essa característica já é natural das elites, inclusive em sua segregação não
apenas social, mas também racial (ainda que notáveis tentativas de se descolar desta
imagem estejam sendo feitas). Devemos nos refazer desse susto inicial, pois ele não dá
conta do perigo maior, relativo ao que poderia acontecer se parte dessa direita
conseguisse crescer entre os pobres, caso se separe de pautas mais impopulares e
escolha outros parceiros – atitude que parece ocorrer entre os (ex?) aliados do PT, que
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começam a se separar optando por um caminho mais puro e autônomo à direita,
somando-se aos outros atores presentes nas manifestações que ganham cada vez mais
autonomia.
Retornam, assim, as palavras de ordem que associam de modo analógico aquilo
que assusta na palavra fascismo, ignorando sua particularidade, pois o que deve
assustar no fascismo, a possibilidade de sua atualização, não é que uma elite ou certos
grupelhos sociais tenham uma ideologia próxima do fascismo – seja a teoria econômica
do austro-fascismo, seja o eugenismo nazi ou a mobilização pela ordem social e política
sob uma ideologia nacionalista, ou, ainda, uma organização social segundo uma ordem
religiosa e moralista como aquela do salazarismo. O que deve assustar é o possível fato
de que aqueles que sofrem com tal regime ou seus similares se mobilizem por ele. Isso,
sim, deve ser observado com atenção.
Passam os ciclos de mobilização e de tensão como pêndulos com amplitudes
maiores e menores, assim como se intensificam os fenômenos dentro dos períodos, e
isso nos assusta. No entanto, é muito pior se notarmos como há um deslocamento de
todo o plano para a direita, quando aparentemente o movimento cessa após as
oscilações da opinião pública. Isto aparentemente ocorre agora após o ciclo de atos
―anti‖ e ―pró‖ Dilma e da subsequente reação à PL 4330 da terceirização geral, que
provocou manifestações e reações nas redes sociais que chegaram inclusive a preocupar
os parlamentares do PSDB. Nesses casos, há uma oscilação da sensibilidade social de
um sentido ao outro, variando a pauta, que é disputada de momento a momento,
somando-se a uma restrição do espaço político em que essas ações e reações ocorrem.
Mas se notamos essa sensibilidade em toda sua amplitude a partir da frequência de
disputas culturais e políticas entre a direita e a esquerda, expressas nas mudanças de
pauta, notamos uma mudança de sensibilidade da opinião média das pessoas, o que foi
notável em relação a temas recentemente trazidos pelos antigos aliados do governo
agora assumidos como oposição. Um exemplo é a pauta da redução da maioridade
penal, considerando a mudança de sensibilidade das pessoas em relação a esses temas
em um passado não tão distante.
Notamos as oscilações curtas sem perceber todo um campo que se desloca e em
disputas nos terrenos de comunicação, cultura e sociabilidade, o que impede que as
pessoas consigam associar as informações, senão de modo contraditório, ao serem
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alimentadas por teorias da conspiração, que mudaram no geral a sensibilidade política
da opinião pública, enquanto a do próprio governo igualmente se deslocava. Assim,
pautas tradicionalmente de direita passam a ter o apoio de quem já foi considerado de
esquerda, sem supostamente contradizer seus princípios, chegando mesmo a ganhar
força para alterar as características dos próprios partidos. Algo como uma superfície
móvel serve de apoio ao pêndulo que oscila atraindo a nossa atenção enquanto ela se
desloca para um lado ou para outro.
Mais: ocorrem, ainda, ―infiltrações‖ de pautas conservadoras em partidos e
movimentos de esquerda diversos – infiltrações das quais quase ninguém pode se
acreditar livre para acusá-las no outro. Como exemplo, o caso do cabo Dacíolo pode nos
fazer pensar sobre como a aproximação de uma liderança popular trouxe problemas ao
PSOL, quando o partido descobriu que, apesar do apoio à sua liderança numa pauta
sindical, aparentemente não havia afora isso nenhuma concordância com ele em mais
nenhum pressuposto político. E mais: que formas religiosas, culturais e outras
identidades formam o seu repertório político e que, assim, a identidade de esquerda não
é algo claro ou natural, e, sim, uma construção política e social. Pensar isso leva a
questões como a de que talvez a identidade de classe possa ser suplantada por outras, e
que não é sequer automática (talvez a vitória definitiva de algo próximo ao que defendia
Althusser quando, ainda mais radical, dizia que não existe a classe em si mesma senão
quando existe como organização e consciência, e que nada garante um resultado
positivo para a classe).
Curiosamente, dizer isso parece inaceitável, pois para muitos ainda é um choque
a ideia de que movimentos de direita e conservadores tenham iniciativa, protagonismo e
inserção popular, o que se explica em parte por um isolamento da esquerda burguesa
apoiada em princípios apenas em relação às classes populares, com as quais raramente
se relaciona senão conceitualmente. Há outros motivos palpáveis, como o possível medo
de pensar essa questão aterradora, que envolve a possibilidade de uma mudança radical
do campo de disputa política na cultura, nos direitos individuais, no trabalho de base
etc. Isso tudo pode ter muito mais importância do que parece hoje, e talvez seja um
importante flanco de combate para a esquerda que milita e faz trabalho de base, apesar
de estar diretamente exposta a estas contradições, como a constante redefinição sobre o
que é a esquerda hoje, onde ela se insere e o que é possível fazer.
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Pensar sobre essas manifestações envolve algo difícil de compreender para quem
se nega a identificar os pontos que ligam as articulações políticas da conjuntura
presente, pensando apenas em momentos de irrupção de protestos e manifestações.
Antes que ocorram, é certo que algo já está acontecendo nas estruturas sociais, quando
os processos se desdobram e os atores se posicionam e se mobilizam. Quando eclodem
as expressões de massa, em geral, sua importância não está no palco em que se
manifestam, que é importante apenas por revelar as suas articulações, apoios e
expressar sua força. Nesse momento, pouco resta para a ação política pontual que deseja
ser capaz de interferir em seu curso. Quanto a isso, o exemplo de junho de 2013, que
talvez faça parte de uma conjuntura que passou, mostra como nem os governistas nem a
esquerda como um todo conseguem assumir que o MPL teve o Kairós, o senso de
oportunidade ligado a uma conjuntura que mudou radicalmente desde o momento em
que o prefeito Fernando Haddad se recusou a baixar o preço da passagem, o que
deixaria o ônus do aumento exclusivamente a Alckmin, que, ao final, baixou-a primeiro.
Após isso, seguindo longa campanha, a luta contra o aumento teve conjunções
inéditas para mobilizações de esquerda (modificando nossa relação com a forma do
protesto, da iniciativa e do volume de pessoas) e viu-se a iniciativa da direita disputando
os sentidos das mobilizações por vários caminhos, desde insuflar um pacifismo
imobilista que defendia a violência da PM, ou trazer à tona símbolos da unidade
nacional ou gritos contra a corrupção enquanto se defendiam partidos corruptos, dando
lugar a um cabo de força entre esquerda e direita com consequências inéditas para o
campo político geral. A sabedoria do movimento, cabe lembrar, deveu-se à capacidade
de encontrar um limite no ponto exato de esgotamento dos demais atores políticos de
2013, igualmente atônitos, como no balanço de um pêndulo, sem que se rompesse o fio,
e cujo movimento era alimentado por um novo motor emocional na juventude, o ódio. E
que, não se deve esquecer, por um "istmo", quase tudo se perdeu.
Quem esteve na Avenida Paulista no dia da suposta comemoração da vitória e da
última disputa simbólica entre os demais atores do processo, e que testemunhou a
expulsão dos partidos socialistas e movimentos sociais sabe do que estou falando: essa é
uma disputa política que envolve um deslocamento do senso comum à direita e com
grupos organizados ainda mais à direita ganhando força. Cabe compreender cada vez
mais qual é o sentido desse deslocamento ideológico, que não é de hoje, e atualizar
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nossas referências para as lutas políticas futuras, sabendo que estamos pisando em um
chão movediço.
Resumidamente, o importante a reter não é exatamente aquilo que nos deixa
pessimistas ou otimistas em eventos pontuais, mas é pensar no modo como ocorrem
esses eventos e o sentido que adquirem a partir de seus pressupostos culturais e
políticos, que não são dados, nem são óbvios, pois são construções sociais. Esse foco
mais amplo deve ser seriamente considerado nas próximas lutas, pois é ele que
determina o sentido político do apoio ou da recusa de nossas pautas em atos e
manifestações, muito antes destas ocorrerem.
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DESTINOS DO ÓDIO SOCIAL
E A ENCRUZILHADA DA ESQUERDA
Bruno Klein
As manifestações do dia 15 de março deste ano foram marcadas, de modo geral,
pelo antipetismo – hoje a senha para um anticomunismo baseado em fantasias
conservadoras. Houve de tudo: da insatisfação que não contesta a legalidade
institucional ao clamor por intervenção militar, passando pelo pedido de impeachment
da presidente petista – este que deu, no fim, o tom político majoritário à massa
encolerizada.
Um juízo apocalíptico: se ocorresse o impeachment, o ódio social poderia
encontrar satisfação, mesmo que ilusória. Sem o impeachment, para onde vai esse ódio?
Existe a possibilidade de que ele que seja recalcado na forma de um
comportamento cada vez mais violento e ressentido no cotidiano. A frustração do desejo
de transgredir a legalidade e mudar o céu da política a todo custo pode fornecer uma
aparência subjetiva de legitimidade para todo tipo de atrocidade no chão da vida social.
O indivíduo ressentido pode considerar que se esgotaram todos os meios esclarecidos;
pode chegar enfim à conclusão de que aqueles meios falharam e de que agora cabe a ele
e a seus consortes fazer com as próprias mãos, e na marra, o que entendem ser a solução
final. Isso em um contexto cultural regredido, que exalta as várias soluções finais
cotidianas, exemplares, embora a uma sempre se siga outra. Essa situação gera um
clima de guerra subterrânea e um entusiasmo guerreiro – o que, compartilhado, instila
coragem e autolegetimação.
A esquerda talvez deva se preparar – aqui, no modesto sentido de prever o pior –
para as mudanças que esse clima de guerra social deflagrada pode instalar. Se a
burguesia e suas franjas médias se derem conta de que a disputa política está viciada por
um mar de ignorância – que ela atribui à massa de estropiados na base da sociedade –,
elas podem não arquitetar um programa político próprio, nem mesmo um golpe, uma
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vez que o governo petista oferece as garantias básicas para a satisfação da classe
dominante, sobretudo. Essas garantias incluem mecanismos específicos favoráveis à
acumulação de capital – o financiamento dos famigerados players internacionais por
meio do BNDES, a política de priorização do superávit primário, etc. A hipótese de
golpe, não obstante muito alardeada, parece por isso uma veleidade. Elas podem, na
verdade, despejar todo ódio e ressentimento acumulados nessa cruzada fracassada
sobre seus subalternos e assemelhados. O funcionário da pequena loja de roupas ou do
supermercado na periferia pode estar na mira, bem como sua rede de amizades e seus
semelhantes. O gerente de uma unidade de uma multinacional, um tipo que se deve
supor vociferando contra os comunistas vagabundos na Avenida Paulista no dia 15 de
março, poderá encarnar o pior dos carrascos. No almoço com o responsável pelo setor
de RH, um conluio contra quem aparecer de vermelho. Tem-se a sensação de que, se
não foi possível impedir o PT e, em um delírio associativo, a esquerda, restou a opção
pelo ostracismo social de sua base e organizações. Essa situação reabriria a atávica caixa
preta do sadismo social das classes proprietárias brasileiras, acrescidas do moderno
gerente identificado à autoridade da vez.
**
Por que talvez a esquerda deva se preparar para um conflito sujo desse tipo?
Como pode ser razoável esperar toda forma de violação, assédio, demonstração de força,
humilhação etc., nos locais de trabalho e fora deles, pode também ser razoável que os
dominados se sintam compelidos à identificação com os seus algozes de classe. Uma
identificação transida por fantasia, sem dúvida, mas que em um contexto cotidiano
poderia ser encarada como uma salvação ante a violência e o arbítrio. Alguém poderia
supor que se trata de uma questão de sobrevivência – mental e material. Terminado o
período da conciliação política lulista, caracterizado pela mediação política
―conciliatória‖, ela pode degenerar em adesão social pura e simples a uma classe
dominante cuja ideologia já não reivindicaria o menor verniz de civilidade, fornecido
pelos apanágios da política, do direito e da razão.
Resta a pregação democrática à esquerda? A situação é curiosa. Com essa espécie
de ódio social, o consórcio da classe dominante faz a experiência da falsidade e dos
limites da política. Mas ela elabora essa experiência de uma maneira peculiar. Ela
reativa a sua ilusão retrospectiva da dominação pura e simples como a "verdadeira
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origem" de si e a única fonte da ordem. Com isso, a tradição do senhoriato colonial é
trazida ao presente, como numa epifania religiosa que revela a verdade há muito
esquecida. Tudo se passa como se a ordem social parecesse depender de sua capacidade
de mando. Mas também essa epifania é uma ilusão, já que nela a classe dominante não
pode usurpar a função de sujeito do capital, impotência que retroalimenta a ilusão sobre
sua origem e capacidade ordenadora com ainda mais frustração. Quanto menos sujeito
ela pode ser, mais violenta se torna a classe dominante brasileira. Dado o contexto
mundial de crise de valorização do capital, a fórmula se inflama.
Se essa hipótese tem um grão de verdade, a esquerda, na base da sociedade,
também precisa fazer a experiência da falsidade e dos limites da política. No entanto, ela
precisa fazer a sua própria elaboração dessa experiência. Diferentemente da classe
dominante e sua claque, a esquerda brasileira não terá nenhum fantasma atávico para
orientá-la. Ela não tem nenhuma capacidade de reavivar seu passado glorioso, já que
este para ela é, em grande medida, um trem desgovernado de violência. A elaboração
daquela experiência que lhe cabe passa pela perda de ilusões que a assombram no
presente.
Em um primeiro momento, tal elaboração tornaria incontornável admitir o fim
do lulismo. Essa é uma ideia já repisada, mas não é nada de banal. Implica decretar a
falência de uma forma de mediação política, o que, por sua vez, significa um abalo
sísmico nas expectativas políticas que orientaram a ação de grande parte da esquerda.
Em um segundo momento, aquela elaboração pode levar a uma lição – que, se não é
nova, precisa ser revisitada. A esquerda pode se confrontar com a necessidade de sua
independência de organização e de ação. Disso se seguiria uma volta ao chão da
sociedade e uma recusa estratégica à gestão do Estado. Estratégica, pois o momento é
defensivo e a institucionalidade dificilmente poderá ser jogada pela janela. (Uma
negação deste tipo seria fruto de uma nova elaboração da experiência, cujos
pressupostos, porém, não estão dados na experiência atual.) Essa situação, contudo,
pode abrir uma brecha histórica capaz de articular presente e futuro no aqui e no agora.
Por que essa é uma possibilidade? Porque uma elaboração da experiência no sentido
aludido faz o luto do que morreu; engaja-se em uma nova tarefa que, em princípio, não
repete as expectativas anteriores como mania; e, por fim, com o pessimismo que prevê o
pior, obriga a uma luta de vida e morte no plano imediato. Essa projeção para fora da
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máquina de massacrar gente, que é a história brasileira, difere da projeção retrospectiva
que anima e caracteriza a elaboração da direita que vai às ruas.
Tudo somado, as enrascadas dos governos petistas, tendo contribuído para
colocar os de baixo em xeque, como que pressionam o trabalho de elaboração coletivo
tanto quanto o desejo regressivo das forças da direita. Nesse momento crepuscular das
ilusões de todos os lados, talvez a esperança esteja em que o ódio social dos
dominadores encontre um adversário à altura.
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“FOGO AMIGO”
A incubadora petista da avalanche conservadora
Paulo Marques
O presente texto, exposto em aforismos, foi redigido no calor das discussões
geradas pelos intensos movimentos de 2007 e 2008 no Brasil. O leitor deverá se
perguntar sobre por que o mantivemos intacto, e não o atualizamos, dado que diversas
informações já estão ultrapassadas. Na verdade, o texto expressa um todo orgânico que
é testemunha dos debates engendrados dentro dos movimentos de base, oposições
sindicais e grupos de estudos de teoria crítica, naquele preciso momento – o segundo
governo Lula. Vai exposto aqui de forma inalterada, na medida em que ele esboça os
―andaimes‖ nos quais se erigiram as atuais condições de crise institucional.
No ano de 2003, o início do governo Lula foi marcado por reformas
previdenciárias que atacavam os aposentados e trabalhadores, bem como pela criação
de Fundos de Pensão como parte fundamental – e não midiatizada, intencionalmente –
destas reformas. Surgiram fortes contestações e greves de servidores públicos, e ocorria
a primeira cisão interna no governo do PT e na base dos movimentos que o apoiavam.
Porém, em 2005, com a eclosão do escândalo do "mensalão", pela primeira vez ficava
evidente a formação de uma camada de tecnocratas (um capitalismo sindical), e uma
primeira bolha de eclosão da crise da política institucional e do Estado. Isto nos rendeu
uma análise intitulada “A crise política é a crise da política”, publicada em 2005 no
Caderno Político da APROFAT (Associação de Professores de Filosofia do Alto Tietê). O
texto foi bem recebido em círculos de teoria crítica; porém, recebeu críticas importantes
de alguns marxistas radicais, conselhistas e autonomistas (verdadeiros autonomistas de
base classista, como João Bernardo e membros do Movimento Passe Livre, vale bem
dizer, não alinhados ao deslumbre pós-moderno com “multidões” que perpassa certa
corrente que se reivindica ‗autonomista‖ nos dias atuais.). Estas críticas apontavam para
a necessidade de uma análise embasada também em uma leitura da composição de
classe do governo petista, e não apenas em especulações abstratas sobre ―dominação
sem sujeitos‖ e categorias mercantis fetichizadas como entes em si. Era necessário falar
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dos homens, nos bastidores do espetáculo das coisas. Tratava-se da urgência de analisar
como estas categorias e o processo de crise são concretamente veiculados, como
relações entre pessoas mediadas pela forma-mercadoria.
“Algumas Considerações sobre o PT e o Governo Lula” surgiu, então, como um
aprofundamento e reescrita daquele ensaio anterior, incorporando e fundindo a análise
dos conteúdos e formas das relações sociais – porém, o texto circulou de mão em mão
em discussões e não foi formalmente publicado. Ainda, cabe acrescentar a criteriosa e
importante contribuição do recentemente falecido companheiro Dorival Macedo,
engenheiro desempregado, teórico afiado e militante comunista histórico, que rendeu
contribuições originais de debate que aqui foram incorporadas – junto aos debates com
mais duas pessoas, ambos ex-fundadores do PT expulsos em 1984; bem como as
discussões de membros de oposições sindicais docentes, do anarquismo organizado e a
ala independente da Intersindical. Assim, estas teses são produto de intensa discussão
coletiva e destas contribuições e análises valiosas, das quais o autor é apenas um
compilador.
O leitor notará que o texto expressa temáticas que já foram ultrapassadas. O
escândalo do ―mensalão” deixou temporariamente de ser grande manchete, quando se
iniciou o crescimento econômico acelerado. A crise capitalista eclodida em 2008 se
sucedeu a um período de intenso crescimento chinês e configuração dos BRICS, no qual
o governo brasileiro embarcou como ―carona‖, atraindo capitais com uma produção de
baixos custos e a formação de infraestruturas pelos planos PAC e IIRSA. Após a gestação
do capitalismo sindical baseado nos Fundos de Pensão e Participação nos Lucros e
Resultados, neste período engendrou-se um capitalismo de empreiteiras, guindado por
financiamentos habitacionais e capital fictício; e uma tendência do governo brasileiro
em se firmar na exportação de mercadorias energéticas, passando do etanol à obsessão
pelo pré-Sal. Configurava-se uma tecnoburocracia empresarial-sindical e uma espécie
de imperialismo brasileiro sobre a América do Sul e a África Ocidental.
As reformas sindical e trabalhista foram postas de lado – possivelmente devido à
pressão dos movimentos de 2007 e 2008; porém, o reconhecimento das Centrais e a Lei
das Centrais Sindicais cumpriram perfeitamente o papel de enquadramento sindical em
nível nacional. Mesmo os setores combativos ligados à Conlutas e Intersindical, foram
seduzidos pela possibilidade de criar um aparelho que recebesse verbas do Estado.
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Desde 2006, esta opção se colocou na fundação da Conlutas (CONAT), na qual
prevaleceu, da mesma forma que nas origens da CUT, o centralismo e o direcionamento
à formação de uma direção burocrática, em detrimento das mobilizações e organização
de bases. Foi esta cisão que levou muitos grupos e movimentos a abandonar a Conlutas,
e ao estabelecimento da Intersindical. Esta última depois se cindiu em duas
Intersindicais, uma das quais enfatizava a organização de base e calendários de ação
conjuntos, e a outra, ligada ao PSOL, a formação de uma Central Sindical oficial. No fim,
a Conlutas registrou-se no Ministério do Trabalho, tornando-se CSP-Conlutas, e
configurando uma central reconhecida juridicamente pelo Estado – e esvaziada de
movimentos de base. A Intersindical, cindida, enfrentou crescentes dificuldades.
Na verdade, o êxito explosivo das mobilizações nacionais de 2007, contra
tentativas do governo petista de modificar a legislação trabalhista (com leis de
flexibilização e contratação autônoma), seguido pela traição das burocracias sindicais –
especialmente da direção da APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do
Estado de São Paulo), que aceitou a criação de um fundo de pensão e desmobilizou o
epicentro de um enorme movimento grevista docente prestes a se iniciar e que dava
sustentação às greves do funcionalismo público paulista, das universidades estaduais e
de todo o movimento pelo país, que englobava ocupações de terras e reitorias – levou as
direções sindicais de esquerda a trocar a unidade pela base por um projeto de
construção de aparelhos burocráticos e Centrais Sindicais, o que determinou a
desmobilização de uma nascente oposição de esquerda ao PT, e a absorção do
sindicalismo de oposição restante pelo Estado. Desde então, as esquerdas deixaram um
espaço vazio e passaram de forma regressiva e reativa a cada vez mais defender (ainda
que indiretamente) o governo do PT como um ―mal menor‖ face à ascensão da direita,
gravitando ao redor deste – o que foi agravado pela debilidade em criar mídias
alternativas autônomas, fato que levou a esquerda nacional a se pautar pela propaganda
da blogosfera petista na internet.
Prevíamos, nas discussões daquele momento, uma escalada fascista a nível
nacional como reação à crise capitalista e fruto da desmobilização das lutas de classes.
Cabe lembrar que eventos aparentemente insignificantes – como o episódio das vaias
sobre Geisy Arruda pelo seu vestido curto, já eram significantes fatores que indicavam
um fascismo difuso em incubação no imaginário coletivo popular.
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De fato, esta escalada fascista ocorreu e se manifesta com toda a força no
presente momento – na medida em que as novas direitas políticas ocuparam o vazio na
sociedade deixado pelo PT e pelas esquerdas que gravitaram ao redor deste. O PT trocou
a crítica do capitalismo por um projeto ―desenvolvimentista‖ de gestão de crise e do
capital. Abandonou as lutas sociais de base, para se integrar ao aparelho de Estado,
formando uma ampla camada de novos-ricos e gestores. Dando aplicação a uma certa
leitura muito popular de Gramsci que preconiza a ―marcha por dentro das instituições‖ e
a ―disputa pela hegemonia‖, o movimento social de bases foi desmobilizado e seus
quadros em grande parte absorvidos para dentro dos aparelhos gestoriais – deixando a
classe trabalhadora e a sua resistência enfraquecidas e desorganizadas. O que restou da
esquerda radical, fragmentou-se cada vez mais em seitas que deliram ao sabor da
ideologia como falsificação e autoengano, ou em disputas de direção – o que agrava o
seu afastamento em relação às bases de trabalhadores. Igrejas pentecostais adentraram
a fazer adeptos de forma acelerada, por justamente captarem as malhas de solidariedade
comunitárias existentes na base da população, e fazerem o trabalho de bases que a
esquerda não faz, com uma linguagem muito mais acessível do que o ideologismo das
seitas políticas. Além disso, a promessa da abundância e enriquecimento oferecida pela
“teologia da prosperidade” é muito mais sedutora do que o ―socialismo da miséria‖ da
renúncia cristã ascética e franciscanista preconizado pelas esquerdas. Estas, como
―generais sem exército‖, deixam a luta de classes para se dispersar e fragmentar em
aspectos multiculturais, corporativismos diversos e discursos moralistas – ou se lançam
ao desespero de greves ou ocupações suicidas e reativas sem adesão de bases,
expressando pragmatismo e ativismo cegos. Além disso, a popularização de uma
pseudofilosofia e de “teóricos-pop” da direita com as formulações mais absurdas
possíveis expressa uma indigência intelectual que se tornou possível pelo ―silêncio dos
intelectuais‖ e o vazio provocado pela administração de crise petista. Assim, criou-se
uma grande fantasia, onde o PT é visto como tudo aquilo que ele não é: uma ―ameaça
comunista‖ a ser combatida pela ―nação em cólera‖. Ante o delírio da nova direita, boa
parte da intelectualidade de esquerda e a blogosfera governista retroalimentam este
mesmo delírio fundamentado nesta mentira comum: de que o PT seria uma gestão de
―esquerda‖. O único antídoto para a histeria paranóica emotiva e ficcionalizante que
tomou conta do país seria colocar as coisas no seu devido lugar e dizer o que deveria ser
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dito: que o PT não é de esquerda e muito menos socialista ou comunista, nem
aqui, nem na China.
A classe trabalhadora, ante o fracasso das ondas de lutas de 2007-2008, foi cada
vez mais absorvida pelo discurso do ressentimento, pela despolitização e uma frustração
do homem comum, que passaram a alimentar a direitização e os discursos de ódio
atualmente presentes. O PT, pelo seu projeto de governabilidade, aliou-se com o que
havia de mais retrógrado na sociedade brasileira – desde bancadas evangélicas, até
empreiteiras que financiaram a Ditadura Militar, o malufismo e ex-membros da
ARENA, além do fisiologismo do eterno ―centrão‖, o PMDB. Assim, como Maurício
Tragtenberg já descrevia em 1954 em seu artigo “Rússia atual: produto da herança
bizantina e do espírito técnico norte-americano” o processo de burocratização da
Rússia Soviética, de forma similar ocorreu uma “pseudomorfose” dentro do governo
petista. O termo, oriundo da geologia, descreve o processo pelo qual uma rocha é
esvaziada de seu conteúdo e preenchida por dentro por sedimentos de outra rocha
diferente, que se solidificam, consolidando uma rocha que se esconde sob a casca de
uma mais antiga. Tragtenberg usava esta metáfora para descrever a burocratização do
Partido Comunista da União Soviética. Esta mesma metáfora pode descrever o processo
do PT – que nunca deixou de ser um partido ―católico‖, e ―pragmático‖ ao estilo do
sindicalismo de resultados americano – que ao desmobilizar as lutas e organizações de
base dos trabalhadores, e se integrarem como gestores ao Capital, incubaram dentro de
seu governo o fundamentalismo religioso, o fisiologismo oportunista do PMDB, a
extrema-direita e o conservadorismo, que começam a romper a casca do ovo da
serpente. Assim, o PT incubou a serpente que começa a sair e querer livrar-se dele.
Tornou-se a ―Geny‖ nacional a ser apedrejada, e perigosamente permite que as
esquerdas se tornem o bode expiatório da crise, abrindo espaço para um perigoso
fascismo difuso, multicultural e ultraliberal na economia. Muito deste processo já podia
ser depreendido e antecipado desta análise que agora publicamos. Cabe fazer a pergunta
– se as esquerdas sairão finalmente da barra das saias do PT, se assumirão um
calendário de lutas práticas e concretas, fundadas na unidade pela base e um calendário
próprio, permitindo sua refundação, e a construção de um projeto radical antimercantil,
ou se naufragarão junto ao PT e seu projeto em colapso.
***
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Algumas considerações sobre o PT e o Governo Lula:
O PT como derrocada das esquerdas no Brasil
(escrito em meados de 2008)
1) O PT se desenvolveu dentro da perspectiva de gerir a economia capitalista, não de
superá-la. Sua crítica social não superou os limites do distributivismo e nem
mesmo a noção comum de socialismo como gestão estatal do Capital. Assim, o
partido e a burocracia sindical da CUT que lhe serviu de base funcionaram como
uma escola de gestores para assumir cargos burocráticos. E os teóricos do
partido, em peso, atuaram como ideólogos do desenvolvimentismo. A leitura
marxista feita nesse âmbito interpretou a teoria econômica de Marx no sentido
positivo, as categorias do capital como categorias a serem geridas, e
não superadas. O radicalismo inicial do partido não foi de fato uma negação do
mundo existente, mas uma crítica distributivista cega às formas de produção: a
produção mercantil, a lei do Valor, foram naturalizadas. Abriu-se mão de uma
leitura negativa (superadora), para uma leitura positiva (administradora) do
Capital.
2) O PT, como conseqüência, fetichizou a democracia liberal e orientou
gradualmente todo o foco de ação para a conquista de cargos dentro do aparato
sindical burocrático existente, parlamentos e depois no executivo. E o corolário
do processo é a atual gestão de empresas estatais, de ações e Fundos de Pensão. A
estratégia foi a entrada dentro do sistema, a ―colonização‖, o aparelhamento
infiltrador das instituições capitalistas pelos quadros que se convertiam em
gestores e saltavam das burocracias sindicais e acadêmicas (que lhes serviam de
escola e trampolim) para a gestão econômica. A democracia parlamentar foi
transformada numa vaca sagrada cujo objetivo seria a conquista da hegemonia.
Abriu-se mão da crítica das formas sociais, para se atribuir tudo a problemas de
gestão, problemas políticos e de hegemonia ideológica. A possibilidade de crítica
radical das estruturas sociais e das instituições foi deixada de lado em favor da
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―longa marcha dentro das instituições‖. Tal processo só poderia abrir espaço aos
carreirismos e o oportunismo.
3) O processo do PT está inseparavelmente ligado ao da CUT e do Novo
Sindicalismo do ABC. A evolução capitalista do PT e da CUT não representaram
uma ―vitória‖ das lutas operárias do ABC nos anos 80, mas sim a derrota e
destruição destas. A CUT se construiu sobre a destruição das comissões de
fábrica e a instrumentalização dos movimentos de base. Houve, desde o
princípio, um intenso conflito entre o grupo verticalista e cupulista, e o
movimento de base das comissões, mais horizontalista. No final, venceu o grupo
que hoje está no poder, que optou por entrar na estrutura sindical existente, bem
como nas instituições existentes. O Novo Sindicalismo logo envelheceu, e o lema
―CUT pela base‖, que era defendido no início não passou de mais um slogan. A
CUT, que pretendia superar o velho modelo sindical, dos Joaquinzões e Ari-
Campistas da velha guarda pelega do corporativismo de origem getulista, acabou
repetindo as mesmas formas de organização e práticas, mas com um discurso
mais classista, apenas.
4) Nasceu uma burocracia sindical, que serviu de base concreta para a edificação da
burocracia partidária. Mas, por muito tempo, por ser oposição, estar fora do
poder, faltarem recursos materiais e por ainda haver intensos movimentos
populares de base, tanto a CUT como o PT ainda não se degeneraram em passo
tão adiantado. Havia ainda muito de conteúdo de base ali presente. Este processo
de integração do partido-movimento ao Capital se deu lentamente e não sem
conflitos. A radicalidade das bases ainda forçava a representação a manter
alguma coerência ou alinhamento de esquerda, por muito tempo. A partir deste
ponto, se abrem dois caminhos diferentes: o caminho do movimento da base
(descendente) e o da representação (ascendente). A representação entrou numa
relação de oposição com as bases. O enfraquecimento e apassivamento das bases
fortalecia a representação. Ao mesmo tempo, a representação contribuiu
fortemente para a destruição dos movimentos de base, pois eram um obstáculo
ao seu projeto gestorial. O processo de refluxo da base foi o processo de ascensão
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das representações, que chegaram ao poder no momento em que praticamente as
bases não mais se apresentam organizadas.
5) Como percebeu Mauricio Tragtenberg em 1982, ―O voto universal é a aparência
do governo popular. Os eleitos acabam por emancipar-se da dependência do
povo, e a política torna-se ciência oculta que a população não entende. (...) O
Partido dos Trabalhadores que inicialmente constituiu uma esperança de
valorização da auto-organização dos mesmos, ao eleger o caminho eleitoral
tende a formar, em cada trabalhador vereador, deputado ou senador, um ex-
trabalhador. Se não definir com clareza seu objetivo em termos de mudança
estrutural, poderá ser cooptado pelo regime transformando-se em seu “braço
esquerdo”. A eleição de Mitterrand na França e de Gonzales na Espanha
mostram a tendência do capitalismo em crise optar por solução “social-
democrática” (reformar para não mudar). Isso, na França, tem levado
Mitterrand a propor o congelamento de salários e realizar uma política de
“austeridade”, na mesma linguagem que o ministro Delfim Neto usa aqui há
anos, e economistas do PMDB propõem como “solução alternativa” para a
crise: racionalização. Esse conceito pode significar para o trabalhador, a
manutenção das condições terríveis de trabalho, superexploração da sua força
de trabalho. Vença quem vencer as eleições, nada muda no interior das
fábricas, nos campos e nas oficinas. Nos escritórios, nos bancos, nos hospitais.
As relações hierárquicas de dominação e exploração continuarão as mesmas, só
que administradas por um governo que, em “nome do povo”, poderá pedir-lhe
“sacrifícios” e, se for o caso, usar o aparelho repressivo do Estado como
usaram-no todos que ocuparam o poder de Cabral até hoje.‖ (O voto e as ilusões
– 14 de Novembro de 1982 no suplemento ―Folhetim‖ do Jornal Folha de São
Paulo.‖)
6) Ninguém poderia ser mais profético do que Tragtenberg. O PT, a cada eleição,
produzia mais ex-trabalhadores. O processo de ganho de cadeiras em
parlamentos foi desviando o foco das lutas sociais de base e do movimento real
para a ilusão política-parlamentar. E a degeneração foi proporcional ao nível em
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que isso ocorreu. Dos discursos radicais de base que evocavam uma democracia
radical, chegou-se ao eleitoralismo mais tosco e populista. Dos velhos militantes
de base, sobraram quadros de oportunistas, especialistas em poder que
atualmente ocupam postos de comando e gestão da crise, através de métodos
assistencialistas, clientelismos, paternalismo, como manutenção de um projeto
de poder que inclui a ascensão social dos ex-operários ao poder.
7) A burocracia sindical também foi se degradando lentamente. Destruía comissões
de fábrica com práticas de delação e violência física. Optou por um sindicalismo
de negociação e representação, ao invés da organização de ―chão de fábrica‖. Para
se conseguir o monopólio da representação, o movimento de base ou era
enquadrado, ou destruído. Depois, a entrada do dinheiro do FAT (Fundo de
Amparo ao Trabalhador), dado por FHC, permitiu que a CUT (e demais centrais)
se tornasse gestora de somas vultosas de dinheiro e cumprisse um papel de
agência gerenciadora e treinadora de força de trabalho para o Capital.
8) Depois vieram os Fundos de Pensão (previdência), e a aceitação das ofertas
patronais de Participação nos Lucros e Resultados de empresa. Com estas
práticas, a burocracia sindical passou a se apropriar de parte da mais-valia dos
trabalhadores (o que antes só fazia através do imposto sindical). E indiretamente,
a enquadrar e gerir a força de trabalho. Assim, o sindicalismo cutista se tornou
um monopólio que administra e detém o capital variável (força de trabalho). O
aumento salarial passa a ser fonte de aumento dos descontos sindicais e imposto
sindical. Esta opção não se configurava como uma ―traição‖, mas como parte de
uma visão política de gestão do sistema e entrada dentro das instituições. Toda
fonte de recursos é vista, nesta perspectiva, como um aparelho de poder para o
partido. Os quadros tentariam, então, assumir a gestão de todos estes aparelhos.
9) Com todo este processo, de capitalismo sindical e práticas de negociação,
somados a uma concepção política redistributivista e gestora do mundo existente,
o PT e a CUT não tardaram a apresentar sinais fortes de cooptação pelos gestores
do Capital e empresas. Passou a fechar acordos e convênios com empresas; e no
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caso da negociação coletiva, bem como dos Fundos de Pensão e PLR, os
sindicalistas passaram a sentar-se à mesa e gerir o Capital de forma associada às
empresas capitalistas.
