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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
O COMBATE AO CATIMBÓ: PRÁTICAS REPRESSIVAS ÀS RELIGIÕES AFRO-UMBANDISTAS NOS ANOS TRINTA E QUARENTA
ZULEICA DANTAS PEREIRA CAMPOS
RECIFE 2001
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
O COMBATE AO CATIMBÓ: PRÁTICAS REPRESSIVAS ÀS RELIGIÕES AFRO-UMBANDISTAS NOS ANOS TRINTA E QUARENTA
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFPE pela aluna Zuleica Dantas Pereira Campos, para obtenção do título de Doutora em História, tendo como orientador o Dr. Antônio Torres Montenegro.
Recife 2001
“Um trabalho, quando não é ao mesmo tempo uma tentativa de modificar o que se pensa e mesmo o que se é, não é muito agradável” (Michel Foucault)
Agradecimentos:
Ao meu orientador, Prof. Dr. Antônio Torres Montenegro, pela confiança
que depositou no meu trabalho e pela conduta íntegra por ocasião da orientação
desta tese de doutorado.
Ao Programa de Pós-graduação em História, na figura dos coordenadores,
das secretárias e dos professores.
À Universidade Católica de Pernambuco, em especial ao Magnífico Reitor,
Pe. Teodoro Paulo Severino Peters, S.J., pela licença remunerada para a
realização do trabalho de pesquisa desta tese.
Aos colegas do Ciclo Básico da UNICAP pelas palavras amigas e
confortantes que me foram fartamente oferecidas nos momentos de angústia.
Aos colegas e funcionários do Departamento de Sociologia da UNICAP, do
qual faço parte, pelo apoio recebido.
Aos Amigos Verônica Brayner, Suely Almeida, Newton Cabral, Sebastião
Vila Nova, Alfredo Moraes, Neide Mendonça, Socorro Mendonça e Jorge Cândido
que, oferecendo mais do que palavras de conforto, me ensinaram o caminho das
pedras.
Aos funcionários do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, da
Fundação Joaquim Nabuco, da Biblioteca Estadual Presidente Castelo Branco,
das Bibliotecas Central e Setoriais (CFCH e da Medicina) da Universidade Federal
de Pernambuco, da Biblioteca Central da Universidade Católica de Pernambuco,
do Museu do Estado de Pernambuco, do Centro Cultural Vergueiro, da Biblioteca
do Instituto de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo e do Instituto de Escritores Brasileiros, sem a colaboração dos quais a
coleta da documentação para a elaboração desta tese teria sido impossível.
Aos pesquisadores Custódio, Leonardo e Enio que, pacientemente,
transcreveram à mão a maior parte da documentação utilizada.
Aos meus irmãos, Ítalo, Suerda, Yuri e Custódio, que, de uma forma ou de
outra, contribuíram de forma decisiva para a realização das minhas tarefas.
Aos meus pais, Ilza e Firmino, pelo apoio e pelos cuidados com meus filhos,
como também ao meu marido, Hilmar.
Aos professores do Departamento de História da Universidade Federal de
Pernambuco, Dr. Carlos Miranda, Dr. Mario Marcio, Flávio Weinstein, que
gentilmente me forneceram material bibliográfico para a execução da pesquisa.
Aos amigos e colegas de trabalho Marcus Túlio, Iluminata Rangel, Zélia
Melo e Vera Borges, que, gentilmente e com enorme boa vontade, me ajudaram a
conseguir documentos que, sozinha, certamente não teria conseguido.
À Dra. Zília Codeceira que, mesmo sem me conhecer, me forneceu artigos
pertencentes a sua biblioteca particular.
Aos funcionários Nicéas e Elias do Instituto de Pesquisa Pe. Nogueira
Machado.
À profa. Dra. Maria do Carmo Tinoco Brandão, minha eterna mentora, que,
de forma direta ou indireta, sempre esteve presente em toda a fase de minha
formação acadêmica.
Às queridas amigas Kátia e Maria Odete pela força, pela solidariedade e
pela ajuda na leitura de revisão desta tese.
À CAPES, por quatro anos de bolsa.
À Elizabeth de França Ferreira, Mãe Beta, que gentilmente me relatou em
entrevista sua história de vida como mãe-de-santo.
Aos meus alunos, que acreditam no meu trabalho e sem os quais um
empreendimento desta envergadura não teria sentido.
A todos aqueles que contribuíram, de forma direta ou indireta, para a
realização desta tese e que não foram mencionados.
LISTA DE ABREVIATURAS ADA – Associação Desportiva Acadêmica
AIB – Ação Integralista Brasileira
ANL – Aliança Nacional Libertadora
APEJE – Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano
BHM – Boletim de Higiene Mental
DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda
DOPS – Delegacia de Ordem Política e Social
IEB – Instituto de Escritores Brasileiros
IM – Idade Mental
LBHM – Liga Brasileira de Higiene Mental
LBHMPE - Liga Brasileira de Higiene Mental de Pernambuco
PC – Partido Comunista
Q. I. – Quociente Intelectual
QQ.II. – Quocientes Intelectuais
SDI – Setor de Documentos Impressos
SHM – Serviço de Higiene Mental
SSP – Secretaria de Segurança Pública
UNCDP – União Nacional Católica por Deus e pela Pátria
INSTITUIÇÕES PESQUISADAS
Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano - Recife
Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais - Recife
Biblioteca Pública Estadual Presidente Castello Branco - Recife
Biblioteca Central da UFPE - Recife
Biblioteca Setorial da área de saúde da UFPE - Recife
Biblioteca Setorial do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE - Recife
Biblioteca da FUSAM - Recife
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP - Campinas
Biblioteca da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP – São
Paulo
Centro Cultural Vergueiro – São Paulo
Instituto de Escritores Brasileiros da USP – São Paulo
RESUMO
O objetivo desta tese consistiu em estudar os diversos discursos
produzidos sobre as religiões afro-umbandistas por intelectuais, pela Igreja
Católica, pelo aparato policial, tendo o Estado (nas décadas de 30 e 40) como
cenário privilegiado dessas disputas. Por outro lado, foi também do nosso
interesse analisar a forma como os atores sociais que praticavam o afro-
umbandismo se apropriaram e ressignificaram os discursos produzidos pelos
intelectuais, pela Igreja e pelo aparelho de Estado.
Este estudo levou em consideração os acontecimentos sociais, políticos,
econômicos e culturais, que permearam estas duas décadas no Brasil e no
mundo, quando novas idéias emanavam modelos de comportamento, muitos
deles contrários ao tipo de prática religiosa nele analisada.
O trabalho está dividido em duas partes, cada uma subdividida em quatro
capítulos. Na primeira parte, Os Intelectuais e as Religiões Afro-Umbandistas,
discorremos sobre o interesse de uma parcela da psiquiatria social pelo negro e
por sua religião, entendida como doença mental, degeneração da espécie, entre
outras denominações, distinguindo-se de uma outra corrente denominada
culturalista, que entende o negro, e sua religião, enquanto parte da formação da
cultura brasileira. Na segunda parte, que tem como título Estado/Igreja e as
Religiões Afro-Umbandistas, enfocamos mais duas áreas de combate: o Estado e
a Igreja. A análise se inicia com a implantação do Estado Novo no Brasil e as
mudanças políticas ocorridas em Pernambuco. Estas transformações produziram
uma política de repressão e discriminação aos afro-umbandistas. Ressaltamos,
também, o papel da Igreja Católica, através da Congregação Mariana, que
condenava insistentemente essas religiões na sociedade. Por outro lado, os afro-
umbandistas, apesar de serem alvo constante de uma política geral de
discriminação e silenciamento, se apropriaram do discurso produzido por esses
grupos, ressignificando saberes e instituindo táticas de manutenção e preservação
de sua religiosidade.
ABSTRACT
The aim of this thesis was, on the one hand, to discuss the different
arguments on Afro-umbandist religions, produced not only by intellectuals, but by
the Catholic Church and by police representatives. The idea was to focus the State
as the privileged setting for these disputes that occurred during the thirties and the
forties. On the other hand, our interest was to analyze the way the social actors
who practiced afro-umbandismo appropriated the arguments for themselves and
gave them a new meaning.
We also considered the social, political, economic and cultural events,
during the two decades referred to above, not only in Brazil but all over the world,
when new ideas gave rise to models of behavior, many of which were opposed to
the type of religious practices discussed in this paper.
Our thesis is divided into two parts, each one subdivided into four chapters.
In the first part, The Intellectuals and the Afro-Umbandistas Religions, we discuss
the interest of a segment of social psychiatry, which regarded the negroes´s
religion, as a “mental disease”, “degeneration of the species”, among other
discriminatory denominations. This segment differs from another, the so called
culturalist one that approaches the negro and his religion as part of how Brazilian
culture was formed. In the second part, entitled the State/Church and Afro-
Umbandist religions, the focus is on two conflicting areas: the State and the
Church. We start with the foundation of the so called “New State” (Estado Novo) in
Brazil and the political changes in Pernambuco, which resulted in repressive and
discriminatory politics in relation to the Afro-umbandistas. Emphasis is given to the
role of the Catholic Church through the Mariana Congregation, which insisted on
condemning these religions. Although constantly discriminated and silenced, Afro-
umbandistas appropriated the discourse produced by those groups and gave new
meaning to knowledge, and, at the same time, developed policies to keep and to
preserve their religiosity.
SUMÁRIO
LISTA DE ABREVIATURAS RESUMO/ABSTRACT INTRODUÇÃO............................................................................................................ 12 PARTE I – OS INTELECTUAIS E AS RELIGIÕES AFRO-UMBANDISTAS CAPÍTULO I - O Saber Médico e a Higienização do Brasil..................................... 24 CAPÍTULO II - Ulysses Pernambucano e os Afro-Umbandistas. Veneza Brasileira: Capital Psicopata?............................................ 50 CAPÍTULO III - Gilberto Freyre: Os Afro-Umbandistas Enquanto Personagens da Formação da Cultura Brasileira......................... 96 CAPÍTULO IV – O Iº Congresso Afro-Brasileiro de 1934....................................... 126 PARTE II - ESTADO/IGREJA E AS RELIGIÕES AFRO-UMBANDISTAS CAPÍTULO V – 1937: Repressão e Integração Nacional......................................... 179 CAPÍTULO VI – Marianos Recatequizando Pernambuco................... .................... 204 CAPÍTULO VII –A Polícia Contra o Catimbó............................................................. 222 CAPÍTULO VIII –Os Afro-umbandistas e a Repressão............................................ 249 FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................... 272 ANEXOS
INTRODUÇÃO
“O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada sobrevivesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existia o tempo presente1.”
O objetivo desta tese consistiu em estudar os diversos discursos
produzidos sobre as religiões afro-umbandistas por intelectuais, pela Igreja
Católica, pelo aparato policial e pelos próprios atores sociais que a praticam, tendo
o Estado (nas décadas de 30 e 40) como cenário privilegiado dessas disputas.
Este estudo levou em consideração os acontecimentos sociais, políticos,
econômicos e culturais, que permearam estas duas décadas no Brasil e no
mundo, quando predominavam idéias que instituíam modelos de comportamento,
muitos deles contrários ao tipo de prática religiosa analisada nesta tese.
Nossa proposta foi analisar as construções acerca do significado dos afro-
umbandistas, durante o período em foco, a partir de instituições e de intelectuais,
considerando as práticas e as representações. Por outro lado, foi também do
nosso interesse analisar a forma como os atores sociais que praticavam o afro-
umbandismo se apropriaram e ressignificaram os discursos produzidos pelos
intelectuais, pela Igreja e pelo aparelho de Estado. Dito de outro modo, nosso
objetivo é analisar o que fez as religiões de origem africana serem alvo de
diferentes formas de relações, com os intelectuais, o Estado e a Igreja, e que tipos
de práticas e de saberes instituídos foram apropriados e reinterpretados por esses
grupos religiosos no sentido de vencer resistências e fazer circular suas “práticas
proibidas”.
1 AGOSTINHO, S. Confissões. 15. ed. Petrópolis:Vozes, 2000. p.278.
Consideramos como alvo do nosso estudo os praticantes das religiões afro-
umbandistas, entendidos como aquela parcela da população adepta das religiões
de origem africana, preservadas e reinterpretadas por setores da mesma,
juntamente com elementos da tradição indígena e cristã. É necessário salientar
que esses praticantes estiveram presentes, no decorrer da discussão deste
trabalho, através dos seus sacerdotes e sacerdotisas, denominados,
respectivamente, de pais-de-santo e mães-de-santo.
Em nossa pesquisa, os praticantes estabelecem algumas formas de relação
com uma parcela da intelectualidade, com o Estado e com a Igreja. A
denominação de intelectuais foi atribuída àqueles que, no momento histórico
analisado, pensaram, discutiram, defenderam idéias e instituíram práticas a
respeito do negro associadas a suas expressões culturais e religiosas. Toda essa
problemática projetava-se em um contexto, através do qual girava um debate mais
amplo: a busca de uma identidade nacional, de uma cultura nacional, de uma
“raça” autenticamente brasileira2.
Concebemos o conceito de raça, adotando a perspectiva de Martinez-
Echazábal, como um modo socialmente construído de identificação e
diferenciação da espécie humana. Este pode ser qualificado mediante o uso de
inúmeros adjetivos, tais como: raças biológicas; históricas; culturais ou sociais.
Segundo a época e os interesses em questão, estes termos podem assumir
outros referenciais retóricos em relação ao substantivo utilizado3.
2 Tomamos como referência, para esta denominação: 1- O conceito de Gramsci de “intelectual orgânico” que consiste naquele grupo que age socialmente como agente mediador entre as classes dominantes e os grupos subalternos. Neste sentido, os intelectuais são “funcionários” dos grupos dominantes para o exercício da hegemonia social e do governo político. In. GRAMSCI, A. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. p. 11; 2- o “papel do intelectual” tal qual este é con cebido por Foucault quando diz que o trabalho de um intelectual é, através das análises que ele faz nos domínios que são seus, reinterrogar as evidências e os postulados, sacudir os hábitos, as maneiras de fazer e de pensar, dissipar as familiaridades aceitas, retomar a medida das regras e das instituições e, a partir dessa reproblematização, em que ele desempenha seu papel específico de intelectual, participar da formação de uma vontade política em que ele tem seu papel a desempenhar. In: FOUCAULT, M. O cuidado com a verdade. In: Dossier. Rio de Janeiro: Taurus, 1984. 3 MARTINEZ-ECHAZÁBAL, L. O Culturalismo dos anos 30 no Brasil e na América Latina: deslocamento retórico ou mudança conceitual? In: MAIO, M. C. (Org.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/ CCBB, 1996. p. 112.
Os intelectuais foram analisados, neste trabalho, através de duas vertentes
de pensamento: a primeira, formada por médicos psiquiatras que trabalhavam e
concebiam a questão do negro utilizando-se do aporte teórico eugenista; e a
segunda, constituída por sociólogos, jornalistas, romancistas, advogados,
antropólogos, entre outros, que pensaram essa problemática, numa perspectiva
que tentava romper com a construção teórica, trocando o conceito de “raça” pelo
de “cultura”. Ao criticarem o conceito de “raça” e passarem a defender o conceito
de “cultura”, não o fizeram por uma questão de ruptura do discurso, nem
tampouco por uma mudança conceitual. Denominamos o primeiro grupo de
eugenista e o segundo, de culturalista4.
O Estado foi representado pelas práticas e representações das
interventorias em Pernambuco, construídas a partir da ascensão de Vargas ao
poder, em 1930. Por sua vez, a Igreja teve uma significativa participação na
instituição dessas representações, através da Congregação dos Marianos. Este
grupo exerceu papel importante não só no trabalho de propaganda junto à
população acerca da virtude do Novo Regime, como também apoiava a política da
interventoria no sentido de suprimir as “seitas” africanas da sociedade.
As fontes utilizadas para a pesquisa foram diversificadas. Em Pernambuco,
pesquisamos no Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, no acervo da
Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, na Biblioteca Pública Estadual
Presidente Castello Branco, na Biblioteca Central da UFPE, na Biblioteca Setorial
do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE, na Biblioteca Setorial da
área de saúde da UFPE e na Biblioteca da FUSAM. Em São Paulo, no Centro
Cultural Vergueiro, na Biblioteca do IFCH da UNICAMP, na Biblioteca da FFLCH
da USP e no Instituto de Escritores Brasileiros da USP. A documentação coletada
consistiu em: periódicos, dentre eles jornais, revistas, boletins informativos;
documentos produzidos e apreendidos pela Delegacia de Ordem Política e Social-
SSP/PE; relatórios oficiais produzidos pelo governo; e, por fim, fontes
bibliográficas publicadas durante o período.
4 É importante ressaltar que a denominação culturalista não se refere à escola teórica assim denominada. Trata-se aqui apenas de uma categorização, denominada por nós, para operacionalização das discussões entre dois tipos de pensamentos debatidos neste trabalho.
No capítulo oito, em que discorremos sobre algumas marcas de memória
de uma protagonista desta história, concebemos o depoimento oral na perspectiva
utilizada por Antônio Montenegro5, que entende o registro da memória como
sendo e não sendo história. Para ele, a memória é história, porque se constrói a
partir de registros históricos vividos ou herdados, mas não o é, porque é alvo de
todo um processo de seletividade e de reelaboração interior que forja o que
denominamos de memória individual e, por extensão, uma forma de registro com
características distintas das fontes documentais usuais. Mas, se a representação
da memória individual revela, por seu caráter de reconstrução, de reelaboração a
partir do olhar do presente, da participação do entrevistador, características que a
distinguem das fontes documentais escritas, não é possível compreender e
analisar a memória individual dissociada do contexto histórico em que foi
produzida6.
As fontes que deram suporte documental a esta tese, não foram
consideradas como reprodução fiel da realidade, mas representações construídas
por determinados grupos, num determinado contexto socioeconômico, político e
cultural e de relações institucionais e pessoais, que atendiam a todo um conjunto
complexo de forças que se digladiavam. Este tipo de procedimento requer uma
atenção redobrada com a metodologia a ser operacionalizada. Neste sentido, o
material de estudo foi interpretado como pistas para a reinvenção de um passado
que se pretende investigar. Concordamos com Carlo Ginzburg quando afirma que
o conhecimento histórico é indireto, indiciário e conjetural7.
O procedimento técnico-metodológico adotado no tratamento da
documentação referendou-se na análise do discurso e das práticas instituídas
pelos protagonistas desta história, procurando responder às seguintes perguntas:
Quem diz? De que lugar é dito? O que é dito? Como diz? Em que circunstâncias
se diz? Qual o modo de funcionamento do discurso? Que relações existem entre o
5 MONTENEGRO, A. T. História Oral e Memória: a cultura popular revisitada. São Paulo: Contexto,1992. 6 MONTENEGRO, A. T. op. cit., 1992. 7 GINZBURG, C. Mitos, Emblemas, Sinais: morfología e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.157.
dito e o contexto histórico do momento em que foi dito? Quais projetos estavam
associados às práticas discursivas?
Partimos da concepção de que os dizeres são efeitos de sentido. Esses
sentidos não estão apenas nas palavras, mas na relação com a exterioridade, nas
condições em que foram produzidos, nas práticas decorrentes dele e que, por sua
vez, são instituídas através da (re)interpretação desses discursos.
Procuramos discutir e analisar as diversas formas de representações
construídas acerca das práticas religiosas afro-umbandistas, buscando situar
teoricamente as múltiplas variações desses discursos. Um dos autores que se
constituíram como referência de nossa análise foi Michel Foucault.
Foucault apresenta, através do estudo da formação discursiva de cada
momento histórico, as suas estruturas epistemológicas, representadas no jogo das
relações sociais, políticas, jurídicas, filosóficas, econômicas e culturais, que
fundamentam o conhecimento em uma dada época histórica. Essas estruturas se
relacionam e inter-relacionam, formando uma intricada rede que ajuda a
compreender as práticas sociais, comuns à sociedade ocidental8.
Neste sentido, o conceito de representação foi entendido como redes de
formação discursivas, conquanto expressão do “real”. A representação é, assim, o
objeto dos saberes. É um fenômeno de ordem empírica que se produz no homem
e que se pode analisar como tal. Ela é o próprio campo das ciências humanas, é o
suporte geral dessa forma de saber, aquilo a partir do qual ela é possível. O reino
da representação estende-se para além do homem, e o conhecimento é uma
ordenação de idéias9.
Uma outra noção que permeou este trabalho foi a de discurso competente
elaborada por Marilena Chauí. Ela o concebe como sendo aquele discurso que
pode ser proferido, ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado porque perdeu
8 Cf. BARRETO, J. A. E. et. al. Imaginando Erros (escritos de filosofia da ciência). Fortaleza: Casa de José de Alencar, Programa Editorial, 1997. 9 FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
os laços com o lugar e o tempo de sua origem; assim, não é paradoxal nem
contraditório em um mundo que cultua patologicamente a cientificidade10.
Também trabalhamos o conceito de “circularidade” da cultura,
problematizado primeiramente por Mikhail Bakhtin11 e, depois, cunhado por Carlo
Ginzburg, que concebe a existência de um relacionamento circular feito de
influências recíprocas entre a cultura das classes dominantes e a das classes
subalternas. Essa circularidade ocorre tanto de baixo para cima como de cima
para baixo. Não são as idéias que circulam por si mesmas, mas os homens e suas
criações12.
Esta tese está dividida em duas partes, cada uma subdividida em quatro
capítulos. Na primeira parte, Os Intelectuais e as Religiões Afro-Umbandistas,
estudamos o interesse de uma corrente da psiquiatria social pelo negro e por sua
religião, entendida esta como doença mental, degeneração da espécie, entre
outras denominações, distinguindo-se de uma outra corrente denominada
culturalista, que entende o negro, e sua religião, enquanto parte da formação da
cultura brasileira. Pretendemos trabalhar as semelhanças, as contradições e os
confrontos entre essas duas correntes, demonstrando que tanto eugenistas
quanto culturalistas instituíram práticas que, por sua vez, foram apropriadas pelos
adeptos destas religiões, constituindo-se, assim, numa relação de influências
múltiplas.
Na segunda parte, que tem como título Estado/Igreja e as Religiões Afro-
Umbandistas, enfocamos mais duas áreas de combate: o Estado e a Igreja. A
análise se inicia com a implantação do Estado Novo no Brasil e as mudanças
políticas ocorridas em Pernambuco. Estas transformações produziram uma
política de repressão e discriminação aos afro-umbandistas. Ressaltamos,
também, o papel da Igreja Católica, através da Congregação Mariana, que
condenava insistentemente essas religiões. Por outro lado, os afro-umbandistas,
10 Cf. CHAUÍ, M. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 6. ed. São Paulo: Cortez, 1993. 11 BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 4.ed. São Paulo:Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999. 12 GINZBURG, C. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
apesar de serem alvo constante de uma política geral de discriminação e
silenciamento, se apropriaram do discurso que os condenava, ressignificando
saberes e instituindo táticas de manutenção e preservação de sua religiosidade.
É importante ter em mente que esta é uma história da maneira como os
afro-umbandistas foram pensados, nos anos 30 e 40, a partir de diversificadas
concepções de sociedade. O conjunto dessas práticas revela como os afro-
umbandistas não eram passivos e, de alguma forma, tinham participação nas
estratégias de acordo com as quais eram construídos, enquanto objeto de
pensamento, como forma de conhecimento, como elemento constituinte de uma
identidade, como reflexão moral e como atores políticos.
A construção das diferentes visões que foram produzidas em torno dos
afro-umbandistas, também revela as (re)interpretações de elementos socio-
culturais, introduzidos no Brasil pelos escravos africanos. A história do negro, em
Pernambuco, começa com a utilização de escravos, trazidos de diversas tribos
africanas para o trabalho na cultura canavieira por volta de 153913. No século XIX,
viajantes estrangeiros, como Koster (1809/1815), Tollenare (1816/1818), Grahan
(1821/1823), Kidder (1839), entre outros que estiveram em Pernambuco,
descreveram a vida dos negros em suas mais variadas formas de ocupação e
moradia. Os relatos se referiam principalmente à situação de escravidão. Koster,
que permaneceu um maior tempo no Brasil, descreveu:
“Os escravos que trabalham no Recife podem ser divididos em duas classes: os escravos domésticos e os que pagam semanalmente aos seus donos... Estes consistem de marceneiros, sapateiros, canoeiros, carregadores etc14.”
Esse relato revela a forma como a presença do africano era vista como
elemento importante enquanto mão-de-obra urbana em Pernambuco. Essa mão-
de-obra exerceu grande influência nos aspectos históricos e culturais do Estado. A
13 Cf. RIBEIRO, R. Cultos Afro-Brasileiros do Recife: Um Estudo de Ajustamento Social. Recife: IJNPS,1952. 14 KOSTER, H. Viagens ao Nordeste do Brasil. 2.ed. Recife: Secretaria de Educação e Cultura Vol.XVII,1978, p. 400.
participação destes, não só em Pernambuco mas no Brasil como um todo, teve
como uma de suas maiores e mais marcantes expressões a religiosidade.
Os círculos artísticos e intelectuais do Brasil, influenciados pelo intenso
movimento nacionalista dos primeiros anos da década de trinta, revelaram um
crescente interesse pelas religiões de origem africana, bem como pela prática da
Umbanda, religião criada no Brasil.
Acreditamos que um trabalho acerca desta temática possui relevância,
tendo em vista a grande parcela da população que pratica essa forma de
religiosidade, em Pernambuco e no Brasil, como também por ser uma religião que,
no decorrer da sua história, o Estado procurou silenciar, apagar ou omitir. Soma-
se a isso o fato de que, em Pernambuco, os estudos sobre o apadrinhamento, a
perseguição política, as estratégias de luta dos praticantes dessa religião, como
também o contexto histórico no qual estes fatos estão imbricados, não foram alvo
de uma análise histórica.
Esta lacuna contrasta, aliás, com as preocupações dos sociólogos,
etnólogos e, principalmente, dos antropólogos que sempre reconheceram a
importância da religiosidade dos descendentes de africanos para o entendimento
de diferentes aspectos da sociedade no Brasil.
No primeiro capítulo, analisamos o saber construído pelos intelectuais no
Brasil dos anos trinta acerca das principais preocupações de então. A ênfase
maior foi dada à medicina social para situarmos as discussões deste período com
relação à noção de “raça” brasileira. Que pensamentos permeavam os discursos
dos intelectuais? Quais os seus objetivos? Esse contexto é importante para o
entendimento das discussões que serão estabelecidas nos capítulos seguintes.
No segundo capítulo, enfocamos a Escola de Psiquiatria Social que se
constituiu em torno da figura de Ulysses Pernambucano. Nossa intenção foi
analisar as diferentes práticas instituídas por esta Escola, interessada em estudar
a saúde mental dos negros praticantes das religiões afro-umbandistas. O que foi
produzido? Quais as posturas? Quais as intervenções? Utilizando-se do aporte
teórico propagado por Nina Rodrigues, produziu saberes através do conceito
biológico de raça, instituindo práticas que exaltavam a idéia de tradição, de busca
das origens africanas, para o estudo das doenças mentais dos negros praticantes
dessa religião.
No terceiro capítulo, analisamos uma outra vertente intelectual interessada
na cultura e na religião negra, a vertente denominada culturalista, cujas idéias
estão centradas em Gilberto Freyre. A idéia foi discutir como o negro e sua religião
foram entendidos no processo de construção da cultura e da identidade brasileira.
Tentamos também demonstrar que Freyre não rompe com o conceito biológico de
raça ao utilizar o conceito de cultura em sua obra, quando se refere à religião dos
negros. Outra questão também trabalhada foi seu apego à idéia de tradição
presente em suas discussões acerca do tema.
O Iº Congresso Afro-Brasileiro do Recife de 1934 é o título do capítulo
quatro. Nele pretendemos confrontar as idéias de Ulysses Pernambucano e seus
discípulos, relativas ao negro e à doença mental, com as idéias de Gilberto Freyre
e seus seguidores, ambas presentes, de forma direta ou indireta, no
acontecimento. Nossa intenção foi inventar uma batalha histórica, tendo como
palco o Congresso, onde estavam em exposição as duas vertentes de
pensamento. O confronto que estabelecemos foi percebido pelas diferentes
formas de se utilizar o negro e sua religião na construção de saberes. A idéia é
demonstrar que estes saberes instituídos (re)produziram a noção de tradição que,
por sua vez, foi apropriada pelo objeto de estudo das duas correntes, fazendo
circular poderes, instituindo novos saberes, (re)interpretando práticas. Enfim,
saberes, poderes, práticas se interpenetrando em todas as esferas em que
circulam os discursos.
Com o quinto capítulo, iniciamos a segunda parte da tese. Estabelecemos
como objetivo entender as transformações históricas, ocorridas no Brasil e em
Pernambuco, e as novas relações que se estabeleceram entre a sociedade e os
afro-umbandistas com a implementação do Estado Novo.
No capítulo seis, discutimos o papel da Igreja, personalizado na
Congregação Mariana, interessada na repressão à religião dos negros.
Dedicamos o capítulo sete ao estudo das estratégias de perseguição e
repressão a essas formas de religiosidade, através da imprensa, particularmente
do jornal Folha da Manhã. A análise também se dará utilizando a documentação
registrada pelo trabalho policial do DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social).
Os Afro-umbandistas e a Resistência é o título do oitavo capítulo em que
procuramos reconstruir as estratégias e lutas por parte dos integrantes dessa
religião; como também, através de um depoimento oral de memória de uma mãe-
de-santo, procuramos resgatar algumas marcas de memória de uma protagonista
desta história. As fontes e a bibliografia utilizadas foram apresentadas em seguida,
juntamente com um anexo.
Desenvolvemos uma análise das representações dos acontecimentos
históricos investigados, procurando, no estudo do universo pesquisado, levar em
conta a diversidade dos seus aspectos. O desejo maior foi o de não reduzirmos a
historicidade humana, que é plural, a uma “realidade” unidimensional na qual
haveria um simples encadeamento de causa e efeito.
A história, vista como reinvenção do passado, é inesgotável. Aliás, toda e
qualquer pesquisa, não importa o quão exaustiva, nunca esgota as possibilidades
analíticas do assunto investigado. Talvez se possa dizer que, depois de anos de
trabalho, apenas o pesquisador, já esgotado, pode exaurir as suas próprias
possibilidades. Também é importante levar em consideração que esta reinvenção
da história foi escrita, analisando um passado a partir da maneira como a autora
pensa no presente. O esforço de inventar novas leituras para o passado se
encontra imbricado com a reconstrução interior das formas como se entende e se
atua no presente.
Aqui podemos retomar a idéia de tempo discutida por Santo Agostinho, e
escolhida como epígrafe para esta introdução, acrescentando que, para ele:
“É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas, talvez, fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras...15”
15AGOSTINHO, S. op. cit ., 2000. p.284.
Partindo desta idéia, esta tese pretendeu (re)inventar uma história do presente das
coisas passadas.
CAPÍTULO I
O SABER MÉDICO E A HIGIENIZAÇÃO DO BRASIL
“Aquelles que praticam a especialidade de doenças mentaes, no Brasil, bem sabem que é ingrato o seu mistér, pois encontram da parte dos curandeiros, neste ramo da medicina, a sua mais renhida concurrencia.(...) Si o doente fica bom, o merito cabe a estes, e si peiora ou seu caso é desanimador, a culpa reverte ao medico16.”
Essa passagem do texto de Arthur Ramos, publicado em 1937, traduz não
só uma preocupação com a concorrência no mercado de cura, entre os que
praticavam a medicina institucional e o curandeirismo no Brasil, como também
reflete o pensamento construído pela intelectualidade médica em torno da figura
do curandeiro.
Ainda nesse texto, ao se propor distinguir a figura do charlatão e do
curandeiro, Ramos atribui a este último uma certa irresponsabilidade ao praticar a
cura ilegal. Esta seria resultado “de uma nítida persistência da mentalidade pré-
lógica17 nas práticas médicas, especialmente aquelas que sofreram a influência
direta do negro e do índio18”. Tomando como mote esta preocupação acerca das
influências “negativas” das “mentalidades pré-lógicas”, portanto consideradas
primitivas e inferiores, que permeavam a sociedade brasileira, pretendemos, neste
capítulo, discutir o saber construído por uma parcela de intelectuais do Brasil dos
anos trinta sobre esta questão. Enveredaremos pelos principais debates travados
durante o período e atribuiremos um enfoque maior ao discurso arquitetado pelos
médicos. Como veremos, esses discursos foram permeados por uma diversidade
16 RAMOS, A. Loucura e Crime . Porto Alegre: Edição da Livraria Globo, 1937. p. 75. 17 Ramos utiliza o conceito de “mentalidade pré-lógica” cunhado por Lèvi-Bruhl que supõe em sua teoria dois modelos de pensamento: um lógico, do civilizado; outro, pré -lógico, do primitivo. 18 RAMOS, A. op. cit., 1937. p. 74.
de idéias, dentre elas a noção de eugenia e de intervenção da ciência médica na
normatização da sociedade.
Até o século XIX, as práticas do curandeirismo eram exercidas livremente
no Brasil. Em parte, esse fenômeno pode ser explicado pela existência de um
número extremamente reduzido de profissionais formados na ciência hipocrática
que exerciam sua arte no Brasil19. O marco inaugural dessa medicina remonta à
transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. Logo, só na
primeira metade do século XIX a medicina institucional começou a ser praticada
com maior freqüência20.
Entre a proliferação das práticas terapêuticas da medicina institucional no
Brasil e o discurso de Arthur Ramos, decorreram pouco mais de cem anos. Nesse
intervalo de tempo, aqueles que se dedicavam à prática do curandeirismo
começaram a merecer atenção de diversos setores preocupados em distanciar e
diferenciar um saber produzido e referendado pela competência científica daquele
produzido por pessoas “desqualificadas” ao exercício de tal função.
As últimas décadas do século XIX e o início do século XX foram
extremamente favoráveis ao desenvolvimento da tecnologia médico-sanitária no
Brasil, bem como às descobertas no terreno da patologia tropical. Tais estudos
forneceram as bases para o grande desenvolvimento das organizações de saúde
e para a ampliação da intervenção do Estado na vida social que se acentuaria no
período seguinte, em nome da proteção e recuperação da saúde dos indivíduos e
da melhoria das condições gerais de vida21.
As práticas populares de vida e lazer dos trabalhadores fabris, das
prostitutas, dos desocupados, das crianças que vagueiam abandonadas pelas
ruas vão se tornando objeto de profunda preocupação de médicos higienistas,
vistas como indícios de anormalidade social22. Se a questão do desenvolvimento
19 MONTERO, P. Da Doença à Desordem: a magia da Umbanda. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. 20 CUNHA, M.C.P. O Espelho do Mundo: Junquery, a história de um asilo. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1986. 21 SINGER, P. et.al. Prevenir e Curar: o controle social através dos serviços de saúde. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1988. 22 Cf. RAGO, M. Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar – Brasil 1890-1930. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
urbano tem um peso decisivo na contextualização do alienismo na história da
Europa, e para percepção histórica do seu sentido fundamental, ela assume uma
importância ainda maior quando se pensa o caso do Brasil.