10) Gestão de Capital, profissionalização dos dirigentes, hierarquias sindicais,
estruturas sindicais burocráticas e com exércitos de especialistas em poder
profissionais. Quando as bases questionavam minimamente isto, a burocracia
sindical não dispensou práticas estilo Jimmi Hoffa: contratação de seguranças e
todas as conseqüências disto.
11) A intelectualidade petista, não sabendo preservar a autonomia da teoria, e ao
mesmo tempo, procurando ou desconhecer totalmente as práticas reais do
movimento (se isolando dentro dos muros acadêmicos) ou legitimá-las
descaradamente, continuou pintando de cor de rosa o partido. Agiu de forma
acrítica e cega em relação às degenerações do partido. Não teve autonomia
suficiente para criticar o processo de forma conseqüente, salvo raros casos. O
gangsterismo sindical simplesmente não existia, mas sim um ―projeto popular‖.
Ou então, era um ―mal necessário‖. Dentro das academias, com seus estudantes
militantes, praticamente nada se sabe do que passa nas bases.
12) Os ideólogos do partido forjaram uma fabulosa teoria do aparelhamento e do
bonapartismo, saqueando e distorcendo a obra de Gramsci. A estratégia seria
esta: formar uma escola de gestores que irão disputar a hegemonia das
instituições existentes e depois geri-las, num projeto de uma democracia ideal.
Nas academias floresceu uma horda de intelectuais e teóricos do poder e da
administração, economistas e especialistas em planejamento econômico. Ou seja,
planejar e gerir o mundo da mercadoria, abrindo mão de criticá-lo.
13) Ainda em 1989, quando das eleições presidenciais e quando Lula chegou ao
segundo turno contra Collor, o PT se encontrava ainda em processo de
tensionamento. Havia amplos movimentos de base e um enfoque classista na
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campanha. A queda do Muro, a campanha da direita, os golpes midiáticos
engendraram a derrota. A partir dali, o processo de degeneração que se
engendrava se esgarçou, o movimento de base entrou em declínio definitivo, e as
representações terminaram de se descolar das bases e seguir o rumo gestorial,
sobre os escombros do movimento de base. Uma vitória eleitoral ali não teria
conduzido a algo diferente que um governo de esquerda estilo chavista. Mas a
derrota foi o ponto de inflexão, a partir do qual a cisão interna do movimento se
tornou mais evidente.
14) A ofensiva ideológica do Capital em nível mundial, após a queda do Muro e o
colapso dos países ditos socialistas e do nacional desenvolvimentismo do terceiro
mundo, colocaram a esquerda em defensiva. O processo de crise global que se
abria com a Terceira Revolução Industrial inviabilizou definitivamente toda
tentativa de gestão nacional-desenvolvimentista em moldes estatistas. A
esquerda clássica desabou justamente com esta mudança estrutural. Somou-se a
este processo a reestruturação produtiva do Capital, que fragmentou e dispersou
as grandes aglomerações operárias e industriais, cedendo espaço à ilusão
ideológica do ―fim das classes‖, e acelerou a destruição das bases operárias. A
ameaça do desemprego também foi um poderoso fator de dissolução daquele
ciclo de lutas. A baixa da organização de base e das lutas foi o trampolim para a
ascensão dos quadros gestoriais das representações, bem como a concentração do
partido em setores de uma classe média (por exemplo, sindicalizando gestores de
empresa – como ocorre com freqüência nos bancos).
15) Com todo este processo, não houve nada absolutamente surpreendente na
chegada de Lula ao poder em 2002 e nas suas conseqüências. O PT não traiu os
trabalhadores depois que chegou ao poder, mas só chegou ao poder porque traiu
os trabalhadores desde o início. Ou melhor: o PT foi coerente com a escolha que
fez, com a positivação do sistema e a opção por geri-lo, ao invés de criticá-lo em
busca de sua superação. Nesta perspectiva, não houve traição, mas um processo
coerente com seus propósitos (e a destruição do movimento de base e das
dissidências internas).
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16) O PT poderia ser chamado, então, de Partido dos Gestores. Formou-se ali todo
um setor de técnicos e especialistas cujo único objetivo era a técnica e a gestão.
Com a moderação do discurso ao longo dos anos 90, o PT ganhou a adesão de
todo um setor da classe média raivosa e em proletarização, de quadros gestoriais
e ex-operários ascendidos à classe média, que usavam o discurso ―classista‖ de
esquerda para encobrir suas ambições de ascensão social ao posto da elite
gestorial.
17) A primeira Reforma da previdência, para além do saco de maldades do aumento
da idade de aposentadoria e a ruidosa taxação dos inativos (que serviu de cortina
de fumaça, onde as esquerdas ―radicais‖ cumpriram bem seu papel), conteve
como essência a transferência da maioria dos recursos previdenciários públicos
para Fundos de Pensão criados, que passaram a ser geridos pela poderosa
burocracia sindical e seu exército de técnicos acadêmicos (que possuem inclusive
fundamentação teórica para fazer isto).
18) Destes Fundos de Pensão, bem como das empresas estatais geridas pela
burocracia sindical, surgiu o dinheiro do ―mensalão‖. O mensalão funcionou
como um mero projeto de poder para aprovar as reformas. Dos crimes deste
governo, o desvio de dinheiro e a corrupção ainda são os menores, quando
comparados às reformas que atacam diretamente as condições de vida de milhões
de trabalhadores. A imprensa fez questão de destacar justamente os aspectos
superficiais (corrupção, cargos) gerando um circo ruidoso que encobre o projeto
de desmonte da legislação trabalhista e previdenciária. Não se tratou de casos de
corrupção individuais, mas de um projeto comum de toda uma elite tecnocrática
ascendida ao poder.
19) O PT, com a aprovação do Super-Simples, decretou o fim dos direitos trabalhistas
para os trabalhadores de micro e pequenas empresas. Facilmente, uma grande
empresa pode converter seus departamentos internos em micro-empresas
jurídicas (e os gestores viram proprietários, mas o Capital continua concentrado)
para burlar a legislação trabalhista. A Emenda 3 constituiu uma tentativa de
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liquidar a carteira de trabalho em prol da contratação de autônomos. Foi barrada
pela pressão popular. Mas a CUT sabotou o movimento produzindo um
movimento paralelo em apoio ao veto de Lula à Emenda 3. Convém lembrar que
Lula só vetou por questões de fiscalização trabalhista, mas nunca se opôs ao
projeto. De certa forma, as burocracias sindicais perceberam também que com a
Emenda 3, acabando a carteira de trabalho, acabariam os recursos que as
sustentam, pois a sindicalização cairia.
20) As Reformas da Previdência se resumem a: enxugamento da máquina,
aumento da idade de aposentadoria e transferência de recursos para Fundos de
Pensão, geridos pela tecnocracia do partido. Os Fundos de Pensão viraram
aparelho de poder do partido e fonte de recursos de campanhas. Alguns ideólogos
afirmam que a aquisição de Capitais e ações poderia ser uma arma dos sindicatos
para expropriar recursos e assumir o controle de empresas. De fato, a burocracia
sindical faz isto, mas os resultados são muito diferentes: a conversão dos
sindicalistas em capitalistas que se alimentam da exploração trabalhista. Em
casos extremos, os sindicatos podem mesmo se tornar poderosos patrões, como
os sindicatos europeus ou em Israel.
21) O Estado, em crise de financiamento justamente por ter de desonerar as
empresas capitalistas em crise (devido à queda da taxa de lucro), lança suas
estruturas sociais na caldeira do Mercado. A crise mundial da produção de valor
(mais-valia), gerada pela Terceira Revolução Industrial, atinge em cheio os
recursos do Estado, que sofre o desmonte. O Estado Restrito (Nacional) perde
toda a potência por falta de recursos e a economia totalitária é quem de fato
segura as rédeas. A Política (institucional) gira em falso, após perder sua função
modernizadora. Resta a ela a função de gestora da crise capitalista e da barbárie
social.
22) As Reformas Trabalhistas vão sendo feitas a conta-gotas, o que quebra a
resistência social. A lógica é simples: remover as barreiras à exploração
desenfreada de força de trabalho, possibilitando que com a superexploração
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(mais-valia absoluta – prolongamento de jornada e rebaixamento de salários) se
alivie a crise de valorização do Capital e se protelem os efeitos da crise. A China é
logo ali.
23) A Reforma Agrária não foi feita. O Latifúndio é acariciado e os usineiros se
tornaram na boca do presidente os ―heróis da nação‖. O número de mortes no
campo cresceu. Um acordo de exportação de etanol para os EUA ameaça
transformar o Brasil numa Arábia Saudita do álcool e aumentar o trabalho
escravo nos canaviais em proporções inimagináveis, com todas as conseqüências
ambientais: mais desmatamento e destruição do solo. E transpõe-se o Rio São
Francisco, ameaçando uma catástrofe ambiental, para não fazer reforma agrária e
não tocar no Santo Latifúndio no Nordeste. O governo aprovou lei que acaba com
a carteira de trabalho para os bóias-frias (cortadores de cana), alegando ―facilitar
o emprego‖.
24) Os movimentos sociais urbanos nunca foram tão reprimidos e perseguidos, e
sem proteção nenhuma do ―governo de esquerda‖. A cada dia, os pobres que
vivem em áreas irregulares são despejados pela ânsia voraz da valorização do
Espaço. As forças policiais que cumprem estes despejos praticamente viraram
tropas privadas a serviço das incorporadoras e da especulação imobiliária.
25) O Governo mandou as tropas brasileiras ao Haiti para reprimir os pobres e
treinar para a ocupação das favelas brasileiras. Se dissemina a lógica da
militarização das periferias, atendendo aos interesses da propriedade territorial,
das incorporadoras, especulação imobiliária e empreiteiras, a quem interessa
―varrer o lixo humano‖ para longe. Democracia para os ―incluídos e
consumidores‖, ditadura e absolutismo sobre os não-rentáveis.
26) A mídia, junto com toda a oposição moralista e facistóide da direita, contribui
com o Governo, ao fazer uma verdadeira cortina de fumaça espetacular que
encobre o pesadelo das reformas, da precarização do trabalho e perda de direitos
sociais – crimes que movimentam bilhões, ao passo que os escândalos de
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corrupção movimentam milhões. Mas estes são eleitos novela e circo popular. O
que é mais sério não se discute.
27) As políticas assistencialistas das ―bolsas‖ anestesiam a consciência de poderosos
movimentos sociais e retiram-nos das lutas reivindicativas, consolidando um
voto-de-cabresto pós-moderno e um projeto de poder assentado no paternalismo,
clientelismo e assistencialismo. Diga-se de passagem, a prática que o PT adota
dentro dos sindicatos em sua relação com a base é exatamente esta – manter as
bases em estado de passividade e submetidas por políticas assistencialistas.
Quando estas falham e a base quer se apresentar, recorre-se aos seguranças
particulares e a ação repressiva. Os movimentos populares e sindicatos, atrelados
ao Estado, perdem a autonomia de ação para converterem-se em base de apoio
do governo.
28) A Reforma Sindical se constitui num projeto de atrelamento das estruturas
sindicais ao Estado, através do reconhecimento das Centrais (entre as quais a
CUT e a Força Sindical, além de uma série de outras pequenas centrais fundadas
por oportunistas que apenas desejam receber verbas e repasse de dinheiro do
governo) e distribuição de verbas a estas. É a outorgação do Capitalismo Sindical.
Destruição das assembléias de bases, decisões pela cúpula. Criminalização da
greve, ―negociação coletiva‖ onde a burocracia sindical vende os direitos
trabalhistas em troca de ações (isso pode mesmo dispensar uma reforma
trabalhista, que será feita via sindicatos). Verbas milionárias distribuídas às
centrais – onde vale o provérbio ―quem paga a conta escolhe o cardápio‖ –
significa o atrelamento político dos sindicatos ao Estado, o fim da autonomia e
independência sindical (que no Brasil até hoje não existiu de fato, dado que nossa
estrutura sindical é getulista e tutelada pelo Estado, em molde corporativista de
cunho fascista). Enquadramento sindical (pelo Ministério do Trabalho e por uma
comissão especial), impossibilitar a criação de novos sindicatos (ao exigir
representatividade mínima), mas dá direito às centrais de criar ―sindicatos
biônicos‖ paralelos e assim destruir os sindicatos de oposição. Quebra da unidade
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sindical, para fragmentar os trabalhadores com o ―pluralismo sindical‖ e os
―sindicatos por empresa‖. Enquadramento e oficialização das comissões de
empresa (ao oficializá-las, permite-se ao patronato assumir o controle sobre
elas). O saco de maldades não fica nisto. Uma lista seria assombrosa.
29) A corrupção, o ―mensalão‖, os desvios de verbas e o aparelhamento do Estado,
que as revistas liberal-tecno-facistódes de classe média gostam de denunciar,
nada mais são que parte de um projeto de poder para justamente consolidar a
gestão econômica pelas burocracias sindicais e para viabilizar as reformas que
irão miserabilizar a força-de-trabalho a nível nacional, convertendo o Brasil num
grande México (com algo semelhante a um PRI no poder, inclusive). Só é possível
compreender a totalidade do projeto se analisarmos as relações entre a corrupção
e as reformas trabalhistas.
30) A chegada do PT ao poder também constituiu um meio fabuloso de
ascensão social para burocratas sindicais e partidários, ex-trabalhadores
convertidos em gestores e candidatos a classe dominante, que se tornaram
capitalistas ao entrar nos aparelhos de poder institucionais. Assim, temos um
exército de novos-ricos extravagantes, que fumam charutos cubanos, tomam
Romanée-Conti, andam de Land Rover, e possuem belas casinhas em Ilhabela
com belas garotas. Trocou-se o macacão pelo terno Armani.
31) O PT representou o fracasso e a consequente cristalização, institucionalização e
burocratização de todo um movimento de lutas sociais (de mais de 20 anos), bem
como sua integração ao sistema capitalista e transformação em mola propulsora
da administração e acumulação do Capital. Este processo não se deu sem
conflitos, conforme já dito. Nos encontramos, agora, no final deste ciclo, e em um
período de transição, onde elementos do velho se misturam ao novo, no qual não
temos uma visão clara e a fragmentação é muito grande. De uma forma geral, os
gestores de empresa perceberam que a estrutura sindical baseada na ―negociação
coletiva‖ é muito conveniente, por anular conflitos e possibilitar a recuperação do
movimento a serviço da acumulação do Capital. Não à toa, hoje, quando uma
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empresa nova abre em uma região, não raramente ela já chega com um sindicato
com direção eleita.
32) Como conseqüência da crise do Estado Restrito (Nacional) provocada pela
desvalorização econômica mundial (que mina as fontes financeiras do Estado,
que se alimenta justamente de tributar parte da Mais-Valia), bem como a
interligação transnacional das empresas, criando mecanismos de poder
transnacionais que organizam as condições gerais do Capital por cima dos
Estados Nacionais, a Política institucional ficou impotente ante a Economia. Já
cumpriu sua função nacional-modernizadora, e agora se converte num aparelho
do Estado Amplo mundial, cuja função é apenas a de administração de crise. O
PT, se chegasse ao poder há 30 anos, provavelmente estaria montando um
imenso Capitalismo de Estado (e boa parte das oposições de esquerda atuais ao
governo estaria batendo palmas e querendo cargos na gestão) com política
stalinista. Mas chegou ao poder no momento em que o poder do Estado Amplo
(Soberania das Empresas) superou e aparelhou totalmente o Estado Restrito
(Nacional), bem como o Estado nacional em crise e impotente ante a economia
descontrolada no piloto automático. O Governo do PT manifesta a crise da
Política e do Capital. O nacional-desenvolvimentismo clássico, já não mais
possível devido à crise de valorização, se torna um desenvolvimento estilo chinês,
às custas da exploração brutal de uma massa proletarizada no setor da mais-valia
absoluta. O Brasil funciona como um dos laboratórios mundiais deste processo.
33) Não podendo mais desenvolver a economia (o projeto ―positivo‖ do marxismo
oficial), o PT limita-se a gerir a crise. Assim, os diversos governos de esquerda no
mundo todo, se transformam em hábeis administradores da crise do capital e não
oferecem nenhuma alternativa à barbárie social que se alastra. Pelo contrário, o
fracasso dos projetos de esquerda e a falta de um projeto alternativo constituem
em terreno fértil para o neofascismo tecnocrático e impessoal do mercado e das
direitas moralistas. O discurso repressor culpa os pobres e seus ―representantes-
capatazes‖ pela crise e legitima a meritocracia e o extermínio social do ―lixo
humano‖ dos que não-trabalham, daqueles que foram declarados ―não-rentáveis‖
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pela Terceira Revolução Industrial. A multiplicação geométrica das empresas de
segurança privadas, os esquadrões de extermínios e a apologia facistóide como a
do filme ―tropa de elite‖ ilustram bem este quadro. As elites se fecham em
bunkers high tech cercados de favelas com ocupação militar. Esse é o caráter da
nova guerra mundial, a guerra de extermínio social.
34) As oposições da direita e do ―Cansei‖ legitimam o governo e suas reformas. Sua
briga é apenas por poder. O fracasso de um projeto socialista (o PT de fato tinha
um?) abre caminho para a direita mais raivosa e fascistóide, com o discurso da
moralidade, e da segurança pública do extermínio dos pobres. Não criticam o PT
por seu papel de cooptação e traição descarada, mas sim por terem origem
―operária e pobre‖, ―o presidente analfabeto‖, ―nordestino‖, e etc (justamente as
características mais positivas que o PT deixou de ter há muito tempo).
35) O Governo do PT se coloca como: a)morte histórica da esquerda
desenvolvimentista; b) manifestação da crise do trabalho; c)crise da Política
institucional, decorrente da crise de valorização; d) gestão de Crise; e) ascensão
social de ex-trabalhadores convertidos em técnicos e cujo único objetivo é a
técnica – representa na verdade o fracasso de toda a concepção do marxismo da
produtividade e que prescrevia a conquista do Estado visando o desenvolvimento
das Forças Produtivas. A mais importante lição que ele nos deixa é redescobrir o
Marxismo que faz a crítica radical das relações sociais e que não se dispõe a geri-
las para desenvolver a economia, mas sim negá-las e superá-las. A reorganização
das forças de resistência social é urgente, não a partir de utopias e programas
ideológicos abstratos e anacrônicos (que serviam para enquadrar e disciplinar a
realidade aos ditames do desenvolvimento econômico), mas sim a partir de uma
plataforma imediata de acordo mínimo visando barrar as reformas e a lógica de
barbárie social e a partir das forças reais acumuladas na luta, formular
alternativas. Paralelamente a isto, se faz necessária a construção de uma teoria
radical que sirva de expressão ao movimento, explique o que está acontecendo,
levante as questões que o espírito do tempo exige, e abra uma perspectiva radical
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de contestação da lógica do Capital e de seus efeitos destrutivos, visando
desarmar a bomba-relógio do Capital.
Referências
O aludido artigo de nossa autoria intitulado “A Crise Política é a Crise da
Política” foi publicado no Caderno Político 2, da Associação de Professores de Filosofia
do Alto Tietê (APROFAT), Editora Ilustra, 2005. O artigo mencionado de Maurício
Tragtenberg intitulado “Rússia atual: produto da herança bizantina e do espírito
técnico norte-americano” foi publicado originalmente em 5 de Abril de 1954 pela Folha
Socialista, e republicado em Educação & Sociedade, Campinas, vol. 29, n. 105, p. 969-
977, set./dez. 2008, disponível em
<http://www.scielo.br/pdf/es/v29n105/v29n105a02.pdf>, acessível nesta data de 29 de
Março de 2015.
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PASSEIO PELAS GREVES PARANAENSES
DA EDUCAÇÃO EM ALGUMAS NOTAS
G. Émeutes
Protetor solar fator 30
O ano de 2015 começou quente em terras paranaenses. Mais do que o verão
ensolarado na Ilha do Mel, as altas temperaturas eram resultado da luta encabeçada
principalmente por professores do ensino básico, engrossada pelos colegas do ensino
superior, contra o descontrole e destempero do desgovernador Beto Richa.
Os instrumentos de luta surtiram efeito de uma maneira animadora. Os
professores do ensino básico, por exemplo, organizaram duas assembleias históricas,
lotando um estádio de futebol (diga-se de passagem: o maior público num estádio em
terras paranaenses no primeiro semestre!), organizando acampamentos de vigília,
caminhadas que lotaram as ruas de Curitiba. Houve principalmente a ocupação da
Assembleia Legislativa do Estado do Paraná (Alep). As táticas de ação direta se faziam
valer, como que deixando para trás o ímpeto já normalizado da negociação de gabinete.
Com isso, o ânimo geral diante da conjuntura de luta era visível.
Estaríamos diante de uma reação convincente ao ataque conservador que toma as
ruas do Brasil? Estariam os trabalhadores reaglutinando forças para o enfrentamento
contra a conjuntura de crise e agudização neoliberal? Seria o Paraná a ponta de lança
vanguardista que daria o tom dos enfrentamentos inevitáveis diante do quadro nacional
de ataque aos direitos dos trabalhadores? Estaria, enfim, chegando a hora de vencer,
para além do espasmo eventual, a incapacidade reinante de organização à altura do
tempo?
As greves dos trabalhadores em educação no Estado do Paraná desdobradas nos
primeiros meses de 2015 foram mais do que isso. De fato, o quadro é mais complexo,
pouco convidativo para um irradiante ânimo solar. O sol escaldante e o terreno árido
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exigem mais do que ânimo. Houve de tudo. Se vimos assembleias como não se faziam
desde fins da década de 1970, também vimos a fuga da luta nas ruas no momento em
que as organizações de direita de novo tipo passaram ao ataque. Se estivemos diante da
possibilidade de uma unidade sindical por tantos sonhada, vimos as brigas mais
mesquinhas e as dificuldades de sempre. Se a derrocada da figura do governo diante da
opinião pública foi vertiginosa, as organizações de trabalhadores não conseguiram
aglutinar a população em torno de sua simbologia.
Perceba-se: os tempos são de luta, os antagonismos sociais estão visíveis, mas
isso não levou para além da reação defensiva. Como colocar essa complexidade no
papel, no infernal calor da hora?
O que segue é uma tentativa de pensar sobre o momento enquanto ele se
desdobra. Poderia me concentrar em dar uma notícia, jornalisticamente detalhada,
sobre eventos e aspectos do processo. O recurso, porém, não faria jus à complexidade do
evento. A única forma textual que, parece-me, dá conta da questão é a montagem de
notas esparsas e gerais sobre pontos essenciais das greves. Com isso, a liberdade da
crítica se faz presente.
Passe o protetor solar de sua preferência, pois o sol que nos acompanhará
durante esse intuitivo passeio a que te convido não é nada prazeroso.
Barraca com dois dormitórios
Durante a campanha eleitoral de 2014, o governador do Paraná Beto Richa
(PSDB) resumiu em uma estrondosa promessa a sua plataforma para a reeleição: ―O
melhor ainda está por vir‖. Depois de disputar com figuras de peso como o ex-
governador e atual senador Roberto Requião (PMDB) e com a senadora e ex-ministra
Gleisi Hofmann (PT) e conquistar o pleito no primeiro turno (com uma boa margem,
ainda que longe de ser folgada), Beto Richa demonstrou que sua promessa era na
verdade uma ameaça. Ao contrário do que foi propagado com polpudas verbas e apoio
midiático ao longo da eleição, chegamos ao fim de 2014 com a informação de que o
estado do Paraná estava completamente quebrado devido à irresponsabilidade do
governo, mesmo com um significativo aumento na arrecadação de impostos e com
crescimento acima da (tendente à recessão) média nacional. Quem trouxe a escandalosa
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novidade não foi nenhum agente da oposição, mas o novo secretário da fazenda, Mauro
Ricardo Costa, dito especialista em ―austeridade fiscal‖.
A promessa-ameaça, agora capitaneada por Mauro Ricardo, começou a se
materializar ainda em 2014, ao fim do primeiro mandato de Richa. Ao enviar à
Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP) um pacote com um conjunto de medidas de
ajuste fiscal, o governo se mobilizou para aprovar à base do tratoraço1 um aumento de
impostos como o ICMS e o IPVA e definir um novo teto para a Paraná Previdência,
seguindo a política adotada pelo INSS. Na passagem de ano, anunciou que não pagaria o
terço constitucional aos servidores que fossem usufruir férias em dezembro e janeiro. Já
em fevereiro de 2015 o governo de Richa enviou à ALEP um novo pacote, apelidado de
pacotaço, dessa vez dedicando a política de austeridade a atacar direitos dos servidores
públicos do estado, como mudança nos anuênios e quinquênios2, restrição da
autonomia universitária com a transferência da administração da folha salarial para o
sistema de pagamentos do estado (conhecido como sistema de RH META-04)3 e,
principalmente, o intento de usurpar o Fundo Previdenciário.
Amparado pela vitória em primeiro turno e pela soberba de praxe, Beto Richa
supôs que poderia botar para quebrar. Mas, quem chutou o pau da barraca foram os
servidores. Assim, a reação dos trabalhadores contra a política de austeridade fiscal foi
forjada pela pressa do governo.
Seguro morreu de velho
Dentre todas as propostas do governo, a mais proeminente é aquela que pretende
mexer no regime previdenciário próprio do estado do Paraná. Como todo sistema
1 Tratoraço foi o singelo apelido dado à truculenta política de aprovar projetos de lei na Assembleia
Legislativa do Paraná por meio da chamada Comissão Geral, que muda o trâmite ordinário de um projeto de lei, eliminando a discussão e aprovação nas comissões específicas (o que normalmente dura um mês em regime de urgência), passando a ser votado imediatamente no plenário (o que dura menos de uma semana em regime de urgência).
2 A proposta visava reduzir os quinquênios dos atuais 1% por ano trabalhado (totalizando 5% de aumento sobre o salário de cinco em cinco anos) para 0,1% por ano trabalhado (totalizando 0,5% de cinco em cinco anos).
3 O pagamento de salários do Estado do Paraná é gerido pelo sistema de RH META-04. Garantindo a prerrogativa constitucional de Autonomia Universitária, o pagamento dos salários das universidades estaduais é feito por sistemas específicos de recursos humanos de cada instituição. A Universidade do Norte do Paraná (Uenp) e a Universidade Estadual do Paraná (Unespar), instituições recentes, estão no META-04. A retirada dessas instituições do sistema de pagamentos do estado se tornou uma pauta dos movimentos grevistas.
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previdenciário, o paranaense é bastante complexo. O Paraná Previdência conta com três
fundos: o Militar, o Financeiro (responsável pelos benefícios daqueles que ingressaram
no serviço público até 2003) e o Previdenciário (responsável pelos servidores que
ingressaram a partir de 2004). O Fundo Militar segue regras próprias à carreira militar.
Os aportes mensais ao fundo financeiro, oriundos da contribuição do Estado e dos
servidores ativos e (desde dezembro de 2014) inativos, caem no Tesouro, que precisa
bancar aposentadorias e demais benefícios. O Fundo Previdenciário, que hoje conta com
uma quantia em torno de R$ 8 bilhões (entre aplicações financeiras, papéis e ações, bem
como imóveis) é superavitário em aproximadamente R$ 130 milhões (segundo os
cálculos do começo do ano, levando em conta dólar e juros em alta) – visando a
construção de uma Previdência que seja autônoma com relação a aportes mensais do
Estado. Diante da crise de caixa, o governo do Paraná não pensou duas vezes e resolveu
passar a mão nos R$ 8 bilhões na forma de fusão dos fundos financeiro e previdenciário
(ou seja, levando os R$ 8 bilhões pra o caixa do Tesouro). Informado por AGU e
Ministério da Previdência da ilegalidade da movimentação e pressionado pelas greves a
ser demovido da ideia, o governo recuou. Porém, com uma nova tática de usurpação do
dinheiro das aposentadorias. Trata-se de uma operação chamada ―segregação de massa‖
– no caso específico, mover os aposentados acima de 73 anos do Fundo Financeiro para
o Fundo Previdenciário. Assim, livrar-se-ia dos gastos com aproximadamente R$ 120
milhões com benefícios o que, no prazo de mandato de Richa, significaria a usurpação
de algo em torno de R$ 6 bilhões do Fundo Previdenciário, minguando sua
possibilidade de autonomia futura e diminuindo sua solvência (que hoje está em 55 anos
e que, com a manobra, iria para menos de 30 anos). É esse projeto que está em pauta
agora na Alep e contra o qual os servidores do estado se colocam. Se há um direito do
capitalismo democrático que mobiliza os trabalhadores, esse é a aposentadoria. O
ataque a esse direito é premissa de qualquer cartilha neoliberal.
Muamba de péssima qualidade
Um especialista em ―ajuste fiscal‖, tal qual o auto-proclamado Mauro Ricardo, é
uma peça política assustadora. Seus préstimos ao capítulo brasileiro do neoliberalismo
impressionam. Funcionário de carreira da administração federal como Auditor-Fiscal da
Receita Federal, tem uma longa ficha corrida de cargos de confiança assumidos desde a
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redemocratização, crescendo em importância particularmente durante o governo de
FHC: em 1995 tornou-se subsecretário de Planejamento e Orçamento do Ministério do
Planejamento, capitaneado por José Serra; assumiu a presidência da Superintendência
da Zona Franca de Manaus em 1996 e, em 1999, tornou-se presidente da Fundação
Nacional de Saúde (Funasa), novamente a convite de Serra, agora Ministro da Saúde.
Em 2002, a convite do então governador Aécio Neves (PSDB-MG, apesar de residir e se
entreter no Rio de Janeiro), assumiu a presidência da Companhia de Saneamento de
Minas Gerais (Copasa). Deixou o cargo em 2005, para estar à frente da Secretaria
Municipal de Finanças de São Paulo, cujo prefeito era... José Serra! Entre 2007 e 2010,
atuou como secretário da Fazenda do Estado de São Paulo, sob a gestão do governador
José Serra. Voltou à secretaria de finanças o município de São Paulo sob a gestão de
Kassab (PSD-SP), entre 2011 e 2012, assumindo o mesmo posto na prefeitura de
Salvador sob o comando de ACM Neto (DEM-BA), até que foi contratado pelo
governador Beto Richa para promover a política de austeridade no Paraná.
O melhor está por vir: mas, para quem?
Leva para o xilindró
As cenas da ocupação da Alep são um momento à parte. Se há lição a se tirar das
greves, ela está na retomada dos instrumentos populares de luta. Quem não estava
dormindo e duvida do gigante acordado, sabe que a revolução não será tuitada. Enfim,
vale observar a ocupação e compreender que ali o acúmulo de conhecimento em torno
das ações diretas se fez presente – basta juntar lé com cré e intuir que tipo de
organização política nesse país ainda sabe fazer aquele trabalho com a capacidade
demonstrada.
Mas, o que quero mesmo lembrar foram dos instantes reveladores com os
deputados estaduais se esforçando para ir até o fim com o desejo do governo Richa em
ter seu pacotaço aprovado. Num momento de desespero absoluto, os deputados
tentaram entrar na assembleia ocupada e, na impossibilidade de fazê-lo à pé,
recorreram a um camburão para a tentativa. O momento de verdade dessa cena é
absoluto. Só faltou o camburão rumar para o xilindró.
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Cantinho do pensamento
As divergências sindicais são um elemento constitutivo da luta de trabalhadores
em todo lugar do planeta. Até aí nenhuma novidade. Mas, o quadro paranaense é
especialmente emaranhado no caso dos sindicatos das categorias ligadas à educação.
Com sete universidades estaduais, cada qual com sua complexidade sindical, o problema
é grande. Uma pequena notícia do emaranhado ajuda a entender os nós da luta.
Num universo de um pouco mais de 100 mil servidores estaduais, a maior
categoria do estado é a dos 70 mil professores da rede básica de ensino, capitaneada
pela APP-Sindicato (Associação Paranaense de Professores). A APP é hegemonizada
pela CUT, mas conta em suas fileiras uma combativa oposição, majoritariamente ligada
à CSP-Conlutas. A APP mantém ainda grande controle sobre o FES (Fórum das
Entidades Sindicais), que conta com mais 18 sindicatos de diferentes categorias e está
sempre à frente das negociações com o governo. Entre os professores de ensino
superior, há bastante divergência sindical. A maioria das organizações está ligada ao
ANDES (o sindicato nacional dos professores de ensino superior), mantendo a linha da
CSP-Conlutas. Mas, há universidades que têm sua base disputada por mais de um
sindicato, como é o caso de Maringá, que conta com um majoritário sindicato misto
(que atende professores e técnicos-administrativos) e com um sindicato menor
exclusivamente docente, ligado ao ANDES. A Universidade Estadual de Londrina é um
caso à parte, não compondo com nenhuma das associações. Como se pode imaginar, a
tendência é que as picuinhas e divergências sindicais se tornem, com o andar da
carruagem, preponderantes aos aspectos em luta.
Sala de justiça
A APP, que capitaneou os instantes mais decisivos de ação direta da greve (como
as assembleias no estádio de futebol, o acampamento diante da ALEP e sua posterior
ocupação), não poupou esforços também em negociar em separado das demais
categorias até o ponto em que passou a tirar a greve de campo – a base do sindicato,
contudo, obrigou seus dirigentes a recuarem de seu projeto original, estendendo a greve
por pelo menos mais dez dias, até que a judicialização da luta (aliás, também requerida
pelo sindicato) fizesse o seu papel de amedrontar os grevistas. Contra isso, fez-se
presente a ativa oposição interna à APP, organizada pela CSP-Conlutas.
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169
Com a saída da greve dos professores da rede básica de ensino, os professores de
ensino superior viram suas forças minoradas e partiram para a tentativa de forçar o
governo a enfim negociar alguns pontos de sua pauta. As divergências e acordos de
camarilha chegaram a seu ápice. O compromisso final entre governo e sindicalismo não
só não trazia ganhos aos trabalhadores como firmava um ambíguo acordo com o
governo em seu intento maior de usurpar a previdência. Os professores da UEL
protestaram muito com relação a esse compromisso, particularmente costurado entre
governo e os sindicatos de docentes do ensino superior ligados à CSP-Conlutas. Ao que
tudo indica, a pressa dos sindicatos do ANDES em conseguir um acordo, mesmo que
mequetrefe, para pôr fim à greve buscava erguer a moral do Sesduem, o sindicato
minoritário de docentes em Maringá. Os professores da UEL permaneceram mais uma
semana em greve, buscando adensar as negociações com o governo, mas estavam
completamente enfraquecidos diante do quadro geral.
No fim de abril, as greves estavam de volta pelos mesmos motivos de antes. Está
claro que os resultados alcançados nas jornadas anteriores foram quase nenhum. Mas,
principalmente, as desavenças entre as organizações estão se sobressaindo. Enquanto a
APP fazia força para negociar o inegociável, os sindicatos ligados ao ANDES retomaram
antes de todos as greves. A APP temia o crescimento da direita na rua pedindo a cabeça
de Dilma Roussef, tomando por ação mais acertada no combate às assim chamadas
forças fascistas justamente a retirada dos trabalhadores de combate. Nem é preciso
muito esforço para ver a burrice que o governismo petista gera. Os sindicatos do
ANDES, por sua vez, buscam um protagonismo que não tem. Mais uma vez, a base de
professores da APP obrigou o sindicato a voltar ao movimento grevista. A UEL, enfim,
resolveu adotar uma tática ―inovadora‖, a paralisação sem greve.
Nesse meio tempo, o governo se fez de morto. Recolheu o time de campo. Refez
suas concepções táticas. E retomou seu intento estratégico numa maneira mais leve e
bem-preparada. Apanhando cotidianamente da imprensa, resolveu lançar ameaças
contra jornalistas. Preocupado com novo acampamento e ocupação da Alep, destacou
um considerável batalhão policial e o poder judiciário de sempre. Como se vê,
austeridade se faz com arrocho e cassetete.
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Luzes da ribalta
No momento em que escrevo, os professores do Estado do Paraná estão
retomando as greves diante da persistência do governo estadual em perpetuar seu
projeto de arrocho e austeridade – tragédia ou farsa? O que se fará valer?