Fortemente influenciado por Darwin, assim como por Gobineau e outros
teóricos do racismo biológico, o aporte da medicina mental, na segunda metade
do século XIX, volta-se para dentro da sociedade que o gerara. Neste caso, um
tipo de racismo que se tornou um poderoso instrumento de normatização social à
disposição da medicina e do alienismo reconciliados23.
É importante salientar que entendemos o racismo da forma como foi
conceituado por Tzvetan Todorov. Neste sentido, o termo designa dois domínios
diferentes. De um lado, refere-se a um comportamento, feito, o mais das vezes, de
ódio e desprezo para com pessoas de características físicas bem definidas e
diferentes das nossas; por outro lado, de uma doutrina referente às raças
humanas24.
O autor separa essas duas concepções adotando a distinção entre racismo,
termo que designa comportamento, e racialismo, reservado às doutrinas que, por
sua vez, nasceram de um movimento, na Europa Ocidental, entre o século XVIII e
meados do século XX. Essas idéias basearam-se em pelo menos cinco
pressupostos: a existência de raças assemelhadas às espécies animais, mas não
o suficiente para impedir a fecundação; a continuidade entre o físico e o moral; a
ação do grupo sobre o individuo, ou seja, o comportamento do indivíduo depende
em grande medida do grupo racial a que pertence; hierarquia universal das raças
humanas; e uma política baseada no saber25. Assim, há um julgamento moral e
uma prática política.
Para Hannah Arendt, o racismo reforçou as idéias de uma prática
imperialista no início do século XX, ingressando no palco da política ativa no
23 CUNHA, M.C. P. op. cit., 1986. pp. 27-8. 24 TODOROV, T. Nós e os Outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. 2V. 25 TODOROV, T. op. cit., 1993. pp. 107-12.
momento em que os povos europeus já haviam preparado o novo corpo da nação.
Neste contexto, a raça foi um mecanismo de domínio de estrutura dos povos26.
Na República Velha, discutir saúde no Brasil implicava questionar todo o
modelo de civilização do país. Saúde era o prisma que refratava os parâmetros
sociais, culturais, políticos e geográficos da modernização desejada pelos grupos
sociais descontentes. O movimento protagonizado na década de 1910 por
médicos e outras parcelas da intelectualidade, em prol dos serviços de saúde e de
sua extensão às zonas rurais, contribuiu para sedimentar entre vários grupos
urbanos a idéia nacionalista e a modernizante subjacentes a outras ações
coletivas que convulsionaram os anos vinte27.
A partir de 1930, a saúde pública ocupa um maior espaço institucional no
Brasil, inclusive por pressões dos intelectuais e militares, na criação de serviços. A
multiplicação das burocracias, encarregadas de reformar as atividades de
educação, saúde e agricultura, acentuou sua importância na tentativa de absorver
as novas forças sociais urbanas. Esta pressão resultou, em 1931, na criação do
Ministério de Educação e Saúde e, em nível estadual, das Secretarias de
Educação e Saúde Pública28.
O resultado mais imediato e abrangente desse processo foi a reforma
sanitária de âmbito nacional que, pela primeira vez, englobou mais do que uns
poucos grupos urbanos litorâneos. Seus principais desdobramentos, a médio
prazo, foram os movimentos pela reforma de outras esferas da vida social, o
agravamento das cisões intra-oligárquicas e a ascensão de Vargas em 193029.
Para Michel Löwy, o processo empreendido em 30 não corresponde à
ascensão da burguesia industrial ao poder. O agravante da crise econômica e as
tensões sociais propiciaram a formação de uma frente difusa que traduziu a
ambigüidade da resposta à dominação da classe até então hegemônica: um
26 ARENDT, H. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 27 BENCHIMOL, J.L.;TEIXEIRA, L. A. Cobras, lagartos & Outros Bichos: Uma história comparada dos Institutos Oswaldo Cruz e Butantã. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993. 28 Cf. IYDA, M. Cem Anos de Saúde Pública: a cidadania negada. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994. 29BENCHIMOL, J.L.;TEIXEIRA, L. A. op. cit, 1993.
equilíbrio instável, contando com o apoio das classes médias, aglutinando o setor
militar e elementos das classes dominantes regionais30.
Já para Boris Fausto, foi o vazio de poder, resultante do colapso político da
burguesia cafeeira e da incapacidade das demais frações em assumir esse
espaço, que emergiu o “estado de compromisso”. Esse estado de compromisso
deve ser visto como uma transição no interior das classes dominantes31.
O apoio de Vargas ao desenvolvimento industrial, sua posição nacionalista
em assuntos econômicos e culturais, a expansão que promoveu na burocracia
estatal, fornecendo emprego aos setores médios, bem como a ampliação de
benefícios de assistência social aos trabalhadores, faziam parte do esforço para
ganhar o apoio da população urbana em expansão e unir os diversos interesses
regionais num estado nacional centralizado. Um dos objetivos era reorganizar o
Estado, após a queda da República Velha. De acordo com Diana Brown32, esse
procedimento mascarou o que era, na verdade, a criação de um regime altamente
autoritário, consolidado em 1937 com a criação do Estado Novo, que se modelou
pelo fascismo italiano.
Para Ítalo Tronca, 1930 é a construção do pensamento autoritário no Brasil,
passado e presente, um instrumento de dominação que apagou a memória dos
vencidos para construir o futuro na perspectiva dos vencedores33.
Nesses termos, foi elaborado um projeto político que soube capitalizar
acontecimentos e convencer a sociedade da importância de uma nova ordem,
centralizada no fortalecimento do Estado, cuja reestruturação é esboçada em
diversos movimentos intelectuais. Uma parcela dos intelectuais do Brasil estava
voltada para questões que se originavam na matriz européia, propunha e
reinterpretava soluções diante da realidade nacional34.
30 Cf. LÖWY, M. Do Movimento Operário Independente ao Sindicalismo de Estado – 1930-1945. Belo Horizonte: Vozes, 1980. 31 FAUSTO, B. A Revolução de 1930 – Historiografia e História. São Paulo: Brasiliense, 1970. p. 80-114. 32 BROWN, D. Umbanda Religion and Politics in Urban Brazil. Michigan: Umi Rescarch Press, 1986. 33 TRONCA, I. Revolução de 1930 – a dominação oculta. São Paulo: Brasiliense, 1982. 34 OLIVEIRA, L. L. Apresentação. In: OLIVEIRA, L. L. et. al. Estado Novo: Ideologia e Poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 10.
Dessa forma, os médicos da Faculdade do Rio de Janeiro buscavam sua
originalidade e identidade na descoberta de doenças tropicais que deveriam ser
prontamente sanadas pelos programas “higiênicos”. Já os médicos baianos farão
o mesmo ao entender o cruzamento racial como o nosso grande mal, mas, ao
mesmo tempo, nossa suprema diferença. Por caminhos diversos, as escolas
médicas chegaram a conclusões semelhantes. Era preciso cuidar da raça, ou seja,
da nação, e, segundo os médicos, caberia a eles o privilégio da execução de tal
tarefa35.
Concordamos com a idéia de Martinez-Echazábal de que raça é um
conceito fluido e transformante, embora historicamente específico, de modo que
seu significado é fruto das teorias, interesses e discursos sociais da época em
questão. Daí o conceito raça, como um modo socialmente construído de
identificação e diferenciação da espécie humana, poder ser representado
mediante o uso de inúmeros substantivos36.
Tal é o caso quando esses intelectuais se referem à raça enquanto cultura,
enquanto classe ou enquanto nação. Neste sentido, a noção de raça também foi
empregada como sinônimo de “povo brasileiro”, “população nacional”, “espécie”,
“homem brasileiro” e “conjunto dos indivíduos normais”. Por isso, quando
apontavam a necessidade de “aperfeiçoar a raça” ou “regenerar a raça”,
buscavam realizar esse objetivo através de ações centradas no indivíduo,
procurando impedir a irradiação de “degenerescências hereditárias”.
A teoria da degenerescência, formulada por Morel na década de 1850, ao
assumir uma orientação organogenética, também define uma etiologia da loucura,
revertendo os fundamentos do alienismo clássico de Tuke e Pinel37: a afirmação
de que a origem da loucura estava na degeneração, hereditariamente transmitida
35 SCHWARCZ, L. M. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil- 1870 –1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 190. 36 MARTINEZ-ECHAZÁBAL, L. O Culturalismo dos anos 30 no Brasil e na América Latina: deslocamento retórico ou mudança conceitual? In: MAIO, M. C. (Org.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/ CCBB, 1996. p. 112. 37 Para Foucault, com Tuke e Pinel, surge no século XIX uma consciência moral que passa a indignar-se com o tratamento desumano que era aplicado aos loucos pelo fato de estes doentes serem tratados como condenados ou criminosos.In: FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 1995.
e definida como “desvios doentios em relação ao tipo normal da humanidade38”.
De acordo com Iraneidson Costa, um dos fatores que levaram a teoria da
degeneração a gozar de imensa popularidade, foi exatamente se utilizar uma
linguagem secular e científica para falar a respeito das tendências anti-sociais e
criminosas incuráveis39.
O vislumbre de um Estado mais intervencionista, com a entrada em cena do
governo de Getúlio, é recebido com indisfarçada satisfação. Esse movimento de
caráter racista encontraria, no governo Vargas, respaldo institucional-legal para,
reafirmando a desigualdade racial como de origem biológica, postergar, mais uma
vez, a igualdade social e política dos brasileiros não brancos, o que valeria dizer,
dos pobres e do operariado em formação40.
A medicina social pretendia conhecer, prever, controlar o meio ambiente
das grandes cidades. As vielas estreitas são apontadas como lugares onde o ar
circula com dificuldade, trazendo prejuízo ao bom funcionamento da fisiologia
humana. As ruas sujas, os becos escuros e mal cheirosos são lugares nos quais
as fontes de doença encontram abrigo seguro e indevassável. É necessário uma
vigilância completa e ininterrupta sobre a cidade e o seu meio ambiente. Esse é o
projeto da medicina social 41.
A partir da década de 20, à circularidade do discurso de higienistas e
médicos acrescentara-se a dos engenheiros, arquitetos, sociólogos e advogados,
particularmente quanto à questão da habitação42. A teoria elaborada pela medicina
social, com o objetivo de diagnosticar e combater a periculosidade, tem como alvo
de reflexão a desordem urbana: é necessário não só destruir morros e matas que
impeçam a ventilação e sanear pântanos produtores de miasmas, como também
38 CUNHA, M. C. P. op. cit., 1986. 39 SANTOS COSTA, I. A Bahia já deu Régua e Compasso: o saber médico legal e a questão racial na Bahia, 1890-1940. 1997. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1997. 40 MARQUES, V. R. B. A Medicalização da Raça: Médicos, Educadores e Discurso Eugênico. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994. p.74. 41 OUTTES, J. O Recife: Gênese do Urbanismo (1927-1943). Recife: Massangana/FUNDAJ, 1997. p. 36. 42 GOMINHO, Z. O. Veneza Americana X Mucambópolis: O Estado Novo na cidade do Recife (décadas de 30 e 40). 1997. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. p.83.
expulsar do centro da cidade matadouros, fábricas e hospitais e impedir o
sepultamento no interior das igrejas. Esgotos, canais, ruas, praças,
estabelecimentos, casas, constituem-se em aspectos que, quando não
organizados pelo conhecimento médico em sua relação com os elementos
naturais, são percebidos como ameaça constante à saúde dos cidadãos43.
Além do salto qualitativo na base científica sobre a qual se firmava o saber
médico, com a substituição da teoria dos miasmas pela teoria microbiana
desenvolvida por Pasteur, assiste-se a um crescimento da base experimental da
medicina, a exemplo da bacteriologia e da microbiologia44.
No discurso médico, a rua era representada como “a grande escola do mal”,
espaço público por excelência onde se gerariam os futuros delinqüentes e
criminosos irrecuperáveis. O médico não deveria, assim, preocupar-se tão-
somente com a cura da doença individual, mas realizar uma obra de caráter
social, prevenindo o mal onde quer que ele se manifestasse, assumindo, assim, a
responsabilidade pela saúde e pela higiene da cidade, pelo crescimento
econômico do país e pela formação de uma “raça de trabalhadores” saudáveis,
física e moralmente45.
Arthur Ramos, em uma matéria publicada no Jornal Folha da Manhã, como
parte dos métodos de propaganda do Serviço de Higiene Mental de Pernambuco,
para esclarecimento à população acerca da saúde mental, afirma:
“É preciso abrir os cafés, demolir os quartos fechados, encurtar os corredores, arejar e povoar as salas desabitadas. É preciso espantar o pavor da treva e do silêncio. Desacorrentar os fantasmas e desmascará-los. Abrir os portões de ferro de incompreensão. E receber a criança no seu próprio lar, agora arejado e higienizado. (...) Não basta matar as pulgas, os ratos e os outros animálculos peçonhentos. (...) A criança quer conquistar o seu próprio lar. No palácio suntuoso ou na cabana proletária. Na casa térrea ou nos
43MACHADO, R. et.al. A Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978. pp.261-263. 44 OUTTES, J. op. cit., 1997. p.44. 45 Cf. RAGO, M. op. cit., 1985.
altos sobrados. (...) A criança bem acolhida no seu lar é o brasileiro de amanhã...46”
Fecha-se assim o cerco da intervenção direta da ciência no cotidiano das
grandes cidades brasileiras. Essa intervenção é criada nos termos que Marilena
Chauí define como “discurso competente”. Trata-se do discurso instituído cujo
conteúdo e forma já foram autorizados, segundo os cânones da esfera de sua
própria competência47.
A intervenção dos higienistas nos estabelecimentos comerciais e nas
residências era tão séria, que aquele que ousasse dificultar o trabalho de
prevenção era devidamente fichado na polícia, sendo imediatamente tomadas as
providências necessárias. Num jornal do Recife, em 1933, encontramos uma
queixa registrada no 1º distrito policial contra um certo Sr. Antônio de Lima que
impedia visitas sanitárias às casas de sua propriedade48.
Para Antônio Paulo Rezende, o crescimento da população numa área
bastante restrita fez com que o Recife convivesse com esses problemas desde o
tempo dos holandeses. No século XIX, no governo de Rego Barros, foram
tomadas várias medidas no sentido de melhorar as condições de vida e organizar
o espaço físico da cidade. Na década de 1920, houve uma preocupação com a
estruturação do departamento de saúde e assistência de Pernambuco. Nesse
contexto, afirma o autor, as condições de vida precárias ameaçam o crescimento
das cidades modernas e atingem, negativamente, o bem-estar da maior parte da
população, sobretudo dos pobres49.
Da mesma forma que a cidade é esquadrinhada, observada e normatizada
pelo saber construído pelos higienistas, algumas instituições também o são. É o
caso dos cemitérios, das fábricas, dos hospitais, dos asilos e dos matadouros,
46 RAMOS, A. Habitação e Higiene Mental. Folha da Manhã, Recife, 31. ago.1938. p. 10. Edição Matutina. 47 Segundo a autora, o discurso competente é aquele no qual a linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. Neste sentido, o discurso competente se confunde com a linguagem institucionalmente permitida e autorizada. In:CHAUÍ, M. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 6. ed. São Paulo: Cortez, 1993. p. 07. 48 APEJE-DOPS. Recortes de Jornais. O Estado. 03. nov.1933. Fundo SSP n.º 27.545. 49REZENDE, A. P. (Des)encantos Modernos: histórias da cidade do Recife na década de vinte. Recife:FUNDARPE,1997.
enfim, das instituições onde a população se aglomera, seja para as atividades
produtivas, a cura ou a morte50.
Nessa época, o discurso médico condenava os contágios entre pessoas de
“raças” diferentes, argumentando que eles seriam uma fonte de degeneração
racial e de degradação moral. Impunha-se, portanto, intervir nos ajustes conjugais
em benefício da própria prole. É nesse contexto que inúmeros artigos são
publicados em revistas especializadas, livros e jornais de grande circulação no
país. Em Recife, o Boletim de Higiene Mental, periódico mensal, publica o artigo
de Otávio Domingues, denominado “Propósitos da Eugenia”, em que
entusiasmado pela proposta da nova ciência, proclama:
“Homens normais, homens capazes, homens construtores do progresso material e moral da sua espécie - eis o que pede a eugenia51”.
A depuração dos sangues “inferiores” viria, no curso do tempo, tornar a
população mais homogênea, alcançando-se, assim, pela via natural, os ideais de
igualdade e de liberdade, comprometidos pela sobrevivência da cultura negra e
indígena. Tratava-se, antes de tudo, de uma verdadeira cruzada civilizatória a que
se atiravam os eugenistas. Na sua missão, ocuparam todos os espaços possíveis:
as academias médicas, as sociedades filantrópicas, as casas legislativas, as
escolas, as delegacias de polícia, os tribunais de justiça, estabelecendo uma
verdadeira rede de solidariedade entre discursos, instituições e personagens -
entre estes estavam o médico, o pedagogo, o jurista, os agentes de controle social
repressivo, a dona de casa, o pai preocupado com o destino de sua prole52.
É nesse sentido que, na edição de janeiro de 1935, é publicado, no Boletim
de Higiene Mental53, o resumo do livro de Renato Kehl, Sexo e Civilização54, em
que são ressaltadas as principais medidas eugênicas para beneficiar
biologicamente a espécie. Para Kehl, instrução, educação, religião, conforto,
50 OUTTES, J. op. cit., 1997. p.36. 51 DOMINGOS, O. Propósitos da Eugenia. Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 6, n.3, jul. 1938. p. 02. 52 MARQUES, V. R. B. op. cit., 1994. p.15. 53 Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 3, n.1. jan. 1935. pp. 03 e 04. 54 Publicado em língua portuguesa em 1933 no Rio de Janeiro.
progresso e dinheiro beneficiam o indivíduo, a unidade. Para beneficiar a espécie,
o todo, era necessário:
a) Seleção matrimonial b)Exame pré-nupcial c)Fomento à paternidade digna d) Retardamento da potencialidade indigna e)Limitação da natalidade em casos indicados f)Proteção às famílias de bem – dotados g)Segregação h)Esterilização i)Imigração selecionada j)Cruzamentos eugênicos, com impedimento para os disgênicos k)Consciência eugênica l)Política eugênica55 Aqui é importante lembrar que um dos pioneiros no relato explícito de
preconceitos contra índios e negros no Brasil foi Nina Rodrigues. Este, em seu
livro Os Africanos no Brasil56, publicado em 1932, afirma que a raça negra, por
maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços a nossa civilização, há
de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo. A partir
dessa afirmação, Nina Rodrigues anuncia alguns temas que serão predominantes
em pensadores brasileiros durante a primeira metade do século XX: O temor de
que o Sul do Brasil, colonizado por brancos e de onde o negro acabará sendo
eliminado, se oponha ao Norte, região dominada pela inércia e indolência dos
mestiços, como também o temor de que o Brasil, em vez de acompanhar a
civilização canadense e norte-americana, caia no barbarismo guerrilheiro da
América Central. Em resumo, Nina Rodrigues considerava que o Brasil se
inferiorizava, não só pela existência de índios e negros mas também pela
mestiçagem:
“Consideramos a supremacia imediata ou mediata da raça negra nociva à nossa nacionalidade, prejudicial em todo caso a sua influência não
55 KEHL, R. Resumo do livro Sexo e Civilização, Rio, 1933 In: Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 3, n.1, jan. 1935. p. 04. 56 NINA RODRIGUES, R. Os Africanos no Brasil. 7. ed. São Paulo: Editora Nacional; [Brasília] : Editora Universidade de Brasília, 1988.
sofreada aos progressos e à cultura do nosso povo 57.”
Convencido da inferioridade da “raça” negra, Nina Rodrigues admitia,
contudo, diferenças de capacidade e graus de cultura entre os negros e, após
apresentar um elenco dos povos africanos que teriam vindo para o Brasil, conclui
que os que foram aqui introduzidos não pertenciam exclusivamente aos povos
africanos mais degradados. Entre os negros mais adiantados, estavam os Nagôs,
cuja superioridade cultural deveria ter um substrato equivalente de superioridade
biológica em relação aos outros negros. Esta superioridade era atestada pelo
predomínio e pela influência da língua, transformada em língua geral dos negros,
como pela religião58.
É baseado nessas idéias que o estudo sobre as religiões dos negros é
retomado nos anos trinta pelos seguidores de Nina Rodrigues, a partir de um
discurso cientificista, na tentativa de recortarem, sobre as práticas de religiosidade
popular, a “verdadeira e pura” religião dos negros e as práticas “degeneradas” de
feitiçaria e magia dos demais componentes das camadas populares. Desse modo,
é reativada a vertente interpretativa da possessão, encarada como fenômeno
psicopatológico. Esses estudos foram retomados, primeiramente na Bahia, por
Arthur Ramos e atingirão o alvo no Recife, onde os Xangôs59 locais serão
pesquisados em conexão com o Serviço de Assistência a Psicopatas60.
As mais variadas representações acerca de personagens urbanos povoam
o discurso do alienismo no Brasil na passagem do século XIX para o século XX.
As prostitutas, tipos de degeneradas cujos contingentes seriam fornecidos pela
“imbecilidade” e pela “loucura moral”, os negros associados às formas mais
primitivas da degeneração, as “perversões”, o jogo e os vícios, a vagabundagem,
são temas que passam pelo crivo do alienismo, enquadrados e dissecados a partir
da teoria da degenerescência61.
57 NINA RODRIGUES, R. op. cit., 1988. p. 07. 58Cf. NINA RODRIGUES, R. op. cit., 1988. 59 Xangôs é a denominação comumente atribuída, no Recife, às religiões de origem africana. 60 DANTAS, B. G. Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988. 61 CUNHA, M. C. P. op. cit., 1986.
É nesse sentido que o saneamento eugênico e a racionalidade técnica
definiram as linhas centrais do projeto de “regeneração nacional” implementado
pela intelectualidade médica, sobretudo psiquiátrica, que se aglutinou em torno da
Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), instituição criada no começo dos anos
vinte no Brasil. A LBHM foi fundada em janeiro de 1923, por iniciativa de Gustavo
Riendel, após seu retorno, como representante brasileiro, de um Congresso
Médico Latino-Americano realizado em Havana, em 1922. A entidade, além de
reunir a elite da psiquiatria nacional, aglutinava também médicos, educadores,
juristas, intelectuais em geral, e mesmo alguns empresários e políticos
brasileiros62.
O objetivo inicial da instituição era melhorar a assistência aos doentes
mentais através da renovação dos quadros profissionais e dos estabelecimentos
psiquiátricos. Também teria a seu cargo a divulgação de princípios e
conhecimentos, a investigação, educação e formação de técnicos; procurava
divulgar seus postulados através de artigos na imprensa, folhetos de propaganda,
palestras, pronunciamentos radiofônicos e também pela veiculação de uma revista
própria chamada Archivos Brasileiros de Higiene Mental, que começou a circular
em 192563.
Os psiquiatras acreditavam que o Brasil degradava-se moral e socialmente
por causa dos vícios, da ociosidade e da miscigenação racial. Assim, o alcoolismo
tornou-se a causa de pobreza e decadência moral, porque era mais encontrado
entre os pobres. A Sífilis tornou-se atributo do patrimônio genético dos negros, por
ser mais generalizada entre estes, e a miscigenação racial tornou-se a causa da
desorganização política e social, porque a população do Brasil era miscigenada64.
A campanha inegavelmente mais importante da Liga, em praticamente toda
a sua existência, foi a que girou em torno do combate ao consumo de álcool. A
idéia de que a ingestão de bebidas alcoólicas destruiria o organismo do indivíduo,
62 REIS, J. R. F. Higiene Mental e Eugenia: o projeto da “Regeneração Nacional” da Liga Brasileira de Higiene Mental (1920-1930). 1994. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas, Campinas, 1994. 63 COSTA, V. Medicina, Pernambuco e Tempo. Recife:UFPE, 1978. p.267. 64 COSTA, J. F. História da Psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. Rio de Janeiro: Documentário, 1976. p.15.
e que teria seqüela drástica nos filhos, reaparece não apenas na literatura médica;
os criminologistas, os pedagogos, os assistentes sociais, os industriais e mesmo
os operários reafirmavam a mesma convicção. Na origem da morte ou no desvio
do caráter das crianças estava a família mal constituída, desequilibrada, formada
por pais bêbados e moralmente decaída65.
Pernambuco era um dos estados mais entusiasmados com sua participação
na campanha. O delegado da Liga na região, o psiquiatra Ulysses Pernambucano,
sempre foi um ardoroso combatente da campanha antialcoólica.
O Boletim de Higiene Mental, editado pela Diretoria de Higiene Mental da
Assistência a Psicopatas, dirigida por Ulysses Pernambucano, não divergia em
suas campanhas das linhas gerais da Liga Brasileira de Higiene Mental. A edição
do mês de setembro de 1934 foi totalmente dedicada ao alcoolismo. A primeira
página é tomada por uma gravura de autoria de Cícero Dias especialmente para o
Boletim. Logo acima da gravura, há um crédito explicativo onde se lê: “no meio da
visita a dona de casa oferece licor. Há oculto, conduzindo a mão do empregado, o
espectro da morte”66:
65 RAGO, M. op. cit ., 1987. 66 Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 2, n. 9, set. 1934. p. 01.
Mas a campanha dirigida pelos higienistas não se reduziu apenas a
gravuras com figuras e créditos aterrorizantes. Na página seguinte é publicado o
Decálogo contra o alcoolismo:
NÃO SE DEVE BEBER 1º - porque o álcool NÃO É UM ALIMENTO e sim UM VENENO 2º - porque o álcool é NOCIVO A TODOS os órgãos humanos e principalmente AO CÉREBRO 3º - porque os HÁBITOS ALCOÓLICOS são um caminho para a embriaguez que se traduz por uma PERDA DE CARACTER e da dignidade social 4º - porque o uso demasiado conduz rapidamente A LOUCURA
5º - porque os filhos dos alcóolicos são EPILÉTICOS, ATRASADOS MENTAIS, SURDOS-MUDOS, DÉBEIS SOCIAIS. 6º - porque o alcoolismo é a via mais rápida para se chegar AO CRIME E AO SUICÍDIO 7º - porque a MORTALIDADE dos alcoólatras É TRÊS VEZES MAIOR do que a dos abstêmios 8º - porque é um DEVER MORAL zelar pela própria saúde. 9º - porque é um DEVER HUMANO proteger a própria descendência 10º - porque o alcoolismo acarreta a DEGRADAÇÃO DA RAÇA·
Podemos observar neste decálogo uma preocupação em proteger a família
da degradação proporcionada pelo alcoolismo e, por extensão, a cruzada para
melhorar a “raça”, encarada, também, como moralidade e prática de “bons”
costumes.
O aparecimento da Liga não é um fenômeno isolado. Ele se dá numa
conjuntura política de enaltecimento do nacionalismo verificado no âmbito da
Primeira Guerra Mundial. Com o crescimento dos setores médios urbanos,
impulsionado pelo avanço industrial observado no decorrer da guerra, diversos
movimentos nacionalistas emergem na cena nacional, apoiados num programa
agressivo e militante de combate aos males do país. Dentre eles: a Liga de Defesa
Nacional (1916), a Liga Nacionalista de São Paulo (1917), a Propaganda Nativista
(1919), Ação Social Nacionalista (1920), além dos periódicos Gil Blas, Brasiléia,
Revista do Brasil, todos na busca de uma solução original e autônoma para os
diversos problemas que atingiam a Nação67.
A política higienista, nesse período, também esteve voltada para a força de
trabalho cuja resistência física era fundamental preservar, ou ainda para locais de
trabalho em que as condições gerais de produção demandavam maior dinamismo,
eliminando os entraves existentes68. O texto de Renato Kehl demonstra bem essa
preocupação:
“Para modificar, favoravelmente, a trajetória a seguir pelos nossos trabalhadores, para assegurar
67 REIS, J. R. F. op. cit., 1994. p.51. 68 OUTTES, J. op. cit., 1997. p.44.
futuro promissor às gerações vindouras, para torná-las compostas de um superávit de elementos de paz e de trabalho (...) só existe o recurso das práticas ditadas pela eugenia...69”
Redimir o Brasil seria saneá-lo, higienizá-lo, eugenizá-lo, tarefa obrigatória
dos governos. Esse discurso refletia a campanha de um amplo e diferenciado
movimento político e intelectual que proclamou a doença como principal problema
do país e o maior obstáculo à civilização70.
Mudam-se os temas, como o jogo, o vício, a prostituição, o crime e o
criminoso, tipificados por Lombroso como degenerados da criminalidade nata, que
por décadas influenciaram a medicina legal, a psiquiatria, a criminologia e a
pobreza urbana. Muda-se também o enfoque: não é apenas o indivíduo que
enlouquece, mas a própria sociedade que está doente. A urbe será
responsabilizada pelo número crescente de “degenerados”, cuja origem é
atribuída, sobretudo, às determinações biológicas da hereditariedade71.
Gilberto Freyre, no prefácio à primeira edição brasileira de Casa Grande &
Senzala, em 1933, reforça essa visão quando afirma:
“... vi uma vez, depois de quase três anos de ausência de Brasil, um bando de marinheiros nacionais-mulatos e cafuzos – descendo, não me lembro se do São Paulo ou do Minas, pela neve mole do Brooklin. Deram-me a impressão de caricaturas de homens e veio-me à lembrança a frase de um viajante inglês ou americano que acabara de ler sobre o Brasil: “the fearfully mongrel aspect of population”. A miscigenação resultava naquilo. Faltou-me quem me dissesse, então, como, em 1929, Roquette Pinto72 aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia,
69 KEHL, R. op. cit., 1935. p.4. 70 LIMA, N. T; HOCHMAN, G. Condenado pela Raça, Absolvido pela Medicina: O Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República. In: MAIO, M. C. (org.) Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/CCBB, 1996. pp. 23-40. 71 CUNHA, M. C. P. op. cit., 1986. 72 Edigard Roquette Pinto, desde 1913, rompera com o determinismo biológico explicitamente desvinculando-se da influência de Nina Rodrigues. Era partidário do pensamento de Charles Davenport por oposição ao pensamento do antropólogo culturalista Franz Boas. Cf. CORRÊA, M. As Ilusões da Liberdade: a escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil . Tese. (Doutorado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1982.
que não eram simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o Brasil, mas mulatos ou cafuzos doentes 73”.
Movidos pelo ideal de aperfeiçoamento eugênico do homem brasileiro
(purificação racial), é que todo um conjunto de propostas ganha um sentido
claramente articulado, tornando-se motivo de debates calorosos no seio da elite
médico-psiquiátrica do período: imigração selecionada; combate ao alcoolismo;
esterilização compulsória de “grandes degenerados” e criminosos; exame pré-
nupcial; segregação por motivos eugênicos; higiene mental e eugenia infantil;
seleção e orientação profissional com vistas à racionalização do trabalho. Enfim,
foi num contexto de busca obstinada de constituição da “autêntica nacionalidade”,
em que a questão racial aparecia como um elemento chave a ser equacionado,
que os intelectuais, sobretudo os médicos, aderiram à causa eugênica74.
Recorrendo a um discurso eugenista, em que o estatuto científico era
encarado como fundador de verdade irrefutável, os intelectuais incorporavam, ao
conceber a vida, controles reguladores que se constituíram como “verdadeiros”
agenciadores do sexo, definindo: a constituição das famílias; os modos de viver e
trabalhar; as formas de educar os filhos; a sexualidade normal e as condutas
desviantes; os imigrantes que o país suportaria; enfim, os meios de existir, para
atingir o progresso biológico e, então, desfrutar do progresso social75.
No final da década de 1870, a questão da loucura está em debate quanto a
sua natureza, a sua “sede” e às terapêuticas. Já nas décadas de 1920 e de 1930,
o discurso psiquiátrico assume uma amplitude maior. Embora questões como
migração ainda permanecessem como tema importante, o foco irá sendo
deslocado para a questão eugênica. Revela-se em muitos discursos uma intenção
de “branquear a raça”, superando os atávicos prejuízos já acarretados pela
mistura de sangue indígena, europeu e, sobretudo, africano76. É importante
lembrar que, como ressalta Giralda Seyferth, os imigrantes tinham um papel
73 FREYRE, G. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sobre o regime da economia patriarcal. 30.ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. p. xlvii. 74 Cf. REIS, J. R. F. op. cit ., 1994. p. 60. 75 MARQUES, V. R. B. op. cit., 1994. p. 20. 76 CUNHA, M. C. P. op. cit., 1986.
adicional a exercer: contribuir para o branqueamento e, ao mesmo tempo,
submergir na cultura brasileira através de um processo de assimilação77.
Costuma-se admitir que a eugenia teve sua primeira formulação na
segunda metade do século XIX, pelo inglês Francis Galton. Estudioso da
hereditariedade e impregnado das idéias de Darwin, ele a concebeu como “ciência
do melhoramento do patrimônio hereditário”, que se preocupava em dar, numa
certa medida, às linhagens mais adaptadas ou bem dotadas, mais oportunidades
em relação àquelas que o são menos78.
Com essas idéias, médicos, engenheiros, sociólogos, educadores, dentre
outros, comungavam de um mesmo objetivo: construir uma nova sociedade. No
Recife, como assinala Flávio Teixeira, os mocambos foram alvo preferencial nessa
obsessiva busca de transformação de uma cidade feia e atrasada, em uma cidade
contemporânea do mundo civilizado e moderno. Sobre os mocambos recaíam dois
fortes atributos negativos: expressão arquitetônica imprópria para uma cidade com
ares de moderna e foco de moléstias e epidemias79.
Um dos setores em que a eugenia foi alvo de ampla recepção foi entre os
psiquiatras. De fato, impregnados de um biologismo teórico, até certo ponto
fatalista, que os leva a identificar, pela contaminação hereditária, novos
degenerados a cada esquina, eles se mostravam fascinados pelas possibilidades
reparadoras da eugenia. Teria partido de Juliano Moreira, ainda em 190880, o grito
de alerta para a necessidade de se atentar para a época da “’higiene profilática”
no domínio da psiquiatria81.
Juliano Moreira é o responsável pelos estudos que redundam na primeira
legislação de abrangência nacional sobre a loucura. Em texto de 1905, afirma que
77 SEYFERTH, G. Construindo a Nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In: MAIO, M. C. (org.) Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/CCBB, 1996. pp. 41-58. 78 REIS, J. R. F. op. cit., 1994. p. 40. 79 TEIXEIRA, F. W. As Cidades Enquanto Palco da Modernidade: o Recife de princípios do século. 1994. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1994. p.104. 80 José Sérgio F. Reis data de 1906 e Veloso Costa de 1908. 81 REIS, J. R. F. op. cit., 1994. p.29.
o aumento dos índices de loucura tinha uma relação direta com o crescimento das
cidades e o simultâneo aumento das dificuldades na “luta pela vida”82.