Acusado de ligações com esquemas de corrupção da Receita Estadual e, ainda
mais abjeto, com uma rede de pedofilia e prostituição infantil, o desgovernador Beto
Richa é criticado inclusive pelo principal sistema de comunicação no Paraná, a rede RPC
(afiliada da Rede Globo). Sindicatos fizeram de tudo para embaralhar o meio de campo,
transformando suas brigas internas no assunto principal das lutas. Mas, ao que tudo
indica, os servidores do estado não estão dispostos a vergar nem diante da burocracia
sindical nem da política de austeridade do governo. Com o quadro de crescimento da
direita no cenário nacional, num estado que não é conhecido pela contundência das
organizações de esquerda, a situação é preocupante.
É hora de botar a cabeça para funcionar.
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SOBRE A MAIORIDADE PENAL
Uma ação preventiva do capital
Atanásio Mykonios1
Introdução
A tendência ao recrudescimento nas formas punitivas emerge com toda a força,
dadas as condições políticas vividas desde 2013 no Brasil. Direita e extrema-direita
estão a pleno vapor a fim de aprovar medidas cada vez mais restritivas e coercitivas,
uma tentativa de mudança na Constituição Federal para propiciar a punição a jovens
com 16 anos de idade e acima dessa faixa etária. Esse cenário é uma realidade e a
perspectiva é que novas ações legislativas levem a outros conteúdos punitivos e
administrativos, como a privatização do sistema carcerário, a pena de morte, a
criminalização de movimentos sociais, a extinção de partidos de esquerda, etc. A
questão a que se propõe este artigo é a de discutir o problema da investida sobre o
Projeto de Emenda Constitucional que muda a maioridade penal de 18 para 16 anos. No
meu entender, o fundo desse confronto travado pelos meios de comunicação e por parte
de grupos estrategicamente posicionados em nome da direita e extrema-direita tem o
objetivo de criar mecanismos preventivos contra os pobres, uma vez que o sistema
capitalista está em uma crise na qual os pobres não terão perspectiva em seu interior, do
ponto e vista de sua utilização como trabalho vivo e como contingente rentável.
Contra a pobreza
A história do capitalismo é, dentre tantos de seus aspectos abjetos, a luta frontal
contra os pobres, não no sentido de eliminar a pobreza ou a sua condição estrutural,
muito pelo contrário, é uma luta sem tréguas contra as populações empobrecidas e em
1 Professor da UFVJM, Doutorando em Serviço Social pela UFRJ. Membro do Grupo Crítica Social e do
CEFIL – Centro de Estudos de Filosofia. ([email protected]).
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contínuo processo de empobrecimento. Perseguições, extermínio, segregações, leis
restritivas, dificuldades de acesso, precarização de serviços públicos, etc.
O espectro da violência institucional contra os pobres se volta contra eles mesmos
à medida que o aparato social emerge como um processo de formação contínua de
beligerância assumida na forma de políticas de Estado-nacional que sorrateiramente
investem contra os pobres a partir de ações diversas e distintas, que atuam para contê-
los em esferas sociais também diversas. Certas práticas ficam mais exacerbadas quando
a crise social aprofunda as lacunas deixadas pela impossibilidade histórica de proteção
social aos mais fragilizados no contexto das relações de exploração. Alguns avanços e
conquistas sociais, resultado de um intenso movimento social para a garantia por meio
do Estado-nacional, com política protetivas, são, via de regra, condicionados à própria
capacidade referida ao pacto social de distribuição de renda e benefício que, no entanto,
sofrem retrocessos quando a crise do capitalismo se instaura, uma vez que a história nos
mostra que o elo mais frágil é quem tem mais a perder nesse processo.
De fato, há uma mudança no enfrentamento da pobreza. Nesse sentido, o
movimento social representado pelas várias correntes que convergem à direita tem
como princípio criar mecanismos de contenção e confinamento de contingentes
populacionais que não se enquadram no mecanismo da rentabilidade social do
capitalismo.
Parece, à primeira vista, estranho notar que os discursos e práticas mais
conservadores agem em duas perspectivas que soam aparentemente antagônicas, mas,
no fundo, são convergentes e complementares. De um lado a posição contra o Estado-
nacional no que tange à condução e aos instrumentos relativos à economia política, a
falsa ideia de que o neoliberalismo é contra o Estado-nacional.
O neoliberalismo é a doutrina dos que defendem um Estado-nacional sob as
rédeas do controle total do capital, com relações entre setores não-financeiros e
financeiros, no surgimento da sociedade pós-industrial, da subsunção do particular ao
geral, da mercantilização dos institutos públicos, em que o Estado-nacional se torna um
agente econômico de forma ativa e ao mesmo tempo passiva. Nesse contexto, uma das
instituições que teriam a função social de proteção dos jovens e adolescentes está em
crise definitiva, a Educação formal e regular está desmoronando a olhos vistos, de uma
estrutura fordista que lhe deu a feição que ainda hoje prevalece na sua política de
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formação, com o fim desse período, agora a Educação formal e a escola agonizam sem
saber como lidar com a sua própria obsolescência.
É nesse contexto que, de fato, a educação formal e regular, mantida pelo Estado-
nacional, se torna um elemento emblemático dessa crise. Institucionalmente, a
educação não consegue mais proteger os jovens e adolescentes.
O neoliberalismo não e a doutrina do Estado mínimo. Ele não isenta o Estado das atividades de complementação econômica. Ao contrário, para ele o Estado deve preencher ativamente os vazios da malha produtiva e financeira, mas deve fazê-lo, não por meio de empresas próprias, mas preferencialmente adjudicando as atividades econômicas complementares, por meio de contratos de gestão, as empresas privadas. Entretanto, quando isto não e possível, como no caso da gestão monetária, o neoliberalismo propugna pela privatização funcional (ou seja, por uma gestão que e colocada nas mãos de uma elite tecnocrática que atua na esfera publica, de fato, como preposto do setor privado). Com o neoliberalismo, o Estado torna-se diretamente comprometido com a recuperação e manutenção da taxa de lucro num nível adequado para a continuidade do capitalismo.2 (p. 133)
De outro lado, a mão forte deste Estado-nacional é reclamada por parte daquelas
camadas na sociedade que têm poder de influência a fim de que controle as populações
em condições de vulnerabilidade econômica e social e de pretensa perspectiva criminal.
Ou seja, a mão forte do Estado-nacional de um lado contra os pobres e na outra, o afago
necessário às condições gerais de produção do capital.
Uma política social está em curso. Criar condições efetivas, sociais e políticas,
legitimadas por um processo de acúmulo discursivo em favor de mecanismos de
controle mais efetivos sobre os pobres em especial, é a marca dessa política social.
Investir sobre as populações que ameaçam a normalidade social é uma necessidade
imperiosa das camadas médias e das elites econômicas que exercem o poder político
sobre significativas esferas do ordenamento social e jurídico.
Quando se propala a ideia de que em determinadas regiões das grandes cidades, o
que falta é a presença do Estado, tem-se a impressão de que o que se quer, na verdade, é
a mão forte desse instrumento de força a fim de confinar em guetos os pobres,
notadamente os adolescentes e jovens em risco constante de ações criminosas.
Em seu curso sobre o socialismo, Durkheim (1928[1972]) afirma que o Estado
2 PRADO, Eleutério. Desmedida do valor: critica da pós-grande indústria. São Paulo: Xamã, 2005.
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é ―não uma potência coercitiva enorme, mas uma vasta e sábia organização‖. A experiência histórica nos mostra que tais aspectos não são incompatíveis em nada e que um aparelho estatal pode muito bem nos dias que corre, onde, apesar do discurso ambiente violentamente anti-estatal, a força pública, entendida em seu sentido próprio, desempenha um papel cada vez mais determinante na organização e na condução da vida nacional.3 (p. 19)
A cultura autoritária que marca a história do Brasil está presente em nossos dias
de várias formas, expressa por meio das ações de segurança que afetam os jovens e os
adolescentes no Brasil. A economia colonial teve como meio de produção fundamental o
trabalho escravo. Ele se torna o motor da produção econômica, o trabalho transformado
em condição de produção direta, ou seja, trabalho vivo sem remuneração, sem
assalariamento, apenas trabalho – vida e morte, que se reproduzia permanentemente
por meio da renovação dessa força de produção viva.
O tráfico transatlântico de escravizados mobilizava um grande número de pessoas e de capital. Para se ter uma ideia aproximada, calcula-se que cerca de 11 milhões de africanos foram trazidos à força para as Américas na condição de escravizados entre os séculos XVI e XIX. Este número não inclui aqueles que morreram durante os violentos processos de apresamento e de embarque na África, nem aqueles que não sobreviveriam à travessia do Atlântico. Destes, mais de um terço, ou cerca de 4 milhões foram trazidos para o Brasil. O que evidencia o alto grau de comprometimento dos brasileiros com o tráfico de escravizados.4 (p. 11)
Essa forma social historicamente determinada, criou profundas raízes na
memória e na cultura brasileiras. As elites econômicas, as oligarquias, as camadas
médias melhor remuneradas dos trabalhadores ainda carregam consigo a necessidade
de reprodução das relações de escravidão, mesmo em uma sociedade de características
liberais e burguesas.
Fazemos questão de, nas aparências das relações cordiais, não mais lidar com
essa chaga social e histórica, ao menos na casca social há um esforço para esconder as
heranças malditas desse processo histórico, as chagas sociais parecem não mais serem
refletidas a partir da escravidão. Especialmente os brancos que pertencem às ditas
3 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2. ed., Tradução de
Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: F. Bastos, 2001, Revan, 2003. (Instituto Carioca de Criminologia) 4 CEAO/UFBA. História do Negro no Brasil: Unidade I: A escravidão no Brasil: Curso de Formação para
o Ensino de História e Cultura Afro-brasileiras. Módulo 2. Disponível em http://www.ceao.ufba.br/livrosevideos/pdf/livro2_HistoriadoNegro-Simples04.08.10.pdf, acesso em 26 de março de 2014.
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classes intermediárias de trabalhadores, a aquela fatia de trabalhadores com mais
especialização e remuneração, mostram um desconforto sobre esse elemento histórico –
a escravidão. Há uma imersão nesse modelo ideológico, social e econômico que
prevalece nas ações e no comportamento no exercício do poder, além da mentalidade
que continua de modo velado nas formas concretas e práticas diárias. Muita gente que
eu conheço, age publicamente a favor da igualdade racial e até social (do ponto de vista
material), mas, no íntimo, são claras em afirmar que não aceita e jamais permitirá que
seus filhos, brancos ou quase brancos, venham a ter relações com negros ou negras. Não
sabemos dizer se isso é segregação econômica ou social, ou ambas, etc., mas o fato é que
essa chaga social permanece.
No Brasil, a condição jurídica dos escravizados seguia a mesma norma do direito romano, a de ―coisa‖. E também como o direito romano, a escravidão seguia o ventre, o que significava dizer que todo o filho de escrava nascia escravo. Por serem juridicamente ―coisas‖, os homens e mulheres escravizados podiam ser doados, vendidos, trocados, legados nos testamentos de seus senhores e partilhados, como quaisquer outros bens. Na condição de ―coisa‖ eles não podiam possuir e legar bens, constituir poupança, nem testemunhar em processos judiciais.5 (p. 12-13)
Essa condição jurídica é relevante para compreendermos que a violência e o
autoritarismo que cobrem o Brasil têm um caráter estrutural, uma vez que esses
componentes não diferem das condições de propriedade e de negócio que ainda se
praticam no capitalismo nacional; o escravo representava a acumulação primitiva,
necessária. A riqueza produzida na forma de valor, pelo trabalhador brasileiro, é uma
das mais altas do mundo. Em outras palavras, o capitalismo explora com mais eficiência
a sociedade dos trabalhadores brasileiros.
Mas à medida que a escravidão sofre um revés porque os interesses das elites
passam a ser o de ingressar na ordem do capitalismo ocidental, mesmo que de modo
tardio, a lacuna jurídica herdada não foi solucionada e isto criou um vácuo nas relações
de poder e nas relações do poder econômico sobre a massa dos ex-escravos, o que os
transforma em um contingente definitivamente colocado à margem do processo de
produção assalariado e do ordenamento jurídico. Um dos modos de lidar com essa
realidade é instrumentalizar as formas de violência e autoritarismo, com vistas a não
5 CEAO/UFBA, Op. Cit.
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desviar o foco do ponto de vista do poder social que as classes dominantes exerciam e
permanecem a exercer, destarte a transformação das formas de produção de valor
estarem em um patamar novo no capitalismo atual. Dito de outro modo, o Brasil ainda
vive com um ressentimento histórico de conviver com ―ex-escravos‖, ou seja, as classes
dominantes ainda veem o pobre como alvo da dominação escravocrata, os mecanismos
de punição sobre estes se tornam ainda mais violentos.
A coisificação jurídica do escravizado fazia parte de uma estratégia de dominação que buscava desumanizar os escravizados e que ao mesmo tempo em que os destituíam de todos os direitos criava uma ideologia de subalternidade, segundo a qual eles seriam incapazes de refletir e contestar a própria condição.6 (p. 13)
Ainda temos de lidar com a ―coisificação‖ tanto nas relações quanto na forma de
como as pessoas se situam no contexto social. A criança, o idoso, a mulher, o preso, o
menor apreendido, os criminosos, todos, de uma forma intrigante, são tratados como
coisas. E isso se amplia cada vez mais, à medida que a sociedade que produz
mercadorias é completamente interiorizada pela consciência social e individual da lógica
de produção de mercadorias, isto é, a lógica do sistema está na consciência social.
As classes dominantes exercem o poder da construção ideológica no âmbito do
poder político, que é a expressão da transferência de dominação que tem início na
ordem escravocrata e que, posteriormente, se alastra pelas formas de exploração e
exclusão da população em geral, a começar pela negra e todos os seus contingentes
diversificados. Assim, corresponde a uma disseminação de um modo de exploração que
inclui o modo de expropriação e dominação, transformados em preconceito e
segregação social. Por vários meios, o estado de escravidão que impera na visão, não
mais e apenas dessas classes que correspondem a uma minoria social, se espalha por
toda a forma de relação social, as camadas mais diversas assimilam de geração a geração
o ódio contra os pobres em geral.
Muito significativo o ódio contra os oprimidos, que é latente na sociedade
brasileira. Não é nem um pouco estranho, portanto, que tenhamos em nossa origem,
fortes traços e tendências à violência como forma de regulação das relações sociais de
um lado e de conflitos sociais por outro. O autoritarismo é um poder que não é apenas
6 CEAO/UFBA, Op. Cit.
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exercido do ponto de vista da estrutura político-institucional, como um programa
estruturado para reprimir metodicamente sociedades, comunidades, opositores
ideológicos, etc., expressa um modo de ser que reverbera na ação cultural, mas tem
origem em relações materiais desiguais historicamente constituídas.
Nosso ambiente social é constituído de um modelo ideológico de violência
permanente – o autoritarismo tem várias faces, algumas explicitamente violentas,
outras de práticas veladas, alastradas no tecido social, tornadas naturais pela
consciência coletiva. Podemos então considerar que dentre as várias ideologias que
permeiam a sociedade brasileira, uma de caráter eminentemente próprio e que define
em parte o comportamento social é a consolidação de um espectro de violência que não
se expressa apenas nas contendas entre indivíduos, ou entre indivíduos e grupos, ou
entre grupos de maneira geral.
Aqui estamos a lidar com uma ideologia que permeia a vida e a sociedade, que
não se dissipa ao tentarmos diminuir os índices de violência, a sociedade brasileira,
mais do que ser um grupamento social violento, tem em sua consciência mais velada a
violência em dois níveis: 1) interiorizada e naturalizada, a sociedade está organizada na
forma de uma estrutura de caráter violento: instituições, Estado-nacional, família,
religião, polícia, educação, autoridades, etc., tudo deve estar marcado com a insígnia da
punição, repressão contínua, controle, segregação, criminalização e deve ser resolvido
por meio da força, se possível; 2) a violência do ordenamento social vigente:
capitalismo, exploração, regulação jurídica, prisão, etc.
É nesse contexto que dois mundos emergem, o mundo iluminado, onde os
homens e as mulheres caminham em direção a uma sociabilidade de cunho
eminentemente europeu, com seus costumes liberalizantes e uma estrutura social
determinada pelo capitalismo de inclusão; de outro, um mundo obscurecido pela
ignorância, pelo abandono, que serve como instrumento de dominação por parte de
grupos sociais privilegiados e pelos capitalistas associados. Um aspecto da violência
brasileira se caracteriza pelo fato de que há um esforço de iluminar o mundo
obscurecido que abriga a maioria do povo, abandonado até mesmo pelo processo
capitalista de exploração. Os brancos que representam as classes dominantes neste país
querem a todo custo fazer com que haja, por parte da massa imberbe, um conformismo
que se baseia em seu mundo iluminado, esclarecido, asseado, imune a infecções sociais,
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mentais e físicas, mundo este que tem o poder das armas, da comunicação, da expressão
das formas de organização política, de tal modo que os dois mundos não podem
coexistir, a não ser que os dois colapsem para que uma nova forma social seja capaz de
ser construída a partir do novo.
Esses dois mundos aparentemente antagônicos têm como condição um
desequilíbrio sistêmico indissolúvel. A ação das forças sociais que detêm o poder
econômico é de exigir que os sem-luz queiram de livre e espontânea vontade ingressar
no mundo das luzes, da paz eterna, das formas polidas e apolíneas desse mundo que
oprime, por meio de seus recursos imensos, os que não se veem em si nem conseguem
ingressar sem que lhes seja dado o cartão de aceite no mundo imaculado.
Isso tem como efeito uma assustadora fragilidade que afeta o cotidiano. A
depender do lugar social ocupado pelos sujeitos, tudo pode acontecer, assassinatos,
tortura, prisão, discriminação, segregação, etc. E mais, a mentalidade segregacionista ao
afetar de forma a influenciar apenas os brancos, torna muito clara a separação social e
econômica que deve haver entre os diversos contingentes e grupamentos humanos.
A violência é um dado estrutural de nossa sociedade.
A criminalidade infanto-juvenil
A criminalidade juvenil é uma característica não da polis, não dos grupamentos
sociais medievais, mas da civilização urbana desigual, fenômeno recente na história da
humanidade. Jovens praticavam crime por questões materiais, na história, somente
quando as condições sociais eram extremas. Culpar apenas aqueles que, pela
desigualdade econômica, cometem crimes, imaginando que é possível haver por parte
destes a expectativa kantiana da ética universal, é esconder o fato de que a ética
universal terá como referência um poder constituído e constituinte, o poder do direito é
o direito do poder, e, sobretudo, um lugar social de onde parte esse processo
constitutivo – o lugar social do poder econômico. A desigualdade está presente nessa
condição de criminalidade. No capitalismo, há uma tendência a sermos formados para
reprimirmos e odiarmos os explorados, inclusivamente de forma racional, criando
mecanismos de controle punitivo contra esses explorados, dando a impressão lógica de
que há uma lei que é universal e justa para todos. O que, convenhamos, convence
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muitos incautos, mas a prática mostra bem o resultado. O resultado é uma eficiência
estrondosa quanto à punição de um lado dessa balança.
A violência adolescente e juvenil é, sobretudo, uma característica da sociedade
industrial, urbanizada e de grande complexidade social. Nas ruas de Londres, no século
XVIII, era visível o abandono de crianças que vagavam pelas ruas em busca de comida.
A marginalidade engendrada pela estrutura capitalista tornou a criminalidade um fato
novo para a sociedade industrial e urbana. Esse é um fenômeno eminentemente da
modernização capitalista.
Um dos grandes problemas que o capitalismo enfrenta, cotidianamente, é o
fenômeno, criado por ele mesmo, do constante empobrecimento da maior parte da
população. Esse fator é de extremo constrangimento social, uma vez que se trata de um
processo em ebulição permanente, às vistas de todos.
As autoridades e os capitalistas em geral, lançam de diversos mecanismos de
contenção social, apesar de que, por outro lado, esses contingentes também são alvo da
sociedade produtora de mercadorias. No entanto, é muito difícil para a maioria das
pessoas reconhecerem que a violência que está imbricada no modo de segregação
capitalista, é um fato incontestável.
O discurso espetacular da violência atua com o escopo de transformar o processo
de empobrecimento numa pena capital sobre os próprios pobres. Sem dúvida, à medida
que se tem como premissa o mérito individual de ascensão material que implica
ascensão em outra posição social, somada às condições elementares determinadas pelo
discurso liberal da livre iniciativa, recai sobre o inválido social a responsabilidade sobre
determinados atos, notadamente no que concerne à violência e ao crime.
Evidentemente não podemos, de forma simplista, condicionar a violência ao
crime numa ligação direta. Pois nem toda ação violenta é um crime e nem todo crime é
praticado de forma violenta.
Porém, para este artigo, não nos compete, a princípio, formular as razões e as
causas tanto da violência quanto do crime do ponto de vista da infância e adolescência
em suas especificidades psíquicas ou jurídicas. Aqui estou a tratar de como o sistema
social impinge mecanismos de controle e punição a essa camada da sociedade
totalmente indefesa.
Desde a urbanização capitalista, a infância e a adolescência se tornaram um
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problema, especialmente em se tratando dessas categorias etárias confinadas ao regime
social da pobreza e da miséria. O trabalho parece ser a única solução viável do ponto de
vista da inclusão social de quem quer que seja. A proteção dada pelo capitalismo é uma
só – a inclusão no trabalho formal ou informal ou marginal, em outras palavras, a
proteção social contra qualquer crime é a aquisição e a posse do dinheiro.
O homem se torna cada vez mais pobre enquanto homem, carece cada vez mais de dinheiro para se apoderar do ser hostil, e o poder de seu dinheiro cai precisamente na relação inversa da massa de produção, ou seja, cresce sua penúria (Bedürftigkeit) à medida que aumenta o poder do dinheiro. – A carência de dinheiro é, por isso, a verdadeira carência produzida pela economia nacional e a única carência que ela produz. – A quantidade de dinheiro se torna cada vez mais seu único atributo poderoso; assim como ele reduz todo o ser à sua abstração, reduz-se ele em seu próprio movimento a ser quantitativo. A imoderação e o descomedimento tornam-se a sua verdadeira medida...7 (p. 139)
Por mais que se queira ampliar as razões da criminalidade, o fato que me parece
inconteste é que se trata de um problema de fundamento histórico do modo de
reprodução da vida social e mesmo individual – o dinheiro é a primeira e fundamental
necessidade no capitalismo.
Muitos são os dados e pesquisas que comprovam que a criminalidade praticada
por menores é insignificante no que tange a crimes hediondos. No entanto, esses
argumentos racionais não serviram nem servirão para convencer um grupo político que
tem a seu favor a massiva articulação dos meios de comunicação, criando um clima
extremamente favorável à aprovação da PEC 171.
A brutalidade é um elemento, ao que tudo indica, permanente na cultura
brasileira. Contra as mulheres, os pobres, os mendigos, os negros, as crianças, os
adolescentes, os idosos que não são mais produtivos. Ocorre nas ruas, nos hospitais, nas
prisões, nas escolas, no trânsito, etc.
Os números são alarmantes sobre a violência e a brutalidade, um pequeno
quadro mostra uma realidade absurdamente brutal em todos os sentidos.
Por dia, o equivalente a uma sala de aula inteira de menores é apreendida por policiais nas ruas do estado do Rio. Durante todo o ano passado, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), as polícias Civil e Militar
7 MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2004.
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apreenderam 8.380 menores de idade — uma média de 23 por dia. Nos últimos sete anos, o número tem crescido exponencialmente. Durante todo o ano de 2008, 1.806 menores foram apreendidos — quase cinco vezes menos do que em 2014.8
Esses números acima apresentados nos mostram a catástrofe social que recai
sobre o Brasil. E por que essa é uma catástrofe? Porque atinge efetivamente a imensa
maioria da população pobre, de trabalhadores, de mulheres, negros e marginalizados.
Somos uma sociedade brutalmente autoritária e estruturalmente violenta, em todos os
sentidos. A violência contra as mulheres é um destaque nesse panorama, tanto no que
tange ao assassínio de mulheres quanto ao estupro, isso mostra uma cultura de poder
em que os oprimidos, no caso as mulheres, enfrentam diariamente em todos os
quadrantes da vida. Por outro lado, a infância e a adolescência são um contingente
profundamente fragilizado, vítima de um processo de brutalidade imensa e que ainda
não encontra a proteção institucional e social.
A produtividade e o não-valor
Diminuir a maioridade para 16 anos, de certo modo não parece nada absurdo.
Mas a questão que está por trás desse processo de mudança na lei é a inconteste luta do
capitalismo contra as massas oprimidas e não-rentáveis, no sentido de controlar e
impedir o acesso especialmente de menores aos bens sociais em geral. Trata-se de um
sintoma, que tem ares de prevenção social. Isto se deve a que no início do processo
capitalista da fábrica social do valor, as crianças eram submetidas ao trabalho nas
fábricas. A ideia de produtividade, de se manter produtivo na ordem social da produção
de valor, é um constante mecanismo ideológico de dominação para o trabalho. O
adolescente é premido por todos os lados para ser um sujeito ativo, com produção e
resultados visíveis na escola, na família, na sociedade em geral.
A Educação pelo trabalho como prática disciplinadora e regeneradora da infância pobre brasileira esteve presente durante o império, mas é com o regime republicano e a inauguração de instituições assistencialistas com um forte caráter moralizador e de formação profissional, que tais práticas se
8 EXTRA. Em 2014, 23 menores foram apreendidos por dia pela polícia no Estado do Rio. Disponível em
http://extra.globo.com/casos-de-policia/em-2014-23-menores-foram-apreendidos-por-dia-pela-policia-no-estado-do-rio-15535336.html, acesso em 1 de abril de 2014.
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naturalizam e alcançam o imaginário popular.9 (p. 3289)
O trabalho ainda é o fulcro desse problema. Uma vez que não haverá condições
estruturais para criar postos de trabalho com forte rentabilidade de valor para o próprio
sistema em quantidade desejável para absorver contingentes significativos de pobres,
milhões de pessoas serão absolutamente deixadas à própria sorte. Esse processo é mais
do que previsível em todos os aspectos.
Se considerarmos o sistema de mercado ocidental, baseado na economia de concorrência, não um modelo (bem-sucedido), mas sim um elemento do mesmo processo histórico da modernidade que gerou também a sociedade do trabalho, supostamente antípoda, do ―mercado planejado‖, o colapso desta última está muito longe de sinalizar uma nova era de prosperidade capitalista. O Ocidente, que já entrou em seu estado de crise, e o Leste, que em seu colapso converteu-se num adepto da lógica capitalista da concorrência, estão mentindo um para o outro. Enquanto o Ocidente espera a salvação de sua situação sem saída cravando os olhos no passado irrecuperável do boom ocidental da época pós-guerra, o Ocidente, ao contrário, espera do colapso do Leste uma saída da sua própria acumulação de capital estagnante por intermédio dos ―novos mercados‖ que existem apenas na sua imaginação, sem compreender a ameaça que esse colapso representa para o sistema do mercado global. E isso apesar de poder estudar os processos reais que se dão em sociedades de colapso num exemplo vivo, a saber, no exemplo daquele Terceiro Mundo cujo destino o Leste está prestes a sofrer também.10 (p. 155)
Daí termos um espetáculo do colapso em frente aos nossos olhos, e essa crise
irrevogável do capitalismo, que nos leva a uma ilusão absurda, a de que é possível o
desejo de consumo se consubstanciar em uma condição de relativa autonomia ou de
reconquista da normalidade das relações de mercado. Necessidades só são de fato
criadas à medida que o processo de produção geral cria as condições para a exploração
do tempo de trabalho socialmente necessário à transformação de qualquer coisa
produzida em mercadorias.
Mas as necessidades materiais e os desejos humanos não fazem surgir nenhum mercado ou, em outras palavras, nenhuma capacidade aquisitiva produtiva. Esta pode apenas nascer da exploração em empresas de força de trabalho humana, realizada no nível mundial da produtividade. Mas essas condições
9 COSTA, Kátia Regina Lopes. ―A construção social do conceito de infância: algumas interlocuções
históricas e sociológicas‖. IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS ―HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL‖, Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa – 31/07 a 03/08/2012 – Anais Eletrônicos – ISBN 978-85-7745-551-5.
10 KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. 6ª. ed., Tradução de Karen Elsabe Barbosa, São Paulo: Paz e Terra, 2004.
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prévias do próprio sistema são sistematicamente ignoradas nos condescendentes sermões dominicais dos especialistas e ideólogos ocidentais.11 (p. 156)
Os adolescentes e os jovens das periferias estão inseridos no contexto dramático
apresentado por Robert Kurz. Mais e mais, o acesso à aquisição de mercadorias se torna
um problema para o próprio sistema social do valor. Esses jovens e adolescentes são
atingidos em cheio pela falta de perspectiva, vivendo das migalhas que o próprio sistema
propicia, tendo de procurar na precarização das condições de trabalho algum ganho
substancial, esse contingente social está à mercê da própria sorte imposta pela
contradição do modo de produção capitalista. A questão não se reduz ao crime e à
violência, nem tampouco podemos, a princípio, definir que a precarização extrema da
vida social desses jovens e adolescentes leve a um processo de violência contra os que
detêm o poder econômico e político de adquirir mercadorias. O problema está, para as
elites, colocado como uma ameaça iminente, e elas necessariamente hão de encontrar
mecanismos de contenção, políticos e sociais, barrando qualquer possibilidade de que a
violência venha a se concretizar no cotidiano da vida social.
As elites
Esse conflito parece pender favoravelmente para o lado das classes dominantes,
pois elas ainda se sentem com a missão de civilizar, controlar, criminalizar e punir os
que praticam a delinquência.
Aqui é preciso insistir no aspecto ironicamente missionário com que parte das
elites e setores militares nacionais convergiram para a postura de uma suposta prática
civilizadora das massas empobrecidas no Brasil. A educação tem esse caráter de uma
estrutura que visava, sobretudo, incluir o Brasil no movimento internacional do capital e
de sua exploração.
Nesse contexto a educação teve papel primordial de ―civilizar‖, inculcando normas de convívio e boas maneiras. A ―moral‖ e os bons costumes tornaram‐se bandeiras de status das famílias abastadas financeiramente e mais um aspecto que os diferenciava dos pobres e ignorantes.12 (p. 3287)
À medida que a educação se torna sistêmica, regular, metódica e oficial, na forma
11 KURZ, Op. Cit. 12 COSTA, Op. Cit.
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de instituições de ensino públicas, perpassando todo o século XX, o adolescente e o
jovem se tornaram uma fonte de preparação para o trabalho. Estar ativo na escola e
obter boas notas, era o mínimo que um aluno deveria fazer, uma vez que havia sido
arrancado das condições de trabalho que desde a infância afetava as crianças, os
adolescentes e os jovens. A sociedade construiu um valor social para a educação, de
sorte que se tinha a impressão nítida de que esses alunos estariam protegidos, em
condições de serem preparados para a submissão ao trabalho abstrato.
Especialmente na era fordista de produção fabril, a escola estava preparada para
assumir o papel social de formadora das novas gerações de trabalhadores, uma missão
que está sendo destruída a olhos nus. O capital tinha condições de absorver as levas de
recém-formados e respirava-se o ar da eficiência escolar e das condições gerais de
ensino. A formação fordista é a formação científica transmitida por meio de um
processo etapista de conhecimentos necessários à produção, compartimentados.
Porém, quando essa era fordista entra crise e o modelo para a recomposição
orgânica do capital se dá em outra configuração, em que, sobretudo, a mecanização dá
lugar aos conhecimentos da informação que criam novas formas de produção, a escola
que tinha objetivo determinado, social e historicamente, pelo modelo fordista, entra em
crise. E o que era para ser um processo linear de preparação e formação, tornou-se um
grande obstáculo à nova socialização do capital, em que as massas despossuídas não
poderiam contar com essa forma social de aprendizagem. A apreensão cognitiva e a
atividade cerebral são, na atualidade em outras condições, não sequenciais nem
lineares, mas convergentes de forma circular. E esse processo é o reflexo de uma
mudança nas condições de produção, o trabalho vivo é continuamente descartado em
favor do trabalho morto. O que mantinha a disciplina social dos jovens sempre foi a
perspectiva do trabalho, a educação para o trabalho, o condicionamento e adestramento
para o trabalho.
Ora bem, se a escola não pode garantir que, na atualidade, a maioria tenha
condições de ser empregada na indústria e até mesmo na rede de trabalho fora da
indústria, e à medida que esse sistema educacional se torna obsoleto, a baixa
produtividade no que tange à rentabilidade desses jovens leva a um esgarçamento do
processo educacional e, por conseguinte, do processo social em geral. Sem garantias de
empregabilidade, e mesmo havendo tais garantias, a produtividade e a ocupação desses
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adolescentes e jovens se torna um problema social. O sistema social impingido pelo
capital se antecipa aos acontecimentos, com medidas preventivas.
Dentre as medidas preventivas, uma delas é a de criar a figura jurídica imputável
de pena para menores de 16 anos. Isto indica, a meu ver, que os observadores do
processo social anteveem os problemas que surgirão com a crise do capitalismo. Um
desses problemas diz respeito ao alto grau de volatilidade em que se encontram as
periferias dos grandes centros urbanos, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Há, de
certa forma, uma espécie de exército invisível, fruto de uma dinâmica social que impinge
aos mais pobres um estado de vida que lhes é indigno em todos os aspectos.
As elites se previnem com sua mobilização espetacular, com a atividade orgânica
da política e por meio de instâncias reguladoras, daí o avanço rápido da direita e de seus
mais extremos ditames, a extrema-direita e todos aqueles que se apresentam como
promotores da sociedade liberal, com forte discurso moralizador e um espectro
discursivo extremamente beligerante.
Os não rentáveis e a sua punição
A questão da produção capitalista cria, especialmente nas elites políticas e
econômicas, a ideia de que esse é o mote da civilização modernizante do capital, isto é,
formar para a produção e para o fazer, eis o aspecto da utilidade social dos indivíduos na
sociedade produtora de mercadorias. Especialmente no Brasil, esse eco civilizador está
presente desde a Primeira República e o esforço de controlar a população em condições
marginais se tornara um problema para as elites desde então.
Importante ressaltar que os modelos educacionais que surgiram no período republicano apenas aprofundaram discussões e constatações que, na verdade, iniciaram no final do século XIX, acompanhando as tendências internacionais. Dessa forma, percebe‐se que os moldes para um povo civilizado que ecoou definitivamente na Primeira República e a veemente necessidade de constituir uma nação a partir de um povo saudável, disciplinado e produtivo, tiveram início nos oitocentos brasileiro, que diferente das concepções cristalizadas pela historiografia tradicional, foi um período profícuo em políticas públicas educacionais na ânsia de alcançar os patamares de civilidade das sociedades europeias.13 (pp. 3285-3286)
Nesse sentido, me parece evidente que a nossa história está varada de grande
13 COSTA, Op. Cit.
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frustração por parte das elites e das classes que detêm o poder, dado o fato de que
enxergam a realidade brasileira eivada de uma série de fracassos sociais, em que
culpabilizam as massas inválidas do ponto de vista da produtividade eficaz. Fracassos
históricos que não são assumidos, mas marcados pela segregação social que no Brasil
possui um duplo caráter, de um lado, a herança escravagista e de outro a condição de
exploração determinada historicamente pelo modo de produção capitalista.
Diante desses anseios, médicos, juristas, políticos, clérigos, professores e militares se mobilizaram e passaram a atuar objetivando tornar a população saudável, disciplinada e produtiva. Pode‐se constatar isso por alguns fatos, tais como: o movimento higienista em algumas cidades brasileiras, a expansão de instituições disciplinares, tais como hospícios, reformatórios e escolas. (p. 3286)
Assim, a educação pública no Brasil se tornou um problema de difícil solução de
continuidade. A cultura que se vive há ao menos uma década e meia é a da militarização
social em detrimento da estrutura educacional que vê seu nível decair absurda e
gradativamente ao longo desse período. Um estado penal vem em substituição à
educação e às estruturas de proteção social. O processo de transformação por que passa
a sociedade é intrigante e preocupante. À medida que compreendemos essa
transformação, somos levados a comparar esse contexto com, por exemplo, os EUA, em
que a política de Estado a partir dos anos 1970 foi a de aumentar os conteúdos penais
em quantidade a fim de alcançar e aprisionar as populações mais fragilizadas – negros e
latinos (pobres na sua maioria). A política social de segregação agora passou a ter um
novo componente a seu favor, a lei e a pena, servem como artefato e pano de fundo para
o controle social por meio da criminalização dos mais pobres, tanto aqui no Brasil
quanto nos EUA.
A expansão e glorificação repentinas do Estado penal nos Estados Unidos a partir da metade dos anos de 1970, e depois em toda a Europa segundo os mesmos esquemas, vinte anos mais tarde, não correspondem a nenhuma ruptura na evolução da criminalidade: os crimes não mudaram bruscamente de escala ou de padrão durante esse período seja em um ou no outro lado do Atlântico. Esse fenômeno também não traduz um aumento da eficiência do aparelho repressivo que justificasse seu reforço, como querem fazer crer os responsáveis pelo mito acadêmico da ―tolerância zero‖ que se espalhou por todo o planeta. Não foi tanto a criminalidade que mudou, mas o olhar que a sociedade passou a ter sobre algumas ilegalidades de visibilidade pública, ou seja, no final das contas, sobre as populações deserdadas e desamparadas (por seu status ou origem) que começaram a recair a suspeita de crimes, desde
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o local que essas pessoas ocupam nas cidades, até os usos e tradições delas passaram a ser explorados nos âmbitos político e midiático.14 (p. 199)
À medida que os pobres se tornam visíveis no cenário social, por vários motivos,
os jovens que não conseguem um acesso adequado na proteção da malha social do
trabalho e da segurança à aquisição de mercadorias, sofrem as agruras de serem
estigmatizados pelas camadas que se situam em melhores condições materiais e são
fustigados pelos aparatos repressores tanto públicos quanto privados.
Liberdade de ação e penalização
A questão se aprofunda em aspectos mais interessantes. A liberdade social é
imputada exclusivamente ao sujeito social, que por uma absorção da forma mercadoria,
assume a condição de autônomo diante das escolhas na aquisição dessa mercadoria.
Essa condição subjetiva faz com que a própria sociedade capitalista exclua a relação
entre o todo e suas partes, condicionando as partes à sua própria responsabilidade
social e, especialmente no que tange à moral. A liberdade social está no restrito âmbito
das escolhas e da imperiosa necessidade de se conhecer as leis sociais impostas por um
ordenamento jurídico que é alheio às condições humanas fundamentais, restritivamente
a um controle social por meio da moral do trabalho.
Ela mantém da forma mais tosca possível o conceito de liberdade como um valor relativo exclusivamente ao indivíduo, deixando a esmo o problema tão importante para os gregos, ou para autores modernos como Hegel e Marx, da liberdade coletiva, e de como esta, ao mesmo tempo em que contém a liberdade do indivíduo, a amplia para horizontes inalcançáveis apenas por ele. Este conceito empobrecido de liberdade elimina a obrigatória relação do indivíduo com o caráter orgânico da sociedade, criando a falsa consciência de que este pode prescindir daquela.15 (p. 120)
Dessa forma, o conceito de liberdade relativo à coletividade encerra uma
contradição que a sociedade capitalista não está disposta a resolver. A contradição da
liberdade entre três termos que se relacionam. De um lado, o sujeito social
mercantilizado, de outro, o mito da coletividade que imagina ter a autonomia sobre si
14 WACQUANT, Loïc. ―Insegurança social e surgimento da preocupação com a segurança‖. Tradução de
José Emílio Medauar Ommati. In Panóptica. Ano 3. Número 19, julho-outubro 2010, pp. 198-213. 15 MENEGAT, Marildo. Estudos sobre ruínas. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia,
2012. (Pensamento Criminológico, 18)
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mesma e, o terceiro termo é o sujeito histórico da forma mercadoria, que é o grande
poder fetichista da sociedade produtora de mercadorias. Os dois primeiros termos se
digladiam na quase certeza de que dominam seus campos de ação e sua identidade, no
entanto, ambos são dominados pelo sujeito sem rosto que exerce o poder numa espécie
de Leviatã capitalista. Mas por um motivo de osmose histórica e social, o coletivo, na
verdade, assume a liberdade do senhor da história – o valor, e age em nome do sujeito,
que tem a pretensa impressão de que está agindo por conta própria. Assim, exige-se dos
jovens a mesma consciência de quem assume o risco da relação da troca,
conscientemente – a lei está do lado de quem tem o poder de impô-la seletivamente na
sociedade burguesa.
Menegat dá um vaticínio que me parece ainda mais conclusivo quanto à relação
entre a estrutura da sociedade e o processo punitivo. ―Portanto, quando algo a respeito
da forma punitiva da sociedade muda, pode se ter a certeza de que é a própria estrutura
da sociedade que está mudando‖16 (p. 121), uma afirmação que implica a compreensão
da mudança das relações de produção e as formas sociais políticas que são concernentes
a essa estrutura do ponto de vista do ordenamento jurídico que a sustenta.
O tensionamento que ocorre nas esferas da relação social revela que a sociedade
capitalista é, por sua essência, segregacionista, sendo que neste aspecto característico, a
luta pelo confinamento de populações que apresentam ameaça ao processo produtivo é
mais consistente do que a ameaça às condições étnicas ou de grupos separados. É
evidente que os administradores do sistema se valem desses artifícios históricos para
confinarem ainda mais determinados grupos sociais, aqueles que se encontram à
margem do processo de produção e que, notoriamente, não oferecem perspectivas
rentáveis para as relações de troca em geral. Isto é, os pobres são perigosos para o
sistema porque podem criar um desequilíbrio funcional tensionando as formas de
aquisição de mercadorias, pois é disto que se trata em última instância.
Simplificando, a falta de rentabilidade, isto é, a incapacidade de gerar valor, em
virtude da imensa gama de trabalho morto inserido no processo da produção, gera uma
população em condições precárias no que se refere à possibilidade de acesso e aquisição
de mercadorias. Esse processo implica a tensão social elevada ao máximo. E nesse
16 MENEGAT, Op. Cit.
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espectro de mazelas, encontram-se aqueles adolescentes e jovens que estão a um passo
do mergulho sem volta no processo de esgarçamento do tecido social, por vários motivos
– família, abandono social, saúde, educação, proteção, etc.
Essas categorias-detrito – jovens desempregados e sem domicílio fixo, nômades e dependentes químicos à deriva, imigrados pós-coloniais sem passaporte e documentos nem relações fixas – subitamente se tornaram proeminentes no espaço público, sua presença indesejável e suas ações intoleráveis, porque eles são a encarnação viva e ameaçadora da insegurança social generalizada produzida pela erosão do salário estável e homogêneo (promovido pelo paradigma de emprego na época das décadas de expansão fordista entre 1945 e 1975) e pela decomposição das solidariedades de classe e de cultura que a estabilidade econômica sustentava em um quadro nacional claramente circunscrito.17 (p. 199)
A descrição refere-se aos EUA, mas a política de Estado no Brasil é a mesma, o
avanço sobre esses jovens e adolescentes, desempregados e sem futuro no comércio
social da troca de valores. A sociedade brasileira enfrenta o grande problema do
processo de produção, do fordismo ao toyotismo e deste para as novas formas de capital
associado, em que a produção de mercadorias não encontra um lugar fixo e em que a
exploração do trabalho vivo se torna um peso até mesmo para a extração da mais-valia
absoluta.
O que, afinal, a sociedade fará com essa população em grau cada vez mais
crescente? Deverá sustentá-la, confiná-la, exterminá-la? Criará mecanismos de
contenção e criminalização a fim de que seja colocada sob o tacão da força? Os guetos,
as prisões, a segregação serão formas alternativas a determinadas políticas sociais que
tentarão aplacar a miséria e a violência criminal nesses espaços geográficos urbanos.
Conclusão
É nesse contexto de profundo confronto social e desigual, que se torna cada vez
mais explícito e aberto, que as populações desprotegidas e lançadas à própria sorte estão
sob a ameaça de perseguições de toda ordem, mais do que qualquer outra camada da
sociedade produtora de mercadorias. Ao contrário, as ações que a direita promove no
Brasil são uma reação a um processo social de crise, que revela apenas o seu sintoma,
17 WACQUANT, ―Insegurança social e surgimento da preocupação com a segurança‖, Op. Cit.
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cujas causas estão na crise estrutural do capitalismo que assola o mundo todo. Com este
cenário, e tendo como muleta discursiva o empobrecimento dos argumentos e a fúria
destrutiva das classes dominantes, a tentativa de mudança da maioridade penal esconde
um processo de luta de classes evidenciado pela incapacidade de uma parte da
população em gerar valor conforme o modo de produção do capital. Trata-se, portanto,
de ação preventiva por parte dos gestores do sistema, contra adolescentes e jovens, com
escopo de garantir o controle social com medidas restritivas e punitivas, diante do
processo de colapso da própria sociedade das mercadorias. Nesse sentido, outras
medidas serão tentadas no Congresso e virá uma onda de retrocesso social até,
possivelmente, a inclusão da pena de morte.
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GERAÇÃO SARRAZIN*
Breve esboço da gênese da nova direita alemã
Tomasz Konicz
São assustadores os 70 minutos com os quais qualquer usuário do YouTube pode
torturar-se, digitando no sistema de busca ―Pegida: Die Interviews in voller Länge‖ e
assistindo o material sem cortes de entrevistas de apoiadores do PEGIDA,
disponibilizado por uma equipe de jornalistas do programa de atualidades políticas
Panorama do canal NDR.1 A NDR tomou essa decisão incomum porque um jornalista
da RTL que estava disfarçado de manifestante foi entrevistado, e houve denúncias de
manipulação.2 O exame do material torna óbvio, porém, que as declarações do jornalista
disfarçado foram as demonstrações mais reservadas e cautelosas de xenofobia,
enquanto muitos dos ―verdadeiros‖ apoiadores do PEGIDA tinham óbvia dificuldade
para manter seu ódio e sua raiva sob controle. Assim, as entrevistas oferecem uma rara
oportunidade de compreender a visão de mundo de um movimento de extrema direita
que geralmente rejeitou toda análise de seus delírios – com o lema: ―a ilusão é minha‖.
Duas linhas de argumentação carregadas de ressentimento destacam-se imediatamente
nas entrevistas: de um lado as queixas sobre baixos salários e pensões, sobre a crescente
precarização e tendências de decadência social, cujos responsáveis eleitos são
invariavelmente ―os estrangeiros‖, e, por outro lado, a firme convicção de que a
Alemanha seria um país ocupado e manipulado.
* Referência a Thilo Sarrazin, politico alemão filiado ao SPD (social-democrata), conhecido por suas
posições anti-imigração e a favor da precarização dos direitos sociais. [N. do T.] 1 PEGIDA (Patriotische Europäer gegen die Islamisierung des Abendlandes – Europeus Patriotas Contra a
Islamização da Terra do Sol Poente), movimento atual de extrema direita, atuante principalmente em Dresden, onde realiza marchas regulares que já contaram com mais de 20 mil pessoas (em uma cidade de 500 mil habitantes). As entrevistas, em alemão, podem ser assistidas em https://www.youtube.com/watch?v=Bl0KPaLPL7g (parte 1) e https://www.youtube.com/watch?v=a7f2YOgLtco (parte 2). Acesso em abril/2015. [N. do T.]
2 O jornalista disfarçado é o primeiro entrevistado nos vídeos mencionados na nota anterior. [N. do T.].
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Isso vai desde a observação relutantemente murmurada de que ―a Alemanha não
seria um país soberano‖ até conspirações abertamente antissemitas – recompensadas
com o aplauso frenético dos manifestantes circundantes – segundo as quais as ordens
dirigidas à elite política da Alemanha viriam ―de Washington e de Tel Aviv‖. É
arrepiante a franqueza com que o aposentado que vive de pensão miserável se revolta
contra os alegres ―estrangeiros‖ que encontra nos trens, a caminho de seus empregos
com cujas baixas remunerações têm de sobreviver. Mulheres de meia-idade de boas
maneiras gritam, sob aplausos, que as fronteiras devem ser finalmente ―fechadas‖, sem
o que elas perderiam os cabelos. As queixas sobre as condições socioeconômicas em
deterioração passam diretamente ao ressentimento xenófobo ou antissemita. Todo o
mal vem de fora, enquanto a nação – ou, no delírio avançado, novamente a comunidade
nacional [Volksgemeinschaft] – é imaginada como potencialmente harmônica e livre de
contradições. E quando as políticas do governo não agradam essa nova direita alemã –
que obviamente iguala as suas ideias fixas e obsessões com o ―interesse da Alemanha‖ –
é porque essa elite política também está sendo dirigida a partir de fora.
Mobilização de ressentimentos
De onde vem esse aparentemente súbito movimento atual da extrema direita, que
com pose rebelde ataca a ―imprensa mentirosa‖3 e quer acertar as contas com o
establishment político da Alemanha? Para a maior parte das elites funcionais do país
esses desenvolvimentos são – ao menos por enquanto – obviamente inconvenientes.
Após inicialmente optar pela fracassada tática de ignorar, suas inconsistentes reações
vão da tentativa de integração e convites à discussão até as mais ou menos claras
condenações dessa arrancada da nova direita em direção à reconquista das ruas e da
hegemonia social.
Um exame nos arquivos da chamada ―imprensa mentirosa‖, os grandes meios de
comunicação, pode fornecer as primeiras pistas para a gênese da nova direita alemã. A
república berlinense viu após a reunificação quatro grandes mobilizações de
3 Lügenpresse (imprensa mentirosa) é um mote frequente nas marchas do PEGIDA [N. do T.].
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ressentimento que foram insufladas pelos meios de comunicação de massa, com as
quais se buscou objetivos políticos específicos. A atual limitação do direito de asilo
implementada no começo dos anos 90 pode ser apontada como um ato de fundação
informal da república berlinense, tendo sido acompanhada por uma onda de pogroms,
assassinatos de motivação racista e uma campanha de difamação insuflada por políticos
e meios de comunicação contra o ―abuso do direito de asilo‖. Esse foi o tempo prenhe de
ódio no qual abrigos de refugiados e imigrantes foram queimados, enquanto os meios de
comunicação de massa – tendo à frente o Der Spiegel, cuja edição de 9 de setembro de
1991 ilustrou um barco nas cores nacionais completamente lotado e ameaçado por uma
enchente de pessoas – e amplos setores da elite política, sobretudo do CDU4, usavam
uma retórica do tipo ―o barco está lotado‖ para vencer a barreira de dois terços para
aprovação uma emenda constitucional. A esquerda alemã também pode mobilizar o
ressentimento, como mostra a guerra do Kosovo levada a cabo pelo governo vermelho-
verde em 1999, quando uma furiosa campanha contra a Sérvia – enriquecida com a
retórica dos direitos humanos – acompanhou a primeira agressão bélica ilegal da
Alemanha após o fim da Segunda Guerra Mundial.
O passo decisivo que tornou a Alemanha um verdadeiro estado de servos, porém,
foi a implementação da Agenda 2010 e as leis trabalhistas Hartz. O endurecimento
draconiano da legislação trabalhista e a desregulação do mercado de trabalho, que
acarretaram massiva diminuição dos salários reais, o surgimento do maior setor de
baixos salários da Europa e uma intensificação geral do regime de trabalho, foram
insuflados com uma campanha de difamação sem precedentes contra setores
marginalizados da população: o Bild criou o ―Florida-Rolff‖5, a grande imprensa
procurava o ―desempregado mais perverso da Alemanha‖, o discurso do chanceler
dizendo que ―não existe direito à preguiça‖ e a selvagem ameaça de morte ―quem não
trabalha, não deve comer‖ deram coloração marrom à campanha. Durante a crise do
euro, quando a Alemanha forçou o restante da zona do euro ao desastroso regime de
austeridade, esse mecanismo ideológico banalizado – através do qual os perdedores da
crise são tachados como seus causadores – devia ser projetado somente ―para fora‖,
4 Democratas-cristãos, conservadores, partido de Angela Merkel. [N. do T.] 5 Referência ao caso de um aposentado que, supostamente, recebia pensão vivendo no exterior. [N. do T.]
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para o sul da Europa. A personificação ideológica das causas da crise funcionou não
mais com base nos ―parasitas desempregados‖, mas através da construção dos
―preguiçosos e irresponsáveis‖ europeus do sul. Foi notória a imagem de capa da Focus
de 22 de fevereiro de 2010, na qual uma estátua grega mostra o dedo médio ao leitor
alemão.
Em todas essas campanhas, as crescentes tensões relacionadas à crise – miséria
dos refugiados, guerra, pobreza, desemprego de massa, desintegração social, crises
econômicas – foram projetadas em direação a um ―exterior‖, para além da imaginada
sociedade do trabalho alemã livre de contradições. Precisamente esse mecanismo de
terceirização das causas da crise e sua personificação praticado pela indústria cultural se
tornam evidentes nas mencionadas declarações dos manifestantes do PEGIDA. E
obviamente o funcionamento diário da indústria cultural propaga esse ressentimento. O
Spiegel já alertou em 2007, em matéria de capa, para a ―silenciosa islamização da
Alemanha‖. A difamação de refugiados e asilados na Alemanha é produzida em massa e
diariamente, como no jornal Bild. Nessa medida o conceito de ―extremismo do centro‖
ganha contornos: os manifestantes apenas levam ao seu limite a ideologia fabricada
pelos meios de massa para a conquista de determinados objetivos políticos, eles exigem
uma campanha de difamação permanente da ―imprensa mentirosa‖, como ficou óbvio
na faixa central da manifestação em Dresden após os atentados de Paris: ―nós choramos
pelas vítimas da imprensa compreensiva!‖
Autonomia do ressentimento
Seria equivocado, porém, considerar os apoiadores da nova direita alemã como
meros seguidores ―seduzidos‖, que se deixam instrumentalizar por ―flautistas de
Hammelin‖ em sua rebelião conformista. A própria forma de sociabilização fetichista do
capitalismo promove diretamente nas massas a formação de uma estrutura de caráter
que é receptiva a ideologias de direita. A crise torna manifesta essa demanda latente
previamente existente – e portanto os meios de comunicação de massa atendem essa
demanda. O debate gerado por Sarrazin, no qual durante a implementação da Agenda
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2010 a imagem estabelecida do ―parasita social‖ foi enriquecida com ressentimentos
racistas e social-darwinistas, já apontava para tal ―autonomia‖ do ressentimento, que já
não era mais instrumentalizado para a conquista de objetivos políticos específicos. O
bestseller ―Deutschland schafft sich ab‖ [A Alemanha abole a si mesma] de Sarrazin, no
qual estratos sociais inferiores como os imigrantes árabes, rapidamente crescentes após
as leis Hartz, foram apresentados como defeituosos genéticos, serviu exatamente a essa
necessidade crescente de legitimação da exclusão e da marginalização de camadas mais
amplas da população, especialmente por parte da classe média. Nesse debate, que não
se iniciou com um objetivo político específico, mas a partir da crescente pressão
ideológica de crise sobre as classes médias e setores das elites funcionais, a nova direita
conseguiu pela primeira vez remover o tabu que pairava sobre a expressão pública do
ressentimento. Essa vitória de Sarrazin, com a qual algumas celebridades da política e
da cultura se solidarizaram, possibilitou o atual movimento PEGIDA, que ao fim apenas
recicla e agudiza o discurso então estabelecido.
Estamos lidando com uma Geração Sarrazin, que se articula imediatamente como
pequena minoria perseguida assim que se levantam objeções contra o seu
ressentimento. Com isso a direita toma para si a atitude ―politicamente correta‖ que
tanto odeia – eles creem firmemente que são vítimas de um ―racismo antirracista‖,
como descreveu precisamente um caricaturista francês. Além disso, é precisamente a
quase concluída penetração na sociedade com as novas formas e possibilidades de
comunicação da internet, que torna possível essa autonomia do ressentimento. Elas não
podem mais ser controladas pelos meios de massa ou serem ligadas ou desligadas sob
demanda do ―mainstream‖, mas desenvolvem uma vida própria na rede, elas se
transformam e se desdobram em incontáveis canais de informação, grupos de discussão
e fóruns baseados na internet, em uma infinidade incontrolável de variações do delírio.
Ocorre uma individualização do ressentimento, que é característica da atual ―dupla
dominação‖ na mente dos homens metropolitanos do capitalismo avançado, que os
meios de massa cada vez mais destituídos de exclusividade interpretativa e a livre
aquisição da informação constituem como uma comunicação em rede: o ressentimento
―tradicional‖ adquirido é desenvolvido e modificado sob direção própria.
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Legitimação da exclusão e concorrência de crise
Com isso essas fantasias diversas e confusas da nova direita, que ainda
dificilmente confluem para uma ideologia consistente, se apresentam como uma lógica
comum completamente interna ao capitalismo. Elas oferecem a legitimação do
desenrolar da crise. O objetivo da exclusão da sociedade do trabalho de partes
―supérfluas‖ cada vez maiores da humanidade promovida pelo processo de crise
encontra a sua legitimação ideológica nos correspondentes discursos extremistas, que
consideram inferiores os desempregados, europeus do sul e ―árabes‖, por motivos
racistas ou culturalistas. A crise, para a nova direita, não é um processo social de
crescente desenvolvimento das contradições, mas a consequência inevitável da essência
racial ou cultural dos indivíduos ou ―povos‖ afetados. Com o escudo da própria
―comunidade nacional‖ [Volksgemeinschaft] e com o fechamento das fronteiras para os
refugiados, a nova direita quer encerrar também a crise.
Simultaneamente, a nova direita legitima a crescente concorrência de crise: pois
obviamente tanto o populismo quanto o extremismo de direita, em todas as suas
formas, sempre tomaram de bom grado o princípio da concorrência e o modificaram e
promoveram de maneiras diversas. As ideologias de direita tomam emprestado desse
princípio da economia capitalista um sentido ―elevado‖ atemporal, através do qual eles
imaginam a concorrência como um princípio eterno da vida em sociedade: a amplitude
ideológica alcança aqui desde o darwinismo social de um Sarrazin até o sistema
maniqueísta delirante do nacional-socialismo alemão, que delira com uma eterna
concorrência e luta pela sobrevivência entre diferentes ―raças‖, em especial arianos e
judeus.
Ao fim e ao cabo todas as ideologias da desigualdade humana da direita populista
e extremista exibem um núcleo material realmente existente. Elas seguem – também em
sua variante nacional-socialista – um cálculo de custo-benefício, que se baseia na
internalização dos critérios de rentabilidade e formas de sociabilização capitalista, e
ganham um poder de atração especial em tempos de crise. A marginalização, a expulsão
ou simplesmente o assassinato de grupos populacionais (―estrangeiros‖, ciganos, judeus,
muçulmanos, homossexuais etc.), que são propagados pelos diferentes grupos de direita
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devem vir acompanhados de tangíveis vantagens materiais para a maioria da população.
Com a negação dos serviços sociais para as minorias ―inimigas‖, através de sua
discriminação aberta no ―mercado de trabalho‖ ou de sua expulsão ou confisco, a
posição material da maioria da população deve melhorar. Com as políticas concretas
racistas, as consequências da crise devem desaparecer, o que mais uma vez corresponde
a um aguçamento da política econômica neoliberal – e assim se encaixa no conceito de
―extremismo do centro‖.
Hegemonia do servilismo
Um importante fator adicional que funciona como incubadora de ideologias de
direita é o crescente espírito de renúncia e a relacionada frustração pulsional, que leva a
uma identificação autoritária com o sistema – acompanhada de crescente potencial
agressivo. Com a escalada das contradições aumenta também a pressão econômica
sobre todos os setores e camadas sociais; seja na forma de aumento da intensidade do
trabalho, benefícios sociais diminuídos ou perda de oportunidades de vida. A crescente
carga da valorização capitalista em crise deixa à maior parte dos assalariados, na
verdade, apenas duas opções: rebelião contra a loucura da crise ou identificação
irracional e submissão aumentadas. Mais tarde, com a implementação das leis
trabalhistas Hartz, a atitude submissa tornou-se hegemônica no ―estado de servos‖ da
Alemanha sob as ―restrições‖ da máquina de valorização do capitalismo avançado
colapsante levadas ao absurdo.
O portador da ideologia de extrema direita, marcado por uma estrutura de
caráter autoritária, internaliza os requisitos e especificações da valorização do capital.
Ele mergulha fundo no sentimento da heteronomia que é próprio da formação social
capitalista. Em crescente crise de identidade, ele intensifica a identificação do caráter
autoritário com o sistema existente, como Erich Fromm na famosa antologia
―Autoridade e Família‖ já em 1936 observou: ―quanto mais... crescem as contradições
internas da sociedade e quanto mais insolúveis elas se tornam, quanto mais catástrofes e
guerras e desemprego são ofuscados como poderes inevitáveis do destino, quanto mais
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forte e mais generalizada se torna a estrutura de pulsões sadomasoquista e, com isso,
quanto mais autoritária a estrutura de caráter, tanto mais o abandono e o destino se
tornam as virtudes e os prazeres mais elevados.‖
Esse sadomasoquismo resulta da imensa frustração já mencionada, que o caráter
autoritário em formação se impôs pela dinâmica da crise. Também aqui sempre se
acumulam grandes agressões, que procuram por um alívio. Quanto maior a frustração
das pulsões, maior a necessidade de descarga; o masoquismo exige satisfação sádica.
Essa fixação pode ser observada com nauseante perfeição na crise política alemã,
explicitamente nas crueldades que foram cometidas por Berlim contra a periferia do sul
europeu, justificadas com o fato de que na Alemanha sofreu-se e superou-se algo
semelhante durante a implementação da Agenda 2010. A aceitação submissa da
frustração e da dor concede o direito de provocar dor – esse é realmente o núcleo
sadomasoquista patológico de todo mote de direita sócio-darwinista sobre ―força‖,
―determinação‖ e ―dureza‖.
Adorno, em seu escrito ―Educação após Auschwitz‖, estabeleceu de forma geral
esse mecanismo psíquico que insta à ―descarga‖ da tensão psíquica reprimida em atos
violentos. Como ele observou, ―a raiva contra a civilização‖ é descarregada em um
esquema segundo o qual ―a violência é dirigida contra os mais fracos, principalmente
contra aqueles que são considerados socialmente fracos e ao mesmo tempo são
percebidos – seja isto verdade ou não – como felizes‖. Por isso aposentados alemães
desafortunados, que ainda precisam trabalhar na velhice, se revoltam contra imigrantes,
que eles imaginam como felizes ou sortudos [glücklich]. Nada é mais é mais odiado pelo
caráter autoritário infeliz do que a felicidade de pessoas que estão abaixo dele na escada
hierárquica capitalista. Adorno argumenta de maneira semelhante em ―O que significa
elaborar o passado‖. O nacional-socialismo aumentou o ―narcisismo coletivo‖ e com
isso, incomensuravelmente, ―a vaidade nacional‖, para, face à crescente frustração
diária, fornecer satisfações substitutas: ―os impulsos narcisistas do indivíduo, ao qual o
mundo embrutecido promete cada vez menos satisfação, mas que continuam a existir
sem amparo, enquanto a civilização lhes oferece tão pouco, encontram satisfação
substituta na identificação com a totalidade.‖ Esse diagnóstico bastante preciso de
Adorno é problemático apenas quando ele considera que as coerções fetichistas e
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absurdos da sociabilidade capitalista – aqui bastante análogas a Freud e seu famoso
―mal-estar na civilização‖ – como uma tendência geral do processo civilizatório.
O psicólogo social Oliver Decker colocou esse ―sistema circulatório autoritário‖
literalmente insano especificamente em relação com a economicização autoritária das
sociedades do capitalismo avançado atacadas pela crise: ―A constante orientação para
objetivos econômicos – mais precisamente: a exigência de submissão às suas premissas
– fortalece um sistema circulatório autoritário. Ela acarreta uma identificação com a
economia, por onde a compulsão à renúncia de vantagens acarreta agressão autoritária,
que se direciona contra os mais fracos.‖ A política neoliberal de renúncia a partir do
"centro", que foi aplicada a toda a Europa, traz com ela a agressão extremista autoritária
contra as vítimas da crise, baseada tanto no populismo quanto no extremismo de
direita. Quanto mais estrito o ditame da austeridade, quanto mais violentas as
turbulências econômicas por ele causadas, maior o ódio à vitima dessa crise política que
grassa entre todos os membros da sociedade, e que exibem as correspondentes
disposições autoritárias.
Finalmente, e isso se refere a Adorno no mencionado ―Educação após
Auschwitz‖, a ―consciência coisificada‖ do núcleo íntimo do extremista de direita,
constituída através da sociabilização capitalista totalizada, dá forma à educação
ideológica potencialmente eliminatória. A consciência coisificada seria sobretudo aquela
―que se defende em relação a qualquer vir-a-ser, frente a qualquer apreensão do próprio
condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe de um determinado
modo‖. O portador da consciência coisificada mantém a sua identidade, e o seu ―ser-
assim – que se é de um determinado modo e não de outro – é apreendido
equivocadamente como natureza, como um dado imutável‖ e não como um devir
resultante da socialização. O mecanismo ideológico da personificação das causas da
crise, apresentado acima – assim como o processo de naturalização do capitalismo
correspondente –, evidenciam plenamente essa constituição psicológica patológica.
Disso resulta exatamente uma incapacidade de autorreflexão, que é característica de
praticamente todos os apoiadores do PEGIDA, a sua recusa de falar com a imprensa ou
mesmo de participar anonimamente de estudos e pesquisas. ―A ilusão é minha‖ –
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justamente porque sou assim, e não de outro modo, e sempre fui.
O sujeito automático e a imitação rançosa da subjetividade
A gênese da consciência coisificada só pode ser bem compreendida com a
reflexão sobre o caráter fetichista da sociabilização capitalista e da função social
totalizante do capital como sujeito automático, que é literalmente constituído
diariamente pelos sujeitos concorrenciais do mercado, mas desenvolve uma dinâmica
própria mediada através do mercado, ―pelas costas dos produtores‖ (Marx), que é
confrontada como um poder externo e alienado na forma de crescentes restrições
materiais de crise, exigências de mercado, tensões e contradições. Esse sentimento
generalizado de heteronomia, essa ―determinação estranhada‖ (Fremdbestimmung),
exala de todas as atuais ideologias da conspiração, que culminam no antissemitismo.
Adorno ao menos apontou isso, quando observou que pessoas de consciência coisificada
―se tornam iguais a coisas‖, para em seguida, se possível, tornar ―os outros‖ iguais a
coisas.
O que aparece aqui é a absurda posição do sujeito do mercado no automatismo
da valorização do capital. O sujeito automático, por um lado, faz das pessoas objetos de
seu movimento de valorização, coisas, mercadorias, que são transacionadas no mercado
– e que têm de se adaptar a essa forma mediada de dominação sem sujeito como uma lei
da natureza elaborada pelo homem com um sentimento subjacente de impotência. Ao
mesmo tempo, a única chance de viver uma rançosa imitação de subjetividade consiste
em, como máscaras de caráter (Marx) da economia, colaborar ―subjetivamente‖ com o
aperfeiçoamento da acumulação capitalista infinita – e assim novamente degradar ―os
outros‖ a objetos e ―tornar-se igual a coisas‖. No fetichismo excessivamente real, que o
sujeito automático perpetua, os corredores da esteira capitalista são sempre
simultaneamente sujeitos da acumulação e seus objetos impotentes. Todos os
corredores da esteira capitalista mundial funcionam como sujeitos-objetos do
movimento autonomizado da valorização, que eles próprios perpetuam, no qual as
relação concreta entre esses dois polos depende da posição hierárquica no processo de
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reprodução do capital. Somente a superação desse fetichismo removeria o chão da
extrema direita.
(Traduzido por Daniel Cunha
Título Original: ―Generation Sarrazin‖
Streifzüge 63 (2015)
Disponível em http://www.streifzuege.org/2015/generation-sarrazin )
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ESTADO DE PESTE / ESTADO DE SÍTIO
Para reler A peste, de Camus
Cláudio R. Duarte
―Esse tão selvagem rato, não teme inferno nem gato.‖
(Heinrich Heine, Die Wanderratten)
Tomado à distância, diminuídas as febres ideológicas do seu tempo e do nosso,
La peste (1947)1 pode figurar como um torso firme, com alguns desgastes e rachaduras
por certo, mas ainda capaz de estimular a reflexão. Existencialismo, estruturalismo, pós-
marxismo, pós-modernismo, mulculturalismo pós-colonial – nada parece poder
simplesmente reduzi-lo como experimento narrativo. É preciso então reler o romance e
descobrir sua coloração própria. O impulso mais comum da crítica é lê-lo do exterior:
reduzi-lo ao que se sabe sobre Camus, seus ensaios filosóficos, suas outras obras
artísticas, seus diários e declarações políticas, quando não ao que se sabe sobre o
existencialismo. Primeira questão de método, portanto: afastar tudo isso, buscar a
crítica imanente da obra. E isso porque, apesar das lacunas, o romance é mais crítico e
interrogativo do que a filosofia de segunda mão de Camus, ou do que outros projetos
artísticos seus. Tal como a obra de grandes como Kafka ou Beckett, ou Machado de
Assis, Carpentier e Roa Bastos dentre nós, a escrita camusiana tem certa relação com
uma experiência social que nunca realmente cessou: a experiência do estado de exceção
– a começar por aquela da ocupação nazista e dos regimes ditatoriais do Leste, mas
também, antes deles, de forma camuflada, e muitas vezes de modo insuspeito pela
crítica, o do colonialismo francês na Argélia.
1 CAMUS, Albert. La peste. Paris: Gallimard, 1947. Utilizei nas citações, com algumas emendas, a
tradução de Valerie Rumjanek Chaves: A peste. Rio de Janeiro: Record, s.d. Cito a seguir, no corpo do texto, respectivamente, os números das páginas do original e da tradução.
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Um inconsciente colonial
É o que aparece indicado já em seu primeiro parágrafo: ―Os curiosos
acontecimentos que são o objeto desta crônica ocorreram em 194..., em Oran. Segundo a
opinião geral, estavam deslocados [ils n'y étaient pas à leur place], já que saíam um
pouco do comum. À primeira vista Oran é uma cidade comum e não passa de uma
prefeitura francesa na costa argelina‖ (11/7). Se os acontecimentos da cidade infectada
se transformam numa metáfora dos nazistas na França (então chamados la peste
brune), antes de mais nada caberia dizer que o enredo histórico é moldado pela imagem
prismática de um estado de exceção secular – cuja senha filosófica camusiana será a
ideia do ―Absurdo‖ –, capaz de significar e expor para além de si as mais variadas
situações de emergência, exclusão, crime, transgressão e violência dentro da ordem
capitalista mundial. Na verdade muito anteriores ao regime nazista se considerarmos os
quadros do domínio colonial francês e da população argelina administrada Ŕ mesmo em
sua aparente exclusão do relato.2 Nesse sentido, Edward Said teria certa razão em dizer
que há uma espécie de inconsciente colonial no romance – que expulsa os árabes (e por
que não também os berberes) da representação.3 Para o crítico, isso teria um sentido
expressamente apologético: ele não só se referiria ao imperialismo francês de modo
vesgo, mas o apoiaria e o legitimaria. Essa acusação ocorre basicamente porque o crítico
egípcio desconsidera a relação intrínseca, no romance, entre os elementos do
imperialismo, nazismo e demais formas de estado de exceção modernas, que
transcendem o caso particular argelino, sem simplesmente cair numa fábula
universalista ou simplesmente fantástica. A crítica de Said não caberia mais à série de
intérpretes que reduzem o alcance do livro à questão da Ocupação e da Resistência
francesa e a uma moral abstrata?4
2 Para uma leitura do (neo)colonialismo como laboratório de um estado de exceção mundial permanente
cf. ARANTES, Paulo. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007; Idem, O novo tempo do mundo Ŕ e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.
3 SAID, Edward. ―Camus e a experiência colonial francesa‖ in: __. Cultura e imperialismo [1993]. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
4 Cf. p. ex. SPRINTZEN, David. Camus: a Critical Examination. Philadelphia: Temple University Press, 1988. Para uma revisão geral dessas leituras mais ou menos redutoras, que vão de Sartre, Beauvoir, membros de Temps Modernes até Jean Pouillon e Roland Barthes, vide: FOLEY, John. Albert Camus: from the Absurd to Revolt. Stocksfield: Acumen, 2008, pp. 50-4.
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A coisa então é mais complicada ou, pelo menos, muito mais ambígua que isso.