A loucura, enquanto objeto de um saber psiquiátrico, é fenômeno recente
na história das instituições asilares. A sociedade medieval a concebia enquanto
fenômeno de ordem moral; o século XVIII a transforma em fenômeno animal – os
loucos eram enjaulados e os curiosos lhes lançavam alimentos; somente no
século XIX veremos a loucura tornar-se objeto de um saber especificamente
médico. Nesse movimento social em que as diferentes concepções de loucura se
transformam, modificam-se também as técnicas de intervenção nela: passamos de
um momento em que o louco vagabundava livre pelas cidades, a época de grande
repressão policial no século XVIII, em que se dava o internamento em massa de
todos os tipos de ociosos ou vagabundos. Já no século XIX, o internamento
indiscriminado torna-se seletivo e específico: nasce o asilo psiquiátrico, instituição
responsável pela educação e normalização deste ser livre e irresponsável que é o
louco tornado doente83. É nesse sentido que Foucault afirma: “A doença só tem
validade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como
tal84”.
A incorporação do saber psiquiátrico no Brasil, na segunda metade do
século XIX - inicialmente com uma vertente da chamada “medicina social” –, se
deu num contexto de significativo crescimento urbano cujo fenômeno trouxe à
tona: o aumento populacional considerado foco permanente de desordem e
perigo; crises epidêmicas e sanitárias ameaçadoras; condições precárias das
habitações populares propiciadoras de todo tipo de doença e desvio social;
aumento das atividades fabris, portos infectados, esses lugares fundamentais de
circulação de pessoas, mercadorias e capital; arquitetura espremida, sem
visibilidade nem ventilação85.
Coube à medicina social a tarefa de isolar preventivamente o louco com o
objetivo de reduzir o perigo e impossibilitar o efeito destrutivo que ela viu
82 Cf. CUNHA, M. C. P. op. cit., 1986. p. 45. 83 MONTERO, P. op. cit., 1985. p. 67. 84 FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. p. 71. 85 REIS, J. R. F. op. cit., 1994. pp. 23-24.
caracterizada em sua doença. Nasce, assim, no Brasil, em meados do século XIX,
uma psiquiatria como instrumento de prevenção. A teorização psiquiátrica é,
nesse momento, um exercício de cunho universitário, escolar e burocrático. As
teses não refletiam qualquer articulação com a prática. Segundo Roberto
Machado86, os textos brasileiros, nesse primeiro período, marcam a integração do
país na era da civilização, de que a instituição universitária, com suas exigências e
formalidades, dá provas.
Produto das concepções organicistas do século XIX e da teoria da
degeneração que presidiu seu nascimento, a psiquiatria brasileira desenvolveu-se
dentro de um marco institucional pré-terapêutico. Na Europa, por exemplo, em
meados do século XIX, a loucura já tinha um espaço definido de exclusão e cura87.
Logo coube à psiquiatria – ao lado de vários outros saberes disciplinares,
como a criminologia, a engenharia sanitária, a medicina higiênica – buscar intervir
no corpo social para esconjurar o que era visto como os riscos que rondavam os
centros urbanos, dentre os quais a loucura88.
É através desta ligação entre loucura e crime que Álvaro Ferraz e
Gonçalves Fernandes89 escrevem um artigo90 sobre a importância que a
biotipologia assume no estudo da personalidade do delinqüente. Esta pode
interpretar o fenômeno criminoso, avaliando-lhe a “dinâmica criminal”, a
periculosidade e a corrigibilidade, no sentido em que a biotipologia criminal estuda
o delinqüente sob a tríplice feição: morfológica, dinâmico-humoral e psicológica,
com o fim de fixar-lhe as características individuais para prover as necessidades
da polícia e da justiça.
O parentesco entre loucura e crime, presente desde meados do século
passado, constituiu um aporte básico para a expansão do alienismo para além dos
muros do hospício, ao dissociar loucura e razão, abrindo a possibilidade teórica de
uma loucura sem delírio, remetida exclusivamente à esfera dos comportamentos.
86 MACHADO, R. et al. op. cit., 1978. 87 CUNHA, M. C. P. op.cit., 1986. 88 REIS, J. R. F. op. cit., 1994. p.24. 89 Médicos do Gabinete de Antropologia das Penitenciárias do Recife e Itamaracá, respectivamente. 90 FERRAZ, A.; FERNANDES, G. Organização do Serviço de Antropologia nas Penitenc iárias do Estado de Pernambuco. Neurobiologia, Recife, v. 3, n. 4, p. 488-496, dez. 1940.
A ampliação do conceito de loucura torna a psiquiatria um dispositivo mais eficaz e
refinado. De furiosa, a loucura torna-se insidiosa, gruda-se na própria pele do
indivíduo, torna-se invisível, exceto para o olhar dos especialistas, que vêm
reforçada sua competência. Eis aí uma ameaça muito maior a ser enfrentada: a
dos vadios, jogadores, prostitutas, ladrões, assassinos, negros xangozeiros, enfim,
todos os tipos de “desordeiros” contidos na população urbana como potenciais
focos de loucura91.
Mais ou menos nesta data desencadeou-se, no mundo, um movimento em
prol da saúde mental, protagonizado por Clifford Beers92, que catalisou esforços
isolados de psiquiatras, psicólogos, cientistas sociais e educadores no sentido de
amparo e proteção à saúde psíquica. Então se iniciou em diversos países, dentre
eles o Brasil, um movimento de psiquiatria, cuja conseqüência, entre várias, foi a
psiquiatria preventiva93. Os princípios de higiene mental incorporam-se às
instituições escolares, e algumas disciplinas têm suas orientações conduzidas por
essas idéias94.
Foucault interpretou o aparecimento do saber psiquiátrico enquanto prática
importante dos processos de controle e regulação social, nesse sentido, de poder.
Esse poder é instituído no contexto de aburguesamento das sociedades, além, é
claro, dos próprios interesses da corporação psiquiátrica. Ele se estabelece como
uma rede de relações que se exerce molecular, ininterrupta e ramificadamente,
em todos os domínios da vida social, produzindo individualidades, adestrando os
gestos e elevando a rentabilidade do trabalho95.
É importante lembrar que a preocupação eugênica com a “raça” foi
introduzida no Brasil por intelectuais de diversas áreas. Nomes como Oliveira
Vianna, Euclides da Cunha, entre outros, manifestaram em suas obras um certo
91 CUNHA, M. C. P. op. cit., 1986. p. 24-25. 92 Clifford Beers não era psiquiatra. Americano, ex-interno de uma casa de alienados, ficou impressionado com o tratamento dispensado aos doentes. Nesse sentido, resolveu propor um movimento de reformas para aquele tipo de estabelecimento. Para ele, a Higiene Mental deveria ser um capítulo da medicina preventiva. Sendo assim, além de envolver todos os ramos do saber médico, englobava também a psicologia, a sociologia e as ciências afins. In: SILVA, V. A. da. História da Loucura: em busca da saúde mental. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1979. pp. 163-173. 93 COSTA, V. op. cit., 1978. p.266. 94 FERRAZ, M. H. C. T. Arte e Loucura: limites do imprevisível. São Paulo: Editorial Lemos, 1998. p. 36. 95 Cf. FOUCAULT, M. op. cit., 1995.
desprezo e hostilidade para com pessoas que não eram consideradas brancas,
cujas raízes nasceram provavelmente nos preconceitos do grupo social a que
pertenciam. Oliveira Vianna, em seu livro Raça e Assimilação, chega à seguinte
conclusão:
“Os modos de expressão de vida social, sejam morais, sejam intelectuais, de um dado grupo, como se vê, estão dependentes dos tipos de temperamento e dos tipos de inteligência nele preponderantes. Estes tipos de inteligência e de temperamento estão, por sua vez, dependentes dos ‘tipos de constituição’ . Ora, como estes, por sua vez, estão dependentes dos ‘tipos étnicos’, isto é, daqueles tipos somatológicos a que chamamos ‘raças’, a conclusão é que a raça é, em ultima analise, um fator determinante das atividades e dos destinos de um grupo96”.
Para combater os malefícios da inferioridade biológica, Nina Rodrigues e
Oliveira Vianna apontavam a senda salvadora do embranquecimento; Arthur
Ramos combate os efeitos da inferioridade cultural com uma “verdadeira cultura”;
por sua vez, Roquette Pinto, apesar de negar a existência do preconceito racial e
de certa simpatia pela eugenia, reconhece que as causas dos nossos problemas
independem da constituição racial, sendo resultantes de fatores sociais97.
Euclides da Cunha, em Os Sertões, considera o sertanejo como uma forma
de mestiçagem que, se “estabilizada”, poderia originar uma futura “raça brasileira”.
Uma repetição dos bandeirantes paulistas, também nascidos do cruzamento de
índios com brancos. Este tipo é, para ele, diferente dos “mulatos neurastênicos” do
litoral. Nesse sentido, encontra de forma “científica” um tipo brasileiro: mestiço,
moreno e sertanejo98.
No início do século XX, a medicina alopática oficial, no Brasil, não permitia
que fossem discutidas as bases que estruturavam seu paradigma científico. O
96 VIANNA, O. Raça e Assimilação. São Paulo: Companhia Editora Nacional (Biblioteca Pedagógica Brasileira) Vol.IV, Série V, 1932. pp. 51-52. 97 LARAIA, R. B. Relações entre negros e brancos no Brasil. In: CERQUEIRA, E. D. et. al. O que se deve ler em Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Cortez: ANPOCS, 1986. 98ZARUR, G.C. L. A Idéia de Brasil: Etnia e construção da nação no pensamento social brasileiro. In: ZARUR, G. C. L.(org.) Etnia e Nação na América Latina.Washington: Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos, 1996. p. 153.
método e a conduta poderiam ser avaliados, mas não suas bases conceituais.
Mais que isso, sua arrogância impedia que outros paradigmas (como aqueles
introduzidos pela cultura ameríndia e africana) tivessem condição de frutificar99.
Afinal, a prática do curandeirismo é crime previsto no código penal (art. 157) e
fortemente reprimida pelos órgãos normativos do fazer médico - conselhos de
medicina.
É com a preocupação de extinguir essas práticas de cura alternativa que
Borges Cavalcanti, técnico da Assistência a Psicopatas de Pernambuco,
desabafa:
“Na prática daquilo que se convencionou chamar de ‘baixo espiritismo’, já se constitui um problema policial e sanitário. Fora dois ou três locais onde se procura fazer religião, todos os ‘centros’ nada mais são que reuniões para o exercício ilegal da medicina. A única medida definitiva para extinguir essas práticas seria a profilática: evitar a esses predispostos a cultura sistemática da imaginação, o exagero do automatismo subliminar100. Higiene, não medicina101”.
Arthur Ramos classifica o curandeiro como um charlatão involuntário cuja
conduta recebeu o influxo direto do negro e do índio. Para Ramos, a repressão ao
curandeirismo é um problema de lenta educação e oposição de normas “corretas
de pensamento e raciocínio lógico” 102.
Assim, os métodos autoritários propostos pelos psiquiatras para fazer face
ao alcoolismo e à doença mental em geral derivavam da convicção pessoal que
eles tinham quanto à máquina de bem governar um povo e um país. Por
99 PEREIRA NETO, A. F. Palavras, Intenções e Gestos, os interesses profissionais da elite médica. Congresso Nacional dos Práticos (1922). 1997. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997. p. 200 . 100 Prática de atividades que não são voluntárias. Geralmente designa relações motoras que, à força da repetição contínua, tornam-se mecânicas. No caso subliminar, abaixo do limiar da consciência, produzem algum efeito na atividade psíquica, mormente depois que deixa de existir uma percepção. Geralmente são padrões de estímulos que formam o fundo ou nele se encontram, como cenários de filmes. In: DORIN, E. subliminar. In: DORIN, E. Dicionário de Psicologia: abrangendo as ciências correlatas. São Paulo: Melhoramentos, 1978. pp. 36, 269-69. 101 BORGES, C; LIMA, D. Investigações sobre as religiões no Recife: o espiritismo. Arquivos da Assistência a Psicopatas, Recife, v. 2, n.1, p. 138-145, abr. 1932. p. 138. 102 RAMOS, A. op. cit., 1937. p. 77.
conseguinte, faziam cada vez mais apelo a medidas políticas para solucionar
problemas psiquiátricos. Em 1934, essas vias políticas tornaram-se nitidamente
policialescas através de acordo dos psiquiatras da LBHM com a polícia103.
Nesse sentido, podemos acrescentar que o poder do Estado é acionado
pelos aparelhos e instituições. Ele é concebido como uma estratégia, como
técnica de funcionamento. O poder passa por e através das pessoas, apóia-se
nelas, define inúmeros pontos de luta. É inscrito na história pelos seus efeitos, em
toda a rede em que se encontra.
Maria Clementina Cunha104 afirma que a medicina mental encontra aí o
caminho para sua velha vocação social e política. Disciplina médica de orientação
voltada para o indivíduo, a psiquiatria higiênica propõe-se a transpor este limite
operando essencialmente com a representação metafórica da ordem/desordem
social em relação à normalidade/anormalidade individual. Empenhados, assim, no
projeto eugênico e pretendendo mesmo liderá-lo em grande medida, os alienistas
ampliam consideravelmente suas possibilidades de intervenção normatizadora na
sociedade, superando os limites postos pela estrita prática asilar.
Aqui vale atentar para a perspectiva de Foucault de que nas sociedades
ocidentais a “verdade” é centrada na forma do discurso científico e nas instituições
que o produzem105. O mais importante não é tanto o discurso da psiquiatria, sua
cientificidade, mas seus efeitos específicos de poder.
O discurso “competente” da medicina social, mais particularmente da
psiquiatria social nos anos 30, não mediu esforços na tentativa de controlar e
regular a sociedade. Este, através da multiplicidade de intérpretes e de
interpretações, contribuiu de forma expressiva para a maneira de pensar a “raça”
brasileira.
O psiquiatra José Leme Lopes, ao discutir a questão da prática psiquiátrica
no Brasil, afirma que:
“Como ramo da medicina científica, a psiquiatria foi para aqui transplantada e enxertada no
103 Cf. COSTA, J. F.. op. cit., 1976. 104 CUNHA, M. C. P. op. cit., 1986. p. 183-84. 105 Cf. FOUCAULT, M. Verdade e Poder. Microfísica do Poder. 11. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993.
conjunto do que era a medicina brasileira. Não sofreu aclimatação ou aculturamento. Continuou como veio, européia, francesa ou germânica. Seus cultores não conseguiram mudá-la no sentido de uma mutação ou de um hibridismo, como a enxertia em botânica produziu novos frutos106“.
A década de 30 trouxe, também, a notícia de uma nova fonte de
pensamento racista – a Alemanha de Hitler – que parecia indicar as tendências
intelectuais recentes no país. Os integralistas tornaram-se o partido brasileiro de
crescimento mais rápido a partir de 1932. Assim, enquanto os nazistas alemães
ressuscitavam o argumento da hereditariedade para colocar em posição de
inferioridade a negros e judeus, a elite navegava, assustada, entre as duas
posições: de um lado, os intelectuais eugenistas, preocupados com o futuro da
raça; de outro, os intelectuais culturalistas, interessados em entender o negro e
sua religião enquanto parte da formação da cultura.
Para Edigar de Decca, a representação de 1930 é um fato que divide
cronologicamente a história da República no Brasil. A produção acadêmica, a seu
ver, não apenas reproduz esse corpo de representações como lhe dá substância,
procurando preencher as lacunas e os espaços vazios107.
É nesse contexto que, como veremos no próximo capítulo, o médico
psiquiatra, Ulysses Pernambucano, constrói uma profícua relação entre negros,
que praticam as religiões afro-umbandistas, e a incidência da doença mental.
106 LOPES, J. L. Raízes e Tendências da Psiquiatria Brasileira. Neurobiologia, Recife, n. 41, p. 49-54, 1978. Suplemento. p.53. 107 DECCA, E. S. de. O Silêncio dos Vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1981.
CAPÍTULO II
ULYSSES PERNAMBUCANO E OS AFRO-UMBANDISTAS.
VENEZA BRASILEIRA: CAPITAL PSICOPATA?
“A Veneza Brasileira não é somente a cidade cruel, conforme a denominou Agamenon Magalhães; nem tampouco a metrópole inchada (e não crescida), segundo o escritor Gilberto Freyre. Diante do elevado percentual de leitos para doentes mentais, apresenta-se, também, como capital psicopata108”.
As sociedades, nos diferentes momentos de sua organização, pensam a
loucura e definem seus loucos. Essa definição faz parte, no entanto, do sistema de
concepções dominantes em cada época e responderá, a sua maneira, aos
problemas sociais e políticos específicos de cada momento109. Nesse sentido, este
capítulo tem como proposta problematizar o saber psiquiátrico dos anos trinta, em
Pernambuco, na figura de Ulysses Pernambucano. Pretendemos analisar as
atividades que promoveu, criando uma escola psiquiátrica que, entre outras
questões, interessava-se em estudar a saúde mental dos negros praticantes das
religiões afro-umbandistas.
A análise não se realizará numa linearidade unidirecional. No ir e vir dos
fatos e acontecimentos narrados é que as pistas serão localizadas e trabalhadas.
Utilizamos aqui a idéia de Foucault de que os homens não falam apenas em suas
palavras e em seus escritos, mas também nas instituições, práticas, técnicas e
nos objetos que produzem110
No século XIX e início do século XX, a atividade psiquiátrica, em
Pernambuco, praticamente se limitava ao trabalho assistencial. Nos primórdios do
século XIX, os internamentos ocorriam no Hospital São Pedro de Alcântara,
sediado no bairro dos Coelhos, na cidade do Recife. Tratava-se de um hospital 108 COSTA, V. Medicina, Pernambuco e Tempo. Recife: UFPE, 1978. p. 305. 109 MONTERO, P. Da Doença ̀ a Desordem: a magia na Umbanda. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. p. 67. 110 FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p.137.
geral até a inauguração do Hospital D. Pedro II, em 1861, para onde foram
removidos pacientes com outros tipos de enfermidades. Três anos depois, as
pessoas consideradas doentes mentais foram removidas para o Hospital da
Visitação de Santa Isabel, situado na Ladeira da Misericórdia, em Olinda. Quando
o Dr. Henrique Pereira de Lucena tomou posse da presidência da província, em
1872, idealizou e deu início à construção do Hospital da Tamarineira111.
Em 1876, o Desembargador Oliveira Maciel assume o cargo de provedor da
Santa Casa de Misericórdia, transferindo os doentes internados em Olinda para a
Tamarineira, quando somente um dos pavilhões projetados estava concluído.
Oliveira Maciel, nos seus relatórios, insistia sempre na importância do trabalho dos
agentes curativos e no incentivo para a implantação de leitura de jornais, bons
livros e jogos inocentes no cotidiano dos internos. Também admitia o emprego de
meios de repressão. Segundo o artigo 38 do regulamento do hospício, mediante
autorização dos facultativos e com o fim de obrigar os alienados à obediência,
poderiam ser utilizados os seguintes recursos: reclusão solitária, diminuição da
alimentação, privação de visitas, de passeios ou de fumo, colete ou cadeira de
força e banhos de emborcação112.
Na década de 1920, o governo de Sérgio Loreto, sob a inspiração de
Amauri de Medeiros, implementa a montagem do Departamento de Assistência e
Saúde. Para Antônio Paulo Rezende113, fica clara a intenção de reaparelhar o
Estado com outros objetivos, na trilha de uma modernização que vai se ampliar no
pós-30. O tratamento dado ao chamado Hospital de Doenças Nervosas não deve
ser excluído das obras básicas do Departamento na perspectiva de mudança de
concepção. O Hospital encontrava-se deteriorado e era mantido pela Santa Casa
de Misericórdia; quando o Estado assumiu sua administração, em setembro de
1924, passou por uma reestruturação geral. Os suspeitos de alienação mental,
111 COELHO FILHO, H. A Psiquiatria no País do Açúcar. Recife:ABIGRAF, 1983. 112 LORETO, G. A Psiquiatria em Pernambuco nos últimos cem anos. Neurobiologia, Recife, v.49, n.1, p. 17-36, jan./mar. 1986. 113 REZENDE, A. P. (Des)Encantos Modernos: Histórias da cidade do Recife na década de 20. Recife: FUNDARPE, 1997. pp. 52-54.
que antes eram recolhidos à Casa de Detenção, recebem outro tipo de tratamento.
O destaque foi, nessa área, o trabalho realizado por Ulysses Pernambucano114.
Assim, a psiquiatria, em Pernambuco, nas décadas de 1920 a 1940, foi
dominada pela figura de Ulysses Pernambucano. Tinha grande prestígio nos
meios intelectuais e políticos da época, conseguindo atrair, para a causa dos
loucos, não apenas o apoio do grande público como também as simpatias de
figuras representativas da elite intelectual, como: Oliveira Lima, Ribeiro de Brito,
Sérgio Loreto, Amauri de Medeiros, Aníbal Fernandes, Gilberto Freyre, entre
outros115.
Ulysses Pernambucano recebeu de Juliano Moreira, considerado o
fundador da moderna psiquiatria brasileira, a orientação clínico-biológica
kraepeliniana116, que este implantava no país. Ao lado dessa influência principal,
recebeu, através da convivência como estudante, influências de nomes, como
Antônio Austragésilo, Ulisses Viana e Fernandes Figueira117. Do primeiro,
apreendeu conhecimentos na área de neurologia. O pediatra Fernandes Figueira
era estudioso de crianças com deficiência mental, e nele Ulysses Pernambucano
se inspirou para trabalhar a questão da psiquiatria infantil em Pernambuco, da
qual foi pioneiro no Estado118.
Somado a essas influências, Ulysses estabeleceu, como parâmetro para o
estudo do transe nas religiões populares do Recife, o aporte teórico divulgado por
114 REZENDE, A. P. op. cit., 1997. pp. 52-54. 115 COELHO FILHO, H. A Psiquiatria em Pernambuco: Origem e Desenvolvimento da Assistência aos Psicopatas no Estado de Pernambuco. Recife: Pernambuco, 1954. 116 Emil Kraepelin (1856-1926) é considerado um grande reformista da psiquiatria. Suas idéias apresentavam a predominância dos valores culturais sobre a personalidade humana. Modernizou a psiquiatria sobretudo com uma nova técnica de tratamento para as psicoses, através de uma classificação que permitia diagnosticar com segurança as psicopatias. Através da divulgação de suas idéias, os hospícios sofreram grandes reformas, a ponto de perderem o aspecto de hospitais, ganhando a aparência de uma casa residencial, a fim de não impressionar mal os doentes. Até a alimentação é alvo de seus cuidados, passando a ser orientada por médicos especialistas em dietoterapia, de acordo com cada caso. Se Pinel foi considerado o clássico, Kraepelin foi considerado o moderno. In : SILVA, V. A. A História da Loucura: em busca da saúde mental. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1979. 117 LUCENA, J. Ulysses Pernambucano e sua escola de psiquiatria social. In: Ciclo de Estudos Sobre Ulysses Pernambucano. Recife: Academia Pernambucana de Medicina, 1978. 118 MARQUES DE SÁ, J. Abertura do Ciclo de Estudos sobre Ulysses Pernambucano. In: Ciclo de Estudos sobre Ulysses Pernambucano. Recife: Academia Pernambucana de Medicina, 1978.
Nina Rodrigues, em seus estudos sobre o negro na Bahia119, e por Arthur Ramos,
principal discípulo de Nina.
O processo empreendido em 1930, no Brasil, levou ao poder, em
Pernambuco, Carlos de Lima Cavalcanti que, nos primeiros dias de governo,
implementou um vasto programa de reformas e realizações para o Estado120. Para
Lima Cavalcanti, as diversas secretarias deveriam primar pelo seu caráter
administrativo, reforçando o aspecto mais técnico e, portanto, menos político-
partidário. Durante a primeira fase do governo, Lima Cavalcanti consolida a sua
liderança não só em Pernambuco mas nos demais estados da região Norte,
conseguindo grande projeção nacional121.
Impressionado com o elevado número de internos no único hospital de
alienados então existente, a Tamarineira – convocou Ulysses Pernambucano
para dirigi-lo. Ao contrário de 1924, quando lhe foi confiada a reforma do hospício,
mas subordinada ao plano geral de reformas de Amauri de Medeiros, cabiam-lhe
agora a organização e o planejamento do hospital122. Vale salientar que o Hospital
de Alienados era o único instituto, na época, que abrangia os Serviços de
Assistência a Psicopatas. Coube a Ulysses ampliá-lo123.
A reforma veio através do decreto nº 26, de janeiro de 1931, no qual criava
a Divisão de Assistência a Psicopatas de Pernambuco, cujo projeto, redigido por
Ulysses, compreendia:
1- Serviço para doentes mentais não alienados:
a) Ambulatório b) Hospital aberto
2- Serviço para doentes mentais alienados: 119 Não é de estranhar essa influência do pensamento de Nina Rodrigues, pois, ao que parece, Juliano Moreira foi grande admirador de Nina. Na sétima edição de “Os Africanos no Brasil”, Fernando Sales, ao final do livro, publica “Notas Bibliográficas de Nina Rodrigues”, e nelas, aparece o nome de Juliano Moreira como tendo publicado importante pronunciamento, através da imprensa, lamentando a perda para o meio científico, com a morte de Nina em 1906. SALES, F. Notas Bibliográficas de Nina Rodrigues. In: NINA RODRIGUES, R. Os Africanos no Brasil. 7.ed. São Paulo: Ed. Nacional : [ Brasília ]: Ed. Universidade de Brasília, 1988. p. 279. 120 COELHO FILHO, H. op. cit., 1954. 121 PANDOLFI, D. C. Pernambuco de Agamenon Magalhães: consolidação e crise de uma elite política. Recife: Fundação Joaquim Nabuco. Editora Massangana, 1984. p. 44. 122 COELHO FILHO, H. op. cit., 1954. 123 CARRILHO, H. Ulysses Pernambucano e a Organização dos Serviços de Assistência a Psicopatas em Pernambuco. In: Estudos Pernambucanos Dedicados a Ulysses Pernambucano. Recife: Gráfica Jornal do Commercio, 1937.
a) Hospital para doenças agudas;
b) Colônia para doentes crônicos.
3- Manicômio Judiciário
4- Serviço de Higiene Mental:
a) Serviço de prevenção a doenças mentais;
b) Instituto de Psicologia124
Ulysses operacionalizou todo um plano de assistência aos doentes
mentais. Foram focalizados desde a assistência a doentes agudos
(reaparelhamento do Hospital da Tamarineira) e crônicos (criação da Colônia
Agrícola) até a assistência aos Pequenos Psicopatas125 (ambulatório e hospital
aberto), o cuidado com os loucos criminosos (Manicômio Judiciário), aos serviços
de profilaxia e de estatística (Saúde Mental). Assim, foi aberto pelos poderes
públicos um dos primeiros Serviços de Higiene Mental no Brasil126.
No serviço para doentes mentais não alienados, denominados de Pequenos
Psicopatas, seriam tratadas as psiconeuroses cujo diagnóstico e tratamento,
executados precocemente, poderiam proporcionar aos indivíduos a rápida
integração à sociedade127. O objetivo era operacionalizar um serviço altamente
especializado, preocupando-se em fazer do ambulatório uma arma para profilaxia
da sífilis nervosa. Neste, também eram ministrados ensinamentos sobre a maneira
de tratar os insanos, os cuidados de que se os deve cercar, as causas das
doenças e os meios de que o Serviço dispunha para combatê-los128.
No que concerne ao serviço para doentes mentais alienados, ou seja,
aqueles que inevitavelmente teriam que ser internados, a idéia era, primeiramente,
reaparelhar o Hospital da Tamarineira com os equipamentos e as técnicas de que
124 MARQUES DE SÁ, J. op. cit., 1978. p. 20. 125 Trata-se de doentes facilmente impressionáveis, neurastênicos, fóbicos, nervosos, acusando leves perturbações mentais , cujas funções psíquicas não estão afetadas em sua totalidade. São capazes de viver em sociedade ou permanecer no meio familiar. In: Pequenos e Grandes Psicopatas: Comunicado do serviço de Higiene Mental. Folha da Manhã, Recife, 10 out. 1938. p. 02.Edição das 16 horas. 126 COELHO FILHO, H. op. cit., 1954. 127 Communicado da Directoria Geral. Arquivos da Assistência a Psicopatas, Recife, v.1, n.1, p.128-29, out. 1931. 128 PERNAMBUCANO, U. Assistência a Psicopatas em Pernambuco: Idéias e Realizações. Arquivos da Assistência a Psicopatas, Recife, v.2, n. 1, p. 03-57, abr. 1932. p. 41.
o saber psiquiátrico dispunha. Em segundo plano, pretendia-se criar uma colônia
de alienados destinada a doentes crônicos129.
A concretização dessa idéia veio com a inauguração da Colônia de
Alienados, em Barreiros, cidade do interior de Pernambuco. Ali, Ulysses se
preocupou com o aperfeiçoamento do trabalho agrário efetivado pelos doentes
crônicos, para facilitar sua reintegração na família e na sociedade130.
No Hospital de Barreiros existia um rígido regulamento no que diz respeito à
assistência aos doentes: podiam ser submetidos a esse regime doentes calmos
que não tinham família ou haviam sido por ela abandonados. Os doentes nessas
condições deveriam ser entregues a famílias que preenchessem condições de
moralidade e bons costumes e residissem nos arredores da Colônia de Alienados.
Era pré-requisito, também, ter uma residência higiênica, hábitos de limpeza e
ausência de doenças contagiosas ou repugnantes. Essas condições deveriam ser
verificadas pelo assistente da colônia, após inscrição das famílias interessadas. O
SHM131 forneceria uma caderneta à família, contendo inventário das roupas
fornecidas ao doente, seu nome, diagnóstico, peso e recomendações referentes
ao modo de tratar o doente. Quinzenalmente, este seria visitado pelo médico e
mensalmente deveria comparecer ao hospital para ser pesado e interrogado pelo
diretor. Todos os procedimentos eram anotados na caderneta132.
Nenhum enfermo deveria ser entregue à assistência da família contra sua
vontade, nem poderia ser constrangido ao trabalho. Poderia ser persuadido
suavemente, caso indicado pelo terapeuta. Deveria comer sempre da mesma
comida do cuidador e, se possível, fazer as refeições com a família do mesmo. O
médico visitador aprovaria o horário das refeições e sua consistência133.
No que se refere à higiene pessoal, o banho seria obrigatório duas vezes
por semana. O corte de cabelo seria mensal e o da barba, semanal. As roupas,
quer individuais, quer de cama, seriam substituídas uma vez por semana. O
cuidador receberia, para cada enfermo, uma cama com colchão e travesseiro e 129 Idem Ibdem. p. 33. 130 Idem Ibdem. 131 Serviço de Higiene Mental. 132 PERNAMBUCANO, U. op. cit., 1932. 133 Idem Ibdem.
um lavatório. Eram terminantemente proibidos o consumo e mesmo a existência
de bebidas alcóolicas na casa das famílias que abrigassem pensionistas. O
cuidador receberia quarenta e cinco mil réis mensais por doente que
hospedasse134.
A descrição minuciosa acerca do tratamento do doente apresenta um
exemplo da importância da utilização do tempo e define um estilo de tratamento
numa época de grandes projetos e reformas na área psiquiátrica. Novas teorias
sobre a loucura e o louco são implementadas, justificando moral e politicamente o
direito de disciplinar. Era a crença positivista de que a ciência não apenas seria
capaz de revelar os males da sociedade mas também de orientar a ação do
Estado para solucioná-los.
Para Foucault, a “espacialização institucional da doença” era o terreno
sobre o qual se assentavam não só o controle empírico efetivo da população como
a possibilidade de generalização teórica a respeito da mesma. Para ele, a partir
daí se torna possível a oposição entre o cidadão, atuando no quadro do legalismo
com sua definição de regras universais e sua correção do desvio via
repressão/coerção, e o perito, atuando no quadro da disciplina, que utilizaria
tecnologias “brandas” de controle via persuasão/manipulação135. Encontramos em
tais descrições essa “espacialização institucional” da doença em que o “perito”, no
caso, o psiquiatra, é a figura principal na atuação do papel de disciplinador e
corretor dos desvios sociais.
Com relação ao funcionamento de um Manicômio Judiciário, na medida em
que a Divisão de Assistência a Psicopatas de Pernambuco não dispunha de
instalações, o serviço funcionou, a título provisório, no Hospital da Tamarineira.
Com grande número de doentes atendidos, realizando inúmeros serviços periciais,
por solicitações de autoridades policiais e judiciárias, esse setor constituiu uma
das partes mais deficitárias, com relação a uma demanda cada dia maior136.
Funcionava em enfermarias separadas, cumprindo a tríplice função de órgão de
134 Idem Ibdem. p. 38. 135 FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995. 136 PERNAMBUCANO, U. op. cit., 1932. pp. 50-51.
defesa social, hospital para tratamento de psicopatas delinqüentes e instituto de
observação psiquiátrica de acusados suspeitos de alienação mental137.
Em 1935, o Desembargador João Aureliano 138 reclama, em artigo publicado
na revista Arquivos da Assistência a Psicopatas139, que o governo ainda não
cuidara da fundação do Manicômio Judiciário. Nesse sentido, interpela o autor:
“Por conseqüência, precisamos de medidas eficientes nesse sentido, para o fim de ser mais bem cuidado, entre nós, o problema atinente aos alienados delinqüentes e aos criminosos alienados,(...) Ao mesmo tempo será mais bem acautelada a ordem coletiva, que ora se acha quase indefesa, contra os atentados previsíveis dessa classe psicopatológica de delinqüentes perigosos140.”
Para Mariza Corrêa, a luta de Ulysses pela implementação de um
manicômio judiciário continha argumentos muito semelhantes aos usados por
Arthur Ramos para conseguir o mesmo na Bahia141. Em sua primeira publicação,
Arquivos da Assistência a Psicopatas apresentou um comunicado da diretoria
geral do SHM, co, o seguinte argumento para a criação do manicômio:
“O manicomio judiciário será o local de reclusão dos que commetterem crimes em estado de alienação mental.(...) como são perigosos para a sociedade mercê das reacções violentas de que são capazes, é necessário internal-os em hospital especialisado.(...) serão encaminhados também aquelles criminosos que no curso do cumprimento da pena manifestarem perturbações mentaes142.”
137 HUTZLER, C R. Ulysses Pernambucano: Psiquiatra Social. Ciência & Trópico, Recife, v.15, n.1, p. 23-40, Jan./Jun. 1987. p. 32. 138 Ex-Presidente da Liga de Higiene Mental de Pernambuco. 139 AURELIANO, J. Assistência aos Psicopatas Criminosos. Arquivos da Assistência a Psicopatas, Recife, v.5, n.1 e 2, p. 37-39, 1º e 2º semestre, 1935. 140 Idem Ibdem. p. 39. 141 CORRÊA, M. As Ilusões da Liberdade: a escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil . 1982. Tese (Doutorado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1982. p. 218. 142 Communicação da Directoria Geral. Arquivos da Assistência a Psicopatas, Recife, v.1, n. 1, . p. 128-129, out. 1931.