Pois, como anunciado acima, haverá algo de deslocado, fora de lugar, que fará estourar
a fachada ordinária. Primeiramente, lembremos que A peste não é narrado em terceira
pessoa por Camus, de maneira direta, mas por um narrador em situação, um cronista
―objetivo‖ dos fatos, mas parcial e não onisciente, o médico Bernard Rieux. Inserido em
determinada posição social e de classe, esse trabalhador incansável, filho de operário,
toma o partido oposto, em certo sentido, às autoridades francesas – o que Said parece
simplesmente eliminar de seu campo de visão. Desde o início, então, um determinado
corte de classe – e não simplesmente étnico-nacional – se impõe, e não
imperceptivelmente, em seu relato.
Note-se, por outro lado, que há uma causa política identificável para a epidemia
da peste, como veremos melhor adiante, a qual é extrapolada como ―força absurda‖
apenas pela regra da composição pós-realista, que dá sinal da política de exceção em
geral, Ocupação e Colônia inclusos, em última instância remetendo ainda ao governo de
Vichy (1940-1944), que colaborou com a Ocupação e suspendeu a Constituição da
Terceira República. Outro detalhe simbólico político capital: além da separação e do
isolamento social, a peste impõe a sede, os tumores, a febre delirante e mais tarde, em
sua variante pulmonar (117/87), a sufocação e o silenciamento de suas vítimas. Eis aí
conotado, como sintoma do flagelo, o estado dos árabes e berberes politicamente
administrados. Por outro lado, se o ―estado de peste‖ chega a Oran de forma súbita e
enigmática, o ―estado de sítio‖ não vem gratuitamente, mas é principalmente
decorrência da reação social que esse estado provoca, e não do puro e simples resultado
do conformismo dos cidadãos de Oran, principalmente os do subúrbio da cidade, os
quais desencadeiam uma série de comoções, tumultos, incêndios, tentativas de fuga,
luta armada, saque de residências empestadas e em chamas – focos de revolta que
conduzem as autoridades ―a assimilar o estado de peste ao estado de sítio e a aplicar as
leis decorrentes‖ (159/120). Além disso, note-se que o romance foi escrito num contexto
de lutas de caráter legalista e reformista, pautadas pela construção de uma identidade
nacional, antes da radicalização dos movimentos insurrecionais abertamente
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anticoloniais no Maghreb e antes da Guerra da Argélia (1954-1962).5 Em certo sentido, o
romance prenuncia essa radicalização política e mesmo a invoca, como veremos ao final,
ao contrário do que argumentam Sartre, Barthes ou Said. Isso tudo já sinaliza que a
questão árabe não está simplesmente ausente do romance, como quer Said, mas como
veremos melhor adiante brilha como o outro administrado, sitiado e silenciado pelo
poder.
Certamente, Said tem razão quando lembra que o romance se concentra sobre a
vida dos colonos de origem francesa em Oran – chamados pieds-noirs – que, é bom
lembrar, historicamente expulsaram, pelos métodos de razzia, os árabes das melhores
terras das planícies, dos cargos administrativos e políticos, dos empregos urbanos, além
de terem de se submeter ao francês como língua oficial nas escolas, ao racismo
estrutural etc. O problema para Said então é que o ―romance realça e modela
silenciosamente os problemas de consciência e reflexão dos personagens franceses‖.6
Além disso, toda a ―estrutura da sociedade civil‖ representada no texto (a prefeitura, o
aparato da justiça, os hospitais, os restaurantes, o entretenimento etc.) ―é francesa,
embora administre sobretudo a população não francesa‖, que afinal morre
anonimamente em massa e que, segundo ele, seria a ―única que importa em termos
demográficos‖.7
O fato essencial a interpretar, contudo, é que o texto não se concentra nos ―bons‖
ou ―maus‖ representantes dos interesses coloniais franceses, mas desenha, num nível
maior de abstração, a estrutura da dominação burguesa moderna, do antagonismo e
da luta social, antes, durante e depois da grande peste. Para isso, o texto reata o
vínculo do mais moderno com o mais arcaico na história, incluindo aí os surtos de peste
negra de outras épocas e de outros territórios coloniais (Antiguidade greco-romana,
Idade Média europeia, Constantinopla, Cantão na China), a ideia do Apocalipse como
5 Para estudar o processo de (des)colonização e a sociedade argelina, cf.: FERRO, Marc. Colonization: a
Global History [1994]. London/New York: Routledgde, 2005; CANÊDO, Letícia B. A descolonização da Ásia e da África. São Paulo: Atual, 1994; BOURDIEU, Pierre. Sociologie de l‟Algérie. Paris: PUF, 1958/1961; cf. também a bela entrevista e o ensaio fotográfico sobre o povo argelino elaborado pelo
jovem Bourdieu: Idem, ―Pictures from Algeria – An Interview with Pierre Bourdieu – Franz Schultheis‖, Collège de France, Paris, June 26, 2001. http://www.fondation-bourdieu.org/uploads/tx_pubevent/bourdieu-excerpt-picturing.pdf. Há um pequeno documentário em vídeo com exposição de Schultheis: https://www.youtube.com/watch?v=exJ8C0mQ8GM (Acessos em 05-02-2015).
6 SAID, ibidem, p. 234. 7 Idem, ibidem, pp. 234 e 232.
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Revelação (a saber: a descoberta das implicações do individualismo burguês e
esclarecido) e, principalmente, os traços e vínculos inconscientes, isto é, recalcados e
deslocados pela representação ideológica do absurdo.
Esse desenho é feito de modo crítico desde as primeiras linhas dedicadas à
descrição da paisagem social e natural de Oran. Esta é comandada inteiramente pelo
cotidiano do comércio colonial: a preocupação ―très raisonnable‖ de ―fazer negócios‖,
―ganhar muito dinheiro‖ e ―enriquecer‖, numa vida assim tomada por ―desejos violentos
e rápidos‖ dos jovens, ou pelo ―vício‖ do jogo dos mais velhos, em geral ―pela ―falta de
tempo e de reflexão‖ (12-3/7-8) sobre a vida, a sociabilidade, o amor. Uma comunidade
que gira em torno da rotina da divisão do trabalho abstrato, da alienação da vida
privada e dos prazeres vulgares. O lugar do desejo é capturado pela alienação mercantil.
Mas então restaria saber por que essa visão interna, feita a partir do mundo
ideológico do colon francês na Argélia, ou, para ser mais exato, da consciência de
sujeitos divididos, dessubstancializados, abertos à determinação histórica, é a priori
desqualificada como um ponto de vista possível. Mais que isso, um ponto de vista
revelador e engajado, se relembrarmos que o dr. Bernard Rieux e seus companheiros
(Castel, Richard, Grand, Tarrou e Rambert) tomam o ―partido da vítima‖ e dos
―vencidos‖ (230 e 273/177 e 208) – dos subordinados, dos pobres, dos trabalhadores
dos subúrbios árabes, condenados em massa – e que não sem certa ponta de ironia são
chamados de ―concidadãos‖. Não por acaso, é nos subúrbios e nas fábricas da cidade que
surgem as grandes levas de ratos, pois é lá que a precariedade das condições sanitárias
é maior. Além disso, apesar de sua uniformidade, basta ver como, segundo o narrador, a
peste não atinge a todos por igual:
―A especulação interviera e oferecia, a preços fabulosos, os gêneros de primeira necessidade que faltavam no mercado habitual. As famílias pobres viam-se assim numa situação muito difícil, enquanto às ricas não faltava praticamente nada. Embora a peste, pela imparcialidade eficaz com que exercia seu ministério, deveria ter reforçado a igualdade entre os nossos concidadãos, pelo jogo normal dos egoísmos, ao contrário, tornava mais agudo no coração dos homens o sentimento da injustiça.‖ (214/164, grifos nossos, tradução modificada.)
O contraponto, dentro desse grupo de personagens, é dado por Paneloux, o padre
católico que discursa aceitando a Peste como ―castigo‖ ou ―graça‖ divinos, e por Cottard,
o ―pequeno capitalista‖ que aceita e se entrega a ela – ambos funcionando como
―encarnações‖ da ideologia civilizatória e religiosa do Imperialismo e do
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Colaboracionismo.8 Poderíamos dizer, como tentaremos mostrar adiante, que Paneloux
e Cottard são as figuras mais vinculadas ao ―supereu obsceno da lei‖ fracassada – a base
material para a constituição do conteúdo de morte bem como da perspectiva política e
moral do romance. Como veremos, o estado de peste enquanto estado de sítio traz à
tona um conjunto completo de sintomas e fantasias sociais ideológicas. Seguramente aí
jaz o seu motor principal. Trata-se de focalizar essa consciência ideológica para
descobrir o que fica censurado e excluído pela abstração de sua forma – mas ganha
clamorosa expressão nas entrelinhas, através da crônica do médico, como a exposição
de um inconsciente político, e que se produz como verdade somente enquanto ficção
alegórica. Isso exige decifrar o seu princípio formal.
Combates com a forma: abstração e concreção alegórica
O que mais salta à vista na forma de A peste é a busca de uma narrativa sóbria,
límpida, clássica, ―contrastando vivamente com a atmosfera angustiosa na cidade
assediada e isolada do mundo‖, como bem observou Carpeaux.9 Essa prosa reta, que se
faz crônica de acontecimentos, é oposta à ―descontinuidade das frases cortadas‖ de
Mersault, o ―homem absurdo‖ de L‟étranger (1942), cujo relato morre e renasce a cada
linha, outra das proezas do escritor, tal como identificada por Sartre.10 Ora, essa
variação estilística reflete dois modelos de subjetividade ética e política
contemporâneos. Em vez do subjetivismo niilista de Mersault, A peste se forma através
da técnica de reunião de relatos de vários pontos de vista (do dr. Rieux, Grand,
Paneloux, Cottard – e de Tarrou, em especial), a partir da composição de diálogos e de
8 Cf. a radiografia feita por SARTRE, Jean-Paul. « La République du silence » [1944], « Paris sous
l‘occupation » [1945] e « Qu‘est-ce qu‘un collaborateur? » [1945] In :__. Situations III. (Lendemains de guerre). Paris: Gallimard, 1949 (vide a tradução deste último ensaio nesta edição de Sinal de Menos). Sobre a resistência e o colaboracionismo na França e na Europa em geral, cf. LLOYD,
Christopher. Collaboration and Resistance in Occupied France – Representing Treason and Sacrifice. New York: Palgrave, 2003; DÉAK, István. Europe on Trial: The Story of Collaboration, Resistance and Retribution during World War II. Philadelphia: Perseus/Westview Press, 2015, pp. 50-8; MAZOWER, Mark. O Império de Hitler – A Europa sob o domínio nazista. São Paulo: Cia. das Letras, 2013, Caps. 13 a 15.
9 CARPEAUX, Otto Maria. Tendências contemporâneas da literatura. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1968, p. 288.
10 SARTRE, Jean-Paul. « Explication de L‟étranger » in: __. Situations I. Paris: Gallimard, 1947, p. 109.
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anotações de seus companheiros, o que dá a Rieux o papel de uma ―testemunha
objetiva‖ (273-4/208-9) através de uma narrativa de base intersubjetiva.
A partir dessa espécie de sujeito coletivo dialógico, a crônica tenta superar alguns
pressupostos da forma tradicional do romance burguês, fundada no indivíduo isolado11
– e aqui, a meu ver, o interesse dessa pesquisa formal, que põe em jogo a dialética de
indivíduos isolados não mais isolados pela força das circunstâncias. Como crônica, ele
não se pretende à escrita da História, como observou Roland Barthes, pois não se
pergunta pelas causas.12 Por certo, ela não se põe a cavaleiro da História, nem força a
dobradiça do Trágico, mas o texto contínuo não deixa de recuperar o que fica para trás
no relato, de medir consequências e de refletir sobre elas – embora estrategicamente
não se pergunte pelas causas de maneira clara e direta. Pois se perguntasse claramente
pelas causas, ele desarmaria a própria situação cega e alienada que se propôs como
questão, destruindo sua força mimética primordial, que é representar o reino das
abstrações da sociedade anônima moderna. Não obstante, seus protagonistas agem em
conjunto sobre o que pensam ser suas causas e não se reduzem a uma ―moral do
silêncio‖.13 Esta última está muito mais do lado dos pied-noirs: os pequeno-burgueses
racistas, que se isolam ou pouco se misturam ao povo, adotam a ―língua dos mercados
(...) a crônica cotidiana‖ (75/55), ou assistem à tragédia como num teatro.14 É o que
provavelmente faz Rieux observar a estátua empoeirada e suja da República com
indiferença (83-4 e 87/62-3 e 65). Uma República de mônadas do dinheiro, que Camus
intui na raiz do individualismo ocidental, no homem reduzido à célula de trabalho e
consumo, bem como no ―culto da produção‖ e do ―soldado-operário‖, que estrutura o
mito coletivista do socialismo de caserna, com sua ―divinização da história‖, como
sucedeu no sistema soviético.15 Aqui, o romance questiona também os limites da
11 Cf. LUKÁCS, Georg. Teoria do romance. São Paulo: Ed. 34/ Duas Cidades, 2000. 12 BARTHES, Roland. ―Resenha do livro A peste, de Camus‖ [1954]. Folha de São Paulo, Caderno Mais!,
05/01/1997. (A polêmica completa entre Barthes e Camus encontra-se em: http://quebracorpo.blogspot.com.br/2010/04/peste-debate-entre-roland-barthes-e.html Acesso em 10-01-2014).
13 Idem, ibidem. 14 Marc Ferro lembra que em meados do século, 30% dos cidadãos de Oran votavam na esquerda, imersos
em pura falsa consciência: ―Embora racistas, negavam que o fossem, declarando obediência às ideias da Esquerda, da República. Não eram eles os descendentes dos proscritos das históricas jornadas de junho de 48, dos communards de 1871?‖ (FERRO, op. cit., p. 123).
15 CAMUS, Albert. L‟homme révolté. Paris: Gallimard, 1951, pp. 263, 173, 179, 257-9.
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consciência subjetiva e intersubjetiva no mundo da pequena burguesia e da tecnocracia
capitalista, que são os limites do individualismo e de um certo humanismo:
―Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios, em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem, diz-se que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções.‖ (41/30)
A peste cai sobre Oran, então, como uma ―abstração‖ (87/66) e é elevada, de
modo inteiramente reflexivo, a princípio construtivo alegórico do romance, o que vem
indicado aliás desde a epígrafe.16 Ela tem de ser entendida estritamente como um
princípio de alienação que mimetiza a lógica do capital e do estado de exceção
reinantes no laboratório colonial (na Argélia desde 1830). Dessa perspectiva, como em
Kafka, esse relato de Camus poderia ser considerado um romance que contém um
momento ―metafísico‖ de abstração, separação e desrealização da realidade cotidiana,
mas que diz respeito ainda a certo realismo crítico, não convencional. O que está além
da realidade (―meta-física‖) é causado pela ―segunda natureza‖ social. Na verdade, como
já apontamos, as causas políticas e sociais da peste, tal como da vida apartada e sitiada
de franceses, árabes e berberes, estão lá pressupostas, nas entrelinhas. Veremos que elas
são também materializadas como causa de um certo desejo difuso, externas à
consciência e às estruturas intersubjetivas.
Para começar a entender melhor esse ponto, basta analisar o trecho em que o dr.
Rieux conhece o jornalista francês, Raymond Rambert:
―Fazia [Rambert] uma pesquisa para um grande jornal de Paris sobre as condições de vida dos árabes e queria informações sobre o seu estado sanitário. Rieux informou-o de que esse estado não era bom, mas quis saber, antes de ir mais longe, se o jornalista podia dizer a verdade. - Certamente - disse o outro. - Quero dizer, pode fazer a condenação total?‖ (18-19/13; grifos meus.)
Rieux pretende fazer a condenação das condições de vida dos árabes na
imprensa metropolitana francesa, denunciando o péssimo estado sanitário do subúrbio,
16 A frase de Daniel Defoe: ―É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro quanto
representar qualquer coisa que realmente existe por alguma coisa que não existe.‖ (6/1).
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que, basta lembrar, ―cheirava a fritura e urina‖ (53/40). O obstáculo aqui, por suposto,
é menos a falta de dados empíricos, facilmente observáveis pela proliferação dos ratos
na cidade, do que a provável censura do governo, tal como a que foi realmente sofrida
pelo jornalista Camus em Le Combat, na Argélia e mais tarde na França.
Na sequência, Rambert diz a Rieux:
―- Total, não, devo dizê-lo. Mas creio que essa condenação seria sem fundamento. Com delicadeza, Rieux disse que de fato semelhante condenação seria sem fundamento, mas que, ao colocar essa questão, procurava apenas saber se o testemunho de Rambert podia ou não ser feito sem reservas. - Só admito os testemunhos sem reservas. Não estou, pois, disposto a apoiar o seu com as minhas informações. - É a linguagem de Saint-Just – disse o jornalista, sorrindo.‖ (19/13)
Mas Rieux não quer ter nada a ver com Saint-Just, o ―Arcanjo do Terror‖,
personagem chave da conversão do ―niilismo‖ em ―revolta metafísica‖ na história,
segundo a visão filosófica de Camus.17
―Sem elevar a voz, Rieux disse que não sabia nada disso, mas que era a linguagem de um homem cansado do mundo em que vivia, mas que prezava, contudo, seus semelhantes e estava decidido a recusar, de sua parte, a injustiça e as concessões.‖ (ibid.).
Quando o estado de peste é declarado, a condenação das condições de vida – para
além da culpa subjetiva de autoridades isoladas – poderia ser feita na imprensa com
fundamentos precisos e concretos. Quando Rambert reencontra Rieux, dá-se o seguinte
diálogo revelador:
―- Antes destes acontecimentos – esclareceu o outro [Rambert] – vim pedir-lhe informações sobre as condições de vida dos árabes (...) - Ah, sim – respondeu Rieux. –Bem, agora tem um belo assunto de reportagem.‖ (81/60-1).
Rambert, contudo, estava apenas preocupado nesse momento em fugir para a
França, a fim de reencontrar a mulher. Mas fica claro, nesse trecho, que por trás da
abstração fantasmagórica da Peste temos um processo social concreto sendo indicado e
mostrado pelo narrador – em vez de descrito ou contado –, o que precisa ser
devidamente interpretado nas entrelinhas pelo leitor.
**
17 CAMUS, L‟homme révolté, op. cit., pp. 146 e ss.
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O preço da clareza e da sobriedade da forma é uma certa ―monotonia‖ de sua
exposição, que imita com perfeição e minudência a monotonia dos fatos na cidade
pestilenta. ―Sim, a peste, como abstração, era monótona‖ (88/65). A abstração aqui
mencionada tem muitos sentidos no texto – e aqui comparece a virtuose artística de
Camus. Na base, a abstração é a mímese de um processo real de abstração, alienação e
morte coletivas. Primeiramente, ela é sinônimo de separação e exílio da população
argelina do mundo. Mais que isso, esta se torna prisioneira da cidade sitiada, que a
administra como uma massa informe. Porém, antevê-se que os movimentos da massa
burguesa eram incaracterísticos e insignificantes desde o princípio. Isto já era a Peste,
apenas não estava explícito. Os fatos se sucedem monotonamente, entre a agitação e o
torpor, a espera e a melancolia, a violência e ―cenas de loucura‖ (86/65). Mais ou menos
no meio do relato (cap. III), com o avanço do flagelo e após o exílio forçado, o medo, a
quebra da associação dos sitiados e a revolta coletiva pontual, a abstração penetra fundo
na ―alma‖ da massa, constituindo quase uma ―sociedade dos mortos‖ (160/121), que
então perde a capacidade de subjetivação e valoração dos acontecimentos:
―Mas, perguntar-se-á, que aspecto tinham esses separados? Pois bem, muito simples: não tinham aspecto nenhum. Ou, se se prefere, tinham o aspecto de todos, um aspecto inteiramente geral. Compartilhavam a placidez e as agitações pueris da cidade. Perdiam as aparências do senso crítico ao mesmo tempo em que ganhavam as aparências do sangue-frio. Podia-se ver, por exemplo, os mais inteligentes fingirem procurar, como todos, nos jornais ou nas emissões radiofônicas, razões para acreditar num fim rápido da peste e conceberem, aparentemente, esperanças quiméricas ou sentirem receios sem fundamento ao ler considerações que um jornalista havia escrito um pouco ao acaso, bocejando de tédio. Os demais bebiam sua cerveja ou tratavam de seus doentes, preguiçavam ou se esgotavam, arquivavam fichas ou faziam girar discos sem se distinguirem muito uns dos outros. Em outras palavras: já não escolhiam nada. A peste suprimira os juízos de valor. E isso se via pela maneira como ninguém mais se ocupava da qualidade do vestuário ou dos alimentos que se compravam. Aceitava-se tudo em bloco.‖ (169/129)
A adaptação ao horror se naturaliza junto a uma espécie de normalopatia da
ordem do trabalho – por exemplo, o emprego da ralé desempregada nos serviços
sanitários e funerários de alto risco (163/124) – e do aprisionamento em massa
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(principalmente dos mais pobres), numa paisagem crepuscular.18 A Peste se torna então
―uma administração prudente e impecável de bom funcionamento‖ desse estado de
coisas (166/126-7), não obstante o nível de tensão dramática do texto aqui alcançar o
ápice, com a organização do grande crematório de pilhas de corpos. Nesse ponto
tenebroso do texto, sentimos o impacto da paciente construção dos dois primeiros
capítulos. O início lento descreve situações variadas, acumula dados aparentemente
inócuos, mas vai preparando o contexto da aparição do grande surto, articulando a
invasão dos ratos, mortos em massa, aos doentes, também mortos em massa. A
população se transforma em números exatamente tal como os ratos. E de forma
homóloga, no começo do fim da epidemia, quando os ratos retornam a circular pelos
subúrbios da cidade, a população também começa a circular pela cidade inteira. A
população de Oran, portanto, mantém uma estranha aproximação com os ratos. Valeria
especular as causas mais profundas dessa suprema abstração.
O inconsciente político na forma: Oran / Rat / Arab
Uma boa hipótese seria a de que o inconsciente político representado figuraria,
enquanto obra de ficção, os resultados de uma espécie de recalque socialmente
determinado – de modo algum simplesmente autoral –, ou antes, os resultados de um
processo social de foraclusão do simbólico dos resultados coloniais e da população
árabe em particular. Nesse caso, para além do moralismo de Said, como num delírio ou
alucinação coletiva, a população de Oran aparece em sua verdade negativa: como puro
objeto nas mãos de um grande Outro fora da Lei – a Peste e os seus administradores
estatais, escorados sob a capa da razão científica, da ordem e do dever. Um pouco como
na obra de Kafka (aludida por Cottard, que aparece lendo obviamente O processo,
59/44), o que está em questão no romance de Camus é o formalismo
18 Em certa medida, e mutatis mutandis, tal adaptação ao horror, que alcança o colaboracionismo, o zelo
ou a extrema indiferença diante do trabalho da morte, foi registrada nos campos de concentração nazistas, bem como no seio das cidades alemãs e europeias. Cf. KOGON, Eugen. L‟État SS [1946]. Paris: Seuil, 1970; PAXTON, Robert O. The Anatomy of Fascism. New York: Alfred A. Knopf, 2004. A mesma indiferença que vai penetrando hoje nas massas trabalhadoras sob o jugo da ofensiva neoliberal e da concorrência global, cf. ARANTES, ―Sale boulot – uma janela sobre o mais colossal trabalho sujo da história (uma visão no laboratório francês do sofrimento social)‖ in:__. O novo tempo do mundo, op. cit., pp. 101-40.
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obsceno do Poder e da Lei social modernos, daquilo que proíbe o gozo e ao mesmo
tempo, funcionando como instância de um Supereu obsceno (numa espécie de curto-
circuito com a instância do Isso e da Coisa19), inflige o gozo à massa de sujeitos.
Primeiramente, no estado de peste, como dito anteriormente, temos a separação
e o isolamento dos indivíduos em relação aos prazeres vulgares; depois, quando a cidade
é lançada às portas da morte coletiva, temos a ―impressão ilusória de uma cidade em
festa‖ (78/58), um relaxamento da moral e dos costumes (114/85) até traços de
―excitação desvairada‖ crepuscular (115/86) e a busca saturnal de um ―gozo
desenfreado‖ (180/137) por parte dessa massa. Ao fim e ao cabo, uma reversão em seu
oposto: a destruição da própria massa, que a reenvia à adaptação e à apatia diante do
inominável. O regime colonial aqui se revela como instituição selvagem em sua
dimensão Real – uma ―ordem da peste‖ que tudo assujeita, aplaina, desfigura e
desencarna, até destruir a sensibilidade, a memória e a experiência (166-7/127)20, como
um Outro sem lei, que no limite apaga as fronteiras entre o princípio de realidade e o
vale-tudo. Em outros termos, um pouco mais especulativos: através da grande Peste é
como se a pulsão anômica do Capital irrompesse no coração do Real, destruindo as
coordenadas simbólicas pressupostas que o mantêm sob certo ―controle‖ ou dentro dos
contornos da realidade ―normal‖ (contratos sociais, direitos e ideologias da
equivalência, justiça, segurança, ciência etc.).
Daí a moldura quase alucinada do romance nesse capítulo III; daí também o
romance se escorar em torno das múltiplas fragilidades e falências da Lei pública: a
demora em aplicar ―as medidas profiláticas previstas na lei‖ (52/39); a insuficiência
geral das medidas de higiene e controle sanitário (62-3/47); o poder disciplinar
19 Para essa leitura de Kafka como base para a obra de Camus, inspirei-me parcialmente na sequência de
interpretações de ŽIŽEK, Slavoj. O mais sublime dos histéricos. (Hegel com Lacan). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991, cap. XI; Idem, Eles não sabem o que fazem. (O sublime objeto da ideologia). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, pp. 187-92; Idem, A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, pp. 59-60, 159-69; Idem, Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011, pp. 98-110; Idem, Menos que nada. (Hegel e a sombra do materialismo histórico). São Paulo: Boitempo, 2013, pp. 398-403.
20 Seria válido talvez traçar o paralelo com a figura do ―muçulmano‖ nos campos nazistas: AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008. Ver também a ―simplificação psíquica‖ costumeira do tipo ―concentracionário‖ registrada por KOGON, op. cit., pp. 338, 342-9.
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arbitrário do Estado sobre a população21; a precariedade dos contratos de trabalho na
cidade (o caso de Joseph Grand: 47-8/35-6); a discussão da moral paterna, da justiça e
da pena de morte (o caso de Jean Tarrou: 222-9/170-6); o destino divino ou os castigos
enviados pelo grande Outro (os sermões ensandecidos do padre Paneloux, defendendo a
―aceitação total‖ dos ―excessos da desgraça‖: 204/156); enfim, as manifestações diversas
da loucura e da ausência da lei (o caso de Cottard). Este último personagem, como o seu
nome indica, sofre da chamada ―síndrome de Cotard‖ ou ―delírio de negações‖ (um
grave tipo de melancolia22). É uma espécie de morto em vida, e se coloca contra ―todos
os outros‖ (56/42), sente-se perseguido e ameaçado, simpatiza com os pequenos e os
conservadores, impressiona-se com o ―estrangeiro‖ que mata um árabe na praia (o
leitmotiv de L‟étranger), contrabandeia gêneros de vida, tenta o suicídio, mas sente-se
―à vontade no terror‖ (181/138) e abandona-se à catástrofe, em suma, procura o ―gozo
desenfreado‖, goza e é gozado no estado de peste/sítio. É uma espécie de retrato
camusiano do niilista nos moldes do colaborador fascista.23
Ora, como aprendemos com Freud e Lacan, o que foi recalcado sempre retorna
simbolicamente distorcido como sintoma, enquanto o que foi foracluído da
simbolização retorna do exterior, no real. Como isso se dá no texto? Por um lado, como
estado geral de reificação, esquecimento ou o mal-estar difuso das páginas iniciais, de
outro como uma monstruosa proliferação de ratos, e assim, numa longa cadeia
metonímica de eventos, como uma Peste descomunal, a instalação do caos e do estado
21 Michel Foucault aponta que as estruturas de controle da peste, na França do século XVIII, seriam uma
das matrizes da forma do poder disciplinar e biopolítico contemporâneo, pautado numa espécie de ―coerção positiva‖ e ―individualizadora‖: ―O momento em que a peste se desencadeia é o momento em que, na cidade, toda regularidade é suspensa. A peste passa por cima da lei, assim como passa por cima dos corpos. Esse, pelo menos, o sonho literário da peste [em Artaud e Camus, com seu ―grande momento orgiástico‖]. Mas vocês estão vendo que houve outro sonho da peste: um sonho político da peste, em que esta é, ao contrário, o momento maravilhoso em que o poder político se exerce plenamente. A peste é o momento em que o policiamento de uma população se faz até seu ponto extremo, em que nada das comunicações perigosas, das comunidades confusas, dos contatos proibidos pode mais se produzir. (...) um poder inteiramente transparente ao seu objeto (...)‖. FOUCAULT, Michel. Os anormais (Curso no College de France, 1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 58-9. O mais correto seria dizer que o romance promove a conjunção do sonho literário com o sonho político, descritos por Foucault.
22 QUINET, Antonio. Psicose e laço social. (Esquizofrenia, paranoia e melancolia). Rio de Janeiro: Zahar, 2009, pp. 192-5.
23 Segundo a fisionomia sartriana do colaborador, este não pertencia a uma classe exclusiva: era muito mais um ―fato de desintegração‖, de indivíduos marginais, socialmente desintegrados, passando pelo fascista típico, mas também pelo católico ultraconservador e o liberal anárquico de direita, buscando se integrar a uma sociedade autoritária. (SARTRE, « Qu‘est-ce qu‘un collaborateur? », op. cit., especialmente pp. 46-49). Em Camus, ver L‟homme révolté, op. cit., Cap. V.
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de sítio, da revolta, por fim, o exílio e a morte anônima da massa. Vale dizer: apresenta-
se como a explicitação da ―vida nua‖ (Agamben) excluída da simbolização, no interior
dos incineradores e das valas comuns (155-65/117-25), que reduzem a população a mero
resto excremencial.
Assim, os ratos remetem a outros significantes metonímicos, ou antes, a outra
coisa no real. Note-se que não são equivalentes à peste, nem é dito que são a sua causa,
mas antes suas primeiras vítimas – que se deslocam dos subúrbios para o centro, dos
porões para a praça pública. Ao modo de uma fantasia exata, o significante foracluído da
simbolização social – les Arabs –, retorna no real como esse pequeno ―objeto anal‖
aparentemente ameaçador – les rats –, dois significantes que se aproximam na
pronúncia em francês. Vale então perseguir o deslocamento dessa letra r isolada ou do
fonema ra (e às vezes da palavra rat) pelo texto. Note-se de início (sempre com a
pronúncia francesa em mente) o nome da cidade: Oran; em seguida, os nomes das
principais personagens ao redor de Bernard Rieux: Joseph Grand, Tarrou (rat ao
contrário), Raymond Rambert, Cottard (outra vez rat invertido), além dos médicos
Richard e Castel. Do outro lado do espectro social, as autoridades e a classe dominante,
a população estranha a esse grupo solidário aos árabes, têm nomes como Othon, Nicole,
Phillip, Marcel, Louis, González, Paneloux e seus ícones são outros: gatos (escarrados
pelo velho na frente da janela de Tarrou), é claro, o galo (francês) no bar de um
comerciante; ou a coruja e os cachorros comportados, associados por Tarrou ao homem
engomado e bem educado com sua família no hotel, enquanto a esposa submissa é
associada a uma ―rata preta‖ (32/24; em francês: souris noire, talvez para lembrar a
origem do pied-noir?). Entre tal gente grã fina, por isso mesmo, é proibido ―fala[r] de
ratos à mesa‖ – bem entendido: falar de árabes (―proíbo-o, daqui em diante, de
pronunciar essa palavra‖, diz o homem, ibid.). Forma-se uma rede de significantes
antagônicos, que parece remeter a um processo de recalque, bestialização e exclusão de
agentes históricos: o proletariado e os subversivos chacinados de Junho de 1848, parte
deles expatriados para a Argélia, para viver entre ―les arabes inhumains‖, como colons
que formariam em breve... parte da nova classe dominante no departamento argelino.24
24 Cf. nota 14. Para a arqueologia dessa semântica alegórica, em especial a bestialização nas Flores do Mal
de Baudelaire e nos Ratos Migradores de Heine, ver a pesquisa de: OEHLER, Dolf. O Velho Mundo desce aos infernos: auto-análise da modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris [1988]. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 31-45 e ss., 104, 350.
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Assim, compreenderemos melhor por que Rieux tropeça num rato morto no
―meio do patamar‖ do degrau, como um ser deslocado, fora da ordem ―normal‖ das
coisas: um real que ―não estava no lugar devido‖, claro, pois subiu e tomou um lugar ao
sol, surgindo no bairro saneado do centro. O sangue do rato morto, porém, ativa em sua
memória a doença de sua esposa (15-6/10) – com o que podemos compreender, em
Rieux e Tarrou mais explicitamente, talvez, a fenomenologia dessa ―identificação do
sujeito com o pequeno [objeto] a excrementício‖ de que fala Lacan25 nas fantasias do
obsessivo. Não seria essa a tonalidade do grupo em torno de Rieux? Sujeitos com um
―eu forte‖, caracterizados por um certo desprendimento do desejo, formações reativas,
identificação às demandas da mãe, oblatividade, moral do trabalho honesto, dedicação
integral ao outro, demanda de amor e de reconhecimento pela lei, enfim, um grupo de
amigos inibidos, mais ou menos reverentes às autoridades. É o que dá às ―formações
sanitárias‖ de Tarrou e Rieux o seu aspecto bem comportado e meramente paliativo,
renunciando a um confronto político efetivo com o domínio francês. Isso que os
detratores de Camus denominaram a ―moral de Cruz Vermelha‖ do livro26, que, no
entanto, deveríamos perguntar se não deveria ser posto na conta da verossimilhança
para com o processo social bloqueado, seja na colônia, seja na metrópole
(historicamente sitiadas). Em grande medida, então, por mais que se queira recusar,
como apontaram críticos como Barthes ou Sartre27, o conflito social desloca-se
inevitavelmente para a luta contra a Natureza (ou formas abstratas como o destino ou o
divino), com o qual Camus pode desdobrar confusamente, em termos de filosofia, um
certo ―evangelho‖ do absurdo e da revolta.
Porém, antes de dizer que batemos aí na limitação maior da obra – o que é
parcialmente verdade –, vale estudar por que esse limite pode nos levar também mais
longe do que o habitual. Pois essa posição conquistada não significa silenciar aquilo que,
25 LACAN, Jacques. O Seminário, livro 8, A transferência (1960-1961). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992,
pp. 206, 215-6; O Seminário, livro 10, A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, pp. 326-9.
26 Conforme Bertrand D‘Astorg (Esprit, nº10, 1947) e Francis Jeanson (Temps Modernes, maio de 1952), citados por FAUCON, Louis. La peste Ŕ extraits. Paris: Larousse, 1965, p. 28. R. BARTHES (op. cit.) também aponta a limitação do livro a uma Moral ou a uma ―ética da amizade‖, capturado por uma fábula naturalizante, que evita o confronto materialista entre os homens ou entre as classes; mais tarde (1955), preferirá o modelo antialegórico de uma ―literatura literal‖ (de Robbe-Grillet) (Idem, ―Littérature litterale‖ in:__. Essais critiques. Paris: Seuil, 1981).
27 BARTHES, op. cit. ; SARTRE, Jean-Paul. « Réponse a Albert Camus » in : __ . Situations IV: portraits. Paris : Gallimard, 1964, p. 118.
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nesse mesmo movimento, extrai o sujeito de sua individualidade empírica isolada,
idêntica a si mesma, fazendo-o representar o universal. Essa mediação de sujeito e
objeto, de singular e universal, é então, no livro, exercida por meio dos temas do amor e
da práxis.