Só em 1965 foi construído o Manicômio Judiciário, em uma área pertencente ao
antigo engenho Monjope (Igarassu), próximo à Colônia Ulysses Pernambucano,
para doentes crônicos do sexo feminino, este inaugurado por volta de 1950143.
As instituições, práticas e técnicas produzidas por Ulysses e sua equipe,
com a criação do SHM, em um único e mesmo movimento tornaram-se
instrumento de uniformização moral e de denúncia social da loucura. Essa
instituição pretendeu, em seu funcionamento, ser capaz de reduzir as diferenças,
reprimir os vícios, extinguir as irregularidades. Ela se propõe a denunciar tudo o
que se opõe àquilo que consideravam as virtudes da sociedade: a devassidão, o
mau comportamento, a perversidade dos costumes, a preguiça, enfim, os males
que interpenetram a loucura.
Quanto aos objetivos da Higiene Mental, foram fixados no artigo 7º do
decreto, como sendo os de esclarecimento e educação do público sobre a
natureza, a causa e a curabilidade das doenças mentais e os meios de evitá-las,
fazer a prevenção das psicopatias, colaborando com o serviço de higiene pré-
natal, maternidade, médico-escolar, de profilaxia da sífilis, baixo espiritismo, entre
outros144. Como podemos perceber, as práticas de “baixo espiritismo” foram
percebidas como um tipo de mal a ser sanado pelo Serviço, sendo introduzidas no
discurso médico como equivalentes a qualquer outro problema de saúde
encontrado no seio das populações carentes.
O Serviço de Higiene Mental foi chefiado por Costa Pinto, tendo à frente,
com ação direta, o professor José Lucena145. Neste setor, Ulysses contava com a
seguinte equipe: Médicos Assistentes do SHM: José Lucena, Rui do Rego Barros
e Ladislau Porto; Internos:José Cardoso Cavalcanti e Lauro Raposo; Auxiliar
técnico: Pedro Cavalcanti. Costa Pinto, como diretor do Serviço, é logo substituído
por José Lucena, para assumir a direção do Ginásio Pernambucano146.
143 Em 1970 o Manicômio Judiciário passou a ser subordinado à Secretaria do Interior e Justiça e, em 1983, já com o nome de Instituto Penal, foi transferido para um instituto anexo à Penitenciária de Itamaracá. In: LORETO, G. op. cit., 1986. p. 27. 144 CARRILHO, H. op. cit., 1937. 145 MARQUES DE SÁ, J. op. cit., 1978. 146 PERNAMBUCANO, U. op. cit., 1932. p. 56.
O Serviço de Higiene Mental era também um centro de estudos onde os
adeptos das religiões de origem africana eram submetidos a uma “rigorosa
observação” e a “exames mentais”, pretendendo-se, por essa via, estabelecer um
“controle científico” sobre os cultos, controle que deveria substituir a ação da
polícia.
É com essa intenção que, em fins de 1932, é feito um acordo entre a
Secretaria de Segurança Pública do Estado de Pernambuco e o Serviço de
Higiene Mental no sentido de que o “Serviço” garanta a licença para o
funcionamento dessas religiões; e em troca, os praticantes abririam suas portas
aos psiquiatras do Serviço147.
Essa estratégia de tornar-se o órgão do Estado que passa a exercer o
controle e a fiscalização em substituição da polícia, era exercida em nome da
saúde pública. O Serviço de Higiene Mental assume cuidadosamente a vigilância
dos “centros”, ou seja, a tentativa de controle. É o discurso da competência da
ciência médica, baseada nas teorias racialistas que dominavam a literatura
médica.
No Serviço, exigia-se a presença dos médiuns, os quais eram submetidos a
exame clínico, determinação do quociente intelectual e perfil psicológico. Os
médiuns eram convidados a se manifestar, e taquigrafavam as suas palavras.
Após tais procedimentos, era entregue aos presidentes dos centros a seguinte
Portaria:
“SSP - Secção de teatro e diversões públicas Portaria:
Resolvo nessa data, conceder ao Sr. X., Presidente do Centro Espírita X.X., localizado à rua X., - Distrito Policial da Capital, conforme requereu, licença para fazer o mesmo centro funcionar, durante o período do corrente ano, ficando porém sujeito a: a) não transgredir, sob qualquer pretexto, o contido nos artigos 156,
157 e 158 do Código Penal Brasileiro; b) não violar o artigo do Regulamento Sanitário do Estado, no que se
refere à prática ilegal da farmácia e da medicina; c) facilitar, aos auxiliares do Serviço de Assistência a Psicopatas,
visitas e fiscalizações ao Centro a que se reporta esta portaria; 147 CAVALCANTI, P. As Seitas Africanas no Recife In: Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988 (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935). pp. 243-44.
d) receber, independente de qualquer aviso, a visita da polícia civil, sempre que isso se tornar necessário.
Entregue-se a presente ao requerente, ficando cópia arquivada na seção competente. (Ass.) Secretário de Segurança Pública Acompanha a Portaria uma cópia dos artigos do Código Penal que à mesma se referiu148.” É importante registrar que o controle do SHM não era recebido pelos chefes
de terreiro (pais e mães-de-santo) de forma passiva. Ao mesmo tempo surgia
entre os afro-umbandistas uma rede de poder que se estabelecia na forma de
disputa entre aqueles terreiros que tinham o aval do SHM para funcionar e
aqueles que deveriam ser fechados pela polícia, na medida em que o SHM assim
determinava. Gonçalves Fernandes149 faz referência a esta rivalidade, afirmando
que a intriga entre pais e mães-de-santo dos terreiros não era rara, inclusive
deixando alguns em situação difícil perante os técnicos de SHM. O autor, em seu
livro Xangôs do Nordeste, transcreve uma carta enviada ao SHM, reveladora de
uma certa forma de relação dos pais e mães-de-santo com o referido Serviço:
“Ilmo. Snr. Dr. Em 29 de Março de 1935 Eu me sentei para escrever não foi para pedir nem para
adular só santo grande que tenha para dar. Apois assim eu soube que o sinhor ia proceder a não dar esta licencia se o sinhor quizer dar der e si não quizer não der. E eu antes de conhecer changou já comia já bebia e já vestia(...) Eu moro na mangabeira na casa de Maroca Gorda que tem o macacatú. Dr Olicio nada mais tenho a lhe dizer mais de uma vez boto meu nome. (a) José Claudino de Almeida150”
Fernandes explica que Ulysses Pernambucano, suspeitando de algum mal-
entendido, mandou chamar o referido pai-de-santo. Este, ao ver a carta,
reconheceu a letra. Havia sido escrita por sua ex-companheira, que estava
freqüentando outro terreiro e enviara a “falsa” carta para prejudicá-lo151. Portanto,
148 CAVALCANTI, P. Contribuição ao estudo do estado de saúde mental dos médiuns. Arquivos da Assistência a Psicopatas, Recife, v.4, n. 2, p. 135-145, 2º semestre. 1934. p. 143-4. 149 FERNANDES, G. Xangôs do Nordeste: investigações sobre os cultos negro-fetichistas do Recife. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937. 150 Idem Ibdem. pp. 38-39. 151 Idem Ibdem.
a circularidade do poder ultrapassa os limites do saber médico, criando efeitos
entre a comunidade afro-umbandista. Efeitos que, por sua vez, se apóiam nos
discursos e nas práticas desses intelectuais.
Em Quatro anos de atividade do Serviço de Higiene Mental152, René
Ribeiro153 e Eulina Lins154, ao fazerem um balanço das atividades do Serviço,
repetem, mais uma vez, o discurso intervencionista:
“São esses centros (até agora 39) registrados no Serviço, objeto de visitas periódicas dos Auxiliares.(...). As cerimônias rituais de 36 desses centros são acompanhadas por esse Serviço, constituindo repositório de informações os relatórios existentes no arquivo. Do estudo dessas seitas depende a solução de diversos problemas referentes aos afro-brasileiros155.
Neste mesmo ano de 1935, o Boletim de Higiene Mental156 publica os
requisitos para o funcionamento dos Centros Espíritas e Seitas Africanas,
elaborados pelo Serviço de Higiene Mental:
“1º- Exame Psiquiátrico completo do babalorixá ou médium do centro espírita. 2º - Determinação da I .M 157. e Q. I.158 (escala Binet – Simon – Terman159, revisão pernambucana160) e perfil psicológico de Rossolimo161 (adaptação pernambucana) feitos pelo Instituto de Psicologia.
152RIBEIRO, R.; CAMPOS, E. Quatro anos de atividade do Serviço de Higiene Mental. Arquivos da Assistência a Psicopatas, Recife, v.5, n.1e2, p. 71-77, 1 º e 2º semestres. 1935. 153 Auxiliar técnico do Serviço de Higiene Mental. 154 Assistente Social do Serviço de Higiene Mental. 155 RIBEIRO, R.; CAMPOS, E. op. cit., 1935. p. 75. 156 Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 3, n. 9,10,11 e 12, set./out./nov./dez., 1935. p. 06. 157 Idade Mental. 158 Quociente Intelectual. 159 Primeira série graduada de testes de inteligência (3 a 15 de IC), elaborada por A Binet e T. Simon em 1905 e revista em 1908 e 1911. Em 1916 foi revista por Terman ( Stanford University), traduzida para o português por Lourenço Filho. DORIN, E. Escala Binet – Simon – Terman. In. DORIN, E. Dicionário de Psicologia: abrangendo terminologias de ciências correlatas. São Paulo: Melhoramentos, 1978. p. 98. 160 A Escala Binet – Simon – Terman foi simplificada e adaptada à realidade brasileira pelo Instituto de Psicologia do Serviço de Higiene Mental. 161 Em relação a um dado indivíduo, é a maneira de representar os resultados de diversas provas por ele realizadas, segundo notação unificada; verticalmente dispostos e reunidos por uma linha contínua, os valores desenham um traçado comparável a um perfil. Rossolimo o usou pela 1º vez em 1912. PIERON, H. Perfil de Rossolimo . In: PIERON, H. Dicionário de Psicología. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1976. V. 2 . p. 327.
3º- Entrega dos estatutos e regulamentação das seitas e centros espíritas, assim como de lista dos dias e funções; 4º- Registro desses centros em livro especial; 5º - Compromisso de não se entregarem à prática ilegal da medicina e permitirem visitas de nossos auxiliares162.”
A “competência” do SHM era demonstrada não só pela divulgação da
capacidade de controlar, vigiar e observar os fenômenos mas também pela
quantidade de Centros ou Terreiros que eles conseguiam manter sob custódia.
Essas determinações também demonstram que não era preciso apenas mediar e
vigiar mas também, através da “imparcialidade” da ciência, intervir.
A ação “racionalizadora” dos médicos, através do discurso da
“imparcialidade científica”, assume lugar de destaque, como também o
estabelecimento e o reforço dos limites do conhecimento e das práticas médicas.
Estas são constantemente reiteradas, quando se trata de desqualificar ou acionar
o aparato coercitivo sobre os curandeiros.
Sendo o Serviço de Higiene Mental um dos setores mais atuantes da
Divisão de Assistência a Psicopatas, ainda promoveu, em 26 de setembro de
1933, a inauguração da Liga Brasileira de Higiene Mental, Seção de Pernambuco,
ligada diretamente à Liga Brasileira de Higiene Mental, instituição criada por
Gustavo Riendel, em 1923. A LBHM de Pernambuco foi inaugurada no Hospital de
Alienados (Tamarineira), onde se reuniram não somente psiquiatras mas também
especialistas de diversos ramos da medicina e das Ciências Sociais. Nesta
reunião, além de Ulysses ser aclamado presidente da Liga, foi inaugurado o
retrato de Clifford Beers, propagador mundial das idéias de higiene mental163.
Neste sentido, as realizações do SHM, mais uma vez, reafirmam e reiteram
suas práticas, cujos sentidos não se encontram apenas nas suas ações locais,
mas estão relacionadas aos acontecimentos nacionais e internacionais instituídos
pela (re)interpretação que este grupo de intelectuais fez delas.
Sinais das práticas do SHM podem ser detectados no Instituto de
Psicologia, criado em 1925, anexo ao Departamento de Saúde e Assistência, por
162Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 3, n. 9,10,11 e 12, set./out./nov./dez., 1935. p. 06. 163 Boletim de Higiene Mental, ano 1, n.1, dez., 1933. p. 04.
solicitação de Ulysses, no governo de Sérgio Loreto. Em janeiro de 1931, foi
anexado ao Serviço de Assistência a Psicopatas. Continuou a manter as
atribuições anteriores, acrescidas de outras atribuições apontadas pelo Serviço de
Higiene Mental164.
Tendo a seu cargo as pesquisas de ordem patológica, o Instituto procurou
adquirir o material necessário para uso do perfil psicológico que permitiria uma
análise detalhada das faculdades psíquicas no diagnóstico das doenças
mentais165. Foram efetuadas padronizações de testes psicológicos com funções
práticas bem definidas em duas áreas de aplicação: seleção de candidatos para a
Escola Normal e encaminhamento para a Escola de Excepcionais166.
Assim, o Instituto de Psicologia preocupava-se em colocar à disposição do
psiquiatra clínico testes padronizados, com “rigor científico”, evitando que os
psiquiatras utilizassem testes elaborados em outros países, que não houvessem
sido devidamente adaptados a nossa sociedade.
Na medida em que as teorias eugênicas serviram como artefato conceitual
que permitiu a intelectuais da área ampliar as suas práticas para o terreno social,
a preocupação com o “rigor científico” legitimava, de forma incontestável, as suas
ações. O que era realizado, estava legitimado pela “imparcialidade” da ciência.
Outra questão que sobressai na implementação dessas práticas discursivas, é a
preocupação em recriar métodos e técnicas que se moldem à realidade local do
Nordeste. Assim, era necessário simplificar os testes produzidos em outros países
com o objetivo de tornar os diagnósticos mais rápidos e eficientes.
Diante de tantas reformas, houve uma preocupação, por parte de Ulysses e
de seus colaboradores, com a divulgação, em larga escala, das novas maneiras
de tratar a loucura, implementadas pelos setores públicos. É com essa intenção
que um artigo, publicado no Boletim de Higiene Mental167, sobre o que é a
Assistência a Psicopatas de Pernambuco, procura esclarecer como deve ser um
hospício moderno em comparação com o antigo: 164 PERNAMBUCANO, U. op. cit., 1932. pp. 50-51. 165 Idem Ibidem. 166 MEDEIROS, J.A. de. Ulysses Pernambucano. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 23. 167 O que é a Assistência a Psicopatas de Pernambuco. Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 2, n.4, abr. 1934. p. 01.
“Antes o louco era segregado ao depósito (hospital) com camisa de força, calabouço, cordas e correntes. Hoje o hospício é um hospital onde o doente repousa num leito, logo pode curar-se. O doente mental é tão doente como outro qualquer. A localização da doença é que é diferente, portanto, seus sintomas são diferentes como também o é seu tratamento. Logo a Assistência a Psicopatas em Pernambuco é uma organização eficiente, pois trata do doente enquanto tal168.”
Estão presentes neste discurso não só a preocupação em diferenciar o
tratamento dado ao louco, antes da instituição das novas concepções de loucura,
e as vantagens que os novos modelos proporcionariam a estes, como também a
questão da humanização da loucura, vista, agora, como uma doença que poderia
se equiparar a qualquer uma outra. Trata-se de um pronunciamento à sociedade,
através da “competência” psiquiátrica legitimada pela “imparcialidade da ciência”,
de que a loucura adquiria o estatuto de doença, logo, também de cura.
Quanto aos métodos de propaganda dos princípios de Higiene Mental e
Educação dirigidos ao grande público, o serviço se utilizou dos seguintes
mecanismos: conselhos impressos aos alcoólatras, sifílicos, epilépticos, operários
e espíritas; pequenas palestras no Rádio (P. R. A. 8, ESTAÇÃO LOCAL); publicou
artigos de divulgação e comunicados na imprensa diária; realizou conferências
educativas nas escolas, nas agremiações operárias; também foram utilizados
cartazes de propaganda.
Em dezembro de 1933, iniciou-se a publicação mensal do Boletim de
Higiene Mental, com tiragem de 2.000 exemplares e distribuição gratuita aos
doentes do ambulatório. Essa publicação se estende até 1939. Os temas
principais versavam sobre as campanhas antialcoólicas de 1931 a 1934 e o
combate às intoxicações169. O objetivo era aconselhar alcoólatras, sifilíticos,
epilépticos, operários e espíritas sobre os métodos de higiene mental e a
educação do grande público. A maioria dos artigos e reclames do Boletim
versavam sobre os perigos do alcoolismo e as principais formas de combate da
168Idem Ibdem. 169 RIBEIRO, R.; CAMPOS, E. op. cit., 1935.
doença. Publicou-se também um número significativo de artigos sobre os males
advindos da prática do baixo espiritismo, do curandeirismo e da propagação de
certas patologias mentais comuns, segundo se afirmava, aos freqüentadores
dessas práticas religiosas. Eram ainda difundidos estudos referentes ao
pensamento e à prática da eugenia. Alguns dos artigos são resumos ou pequenas
partes de textos publicados, na íntegra, na Revista Arquivos de Assistência a
Psicopatas.
Na medida em que objetivava aconselhar e educar o grande público acerca
dos métodos de higiene mental, as matérias do Boletim eram marcadas por um
discurso de caráter intimidador e intervencionista. A “competência” de quem os
redigia está repetidamente exaltada em cada artigo ou reclame, através de
sucessivas citações “teóricas” de especialistas notoriamente reconhecidos e pela
evidência da observação direta dos fenômenos.
Os apelos formulados com o objetivo de prevenção e educação das
massas, no sentido de evitarem as incultas práticas de “religiões inferiores no
Recife”, ou seja, do baixo espiritismo, podem ser relacionados em dois grandes
grupos: os que se preocupam com o fenômeno da possessão, associando-o
diretamente à doença mental; e os que realizam críticas à prática ilegal do
curandeirismo e do charlatanismo.
No que se refere à possessão, são publicados sete artigos e um reclame.
Todos extraídos de artigos publicados na Revista da Assistência a Psicopatas. No
Boletim são ressaltados os males acarretados por essas práticas e a importância
da ação do Serviço de Higiene Mental.
Assim, no artigo Religiões no Recife170, encontra-se o seguinte argumento:
“Conhecer pois as religiões que se desenvolvem em uma grande cidade, principalmente no seio da população inculta, é ter indicações seguras sobre probabilidades de verdadeiras epidemias que povoam os asilos e, às vezes, fazem correr sangue. (...) De qualquer modo acompanhar essas manifestações é ficar
170 As Religiões no Recife. Boletim de Higiene Mental, Recife, ano.1, n.1, dez. 1933 . p. 03.
armado de elementos para uma intervenção profilática em momento oportuno171“.
Em O Espiritismo no Recife172, o artigo aponta uma solução para o
problema: “Refúgio de pobre, gente que procura alívio
para seus males, e simultaneamente núcleo onde pequenos psicopatas encontram ambiente propício para suas tendências mórbidas, eis o que são em regra os “centros”. (...) Uma vez curados – depois do internamento e convenientemente tratamento – muitos reincidem porque voltam à prática responsável. Medida definitiva seria a profilática: evitar a esses predispostos a cultura sistemática da imaginação, o exagero do automatismo mental.
Higiene, não medicina!173"
Já no artigo Os obsedados devem ser encaminhados a exame psiquiátrico,
e não a sessões espirituais174, está presente a preocupação em explicar que, a
partir do progresso do exame das capacidades mentais, é possível traçar um perfil
psicológico de cada indivíduo:
“Esta verificação não só confirma a explicação natural das ‘manifestações’ espíritas (puros fenômenos de libertação do automatismo mental, provocados por auto ou hetero-sugestão e que a freqüência a sessões incrementa) como vem confirmar o perigo sob o qual tantas vezes instituiu o Serviço de Higiene Mental; de que pessoas apresentando deficiências psíquicas tão acentuadas, poderão facilmente apresentar perturbações mentais, por motivo da prática espírita.(...) A experiências de nossos alienistas, que tantas vezes defrontam episódios delirantes de origem, se vê por essa investigação inteiramente reforçada175.
171 Idem. 172 O Espiritismo no Recife. Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 2, n.2, fev. 1934. p. 04. 173 Idem. 174 Os obsedados devem ser encaminhados a exame psiquiátrico, e não a sessões espirituais. Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 2, n.5, mai. 1934. p. 03. 175 Idem Ibdem.
Em O estudo das religiões do Recife176, ressalta-se a importância do estudo
das características do estado de transe e apresenta-se um prognóstico:
“A educação do público a respeito da inexistência do sobrenatural nos fenômenos de possessão e práticas mágicas, anulará a sua influência sobre a população supersticiosa177”
Já no artigo O espiritismo é uma psiconeurose semelhante à histeria178,
Antônio Austragésilo inicia repetindo o prognóstico acima, mas atesta o caráter
contagioso e de fácil difusibilidade. Seu aspecto religioso ou místico não lhe tira o
aspecto patológico. Todos os fenômenos são muito semelhantes às crises
histéricas: sugestão ou auto-sugestão pela invocação de fenômenos espíritas.
Estes são explicados pelo afloramento do subconsciente, já que o médium tem
facilidade de desarticular o consciente pelo grande poder de auto-sugestão. As
relações espirituais são reminiscências que se manifestam tal qual a mente
quando o indivíduo se acha em sonho ou acidente histérico. Nesse sentido,
recomenda:
“As autoridades sanitárias e policiais deviam tomar providências para evitar as condições patológicas que provocam as práticas espíritas, e os abusos que se cometem no domínio clínico179”
Em Sessões espíritas são ‘laboratórios de histeria coletiva’: espiritismo e
doença mental180, afirma-se que dez por cento dos doentes internados no Hospital
da Tamarineira devem a sua psicose ao hábito de freqüentar sessões espíritas
que provocam uma verdadeira desagregação mental. Esta fragmentação ou
dissociação mental é a explicação única das manifestações espíritas,
principalmente do transe dos médiuns. A dissociação pode ser facilmente
provocada em certos indivíduos – os médiuns, no caso. É, contudo, uma
176 O Estudo das Religiões do Recife. Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 3, n.9, 10, 11 e 12, set./out./nov./ dez. 1935. p. 06. 177 Idem. 178 O Espiritismo é uma Psiconeurose Semelhante a Histeria. Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 6, n.1, mar. 1938. p. 03. 179 Idem. 180 Sessões Espiritas são ‘laboratórios de Histeria Coletiva’: espiritismo e doença mental. Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 6, n.2, mai. 1938. p. 04.
experiência que não se realiza impunemente, mas que é praticada diretamente,
em pontos vários da cidade, por pessoas pouquíssimo autorizadas para fazê-lo:
“Cremos portanto, necessário esclarecer o público dos danos que podem acarretar a freqüência dessas sessões, que muitos realizam reputando inofensiva181.”
Por fim, o artigo assinado por Leonildo Ribeiro e Murilo de Campos: Os
Fenômenos Espíritas, suas Interpretações e Causas de Erro182. Baseados em
Flournoy, os autores afirmam que não há outro espírito além do médium – são os
seus desejos, temores, raciocínios etc. que formam o conteúdo das mensagens, a
despeito da forma personalizada com que parecem indicar outra pessoa a falar
por seu intermédio. Os conhecimentos psicológicos provam, segundo Flournoy, a
complexidade das faculdades psíquicas humanas. Muitas dessas mensagens do
além não passam de fenômenos comuns de Criptomnésia183 (memória latente).
Ao contrário dos outros artigos, este não apresenta um caráter de
intimidação184; porém, de todos os artigos citados, o reclame publicado em 1934185
sintetiza as idéias básicas a que os textos acima se referem:
“Lutar contra o espiritismo significa procurar diminuir o número de psicoses de degradação. As práticas espirituais fornecem-nas em alta escala. Entrar numa sessão espírita – já disse alguém – é assinar uma petição de internamento num Hospício de Alienados186."
Neste sentido, lutar contra o espiritismo significava, para esses intelectuais,
vigiar a sociedade, estabelecer regras, julgar quem poderia ser considerado sadio.
181 Idem. 182 RIBEIRO, L.; CAMPOS, M. de. Fenômenos Espíritas, suas Interpretações e Causas de Erro. Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 7, n.3, jun. 1938. p. 02. 183 Manifestação em estados sonambúlicos de conhecimentos que o indivíduo não suspeitava possuir. Essa manifestação foi atribuída ao despertar de lembranças inconscientes; donde a denominação criptomnésia. PIERON, Henri. Criptomnésia. In: PIERON, Henri. op. cit., 1976. v. 2. p. 100. 184 Possivelmente este artigo de Leonildo Ribeiro e Murilo Campos tem a mesma conotação do livro escrito por estes: RIBEIRO, L.; CAMPOS, M. O Espiritismo no Brasil. Rio de Janeiro, 1931. Livro citado por Pedro Cavalcanti, corroborando seus estudos “sobre o estado mental dos médiuns”, publicado na Revista Arquivos da Assistência a Psicopatas. 185 Boletim de Higiene Mental, Recife. ano 2, n.7, jul. 1934. p. 02. 186 Idem.
Eram os médicos eugenistas que deveriam, pela sua competência, recomendar à
sociedade como comportar-se.
No que se refere às práticas do curandeirismo e do charlatanismo por parte
dos adeptos das “religiões inferiores”, foram publicados cinco artigos e um
reclame.
O primeiro deles, Curandeirismo e Doença Mental187, de Pedro Cavalcanti,
afirma que as práticas do curandeirismo são a regra geral na maioria dos centros
espíritas e seitas africanas. As doenças mentais são especialidades do
curandeiro. Nos primeiros sinais de doença mental, vê-se logo a influência de
espíritos maus ou o resultado de “despachos”. Segue-se a peregrinação pelos
centros e terreiros, enquanto o estado do paciente se agrava. Para o autor, não se
pode avaliar o perigo para a saúde que pode resultar do emprego de remédios
prescritos por curandeiros:
“Urge as famílias e a todos evitar em seu proveito próprio e nos das pessoas sob sua responsabilidade as consultas em centros espíritas e seitas africanas, por qualquer afecção e, principalmente, diante de uma perturbação mental188"
Em Cientistas, Videntes e Profetas189, destacam-se os seguintes
conselhos:
“Vez por outra aparecem pelos jornais anúncios de “cientistas” e “videntes”.(...) A população precisa se precaver com tais pessoas.(...)Quando abrem consultórios dessa natureza nesta cidade têm sido examinados anteriormente pelo Serviço de Higiene Mental.(...) O que não pode o SHM evitar é que anúncios espalhafatosos sejam divulgados nem que pessoas menos avisadas se deixem levar por tal publicidade.(...)A população que se precavenha190.”
187 CAVALCANTI, P. Curandeirismo e Doença Mental. Boletim de Higiene Mental, Recife, ano.3, n.3, ago. 1935. p. 02. 188 Idem. 189 Cientistas, videntes e profetas. Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 4, n. 1 e 2, Jan./Fev. 1936. p. 02. 190 Idem.
O artigo intitulado Repressão ao Curandeirismo191 salienta que pesquisas
sistemáticas nos terrenos das religiões inferiores dão autoridade para “fixar certos
aspectos do problema”. Primeiro, destaca o crescente aumento dos centros dessa
natureza. Para facilitar o melhor reconhecimento desses centros, o SHM resolveu,
no segundo semestre de 1937, dar licença a quantos o procuraram. Com este
intuito, um notável número de pessoas procurou o Serviço, na intenção de
legalizar as suas sociedades. Sua quase totalidade se dedicava ao exercício ilegal
da medicina, afirmando-se que a finalidade única dos centros de baixo espiritismo
era o exercício ilegal da medicina192.
Em O Curandeirismo e as Doenças Mentais193 , recorre-se às estatísticas
do Serviço de Higiene Mental. Procura-se demonstrar que os doentes mentais
internados na Tamarineira tinham uma probabilidade maior de cura, nos primeiros
meses de tratamento, enquanto doentes, com muitos meses de internamento,
curavam-se mais dificilmente. As doenças mentais deveriam ser tratadas aos
primeiros sintomas, logo no início da enfermidade, pois, dessa maneira, haveria
maior probabilidade de cura. Donde a conclusão natural de que: "a nocividade do
tratamento pelo curandeiro é a demora que acarreta para o verdadeiro tratamento,
por médicos especialistas194.”
O artigo O Problema do Curandeirismo: Curandeiros & Charlatães195, traça,
como objetivo, esclarecer os leitores do Boletim sobre dois tipos que se nomeiam
profissionais e se dão ao mister de “curar” doenças: o curandeiro e o charlatão.
Este é um caso de polícia e aquele, um caso de higiene mental. O charlatão é um
transgressor consciente das leis do país, que exerce uma profissão para a qual
não se acha habilitado, visando sempre aos lucros pecuniários. Qualquer pessoa
cumprirá um dever social, tomará uma atitude de defesa da coletividade,
denunciando às autoridades as atividades do charlatão. Esta denúncia deverá ser
191 Repressão ao Curandeirismo. Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 5, n.4, jun. 1937. p. 03. 192 Idem. 193 O Curandeirismo e as Doenças Mentais . Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 4, n.6, 1937. p. 01. 194 Idem. 195 O Problema do Curandeirismo: Curandeiros e Charlatães. Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 5, n.7, nov. 1937. p. 04.
encaminhada à autoridade policial local ou à Inspetoria de Fiscalização do
Exercício Profissional no Departamento de Saúde Pública.
O outro tipo é o curandeiro. Trata-se de uma pessoa que nem sempre visa
remuneração para seus serviços, que se julga possuída de dons especiais,
divinatórios às vezes, e pretende “praticar o bem”, ou “a caridade”, atendendo aos
enfermos:
“Como se vê é complexo o problema e temos razão quando afirmamos que o curandeirismo é um caso de higiene mental. E por estarmos interessados no estudo do problema, solicitamos dos nossos leitores amigos, que remetam a esta redação qualquer informação sobre curandeiros, cujas atividades sejam do seu conhecimento196.”
Aqui cabe ressaltar as palavras do Dr. Geraldo de Andrade, publicadas no
folheto:
“O espiritismo, por não ter fundamento na sistemática clínica, jamais pode ser levado à sério como um recurso de tratamento197”.
Figura pejorativa, ao nível moral, político e científico, o charlatão é o
obstáculo que se tem de remover para que a medicina social se assegure do
controle perfeito, interno à sua profissão e externo da sua sociedade198. Existiam
três tipos de práticas indesejáveis do ponto de vista médico-legal: o curandeirismo,
o charlatanismo e a charlatanice diplomada. No primeiro caso, o curandeiro, para
a lógica alopata dominante na época, exercia a arte da cura amparado em uma
racionalidade terapêutica não reconhecida pela ciência199. Neste sentido, deveria
ser abolida da sociedade. Portanto, cabia aos médicos, na condição de detentores
oficiais da cura, amparados pela “imparcialidade da ciência”, intervir, através de
todos os meios possíveis, no sentido de alertar a população de que apenas a
196 Idem. 197 ANDRADE, G. Boletim de Higiene Mental, Recife, ano 7, n.2, mai. 1939. p. 02. 198 MACHADO, R. et al. Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1976. p. 213. 199 Cf. PEREIRA NETO, A. de F. Palavras, Intenções e Gestos, os Interesses Profissionais da Elite Médica. Congresso Nacional dos Práticos(1922). 1997. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997.
ciência médica poderia salvá-los dos males advindos das práticas de cura
“primitivas”.
O discurso que busca implementar uma prática social precisa produzir
efeitos de verdade, ou seja, assumir uma legitimidade. Foi em busca dessa
legitimidade social que se organizou todo o aparato de divulgação no sentido de
possibilitar a aceitação por parte da sociedade da “necessidade científica” de
intervir nas práticas de cura populares.
Enquanto diretor da Tamarineira, Ulysses organizou o serviço de rotina,
estatística, divulgação e serviço social do hospital. Elaborou inúmeros inquéritos
sociais, instalou uma biblioteca especializada, abriu um museu de higiene mental,
publicou um boletim informativo200 e organizou quatro cursos: Psicologia, em 1932;
Neuropsiquiatria Infantil, em 1933; Higiene Mental, em 1934; e, por fim, um curso
oficial de Higiene Mental na Faculdade de Medicina, em 1935201.
Enquanto administrador/educador, em 1923, na direção do Ensino Normal
em Pernambuco, Ulysses Pernambucano, ao efetuar a reforma deste, tomou
várias iniciativas de interesse “psicohigiênico”, modificando desde a disposição
dos alunos nas classes até o sistema de promoções nos cursos202. Criou, também,
um serviço de visitadoras203 escolares204. Nesse mesmo ano, propôs a criação de
uma escola para crianças excepcionais (crianças anormais). Para matrícula na
Escola Normal Oficial e nos Estabelecimentos equiparados, foi substituída a
certidão de idade cronológica pela comprovação de uma idade mental mínima de
13 anos205.
É importante salientar que as reformas implementadas por Ulysses estavam
em consonância com as transformações ocorridas no âmbito nacional. A partir de
1930, uma série de mecanismos foi acionada, reformulando e ampliando as
200 Boletim de Higiene Mental. 201 COELHO FILHO, H. op. cit., 1983. 202 O que significava que o aluno passaria de um grau para outro (ano letivo) de acordo com a sua “capacidade mental” medida por “testes psicológicos”. 203 As visitadoras eram técnicas em pedagogia que faziam visitas regulares às famílias dos alunos para avaliar o ambiente familiar do mesmo. 204 LUCENA, J. História de Pernambuco como Pioneiro na América Latina, no campo da saúde mental. Neurobiologia, Recife, v. 38, n.3, p. 233-48, jul./set. 1975. 205 MEDEIROS, J. A. de. op. cit., 1992. pp. 15-18.
organizações estaduais de saúde, intensificando as ações do Governo Federal no
combate às epidemias e grandes endemias. Em 1930, as atividades de saúde de
responsabilidade federal passaram do âmbito do Ministério da Justiça e Negócios
Interiores ao recém-criado Ministério da Educação e Saúde. Em 1934, após
remodelação do Departamento Nacional de Saúde Pública, a Assistência a
Psicopatas, de responsabilidade do Governo Federal, até então limitada ao Distrito
Federal, foi incluída como serviço especializado da então chamada Diretoria
Nacional de Saúde e Assistência Médico-Social. Finalmente, em 1937, foi criada a
Divisão de Assistência a Psicopatas pela lei que reformulou o Ministério da
Educação e Saúde, instituindo o Departamento Nacional de Saúde206.