Condição social (in)humana – mundo administrado
Isso tudo já contradiz, contudo, aquela clássica interpretação universalista do
romance como revelação do ―absurdo‖ e da ―revolta‖ de uma suposta ―condição
humana‖ em geral. É claro que qualquer alegoria estética, fundada no arbitrário do
signo, sempre sugerirá uma ideia geral estranha à representação de uma circunstância
particular. A determinação histórica se esfuma, passando para o trans-histórico, tal qual
sabemos de cor com o Brás Cubas de Machado. Camus recupera o tema do absurdo e da
peste mais tarde, no ensaio L‟homme révolté (1951), em termos de filosofia moral e
ontologia, que lembram as formulações do existencialismo:
―Na experiência do absurdo, o sofrimento é individual. A partir do movimento de revolta, ela tem a consciência de ser coletiva, ela é a aventura de todos. O primeiro progresso de um espírito tomado pela estrangeiridade [saisi d‟étrangeté] é pois reconhecer que ele divide esta estrangeiridade com todos os homens e que a realidade humana, em sua totalidade, sofre desta distância em relação a si e ao mundo. O mal sofrido por um só homem se torna peste coletiva‖.28
Assim, para o Camus filósofo, a ―estrangeiridade‖, o ―absurdo‖, o ―mal‖ e a ―revolta‖ são
condições de uma estranha ―natureza humana‖29 resistente à história – os termos vagos
e genéricos de uma nova certeza cartesiana que serão origem, fundamento e mola para a
―resolução‖ de contradições em pensamento:
―na experiência cotidiana que é a nossa, a revolta joga o mesmo papel que o ‗cogito‘ na ordem do pensamento: ela é a primeira evidência. Mas essa evidência tira o indivíduo de sua solidão. Ela é o lugar comum que funda sobre todos os homens o primeiro valor. Eu me revolto, logo nós somos‖.30
28 CAMUS, L‟homme révolté, op. cit., p. 35. 29 Idem, ibidem, p. 28. 30 Idem, ibidem, p. 36. Como apontava Marcuse: nesse momento de barbárie nazista, ―mais uma vez, o
pensamento encontra-se na situação cartesiana e pergunta por uma verdade certa e evidente que ainda possa tornar possível viver‖ (MARCUSE, Herbert. ―O existencialismo – Comentários a O Ser e o Nada (L‟Être et le Néant)‖ [1948] in:__. Cultura e sociedade, vol. 2. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, p. 51. Para uma boa análise das tensões entre Sartre e Camus, ver: SOARES, Caio C. ―Evangelhos da revolta. Camus, Sartre e a remitologização moderna‖. São Paulo: FFLCH-USP, 2010 (tese de doutorado).
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Mas por trás de tais teoremas filosóficos não haveria uma intuição histórica
perspicaz sobre os malogros revolucionários do século e sobre a forma do Estado
moderno (―o estado de sítio pouco a pouco se generaliza‖, diz ele de passagem31),
colocando corajosamente o dedo na ferida da esquerda socialista em plena Guerra Fria?
O ensaio identifica assim a lógica de uma ―revolta metafísica‖ na história, isto é, de um
niilismo e de uma metafísica do sujeito (de Sade a Nietzsche, de Saint-Just a Stalin), que
sem dúvida formavam parte do clima cultural do existencialismo francês, por um tempo
alinhado ao sistema soviético. Para ele, no entanto, o stalinismo nada mais era que a
realização da teoria de Marx como ―terror de Estado‖. O erro é clássico: a identificação
de teoria e práxis, ideologia e formações sociais complexas. Mas, para além disso, à
revolução ―niilista‖, ―assassina‖ e ―absoluta‖ propagada pelo terror stalinista, ele
contrapõe uma revolta ―concreta‖, ―limitada‖ e ―relativa‖ por definição: a luta
democrática por dignos limites de exploração do trabalho assalariado, não pela sua
utópica abolição, cujos modelos históricos seriam a ―Comuna‖ e o ―sindicalismo
revolucionário‖.32 Nada a admirar que o absurdo e a revolta se tornem perenes,
capturados no mau infinito do ciclo da acumulação, dando razão mais uma vez ao seu
Mythe de Sisyphe (1942).
Sem desprezar os exemplos históricos respeitáveis do filósofo, muitas vezes
parece-nos que A peste e toda a ação em torno do dr. Rieux é menos que isso, mas
também mais enquanto invenção literária e enquanto revelação de aporias reais da
filosofia engajada de seu tempo.
Não é por acaso então que para investigar as mediações, temos de perseguir o
significante dos ratos (e de sua letra R) sob o qual se oculta e produz o sujeito dividido,
interpelado pelo que Lacan denominou o ―discurso hegemônico na modernidade‖: o
discurso da ―nova tirania do saber‖ exercida pelo ―discurso da universidade‖ (implicado
no que alguns hoje denominam o capitalismo ―biopolítico‖ e na burocracia stalinista)
31 CAMUS, L‟homme révolté, op. cit., p. 129. 32 Idem, ibidem, p. 356 e 359.
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que atua sobre os sujeitos tratando-os como ―material humano‖.33 É com os
significantes desse discurso que podemos talvez clarificar várias relações em jogo na
narrativa:
Assim, a população de Oran é interpelada pelo estado de exceção e reduzida a
meros ―ratos‖, objetos fora da simbolização, i.e, ―objetos pequenos a‖ (S2->a): como
instrumentos de gozo, o material humano da ordem do trabalho, como diria Lacan, e no
limite, redutível à vida nua do homo sacer, como propõem Agamben/ Žižek. Sob o saber
científico (S2), com sua ideologia civilizatória, a do ―fardo do homem branco‖ etc.,
oculta-se o significante mestre (S1) da dominação colonial. Como produto desse laço
social temos então o sujeito administrado ($), aqui textualmente representado em uma
dupla vertente:
A) os ―concidadãos‖ supostamente servidos pelo Estado, ao nível da ideologia, no fundo
mantidos isolados e individualizados, privados de substância e geridos até a morte (a
―biopolítica‖ que se inverte francamente naquilo que Agamben chamou
―tanatopolítica‖34);
B) De outro lado, esse produto implica numa determinada subjetivação dessa posição
fantasmática de objeto; aqui, Rieux fulgura como o ―historiador dos corações dos nossos
concidadãos que a peste tornara dilacerados e exigentes‖ (125/93), e que tomando o
―partido da vítima‖ junta-se aos homens ―nas únicas certezas que eles têm em comum e
que são o amor, o sofrimento e o exílio‖ (273/208). Ou seja, o discurso gera
necessariamente uma certa revolta (a passagem de a - $) e uma certa demanda de novos
saberes (S2): criar formações sanitárias independentes do Estado, buscar novos soros
com o material precário disponível etc. Como espécie de resíduo, administrado por este
discurso dominante, há uma certa histericização do laço social e de seus sujeitos. Os
33 LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1992, pp. 29-30, 76. Cf. sobre o tema: ŽIŽEK, Visão em paralaxe, op. cit., p. 393-4; Idem, Eles não sabem o que fazem, op. cit., p. 88-9; Idem, Menos que nada, op. cit., p. 619-23; Idem, Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2012, pp. 245-8, 304-5. Para uma boa introdução geral ao tema dos discursos: SKARE, Nils Göran. ―O dia-a-dia colonizado: Lacan, Lefebvre e os eventuais discursos cotidianos‖. Sinal de menos, nº10, 2010; QUINET, op.cit., Cap. 2.
34 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. (O poder soberano e a vida nua - I). B. Horizonte: Ed. UFMG, 2002.
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ratos tomam o passo público, inicialmente nos ―bairros exteriores‖, nos subúrbios
árabes, depois aparecem nas ―fábricas e depósitos‖ (21/15), até chegarem aos bairros
comerciais do centro, nos bondes, repartições, escolas, cafés, hotéis e terraços usados
pela classe dominante. É como se os objetos fantasmáticos recalcados de Oran
retornassem como o ato falho da maquinaria de exclusão social. Vale citar a passagem:
―Dir-se-ia que a própria terra onde estavam plantadas nossas casas se purgava dos seus humores, pois deixava subir à superfície furúnculos que, até então, a minavam interiormente. Imaginem só o espanto da nossa pequena cidade, até então tão tranquila, transtornada em alguns dias, como um homem saudável cujo sangue espesso se pusesse de repente em revolução!‖ (22/16)
Jean Tarrou, o intelectual camusiano do livro, acha essa invasão deveras
―curiosa‖ e ―interessante‖, enquanto o velho espanhol pobre e asmático se alegra com
ela. A cidade toma medidas de emergência contra os ratos (―desratização científica‖) e
os conduz até o forno de incineração de lixo. O paralelo aqui é anunciado: mais tarde
será a população inteira de Oran que será convertida numa massa de ―ratos‖
descartáveis, lembrando a figura agambeana do homo sacer. Mais diretamente Cottard
é associado aos ratos, no momento da tentativa de suicídio. Como exatamente? Através
do ―gemido engraçado, até mesmo sinistro‖ que emite, enquanto poucas linhas adiante
o médico parecia ouvir ―pequenos guinchos de ratos‖ no intervalo de sua respiração
(24/18). Também Joseph Grand ―nada era além do pequeno funcionário municipal que
aparentava ser‖, e tem aspectos físicos e morais que o associam imaginariamente ao
animal (bigode amarelo, poucos dentes no maxilar superior, alto e curvado, ombros
estreitos e membros magros), com sua ―arte de resvalar pelas paredes e deslizar por
entre as portas‖... ―todos os sinais da insignificância‖ (47/35) do homem simples, mero
objeto de troca sem direitos reconhecidos. Camus certamente associa Joseph Grand à
série kafkiana de Josefs, e em especial, ao seu último conto ―Josefina, a cantora‖. Como
ela, Grand também quer ser artista. Por fim, o dr. Rieux escuta em uma oficina ao lado
de sua casa um ―silvo breve e repetido de uma serra mecânica‖, que retorna
periodicamente e se converte em ―um silvo do flagelo‖, um ―sibilar surdo‖ e ― bizarro‖ ou
um ―silvo doce e regular que o acompanhara durante toda a epidemia‖ (44, 73, 170/33,
130, 197) no cumprimento de seu ofício. Tal silvo pode ser associado aos ―guinchos de
agonia‖ dos ratos na invasão da cidade (22/15) e aos gemidos dos doentes nas casas,
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enquanto a serra envia-nos aos seus dentes, ao ato de corte e ruptura, ao trabalho
proletário, à irrupção contra a ordem.
Revolta – desengajamento
Por essas e outras, digamos então que o romance é melhor que a filosofia moral
de Camus35, lançando incertezas em seu trabalho conceitual e criando um contexto
narrativo mais opaco e preciso, em suma, mais sujeito à interpretação, apesar da
limpidez da escrita. A começar pelo fato evidente de que, no romance, esse engajamento
não está dado de antemão e não se torna imediatamente transparente. Só após o fim da
epidemia, a crônica de Rieux pode recontar o processo aparente, perguntando pelo
sentido, sem poder respondê-lo – e aqui entra o papel crítico do leitor, que precisa ler
nas entrelinhas. Se o romance ecoa a realidade do imperialismo e do apocalipse nazi,
por outro toma deles a necessidade urgente da resistência. Mas, ao contrário da
resistência histórica, não há respostas claras nesse sentido, e sim um texto a ser
interpretado. Lá onde ele parece claro, como nas recaídas na retórica humanista, por
exemplo, ele ofusca e perde voltagem. Ganha-a quando o social é modelado pela
violência anormal da natureza (social); dessa maneira, o romance reflete e respeita a
objetividade natural-social do poder e de suas calamidades, evitando o decisionismo
existencialista. Sem dúvida, a sobriedade do estilo busca afastar toda desmedida trágica,
todo pathos heroico e quase romântico de algumas obras engajadas de um Sartre.
Colocando a questão da moral e do sujeito ético no centro, abre questões sobre o sujeito
do desejo e da política.
É isso, e não uma opção estilística do autor, que engendra a abstração e a
tradução alegórica como métodos da composição. Já antes da Peste, Oran é uma
sociedade burguesa qualquer, semelhante a ―tantas outras cidades comerciais em outras
latitudes‖, um ―lugar neutro‖, ―banal‖, ―inteiramente moderno‖. O princípio de
abstração é ainda a base da autoconservação dos habitantes, traduzível numa obstinação
35 Como Adorno criticava as peças de Sartre: ―se estas servem mal como modelos de seu próprio
existencialismo é porque contêm em si, em vista da verdade, todo o mundo administrado que ele não quer saber; através delas aprende-se que não somos livres. Seu teatro de ideias sabota a razão para a qual ele inventou as categorias‖. (ADORNO, Theodor W. ―Engagement‖ in:__. Notes sur la littérature. Paris: Flammarion, 1984, p. 289).
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pela sobrevivência e a adaptação. Como tal, ela também é incorporada pelo dr. Rieux,
que, representando autoridades externas e sem recursos médicos, deixa de cuidar dos
doentes para simplesmente condená-los à morte tão logo é constatada a doença nas
casas. Nesse sentido, Rieux torna-se um representante do poder abstrato, mas que o
combate por dentro, não por fora. E ―para lutar contra a abstração, é preciso
assemelhar-se um pouco a ela‖ (87/66). O giro dialético, assim, é que ao afastar-se do
sensível, ele se afasta criticamente da função que é obrigado a exercer, o que o traz para
o chão do convívio de classe, solidarizando-o com os homens, com uma ideia concreta
do homem, o pobre dos subúrbios, para além do heroísmo e da santidade (230/177). A
abstração incorporada é afastamento do desejo imediato, da felicidade representada
pela sua esposa. Uma alternativa que levaria simplesmente à fuga da cidade. É o caso
inicial de Rambert, que buscava voltar para a mulher na França... mas com muito custo,
e aí vemos a força da continuidade da narrativa de Camus, ele também se converte à
luta, num processo de superação coletiva. A resolução teórica de tarefas práticas mais
urgentes é simbolizada por Castel, que em vez de esperar o soro vindo da Europa, estuda
os livros de medicina e produz um soro local, com o próprio bacilo da peste em Oran, da
mesma forma que Tarrou ―deixa de lado‖ as autoridades instituídas para organizar suas
formações sanitárias. Um saber racional imerge no concreto e cria o novo. Isso sugere
uma crítica a toda teoria alienígena imposta abstratamente e sem mediação nas práticas
locais. Aqui, a ética se afirma como o coração de toda política engajada.
Assim, o princípio de abstração, levado ao absoluto como moldura e ponto de
vista da narrativa, também se relativiza e se nega. Crônica testemunhal, o relato se
avizinha da busca de significações concretas do ensaio traçado por um médico social.
Assim, a abstração e a monotonia indicadas são também um momento entre outros, e
como tal só uma aparência, pois a situação vai se complicando e se agravando em escala,
entrecortada por capítulos de estudo de tipos humanos como Rambert, Tarrou, Grand,
Paneloux e Cottard. Como se vê, as personagens são e não são as ―simples sombras‖
descritas por Lukács.36 Após o romance, aliás, Camus transferiu o tema para uma peça
chamada L‟état de siège (O estado de sítio, 1948), tomando como base histórica a
Espanha do início do século, que culminara na ditadura de Franco. Aqui, no entanto, ele
36 LUKÁCS, Georg. La signification présente du réalisme critique [1955]. (Trad. Maurice de Gandillac).
Paris: Gallimard, 1960, p. 113.
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imprime um sentido alegórico didático muito mais enfático e também muito mais
pobre: o texto se torna mais unívoco e com traços de populismo, heroísmo romântico e
ontologia – no limite, a destruição da Peste está inscrita na ―velha regra da natureza‖37 –
isso sim, completamente inverossímil e absurdo –, justamente o que tinha sido mais ou
menos evitado pela ação dos camaradas em A peste, embora a peça seja mais
movimentada e possa despertar mais interesse para uma certa faixa de público.
**
O engajamento coletivo do grupo surge como ruptura de máquina técnico-
burocrática, como desengajamento diante do funcionamento ―normal‖ das coisas. Esta
explosão das coordenadas simbólicas, a passagem ao Real, é figurada explicitamente
também, de maneira magistral, pela cena no teatro em Oran, quando o ator que
representava Orfeu no inferno avança para ―a boca de cena de uma forma grotesca, com
os braços e pernas afastados no seu traje antigo‖, indo portanto em direção à plateia, em
seguida recuando e abatendo-se contra o ―cenário... anacrônico‖, fazendo simplesmente
evacuar a sala e suspender o espetáculo. A ―imagem do que era a vida de então‖: ―a peste
no palco, sob o aspecto de um histrião desarticulado e, na sala, todo um luxo tornado
inútil sob a forma de leques esquecidos e de rendas agarradas ao vermelho das
poltronas‖ (183/139). Por aí se vê como as objeções de um Said não têm cabimento, pois
se destroem por dentro toda a estrutura de representação, toda estrutura cultural do
Império.
O happy end da libertação não elimina as evidências da permanência do
negativo: a ―ausência de perspectiva‖, como reprovou o velho Lukács38 – já que o
submetido não deixa de ser essa espécie de Rato/Orfeu histriônico preso ao sistema de
administração colonial –, com o que a chave negativa da alegoria determina uma
condição inumana socialmente produzida e em transformação.
A obra termina lentamente, como que num longo fading. Por um lado, após a
morte de Tarrou, da esposa de Rieux e de Cottard, temos um belo desfecho negativo
como este:
37 CAMUS, Albert. ―Estado de sítio‖ in:__. Estado de sítio e O estrangeiro. São Paulo: Abril Cultural,
1979, p. 135. ―É na mediocridade que eu os amo‖ – diz à Peste o herói Diogo, a respeito do povo de Cádiz (Ibid., p. 138).
38 LUKÁCS, ibidem, p. 113.
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―Entre esses amontoados de mortos, as sirenes das ambulâncias, os avisos do que se convencionou chamar destino, o tropel impaciente do medo e a revolta terrível de seu coração, não tinha parado de correr um grande rumor que punha de sobreaviso esses seres aterrados, dizendo-lhes que era preciso encontrarem sua verdadeira pátria. Para todos eles, a verdadeira pátria encontrava-se para além dos muros desta cidade sufocada. Ela estava nas matas perfumadas das colinas, no mar, nos países livres e no peso do amor. E era para ela, era para a felicidade, que eles queriam voltar, afastando-se do resto com repulsa.
Quanto ao sentido que podiam ter esse exílio e esse desejo de reunião, Rieux nada sabia.‖ (...) [mas] compreendia-o melhor nas primeiras ruas dos subúrbios, quase desertas.‖ (270/207, grifos meus.)
É nos subúrbios árabes, nas margens recalcadas da cidade oficial, que está então
a resposta. Está além dos muros desta cidade sufocada. No parágrafo final da obra, a
peste que arrasa tudo não arrasa a sociedade da mercadoria, que persiste isolando os
homens, produzindo-os como ―ratos‖ antagonistas da ―cidade feliz‖. Um desfecho de
mestre, que não poderia ser mais irônico:
―... o que se aprende no meio dos flagelos: que há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar‖. (...) ―Ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada‖. (...) ―E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz‖ (279/213).
(2012-2015).
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O QUE É UM COLABORADOR*?
Jean-Paul Sartre
O príncipe Olaf, que acaba de voltar à Noruega, estima que os colaboradores
representam 2% da população total. Não há dúvidas de que a porcentagem na França foi
mais ou menos análoga. Uma pesquisa entre os diferentes países ocupados permitiu
estabelecer uma espécie de porcentagem média dos colaboradores entre as coletividades
contemporâneas. Porque a colaboração, como o suicídio, como o crime, é um fenômeno
normal. Simplesmente, em tempos de paz ou nas guerras que não terminam em um
desastre, tais elementos da coletividade permanecem em estado latente. Como os
fatores determinantes estão ausentes, o ―colaborador‖ não se manifesta nem aos outros,
nem a si mesmo, ocupa-se dos seus negócios, talvez seja patriota, porque ele ignora a
natureza que traz em si mesmo e que se revelará um dia em circunstâncias favoráveis.
Durante a guerra atual, que permitiu isolar a colaboração, como se faz a uma doença,
havia um jogo apreciado entre os ingleses: tentava-se determinar, passando em revista
as personalidades de Londres, quais as que teriam colaborado se a Inglaterra tivesse
sido invadida. Esse jogo não era tão tolo: era o mesmo que dizer que a colaboração é
uma vocação. E, de fato, não era surpresa entre nós: bastava conhecer Déat1 ou
* Sartre utiliza a palavra collaborateur e não collaborationniste, mesmo que possa ter o mesmo sentido
que adquiriram posteriormente ambos os vocábulos sobre a história da ocupação nazista na França. O colaboracionista tem um sentido mais próximo à designação daqueles que colaboraram voluntária ou involuntariamente visando àvitória da Alemanha, já entre os historiadores, a colaboração no sentido de collaborateur designa um tipo de acomodação servil ou ideológica à força ocupante alemã como um fato consumado contra o qual não se podia lutar.
1 Marcel Déat foi um militante socialista que posteriormente adere ao que ficou conhecido como o neo-socialismo (posição contrária ao reformismo, conquistando direitos por manifestações e ações, assim como à ideia de revolução, preferindo a colaboração construtiva com o Estado), aproximando-se da ideologia ocupante e do modelo sindical fascista, participando como colaboracionista e membro do partido Rassemblement National Populaire e que havia assumido a posição do ultrapacifismo.
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Bonnard2 antes da guerra para achar natural que eles se aproximassem dos alemães
vitoriosos. Portanto, se é verdadeiro que não se colabora por acaso, mas sob a ação de
certas leis sociais e psicológicas, convém definir aquilo que se denomina um
colaborador.
Seria um erro confundir colaborador e fascista, se bem que todo colaborador deve
aceitar, por princípio, a ideologia dos nazis. De fato, certos fascistas notórios se
abstiveram de pactuar com o inimigo porque consideravam que as condições não eram
favoráveis à aparição de um fascismo em uma França enfraquecida e ocupada, antigos
cagoulards3 passaram à resistência. Diversamente, encontrava-se certo número de
radicais, de socialistas, de pacifistas, que consideravam a ocupação um mal menor e que
fizeram boas relações com os alemães.
Do mesmo modo, devemos evitar equiparar o colaborador ao burguês
conservador. Certamente a burguesia estava muito hesitante após Munique. Temia uma
guerra em que – Thierry Maulnier4 o disse claramente – se consagrasse a vitória do
proletariado. É o que explica a má vontade de certos oficiais da reserva. Mas se a
burguesia fez corpo mole na guerra, não se deduz disso que ela pretendesse se entregar à
Alemanha. Todos os operários, quase todos os camponeses resistiram: a maior parte dos
colaboradores, é um fato, foram recrutados entre os burgueses. Mas não se pode
concluir que a burguesia enquanto classe era favorável à colaboração. Antes de qualquer
coisa, ela forneceu numerosos elementos à resistência: a quase totalidade dos
intelectuais, uma parte dos industriais e dos comerciantes militaram contra a força
ocupante. Se quiséssemos definir um ponto de vista estritamente burguês, valeria mais
2 Abel Bonnard foi um poeta escritor e ensaísta amigo de Paul Valéry, Marcel Proust, Collete e Paul
Morand, membro da academia francesa, antiparlamentarista, próximo a Georges Valois e antigo seguidor de Maurras, deixa o nacionalismo anti-germânico para aderir à colaboração como ministro de Vichy.
3 Cagoule, literalmente cúculo, um tipo de capuz medieval, era o nome que designava os grupos da Action Française, uma aliança de extrema direita que visava derrubar a aliança de esquerda que governava a Terceira República.
4 Pseudônimo de Jacques Talagrand, escritor e crítico de direita que fez oposição à terceira república e antes da ocupação defendeu o fascismo por via de uma forma mais literária mas se aproximando da Action Française, que mantinha uma linha de extrema direita, mas afastada da colaboração.
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dizer que a burguesia conservadora era em seu conjunto pétanista5 e attentista.6 Foi
dito que os interesses do capitalismo são internacionais e que a burguesia francesa teria
lucrado com uma vitória da Alemanha. Mas esse é um princípio abstrato: tratava-se, no
caso, de uma subordinação pura e simples da economia francesa à economia alemã. Os
empresários industriais não ignoravam que a finalidade da Alemanha era destruir a
França como potência industrial e, consequentemente, destruir o capitalismo francês. E,
como a burguesia francesa, que sempre confundiu a autonomia nacional com a sua
própria soberania de classe dirigente, não teria compreendido que a colaboração, ao
fazer da França um país satélite da Alemanha, contribuía para arruinar a soberania
burguesa? Oriundo geralmente da burguesia, o colaborador se volta imediatamente
contra ela. Para Déat, para Luchaire7, o gaullista8 era o protótipo do burguês que ―não
compreendeu‖ porque ele tem sua fortuna.
Na verdade, a colaboração é um fato de desintegração e ela foi, em todos os casos,
uma decisão individual, não uma posição de classe. Ela representa originalmente uma
fixação em formas coletivas estrangeiras de elementos mal assimilados pela comunidade
indígena. É nisso que ela se aproxima da criminalidade e do suicídio, que são também
fenômenos de desassimilação. Em toda parte em que a vida social permaneceu intensa,
entre os lares religiosos ou políticos, esses fenômenos não encontraram lugar. Logo que
fatores diversos interferiram e provocaram um tipo de hesitação social, eles apareceram.
Assim podemos tentar uma classificação em traços grosseiros do pessoal da
colaboração: ela se recruta entre os elementos marginais dos grandes partidos políticos:
5 Os seguidores do Marechal Philippe Pétain, herói francês da primeira guerra mundial ao conseguir
conter os motins que se iniciam nas tropas sob influência da revolução de 1917 que posteriormente seguirá carreira acadêmica e será recebido na academia francesa de letras por Charles Maurras e Paul Valéry, posteriormente se torna embaixador francês na Espanha pós-Franco e assina o armistício com a Alemanha. Foi empossado como chefe do estado autoritário de Vichy, experimentando uma revolução nacional direcionada contra seus inimigos, como os socialistas, os marxistas, a laicidade e a ideia de igualdade.
6 Attentisme foi o nome dado à atitude de espera pela definição política na situação que se instaura após a ocupação da França pela Alemanha.
7 Jean Luchaire foi um jornalista e dono de jornais que evolui do pacifismo expresso no jornal Notre Temps à colaboração com o jornal Les Nouveaux Temps, tornando-se embaixador das relações entre França e Alemanha logo depois da ocupação, sendo empresário no jornalismo com posições pró-colaboração.
8 Seguidores do general De Gaulle, que, apesar de conservador e discípulo de Pétain, manteve a linha de uma resistência à dominação alemã até a libertação.
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Déat, Marquet9, que não puderam ser assimilados ao partido socialista S.F.I.O.10;
Doriot11, excluído do partido comunista; entre os intelectuais que têm abjeção pela
burguesia, sua classe de origem, sem ter a coragem ou a simples possibilidade de se
integrar ao proletariado: Drieu de la Rochelle12, que foi obcecado a vida toda pelo
fascismo italiano e o comunismo russo, Ramon Fernandez que foi por um tempo
simpatizante do comunismo e que depois abandonou o partido comunista pelo Parti
Populaire Français, P.P.F., porque, como dizia, ―eu amo os trens que partem‖ (essa
oscilação perpétua do fascismo ao comunismo, do comunismo ao fascismo é típica nas
zonas marginais da burguesia). Entre os fracassados do jornalismo, das artes, do ensino:
é o caso de Laubreaux13, que foi crítico do Je Suis Partout.14 Vindo do Nouméa para a
conquista de Paris, jamais assimilado, aturdido desde sua chegada à França por um
processo de plágio, ele balançou por muito tempo entre a direita e a esquerda, foi
secretário infiel de Henri Béraud15, depois redator do Dépêche de Toulouse, grande
órgão radical-socialista do Sudoeste, antes de encalhar nas fileiras dos neofascistas
franceses.
Mas numa comunidade não há somente casos individuais de desintegração:
grupos inteiros podem ser destacados da coletividade por forças que se exercem sobre
eles de fora: é o ultramontanismo, por exemplo, que explica a atitude colaborativa de
certos membros do alto clero. Já existia entre eles, mesmo antes que entrassem em
contato com uma potência ocupante, um tipo de atração em direção a Roma e que agiu
como força desequilibradora. O baixo clero, ao contrário, solidamente enraizado na sua
terra, galicano, muito distanciado de Roma, mostrou-se em seu conjunto ferozmente
9 Outra liderança socialista que se tornará ministro de estado e de interior dos governos colaboracionistas,
em geral voltado a um modelo autoritário, especificamente focado nas administrações e obras públicas e que aderiu ao ―neo-socialismo‖ que fundamentou o programa dos colaboracionistas.
10 A Seção Francesa da Internacional Operária. 11 Curiosamente, Doriot, antiga liderança das juventudes comunistas foi expulso quando tentou construir
alianças entre os comunistas e socialistas contra o fascismo e é expulso por esse motivo. Depois, ao fundar o Parti Populaire Français, inclina-se à direta criando a Légion des volontaires français contre le bolchevisme que combaterá a URSS no front russo incorporada ao exército alemão e se torna importante liderança do colaboracionismo enquanto o PPF se torna o principal partido de inspiração fascista na França.
12Pierre Drieu la Rochelle, escritor francês colaboracionista e veterano da primeira guerra. 13 Alain Laubreaux jornalista colaboracionista francês. 14 Je suis partout: le grand hebdomadaire politique et littéraire foi um jornal de política e crítica literária
de extrema direita e antissemita ligado inicialmente a Maurras, mas posteriormente se aproximando à colaboração com o nazismo.
15 Jornalista e romancista colaboracionista.
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resistente. Acima de tudo, a Revolução Francesa, na falta de desejo e poder de levar até
o fim os seus princípios, deixou subsistir na margem da comunidade democrática um
resíduo que se perpetuou até nossos dias. Seria exagerado defender, como tem sido
feito, que a França foi dividida em dois depois de 1789. Mas, de fato, enquanto a maioria
dos burgueses se acomodava a uma democracia capitalista que consagrou o regime da
livre empresa, uma pequena parte da classe burguesa permaneceu à margem da vida
nacional francesa porque ela recusou se adaptar à constituição republicana. Para os
―emigrados do interior‖, realistas da Action française16, fascistas do Je Suis Partout, o
desmoronamento de 1940 foi, antes de tudo, o fim da República. Sem ligação real com a
França contemporânea, com nossas grandes tradições políticas, com um século e meio
de nossa história e de nossa cultura, não estavam protegidos de modo algum contra a
força atrativa de uma comunidade estrangeira.
Assim, podemos explicar esse curioso paradoxo: a maioria dos colaboradores
foram recrutados entre aqueles que chamávamos os ―anarquistas de direita‖. Eles não
aceitaram nenhuma lei da República, se declaram livres para recusar o imposto ou a
guerra, e recorriam à violência contra seus adversários a despeito de seus direitos
reconhecidos por nossa Constituição. No entanto, é sobre a concepção de uma ordem
rigorosa que eles apoiavam sua indisciplina e sua violência. E quando ofereceram seus
serviços a uma potência estrangeira, acharam muito natural que ela estivesse submetida
a um regime ditatorial. É que, de fato, esses elementos, cuja anarquia marca somente a
desintegração profunda, precisamente porque eles mais sofreram essa desintegração do
que a desejavam, não cessaram de desejar, em contrapartida, uma integração radical.
Nunca assumiram a liberdade anárquica da qual desfrutaram, jamais a levaram em
conta, pois eles não tinham a coragem de derivar as consequências de sua atitude
rigorosamente individualista: eles perseguiam na margem da sociedade concreta o
sonho de uma sociedade autoritária à qual pudessem se integrar e se fundir. Assim eles
preferiram a ordem, que a potência alemã lhes parecia representar, à realidade nacional
da qual eles estavam excluídos.
16 Movimento de extrema-direita francês iniciado durante o caso Dreyfuss no século XIX como resposta à
intervenção da esquerda francesa no debate. Sob a influência de Maurras, a Action française conjugou uma linha monarquista, contra-revolucionária, contra o legado da revolução francesa, anti-democrática, e que dava suporte ao integralismo entre o Estado e a Igreja.
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Portanto, nenhuma classe, enquanto tal, tem responsabilidade pela colaboração.
Ela não manifesta sequer, como se acreditava, certa falência do ideal democrático: ela
mede somente os resultados, no seio das coletividades contemporâneas, do jogo normal
das forças sociais de desintegração. O resíduo social, praticamente negligenciável em
tempos de paz, torna-se muito importante nos casos de uma derrota seguida de
ocupação. Seria injusto chamar a burguesia de uma ―classe‖ de colaboração. Mas nós
podemos e devemos julgá-la enquanto classe pelo fato de a colaboração ter sido
recrutada quase exclusivamente em seu seio: isso basta para mostrar que ela perdeu sua
ideologia, sua potência, sua coesão interna.
Não basta ter determinado a zona social da colaboração. Há uma psicologia do
colaborador, da qual podemos tirar proveitosos ensinamentos. Certamente, pode-se
decidir a priori que as traições são sempre motivadas pelo interesse e a ambição. Mas
se, talvez, esta psicologia, em termos gerais, torna mais fáceis as classificações e as
condenações, ela não corresponde totalmente à realidade. Houve colaboradores
desinteressados, que desejaram em silêncio a vitória alemã sem tirar proveito de suas
simpatias. A maior parte daqueles que escreveram na imprensa ou participaram do
governo eram os ambiciosos sem escrúpulos, isso é certo. Mas alguns ocupavam, antes
da guerra, cargos demasiado importantes para dispensá-los de uma traição. E que
estranha ambição: se verdadeiramente essa paixão é, no fundo, a busca de um poder
absoluto sobre os homens, havia uma contradição manifesta na ambição do colaborador
que, posto à cabeça do pseudogoverno francês, só podia ser um agente de transmissão.
Não era seu prestígio pessoal, mas a força dos exércitos ocupantes que lhe conferia sua
autoridade. Sustentado pelos exércitos estrangeiros, ele só podia ser um agente do
estrangeiro. Aparentemente primeiros na França, se o nazismo houvesse triunfado, eles
seriam apenas os milésimos na Europa. A verdadeira ambição, se os princípios morais
não lhes tivessem sido suficientes, poderia os conduzir a resistir: o chefe de um pequeno
grupo de maquis17 tinha mais iniciativa, mais prestígio e autoridade real do que Laval18
jamais teve. Se queremos compreender a atitude dos colaboradores, é necessário então
17 Grupo de resistentes durante a segunda guerra mundial com atividades de sabotagem e guerrilha. 18 Pierre Laval, um antigo dirigente socialista da S.F.I.O. e figura importante da terceira república que se
torna posteriormente colaborador de Vichy e braço direito de Pétain.
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considerar sem paixão e os descrever com objetividade de acordo com suas palavras e
atos.
É evidente que todos eles acreditaram de início na vitória alemã. Não se concebe
um jornalista, um escritor, um industrial ou um político que aceitasse lucrar quatro
anos somente através das vantagens da ocupação, sabendo ou pressentindo que sua
aventura temerária terminasse em sua prisão ou em sua morte. Mas esse erro intelectual
que permitiu compreender sua atitude não saberia justificá-la: eu conheci muitas
pessoas que, em 1940, acreditavam que a Inglaterra perdera. Os fracos se abandonaram
ao desespero, outros se trancaram numa torre de marfim, outros, enfim, começaram a
resistência por fidelidade a seus princípios, pensando que a Alemanha podia ter ganho a
guerra, mas que restava em seu poder fazê-la perder a paz. Se os colaboradores foram da
conclusão da vitória alemã à necessidade de se submeter à autoridade do Reich é porque
havia entre eles uma decisão profunda e original que constituía o fundo de sua
personalidade: a de se curvar ante o fato consumado, fosse qual fosse. Essa tendência
primeira que eles decoravam com o nome de ―realismo‖ tinha suas raízes profundas na
ideologia de nosso tempo. O colaborador está infectado com essa doença intelectual de
nosso tempo chamada de historicismo. A história nos ensina, com efeito, que um grande
acontecimento coletivo levanta, a partir de sua aparição, ódios e resistências que,
mesmo sendo às vezes muito belos, serão mais tarde considerados como ineficazes. Os
que se dedicam a uma causa perdida, pensavam os colaboradores, podem bem parecer
belas almas – não são menos perdidas e atrasadas no seu século. Eles morrem duas
vezes porque são enterrados com os princípios em nome dos quais viveram. Os
promotores do evento histórico, ao contrário, quer se trate de César, de Napoleão ou
Ford, talvez sejam responsabilizados por seu tempo em nome de uma certa ética. Mas
cinquenta anos, cem anos mais tarde só se recordará sua eficácia e serão julgados em
nome dos princípios que eles mesmos forjaram. Tenho revelado cem vezes entre os
homens mais honestos professores de história, nos livros mais objetivos, essa tendência
a interiorizar os fatos ocorridos simplesmente porque eles ocorreram. Eles confundem a
necessidade de se submeter ao fato, enquanto pesquisadores, com certa inclinação a
endossá-lo moralmente, enquanto agentes morais. Os colaboradores assumiram para si
essa filosofia da história. Para eles, a dominação do fato é acompanhada por uma vaga
crença no progresso, mas em um progresso decapitado: a noção clássica de progresso,
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com efeito, supõe uma ascensão que se aproxima indefinidamente de um termo ideal.