Como assinala Jurandir Freire, o Brasil Novo deveria corresponder às
expectativas do novo homem, composto e construído em sua figuração abstrata a
partir das necessidades reais dos indivíduos. Em nome desses indivíduos, a
antiga sociedade deveria ser demolida para dar lugar a uma outra, capaz de
corresponder às novas expectativas207.
Com base nessa reforma, a psiquiatria da década de 30, em Pernambuco,
modifica sua terapêutica. Relega a segundo plano a idéia de se confinar o louco
num lugar onde o mesmo, segregado da família e isolado da sociedade, pudesse,
sem perigo para os outros e para ele próprio, terminar os seus dias de existência.
O que naquele momento se objetivava era o ideal de proporcionar ao louco
ambiente adequado à recuperação da saúde mental e à reintegração social. A
prevenção das doenças mentais, o estudo e a determinação das suas causas
passaram a ser considerados como interesse dos psiquiatras.
A reforma empreendida por Ulysses, no campo da alienação mental, se
opunha às práticas médicas então dominantes. Os hospitais deviam perder o ar de
cárcere, as portas deveriam ser abertas e os meios físicos de contenção, abolidos.
É o fim dos calabouços, das camisas-de-força, dos confinamentos ou prisões208.
206 SINGER, P. et. al. Prevenir e Curar: o controle social através dos serviços de saúde. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. 207 COSTA, J. F. História da Psiquiatria no Brasil: Um Corte Ideológico. Rio de Janeiro: Documentário, 1976. p. 71. 208 VALENTE, W. Mestre de Fisiologia Nervosa e Fundador da Escola de Psiquiatria do Recife. In: Ciclos de Estudos sobre Ulysses Pernambucano. Recife: Academia Pernambucana de Medicina, 1978.
Tratava-se do regime de “Open-door”, preconizado por Clifford Beers e divulgado
mundialmente através do seu livro “Um Espírito que se Achou a si Mesmo209”.
Neste período, Ulysses aglutinou em torno de si um grupo de discípulos e
formou a “Escola Psiquiátrica de Pernambuco”210. As características dessa escola
foram pontuadas, em artigo, por José Lucena. Neste, o autor ressalta a
preocupação interdisciplinar do psiquiatra. Seus estudos foram marcados pelo
caráter local, regional e nacional. Os trabalhos da Escola foram realizados através
da utilização de meios e recursos psiquiátricos, e as disciplinas neurobiológicas
eram tão importantes quanto as técnicas psicológicas ou as ciências sociais211.
Como assinala Roberto Machado, o discurso médico de ordenação do espaço
hospitalar propõe uma dupla transformação do hospital: este deve ser uma “casa
de saúde”, isto é, lugar de cura e, ao mesmo tempo, um local de aprendizado e
produção do saber médico212.
Uma idéia presente nas concepções dos precursores do alienismo no Brasil
era a de que toda loucura teria uma matriz orgânica, que se transmitiria às
gerações seguintes pelos mecanismos de hereditariedade; a ele é acrescentado
novo elemento constituído pela possibilidade de uma origem social da loucura,
através dos “venenos” e “perigos sociais” capazes de deflagrar as manifestações
das patologias mentais. O alcoolismo, a pobreza, a ignorância, a má alimentação,
as práticas do baixo espiritismo, começam a ser vistos como possíveis
responsáveis da loucura que atinge a massa de trabalhadores urbanos e rurais213.
Inspirado por essas idéias, o grupo de Ulysses inicia, em 1932, os estudos
sobre as religiões afro-brasileiras, o espiritismo e as seitas panteístas dos negros,
diferentes formas religiosas que tinham como denominador comum a
possessão214.
209 CERQUEIRA, L. Raízes e Tendências da Psiquiatria Brasileira. Neurobiologia, Recife, n.41, p. 77-94, 1978. Suplemento. 210 COELHO FILHO, H. op. cit., 1983. 211 LUCENA, J. op. cit., 1978. 212 MACHADO, R. et al. op. cit., 1978. p. 285. 213 CUNHA, M.C. P. O Espelho do Mundo: Junquery, a história de um asilo. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. 214 LUCENA, J. op. cit., 1978.
Para Beatriz Góes Dantas215, não é um dado fortuito o interesse do Serviço
de Higiene Mental em estudar religiões centradas no transe, haja vista uma das
preocupações de Ulysses ser a face social da psiquiatria. Ele procurava relacionar
os fatores biológicos aos sociais, como condições de vida, influências de raça,
religiões, fetichismo, entre outros, na produção da doença. Acreditava que esses
fenômenos, uma vez compreendidos cientificamente e “controlados”,
solucionariam os problemas de higiene mental.
O “meio social” passa, assim, a se constituir em objeto de análise para a
medicina mental, que nele identifica o perigo que ameaçava de perto as camadas
pobres da sociedade. Essa preocupação é dirigida ao contexto social, sendo a
eugenia marco teórico estratégico nesse período216. Neste sentido, a religião dos
negros, que tinha como característica a possessão, ameaçava as práticas de
higienização social que esses intelectuais tentavam implementar.
Convém lembrar que, tendo as idéias de Nina Rodrigues como mote, a
possessão era interpretada como uma síndrome patológica, sendo, então,
passível de interferência médica. Nina Rodrigues é considerado o iniciador dos
estudos científicos sobre o negro no Brasil. E como se espera de um discípulo de
Comte e Tylor, o racismo de Nina Rodrigues possui caráter evolucionista. Os
africanos se encontrariam em estágio inferior de desenvolvimento, impossível de
superar o ciclo histórico em curto prazo; era afirmado que o monoteísmo situava-
se além da compreensão dos negros, e mesmo dos mulatos, os mais inteligentes,
que, no máximo, atingiriam os limites do politeísmo217.
Médico-legista, a preocupação de Arthur Ramos com o negro e sua religião
insere-se num quadro de referência mais amplo que é pensar a sociedade
brasileira, dar-lhe uma certa ordenação e orientar, a partir de pressupostos
científicos, práticas de controle social218. Para Mariza Corrêa, a retórica utilizada
pelos discípulos de Nina, para validar seu resgate intelectual, na década de trinta,
215 DANTAS, B. G. Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988. 216 CUNHA, M. C. P. op. cit., 1986. 217 MOTTA, R. De Nina Rodrigues a Gilberto Freyre: estudos afro-brasileiros – 1896-1934. Revista do Arquivo Público, Recife, v. 31-32, n.33-34, p. 50-59. 1977-1978. 218 DANTAS, B. G. op. cit., 1988.
apoiava-se na ênfase do estudo da realidade nacional que eles redescobrem em
suas pesquisas219. É importante acrescentar, como lembra a autora:
“O racismo de Nina Rodrigues (...) era partilhado por quase todos os intelectuais importantes de sua geração, os quais não só citavam os mesmo autores – de Buckle a Gobineau – como, colocavam a questão racial nos mesmos termos.(...) A tônica de suas manifestações era a analogia que esses intelectuais estabeleciam entre raça e nacionalidade e a definição de nosso povo como uma população de mestiços220.”
Ao se interessar sobretudo por aspectos patológicos da mestiçagem, Nina
Rodrigues estava convencido da inferioridade dessa raça, tida como produto da
desigualdade do desenvolvimento filogenético221 da humanidade:
“O critério científico da inferioridade da raça negra nada tem de comum com a revoltante exploração que dele fizeram os interesses escravistas (...) Para a ciência não é esta inferioridade mais do que um fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas divisões ou seções.(...) Se a ciência não pode, pois, deixar de levar em conta, como fator sociológico, os prejuízos de castas e raças, em compensação nunca poderão estes influir nos seus juízos222.”
Para Nina Rodrigues, a possessão é o núcleo central irredutível da
degenerescência da verdadeira religião entre os negros. Possessão ou estado de
santo era interpretado como histeria, portanto, um estado patológico. Assim, a
tentativa de controle do comportamento dos negros, particularmente da sua
219 CORRÊA, M. op. cit., 1982. p. 03. 220 Idem Ibdem. p. 37. 221 Termo biológico que designa a história genealógica e o desenvolvimento evolucionário de uma espécie ou grupo. CAMPBELL, R. J. Desenvolvimento Filogenético. In: CAMPBELL, R. J. Dicionário de Psiquiatria. São Paulo: Martins Fontes, 1986. p. 257. 222 NINA RODRIGUES, R. Os Africanos no Brasil. 7. ed. São Paulo: Editora Nacional; [ Brasília] : Ed. Universidade de Brasília, 1988. p. 05.
religião, seria um caso médico-psiquiátrico. Essa psiquiatria tinha base organicista,
em que a histeria era vista como resultado de lesões orgânicas223.
A interpretação da possessão pela via psiquiátrica foi revista por Arthur
Ramos. Discordando da interpretação de Nina Rodrigues, que a entendia como
histeria, amplia a explicação, para considerá-la como um fenômeno muito
complexo, ligado a vários estados mórbidos:
“A possessão espírito-fetichista é um fenômeno muito complexo, ligado a vários estados mórbidos. Pode ser aguda ou crônica. No primeiro caso,(...) temos aqueles processos, afins da histeria, onde se verificam os mecanismos motores de reação ancestral: ‘tempestade de movimento’ e ‘reflexo de imobilização’, e formas hipnóticas de pensamento, mágico-catatímicas, comuns da histeria, de estados sonambúlicos, hipnóticos, oníricos, esquizofrênicos, com modificações da consciência e da personalidade.
Nos casos sub agudos e crônicos, as perturbações demonopáticas e mediumnopáticas dos processos, acham-se ligadas ao automatismo mental, e vão desde fenômenos xenopáticos simples, até os delírios mais complexos, a base de influência224.”
Concordava, assim, com a idéia central do mestre: a possessão era
fenômeno patológico. Se o negro não é visto como uma raça inferior, é analisado
como possuidor de uma cultura atrasada de que deve ser lentamente libertado.
Em O Negro Brasileiro, Ramos acredita que o Brasil vive ainda em pleno
domínio mágico, impermeável. Por isso é importante conhecer as religiões,
colocadas nos bastidores do inconsciente coletivo225, pois em todas as classes
sociais o feiticeiro tem um prestígio imenso. Admite que não somos capazes de
223 DANTAS, B. G. op. cit., 1988. 224 RAMOS, A. O Negro Brasileiro: Etnografia Religiosa e Psicanálise. Recife: FUNDAJ, editora Massangana, 1988. (fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1934). p. 198 225 Jung chama de “inconsciente coletivo” todos aqueles conteúdos psíquicos que não são peculiares a um só indivíduo, mas a muitos simultaneamente. Tais conteúdos são as “idéias coletivas místicas” do homem primitivo descritas por Lévy-Bruhl. CAMPBELL, R. Inconsciente Coletivo . In: CAMPBELL, R. op. cit., 1986. p. 109.
compreender a psique coletiva do brasileiro. Com o estudo das formas atrasadas
de suas religiões, consegue-se apenas descobrir uma ponta do véu226.
Arthur Ramos empregava a teoria da mentalidade pré-lógica do primitivo de
Lèvy-Brhul227 e a psicanálise freudiana228. Na aplicação da teoria psicanalítica
para interpretação da vida religiosa, Ramos deixou de lado o princípio de uma
semelhança fundamental na humanidade, e esse princípio é básico na
interpretação freudiana. Se considerarmos a interpretação de Jung, a deformação
de Ramos é ainda mais nítida; se, para Jung, o inconsciente coletivo é a parte
mais profunda e mais rica de nossa vida mental, Arthur Ramos o considera quase
como deficiência229.
Ramos acreditava que a junção da psicanálise com o método histórico-
cultural seria a chave para a compreensão científica das relações interétnicas no
Brasil. Para Dante Moreira Leite, esse programa destinado a desvendar o nosso
inconsciente coletivo, bem como o conceito de “verdadeira cultura”, mostra como
ele deformou as duas teorias que pretendeu empregar. Jung supunha a existência
de diferenças no inconsciente de várias nações. Quanto mais descermos na vida
inconsciente, mais elementos comuns vamos encontrar. Para Jung, não se
caminha para o inconsciente coletivo para eliminá-lo, mas para incorporá-lo e
aceitá-lo. Arthur Ramos pensa em conhecê-lo para superá-lo. A contradição maior
está na tentativa de superar o estágio de religião primitiva. Freud considerava as
religiões como ilusão, mas não distinguia uma religião mais ilusória do que outra.
Nesse sentido, Ramos confunde a Psicanálise como método de cura e como
interpretação da cultura; por isso, apresenta-a como forma de curar o inconsciente
do brasileiro, supostamente mais primitivo que o de outros povos230.
226 MOREIRA LEITE, D. O Caráter Nacional Brasileiro. 4. ed. São Paulo: Pioneira, 1983. 227 Para Lévy-Bruhl, a mentalidade primitiva é dominada por representações coletivas que são alógicas no sentido em que tipicamente não consideram distinções de tempo, lugar, estado e ser. Lévy-Bruhl tentou mostrar que todas as sociedades possuem representações coletivas; os primitivos também as possuem, só que as suas tendem a ser mestiças e as nossas, críticas e científicas. Cf. EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia Social da Religião. Rio de Janeiro: Campus, 1978. 228 MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Ática, 1988. 229 MOREIRA LEITE, D. op. cit., 1983. 230 Idem Ibdem.
Ao declarar que seu objetivo é reinterpretar a obra do mestre, descartando-
a dos equívocos da interpretação pela raça, e propondo sua substituição pelo
conceito de cultura, não consegue ultrapassar a visão evolucionista que marcará
toda a sua obra. Desse modo, ao se propor esconjurar a interpretação da
sociedade pela raça, Arthur Ramos termina deixando filtrar seu racismo ao
escalonar os negros segundo graus de inteligência que aparecem associados a
caracteres físicos231.
Se Nina Rodrigues fazia decorrer tal anormalidade da raça, Arthur Ramos a
tirava do exclusivo domínio da biologia, para vê-la como uma predisposição que
poderia desenvolver-se ou evoluir sob o influxo de estímulos sócioculturais232.
Enquanto Nina Rodrigues discute a raça, Arthur Ramos discute a cultura, mas os
dois concluem que o negro, por ser negro, ainda não pode acompanhar a
civilização, e mais, arrastou o branco brasileiro para o primitivismo233. Portanto,
Ramos não elabora uma ruptura conceitual. Apenas troca o termo “raça” pelo de
“cultura”, atrinbuindo a este o mesmo significado.
As idéias racistas se encontram claramente defendidas nos artigos escritos
por Ulysses, seu grupo e também por colaboradores de outros Estados que
enviavam os resultados de suas pesquisas para serem publicados pela Diretoria
do Serviço de Higiene Mental na revista denominada Arquivos da Assistência a
Psicopatas.
A produção acadêmica de Ulysses, na revista, é diversificada. Realizou
investigações sobre as doenças mentais entre os negros de Pernambuco, sobre a
paralisia geral e sobre as diferenças de incidências das doenças, conforme a
classe social. Ainda publicou uma série de artigos sobre a estrutura e o
funcionamento da Assistência a Psicopatas de Pernambuco e a questão da
modernização do sistema de saúde pública de Pernambuco.
A Arquivos da Assistência a Psicopatas consistia em uma publicação
semestral, editado pela diretoria do Serviço de Higiene Mental de Pernambuco;
tendo seu primeiro número sido publicado em outubro de 1931, vai até 1936.
231 DANTAS, B. G. op. cit., 1988. p. 157. 232 Idem Ibdem. p. 171. 233 MOREIRA LEITE, D. op. cit., 1983 .
Desses artigos, três se referem à organização e às realizações do Serviço de
Higiene Mental, sete versam sobre negro, religião e raça e suas implicações com
a doença mental; os outros, abordam questões estatísticas sobre esquizofrenia,
paralisia geral, delírios episódicos, variações de comportamento em relação às
mudanças meteorológicas e as modificações de incidência de doenças mentais,
conforme a curva etária, entre outros estudos acerca das patologias mentais
comumente encontradas no seio da população pobre nordestina.
Ao se propor a dar continuidade, no Recife, à obra de Nina Rodrigues, já
reiniciada na Bahia por Arthur Ramos, Ulysses empreendeu, juntamente com
Helena Campos234, uma pesquisa sobre as doenças mentais entre os negros de
Pernambuco235. Iniciam o trabalho afirmando que a estatística deveria ser a base
de qualquer ação que se pretenda organizar em psiquiatria. O grande problema
era se propor um acordo sobre a classificação das doenças mentais no mundo. O
Brasil já dispunha de uma classificação única, fornecida pela Sociedade Brasileira
de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal, porém, a dificuldade do uso da
estatística no país residia na omissão das raças que povoam o país.
Com essa pesquisa, pretendiam apurar se as doenças mentais entre
indivíduos negros são tão freqüentes quanto nas outras raças. Também queriam
saber quais e em que proporções são encontradas as diferentes doenças mentais
nos negros internados no Hospital de Alienados. Nesse sentido, partem do
pressuposto de que a situação social dos negros em Pernambuco é perfeitamente
compatível com a da população pobre de outras raças, em que se recruta a
maioria dos internados no Hospital.
Concluem o trabalho afirmando que a freqüência de doenças mentais é
maior entre os negros. Afirmam que os fatores sociais que podem influir na
gênese e eclosão das psicopatias não explicam a maior morbidade entre negros:
“Os negros são mais atacados pelos agentes tóxicos e infecciosos (alcoolismo e
delírios infecciosos) que parecem encontrar cérebros menos resistentes236.”
234 Monitora do Serviço de Higiene Mental. 235 PERNAMBUCANO, U.; CAMPOS, H. As Doenças Mentais entre os Negros de Pernambuco. Arquivos da Assistência a Psicopatas, Recife, v.2, n.1, p.120-127, abr. 1932. 236 Idem Ibdem. p. 127.
Em 1935, três anos após a publicação desse artigo, Ulysses Pernambucano
escreve, em conjunto com seus colaboradores237, um artigo238 cujo objetivo é
verificar a percentagem de brancos, negros e mestiços na população do Estado de
Pernambuco. Propõem que, tão interessante quanto estudar a saúde mental dos
negros, seria uma pesquisa que se propusesse a estudar a doença mental entre
os mestiços.
Aqui o discurso matemático, a partir de amostragens estatísticas, aparece
no texto como uma imagem de credibilidade. Os números aparentam ser neutros,
e a estatística parece provar tudo. Porém, percebemos, em ambos os textos, que
não há nenhuma segurança quanto a esses números, inclusive apresentando
fontes diversas. A utilização da estatística tem como pretexto confirmar o
preconceito racial, sendo os indivíduos de raça negra portadores de “cérebros
menos resistentes”. Desse modo, percebemos que as teorias de caráter racista,
propagadas por Nina Rodrigues, são reiteradas nos artigos de Ulysses
Pernambucano e seus discípulos.
Estas pesquisas procuraram verificar a incidência e a prevalência de
diversos tipos de doenças e sua distribuição “racial”. Os resultados a que
chegaram apontavam a predominância entre os negros e mestiços, das doenças
mentais de origem toxinfecciosa (sífilis, alcoolismo, toxicomanias em geral), que
corroboravam a idéia de serem, os negros, raças inferiores, portanto, causadoras
dos principais males que circundavam as populações pobres nordestinas.
Além desses dois trabalhos publicados por Ulysses em Arquivos, mais dois
tratam especificamente da questão do negro. Um, de autoria de Gonçalves de
Mello Neto239, em que o autor trabalha a influência da língua africana no Brasil.
Cita os trabalhos de Nina Rodrigues sobre o assunto no sentido de legitimar a sua
importância e, como o mestre, tenta também um rápido esboço histórico da
lingüística da África. A razão do estudo são os trabalhos sobre o negro feitos pelo
237 Arnaldo Di Lascio (interno do Hospital de Alienados), Jarbas Pernambucano e Almir Guimarães (da Liga de Higiene Mental de Pernambuco). 238 PERNAMBUCANO, U. et. al. Alguns dados antropológicos sobre a população do Recife. Arquivos da Assistência a Psicopatas, Recife, v.5, n.1 e 2, p. 40-45, 1 º e 2º semestre. 1935. 239 MELLO NETO, G. Do Negro. Arquivos da Assistência a Psicopatas, Recife, v. 3, n.2, p.177-187, 2º semestre. 1933.
Serviço de Higiene Mental. Faz uma rápida referência aos tipos étnicos existentes
na África. E chega à seguinte conclusão: “Apesar de ter convivido mais com o
elemento branco do que o índio, o vocabulário que (o negro) nos legou é menor do
que o que deixou o selvagem240.”
No outro artigo, de autoria de Alvaro Ferraz241, o autor ressalta a árdua
tarefa de estudar, sob qualquer aspecto, o habitante do Brasil, misto de português,
índio e negro:
" Perquirir na morfologia individual do brasileiro as influências raciais num caldeamento tão complexo é problema a desafiar a argúcia e a paciência de antropologistas eruditos242."
Para operacionalizar sua pesquisa, separou seu material humano de acordo
com a classificação de Roquette Pinto243: Leucodermos (brancos), Melanodermos
(negros), Faiodermos (brancos X negros), Xantodermos (brancos X índios). Para
diagnóstico do tipo racial, afirmou ter sido guiado pelo "bom senso", tendo por
ponto de reparo a cor da pele e a qualidade dos cabelos. Segundo Álvaro Ferraz,
o mestiço, produto da união do branco com o negro, não forma verdadeiramente
uma raça, mas sim um grupo étnico variável e transitório, com tendência a
regressar para uma das raças iniciais do cruzamento, concordando, nesse caso,
com as idéias de Oliveira Viana244: o Brasil será, no futuro, um país de gente
branca245.
Essa preocupação de explicar o possível branqueamento da raça brasileira,
em curto prazo, ou seja, interpretando a miscigenação como fenômeno transitório,
é expressa no texto diante de sua perplexidade em face do reavivamento das
raças superiores e inferiores e, portanto, da mestiçagem, diante da orientação que
tomou a política racista da Alemanha de Hitler246.
240 Idem Ibdem. p. 184. 241 FERRAZ, A. Raça e Constituição Individual. Arquivos da Assistência a Psicopatas, Recife, v.5, n.1, p. 189-195, 2º semestre. 1935. Álvaro Ferraz era ligado ao Serviço Social da Brigada Militar do Estado de Pernambuco. 242 Idem Ibdem. p. 189. 243 Cf. ROQUETTE-PINTO, E. Ensaios de Antropologia Brasileira. São Paulo: Editoras Nacional.s/d. 244 VIANNA, O. Evolução do Povo Brasileiro. São Paulo: Editora Nacional, 1938. 245 Idem Ibdem. 246 FERRAZ, A. op. cit., 1935.
Assim, esses trabalhos se caracterizam principalmente por procurarem ver
o negro como um ser biologicamente situado à margem da sociedade de então. A
idéia de Oliveira Vianna de que a miscigenação, cada vez mais estreita com
elementos de “raça” branca, era vista como a grande esperança para o futuro do
Brasil, estava presente nos discursos desses intelectuais.
Dentre os outros trabalhos publicados pelos colaboradores de Ulysses em
Arquivos da Assistência, quatro são referentes às “práticas de baixo espiritismo” e
a sua relação direta com a incidência da doença mental.
Em Investigação sobre as religiões no Recife: O Espiritismo247, Cavalcanti
Borges248 e Dinice Lima249 objetivam estudar, com "imparcialidade e sem
prevenções", as práticas espíritas prejudiciais à saúde mental. Citam Nina
Rodrigues, afirmando que suas observações são similares ao que este autor
encontrou na Bahia.
Iniciam o texto afirmando ser a prática do baixo espiritismo um problema
policial e sanitário devido ao seu rápido alastramento nas camadas baixas. As
práticas são tomadas como rendoso meio de vida dos aproveitadores dos pobres.
O tipo de fenômeno mediúnico utilizado é classificado como auto-sugestão250, com
liberação do automatismo subconsciente251 acompanhado, quase sempre, de
manifestações pitiáticas252. Para os autores, são poucos os que praticam
“verdadeira” religião, uma vez que a maioria não passa de reuniões para a prática
ilegal da medicina. Os centros que reúnem em suas sessões indivíduos de grande
247 BORGES, C.; LIMA, D. Investigações sobre as religiões no Recife: o espiritismo. Arquivos da Assistência a Psicopatas, Recife, v.2, n.1, p. 138-145, abr. 1932. 248 Ex-auxiliar técnico do Serviço de Higiene Mental. Interno do Hospital de alienados. 249 Monitora do Serviço de Higiene Mental. 250 Quando a sugestão parte do próprio sujeito. CAMPBELL, R. J. auto -sugestão. In. CAMPBELL, R. J. op. cit., 1986. p. 70. 251 Condição em que a atividade é executada sem conhecimento consciente por parte do sujeito. Ações e falas automáticas são observadas de maneira clara na forma catatônica de esquizofrenia, na qual a repetição incessante pode predominar sem que o paciente tenha consciência disso. CAMPBELL, R. J. automatismo subconsciente. In: CAMPBELL, R. J. op. cit., 1986. p. 67. 252 Afecção caracterizada por perturbações provocadas por sugestão e que, por isso, pode ser igualmente curada por sugestão. Essa noção corresponde a um conceito particular e fragmentário da histeria. PIERON, H. manifestações pitiáticas. In: PIERON, H. op. cit., 1976. V. II . p. 333.
sugestibilidade, mitomaníacos253 e pitiáticos254, são os que maiores males causam,
agravando o estado patológico dos indivíduos.
O fenômeno da mediunidade tal qual os adeptos descrevem também é
cuidadosamente narrado. Para eles, os médiuns nunca transmitem conhecimentos
acima de sua capacidade enquanto pessoas comuns. Os centros são o refúgio de
pessoas ignorantes que procuram neles alívio para seus males, núcleos onde
pequenos psicopatas encontram ambiente propício para suas tendências
mórbidas, todas curáveis pelas medidas habituais de isolamento, balneoterapia
morna e tônicos. Muitas reincidem porque voltam à prática responsável.
Existe uma preocupação por parte dos autores com o sincretismo entre
católicos e espíritas em Pernambuco, não existindo praticamente estes em estado
puro. Não é de estranhar essa busca por práticas religiosas tradicionais, já que o
aporte teórico utilizado por esses autores era o propagado por Nina Rodrigues que
tomava a “tradição” africana de origem Nagô como sendo culturalmente superior,
tratando-se, portanto, da “verdadeira e pura” religião dos negros. Neste caso, o
sincretismo com outras formas de religiosidade só viria a degradar, ainda mais, o
estágio mental e cultural em que as populações pobres e mestiças
pernambucanas se encontravam.
O artigo publicado por Pedro Cavalcanti255, auxiliar técnico do Serviço de
Higiene Mental, se propõe a apresentar, como documento para estudo, notas
sobre a seita “Círculo Deus é Verdade (adoração aos planetas)” que se originou
de um certo Bento Milagroso, profeta e curandeiro de sucesso no Recife, em
1915. Classifica a seita de panteísta devido à grande mistura de religiões.
A primeira preocupação do autor é caracterizar a localidade de Beberibe,
onde a seita tem um templo, como tendente ao misticismo popular, já que se trata
de um arrabalde com grande número de centros espíritas. Anuncia que pretende
colher material sobre seitas africanas para futura análise, de acordo com os
estudos de Nina Rodrigues. Lembra o interesse do Serviço de Higiene Mental 253 Interesse mórbido por mitos e propensão para contar estórias e mentiras incríveis, observada, por vezes, em pacientes psiquiátricos. CAMPBELL, R. J. mitomaníacos. In: CAMPBELL, R. J. op. cit., 1986. p. 586. 254 Vide nota 145. 255 CAVALCANTI, P. Investigações sobre as religiões no Recife: uma seita panteísta. Arquivos da Assistência a Psicopatas, Recife, v.3, n.1, p.58-68, abr. 1933.
pelas religiões inferiores no Recife, pois estas desenvolvem anormalmente a
cultura do subconsciente256, criam manifestações mórbidas do automatismo
psicológico de “Janet”257. Este automatismo, desregradamente alimentado, pode
chegar a manifestações mórbidas mais graves. Afirma o autor:
“A massa, reflexo servil do ‘condutor’ ou do profeta, pode chegar a grandes manifestações de misticismo (Juazeiro do Pe. Cícero)ou a reações anti -sociais (Canudos – Antônio Conselheiro) em um caso como no outro a Higiene Mental tem de estar alerta. Os delírios devem ser prevenidos. A repressão, depois de desencadeado o fenômeno, é ‘negócio de polícia’ mas em nosso país, é muitas vezes ‘negócio de política258”.
Para Pedro Cavalcanti, conhecer essas religiões é ter indicação segura
sobre probabilidades de verdadeiras epidemias que povoam os asilos.
Acompanhar essas manifestações é ficar armado de elementos para uma
intervenção profilática em momento oportuno.
Em 1934, Cavalcanti, já na condição de Assistente da Assistência a
Psicopatas do Serviço, publica outro artigo, denominado “Contribuição ao Estudo
do Estado Mental dos Médiuns”259. Inicia afirmando que Ulysses Pernambucano
contava na sua prática com inúmeras observações de episódios delirantes,
deflagrados devido à prática perniciosa de “comunicação com o além”. Foi assim
que incentivou seus auxiliares nesse estudo.
Nesse artigo, pesquisou a idade mental dos médiuns, empregando a
escala Binet-Simon-Terman260. A determinação do perfil psicológico foi feita com o
256 Termo usado nos fins do século XIX para explicar os chamados fenômenos de “desdobramento de personalidade”. Faz parte das noções fundamentais do pensamento do francês Pierre Janet. LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J. B. cultura do subconsciente. In: LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J. B. Vocabulário de Psicanálise. 9.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1986. pp. 636-37. 257 O automatismo psicológico de Janet corresponde à atividade reprodutora, oposta a atividade criadora. Se situa do lado oposto da vontade. A desagregação do espírito pode ter o mesmo aspecto clínico, enquanto as causas são diferentes. DORON, R. & PAROT, F. automatismo psicológico de Janet. In: DORON, R. & PAROT, F. Dicionário de Psicologia. São Paulo: Ática, 1998. pp. 101-102. 258 Idem Ibde m. p. 68. 259 Idem Ibdem. 260 Conceito definido na nota 52.
método de Rossolimo261, sujeito a uma redução empreendida pelo instituto de
psicologia, chegando à seguinte conclusão:
"...se trata de gente de profissão humilde (engomadeira, costureira, operários, etc.) cuja instrução vai de analfabetos, primária e rudimentar. As condições financeiras são sempre más o que faz supor que alguns encontram na mediunidade lucros pecuniários262."
Segundo suas observações, muitos médiuns se dedicam ao curandeirismo,
que é crime previsto pelo código penal (art.157), e a repressão policial não parece
resolver o problema. Portanto, é uma atividade que merece sério estudo. Diante
de tal afirmação, o autor se preocupa em corroborar a sua análise citando os
trabalhos já realizados por Arthur Ramos, Murilo Campos e Leonildo Ribeiro sobre
o assunto263.
Uma vista sobre os QQII264 dos observados mostra que, com exceção de
um, todos estão abaixo da fronteira inferior da normalidade. Segundo Terman, a
debilidade ligeira, média e forte teria o seu Q.I.265 entre 50 e 70, e é entre esses
números que se encontra a maioria dos médiuns. Apenas um é igual a 26, que
corresponde à imbecilidade, e um único sobrepassa os limites da debilidade, o
que leva a conclusão de que esse indivíduo “psicologicamente normal” é um
interesseiro. Seus perfis em muito se assemelham, sendo do tipo hipotônico-
demente266, o mais encontrado entre os atrasados profundos e também mais
freqüente entre os médiuns. Verificou quedas acentuadas na vontade, no
julgamento, no poder de combinação e na imaginação.
261 Conceito definido na nota 54. 262 CAVALCANTI, P. op. cit., 1933. pp.136-137. 263 Os artigos são: RAMOS, A. O Problema Psicológico do Curandeirismo. In: Brasil – Médico. Rio de Janeiro. n. 42, 1931 e RIBEIRO, L.; CAMPOS, M. de. O Espiritismo no Brasil. Rio de Janeiro, 1931. 264 Quocientes Intelectuais. 265 Quociente Intelectual. 266 Redução ou perda de aptidões intelectuais em conseqüência de deterioração orgânica do funcionamento do tecido cerebral, em tal grau que o funcionamento social ou profissional é seriamente prejudicado. A característica central é a perda da memória. Outros efeitos são a perda do controle dos impulsos, julgamento deteriorado e mudança da personalidade, com acentuação ou alteração de traços da personalidade pré-mórbida. CAMPBELL, R. J. Hipotônico-demente. In: CAMPBELL, R. J. op. cit., 1986. p. 154.
Pedro Cavalcanti conclui a primeira parte da análise afirmando que pode
aproximar a maioria dos médiuns observados ao pitiatismo267, à debilidade
mental268 e ao automatismo mental. Também se podem atribuir a alguns sintomas
de histeria.
Para ele, grande parte da população inculta do Recife vive a admirar e
acreditar nas manifestações desses psicopatas. De tudo, resulta a necessidade
premente de a higiene mental agir no sentido de evitar esses males. Termina o
texto afirmando que os técnicos do SHM já iniciaram as visitas e a fiscalização dos
centros espíritas. Não acredita no êxito da repressão policial. Como vítimas, maior
prestígio desfrutarão entre os adeptos. A intervenção da polícia dever-se-á fazer
sentir em último caso e a pedido do Serviço de Higiene Mental, fracassados os
conselhos de educação necessários269.
Por fim, o artigo de Gonçalves Fernandes270, Investigação sobre os cultos
negro-fetichistas do Recife271, exalta a preocupação e a dificuldade de localizar os
locais de prática do baixo espiritismo devido à repressão policial. Para o autor, não
se encontra no Recife um só culto negro-fetichista puro; são sincretizados com
imagens de santos católicos e influência espírita. Da pressão da polícia resultou a
camuflagem em sociedades carnavalescas e centros espíritas. O autor também se
preocupa com a "corrução" do culto através do tempo. E faz uma análise,
afirmando:
“A ingestão de bebidas diversas, infusões e decoctos de ervas, entre outras a maconha, pode favorecer a eclosão da síndrome. Afora as formas e processos ligados a histeria e estados diversos
267 Conceito definido na nota 145. 268 O conceito de debilidade mental é claramente definido pelo autor; baseia-se em dois critérios: um social e outro científico. No primeiro há deficiência da inteligência nas suas três modalidades: compreensão, criação e crítica. O conceito científico define a existência da debilidade mental em função do rendimento que o indivíduo proporciona ante uma classe especial de “provas” mentais de inteligência, previamente ensaiada da medida do desenvolvimento da inteligência. Os autores, de uma maneira geral, adotam os dois critérios para o diagnóstico da debilidade mental. 269 CAVALCANTI, P. op. cit., 1934. 270 Ex-auxiliar técnico do Serviço de Higiene Mental e Assistência a Psicopatas e Alienista da Colônia Juliano Moreira do Estado da Paraíba. 271 FERNANDES, G. Investigação sobre os cultos negro-fetichistas do Recife.Arquivos da Assistência a Psicopatas, Recife, v.5, n.1 e 2, p. 87-135, 1º e 2º semestres. 1935.
de modificação da personalidade, suficientes para justifica-la272.”