Os colaboradores se consideram muito positivos para crerem sem provas nesse termo
ideal e, em consequência, no sentido da história. Mas, se eles rejeitam essas
interpretações metafísicas em nome da ciência da história, eles não abandonam, porém,
uma ideia de progresso: para eles, este se confunde com a marcha da história. Não
sabemos para onde vamos, mas, se há mudança, é porque há melhoria. O mais recente
fenômeno histórico é o melhor simplesmente porque ele é o mais recente: nós
pressentimos que ele contribui para dar forma à figura humana, esse esboço ao qual
cada instante que passa traz um retoque, somos tomados por um tipo de pitiatismo, e ao
qual se abandona passivamente às correntes que se esboçam, flutuamos em uma direção
desconhecida, conhecemos as delícias de não pensar, de não prever e de aceitar as
obscuras transformações que devem fazer, de nós, homens novos e imprevisíveis. Aqui,
o realismo dissimula o medo de se fazer o ofício do homem – esse ofício teimoso e
limitado que consiste em dizer sim ou não segundo princípios, em ―empreender sem
esperar, a perseverar sem sucesso‖ – e um apetite místico do mistério, uma docilidade
em relação a um futuro que se renuncia forjar e sobre o qual nos limitamos a
conjecturar. O hegelianismo mal compreendido tem, certamente, algo a dizer. Aceita-se
a violência porque todas as grandes mudanças foram baseadas em violência e se confere
à força uma obscura virtude moral. Assim, para apreciar seus atos, o colaborador se
posiciona no futuro mais distante: essa aproximação com a Alemanha, que ele jogava
contra a Inglaterra, nós a consideraríamos uma ruptura do engajamento e uma falta
injustificável de palavra. O colaborador, ainda que vivesse em nosso século, a jugava do
ponto de vista dos séculos futuros, com a legitimidade do historiador que julga a política
de Frederico II. Ele já havia encontrado até mesmo um nome para essa conduta:
tratava-se, simplesmente, de uma ―inversão das alianças‖19 que tinha seus antecedentes
e exemplos numerosos na história.
Acredito que essa maneira de julgar o evento à luz do futuro foi para todos os franceses
uma das tentações da derrota: ela representava uma forma sutil de evasão. Saltando
19 No original renversement d‟alliances referindo-se ao termo com que os historiadores designam a
reviravolta diplomática implicada no Tratado de Versalhes de 1756 nas relações entre Áustria, Inglaterra, França e Prússia, em particular, sobre o caso da inversão das relações entre a França de Luís XV e a Prússia de Frederico o Grande que deixam de ser amistosas para serem a partir de então hostis.
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alguns séculos adiante e se voltando ao presente para contemplá-lo de longe, recolocado
na história, ele se transformaria em passado e se mascarava seu caráter insustentável.
Desejava-se esquecer uma esmagadora derrota olhando apenas para suas consequências
históricas. Esquecia-se, porém, que a história, ainda que compreendida
retrospectivamente e em grandes blocos, é vivida e feita no dia a dia. Essa escolha pela
atitude historicista e essa ―passadização‖ contínua do presente é típica da colaboração.
Os menos culpáveis são os idealistas desiludidos que, deixando de propor em vão seu
ideal, acreditaram de repente que era necessário impô-lo. Se, por exemplo, o pacifismo
francês forneceu tantos recrutas à colaboração era porque os pacifistas, incapazes de
travar a guerra, tinham decidido ver no exército alemão a força que realizaria a paz. Seu
método havia sido até então a propaganda e a educação. Ele se mostrou ineficaz. Então,
persuadiram-se de que mudavam somente de meios: eles se colocaram no futuro para
julgar a atualidade e viram a vitória nazista trazer ao mundo uma paz alemã comparável
à famosa paz romana. O conflito com a Rússia e depois com a América não lhes abriu os
olhos: eles viram apenas males necessários. Assim nasceu um dos paradoxos mais
curiosos desse tempo: a aliança dos pacifistas mais ardentes com os soldados de uma
sociedade guerreira.
Por sua docilidade aos fatos – ou, antes, a este fato único: a derrota francesa – o
colaborador ―realista‖ criou uma moral invertida: no lugar de julgar o fato à luz do
direito, ele funda o direito sobre o fato; sua metafísica implícita identifica o ser e o
dever-ser. Tudo aquilo que é é bom, e tudo aquilo que é bom é porque é. Sob esses
princípios, ele construiu prontamente uma ética da virilidade. Tomando emprestado de
Descartes sua máxima: ―procurar antes vencer a mim próprio que vencer o mundo‖20,
ele pensa que a submissão aos fatos é uma escola de coragem e de dureza viril. Para ele,
tudo aquilo que não parte de seu ponto de vista em uma apreciação objetiva da situação
é apenas um sonho de mulher e um devaneio vazio. Ele explica a resistência não pela
afirmação de um valor, mas por uma vinculação anacrônica a costumes e a uma
ideologia que estão mortos. Ele esconde, apesar disso, essa contradição profunda: a de
20 Citação de memória de Sartre da terceira parte do Discurso sobre o Método de René Descartes ―Ma
troisième maxime était de tâcher toujours plutôt à me vaincre que la fortune, et à changer mes désirs que l'ordre du monde‖. Na tradução feita por Jacó Guinsburg e Bento Prado Jr. na terceira parte do discurso do método ―Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do que ao destino, e de antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo‖.
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que ele próprio escolheu os fatos de onde quer partir. A potência militar da Rússia, a
potência industrial da América, a resistência teimosa da Inglaterra sob a ―blitz‖, a
revolta dos europeus subjugados, a aspiração dos homens à dignidade e à liberdade –
todos esses eram também fatos. Mas ele escolheu, em nome do realismo, não os levar
em conta. De onde deriva a falha interna de seu sistema: esse homem que fala sem
cessar da ―dura lição dos fatos‖ reteve apenas os fatos que favoreciam sua doutrina. Ele
está sempre de má fé, na pressa de descartar aquilo que o embaraça: é assim que Déat,
quinze dias depois da entrada dos alemães na U.R.S.S., não tinha pudores em escrever
―Agora que o colosso russo desmoronou...‖21.
Dando como certa a vitória alemã, o colaborador procura substituir as relações
jurídicas de reciprocidade e de igualdade entre as nações e entre os homens por um tipo
de ligação feudal de suserano e vassalo. Chateaubriant22 se considera como o servo mais
fiel23 de Hitler. Por falta de ser integrado na sociedade francesa e de se submeter às leis
universais de uma comunidade, o colaborador procura se integrar em um sistema novo
em que as relações caem na singularidade e se estabelecem de pessoa a pessoa. Seu
realismo o ajuda: o culto do fato particular e o desprezo do direito, que é universalidade,
o conduzem a se submeter às realidades rigorosamente individuais – um homem, um
partido, uma nação estrangeira. Desde então sua moral, variável e contraditória, será a
pura obediência aos caprichos do suserano. Dèat se contradiz cem vezes, segundo as
ordens que lhe chegam de Abetz. Ele não sofre com isso: a coerência de sua atitude
consiste justamente em mudar o ponto de vista tantas vezes quanto o mestre queira.
Mas essa submissão feudal não se dá sem uma contradição profunda. Se Maquiavel era
o mestre teórico dos ditadores, Talleyrand era o modelo do colaborador. Esse ambicioso
se contenta com um papel subordinado: mas é porque ele pensa estar jogando um jogo.
Sua fidelidade à Alemanha é sujeita à caução. Quantos políticos favoráveis a Vichy ou
parisienses não repetiram durante a ocupação: ―Os alemães são crianças, eles têm um
21 Em La Leçon de Stalingrad (in: France – U.R.S.S., no. 115, April 1955), Sartre cita esta passagem de
modo ligeiramente diferente como ―o colosso de pés de argila desmoronou‖: ―Le colosse aux pieds d'argile s'est effondré.‖
22 Alphonse de Châteaubriant foi um escritor animado de certo misticismo católico que desde a primeira guerra se torna partidário da reconciliação entre a França e a Alemanha, que se torna colaboracionista e partidário do Front révolutionnaire national que organiza os grupos colaboracionistas.
23 No original homme-lige, uma relação de vassalagem da tradição franca em que se escolhe o mais importante entre os vassalos e usualmente somente se poderia seguir um único suserano.
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complexo de inferioridade frente à França: nós os teremos onde desejarmos‖. Alguns
desejavam suplantar os italianos no seu papel de ―brilhante segundo lugar‖, outros
calculavam que sua hora chegaria quando a Alemanha e a América quisessem que uma
terceira potência preparasse o terreno para as negociações. Tendo colocado a força
como fonte do direito e como o apanágio do mestre, o colaborador reservou a si mesmo
a astúcia. Ele reconhece, então, sua fraqueza e esse pastor da potência viril e das
virtudes masculinas se acomoda nas armas do fraco, da mulher24. Destacam-se, entre os
artigos de Chateaubriant, de Drieu, de Brazillach25, curiosas metáforas que apresentam
as relações entre França e Alemanha sob o aspecto de uma união sexual em que a
França desempenha o papel feminino. Certamente, a ligação feudal do colaborador com
seu mestre tem um aspecto sexual. Se concebemos um estado de espírito da
colaboração, se adivinha nele um clima de feminilidade. O colaborador fala em nome da
força, mas ele não tem a força: ele é a manha, a astúcia que se apoia na força. Ele é o
próprio encanto e sedução, uma vez que pretende jogar com a atração que a cultura
francesa exerce, segundo ele, sobre os alemães. Parece-me que há aí uma curiosa mescla
de masoquismo e homossexualidade. Os meios homossexuais parisienses, aliás,
forneceram numerosos e brilhantes recrutas.
Mas aquilo que constitui talvez a melhor explicação psicológica da colaboração é
o ódio. O colaborador parece sonhar com uma ordem feudal e rigorosa: havíamos dito
que isso é o grande sonho de assimilação de um elemento desintegrado da comunidade.
Mas se trata somente de um devaneio. De fato, ele odeia essa sociedade onde não
conseguiu desempenhar um papel. Se ele sonha em lhe dar o freio fascista, é para
submetê-la e reduzi-la à condição de máquina. É típico que Déat ou Luchaire ou
Darnand26 fossem perfeitamente conscientes de sua impopularidade. Escreveram cem
vezes, com total lucidez, que a imensa maioria do país desaprovava sua política Mas eles
24 Certamente a comparação das figuras do feminino neste texto pelo jovem Sartre é problemática,
especialmente quando pensamos se ele apresenta um paralelo entre o feminino (como mulheres ou a homossexualidade) e a força ocupante, como já foi problematizada para este texto em comparação com a peça de época pouco posterior As moscas por Hedwig Fraunhofe. Vide: [http://www.genderforum.org/issues/gender-disgussed/gender-and-the-abject-in-sartre/page/5/]
25 Robert Brasillach foi outro autor e escritor do Je suis partout. 26 Soldado herói da primeira guerra que se torna voluntário no conflito entre a França e a Alemanha,
posteriormente entra na política influenciado por Pétain, se tornando líder da Milícia Francesa, grupo militante armado anticomunista e antissemita que fazia um trabalho análogo ao da gestapo no solo francês.
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xtoestavam longe de deplorar a indignação e o furor que provocavam: eles lhes eram
necessários. Sob essa ótica, concebiam que havia abaixo deles uma totalidade impotente
e inutilmente revoltada, aquela comunidade francesa em que eles não podiam se fundir
e que os excluía. Como eles não puderam vencê-la por dentro, eles a subjugariam do
exterior. Eles se integrariam à Europa alemã para violar essa nação orgulhosa. Pouco
lhes importava serem escravos de Hitler, se eles poderiam infectar a França inteira com
essa escravidão. Essa era a natureza particular de sua ambição. Em Drieu la Rochelle, as
coisas não eram tão simples: ele começou por se odiar a si mesmo. Ao longo de vinte
anos, ele se pintou como um deslocado, um desintegrado, um ―homem sobrante‖ e
sonhava para si mesmo uma disciplina férrea que ele era incapaz de seguir
espontaneamente. Mas esse ódio de si se tornou – como testemunha Gilles – um ódio ao
homem. Incapaz de suportar essa dura verdade: ―Eu sou uma criança frágil e covarde,
entregue às minhas paixões‖, quis se ver como um produto típico de uma sociedade
inteiramente podre. Sonhou com o fascismo para ela quando bastaria dar a si mesmo
regras estritas de conduta: desejou aniquilar o humano em si mesmo e nos outros,
transformando as sociedades humanas em formigueiros. Para esse pessimista, o
advento do fascismo correspondia, no fundo, ao suicídio da humanidade.
Realismo, recusa do universal e da lei, anarquia e sonho de uma obrigação férrea,
apologia da violência e do ardil, feminilidade, ódio à humanidade: características que se
explicam pela desintegração. O colaborador, tivesse ou não a ocasião de se manifestar
enquanto tal, é um inimigo que as sociedades democráticas portam perpetuamente em
seu seio. Se nós desejamos evitar que ele não sobreviva à guerra sob outras formas, não
basta executar alguns traidores. É necessário, tanto quanto possível, encontrar a
unificação da sociedade francesa, ou seja, o trabalho que a Revolução Francesa de 89
começou, e que é aquele que só pode se realizar com uma revolução nova, aquela
revolução que se tentou em 1830, em 1848, em 1871 e que sempre foi seguida de uma
contrarrevolução. A democracia sempre foi de fascistas porque ela tolera, por sua
natureza, todas as opiniões, convém que se faça enfim leis restritivas: não deve haver
liberdade contra a liberdade.
E como a tese favorita do colaborador – tanto quanto do fascista – é o realismo, é
necessário aproveitar nossa vitória para ratificar a derrota de toda política realista.
Certamente, convém se submeter aos fatos, de tirar lições da experiência: mas essa
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flexibilidade, esse positivismo político devem ser somente os meios para realizar um fim
que não se submete aos fatos e que não tira deles sua existência. Dando o exemplo de
uma política baseada sobre princípios, contribuiremos para que desapareça a espécie
dos ―pseudo-realistas‖. Diante deles, de fato, a resistência, que terminou por triunfar,
mostra que o papel do homem é de saber dizer não aos próprios fatos quando tudo se
faz crer que a eles se deve submeter. Certamente, é necessário querer vencer primeiro a
si mesmo antes de se querer vencer o destino, mas se é necessário vencer primeiro a si
mesmo, isso é para, finalmente, se poder melhor vencer o destino.
La République Française, editado em Nova Iorque, agosto de 1945.
(Sartre, Jean-Paul. Situations, III. Paris: Gallimard, 1949.)
(Trad. e notas: D. A.)
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MISÉRIAS DO PRIMITIVISMO
DANOWSKI, Débora e VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio
sobre os medos e os fins. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2014, 176 p.
Os terráqueos primam pela estupidez. Transformaram o seu belo
planeta num deserto contaminado... Embora a civilização dos
terráqueos não seja tão atrasada, eles insistem em dilapidar a natureza.
Tamanha estupidez não pode ser tolerada... Avante Hidrax! Destrua
tudo o que tiver pela frente!
(Dr. Gori em Spectreman, ordenando o seu monstro criado a partir da
poluição para que destrua as forças produtivas)1
Daniel Cunha
O fim do mundo, não sem motivos, está atraindo as atenções. É o tema que
Danowski e Viveiros de Castro se propõe a investigar. O livro comenta um mosaico de
dados e interpretações filosóficas, antropológicas e histórico-culturais que o tornam
uma leitura instigante, oferecendo um bom panorama ideológico do espírito do (fim do)
tempo. Interessa-nos mais aqui, porém, o seu movimento do todo, que é este: a partir de
um mosaico dos discursos, imagens e mitologias atuais sobre o fim do mundo (ciência,
literatura, cinema, filosofia), passa-se à antropologia dos povos ameríndios (com a sua
cosmologia própria e relação diversa com a natureza) e chega-se, finalmente, à
conclusão política apologética do ―devir-índio‖, do ―incessante redevir-índio‖. É claro
que no livro as passagens não são tão abruptas, mas com esse exagero inicial
pretendemos expor de início a essência do movimento do livro, que é a do curto-circuito
entre antropologia e política. Ainda que as duas primeiras etapas do movimento do
livro sejam as mais interessantes, nos concentraremos aqui na terceira, que é onde se
concentram os problemas. Esses problemas não são poucos, e fazem o livro, apesar de
1 No primeiro episódio da série, ―Dr. Gori, o criador de monstros‖:
https://www.youtube.com/watch?v=HqlukRAANFw
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239
toda a sua aparência ―alternativa‖ e ―verde‖, escorregar inapelavelmente para um
reacionarismo brutal, talvez de maneira total ou parcialmente inconsciente. Trata-se de
uma boa plataforma para a crítica do aqui chamaremos de ―primitivismo‖ – a crítica
ideológica reacionária, malthusiana e misantrópica das forças produtivas, decorrente de
um marcado déficit dialético, recaindo em uma espécie de ―síndrome do Dr. Gori‖ –,
ainda que se apresente de forma mais erudita que o habitual.
Decorre daquele curto-circuito mencionado que o livro, apesar de tratar de um
problema essencialmente material – a ultrapassagem dos limites de ―sustentabilidade‖
da influência humana nos ciclos materiais do planeta –, o livro é recheado de
metafísica: Gaia, Pachamama e um conflito entre ―Terranos‖ ou ―Povo de Gaia‖ e
―Humanos‖ (os ―modernos‖) sobre bases puramente idealistas são conceitos centrais na
tese desenvolvida. São os ―Terranos‖ que, em seu ―devir-índio‖, sobreviverão à
catástrofe ecológica global. Nota-se uma total ausência da crítica da economia política,
que é o elo perdido pelos autores no seu imprudente salto mortal. No caminho,
dispensam (com acerto) o marxismo tradicional em roupagem high-tech – o
―aceleracionismo‖, que parece crer na teleologia histórica da Segunda Internacional,
com a nuance de que se propõe a ―acelerar‖ o hiperdesenvolvimento das forças
produtivas, no que lançam mão inclusive do vanguardismo bolchevique, para que,
afinal, o Comunismo desde sempre prometido chegue mais cedo, deixando a crise para
trás. Mas os autores param por aí, talvez acreditando que essa roupagem baste para
caracterizar uma leitura crítica e atualizada de Marx.
Disso resulta uma série de fraquezas teóricas que acabam minando
inapelavelmente a sua capacidade de apreender o movimento real e, portanto, a
efetividade do seu sentido político. Por exemplo, ao invés de problematizar o sujeito
burguês, os autores tomam ao pé da letra o discurso iluminista do ―antropocentrismo‖
da modernidade. Bons leitores de Marx sabem que a forma do sujeito moderno deve ser
problematizada, e que a inversão capitalista de sujeito e objeto tende a fazer do capital o
―sujeito automático‖ ao qual se subordinam as ―máscaras de caráter‖, que são ―sujeitos-
sujeitados‖ enquanto meros agentes da valorização do valor (tanto ―trabalhadores‖
quanto ―burgueses‖). Da mesma forma, na seção intitulada ―a espécie impossível‖,
deixam de mencionar que essa espécie torna-se socialmente impossível (no capitalismo)
porque a sua atividade vital é convertida em trabalho alienado (ou, mais tarde na obra
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marxiana, trabalho abstrato, produtor de valor) pelo capitalismo, e é isso o que impede a
sua realização como espécie ou ser genérico (Gattunswesen).2 Ao perder esse horizonte
crítico, recusam a universalidade e recaem no pós-modernismo identitário: ―Se não
existe um interesse universal humano positivo, é porque existe uma diversidade de
alinhamentos políticos dos diversos povos ou ‗culturas‘ mundiais‖ (p. 121) – e a
expectativa pelo ―positivo‖ universal (que de fato não existe, o universal só pode ser o
negativo) apenas revela um déficit de pensamento dialético. Impressiona que os autores
conhecem esses dois momentos-chave da obra marxiana – o trabalho alienado da
juventude e o fetichismo da mercadoria da maturidade – mas as tenham relegado a duas
notas de rodapé.3 Dessa forma, ao longo de toda a obra o ―capitalismo‖ é mencionado
sem nenhum rigor conceitual, à moda moralista, como quando nomeia uma série de
multinacionais como os inimigos dos ―Terranos‖ (como se pudesse existir empresa
capitalista ou lógica empresarial ―boa‖) ou quando se refere ao colonialismo como o
choque do ―Planeta Mercadoria‖ contra a América.
A essa fraqueza conceitual na determinação do capitalismo se une uma visão
mística da realidade material. Parece que o déficit de compreensão da metafísica real do
capitalismo corresponde a uma inflação de motivos metafísicos para a sua superação –
―intrusão de Gaia‖, ―Povo de Pachamama‖, etc. O ápice ocorre quando os autores
parecem levar ao pé da letra as cosmologias antropomórficas ameríndias: ―a guerra de
Gaia opõe dois campos ou partidos povoados de humanos e não-humanos – bichos,
plantas, máquinas, rios, glaciares, oceanos, elementos químicos‖ (p. 133). E eis que
voltamos a uma visão animista do mundo, onde tudo tem ―alma‖ e é capaz de constituir-
se como ―inimigo político‖ (p. 134) (!), dos elementos químicos aos oceanos! O que se
propõe não é que o homem torne-se sujeito ao organizar-se politicamente para superar
o capital, mas a aderência a um conjunto de fantásticas superstições.
Daí também a desatenção dos autores para com os requisitos materiais. De fato, o
―devir-índio‖ é levado a sério no que se refere ao plano da técnica, na forma da apologia
2 Ironicamente, os autores criticam Chakrabarty por não utilizar o conceito marxiano de Gattunswesen
para descartar a ―espécie‖ como ―impossível‖ (p. 111, n. 131), mas a sua própria crítica fica truncada, ao não mencionar que, para Marx, o que nega o Gattungswesen é a alienação do trabalho. Para uma exposição detalhada desse argumento, além dos Manuscritos marxianos de 1844, ver HOLLOWAY, John (2013), Fissurar o capitalismo, trad. D. Cunha, Publisher, especialmente a parte IV.
3 Talvez por não compreender bem nenhum dos dois, como discutido na nota anterior no primeiro caso e mais adiante para o segundo.
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241
à ―gambiarra‖ (p. 133) e da ―bricolagem tecnoprimitivista‖ (p. 159) – nisso contrariando
o ceticismo de Latour, um dos inspiradores do livro. Ao invés de criticar a forma da
técnica moderna, configurada que é pela valorização do valor, pela lógica empresarial da
transformação de dinheiro em mais dinheiro, e assim libertar o potencial liberador da
técnica avançada de sua forma fetichista para que possa ser configurada e utilizada para
a satisfação das necessidades humanas sensíveis, os autores parecem rejeitar a técnica
avançada e a grande escala em bloco. Cientes, no entanto, de que 7 bilhões de pessoas
(10 bilhões em algumas décadas) não podem viver como caçadores-coletores
―tecnoprimitivistas‖, os autores, ao invés de tentar provar a viabilidade disso,
perguntam: ―o que sabemos nós das transições demográficas que aguardam a
humanidade até o final deste século ... se considerarmos que podemos chegar a 4oC de
aumento de temperatura média global ...?‖ (p. 129, grifo meu). Aqui o primitivismo
revela a sua veia malthusiana, ou seja, indireta e um tanto envergonhadamente admite-
se que a humanidade só pode viver à base da romantizada ―gambiarra‖ se bilhões de
pessoas pereceram, o que é referido tecnocraticamente (!) como ―transições
demográficas‖. Não falta nem mesmo o clássico ―há gente demais no mundo‖ (p. 129).4
Para ilustrar essa tese neomalthusiana, os autores usam (em uma nota de rodapé)
o argumento do consumo energético – a civilização já consome entre 12 e 15 terawatts, e
necessitaria de 100 TW se todos os países se desenvolvessem ao nível de consumo de
energia dos Estados Unidos (p. 127, n. 154). Caso tivessem apreço pelos dados materiais,
os autores poderiam constatar que a energia renovável (solar, eólica e hidráulica)
disponível somente em áreas facilmente acessíveis do planeta é de mais de 600 TW – 40
vezes mais do que o consumo energético global atual.5 Também utilizam mal o conceito
de ―pegada ecológica‖ (sem citá-la) para validar a sua tese malthusiana: ―se todas as sete
bilhões de pessoas do mundo adotassem o American way of life (...) seriam necessárias
cinco Terras‖ (p. 129). Não há rigor científico nessa informação. Hoje, a análise da
―pegada ecológica‖ global indica que se consome o equivalente à capacidade
4 Aqui há uma aproximação com o ecologista neoliberal Garrett Hardin e sua ―ética do bote salva-vidas‖,
onde não há espaço para todos, ao contrário de uma (bem operada) ―espaçonave Terra‖. Garrett vai às últimas consequências, colocando-se contrariamente à assistência aos pobres. Ver HARDIN (1974), Garrett Lifeboat Ethics: The Case Against Helping the Poor, http://www.garretthardinsociety.org/articles/art_lifeboat_ethics_case_against_helping_poor.html
5 Cf. JACOBSON, Mark e DELUCCHI, Mark (2009). ―A path to sustainable energy‖, Scientific American (November 2009), pp. 58-65.
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242
regenerativa de 1,5 planetas. Caso as tendências demográficas e de consumo
permaneçam inalteradas, esse valor é projetado para 3 planetas, em 2050.6
Imprescindível, ainda, é notar que mais da metade dessa ―pegada‖ é devida às emissões
de carbono.7 Ou seja, uma transição energética permitiria o nível de consumo global
atual sem exceder a capacidade regenerativa da biosfera. Portanto, os cinco planetas são
possivelmente um ato falho de quem toma o desenvolvimento histórico futuro como
favas contadas, para daí fazer tabula rasa reacionária da luta política e das forças
produtivas.
O problema, portanto, não é o consumo energético em si, mas o consumo de
energia fóssil, devido às emissões de carbono. O problema não é de escassez energética
em termos físicos, mas em termos político-econômicos, o buraco de agulha da
valorização do valor. O que é necessário no plano da técnica é uma transição energética,
que deve ser feita com certa velocidade para evitar as consequências mais graves do
aquecimento global (aqui o momento de verdade do ―aceleracionismo‖). Dados
empíricos mostram que a energia necessária para um alto índice de desenvolvimento
humano (IDH) é de 3,5 kW por habitante.8 Em um mundo com, em breve, 10 bilhões de
habitantes, seriam necessários 35 TW – mesmo que os países ricos diminuam o seu
―excesso energético‖ que não contribui para o nível de vida, isso corresponde a um
aumento do consumo energético global para que toda a população mundial tenha acesso
a um bom padrão de vida. Pode-se argumentar que com a abolição da ―anarquia do
mercado‖ (obsolescência programada, cadeias produtivas irracionais, máquina de
publicidade, desperdício, etc.) esse valor seria muito menor, para o mesmo resultado em
termos de nível de vida. Mas ainda que fosse possível reduzir esse consumo pela metade,
ainda seriam 18 TW. O discurso malthusiano-primitivista aproxima-se aqui, com a sua
apologia do decrescimento energético, do discurso da austeridade – abrir mão do
6 Cf. GLOBAL FOOTPRINT NETWORK,
http://www.footprintnetwork.org/ar/index.php/GFN/page/world_footprint/(acesso em fevereiro/2015).
7 Cf. BORUCKE, Michael el al (2013) ―Accounting for demand and supply of the biosphere‘s regenerative capacity: The National Footprint Account‘s underlying methodology and framework‖ Ecological Indicators 24: 518-533, Fig. 5.
8 Sobre a correlação entre consumo energético e variáveis como mortalidade infantil, expectativa de vida e analfabetismo, ver GOLDEMBERG, José (2001). Energia, meio ambiente e desenvolvimento, EDUSP, pp. 42-52.
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conforto e sacrificar-se não é justamente o que se pede em ―ajustes‖ de governos
neoliberais?
Mesmo quando tentam suavizar o primitivismo tecnológico com o que chamam
de ―agenciamentos sincréticos de alta intensidade‖ (p. 150), na qual algumas tecnologias
―modernas‖ estão incluídas, como a internet (p. 131) – juntamente com coisas como a
―psicopolítica do tecnoxamanismo‖ (sic) –, falta uma análise material. Fiquemos no
tema mais terreno da internet. Para a construção de computadores, circuitos eletrônicos
ou mesmo cabos de rede é necessária a mineração em locais muito específicos do
planeta. Grande parte da produção de cobre, por exemplo, concentra-se em cinco países,
um terço apenas no Chile. Ou seja, uma tecnologia como a internet pressupõe fluxos
materiais intercontinentais que são incompatíveis com o que os autores chamam de
―mundo humano permanentemente diminuído‖ (p. 127). O mesmo para a construção de
painéis solares, por exemplo. Mesmo que pensemos em termos de reciclagem (que
nunca é 100% eficiente), são necessários sistemas industriais complexos e sistemas
avançados de transporte e infraestrutura.
Com essas críticas, não estamos desprezando o papel da antropologia no
entendimento da crise civilizacional pela qual passamos. Pelo contrário, a antropologia é
uma ferramenta preciosa para relativizar o capitalismo, para demonstrar que a forma
de produção e sociabilização do capitalismo, e a correspondente forma de sujeito e
formas de consciência derivadas, são historicamente específicas, e não ontológicas – e
que, portanto, as coisas podem ser diferentes não apenas no passado, mas também no
futuro. É surpreendente, porém, que o conceito marxiano do ―fetichismo‖ tenha sido tão
subestimado na obra aqui discutida – relegado a uma nota de rodapé. A prova de que os
autores não entenderam a teoria do fetichismo de Marx, no entanto, é que nessa nota
eles dizem que ele reabriu, ―talvez inadvertidamente, um rico filão analítico sobre as
relações profundas entre economia e teologia na metafísica ocidental‖ (p. 100, n. 115,
grifo meu). Ora, essas relações foram apontadas por Marx de forma absolutamente
consciente, como uma leitura atenta d‘O capital o demonstra inequivocamente, desde o
primeiro capítulo sobre o fetiche da mercadoria, perpassando toda a obra até os juros
como forma mais desenvolvida de fetiche, já no terceiro livro. É justamente o fetichismo
que nos faz ainda não-sujeitos, ou, como diria Marx, ainda estejamos na ―pré-história da
humanidade‖, sob o domínio de uma economia autonomizada, onde se tem ―relações
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sociais entre coisas e relações coisificadas entre pessoas‖, na vívida alusão de sua obra
principal. ―O ‗totem‘ da sociedade moderna é o valor, e o poder social que é projetado
sobre este totem é o trabalho, enquanto atividade fundamental do homem na sociedade
produtora de mercadorias‖, como diz Anselm Jappe.9
Tudo isso posto, é evidente que os direitos dos povos indígenas não estão aqui em
discussão. De fato, a superação do capitalismo pode ser considerada, como dizem os
zapatistas, como a emergência de um ―mundo onde caibam muitos mundos‖. Zapatistas,
aliás, que sabem bem que são indígenas e mais que isso, não se restringindo a essa
identidade: ―detrás de nosotros estamos ustedes‖.10 Certamente aí cabem os mundos
indígenas, ou mesmo de ―modernos‖ que queiram realizar o seu ―devir-índio‖, tal como
nunca caberão no capitalismo. Porém, a transposição imediata dos valores e
cosmologias indígenas para a sociedade ocidental é um evidente equívoco. A sociedade
capitalista precisa ser superada a partir da sua imanência, de suas próprias
contradições, para libertar o seu potencial emancipatório que é truncado pela forma-
mercadoria e pelos seus agentes de classe. É certo que o nosso capitalismo periférico
possui especificidades, mas isso não se resolve com anacronismos do tipo ―o Brasil é
uma gigantesca Aldeia Maracanã‖ (p. 158). O Brasil nasceu como um empreendimento
capitalista, e esta já foi a nossa primeira catástrofe ecológica (a devastação do pau-brasil
de nossa costa), e essas marcas profundas no sujeito não se apagam com simplesmente
dizendo que ―somos todos índios‖. É preciso negação determinada, não a tabula rasa da
crítica reacionária. Se é verdade que a noção teleológica de ―missão civilizatória do
capital‖ nunca teve sentido para além do seu próprio desenvolvimento intrassistêmico
(que nunca foi para todos), o capitalismo foi a única forma social que permitiu que a sua
própria forma social viesse à consciência.
9 Anselm JAPPE (2006) As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor, Antígona, p. 217.
Sobre as consequências disso para o assim chamado ―Antropoceno‖, ver meus textos: CUNHA, Daniel (2015) ―The Anthropocene as Fetishism‖, Mediations 28 (2): 65-77 (http://www.mediationsjournal.org/files/Mediations28_2_06.pdf) e (2012) ―O Antropoceno como alienação‖ em Sinal de Menos no. 8.
10 ―Detrás de nosotros estamos ustedes. Detrás de nuestros pasamontañas está el rostro de todas las mujeres excluidas. De todos los indígenas olvidados. De todos los homosexuales perseguidos. De todos los jóvenes despreciados. De todos los migrantes golpeados. De todos los presos por su palabra y pensamiento. De todos los trabajadores humillados. De todos los muertos de olvido. De todos los hombres y mujeres simples y ordinarios que no cuentan, que no son vistos, que no son nombrados, que no tienen mañana.‖ Do discurso de abertura do I Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo. (http://palabra.ezln.org.mx/comunicados/1996/1996_07_27.htm)
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O livro de Danowski e Viveiros de Castro, assim, se é interessante como
apresentação de um mosaico pitoresco sobre o ―apocalipse‖, acaba ele mesmo caindo
nas redes desse ―mosaico de curiosidades‖ com a virada primitivista do seu final – um
chamado à ―incivilização‖ (p. 130) que recorre a motivos supersticiosos e malthusianos
para justificar e tornar artificialmente inexorável um ―futuro pós-catastrófico‖ em ―um
mundo humano permanentemente diminuído‖ (p. 127) – poucas vezes a regressão
social foi tão bem descrita. Talvez por isso mesmo a teoria da crise desenvolvida pela
crítica do valor11, que os autores provavelmente não conhecem, pois que ainda marginal
nos debates atuais, possivelmente seria um incômodo nesse livro. Ela é demasiado real,
historicamente determinada, não-teleológica e crítica. A crise é a contradição em
processo – entre uma forma de sociabilização baseada no trabalho abstrato e suas forças
produtivas hiperdesenvolvidas que eliminam a necessidade desse trabalho abstrato, e o
aumento irracional do processamento material que causa a crise ecológica é
consequência disso.12 O que precisamos não é de fatalismos malthusianos aliados a pós-
modernismos identitários e superstições fantásticas (metafísica é a lógica do capital!),
mas, como diz J.-P. Dupuy, de ―catastrofismo esclarecido‖13: a projeção de que a inércia
nos levará à catástrofe deve inspirar nossos projetos políticos para mudar de futuro. Ou
como diz Günther Anders, citado no próprio livro, no que talvez seja o seu melhor
momento:
―Se nos distinguimos dos apocalípticos judaico-cristãos clássicos, não é apenas por temermos o fim (que eles, de sua parte, esperavam), mas sobretudo porque nossa paixão apocalíptica não tem outro objetivo senão o de impedir o apocalipse. Só somos apocalípticos para podermos estar errados‖ (p. 114)
Os autores do livro, porém, desperdiçam a força da invectiva de Anders (que é
bastante citado ao longo do livro, mas sempre parece fora de lugar). Eles antes
pressupõem um apocalipse inevitável para a imensa maioria dos habitantes do planeta –
o que, além de politicamente desmobilizante, é cientificamente equivocado, posto que
ainda é fisicamente (e politicamente) possível evitar o pior – para o triunfo final de um
11 Por exemplo, por Robert KURZ (1991) em O colapso da modernização, Paz e Terra. 12 Como demonstrado por ORTLIEB, C. P., ―Uma contradição entre forma e conteúdo‖, disponível em
http://o-beco-pt.blogspot.com.br/2010/06/claus-peter-ortlieb-uma-contradicao.html Original: Exit! 6 (2009)
13 DUPUY, Jean-Pierre (2009), Pour un catastrophisme éclairé: quand l‟impossible est certain, Seuil.
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―novo povo‖ – a pequena vanguarda da gambiarra: ―seria ridículo imaginá-los como a
semente de uma nova Maioria‖ (p. 159). Trata-se de uma visão bastante diversa
daqueles projetos generosos e universais de libertação plena da alienação, da carência,
da exploração, do sofrimento e da superstição e de realização plena do potencial
humano que, em sua diversidade, costumamos chamar de ―esquerda‖.
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COMUNIZAÇÃO NO PRESENTE
Théorie Communiste
No curso da luta revolucionária, a abolição do Estado, da troca, da divisão do
trabalho, de toda forma de propriedade, a extensão da situação onde tudo está
livremente disponível à medida que a unificação da atividade humana – em uma
palavra, a abolição das classes – são ―medidas‖ que abolem o capital, impostas pelas
próprias necessidades da luta contra a classe capitalista. Revolução é comunização; ela
não tem o comunismo como projeto e resultado, mas é o seu próprio conteúdo.
Comunização e comunismo são coisas do futuro, mas é no presente que temos
que falar sobre eles. Esse é o conteúdo da revolução vindoura que essas lutas sinalizam
– nesse ciclo de lutas – cada vez que o próprio fato de agir como classe aparece como
uma restrição externa, um limite a ser superado. Em si mesmo, lutar como classe
tornou-se o problema – ela se tornou o seu próprio limite. Assim, a luta do proletariado
como classe sinaliza e produz a revolução como a sua própria superação, como
comunização.
Crise, reestruturação, ciclo de luta: sobre a luta do proletariado como
classe como o seu próprio limite
O principal resultado do processo de produção capitalista sempre foi a renovação
da relação capitalista entre o trabalho e suas condições: em outras palavras, trata-se de
um processo de auto-pressuposição.
Até a crise do final dos anos 60, a derrota dos trabalhadores e a seguinte
reestruturação, havia de fato a auto-pressuposição do capital, de acordo com o último
conceito, mas a contradição entre proletariado e capital se localizava nesse nível no
interior da produção e confirmava, nessa própria auto-pressuposição, uma identidade
de classe trabalhadora, através da qual o ciclo de lutas foi estruturado como competição
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entre duas hegemonias, dois modos rivais de gerenciar e controlar a reprodução. Essa
identidade era a própria substância do movimento operário.
Essa identidade dos trabalhadores, sob qualquer forma social e política de sua
existência (do Partido Comunista à autonomia; do Estado Socialista aos conselhos
operários), repousava inteiramente na contradição que se desenvolveu nessa fase de
subsunção real do trabalho sob o capital, entre, de um lado, a criação e desenvolvimento
da força de trabalho empregada pelo capital de maneira progressivamente coletiva e
social, e de outro, as formas de apropriação pelo capital dessa força de trabalho no
processo imediato de produção, e no processo de reprodução. Essa é a situação
conflituosa que se desenvolveu nesse ciclo de lutas como identidade dos trabalhadores –
uma identidade que encontrou suas características distintivas e suas modalidades
imediatas de reconhecimento na ―grande fábrica‖, na dicotomia entre emprego e
desemprego, trabalho e treinamento, na submissão do processo de trabalho à
coletividade dos trabalhadores, na relação entre salários, crescimento e produtividade
dentro de uma região nacional, nas representações institucionais e tudo o que isso
implicou, tanto na fábrica quanto no nível do Estado – isto é, na delimitação da
acumulação em uma área nacional.
A reestruturação foi a derrota, no final dos anos 60 e anos 70, de todo esse ciclo
de lutas fundado sobre a identidade de trabalhadores; o conteúdo da reestruturação foi
a destruição de tudo o que se tornou um obstáculo à fluidez da auto-pressuposição do
capital. Esses obstáculos consistiam, de um lado, em todas as separações, proteções e
especificações que foram erguidas para opor-se ao declínio do valor da força de
trabalho, à medida que evitava que a classe trabalhadora como um todo, na
continuidade de sua existência, de sua reprodução e expansão, tivesse que enfrentar a
totalidade do capital como tal. Por outro lado, havia todas as restrições à circulação,
rotatividade e acumulação, que impediam a transformação do produto excedente em
mais-valia e capital adicional. Todo produto excedente deve poder encontrar o seu
mercado em qualquer lugar, toda mais-valia deve poder encontrar a possibilidade de
operar como capital adicional em qualquer lugar, isto é, de ser transformado em meios
de produção e força de trabalho, sem nenhuma formalização do ciclo internacional
(como a divisão em blocos, ocidente e oriente, ou centro e periferia) predeterminando
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essa transformação. O capital financeiro foi o arquiteto dessa reestruturação. Com a
reestruturação que foi completada nos anos 80, a produção de mais-valia e a reprodução
das condições dessa produção coincidiram.
O ciclo de lutas atual é definido fundamentalmente pelo fato de que a contradição
entre as classes ocorre no nível de suas respectivas reproduções, o que significa que o
proletariado encontra e conforta a sua própria constituição e existência como classe na
sua contradição com o capital. Disso resulta o desaparecimento da identidade de
trabalhador, confirmada na reprodução do capital – isto é, o fim do movimento operário
e a falência concomitante da auto-organização e da autonomia como perspectiva
revolucionária. Porque a perspectiva de revolução não é mais questão de afirmação da
classe, ela não pode mais ser uma questão de auto-organização. Abolir o capital é ao
mesmo tempo negar a si mesmo como trabalhador e não se auto-organizar como tal:
trata-se de um movimento de abolição de empresas, de fábricas, do produto, da troca
(sob qualquer forma).
Para o proletariado, agir como classe é atualmente, por um lado, não ter outro
horizonte a não ser o capital e as categorias de sua reprodução, e por outro, pela mesma
razão, é estar em contradição com e colocar em questão a sua própria reprodução como
classe. Esse conflito, essa fissura na ação do proletariado, é o conteúdo da luta de
classes e é o que nela está em jogo. O que agora está em jogo nessas lutas é que, para o
proletariado, agir como classe é o limite de sua ação como classe – essa é agora uma
circunstância objetiva da luta de classes – e que o limite é construído como tal nas lutas
e se torna pertencimento de classe como restrição externa. Isso determina o nível do
conflito com o capital, e gera conflitos internos às próprias lutas. Essa transformação é
uma determinação da atual contradição entre as classes, mas em todos os casos a prática
específica de uma luta em um dado momento e em dadas condições.
Esse ciclo de lutas é a ação de uma classe trabalhadora recomposta. Ela consiste,
nas principais áreas de acumulação, no desaparecimento dos grandes bastiões da
proletarização dos empregados; na terceirização do emprego (especialistas em
manutenção, operadores de equipamentos, caminhoneiros, carregadores, estivadores
etc. – esse tipo de emprego agora perfaz a maior parte dos trabalhadores); no trabalho
em empresas ou locais menores; numa nova divisão do trabalho e da classe trabalhadora
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com a terceirização de processos de pouco valor agregado (envolvendo trabalhadores
jovens, com frequência temporários, sem perspectiva de carreira); na generalização da
―produção enxuta‖; na presença de trabalhadores jovens cuja educação quebrou a
continuidade de gerações que se sucedem e que em sua grande maioria rejeitam o
trabalho de fábrica e as condições da classe trabalhadora em geral; e em offshoring.
Grandes concentrações de trabalhadores na Índia e na China fazem parte de uma
segmentação global da força de trabalho. Elas não podem nem ser consideradas como o
renascimento alhures do que desapareceu no ―Ocidente‖ em termos de sua definição
global, nem em termos da sua própria inscrição no contexto nacional. O que definia a
identidade da classe trabalhadora era um sistema social de existência e reprodução, e
não a mera existência de características quantitativas materiais.1
Das lutas diárias à revolução, só pode haver uma ruptura. Mas essa ruptura é
sinalizada no curso diário da luta de classes cada vez que o pertencimento de classe
aparece, nessas lutas, como uma restrição externa, que é objetivado no capital, no
próprio curso da atividade do proletariado como classe. Atualmente, a revolução se
baseia na superação de uma contradição que é constitutiva da luta de classes: para o
proletariado, ser uma classe é o obstáculo que a sua luta como classe deve ultrapassar.
Com a produção do pertencimento de classe como uma restrição externa, torna-se
possível entender o ponto de não-retorno da luta de classes – a sua superação – como
uma superação produzida, na base das lutas atuais. Em sua luta contra o capital, a classe
se volta contra si mesma, isto é, ela trata a sua própria existência, tudo o que a define em
sua relação com o capital (e ela é nada mais do que dessa relação), como limite da sua
ação. Os proletários não libertam a sua ―verdadeira individualidade‖, que seria negada
pelo capital: a prática revolucionária é precisamente a coincidência entre a mudança nas
circunstâncias e na atividade humana ou autotransformação.
Essa é a relação pela qual podemos falar atualmente de comunismo, e falar dele
no presente como um movimento real e existente. Hoje é um fato que a revolução é a
1 Para que a Índia e a China possam se constituir como o seu próprio mercado interno deveria haver uma
verdadeira revolução no campo (isto é, a privatização da terra na China e o desparecimento da pequena propriedade e do arrendamento na Índia) mas também e sobretudo uma reconfiguração do ciclo global do capital, suplantando a atual globalização (isto é, isso implicaria a renacionalização das economias, superando e preservando a globalização, e uma desfinancialização do capital produtivo.
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abolição de todas as classes, à medida que a ação como classe do proletariado é, para si
mesma, um limite. Essa abolição não é um objetivo a ser alcançado, uma definição de
revolução como norma a ser atingida, mas um conteúdo atual do que a luta de classe é
em si. Produzir o pertencimento de classe como uma restrição externa é, para o
proletariado, entrar em conflito com a sua situação prévia; isso não é ―liberação‖ e nem
―autonomia‖. Esse é ―o passo mais difícil a ser dado‖ no entendimento teórico e na
prática das lutas contemporâneas.
O proletariado não se torna com isso um ser ―puramente negativo‖. Dizer que o
proletariado existe apenas como classe no e contra o capital, que ela produz todo o seu
ser, a sua organização, sua realidade e constituição como classe no capital e contra ele, é
dizer que ele é a classe do trabalho produtor de mais-valia. O que desapareceu no ciclo
atual de lutas, em seguida à restruturação dos anos 70 e 80, não é essa existência
objetiva da classe, mas sim a confirmação de uma identidade proletária na reprodução
do capital.
O proletariado só pode ser revolucionário ao reconhecer-se como classe; ela se
reconhece como tal em todos os conflitos, e tem de fazê-lo tanto mais na situação na
qual a sua existência como classe é o que ela tem de confrontar na reprodução do
capital. Não podemos nos enganar sobre o conteúdo desse ―reconhecimento‖. O
proletário reconhecendo-se como classe não será um ―retorno a si‖, mas a total
extroversão (uma auto-externalização) quando ele reconhece a si mesmo como uma
categoria do modo capitalista de produção. O que somos como classe é imediatamente
nada mais do que nossa relação com o capital. Para o proletariado, esse
―reconhecimento‖ consistirá de fato numa cognição prática, num conflito, não de si
mesmo para si mesmo, mas do capital – isto é, a sua des-objetivação. A unidade da
classe não pode mais ser baseada na luta por salários e demandas, como um prelúdio
para a sua atividade revolucionária. A unidade do proletariado só pode ser a atividade
pela qual ele abole a si mesmo ao abolir tudo o que o divide.
Das lutas por demandas imediatas à revolução, tem de haver uma ruptura, um
salto qualitativo. Mas essa ruptura não é um milagre, não é uma alternativa; nem é a
simples constatação da parte do proletariado de que não há nada mais a fazer a não ser a
revolução, diante do fracasso de todo o resto. ―A revolução é a única solução‖ é tão
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inepto quanto a fala sobre a dinâmica revolucionária das lutas baseadas em demandas.
Essa ruptura é produzida positivamente pelo desdobramento do ciclo de lutas que a
precede; ela é sinalizada na multiplicação de fissuras no interior da luta de classes.
Como teóricos, somos as sentinelas dessas fissuras, e as promovemos no interior da
luta de classes do proletariado através das quais ele coloca a si mesmo em questão; na
prática, somos atores delas quando estamos diretamente envolvidos. Existimos nessa
ruptura, nessa fissura na atividade do proletariado como classe. Não há mais nenhuma
perspectiva para o proletariado sobre a sua própria base como classe do modo
capitalista de produção, além da capacidade de superar a sua existência de classe na
abolição do capital. Há uma identidade absoluta entre estar em contradição com o
capital e estar em contradição com a sua própria situação e definição como classe.
É através dessa própria fissura no interior da ação como classe que a
comunização se torna uma questão do presente. Essa fissura no interior da luta de
classes, na qual o proletariado não tem nenhum horizonte além do capital, e portanto
simultaneamente entra em contradição com a sua própria ação como classe, é a
dinâmica desse ciclo de lutas. Atualmente a luta de classes do proletariado tem
elementos ou atividades identificáveis que sinalizam a sua própria superação em seu
próprio curso.
Lutas produzindo teoria2
A teoria desse ciclo de luta, como apresentada acima, não é uma formalização
abstrata que então provará que se conforma à realidade através de exemplos. É a sua
existência prática, ao invés de sua veracidade intelectual, que a prova no concreto. Ela é
um momento particular de lutas que já são elas próprias teóricas (no sentido que elas
são produtoras de teoria), à medida que elas têm uma relação crítica em relação a si
mesmas.
Na maioria das vezes não se trata de declarações bombásticas ou ações ―radicais‖, mas
todas as atividades de saída ou rejeição de sua própria condição por parte do
2 Os exemplos são em sua maioria franceses; a publicação desse texto no exterior fornece a oportunidade
de testar as teses que são aqui defendidas.
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proletariado. Nas lutas atuais em torno de demissões, os trabalhadores frequentemente
não mais demandam manter os seus empregos, mas, ao contrário, cada vez mais lutam
por boas indenizações. Contra o capital, o trabalho não tem futuro. Já era muito
evidente nas assim chamadas lutas ―suicidas‖ na fábrica da Cellatex (França), onde os
trabalhadores ameaçaram lançar ácido no rio e explodir a fábrica, ameaças que não
foram concretizadas mas que foram muito imitadas em outras lutas em torno do
fechamento de fábricas, que o proletariado não é nada se é separado do capital e não
possui nenhum futuro em si mesmo, por sua própria natureza, a não ser pela abolição
daquilo pelo que ele existe. É a desessencialização do trabalho que se torna a própria
atividade do proletariado: tanto tragicamente, em suas lutas sem perspectivas imediatas
(ou seja, suas lutas suicidas), como demanda por essa desessencialização, como nas
lutas dos desempregados e precarizados no inverno de 1998 na França.
O desemprego já não está mais claramente separado do emprego. A segmentação
da força de trabalho; flexibilidade; terceirização; mobilidade; estágios; e empregos
informais borraram todas as separações.
No movimento francês de 1998, e de forma mais geral nas lutas dos
desempregados nesse ciclo de lutas, a definição dos desempregados que foi o ponto de
partida para a reformulação do emprego assalariado. A necessidade do capital de
medir tudo em tempo de trabalho e de colocar para si a exploração do trabalho como
questão de vida ou morte é simultaneamente a desessencialização do trabalho vivo em
relação às forças sociais que o capital concentra em si. Essa contradição, inerente à
acumulação de capital, que é uma contradição no capital-em-processo, toma a forma
muito particular da definição de classe em relação ao capital; o desemprego da classe
chama para si a condição de ser o ponto de partida de tal definição. Nas lutas dos
desempregados e precarizados, as lutas dos proletários contra o capital faz dessa
contradição a sua própria contradição, e a promove. O mesmo ocorre quando
trabalhadores demitidos não pedem empregos, mas indenizações.
No mesmo período, os empregados da Moulinex que se tornaram redundantes
atearam fogo no prédio de uma fábrica, inscrevendo-se assim na dinâmica desse ciclo de
lutas, que faz da existência do proletariado como classe o limite de sua ação de classe.
De maneira semelhante, em 2006, em Savar, 50 quilômetros ao norte de Dhaka, em
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Bangladesh, duas fábricas foram incendiadas e outras centenas foram saqueadas depois
que os trabalhadores ficaram três meses sem pagamento. Na Argélia, pequenas
demandas salariais se transformaram em rebeliões, formas de representação foram
desconstituídas sem que outras fossem formadas, e foi a totalidade das condições de
vida e reprodução do proletariado que entrou em jogo, para além das demandas dos
protagonistas imediatos da greve. Na China e Índia não há perspectiva de formação de
um vasto movimento operário a partir da proliferação de vários tipos de ações baseadas
em demandas afetando todos os aspectos da vida e da reprodução da classe
trabalhadora. Essas ações baseadas em demandas frequentemente se tornam,
paradoxalmente, a destruição das condições de trabalho, isto é, da sua própria raison
d'être.
No caso da Argentina, as pessoas se auto-organizaram como desempregados da
Mosconi, trabalhadores da Bruckman, moradores de cortiços... mas ao se auto-organizar
eles imediatamente se depararam com o que eles eram como um obstáculo, que na luta
tornou-se aquilo que tinha de ser superado, e que foi visto como tal nas modalidades
práticas desses movimentos auto-organizados. O proletariado não pode encontrar em si
mesmo a capacidade de criar outras relações interindividuais, sem inverter e negar o
que ele é nessa sociedade, isto é, sem entrar em contradição com a autonomia e a sua
dinâmica. A auto-organização é talvez o primeiro ato da revolução, mas todos os atos
seguintes são direcionados contra ela (ou seja, contra a auto-organização). Na
Argentina, foram as determinações do proletariado como classe dessa sociedade (ou
seja, propriedade, troca, divisão do trabalho, relação entre homens e mulheres) que
foram efetivamente enfraquecidas pela maneira como as atividades produtivas foram
levadas a cabo, isto é, nas modalidade reais da sua realização.
Na França, em novembro de 2005, nos banlieus, os amotinados não
demandaram nada, eles atacaram a sua própria condição, eles tornaram seus alvos tudo
aquilo que os produz e define. Os amotinados revelaram e atacaram a atual condição
proletária: a precarização mundial da força de trabalho. Ao fazê-lo, tornaram
imediatamente obsoleto, no momento mesmo no qual tal demanda poderia ser
articulada, qualquer desejo de ser um ―proletário normal‖.
Três meses mais tarde, na primavera de 2006, ainda na França, como um
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movimento baseado em demandas, o movimento estudantil contra o contrat première
embauche (CPE [primeiro contrato de emprego]) só podia compreender a si mesmo
tornando-se o movimento geral dos precarizados; mas ao fazê-lo ele iria ou negar a sua
própria especificidade ou seria inevitavelmente obrigado a colidir mais ou menos
violentamente contra todos aqueles que mostraram nos motins de novembro de 2005
que a demanda por ser um ―proletário normal‖ se tornou obsoleta. Alcançar a demanda
através da sua expansão seria, com efeito, sabotá-la. Que credibilidade havia numa
ligação com os amotinados de novembro baseada no ―emprego estável para todos‖? Por
um lado, essa ligação estava objetivamente inscrita no código genético do movimento;
por outro, a própria necessidade dessa ligação induziu uma dinâmica interna de amor e
ódio, igualmente objetiva, no interior do movimento. A luta contra o CPE foi um
movimento de demandas cuja satisfação teria sido inaceitável a si mesma como
movimento de demandas.
Nas rebeliões gregas, os proletários não demandaram nada, e não consideraram a
si mesmos como opositores do capital como fundamento de nenhuma alternativa. Mas
se esses motins foram um movimento da classe, eles não constituíram uma luta naquilo
que é a própria matriz da classe: a produção. Foi dessa maneira que esses motins
tiveram a conquista chave de produzir e mirar o pertencimento de classe como uma
restrição, mas eles só puderam alcançar esse ponto ao confrontar o piso de vidro da
produção como o seu limite.3 E as maneiras pelas quais esse movimento produziu essa
restrição externa (os objetivos, os desdobramento dos motins, a composição dos
amotinados) foram intrinsecamente definidos por esse limite: a relação de exploração
como coerção pura e simples. Atacar instituições e formas de reprodução social,
tomadas em si mesmas, por um lado, foi o que constituiu o movimento e o que
constituiu a sua força, mas isso foi também a expressão dos seus limites.
Estudantes sem futuro, jovens imigrantes, trabalhadores precarizados, são todos
proletários que vivem todos os dias a reprodução da relações sociais capitalistas como
coerção; a coerção é incluída nessa reprodução porque eles são proletários, mas eles a
experimentam diariamente como separada e aleatória (acidental e não-necessária) em
3 ―Piso de vidro‖, em oposição a ―teto de vidro‖ (barreiras para a ascensão na carreira profissional das
mulheres, restringindo suas oportunidades e influência nos locais de trabalho) [N. do T.]
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relação à produção em si. Ao mesmo tempo que lutam nesse movimento de coerção que
eles experimentam como separado, eles apenas concebem e vivem essa separação como
uma lacuna em sua própria luta contra esse modo de produção.
É dessa maneira que esse movimento produziu o pertencimento de classe como
uma restrição externa, mas apenas dessa maneira. É dessa maneira que ele se localiza
nesse ciclo de lutas e é um dos seus momentos históricos determinantes.
Em sua própria prática e em sua luta, os proletários se colocaram em questão
enquanto proletários, mas apenas autonomizando os momentos e instâncias da
reprodução social em seus ataques e em seus alvos. A reprodução e a produção de
capital permaneceram estranhas uma à outra.
Em Guadalupe, a importância do desemprego, e da parte da população que vive
de benefícios e/ou da economia informal, implicam que as demandas salariais são uma
contradição em termos. Essa contradição estruturou o curso dos eventos entre, de um
lado, o Liyannaj Kont Pwofitasyon (LKP), que se centrava nos trabalhadores
permanentes (essencialmente nos serviços públicos), mas tentou manter unidos os
termos dessa contradição através da multiplicação e da infinita variedade de demandas
e, por outro lado, o absurdo das demandas salariais centrais para a maioria das pessoas
que participavam das barricadas, da pilhagem e dos ataques aos prédios públicos. A
demanda foi desestabilizada no próprio curso da luta; ela foi contestada, assim como a
sua forma de organização, mas as formas específicas de exploração da população inteira,
herdadas de sua história colonial, conseguiram evitar que essa contradição explodisse
mais violentamente no coração do movimento (é importante notar que a única morte foi
a de um sindicalista morto numa barricada). Desse ponto de vista, a produção do
pertencimento de classe como uma restrição externa foi mais um estado sociológico,
mais uma espécie de esquizofrenia, do que algo em jogo na luta.
Em geral, com a explosão da atual crise, a demanda salarial é atualmente
caracterizada por uma dinâmica que não era anteriormente possível. É uma dinâmica
interna que surge como resultado da totalidade da relação entre o proletariado e o
capital no modo de capitalista de produção, tal como ela emergiu da reestruturação e tal
como está agora entrando em crise. A demanda salarial mudou de significado.
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Na sucessão de crises financeiras que nos últimos vinte anos ou mais regularam o
modo atual de valorização do capital, a crise do sub-prime é a primeira que tomou como
seu ponto de partida não os ativos financeiros que correspondem a investimentos de
capital, mas ao consumo de residências, e mais precisamente das residências mais
pobres. Nesse aspecto, ela inaugura uma crise específica da relação salarial do
capitalismo reestruturado, no qual a contínua diminuição da fração dos salários sobre a
riqueza produzida, tanto nos países do centro quanto nos emergentes, permanece como
definitiva.
A ―distribuição de riqueza‖ deixou de ser essencialmente conflituosa no modo
capitalista de produção para tornar-se tabu, como foi confirmado no movimento recente
de greves e bloqueios (outubro-novembro de 2010) que sucederam a reforma do sistema
de previdência na França. No capitalismo reestruturado (dos quais estamos
experimentando o começo da crise), a reprodução da força de trabalho foi submetida a
um duplo desacoplamento. Por um lado, um desacoplamento entre a valorização do
capital e a reprodução da força de trabalho e, de outro, o desacoplamento entre o
consumo e o salário como renda.
Evidentemente, a divisão da jornada de trabalho entre trabalho necessário e
mais-trabalho sempre definiu a luta de classes. Mas agora, na luta em torno dessa
divisão, é paradoxalmente na definição do proletariado até o âmago do seu ser como
classe deste modo de produção, e como nada mais, que se torna evidente na prática, e
de maneira conflituosa, que a sua existência como classe é o limite da sua própria luta
como classe. Esse é atualmente o caráter central da demanda salarial na luta de classes.
No curso mais trivial da demanda salarial, o proletário vê a sua própria existência como
classe objetivar-se como algo estranho a ele, ao ponto que a própria relação capitalista a
coloca em seu coração como algo estranho.
A crise atual estourou porque os proletários não puderam mais pagar as suas
dívidas. Ela estourou na própria base da relação salarial que levou à financialização da
economia capitalista: cortes de salário como requisitos para a ―criação de valor‖ e
competição global no seio da força de trabalho. Foi essa necessidade funcional que
retornou, mas de maneira negativa, no modo histórico de acumulação de capital com a
detonação da crise dos sub-prime. Agora é a relação salarial que está no núcleo da crise
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atual.4 A crise atual é o começo da fase de reversão das determinações e da dinâmica do
capitalismo como ele emergiu da reestruturação dos anos 70 e 80.
Duas ou três coisas que sabemos
É porque o proletariado é não-capital, porque ele é a dissolução de todas as
condições existentes (trabalho, troca, divisão do trabalho, propriedade) que ele encontra
aqui o conteúdo de sua ação revolucionária como medidas comunistas: a abolição da
propriedade, da divisão do trabalho, da troca e do valor. O pertencimento de classe
como restrição externa é portanto em si um conteúdo, o que quer dizer uma prática, que
se supera em medidas comunizantes quando o limite da luta como classe se manifesta.
Comunização não é nada mais do que medidas comunistas tomadas como simples
medidas de luta pelo proletariado contra o capital.
É a escassez de mais-valia em relação ao capital acumulado que está no coração
da crise da exploração: se, no coração da contradição entre o proletariado e o capital
não houvesse a questão do trabalho que é produtor de mais-valia; se houvesse apenas
um problema de distribuição, isto é, se a contradição entre proletariado e capital não
fosse uma contradição pela própria coisa, nomeadamente o modo capitalista de
produção, cuja dinâmica ela constitui; isto é, se ela não fosse ―um jogo que produz a
abolição das suas próprias regras‖, a revolução seria apenas um desejo piedoso. O ódio
ao capital e o desejo de outra vida são apenas as expressões ideológicas necessárias
dessa contradição para-si que é a exploração.
Não é através de um ataque pelo flanco da natureza produtora de mais-valia do
trabalho que a luta baseada em demandas é superada (o que sempre retornaria a um
problema de distribuição), mas através de um ataque pelo flanco dos meios de produção
como capital. O ataque contra a natureza capitalista dos meios de produção é a sua
abolição como trabalho absorvedor de valor para valorizar a si mesmo; é a extensão da
situação na qual tudo é livremente disponível, a destruição (talvez física) de certos meios
de produção, a sua abolição como fábricas onde é definido o que deve ser um produto,
isto é, as matrizes de troca e comércio; é a sua definição e absorção em relações
4 É a crise na qual a identidade de superacumulação e subconsumo se afirmam.
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individuais intersubjetivas; é a abolição da divisão do trabalho tal como ela está inscrita
no zoneamento urbano, na configuração material dos prédios, na separação entre cidade
e campo, na própria existência de algo que pode ser chamado de fábrica ou ponto de
produção. Relações entre indivíduos são fixadas em coisas, porque o valor de troca é por
natureza material.5 A abolição do valor é uma transformação concreta da paisagem na
qual vivemos, é uma nova geografia. A abolição de relações sociais é um tema bastante
material.
No comunismo, a apropriação não possui mais nenhuma moeda, porque é a
própria noção de ―produto‖ que é abolida. Obviamente há objetos que são usados para
produzir, outros que são diretamente consumidos e ainda outros que são usados de
ambas as formas. Mas falar de "produtos" e colocar a questão da sua circulação, sua
distribuição ou ―transferência‖, isto é, conceber um momento de apropriação, é
pressupor pontos de ruptura, de ―coagulação‖ da atividade humana: o mercado em
sociedades de mercado, o de-pósito onde os bens estão livremente disponíveis em certas
formas de comunismo. O ―produto‖ não é uma simples coisa. Falar em ―produto‖ é
supor que um resultado da atividade humana aparece como finito em relação a outro
resultado ou à esfera de outros resultados. Não devemos seguir a partir do ―produto‖,
mas a partir da atividade.
No comunismo, a atividade humana é infinita porque ela é indivisível. Ela tem
resultados concretos ou abstratos, mas esses resultados nunca são ―produtos‖, pois isso
geraria a questão da sua apropriação ou de sua transferência de algum modo. Se
podemos falar em atividade humana infinita no comunismo, é porque o modo
capitalista de produção já nos permite ver – ainda que contraditoriamente e não como
um ―lado bom‖ – a atividade humana como um fluxo social contínuo global, e o
―intelecto geral‖ ou o "trabalhador coletivo" como a força dominante da produção. O
caráter social da produção não prefigura nada: ele apenas torna a base do valor
5 "Aquela coisa [dinheiro] é uma relação coisificada entre pessoas... é valor de troca coisificado, e valor de
troca não é nada mais do que a relação mútua entre as atividades produtivas das pessoas" (Marx, Grundrisse).
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contraditória.
A destruição da troca implica o ataque dos trabalhadores aos bancos que mantêm
as suas contas e as de outros trabalhadores, tornando necessário viver sem eles; implica
os trabalhadores comunicando os seus ―produtos‖ para si mesmos e para a comunidade,
diretamente e sem um mercado, e com isso abolindo a si mesmos como trabalhadores;
implica a obrigação de toda classe de organizar a si mesma e produzir comida nos
setores a ser comunizados, etc. Não há nenhuma medida que, em si mesma, tomada
separadamente, seja o ―comunismo‖. O que é comunista não é a ―violência‖ em si
mesma, nem a ―distribuição‖ da merda que herdamos da sociedade de classes, nem a
―coletivização‖ de máquinas sugadoras de mais-valia: é a natureza do movimento que
conecta essas ações, as sublinha, as tornam os momentos de um processo que só pode
comunizar ainda mais, ou ser esmagado.
Uma revolução não pode ser levada a cabo sem medidas comunistas: dissolver o
trabalho assalariado, comunizar suprimentos, roupas, casas; tomar todas as armas (as
destrutivas, mas também as telecomunicações, comida, etc.); integrar os despossuídos
(incluindo aqueles de nós que tiveram se reduzido a esse estado), os desempregados,
agricultores arruinados, estudantes desenraizados que largaram os estudos.
A partir do momento em que passamos a consumir livremente, é necessário
reproduzir aquilo que é consumido; é portanto necessário tomar os meios de transporte,
de telecomunicação, e entrar em contato com outros setores; ao fazê-lo, encontraremos
a oposição de grupos armados. O confronto com o Estado coloca imediatamente o
problema das armas, que só pode ser resolvido com a configuração de uma rede de
distribuição para apoiar o combate em um infinidade quase infinita de lugares.
Atividades militares e sociais são inseparáveis, simultâneas e mutuamente
interpenetrantes: a constituição de uma frente ou de zonas determinadas de combate é a
morte da revolução. A partir do momento em que os proletários desmantelam as leis das
relações mercantis, não há volta. A profundidade e extensão desse processo social
conferem carne e sangue a novas relações, e permitem a integração de cada vez mais
não-proletários para a classe comunizante, que está no processo de simultaneamente
constituir-se e dissolver-se. Elas permitem a abolição em extensão cada vez maior de
toda competição e divisão entre proletários, fazendo disso o conteúdo e o
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desdobramento de seu confronto armado com aqueles que a classe capitalista ainda
pode mobilizar, integrar e reproduzir em suas relações sociais.
É por isso que todas as medidas de comunização terão de ser uma ação vigorosa
pelo desmantelamento das conexões que ligam nossos inimigos e o seu suporte
material: esses terão de ser rapidamente destruídos, sem possibilidade de retorno.
Comunização não é a organização pacífica da situação onde tudo é livremente disponível
e de um modo de vida prazeroso entre proletários. A ditadura do movimento social de
comunização é o processo de integração da humanidade no proletariado que está em
processo de desaparição. A delimitação estrita do proletariado em comparação a outras
classes e a sua luta contra toda produção de mercadorias são ao mesmo tempo um
processo que compele o estrato da pequena-burguesia assalariada, a classe do
gerenciamento (intermediário) social, para se juntar à classe comunizante. Os
proletários não ―são‖ revolucionários como o céu ―é‖ azul, meramente porque eles ―são‖
assalariados e explorados, ou mesmo porque eles são a dissolução das condições
existentes. Em sua autotransformação, que tem como ponto de partida o que eles são,
eles se constituem como classe revolucionária. O movimento no qual o proletariado é
definido na prática como o movimento da constituição da comunidade humana é a
realidade da abolição das classes. O movimento social na Argentina confrontou e
colocou a questão das relações entre o proletariado e o desemprego, e o estrato médio
excluído. Ele forneceu apenas respostas extremamente fragmentadas, das quais a mais
interessante é sem dúvida a da sua organização territorial. A revolução, que nesse ciclo
de lutas não pode ser outra coisa senão comunização, supera o dilema entre as alianças
de classe leninistas ou democráticas e o ―proletários sozinhos‖ de Herman Gorter: dois
tipos diferentes de derrota.
A única maneira de superar os conflitos entre os desempregados e os que
possuem empregos, entre os qualificados e os não qualificados, é levar a cabo medidas
de comunização que removem a própria base dessa divisão, desde o começo, no curso da
luta armada. Isso é algo que as fábricas ocupadas na Argentina, quando confrontadas
com a questão, tentaram apenas marginalmente, geralmente satisfazendo-se (cf. Zanon)
com alguma redistribuição caridosa a grupos de piqueteros. Na ausência disso, o capital
jogará com essa fragmentação ao longo do movimento, e encontrará os seus Noske e
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Scheidemann entre os auto-organizados.6
De fato, como já mostrado pela revolução alemã, trata-se de dissolver os estratos
médios tomando medidas comunistas concretas que os compelem a começar a juntar-se
ao proletariado, isto é, para alcançar a sua ―proletarização‖. Hoje em dia, em países
desenvolvidos, a questão é ao mesmo tempo mais simples e mais perigosa. De um lado,
uma massiva maioria dos estratos médios é assalariada e, logo, não possui mais uma
base material para sua posição social; o seu papel de gerenciamento e direção da
cooperação capitalista é essencial mas sempre tornada precária; a sua posição social
depende do mecanismo muito frágil da subtração de frações de mais-valia. Por outro
lado, porém, e pelas mesmas razões, a sua proximidade formal do proletariado os força
a apresentar, nessas lutas, ―soluções‖ alternativas nacionais ou democráticas que
preservariam as suas próprias posições.
A questão essencial que temos que resolver é entender como podemos estender o
comunismo, antes que ele seja sufocado nas garras da mercadoria; como integramos a
agricultura, para não ter que trocar com agricultores; como nos livramos de relações
baseadas na troca de nosso adversário para impor a lógica da comunização das relações
e da tomada dos bens; como dissolvemos o bloqueio do medo através da revolução.
Para concluir, o capital não é abolido pelo comunismo, mas através do
comunismo, mais precisamente através da produção. De fato, medidas comunistas deve
ser distinguidas do comunismo: elas não são o embrião do comunismo, mas a sua
produção. Não se trata de um período de transição, mas da revolução: comunização é
tão-somente a produção comunista do comunismo. A luta contra o capital é o que
diferencia as medidas comunistas do comunismo. A atividade revolucionária do
proletariado sempre tem como seu conteúdo a mediação da abolição do capital através
da sua relação com o capital: isso não é nem um ramo de uma alternativa em
competição com outro, nem comunismo como imediatismo.
(Título original: ―Communization in the Present Tense‖
6 Gustav Noske e Phillipp Scheidemann, membros da ala moderada do partido social-democrata alemão.
Apoiaram a entrada na Primeira Guerra Mundial como ―medida defensiva‖ [N. do T.]
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Disponível em: https://libcom.org/library/communization-present-tense
Traduzido para o inglês por Endnotes;
Traduzido para o português por Daniel Cunha).
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SINAL de MENOS ISSN 1984-8730
Edição:
Cláudio R. Duarte (São Paulo)
Daniel Cunha (Porto Alegre)
Felipe Drago (Porto Alegre)
Joelton Nascimento (Cuiabá)
Raphael F. Alvarenga (São Paulo)
Rodrigo C. Castro (São Paulo)
Capa desta edição: Felipe Drago
Contribuições:
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