Faz referência ao trabalho de Charcot273, asseverando que era fácil, à
primeira vista, reconhecer que a histeria e a histero-epilepsia, definidas por este
autor, tinham ali papel predominante. Cita Nina Rodrigues: a possessão não é
mais que estado de sonambulismo provocado, com desdobramento e substituição
da personalidade274. Sobre a crise aguda da possessão, utiliza o conceito de
Arthur Ramos: desempenharia papel dinamogênico de um complexo capaz de
provocar a crise , ou seja, a possessão espírito-fetichista é um fenômeno muito
complexo, ligado a vários estados mórbidos275. Para Fernandes, só um trabalho
contínuo e persistente de educação poderia fazer desaparecer essa entidade - o
homem-medicina - que a violência policial jamais conseguiu reprimir.
Estes textos repetem insistentemente o caráter de imparcialidade ou
neutralidade por parte dos cientistas, através dos quais são elaborados. Dito de
outro modo, é a neutralidade em relação ao “objeto" de estudo que o discurso
pretende que faça parte da sua imagem, de forma que não possa ser questionado.
É nesse sentido que realiza a sua função de detentor do conhecimento. É o
“discurso competente”, instituído e autorizado segundo os cânones da esfera da
própria competência276.
Esse discurso competente também se firma em repetidas citações de
autores renomados neste tipo de saber (mais particularmente Nina Rodrigues e
Arthur Ramos); remetendo seus dizeres à qualificação e ao respeito ostentados
por estes, participam assim da reprodução do saber propagado pelos outros.
272 Idem. Ibdem. p. 132. 273 Charcot (1825-1888) é considerado o reformador da Escola de Salpetrière. Ficou famoso por ter desenvolvido a medicina em vários sentidos. Foi quem primeiro estudou a personalidade humana como um todo harmonioso. Daí nasceu a concepção científica da personalidade, da constituição e do caráter. Para ele, os histero-epiléticos eram, de modo geral, constituídos de adolescentes com problemas de natureza sexual. Eles possuem atitudes passionais e até lógicas, que os identificam com os epilépticos, havendo, porém, uma relação entre o cérebro e os órgãos genitais. Salientou o fator sugestivo na histeria, estabelecendo entre ela e o hipnotismo relação psicológica. Freud foi um grande discípulo de Charcot In: SILVA, V. A. da. op. cit., 1979. pp. 109-117. 274 FERNANDES, G. op. cit., 1935. p. 133. 275 Idem Ibdem. p. 133. 276 Nos dizeres de CHAUÍ, M. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 6. ed. São Paulo: Cortez, 1993.
Para Gilberto Freyre, Ulysses, ao tratar as chamadas “seitas africanas”
iniciou uma obra de antropologia aplicada que só vigorou durante os últimos anos
do governo Carlos de Lima Cavalcanti. O sucessor deste, Agamenon Magalhães,
voltaria a procurar resolver o problema pela pura violência policial277.
De 1934 a 1937, o Brasil caminhava para o autoritarismo. Denúncias,
prisões e torturas marcam o ano de 1935. Com o objetivo de abafar possível
manifestação de protestos, é criada a Lei de Segurança Nacional278. Inúmeras
pessoas, inclusive parlamentares, são presas e processadas; acelera-se a
repressão ao movimento sindical; e o exército passa a ter uma presença mais
forte no cenário nacional279. Dias depois de abortado o levante comunista, Ulysses
Pernambucano foi preso como suspeito de ter tido ligações com o movimento
subversivo.
Gilberto Freyre explica este incidente pelo fato de ele, juntamente com
Freyre, Silvio Rabelo e Olívio Montenegro, ter sugerido aos usineiros da região
elaborar um inquérito que revelasse as condições de vida, alimentação, habitação
e trabalho do operariado pernambucano. Esse interesse levou as oligarquias
pernambucanas a suspeitarem de seus envolvimentos com movimentos
comunistas280. Ulysses permaneceu quarenta dias preso, em cela comum, até que
o Tribunal de Segurança Nacional viesse a reconhecer sua inocência281.
Beatriz Góes Dantas registra que muitos estudiosos dos candomblés no
Nordeste tiveram problemas com a polícia na década de 30, acusados de
comunistas. Além de citar o caso de Ulysses em Pernambuco, faz referência ao
estudioso do candomblé da Bahia, Edison Carneiro, também preso pelo mesmo
motivo. Para a autora, embora em relação ao período posterior à Segunda Guerra
Mundial haja algumas informações sobre a situação do Partido Comunista junto
aos Candomblés e aos movimentos negros do Brasil, em relação à década de 30
277 FREYRE, G. Quase Política. 2. e.d. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1966. 278 CARNEIRO, M. L. T. O Anti-semitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração: 1930-1945. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. pp. 116-117. 279 PANDOLFI, D. C. op. cit., 1984. 280 Cf. FREYRE, G. op. cit., 1966. p.17. 281 LORETO, G. op. cit., 1986. p. 26.
esta atuação não parece ter sido objeto de estudo, apesar de o negro ter sido,
desde então, alvo de uma especial atenção do PC, na África e na América282.
No caso da Bahia, Ruth Landes refere que, na década de 30, os grupos de
culto eram acusados de fazer propaganda comunista e que os negros e os
intelectuais estavam servindo de “bodes expiatórios” das dificuldades do governo:
“Os negros do Rio não eram conhecidos como ‘comunistas’; eram mais temidos como feiticeiros e glorificados como malandros pois eram muito pobres. Mas na Bahia eram levados a sério de todas as maneiras – e, se os intelectuais eram comunistas, por que não o seriam os negros com quem se ligavam?283”
A alegação de conivência com o comunismo passa a ser a grande arma
utilizada pelo governo central para enfraquecer o governador de Pernambuco;
entretanto, a questão maior, embora não aparente, era o seu posicionamento
diante do problema da sucessão presidencial e dos próprios rumos que,
gradativamente, iam sendo assumidos pela política brasileira. O fato de Lima
Cavalcanti se encontrar numa posição bastante fortalecida em Pernambuco criava
fortes embaraços para o governo central. Agamenon Magalhães, peça importante
dentro da nova ordenação de forças políticas, que vai se delineando a partir de
1935, torna-se também um poderoso instrumento de que dispõe o chefe do
executivo federal para intervir em Pernambuco284.
Ulysses Pernambucano não mais voltou a ocupar cargos de direção no
serviço público, porém sua atuação como psiquiatra social não cessou. Em 1936,
fundou o Sanatório Recife, primeira casa de saúde psiquiátrica do Estado.
Em 1938, Ulysses reuniu psiquiatras de Pernambuco e Estados vizinhos, na
cidade de João Pessoa, e fundou a Sociedade de Psiquiatria, Neurologia e
Higiene Mental do Nordeste Brasileiro285.
Com relação a sua demissão da Tamarineira, em março de 1938, o jornal
Folha da Manhã publica matéria afirmando a verificação de irregularidades no
282 DANTAS, B. G. op. cit., 1988. p. 163. 283 LANDES, R. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. pp. 70-71. 284 PANDOLFI, D. C. op. cit., 1984. 285 LORETO, G. op. cit., 1986. p. 26.
Serviço de Assistência a Psicopatas, detectadas pela nova administração. A
matéria gira em torno de um Ato assinado pelo Interventor Federal no Estado e
uma Portaria baixada pelo secretário do Interior que, entre outras questões,
ressalta a promoção do Dr. Benjamim Gomes de Moraes Vasconcellos ao cargo
de alienista, na vaga do Dr. Ulysses Pernambucano, ficando este dispensado da
comissão que exercia no Hospital de Alienados. O secretário do Interior, tomando
conhecimento das graves irregularidades encontradas no Serviço, determina que
os autos voltem à comissão de inquérito para serem tomadas declarações do ex-
alienista Ulysses Pernambucano. Resolve determinar ainda que a Ulysses e às
outras pessoas envolvidas no inquérito seja concedido um prazo de cinco dias
para a apresentação de suas defesas286.
Neste mesmo ano, Ulysses lançou a revista Neurobiologia, que veio
preencher uma lacuna deixada pelo desaparecimento de Arquivos de Assistência
a Psicopatas, extinta um ano após a sua demissão da Tamarineira287. A
Neurobiologia é uma publicação trimestral, editada pelo órgão oficial da
Sociedade de Psiquiatria, Neurologia e Higiene Mental do Nordeste Brasileiro.
Teve início em junho de 1938 e existe até o presente. Foi criada com o objetivo de
ser uma tribuna em que se proclamaria:
"a necessidade de um incessante aperfeiçoamento dos métodos de assistência ao doente mental e um instrumento de formação dos médicos que se consagraram à prevenção e cura das afecções psíquicas288."
Dentre os artigos publicados nos finais da década de 30 e na primeira
metade da década de 40, apenas um se destaca pelo conteúdo voltado às
práticas do sincretismo afro-religioso e por sua ligação com a doença mental:
Novas Investigações sobre as Seitas Afro-brasileiras289, de Gonçalves Fernandes.
286 Verificadas Irregularidades no Serviço de Assistência a Psicopatas. Folha da Manhã, Recife, 03 mar.1938. p. 04. Edição das 16 horas. 287CERQUEIRA, L. Ulysses Pernambucano meu Mestre In: Ciclo de Estudos Sobre Ulysses Pernambucano. Recife: Academia Pernambucana de Medicina, 1978. p. 65. 288 Professor Ulysses Pernambucano de Mello. Neurobiologia, Recife, v.6, n.3, set. 1943. Anexo. 289 FERNANDES, G. Novas Investigações sobre as Seitas Afro-Brasileiras. Neurobiologia, Recife, v. 3, n. 2, pp. 182-194, jun. 1940.
Seu texto versa sobre a questão da aculturação religiosa no Brasil e o fenômeno
do sincretismo. Cita Jung para analisar o fenômeno de migrantes italianos,
japoneses, libaneses etc. se adaptarem às práticas de origem afro-brasileira:
“Se transportarmos idealmente um grupo de uma raça européia para um solo estranho em outro clima, verificaremos que este grupo humano sofrerá modificações de natureza psíquica e talvez até física dentro de algum tempo ou algumas gerações mesmo mantendo a sua pureza racial290.”
Observa que as Macumbas cariocas foram importadas do Nordeste, mais
particularmente do Recife. No Rio, esta macumba transportada do Nordeste,
somada com as mudanças de natureza “psíquica” dos migrantes e seus
descendentes, proporcionou uma mistura religiosa, bastante descaracterizada em
relação àquela encontrada no Recife. O tipo de sincretismo identificado por
Fernandes é afro-caboclo-espírita-católico: se caracteriza por apresentar pobreza
litúrgica, dando lugar à hipertrofia da função do “despacho” como objetivo
principal. As toadas são pobres de qualquer expressão africana, e o “despacho” se
tornou exclusivamente agressivo.
Para o autor, a exploração que realizam os macumbeiros do Rio não tem
exceção. É contínuo o número de pessoas simples que por eles se deixam levar.
Neste sentido, conclui o artigo afirmando que não é apenas nas populações
incultas do Nordeste que se observa esse complexo de interpretação primitiva,
essa é uma situação encontrada nas camadas populares de todo o país. Delas
irradiaram o sentimento mágico e uma nuance de mistério e conjuro que deram
azo à espera de acontecimentos supranormais no inconsciente coletivo: as leis de
sugestão.
Apesar de ainda persistirem, nos dizeres do autor, a preocupação com a
relação dessas formas de manifestação religiosa e a doença mental, também
como o exercício ilegal da medicina, um outro fator se soma às preocupações do
psiquiatra: o sincretismo, ou seja, a mistura de vários elementos de tradição
religiosa. É o caso da Umbanda, religião brasileira criada na década de 1920, no 290 Idem. p. 184
Rio de Janeiro, que aglutinava elementos das culturas africana, ameríndia e
européia, dentre outras tradições religiosas.
Para Diana Brown, em 1930, Vargas representava a vitória econômica e
política da nova urbe. Seus esforços para construir uma cultura nacional com base
para a unificação do Estado eram um estímulo importante para o tema
nacionalista da Umbanda, criada por iniciativa de um grupo de kardecistas
insatisfeitos que incorporaram tradições afro-brasileiras em suas práticas
religiosas. Constituíam-se de homens, quase todos brancos, que trabalhavam no
comércio, na burocracia governamental, oficiais de unidades militares,
profissionais liberais, entre outros. Para a autora, tanto as relações de classes, em
mudanças contidas na fundação da Umbanda, como sua orientação nacionalista
estavam diretamente relacionadas ao contexto sóciopolítico no qual emergiram.
Como religião pequena e ainda desconhecida, foi publicamente identificada com
as religiões afro-brasileiras291.
Nesse caso, não é de estranhar que Gonçalves Fernandes tenha
encontrado uma variação e uma diferenciação dos rituais de “macumba” e “seitas”
no Sudeste do Brasil, bastante distintos das práticas afro-brasileiras já
examinadas anteriormente pelo autor no Nordeste, principalmente em
Pernambuco. Daí afirmar que muitos dos rituais de origem africana foram
importados deste Estado, principalmente para o Rio de Janeiro.
A partir desta análise, pode-se perceber que os estudos se referem a
diversos intervalos de tempo e instituições diferentes (apesar de aglutinadas em
torno da figura de Ulysses Pernambucano), pois não existe uma preocupação com
o rigor estatístico (até mesmo pela ausência de certas metodologias na época) e
não se utiliza um mesmo padrão de identificação da questão racial: fala-se
genericamente em brancos, negros, pardos, mulatos, amarelos, entre outras
denominações; e, por fim, com relação às doenças mentais encontradas entre os
praticantes das religiões afro-umbandistas, as classificações e correlações são as
mais diversas possíveis, havendo uma mistura principalmente do pensamento das
291 BROWN, D. Uma História da Umbanda no Rio. In: Umbanda e Política. Cadernos do ISER, n.18, Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.
escolas psiquiátricas francesa, alemã e americana, como podemos verificar na
bibliografia utilizada pelos autores.
Logo, os saberes e as instituições produzidos por essas práticas remetem a
um discurso de interferência direta do saber médico psiquiátrico entre os
praticantes das religiões populares, que se caracterizam pela possessão. Essa
interferência é legitimada pelo discurso psiquiátrico de cunho eugenístico,
formulado por Nina Rodrigues, em seus estudos sobre o negro na Bahia, e que,
por sua vez, deriva de suas leituras acerca das teorias racistas propagadas no
meio intelectual, desde o século XIX, cujo principal mentor, no caso de Nina
Rodrigues, foi Lombroso, médico legista italiano292.
Percebemos, também, que os adeptos dessas religiões estabeleceram uma
relação de apropriação do discurso dos intelectuais eugenistas. Criaram uma
contra-rede de poder que se exercia de forma molecular entre os adeptos.
Adotaram a noção instituída por Nina Rodrigues de que a cultura Nagô seria, entre
os negros, superior às demais. Dessa forma, transformaram-se em agentes da
repressão contra terreiros adversários. Apontavam à polícia os que deveriam, ou
não, funcionar.
No que se refere à prática ilegal da medicina realizada pelos pais-de-santo,
o discurso aparece claro e intransigente. Como explica André Pereira Neto, a
construção da imagem negativa do curandeiro e do charlatão estava
acompanhada de um movimento simetricamente oposto em relação ao médico.
Tratava-se de mostrar à opinião pública e ao Estado o lugar que o médico
ocupava e o papel que desempenhava, contrastando-o com o do charlatão e do
curandeiro293. Era o discurso competente da medicina social que, na sua
imparcialidade, deveria intervir no processo de higienização e modernização da
sociedade.
É assim que a psiquiatria está intimamente ligada à cultur a. O seu objeto de
estudo e interesse é o homem na sociedade. É necessário pensá-la não só
através dos mecanismos cerebrais e das operações psicológicas senão ainda das
292 Sobre o pensamento de Nina Rodrigues, vide: CORRÊA, M. op. cit., 1982; SANTOS COSTA, I. op. cit., 1997. Entre outros. 293 PEREIRA NETO, A. F. op. cit., 1997. p. 81.
funções sociológicas, das interpretações antropológicas e das significações
lingüísticas. É com esse pensamento que Gilberto Macedo afirma que duas
escolas psiquiátricas, com essas características afins, destacam-se no Brasil: a de
Nina Rodrigues, na Bahia, com estudos sobre o comportamento anormal,
particularmente ligado aos contatos culturais entre negros e brancos e suas
formas religiosas, a qual atingiu seu ponto culminante com os trabalhos de Arthur
Ramos; doutra parte, a Escola do Nordeste, fundada no Recife, nos primeiros
decênios deste século, por Ulysses Pernambucano294.
De acordo com as categorias que predominavam as idéias desse grupo de
intelectuais, o “baixo espiritismo”, como religião, é impuro; enquanto moral, é
patológico; enquanto valor social, é ilegítimo; e enquanto sistema de cura, é
ilegal295.
Porém, se essas idéias não podem ser indistintamente atribuídas a todos os
psiquiatras do Brasil, também não se pode afirmar que o pensamento da
intelectualidade, em Pernambuco, compartilhava de forma hegemônica com ele. A
diversidade de perspectivas teóricas sobre este tema também era uma
característica destes intelectuais. É nesse sentido que, no próximo capítulo,
trataremos do grupo de intelectuais, denominado por nós de culturalistas, que
tinham como representante mor Gilberto Freyre. Demonstravam preocupação em
analisar esse mesmo tema, sob um outro enfoque, estabelecendo outras relações
no palco da historicidade afro-umbandista em Pernambuco.
294 MACEDO, G. O Discurso Psiquiátrico Brasileiro: contribuição epistemológica da Escola do Nordeste. Neurobiologia, n. 41, p. 71-76, 1978. Suplemento. 295 ACIOLY, M. A Fala do Médium e do Doutor: a construção histórica do Discurso Médico e Umbandista. 1991. Dissertação (Mestrado em Antropologia) Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1991.pp. 162-63.
CAPÍTULO III
GILBERTO FREYRE: OS AFRO-UMBANDISTAS ENQUANTO PERSONAGENS DA FORMAÇÃO DA CULTURA BRASILEIRA
“Todo brasileiro, mesmo alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo (...) a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. (...) principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano.(...)em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra296.”
Após o estudo da construção do saber psiquiátrico no Brasil, mais particularmente
da escola psiquiátrica de Pernambuco, que, dentre outras questões, se
especializou na problemática dos negros, praticantes das religiões de origem
africana, utilizando-se do aporte teórico propagado por Nina Rodrigues, neste
capítulo, iremos analisar uma outra vertente intelectual, que denominamos de
culturalista, interessada na cultura e na religião negra nos anos trinta. Essas idéias
estão centradas em torno de Gilberto Freyre, quando este analisa o papel do
negro, e a influência da sua religião, na construção da cultura do Brasil.
Utilizamos, aqui, a noção de problematização de Michel Foucault quando afirma
que esta não quer dizer representação de um objeto preexistente, nem criação
pelo discurso de um objeto que não existe. É o conjunto das práticas discursivas
ou não discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e
a constitui como objeto para o pensamento297. Portanto, será no conjunto das
práticas, discursivas e não discursivas, que pretendemos apreender a forma como
o negro e sua religião foram pensados pela parcela de intelectuais que tenta
utilizar o conceito de cultura, em detrimento do conceito de raça.
Neste sentido, pretendemos analisar o significado e a importância que o
sociólogo Gilberto Freyre atribuiu ao negro e as suas manifestações religiosas, na
formação da cultura no Brasil. Sendo assim, o que aqui se constitui como sujeito
de nosso trabalho é a sua atividade, são suas ações, e não a soma, nem
296 FREYRE, G. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. 30.ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. p. 283. 297 FOUCAULT, M. O cuidado com a verdade. In: Dossier. Rio de Janeiro: Taurus, 1984.
tampouco o acervo do que foi dito, porque essa noção pode sugerir uma ausência
de movimento, o que estaria contrariando a idéia de descontinuidade. Dentro
dessa perspectiva, iniciamos a construção deste capítulo por um estudo das
influências formadoras do pensamento de Gilberto Freyre.
Para compreender a concepção de sociedade e cultura que fundamentava
a sociologia e a antropologia de Gilberto Freyre, alguns aspectos devem ser
levados em consideração: a associação das perspectivas historicista e ecológica,
a combinação de métodos das diferentes ciências do social, a conceituação de
sociologia como ciência mista, ao mesmo tempo cultural e natural, tudo
conduzindo ao fim último da visão de síntese do social298.
Freyre realizou o curso secundário em escola protestante, mantida por
missionários norte-americanos no Recife. Essa marca protestante, em sua
formação, aparece bastante forte quando escreve em seu diário:
“Acabo de me declarar Cristão Evangélico. Será que o Cristianismo Protestante vai corresponder ao que espero dele? (...) Fiz um discurso.(..) no templo (Batista) da Rua Formosa(...) Perguntei quem queria, dos presentes, manifestar de público o desejo de seguir o Cristo do Evangelho que eu acabara de evocar...299.”
Ao término do curso secundário, sob essa forte influência protestante, viaja
para os Estados Unidos, onde freqüenta a Universidade de Baylor e de Columbia;
nestas, obteve, consecutivamente, o grau de Bacharel e de Mestre. De sua
experiência nos Estados Unidos decorreu a decepção com o Cristianismo
Evangélico:
“...desde os meus primeiros contactos com os Estados Unidos, que venho perdendo respeito por seu Cristianismo Evangélico. O que me parece é que ele próprio necessita de cristianizar-se (...) Aqui ainda se lincha, se mata, se queima negro. Não é fato isolado. Acontece várias vezes300”.
298 Cf. VILA NOVA, S. Cultura e Sociedade em Gilberto Freyre. In: ANDRADE, M. C..(org.) Gilberto Freyre: Pensamento e Ação. Recife: FUNDAJ, Massangana, 1995. pp. 19-38. 299 FREYRE, G. Tempo Morto e Outros Tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade, 1915-1930. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. pp. 20-21. 300 FREYRE, G. op. cit., 1975. pp. 32-33.
Esse dado é importante para ajudar a entender sua preocupação por certos
aspectos peculiares da religião católica, como também sua preocupação em
distinguir o tratamento do negro escravo no Brasil do tratamento atribuído a este
nos Estados Unidos.
Sua tese de mestrado versou a respeito da vida social no Brasil na metade
do século XIX. Argumentou que as condições de vida do escravo brasileiro
dessa época eram melhores do que as do operário europeu do mesmo período.
Concluído o mestrado, Freyre visita Portugal e a Inglaterra; nesta faz um curso de
extensão em Oxford, só retornando ao Recife em 1923301.
Ainda como aluno do curso secundário no Recife, recebeu a influência de
Oliveira Lima, acompanhando suas atividades nos campos literário, artístico,
histórico e político. Sobre Oliveira Lima, escreve:
“Visita, ontem, a Oliveira Lima. Apresentei-me como estudante. Na verdade estou ainda nas humanidades, e este fim de ano (1917) serei Bacharel em Ciências e Letras (...)Tudo isso contei a Oliveira Lima para ele ver que sou de fato estudante e não simples ginasiano. Ele me recebeu magnificamente bem. Fala desassombrosamente de todos os assuntos. É admirador dos Estados Unidos302.”
Dele, Freyre ressaltaria o sentido da importância fundamental da história
como fonte insubstituível de conhecimento do social. Em 1916, proferiu na Paraíba
uma conferência sobre Herbert Spencer303 e o problema da educação no Brasil.
Portanto, nesta época, sua formação também é marcada pelo Darwinismo
Social304. Suas afinidades com o pensamento de Spencer e a repercussão de sua
conferência estão registradas em seu diário305.
301 MOREIRA LEITE, D. O Caráter Nacional Brasileiro. 4.ed. São Paulo: Pioneira, 1983. 302 FREYRE, G. op. cit., 1975. pp.18-19. 303 Spencer formulou a tese da analogia orgânica entre sociedade e organismo. Para ele, somente chegamos ao conceito da sociologia como ciência, quando percebemos que as transformações experimentadas durante o crescimento, a maturidade e a decadência de uma sociedade estão de acordo com os mesmos princípios que as transformações experimentadas pelo conjunto de todas as ordens inorgânicas e orgânicas. Herbert Spencer. In: Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1986. pp. 124-125. 304 Entende-se por darwinismo social a aplicação à sociedade dos princípios que se crê terem sido estabelecidos por C. Darwin. Os darwinistas sociais basearam sua teoria da evolução social numa analogia
Uma outra Influência é a que recebeu de Franz Boas. A tese culturalista de
Boas afirma que as diferenças entre grupos raciais devem ser explicadas pelo
ambiente social, e não por características inatas das raças. Suas pesquisas
acerca da forma racial dos imigrantes encerram uma crítica e uma rejeição da
idéia de que o tipo de características físicas era indicador direto de constituição
genética. Seus estudos chegaram à conclusão geral de que os imigrantes e seus
descendentes, nos Estados Unidos, mudavam de forma, em relação ao tipo
nacional, de uma maneira que não era possível prever apenas a partir desse tipo
com base nas normas dos Estados Unidos306.
A combinação da marca de Spencer com a influência de Boas, esta
modificando a primeira, levaria Gilberto à aceitação, embora com alguma
restrição, da abordagem da chamada “Escola de Chicago”, liderada por Robert E.
Park, corrente que constitui outra fonte de influência marcante no desenvolvimento
de sua abordagem. Se for verdade que a admiração manifesta de Gilberto Freyre
em relação à Ecologia Humana nem sempre é desprovida de crítica, é
inquestionável o seu apreço intelectual por essa corrente307.
O paradigma da “Escola de Chicago”, denominado por Vila Nova de
ecológico-interacionista, caracteriza-se pela admissão de certas relações
supostamente necessárias entre os fenômenos sociais e a ocupação humana do
espaço, um paradigma que não despreza os componentes naturais (ambientais,
biopsíquicos) da vida social. Outro aspecto da abordagem freyriana aparentado à
Escola de Chicago é o que diz respeito à empatia como instrumento
imprescindível ao conhecimento científico do social, o que termina por levar a um
orgânica, substituindo os organismos vivos por grupos sociais. A partir daí, estruturaram uma sociologia peculiar, baseada na noção de que a sociedade era um universo bastante vago de grupos sociais em conflito. Darwinismo Social. In: Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1986. p. 300. 305 Cf. FREYRE, G. op. cit ., 1975. Vide o ano de 1916. 306 LEAF, M. J.Uma História da Antropologia. Rio de Janeiro: Zahar; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1981. p.210. 307 Cf. VILA NOVA, S. op. cit., 1995.
filósofo muito do gosto de Freyre, William James, e, portanto, ao pragmatismo
como sistema filosófico308.
Por outro lado, Gilberto Freyre afasta-se do paradigma de Chicago no seu
irredutível sentido da dimensão histórica do social. Uma das características mais
proeminentes da abordagem dos sociólogos de Chicago é a atitude francamente
anti-historicista309. Na obra de Freyre, os encontros e as conciliações do passado
com o presente apresentaram-se constantes; ele fez questão de não relegar o
vivido, de não ressaltar apenas os devaneios intelectuais310.
Em várias passagens de sua obra, Freyre procura afirmar o primado do
culturalismo e, portanto, do relativismo. Apesar de suas críticas ao arianismo
dominante no Brasil dos anos trinta, não descarta a possibilidade de tipos étnicos
mais aptos à sobrevivência em áreas geográficas específicas, como, no caso, o
português em relação às áreas tropicais:
“ Outra circunstância ou condição favoreceu o português, tanto quanto a miscibilidade e a mobilidade na conquista de terras e no domínio de povos tropicais: a aclimatabilidade.311.”
Nesse sentido, aponta para a importância do conceito neolamarckiano na
caracterização de raça. A concepção neolamarckiana de raça baseia-se na
ilimitada aptidão dos seres humanos para se adaptar às mais diferentes condições
ambientais. Enfatiza, acima de tudo, a sua capacidade de incorporar, transmitir e
herdar as características adquiridas na sua interação com o meio físico312.
Embora afirme que Casa Grande & Senzala foi fundamentada em uma
interpretação social da cultura, trabalha com categorias étnicas, portanto,
308 Cf. VILA NOVA, S. Sociologias & pós-sociologia em Gilberto Freyre: algumas fontes e afinidades teóricas e metodológicas do seu pensamento. Recife: Massangana, 1995. 309 Cf. VILA NOVA, S. Cultura e Sociedade em Gilberto Freyre. In: ANDRADE, M. C. de.(org.) Gilberto Freyre: pensamento e ação. Recife: FUNDAJ, Massangana, 1995. 310 REZENDE, A. P. (Des)encantos Modernos: histórias da cidade do Recife na década de vinte. Recife: FUNDARPE, 1997. 311FREYRE, G. op. cit., 1995. p. 10. 312 Sobre a concepção neolamarckiana e sua influência no pensamento de Freyre, vide: ARAÚJO, R. B. de.Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30 . Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. pp. 39-40.
biológicas, da formação da sociedade brasileira, contradizendo sua afirmação
anterior:
“ Pode-se juntar essa superioridade técnica e de cultura dos negros, sua predisposição como que biológica e psíquica para a vida nos trópicos. Sua maior fertilidade nas regiões quentes313.”
A primeira atitude de Freyre era a da observação, descrição e análise dos
fatos.Três ângulos de estudo se interpenetram: o primeiro, o da própria
composição de sua obra escrita de acordo com o ritmo indagativo do autor;
entrelaçando-se a este, o segundo ângulo, com o relevo de temáticas dominantes,
várias vezes repetidas, assim como – terceiro âng ulo – a interdisciplinaridade e a
transdisciplinaridade. Toda a sua obra é esse inter-relacionar-se consciente,
ouvindo, discernindo e discutindo o que as ciências e as artes apresentavam ao
seu próprio pensar posto em questão314.
Aqui é importante lembrar as palavras de Foucault quando diz que o
arquivo é o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem
indefinidamente, não se inscrevam em uma linearidade sem ruptura e não
desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em
figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações
múltiplas315. É dessa forma que entendemos a obra de Freyre neste trabalho.
Para Elide Bastos, Freyre, em seus escritos de trinta, representa um
momento de passagem, o fechamento de um ciclo, quando a teoria social deixa de
apresentar-se como manifestação dispersa e surge como um sistema: a
sociologia. Neste sentido, é o último pensador de um período e o primeiro de uma
nova etapa. Ilustram essa posição o abandono do discurso jurídico, até então o
instrumento explicativo da realidade, e a adoção do discurso sociológico, como
código competente para dar conta do social316. Essa sociologia como ciência da
competência tornou-se bem-vinda, pois o saber é perigoso apenas quando é 313FREYRE, G. op. cit., 1995. p. 286. 314 Cf. MIRANDA, M. C. T. de. Uma Fenomenologia da Existência em Gilberto Freyre. In: ANDRADE, M. C. de.(org.) Gilberto Freyre: Pensamento e Ação. Recife: FUNDAJ, Massangana, 1995. pp. 39-47. 315 Cf. FOUCAULT, M. op. cit., 1997. 316 BASTOS, E. R. Gilberto Freyre e as Ciências Sociais no Brasil. Estudos de Sociologia, Recife, v. 1, n.1, p.63-72, jan./jun. 1995. pp. 64.
instituinte, negador e histórico. A competência instituída e institucional não é um
risco317.
Ao voltar dos Estados Unidos, no início da década de vinte, traz as últimas
novidades em arte e ciência, as quais são imediatamente recebidas com grande
curiosidade por parte dos provincianos. Para Dante Moreira Leite, no caso de
Gilberto Freyre, e do Recife, esse processo repercutiu de forma mais aguda não
só porque realizara estudos acerca da sociologia contemporânea na época, pouco
ou nada conhecidos no Brasil, mas também porque essa formação fora feita em
língua inglesa, cuja influência no país era tradicionalmente menor que a dos
escritores franceses318.
Ao situarmos os trabalhos de Freyre no debate relativo à constituição de um
poder nacional, destacando-o como produto de uma cultura política que selou as
primeiras décadas da República com a marca de uma lógica de um poder
patriarcal largamente influenciado pelos valores do escravismo, pode-se perceber
que esta cultura política impregnou o imaginário intelectual e político da Primeira
República, e os rumos das atividades culturais mais significativas, como o
movimento modernista dos anos vinte319.
Já na década de vinte, defendia certos princípios que estariam presentes
em toda a sua obra. Apesar de ligado por parentesco às famílias tradicionais de
Pernambuco, procura profissionalizar-se como intelectual, atuando na imprensa e
tendo uma experiência política como assessor do governador de Pernambuco,
Estácio Coimbra, nos últimos anos da década de vinte320. Em 1927, assume o
cargo de oficial de gabinete do governador.
Segundo Edson Nery da Fonseca, Freyre, que tinha ambições políticas,
acalentou o sonho de ser governador de Pernambuco. Ao abortar seu projeto em
1930, só voltaria à política em 1946, como deputado constituinte. Em 1964, com a
instauração do regime militar, achava que seria nomeado governador por via
317 De acordo com CHAUÍ, M. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 7. ed. São Paulo:Cortez, 1997. 318 MOREIRA LEITE, D. op. cit., 1983. p. 298. 319 MATINS, P. H. A. A Cultura Política do Patriarcalismo . Estudos de Sociologia, Recife, v.1, n.1, p. 35 -51, jan./jun. 1995. pp. 35-36. 320 REZENDE, A. P. op. cit., 1997.
indireta, por ser amigo pessoal do primeiro presidente da nova ordem, Humberto
de Alencar Castello Branco321.
No período de 1923 a 1930, Freyre dedica-se basicamente a três
atividades: jornalismo, política e vida intelectual. Como político ligado ao
governador Estácio Coimbra, em 1930 foi obrigado a exilar-se na Europa, logo
após a ascensão de Vargas ao poder. Quanto à atividade intelectual, foi um dos
organizadores do Congresso Regionalista, reunido em Recife em 1925. Seus
trabalhos, nessa época, o apresentam como defensor das tradições regionais do
Nordeste do açúcar322.
Com o movimento “regionalista, tradicionalista e modernista a seu modo”,
Gilberto pregava insistentemente o apego à tradição. No estudo das religiões afro,
buscava nos terreiros os que apresentavam forma mais ortodoxa, como os de
influência Nagô, que tinham como pais-de-santo, Pai Anselmo e Pai Adão. No seu
trabalho, Problemas Brasileiros de Antropologia323, ressalta:
“Tornaram possível tais psiquiatras(...) meu contato mais íntimo com as chamadas seitas africanas do Recife e, através delas – principalmente através de velho babalorixá recifense educado na África – com candomblés da Bahia e do Rio. Contato em que se prolongou a convivência que eu vinha mantendo,(...) com clubes populares, maracatus, bumbas-meu-boi, irmandades..324.”(grifos nossos)
Já em Casa Grande & Senzala, faz referência direta ao terreiro de Pai
Anselmo:
“Nas festas das seitas africanas que conhecemos no Recife (. ..) na de Anselmo, negro de seus cinqüenta anos, filho de africanos, que vai freqüentemente, à Bahia ‘no interesse da religião’ – temos observado o fato de dançarem as
321 Informações proferidas por Edson Nery da Fonseca ao Jornalista João Gabriel de Lima, em reportagem publicada na Revista Veja, São Paulo, v.32, n.27, p. 70-77, set. 1999. 322 MOREIRA LEITE, D. op. cit., 1983. p. 199. 323 Cf. DANTAS, B. G. Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988. 324 FREYRE, G. Problemas Brasileiros de Antropologia. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. pp. 185-186.
mulheres com uma faixa de pano amarelo em volta do pescoço325.”
Em Sobrados e Mucambos, quando se refere à tradição religiosa do negro
brasileiro, volta-se para um dos babalorixás mais famosos dos terreiros de Xangô
do início do século no Recife:
“Os próprios grandes líderes do que o negro conserva de mais intimamente seu entre nós – as tradições religiosas – são hoje mulatos. Mulatos, alguns deles já muito desafricanizados nos seus estilos de vida, mas que se reafricanizaram indo estudar na África. Tal o caso de Pai Adão, do Recife, que se fez pai-de-santo em Lagos; que falava africano com a mesma facilidade com que falava português326.”
Constatando que, no Brasil, as tradições religiosas vêm resistindo à
desafricanização mais que o “sangue, a cor e a forma dos homens”, conclui que “a
substância da cultura africana permanecerá em nós através de toda a nossa
formação e consolidação em nação327”. Nesta ótica, a região Nordeste será o
reduto da África. O regionalismo, que teria surgido como reação às
transformações sócioeconômicas que se iniciaram no final do século XIX,
representando a dimensão do poder aristocrático rural que se vê ameaçado, ao
inserir a exaltação do africano e suas tradições como elemento do culto do
passado, teria a função de justificar as mazelas da região pela alta concentração
de negros, ou melhor, de africanos, na constituição do povo328.
Com relação à questão da tradição, Sergio Ferretti329 estabelece uma
discussão acerca da afirmação, por parte de alguns antropólogos, pesquisadores
das religiões africanas, de que as tradições nos terreiros são construções de
intelectuais para encobrir a dominação. Para o autor, esta visão tiraria do
325 FREYRE, G. op. cit., 1995. p. 312. 326 FREYRE, G. Sobrados e Mucambos: Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento urbano. 9.ed. Rio de Janeiro:Record, 1996. p. 649. 327 FREYRE, G. op. cit., 1996. p. 650. 328 Cf. DANTAS, B. G. op. cit., 1988. 329 FERRETTI, S. F. Repensando o Sincretismo: estudo sobre a Casa das Minas. 1991. Tese (Doutorado em antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991.
participante destas religiões a possibilidade de elaborar e manter suas próprias
tradições, o que, no Brasil, vem sendo feito por antigas comunidades religiosas,
independente da colaboração dos intelectuais. Concordamos com Ferretti quando
afirma que o intelectual pode contribuir para ampliar este prestígio, mas não é
quem o forja, ao menos entre os líderes. A tradição afro-brasileira não é, portanto,
uma invenção de intelectuais.
A defesa do regional foi sempre uma constante nas suas obras. A
experiência no exterior consolidou suas idéias de criar um movimento intelectual
com raízes regionais. Viveu no Recife, cultivando uma história marcada por
memórias de senhores e escravos. Pelas lutas políticas de autonomia contra a
metrópole, pela forte presença do catolicismo. Pela ótica de Freyre, havia um
passado histórico a ser preservado e temia que ele fosse sufocado pela
modernidade. Era um movimento para o qual precisava de aliados e articulações
com outros intelectuais que viviam no Recife, na época. A pregação regionalista e
tradicionalista foi se consolidando na medida em que se readapta e permanece no
Recife. Juntou-se ao professor Odilon Nestor na fundação de um Centro
Regionalista. No Congresso Regionalista, Freyre mostra seus temores diante das
reformas urbanas modernizadoras, acreditando que elas vinham provocando a
perda das tradições e dos vínculos com o passado330.
O trabalho apresentado no Congresso, Região, Tradição e Cozinha331, é
considerado um dos menos significativos do autor. Repetiria apenas uma
celebração dos pratos tradicionais das famílias ricas do Nordeste, contrapondo-os
às novidades “estrangeiras” que começam a aparecer na culinária de
Pernambuco. Na década seguinte, apresenta trabalhos que os críticos avaliam de
melhor nível, como Aspectos de um Século de Transição do Nordeste do Brasil332.
Aí se identifica facilmente o ponto de partida de Casa Grande & Senzala, cujo
prenúncio foi sua tese de mestrado. O artigo é uma evocação do século XIX, em
Pernambuco, onde já aparecem os temas prediletos de Freyre: a nobreza da vida
330 Cf. REZENDE, A. P. op. cit., 1997. 331 FREYRE, G. Região e Tradição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941. 332 FREYRE, G. op. cit., 1941.
dos senhores de engenho, a alegria dos escravos, a delícia da cozinha tradicional,
os males e as deformações do progresso do século XX333.
O modernismo regionalista tomava a preservação do passado como uma
salvação da identidade nacional. Era também uma forma de evitar a
marginalização, de não se sentir fora das trilhas da história, de não se ofuscar com
as luzes do progresso334.
Aqui é importante ressaltar que entendemos o conceito de identidade da
forma como este é formulado por Ernesto Laclau. Para este, a identidade é um
significante flutuante, ou seja, a identidade se constrói nas nossas relações com
os outros. Ela é sempre movimento relacional. Esse relacionismo das identidades
sociais aumenta sua vulnerabilidade quanto a novas relações e as torna sujeitas a
ambigüidades335.
É depois do exílio, na Europa e nos Estados Unidos, que Freyre obtém
reconhecimento nacional com a publicação, em 1933, de seu livro Casa Grande &
Senzala. Numa sociedade fortemente marcada por transformações e buscas de
nova identidade para a nação, essa obra permanece como referência sobre as
questões que dominavam o Brasil no período.
Como assinala Durval Muniz, a identidade nacional ou regional é uma
construção mental, são conceitos sintéticos e abstratos que procuram dar conta de
uma generalização intelectual de uma enorme variedade de experiências
efetivas336. Gilberto, ao ser convidado para ministrar um curso sobre o Brasil na
Universidade Stanford, começa a sistematizar diversas idéias que seriam
desenvolvidas em Casa Grande & Senzala, tais como:
“No Brasil, o problema antropológico da miscigenação vem sendo objeto de pesquisas minuciosas e rigorosamente científicas da parte do professor Roquette Pinto (...) o primeiro a chamar a atenção (...) para o fato de que a mestiçagem entre os brasileiros (...) não vem significando
333 MOREIRA LEITE, D. op. cit., 1983. 334 Cf. REZENDE, A. P. op. cit., 1997. 335 LACLAU, E. A Política e os Limites da Modernidade.In: BUARQUE DE HOLANDA, H. (Org.) Pós-Modernismo e Política Cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. 336 ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 1999. p. 27.
degradação do tipo humano nem da sua cultura caracteristicamente européia.337”
Sua história social ou sociologia genética é escrita e interpretada do ponto
de vista da classe dominante. E, nesse sentido, a obra é reveladora. Mostra uma
profunda ternura pelo negro. Mas pelo negro escravo, aquele que conhecia a sua
posição – como o moleque da Casa Grande, como o saco de pancadas do menino
rico, como cozinheira, como ama-de-leite ou mucama da senhora moça338.
Os trabalhos de Freyre apresentam características distintas, entre os
escritos dos anos vinte e aqueles dos anos trinta. Os trabalhos da primeira década
apontam, simultaneamente, para dois pontos eminentemente contraditórios: de um
lado, denunciam um crescente processo de falsa modernização em curso, que
destrói as tradições nacionais; de outro, reclamam pela não-modernização
científica e institucional, meta que, se não alcançada, impedirá o Brasil de afirmar-
se como Nação no século XX. As obras dos anos trinta voltam-se à
reinterpretação do passado nacional, aos estudos sobre as questões racial e
cultural339.
Gilberto não se mostra angustiado com a herança cultural brasileira e não
poupa elogios aos bons envolvimentos dos nossos colonizadores com os trópicos.
Onde muitos viram desencanto, Freyre destaca originalidade e não se afoga em
lamentos. A defesa da diversidade é colocada como uma questão de
sobrevivência das singularidades regionais, ameaçadas pelo discurso da unidade
e pela centralização que favorecia os estados de maior poder político.
Regionalismo significa uma meta contra a massificação cultural promovida pelos
meios de comunicação que também favorecem as regiões mais ricas340.
Em Gilberto Freyre, o regionalismo é uma preocupação constante e explícita.
Mas não será a pureza africana, e sim a mestiçagem, que invocará para compor
337 Texto inédito de conferência proferida na Universidade Stanford, Califórnia-EUA, em 1931. Publicado pela Revista Veja, São Paulo, v.32, n. 27, p.70-77, set. 1999. pp.70-71. 338 MOREIRA LEITE, D. op. cit., 1983. 339 BASTOS, E. R. op. cit., 1995. p.65. 340 REZENDE, A. P. op. cit., 1997.
tanto essa distinção regional como também a nacional341. Ao escrever o Manifesto
Regionalista, afirmou:
“Pois o Brasil é isto: combinação, fusão mistura. E o Nordeste, talvez a principal bacia em que se vêm processando essas combinações, essa fusão, essa mistura de sangue e valores que ainda fervem: portugueses, indígenas, espanhóis, franceses, africanos, holandeses, judeus, ingleses, alemães, italianos. (...)Saliente-se em conclusão, que há no Nordeste – neste Nordeste em que vêm se transformando em valores brasileiros, valores por algum tempo apenas subnacionais ou mesmo exóticos – uma espécie de franciscanismo, herdado dos portugueses, que aproxima dos homens, árvores e animais. (...) Todos se tornam aqui irmãos, tios, compadres das pessoas342.”
Nesse sentido, defendia a idéia de uma modernização conservadora, em
que a tradição, o apego ao regionalismo iam de encontro à postura do movimento
modernista pregado por outros intelectuais, marcado por idéias nacionalistas,
modernizadoras e modernistas, de forma que a tradição, o velho, não tinha relevo.
Para Freyre, essas idéias só viriam desidentificar essa “civilização ímpar”
desenvolvida nos trópicos: “obra criadora, original, a que não pode aspirar nem a
dos ingleses, na América do Norte, nem a dos espanhóis, na Argentina343
Para Carlos Guilherme Mota, a noção de “civilização brasileira”, “cultura
nacional” e seus equivalentes foram usados para frear as manifestações que
extrapolassem os interesses das classes dominantes. Como, nos anos trinta,
especificamente na obra de Gilberto Freyre, o nacional e o regional aparecem
imbricados, passando-se de um para outro sem discutir mediações, na medida em
que, para ele, o “regional” não deixa de ser “nacional”, surtiu grande repercussão
no meio intelectual, tanto nacional quanto internacional344.
Na construção desse nacionalismo cultural, a herança do negro teve um
papel destacado. Para Roger Bastide, era como se o Brasil, na esteira dos
341 DANTAS, B. op. cit., 1988. 342 FREYRE, G. Manifesto Regionalista. 7. ed. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1996. p. 72. 343 FREYRE, G. op. cit., 1995. p.15. 344 MOTA, C. G. Ideologia da Cultura Brasileira (1933 – 1974). 8.ed. São Paulo: Ática, 1994.
movimentos literários modernistas que tinham buscado descobrir a originalidade
brasileira e cortar o cordão umbilical europeu, subitamente se conscientizasse do
valor de traços culturais que tinham vindo da África345.
A obra de Gilberto Freyre está fortemente marcada por aquilo que se
poderia denominar “uma geração de explicadores da cultura brasileira”. Essa
geração é marcada não só pelo peso do eruditismo e do bem escrever mas,
sobretudo, pelo estilo da utilização de informações. Carrega consigo as marcas da
distinção e do prestígio, pelas condições gerais de vida criadas na esteira das
transformações sociais e políticas com foco na crise de 30346.
Em reportagem publicada na revista “Veja”347, o jornalista João Gabriel de
Lima afirma que, a partir de uma análise minuciosa da formação do país, Freyre
disseca características da sociedade brasileira que perduram até hoje. Em todas
as listas de livros fundamentais para entender o Brasil, Casa Grande & Senzala
aparece como destaque, geralmente ao lado de Raízes do Brasil, de Sérgio
Buarque de Holanda, e Os Sertões, de Euclides da Cunha348.
Esse pensamento está claramente marcado no prefácio de Casa Grande &
Senzala, que o autor escreve à primeira edição brasileira:
“Creio que nenhum estudante russo, dos românticos, do século XIX, preocupou-se mais intensamente pelos destinos da Rússia do que eu pelos do Brasil na fase em que conheci Boas. Era como se tudo dependesse de mim e dos de minha geração, da nossa maneira de resolver questões seculares.349”
Da preocupação geral com a nacionalidade, cresceu a necessidade de uma
avaliação do Brasil que, por sua vez, estimulou o pensamento nacionalista. Os
escritores tornaram-se sensíveis à noção de que deviam estudar a situação
brasileira por ela mesma, sem maiores implicações. Começaram a sentir que 345 BASTIDE, R. O Estado Atual da Pesquisa Afro -Americana na América Latina. Boletim Sárepegbé, Salvador, ano 1, n.2, 1975. p. 5. 346 MOTA, C. G. op. cit., 1994. 347 LIMA, J. G. de. O Baú de um gênio de Apipucos. RevistaVeja, São Paulo, v.32, n.27, p.70-77, set. 1999. p.70. 348 Aqui não poderíamos deixar de mencionar a obra de Caio Prado Junior, mais particularmente, Formação do Brasil Contemporâneo. 349 FREYRE, G. op. cit., 1995.
podiam mudar o papel que a herdada cultura européia tentava atribuir ao Brasil350;
dentre eles, Freyre foi uma das vozes que mais repercutiu nesse processo.
Freyre tenta romper, no nível da explicação, o eu que até então propunha o
saber científico: o da separação entre as raças, elemento essencial a ser
preservado na sociedade de então, fortalecendo, assim, a idéia da democracia
racial. Dessa forma, insiste em destacar sua originalidade como produtor de novas
idéias.
Encontra-se em sua obra a permanência de uma lógica racial que, embora
culturalizada, mantém ligações com as teorias do determinismo racial: a pretensa
dissociação entre raça e cultura, o deslocamento retórico no âmbito desses
conceitos e os processos de racialização da cultura e da culturalização da raça351.
Seguindo esta linha de raciocínio, Ricardo Benzaquen tenta demonstrar que a
leitura de Casa Grande & Senzala evidencia que o destaque recebido pela noção
de raça não se concentra em uma passagem localizada nem se refere apenas a
um ou outro dos grupos sociais citados no texto. Ela dá a impressão de se
distribuir, ainda que de forma irregular e sempre dividindo o seu prestígio com o
conceito de cultura, ao longo de, virtualmente, todo o relato, alcançando
indistintamente portugueses, mouros, judeus, negros e índios352.
A tese que perpassa esse trabalho de Benzaquen é uma idéia que vem
sendo apresentada ao leitor desde o início do livro. Trata-se de sustentar que em
Casa Grande & Senzala “as teses de conteúdo histórico-sociológico eram como
que confirmadas, autenticadas pela própria maneira como foram escritas353”.
Para José Luiz Passos, não caberia dizer que Benzaquen se incumbe da
tarefa de defender o argumento de Casa Grande & Senzala, ele reconhece culpas
e láureas em Gilberto Freyre, mas cuida mesmo é de recuperar uma perspectiva
inédita sobre o autor, que encerra em si a imprecisão e a ambivalência como
350 SKIDMORE, T. E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. 351 Cf. MARTÍNEZ-ECHAZÁBAL, L. O Culturalismo nos Anos 30 no Brasil e na América Latina: Deslocamento Retórico ou Mudança Conceitual . In: MAIO, M. C. (org.) Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/CNBB, 1996. 352 ARAÚJO, R. B. op. cit., 1994. p.31. 353 Idem Ibdem. op. cit., 1994. p. 24.
características essenciais do argumento, da forma e do efeito causado por essa
conjunção: a sedução da narrativa de Freyre, misto, a um só tempo, dos estilos
literário, histórico e confessional, que constitui o sentido ímpar que a obra possui,
o convencimento/sedução pela argumentação ambivalente. A ambigüidade tanto
institui o paradigma quanto se constitui na “verdade” do texto354.
Freyre trabalhou a idéia de que a mestiçagem biológica e a troca
aparentemente livre de traços culturais, entre os vários grupos étnicos, constituíam
o caráter específico da sociedade, apresentada como de natureza essencialmente
democrática, o que se expressava, por exemplo, na ausência de qualquer
preconceito racial. O negro entrou como elemento básico na formação social do
Brasil, e sua herança cultural fora pacientemente pesquisada, concluindo-se que
onde ela sobrevivia com mais força era na religião. Esta, originária dos negros e
fiel à África, poderia constituir-se num forte sinal distintivo para afirmar a
especificidade da nação brasileira no contexto internacional355.
Concordamos com a idéia de Clóvis Moura356 de que a visão de Freyre
transferia para um choque ou harmonia entre culturas as contradições sociais.
Podemos afirmar que Gilberto antecipa-se na elaboração de uma interpretação
social do Brasil através das categorias “casa grande e senzala”, colocando a
escravidão como composta de senhores bondosos e escravos submissos,
empaticamente harmônicos, desfazendo, com isso, a possibilidade de se ver o
período no qual perdurou o escravismo como cheio de contradições agudas,
sendo que a primeira e mais importante, e que determinava todas as outras, era a
que existia entre senhores e escravos. O mito do bom senhor de Freyre é uma
tentativa sistemática e deliberada para interpretar o escravismo como simples
episódio epidérmico357.
Roger Bastide, ao escrever sobre as contribuições culturais dos africanos na
América Latina, chama a atenção para essa questão, ao observar que:
354 PASSOS, J. L. I. HIBRIS: Retórica da sedução ou força da explicação ambivalente? Estudos de Sociologia, Recife, v.1, n.1, p. 99-107, jan./jun. 1995. p. 102. 355 Cf. DANTAS, B. G. op. cit., 1988. p. 205. 356 MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Ática, 1988. 357 MOURA, C. op. cit., 1988.
“A mestiçagem cultural desenvolveu-se paralelamente à mestiçagem biológica. Deu-se, no entanto, por meio de uma forma anormal e patológica, a do trabalho servil. Isso fez com que o negro não tenha entrado na formação da psique coletiva ou dos caracteres nacionais na América Latina como ‘negro’ mas, (...) como negro ‘reduzido à escravidão’358.”
As teorias sobre a relação de raça, cultura e ambiente, desenvolvidas por
Franz Boas, proporcionaram a Freyre grande penetração nos meios intelectuais
progressistas de então, fornecendo elementos para a redefinição de valores
sociais que veio no bojo do movimento de 30 – e que se contrapôs às doutrinas
autoritárias e racistas do período anterior, dentre elas a de Oliveira Vianna359.
Para Durval Muniz, mesmo tentando combater o uso de noções como raça e
atavismo étnico, para definir comportamentos sociais, Freyre muitas vezes se
deixa contaminar por tal discurso. Sua tese da superioridade do mestiço é uma
leitura que tenta conciliar uma nova aparelhagem teórica com um saber anterior já
estabelecido360.
É importante levar em consideração que, embora afirme acompanhar de
perto o pensamento de Boas, em certos trechos de sua obra parece dar à raça,
um peso psicológico maior do que o suposto por ele. Em Sobrados e Mucambos
afirma:
“Ninguém ousará negar que várias qualidades e atitudes psicológicas do homem possam ser condicionadas biologicamente pela raça361.”
Mais adiante, acrescenta o autor:
“Condicionadas pela raça e, certamente, pelo meio, mas não criadas por uma ou determinadas pelo outro. A raça dará as predisposições; condicionará as especializações de cultura humana362.”
358 BASTIDE, R. As contribuições Culturais dos Africanos na América Latina: tentativa de síntese. In: Roger Bastide: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p.158. 359 MOTA, C. G. op. cit., 1994. 360 ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. de. op. cit., 1999. p. 94. 361 FREYRE, G. op. cit., 1996. p. 657. 362 Idem.
Essas expressões, até onde se conhece o pensamento de Boas,
provavelmente não seriam empregadas por ele. Mas onde Gilberto se afasta
quase que totalmente do pensamento boasiano é quando considera a
possibilidade da descrição de características psicológicas de um povo. O
particularismo histórico de Boas equivale à negação da possibilidade de uma
descrição global de “mentalidade de um povo”, ou do que seria denominado
caráter nacional363.
Se a exaltação da cultura negra foi usada para criar uma cultura nacional, a
glorificação do africano servia para marcar diferenças regionais, pois era no
Nordeste que os africanos eram vistos como se tendo conservado com maior
fidelidade.
Depois de escrever Casa Grande & Senzala, Freyre procura ampliar o seu
trabalho, pensando na continuidade histórica. Para muitos de seus críticos, esse
foi o seu erro. A sua interpretação original foi dada em Casa Grande & Senzala; os
outros livros da série – Sobrados e Mucambos, Ordem e Progresso – apenas
repetem o primeiro, e essa repetição, longe de ser um processo de esclarecimento
ou ampliação, contribui apenas para banalizar suas teses, pois estas já estavam,
implícita ou explicitamente, apresentadas em Casa Grande & Senzala364.
Sua tríade explicativa é conhecida: o patriarcado; a interpretação das etnias
e culturas; o trópico. O resultado analítico dessa articulação é a proposta de três
teses principais que servem de gabarito para a compreensão da formação
brasileira, teses estas que são complementares entre si: aquela resultante da
comprovação da ligação indissociável entre etnias e culturas (a democracia racial);
a que resulta da análise das características tropicais da sociedade brasileira (o
grau de modernidade a que podemos aspirar); a outra que é resultante das
reflexões sobre o patriarcalismo (a afirmação da impossibilidade de seu alijamento
na situação presente). Freyre, a partir do debate cruzado dos três elementos –
patriarcado, etnias/culturas e trópico –, procura mostrar que o velho penetra o
novo, plasmando-o de modo diferente. Se o novo sugere os rumos do Brasil a 363DANTAS, B. op. cit., 1988. 364 MOREIRA LEITE, D. op. cit., 1983.
caminho da industrialização, da urbanização, da secularização, da racionalização
e da universalização, o velho, centrado no agrário, mostra a existência de uma
ordem social que, se abalada em suas raízes, pode trazer uma ruptura no edifício
social365.
Na disposição, Casa Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos, Ordem e
Progresso compõem a introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil.
Nessa seqüência, Casa Grande & Senzala devia referir-se à Colônia (até o século
XIX), Sobrados e Mucambos, ao Século XIX, e apreender a vida urbana, enquanto
Ordem e Progresso deveria se referir à Primeira República. Ocorre que Casa
Grande & Senzala não foi um ensaio escrito para servir a essa seqüência. É uma
obra escrita por um intelectual da Primeira República que procura as raízes no
passado brasileiro, encontrando-as no passado Colonial e nas suas
transformações durante o século XIX. Portanto, apresentava a perspectiva que
mais tarde foi atribuída a Ordem e Progresso, ou seja, à última fase da sociedade
patriarcal. Para Dante Moreira Leite, essa é a primeira deformação na obra de
Freyre. A segunda decorre da história intelectual brasileira. Quando publicou Casa
Grande & Senzala, este foi interpretado como uma afirmação corajosa de crença
no Brasil, no mestiço e no negro, sobretudo quando se pensa no predomínio das
doutrinas racistas que dariam base às idéias do nazismo; porém, suas posições
políticas, tanto no Brasil como em relação ao colonialismo português na África,
contribuíram para identificá-lo com os grupos mais conservadores dos países de
língua portuguesa366.
Roland Barthes, em sua resenha da edição francesa de Casa Grande &
Senzala, afirma que esta obra foi lançada em 1933, o mesmo ano da ascensão de
Hitler ao poder. Ou seja, numa época em que um regime embasado em linhas
racistas começava a se firmar, Freyre desferiu supostas críticas às teorias que
pretendiam provar a superioridade de uma raça sobre a outra. Por isso, foi
considerado, na época, um radical de esquerda no Brasil dos anos 30367.
365 BASTOS, E. R. op. cit., 1995. 366 MOREIRA LEITE, D. op. cit., 1983. 367 LIMA, J. G. de. op. cit., 1999. p. 71.
Tanto nos anos trinta como nos anos quarenta, muitas críticas proferidas à figura
de Gilberto Freyre o ligavam diretamente a atividades de esquerda. Uma
reportagem publicada no jornal Folha da Manhã, em 1938, ressalta:
“Toda gente que lê conhece os rumos intellectuaes e doutrinários do sr. Gilberto Freire. Esses rumos já foram definidos pelo autor de ‘Casa Grande & Senzala’ de maneira a não deixar duvidas, sobretudo quando elle se filiou á Aliança Nacional Libertadora, a organização comunista que Prestes e Berguer installaram no Brasil, a serviço de Komintern.368”
Na década de quarenta, ao candidatar-se a deputado, foi acusado de
comunista e ateu. Uma reportagem publicada no jornal Folha da Manhã, de
novembro de 1945, acusa:
“Que Gilberto Freire é comunista e sempre foi, ninguém tem dúvidas. Quando o homenzinho viu que a coisa estava se apertando um pouco para o lado dele, entrou em fase de despistamento. Deu ordem a seus amigos e comensais que bradassem pelos jornais suas convicções católicas. (...) Gilberto, de sabido e astuto que é, foi tirando partido da coisa. Estava preparando terreno para fundar, nesta capital, a esquerda democrática(...) conseguiu, até que alguns católicos incaustos entrassem nela.(...)Votar em Gilberto é entregar o Estado aos agentes de Moscou, á anarquia e ao caos.369”
Em 1936, Vicente do Rêgo Monteiro publica na revista Fronteiras suas
impressões sobre Casa Grande & Senzala:
“Casa Grande & Senzala é realmente um livro isento de qualquer vislumbre de moral. Um livro despudoradamente pornográfico.(...) Considero esse livro como um ensaio dos mais perniciosos de sedução comunista no Brasil. Seu intúito latente é o de predispor, de crear um ambiente propício, fazendo do brasileiro nato o resultado
368 Como se conta a História. Folha da Manhã, Recife, 28 jul. 1938. p. 02. Edição das 16 horas. 369 Não se iludam com o comunista Gilberto Freyre. Folha da Manhã, Recife, 26 nov. 1945. p. 14 e 16. Edição das 16 horas.
democratico social da miscigenação; reduzindo uma proporção mínima a parte da pigmentação ariana.(...)Enfim, considero ‘CASA GRANDE & SENZALA’ um livro pernicioso, dissolvente anti-nacional, anti-catholicoamericano, communista. Livro e autor digno dum purificador auto-de-fé nacionalista e christão.370”
Porém, as idéias divulgadas por Freyre na discussão intelectual de então não
se encerram por aí. No ano seguinte à publicação de Casa Grande & Senzala,
1934, organiza com seu primo, Ulysses Pernambucano, o Iº Congresso Afro-
Brasileiro a ser realizado em Recife.
As características atribuídas por Gilberto Freyre ao Iº Congresso Afro-
Brasileiro são: simplicidade, independência financeira, política e religiosa. Seu
objetivo seria organizar um material de estudo a que não se tem prestado a
atenção devida. Ou seja, nos dizeres do autor: “seria o início de um movimento de
grandes possibilidades para o desenvolvimento de uma consciência social e
artística mais honestamente brasileira371.”
O acontecimento foi largamente informado pelos jornalistas locais,
recifenses, que deram grande importância ao evento. O Jornal do Povo, por
exemplo, classifica o Congresso como “Movimento de Indiscutível relevo cultural e
científico para a reabilitação da raça negra no país372”.
Porém, ao defender a mestiçagem de nossa raça durante o congresso,
suscitou oposições não só racistas como também políticas. Da repercussão e do
êxito alcançados no Congresso, veio a confirmação das suspeitas de sua suposta
atividade subversiva. Estava claro que Freyre simpatizava com os negros, o que,
para certos grupos sociais, significava um caso de polícia. Divulgou-se, por essa
época, que era um comunista disfarçado de literato373. Tristão de Atayde, num
artigo publicado na revista Fronteiras, escreve:
370 MONTEIRO, V. R. Uma Impressão Sobre Casa Grande & Senzala. Fronteiras , Recife, n.5, jul. 1936. p. 3. 371 FREYRE, G. O Que Foi o 1º Congresso Afro-Brasileiro do Recife. In: Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDARJ,Ed. Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937) 372 APEJE/DOPS. Jornal do Povo, 17 out. 1934. p 01. Fundo SSP 27902. 373 Cf. CUNHA, A. H. G. Políticas de um sociólogo culturalista. 1986. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1986.
“Aquele famoso Congresso afro-brasileiro, chefiado pela turma extremo-esquerdista de Gilberto Freyre, Ulysses Pernambucano, etc., mostrou a preparação ideológica que se fazia para o movimento armado prestes a explodir374.”
O autor concluiu o artigo afirmando que o congresso foi francamente tendencioso,
justas sendo as suspeitas com que o receberam os católicos.
Mais tarde, nos anos 50, Freyre provoca uma reação oposta. O seu
entusiasmo pelos portugueses, os primeiros europeus a desenvolverem uma
civilização nos trópicos, é até hoje um assunto controverso. Porém, não foi esta a
razão da polêmica nos anos 50. Na época, o ditador português, Antônio de
Oliveira Salazar, usou as idéias de Casa Grande & Senzala como aporte para sua
política contra a independência das colônias africanas. Freyre não só chegou a
elogiar o ditador português em artigos e conferências como também o assessorou
em algumas ocasiões. Por causa disso, recebeu críticas severas da esquerda375.
Para Moema D’Andrea, Gilberto Freyre pode corresponder à angústia da
oligarquia açucareira, dando-lhe em troca uma representação bem elaborada de
hegemonia cultural e de sociedade harmoniosa no convívio das classes,
descartando os entraves da estrutura social. Seu modelo de sociedade
escravocrata e pós-escravocrata, sem tensões, ainda era uma alternativa
confortável a ser aceita pela nova estrutura do poder. De um lado, ele confirmava
o prestígio cultural da oligarquia açucareira e, por outro, realinhava o poder
patriarcal à nova ordem industrial, mediante a exclusão das tensões que
indicariam os desconfortos dos ajustes feitos por cima376.
Pelo que se pode perceber, através das acusações feitas por alguns
setores da elite, seu trabalho não foi tão confortável como acredita a autora.
Freyre, com suas idéias ambíguas, conquistou simpatias e antipatias por parte das
oligarquias de então, inclusive sendo preso em 1935, juntamente com seu primo,
374 ATAYDE, T. Gente do Norte. Fronteiras, Recife, v. 5, n.12, mar. 1936. p.5. 375 LIMA, J. G. de. op. cit., 1999. p. 71. 376 D’ANDREA, M. S. A Polêmica Revisitada: Regionalismo e Modernismo .In: Estudos de Sociologia, Recife, v.1, n.1, p.53-62, 1995.
Ulysses Pernambucano, acusado de “agitador político”. Sobre esta questão,
escreve:
“Em 1935 pretendemos – Ulisses Pernambucano, Silvio Rabelo, Olívio Montenegro e nós – realizar um inquérito regional que servisse de base ao próprio usineiro ou proprietário rural bem intencionado para um ajustamento de relações entre as fábricas de açúcar e os seus trabalhadores rurais. Mas fomos repelidos como uns intrusos e até denunciados como agitadores377.”
Essas críticas proferidas acerca das idéias de Freyre demonstram que,
nesse período, para alguns setores da elite e da intelectualidade de Pernambuco,
sociologia e socialismo eram entendidos como sinônimos.
Freyre constrói o mito da brandura nas relações entre senhores e escravos,
amortecidos pelo “óleo lúbrico da miscigenação”. Ele traçou uma vasta história
social que procurou conciliar a fusão das raças e culturas, a sociedade brasileira
com o seu passado escravocrata378.
Nessa perspectiva, interessam-lhe os ingredientes da mistura e a sua
proporção na constituição desses pedaços diferenciados que representarão as
regiões. No Nordeste, o ingrediente africano fora bastante forte, sobretudo no
litoral379. Ao contrapor as populações tristonhas, caladas, sonsas e até
sorumbáticas do extremo Nordeste, principalmente dos sertões, à alegria
comunicativa do negro baiano, ressalta a contribuição positiva da extroversão do
negro da África por oposição à introversão do índio:
“Foi ainda o negro que animou a vida doméstica do brasileiro de sua maior alegria. O português, já de si melancólico,deu no Brasil para sorumbático, tristonho; e do caboclo nem se fala(…) A risada do negro é que quebrou toda essa ‘apagada e vil tristeza’ em que se foi abafando a vida nas casas-grandes380.”
377 FREYRE, G. Nordeste. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 1989. p. 162. 378 Cf. FREYRE, G. op. cit., 1995. 379 DANTAS, B. G. op. cit., 1988. 380 FREYRE, G. op. cit., 1995. p. 462.
As transformações dos discursos que se evidenciam na década de 30, com
as idéias de Freyre e de outros autores, representam um deslocamento dentro do
discurso dominante de então. Esse deslocamento teve um impacto conceitual
significativo nas representações das relações raciais e étnicas no país. Tal
deslocamento tem marcado e contribuído para mudar conceitualmente o discurso
de identidade no Brasil até os dias atuais.
Gilberto Freyre não exalta a pureza africana em si, na medida em que a
mistura é o elemento chave do seu esquema explicativo, que repousa na
interpenetração das raças e culturas, como condições de complementação e
equilíbrio entre as diferentes etnias formadoras da nação. Mas, paralelamente a
essa idéia de miscibilidade e encontro de culturas que caracterizaria o Brasil, corre
uma outra que é a oposição entre o passado e o presente, em que o passado é
idealizado através da tradição e o presente é visto como uma forma de
decadência e de deturpação de formas puras e autênticas do passado. Na medida
em que a mistura é um mecanismo de quebra da pureza do passado, e esse
passado teve um papel fundamental na formação da cultura, no presente se
transforma num elemento de influência deletéria capaz de corromper e degenerar
a autenticidade do produto cultural381.
Nada revela melhor esse preconceito contra o negro do que as idéias de
Freyre a respeito da evolução econômica e social do Brasil. Para ele, o negro vivia
melhor sob a escravidão do que no regime de liberdade de trabalho: a alimentação
do escravo seria melhor até do que a do senhor branco382.
A lógica racialista, no contexto de Casa Grande & Senzala, reside no interior
mesmo da linguagem. Porém, tal lógica já havia sido explicitada no Manifesto
Regionalista , através de sua apologia de um Nordeste em decadência, assim
como em seu elogio à cultura crioula, berço da chamada “democracia racial” 383.
Nessa perspectiva, Gilberto assinala:
“Talvez não haja região no Brasil que exceda o Nordeste em riqueza de tradições ilustres e em
381 DANTAS, B. G. op. cit., 1988. p.160. 382 Cf. FREYRE, G. op. cit.,1995. 383 MARTÍNEZ-ECHZÁBAL, L. op. cit., 1996.
nitidez de caráter. Vários de seus valores regionais tornam-se nacionais depois de impostos aos outros brasileiros menos pela superioridade econômica que o açúcar deu ao Nordeste durante mais de um século do que pela sedução moral e pela fascinação estética dos mesmos valores. Alguns até ganharam renome internacional (...) Apenas nos últimos decênios é que o Nordeste vem perdendo a tradição de criador de valores para tornar-se uma população quase parasitária ou uma terra apenas de relíquias: o paraíso brasileiro de antiquários e de arqueólogos.384 ”
Exime da responsabilidade as elites locais e as estruturas sociais marcadas
por profundas desigualdades, explicando, pela composição étnica, o atraso da
região. Se, por um lado, a exaltação da pureza africana servia como justificativa
para as diferenças regionais, por outro, poderia ser vista como estratégia na
dominação do negro385.
Como afirma Lívio Sansone, o sistema racial, formado pela terminologia
classificatória da cor e pelas regras do sistema de relações raciais, é
historicamente determinado e, ao mesmo tempo, reformula-se no dia-a-dia das
relações raciais. No caso brasileiro, no qual o racismo pouco se opõe uma
identidade negra politicamente manifesta, a complexidade deste sistema deve-se
não somente a desenvolvimentos recentes como também à história dessas
relações386.
Se em Casa Grande & Senzala faz a apologia do africano como um todo, em
Sobrados e Mucambos aparece ressaltada a especificidade da população negra
da Bahia:
“...penetrada não só do melhor sangue que o tráfico negreiro trouxe para a América como da cultura mais alta que, transmitiu da África ao conhecimento americano387.”
384 FREYRE, G. op. cit., 1996. pp. 52-53. 385 DANTAS, B. G. op. cit., 1988. 386 SANSONE, L. As Relações Raciais em Casa Grande & Senzala Revisitadas à luz do Processo de Internacionalização e Globalização. In: MAIO, M. C. (org.) Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/CNBB, 1996. p. 207. 387 FREYRE, G. op. cit., 1996. p.660.
Atribuindo às origens dos negros – escalonados segundo graus de
desenvolvimento étnico e cultural – um peso muito grande na explicação do social
e dos tipos psicológicos, Freyre termina por explicitar diferenças entre os baianos
“dionisíacos” e os pernambucanos mais parecidos com os paulistas, diferenças
que também se explicariam pelas origens dos negros africanos. Ao fazer uma
comparação entre a população negra da Bahia e a de Pernambuco, a segunda
levava desvantagem, pois, para ele:
“...a colonização africana do extremo Nordeste não foi tão fina – nem do ponto de vista europeu de estética, nem do de cultura moral e material – como a sudanesa que abrilhantou e enriqueceu de modo especial a Bahia. Sobretudo a Bahia urbana. Mas foi dominado por um tipo de negro forte e plástico, embora inferior àquele em altura, delicadeza de traços e elementos de cultura. Geneticamente bom e tecnicamente já na fase agrícola: apto ao serviço da lavoura de cana que era o meio de seleção de negros para o Nordeste agrário388”.
O negro pernambucano seria predominantemente banto, importado para
atender às exigências de uma lavoura e de uma indústria que pediam vigor físico
ao operário, enquanto na Bahia atendia também às necessidades urbanas, a
desejos estéticos e amorosos389. Neste sentido, os negros de Pernambuco seriam
bem dotados para o trabalho bruto, dispunham de força física, enquanto os da
Bahia estariam mais próximos do branco, não só em cultura mas também em
beleza390.
Aqui podemos perceber o racismo de Gilberto Freyre, já que tenta explicitar
as características do negro escravo de Pernambuco como condizentes com as
suas finalidades. Dito de outra forma, mais uma vez Freyre tenta provar que o
negro escravo, em Pernambuco, até nas suas atribuições físicas, era elemento
fundamental não só para o trabalho no latifúndio açucareiro como no processo de
“miscigenação democrático e harmônico” que ali se estabeleceu.
388 FREYRE, G. op. cit., 1989. p. 142. 389 Idem. Ibdem. p 141 390 DANTAS, B. G. op. cit., 1988.
Beatriz Góes Dantas, ao analisar essa questão, se pergunta:
“Ao transformar o africano em símbolo regional ou local, não se estaria querendo imputar a ele as responsabilidades pelos problemas e pelo atraso da região? Essa fora rica enquanto o africano fora escravo. Mas agora que ele persiste na sociedade brasileira e, sobretudo, na região Nordeste como um trabalhador livre, um cidadão, ela se estiola no subdesenvolvimento, num sinal de que, quando livre, nem mesmo os negros superiores da África foram capazes de lhe dar o impulso que o sul conhecia, através do trabalho do imigrante europeu391”.
Assim, Freyre estabeleceu uma correlação entre a miscigenação, que é um
fato biológico, e a democratização, que é um fato sociopolítico, tentando, com
isso, identificar como semelhantes dois processos distintos. Neste caso, o
pensamento de Freyre parece assemelhar-se com o de Nina Rodrigues que,
adotando o esquema evolucionista unilinear, faz a cultura depender da raça. Para
Nina Rodrigues, os africanos se encontrariam em estágio inferior de
desenvolvimento, impossível de superar, em ciclo histórico, a curto prazo392.
Ao tentar etnologizar os problemas sociais, a partir da afirmação de que há
uma democracia racial no Brasil, Gilberto Freyre acaba se confundindo
metodologicamente. Ao abandonar o universo da análise, cuja estrutura é
rigidamente hierarquizada, na qual as etnias brasileiras foram organizadas,
objetivando manter os segmentos e grupos dominados nas últimas escalas de sua
estrutura, demonstra a confusão do plano miscigenatório biológico com o social e
o político393.
Para Freyre, há uma grande hibridez, tanto na composição fenotípica de um
crescente número de brasileiros quanto na cultura que os acompanha. Trata-se de
uma sociedade caracterizada pela miscigenação e pelo sincretismo, apta a
englobar e a transformar símbolos e influências que provêm de diferentes lugares.
Outros importantes aspectos dizem respeito à permeabilidade e à relatividade das 391 Idem Ibdem. p.160. 392NINA RODRIGUES, R. Os Africanos no Brasil. 7.ed. São Paulo: Ed. Nacional:[Brasília]:Ed. Universidade de Brasília, 1988. 393 MOURA, C. op. cit., 1988.
categorias raciais, que podem ser contornadas e iludidas por meio do uso de
características e qualidades diversas para ajudar a superar as barreiras de raça.
Para ele, a cultura negra ou afro-brasileira, mais do que uma subcultura de
resistência, pode ser vista como a espinha dorsal da cultura brasileira, com as
“maneiras” dos negros figurando como um componente essencial do “ser
brasileiro”394.
Durante todo o decorrer desta análise, pudemos perceber que Freyre,
apesar de propagar o conceito de cultura elaborado por Franz Boas, não
consegue romper com o conceito biológico de raça. O que realizou em sua obra
foi um deslocamento retórico do conceito de raça395, tentando substituí-lo pelo de
cultura. Ao tentar substituir um conceito pelo outro, não conseguiu romper com o
discurso racista que marcou o pensamento, no Brasil, da maioria dos intelectuais
da época.
Concordamos com a idéia de José Luiz Passos quando afirma que a cultura
é um fazer que se atualiza; uma obra torna-se, portanto, seu próprio processo de
transmissão na história. Ela é, mesmo, a sua historicidade. Um percurso de
acúmulo de camadas de sentido que se unem, sobrepondo-se umas às outras, re-
informando o ponto de partida396.
Contudo, como afirma Fernando da Mota Lima, se o leitor põe entre
parênteses as posições políticas momentâneas do autor e lê as idéias que as
percorrem de ponta a ponta, o conjunto da obra produzida, sem muita dificuldade
se vai dando conta de que Gilberto Freyre é um conservador. Desde os escritos
da juventude até os da velhice, aqui incluídos os escritos que ostensivamente
emprestaram apoio intelectual e moral ao regime militar, nitidamente se delineia o
perfil de um intelectual imantado ao culto da tradição, sempre resistente às forças
394 SANSONE, L. op. cit., 1996. 395 Na perspectiva de Martinez-Echazábal, que entende que o conceito de raça pode ser qualificado mediante o uso de inúmeros adjetivos, de acordo com os interesses em questão e o substantivo utilizado. Cf. MARTINEZ-ECHAZÁBAL, L. op. cit., 1996. 396 PASSOS, J. L. I. op. cit., 1995. p. 99.
sócioculturais passíveis de transpor o Brasil para um mais avançado padrão de
modernidade397.
Isso contribuiu para que a obra de Freyre ficasse longe dos currículos das
universidades brasileiras, principalmente na década de 1970, quando a corrente
teórica hegemônica era a sociologia marxista, baseada no conceito de luta de
classes inexistente na obra de Freyre.
Diante de um autor cujo pensamento suscita tantas polêmicas na tentativa
de se entender sua postura, em face dos elementos que constituiriam a formação
da cultura brasileira e, principalmente, além da importância que atribui ao
processo miscigenatório, na construção dessa cultura, o que significaria afirmar a
importância de sua obra?
A obra, por si só, jaz morta em papel e tinta, não comunica. No entanto, os
usos e as percepções que se fazem dela, ao longo do tempo, restauram a sua
força e lhe restituem o sentido. Dito de outro modo, emprestam-lhe novos
significados que se somam gradativamente aos que já se encontram decantados.
A obra, como afirma José Luiz Passos398, continua a enxergar pelos olhos de um
eterno presente, através de seus contemporâneos. O único fato perene é o
presente. Esse somatório de sentidos, usos e interpretações é o seu diálogo com
o tempo.
Freyre contribuiu decisivamente para uma discussão polêmica acerca da
inserção do negro e de suas manifestações religiosas na formação da cultura
brasileira, contribuição esta, que serviu para orientar a reorganização do poder
oligárquico nas relações de força presentes ao nível do poder central.
Nesse sentido, conseguiu, no decorrer da construção da sua obra, gerar
polêmica, contradição, admiração, ostracismo, mas, acima de tudo, conseguiu a
façanha de se manter no alto da pirâmide, ao propor uma modernização
conservadora através de uma estratégia centralizadora, pela qual a sociedade
397 LIMA, F.M. Impacto e Permanência de Casa Grande & Senzala In: Estudos de Sociologia, Recife, v.1, n.1, p. 87-93, 1995. p. 90. 398 PASSOS, J. L. I. op. cit., 1995. p. 100.
moderna poderia vir a se instalar, sem uma ruptura perigosa com a antiga
estrutura de poder herdada do sistema escravocrata.
O próximo capítulo será dedicado à análise das idéias da psiquiatria em
Pernambuco nos anos trinta, a qual concebia o negro e sua religiosidade como
foco potencial de doença mental e, portanto, ameaça à construção de uma
sociedade nacional sadia e desenvolvida; e às idéias de Freyre e dos culturalistas,
que tomavam o negro e a sua religiosidade como elemento central para a
construção de uma sociedade miscigenada e ímpar que se constituiu nos trópicos,
cujo álibi, para o seu desenvolvimento, se assenta na democracia racial. O Iº
Congresso Afro-Brasileiro, realizado no Recife, em 1934, será estabelecido como
palco dessa historicidade.
CAPÍTULO IV
O Iº CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO DE 1934
Aqui estão eles! Eugenistas, culturalistas,
pais e mães-de-santo reunidos em congresso!
O objetivo deste capítulo é analisar o significado do Iº Congresso afro-
brasileiro realizado em Recife, sua repercussão na imprensa nacional e
internacional e o confronto de idéias propagadas com o acontecimento.
Pretendemos, também, analisar as idéias de Ulysses Pernambucano e de seu
grupo, acerca do negro e da doença mental, bem como as idéias de Gilberto
Freyre e dos intelectuais culturalistas, presentes, de forma direta ou indireta, nas
discussões travadas em torno do Congresso.
Temos, como referência, a idéia de Michel Foucault399 de que a
historicidade que nos domina é belicosa. A referência, para análise, é a noção de
guerra, de batalha de saberes. Distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes
e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com
que se engendrem, uns a partir dos outros. Trata-se de saber que efeitos de poder
circulam entre os discursos400.
O palco onde se estabelece este combate histórico, o Iº Congresso Afro-
Brasileiro do Recife, pode ser problematizado, dentro desta perspectiva, em:
como certas formas de saberes poderiam dar lugar a representações diferentes
em seu objeto e em sua estrutura401?
Avaliada como terceira capital do Brasi l, o Recife dos anos 30 era
considerada como importante centro econômico do Norte/Nordeste. Cidade
moderna, com transportes urbanos, abastecimento de gás, água e luz elétrica. Era
também o referencial cultural e político, com seus centros acadêmicos,
hospitalares, comerciais, empresariais, cujos serviços atendiam, também, às
carências dos demais Estados do Norte/Nordeste402.
O local para realização do Iº Congresso não poderia ser mais apropriado: o
salão nobre do Teatro Santa Isabel, no período de 11 a 16 de novembro de 1934.
Sob a coordenação de Gilberto Freyre e Ulysses Pernambucano, cientistas,
estudantes, artistas, operários, babalorixás, ialorixás, Rainha do Maracatu, entre
outros, compareceram ao evento. Sobre o assunto, Freyre comenta:
“Era natural que, tendo dado aos cultos afro-brasileiros a categoria de religiões (...) (Ulysses Pernambucano) acolhesse com a maior das simpatias a idéia de organizar-se no Recife um congresso de estudos afro-brasileiros: (...) outra sugestão devo imodestamente esclarecer que minha403”.
399 FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 11. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993. pp. 4-5. 400 Idem Ibdem. 401 Idem Ibdem. 402 SARMENTO, A. N. M. Urnas & Baionetas: os comunistas na história política de Pernambuco – PE (1930-1935). 1998. Tese (Doutorado em História) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife , 1998. 403 FREYRE, G. Sobre Ulysses Pernambucano. Ciclo de Estudos Sobre Ulysses Pernambucano. Recife: Academia Pernambucana de Medicina, 1978. pp. 140-141.
Freyre, ao fazer uma reflexão acerca do Congresso, afirma ter sido
organizado com técnica inteiramente nova. Sem pompa e sem burocracia. Sentar-
se-iam à volta da mesa, na cabeceira da qual se sucederiam os presidentes,
conforme o assunto do dia, não só doutores, com grande erudição de gabinete e
de laboratório, como ialorixás gordas, cozinheiras velhas, pretas de fogareiro, que
trouxeram do fundo de cozinhas de mocambos receitas de quitutes afro-brasileiros
quase ignoradas, negros de engenho, babalorixás, rainhas do Maracatu, outros
analfabetos e semi-analfabetos, com um conhecimento direto de assuntos afro-
brasileiros, estudantes de direito, de engenharia, de medicina, velhos folcloristas,
íntimos conhecedores da técnica da Macumba, psiquiatras, artistas, intelectuais,
jornalistas, representantes de jornais do Rio, e muitos outros404. Em entrevista ao
Diário de Pernambuco, explica:
“Não será bem um Congresso, mas uma espécie que os americanos chamam de “Round-Table”. Apenas um grupo de estudiosos de assuntos afro-brasileiros reunidos para discutir em voz de conversa e com a maior calma, maior objetividade, aqueles problemas um tanto esquecidos pelo arianismo oficial. (...) De toda essa gente há trabalhos que vão ser lidos nas reuniões do Afro-Brasileiro e publicados depois nos seus anais405.
Freyre acabara de publicar, em fins de 1933, Casa Grande & Senzala, em
que estudou a participação do negro na vida e na cultura brasileira. Para José
Antonio Gonsalves de Mello, a repercussão que teve o livro, explica a pronta
aceitação de tantos participantes406.
As reuniões para a organização do Congresso foram realizadas no prédio
da administração do Hospital da Tamarineira. Em 06 de setembro de 1934, numa
das Salas da Assistência a Psicopatas, a comissão organizadora se reuniu, sob a
presidência de Ulysses Pernambucano, para tomar as seguintes resoluções: a
404 FREYRE, G. O Que Foi o 1º Congresso Afro-Brasileiro do Recife. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937).pp. 348-352. 405 FREYRE, G. O Afro-Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife, 11 nov. 1934. p. 03. 406MELLO, J. A. G. de. Prefácio: Uma reedição necessária. Estudos Afro-Brasileiros. Recife:FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Ariel, 1935).
denominação do evento, o tema a ser abordado, a data da realização, a
programação e os locais das atividades407.
Ainda quanto à organização do Congresso, foi realizada uma reunião com
pais e mães-de-santo do Recife. De acordo com Freyre, foi uma reunião pitoresca,
mas agradabilíssima. Dos acontecimentos da reunião, destacou-se o medonho
barulho provocado por Pai Adão408. Para Freyre, foi em Pai Adão que encontrou o
melhor inspirador para a direção que tomou afinal o Congresso. Porém, sua
exigência para tomar parte deste era enorme. Logo as suas primeiras
intransigências, lembrara que outros Pais Adão, louros e chefes de seitas mais
ilustres que a sua, tinham se recusado a comparecer ao Congresso de Religiões
que, no fim do século XIX, houve em Chicago, a primeira reunião com a presença
do cardeal Gibbons409.
Quanto aos convites distribuídos àqueles que “deveriam” participar do
Congresso, seus organizadores enviaram a seguinte circular:
"Venho pela presente lhe comunicar que o primeiro Congresso Afro-brasileiro deverá se realizar nos dias 11 a 15 de novembro próximo, na cidade do Recife. Este congresso tem por fim reunir estudos sobre a influência africana no desenvolvimento cultural do Brasil, e problemas de relação de raça em nosso paiz. O congresso constará de uma exposição de objectos de seitas afro-brasileiras, outra de desenhos e pinturas fixando aspectos da vida africana no Brasil, que reunirá trabalhos de Cícero Dias, Luiz Jardim, Santa Rosa, Di Cavalcanti, Noemia, Manoel Bandeira e photographias de Francisco Rebello. De "toques" em terreiros de Babalorixás do Recife e da leitura e discussão dos trabalhos que forem enviados ao Congresso por especialistas do paiz e do estrangeiro sobre etnographia, folklore, arte, anthropologia, sociologia, e psychologia social do afro-brasileiro. Sabendo que o senhor si interesa pelos assumptos afro-brasileiros, pedimos sua valiosa collaboração. Já contamos com trabalhos de Arthur Ramos, Renato Mendonça, Gilberto Freyre, Edson Carneiro, Mário Marroquim e outros.
407 Primeiro Congresso Afro-Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife, 07 set. 1934. p.04. 408 Pai Adão era um dos pais -de-santo mais conhecidos no Recife, por suas práticas religiosas ortodoxas. Sobre Pai Adão e seu terreiro, vide: PEREIRA CAMPOS, Z. D. O Terreiro Oba Ogunté: Parentesco, Sucessão e Poder. 1994. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1994. 409 FREYRE, G. Pae adão. Diário de Pernambuco, Recife, 28 abr. 1936. p. 03.
No caso do ser possível sua collaboração, solicitamos remettel-a até o dia 1º de novembro para o endereço abaixo. Desejando mais esclarecimentos será atendido com prazer. Saudações - Secretário Geral. (a.) José Valladares / Rua Cardeal Arco Verde. 98 - Recife - Pernambuco410.
O Congresso se realizou com contribuições financeiras de importantes
profissionais: médicos, advogados, comerciantes, entre outros. Foi considerado,
por seus organizadores, um acontecimento independente. Não recebeu nenhuma
ajuda do governo, não se associou a nenhum movimento político, a nenhuma
doutrina religiosa, a nenhum partido. A quantia arrecadada, através da
contribuição dos simpatizantes do certame, foi de 876$000 e foi utilizada nas
despesas de correspondência, a cargo do estudante de Direito, José Valadares,
secretário geral do Congresso, para auxílio aos Babalorixás, na ceia no jardim da
Escola Doméstica e na compra de objetos de arte afro-brasileira para a exposição
que se realizou no Teatro Santa Isabel, sob a direção de Cícero Dias, ajudado por
Clarival Valadares, Albertina Fleury e Jarbas Pernambucano411.
Finalmente, depois de todas as discussões acerca da organização do
Congresso, foi divulgada, através da Imprensa, a seguinte programação:
“Dia 11/11 15 horas: sessão de abertura (salão nobre do teatro Santa Isabel). 21 horas: Toque no Terreiro do babalorixá Anselmo, (culto Nagô412). No Fundão, Rua do Progresso, 13 (Bondes de Beberibe e Água Fria). Dia 12/11 15 horas: reunião na sessão de Etnografia com a presidência do Sr. Ulysses Pernambucano. 17 horas: reunião na sessão de Antropologia e Etnologia com a presidência do Sr. Olivio Montenegro. Dia 13/11 10 horas: Visita à Assistência a Psicopatas. 15 horas: Reunião da sessão de Folclore sob a presidência do Dr. Rodrigues de Carvalho.
410 APEJE-DOPS. Prontuário Funcional. 1º Congresso Afro -Brasileiro. Jornal do Povo, 19 out.1934. Fundo SSP, n. 27902. 411 FREYRE, G. op. cit., 1988. pp. 348-352. 412 Nome dado, no Brasil, ao grupo de escravos sudaneses procedentes do país Ioruba, cujos rituais foram adotados pelos Candomblés mais conservadores. CACCIATORE, O. G. Nagô. In: CACCIATORE, O. G. Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. p. 178.
21 horas: Toque no terreiro do babalorixá Oscar (culto Jeje413), em Campo Grande. Dia 14/11 10 horas: visita ao Gabinete de Antropometria da Brigada Militar do Estado. 15 horas: Reunião da secção de Psicologia Social com a presidência do Prof. Silvio Rabelo 20 horas: Ceia (quitutes afro-brasileiros) na Escola Doméstica, fazendo-se ouvir, por essa ocasião, a senhorita Leda Baltar e o poeta Ascenso Ferreira. Tomarão parte desta ceia os membros do Congresso e representantes da imprensa. Dia 15/11 09 horas: Excursão à ilha Joaneiro, com a presidência do professor Geraldo de Andrade. 16 horas: audição de música afro-brasileira no Teatro Santa Isabel, direção dos professores Vicente Fittipaldi e Ernani Braga414.
A repercussão do Congresso se fez notar na impressa dias antes de sua
realização. Novos caminhos parecem ter sido abertos para o estudo do negro no
Brasil, e, como cada vez que semelhante aventura se produz, percebem-se
repercussões e reticências. O Jornal do Povo, em 17 de setembro de 1934, assim
notifica o acontecimento:
“O JORNAL DO POVO, que tem em seu programa a defesa das massas trabalhadoras, reconhece o valor do primeiro Congresso Afro-Brasileiro, a realizar-se em Recife, uma vez que este congresso se propõe a estudar, do ponto de vista da sciencia, a posição do Negro do Brasil, desde o período colonial até os nossos dias; mesmo porque de tais estudos só a uma conclusão chegarão todos os estudiosos do Congresso - a absoluta negação da theoria do negro como elemento inferior de coloniozação ( theoria forjada, "pour cause", sociólogos sustentados pelos governos interessados, como é o caso, entre nós, do Sr. Oliveira Vianna) e a documentação, a mais sólida, da situação de explorados e oprimidos que é a dos negros no Brasil. Deste ponto de vista, o JORNAL DO POVO abre as suas collunas ao 1º Congresso Afro-Brasileiro e annuncia, desde já, que enviará a Recife um de seus redatores415.”
413 Dialeto falado por escravos vindos de Daomei, cuja linguagem, crenças e costumes foram absorvidos em grande parte pelos Nagôs. CACCIATORE, O. G. Jeje. In: CACCIATORE, O. G. op. cit., 1988. p. 153. 414 1º Congresso Afro-Brasileiro: o programa e suas reuniões. Diário de Pernambuco, Recife, 09 nov. 1934. p. 01. 415 APEJE-DOPS. Prontuário Funcional. 1 Co ngresso Afro-Brasileiro. Jornal do Povo. 19 out. 1934. Fundo SSP, n. 27902.
Num artigo publicado no Diário de Pernambuco, Octavio de Freitas afirma
que o Congresso Afro-Brasileiro não será interessante só pelos estudos
psicológicos das seitas veneradas na África e que continuavam sendo praticadas
no Brasil, será um movimento de gratidão. O Brasil mostra-se reconhecido aos
negros que começaram a trabalhar por ele416.
Em 10 de novembro, o Diário de Pernambuco informa que o Congresso
está provocando em todo o país grande interesse, já tendo sido recebidas
numerosas adesões do Rio, de São Paulo, da Bahia e do Rio Grande do Sul417.
Os organizadores do Congresso receberam uma carta do Sr. Jaime Aguiar,
um dos líderes da mocidade negra de São Paulo. Dentre outra questões, assinala
que, de São Paulo, os negros de fibra, de altivez, que ainda lutam para conquistar
reivindicações justas, aplaudem de coração esse nobre empreendimento418.
A divulgação do certame é feita através de um discurso extremamente
repetitivo. Ao invés de ser uma coisa dita de forma definitiva, aparece como um
status, entra em redes, se coloca em campos de utilização. Assim, o discurso
circula, serve, permite a realização de um desejo, é dócil ou rebelde a interesses,
entra na ordem das contestações e das lutas. Torna-se tema de apropriação e de
rivalidades.
A exposição de arte do Congresso foi inaugurada juntamente com a sessão
de abertura. Para essa exposição, mandaram trabalhos Lasar Segall, Portinari,
Noemia, Di Cavalcanti, Santa Rosa, Cícero Dias, Luis Jardim e Manuel
Bandeira419. A exposição contou também com objetos de arte popular afro-
brasileira, como figas, bonecos, bichos de barro e estandartes de maracatus. Em
reportagem ao Diário de Pernambuco, Luiz Jardim faz a seguinte análise da
exposição:
“Nos trabalhos expostos no salão do Santa Isabel destacam-se pelo colorido que mais sofreu a influência negra os de Cícero
416 FREITAS JR., O. O Brasil e o Negro. Diário de Pernambuco, Recife, 07 nov. 1934. p. 33. 417 I Congresso Afro-Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife, 10 nov. 1934. p. 10. 418 AGUIAR, J. O Negro em São Paulo: o movimento da “Mocidade Negra” e o Congresso Afro-Brasileiro.Diário de Pernambuco, Recife, 17 nov. 1934. p. 04. 419 FREYRE, G. op. cit.,1988. pp. 348-352.
Dias, mas não grande influência. Porque Cícero corre ainda o perigo do tornar-se um clássico do modernismo. Di Cavalcanti nos trabalhos que expõe, falta a cor regional. Vivendo no Rio, onde os elementos são os mais diversos, todos os seus motivos são igualmente diversos e inconscientes. Noemia expõe trabalhos curiosos. Nota-se certa ingenuidade no motivo de cada quadro. Segall, entre outros trabalhos, expõe uma magnífica cabeça de negro. É pena que não enviasse nenhum trabalho colorido. Lula expõe dois trabalhos que ele mesmo confessa inacabados, quase um esboço. De Manuel Bandeira dois bons flagrantes da festa de Nossa Senhora dos Prazeres. À Bandeira cabe mais do que qualquer um outro se servir mais do motivo negro. Santa Rosa enviou do Rio desenhos ligeiros. Sente-se em Santa Rosa a falta de ambiente. A exposição de arte popular ao lado da de pintura, oferece muita coisa curiosa; brinquedos de louça vidrada, bonecos, enfeites e muita cor. O Congresso particularmente para arte terá uma significação extraordinária: será talvez a arte brasileira do Norte420.”
A pintura procura realizar plasticamente a visibilidade da cultura afro-
brasileira. Os dizeres de Luiz Jardim estão centrados numa busca de cores e
traços marcantes nas pinturas expostas. Cores que representem a presença
africana no Brasil: o encarnado, o laranja, o azul, o roxo. Essa presença, como
lembra o autor, será, talvez, a arte brasileira do Norte. Procura nos traçados dos
artistas uma pintura que crie a imagem de um ambiente multirracial, multicolorido,
folclórico. Espaço que deve se diferenciar do “clássico modernismo” do Sul que,
para ele, carece de identidade.
A primeira reunião foi apenas de abertura. Os ingressos para as
comunicações, para os “Toques” e a exposição achavam-se à venda na Capital,
na Rua Nova. Neste primeiro dia, poderiam ser encontrados no Santa Isabel, em
mãos de acadêmicos de direito, medicina e membros da comissão organizadora.
Os estudantes teriam abatimento de 50%. O primeiro toque ocorreu neste dia, no
terreiro do babalorixá Anselmo421.
420 JARDIM, L. A exposição de Pinturas do Congresso Afro-Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife, 20 nov. 1934. p. 7. 421 I Congresso Afro-Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife, 11 nov. 1934. p. 04.
No segundo dia de congresso, tudo transcorreu conforme a programação.
Às 15 horas, reuniu-se a sessão de Etnografia, presidida por Ulysses
Pernambucano, e, às 17 horas, a sessão de Antropologia e Sociologia, sob a
presidência do Prof. Olivio Montenegro422.
No dia 13, terceiro dia dos trabalhos, realizou-se, às 10 horas, a visita à
Assistência a Psicopatas. O Prof. Ulysses Pernambucano, aproveitando a visita,
inaugurou o retrato do psiquiatra Juliano Moreira disposto em uma das salas de
aula da Assistência. Também foi inaugurado o Gabinete de Antropometria. Em
seguida, o Diretor da Assistência a Psicopatas percorreu com os congressistas
vários departamentos da Assistência423.
Às 15:30 horas, reuniu-se a sessão de Folclore e Arte, a princípio sob a
presidência do Prof. Ulysses Pernambucano e, depois, sob a direção do folclorista
Rodrigues de Carvalho. Nela, foram feitas as leituras dos resumos dos seguintes
trabalhos: Fizeram os Negros Theatro no Brasil? (Samuel Campello), Notícia da
Pintura e da Escultura Religiosa entre os Afro-Brasileiros (Gonçalves Fernandes),
O Negro na Música do Nordeste (Manoel Diegues Junior), A Dança e a Música
nos Candomblés (Arthur Ramos), A Influência Africana na Formação Ethnologica
do Brasileiro (Rodrigues de Carvalho), O Negro no Folk-lore e na literatura do
Brasil (Renato Mendonça), Notas sobre o Catimbó (Luiz da Câmara Cascudo),
Xangô (Edson Carneiro), e ainda receitas de quitutes afro-brasileiros apresentadas
pela Ialorixá Santa, pelo babalorixá Oscar e por cozinheiras pretas424.
Às 21 horas, numeroso grupo de congressistas, jornalistas e pessoas
simpáticas ao Congresso, entre outras o Prof. Ulysses Pernambucano, os
escritores Mário Marroquim e José Lins do Rego, Dr. Gildo Neto e família,
jornalista Nóbrega da Cunha, dirigiram-se para a Rua Serena, Terreiro de Oscar,
onde se realizou o Toque de culto Jeje425.
Às 10 horas do quarto dia de Congresso, tiveram lugar a visita ao Gabinete
de Antropometria, Biometria e Biotipologia na Brigada Militar e as sessões anexas
422 I Congresso Afro-Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife, 11 nov. 1934. p. 04. 423 I Congresso Afro-Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife, 14 nov. 1934. p. 10. 424 Idem. 425 Idem.
do serviço de saúde dessa corporação. Em seguida, sob a regência do Maestro
José Lourenço (Zuzinha), foi executado o seguinte programa: “canto do Pajé”,
motivo afro-brasileiro de Villa-Lobos; “Viva o Brasil”, música de José Lourenço e
letra do Prof. Sotero; “Serenata”, de Schubert; e “Cadatal”, motivo indígena do Dr.
Silva426.
Às 15 horas, no Santa Isabel, reuniu-se a sessão de Psicologia Social, sob
a presidência do Prof. Sylvio Rabello, diretor da Escola Normal. Iniciando os
trabalhos, o Prof. Octavio de Freitas, Diretor da Faculdade de Medicina, leu sua
memória sobre As Doenças Trazidas da África, Juntamente com os Escravos. O
Sr. Nóbrega da Cunha pronunciou sua conferência sobre Macumba (magia afro-
brasileira). O Dr. Pedro Cavalcanti não leu sua comunicação, pelo adiantado da
hora427.
Às 20:30h., realizou-se a ceia de quitutes afro-brasileiros no jardim da
Escola Doméstica, na Rua Fernandes Vieira, em um pavilhão todo enfeitado de
bandeirinhas de papel e bananeiras. Em potes e pratos de barro, foram servidos
cocadas, inhame, mel, café e acarajé pelas alunas daquela escola que se
apresentaram vestidas de baianas428. O chão estava macio de folhas de canela.
Havia palhas de coqueiros enfeitando o quiosque do jardim, onde, durante a ceia,
se venderam gravatas e lenços, como lembrança da festa. No fim da ceia,
cantaram-se modinhas429. O pintor Cícero Dias encarregou-se de escolher as
cores das gravatas que os rapazes do Congresso venderam. Cores bem ao gosto
africano: alaranjadas, encarnadas, amarelas e roxas430.
O acontecimento é revelador para o enaltecimento das diferenças que tanto
os organizadores do Congresso tentaram, na produção dos seus discursos, omitir.
Os enfeites, as comidas, as roupas típicas usadas pelas alunas da Escola
Doméstica, as gravatas e os lenços de cores fortes, tudo levava à criação de
estereótipos em que as multiplicidades, as diferenças, são apagadas em nome
das semelhanças que levariam à produção de uma imagem harmoniosa dos 426 I Congresso Afro Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife, 15 nov. 1934. p. 02. 427 Idem. 428 Idem. 429 FREYRE, G. op. cit., 1988. pp. 348-352. 430 Um pintor que deixou o mundo pela província. Diário de Pernambuco, Recife, 10 nov.1934.
elementos africanos que foram “assimilados” pela tradição da elite intelectual. A
esta parte da programação não compareceram os pais e mães-de-santo que,
“democratricamente”, sentaram-se à mesa junto aos “doutores de grande
erudição” para discutir, “em voz de conversa”, os problemas esquecidos pelo
“arianismo oficial”. Os organizadores do Congresso estabelecem as diferenças. O
lugar que cada personagem ocupa nessa invenção de uma tradição afro-brasileira
está claramente demarcado.
No dia seguinte foi publicado no jornal Diário de Pernambuco que não se
realizaria a visita à ilha de Joaneiro, programada para as 09 horas daquele dia431.
Às 15 horas, os congressistas reuniram-se em sessão de encerramento dos
trabalhos. Assumindo a presidência, o professor Ulysses Pernambucano convidou
a tomar assento à mesa o Sr. Miguel Barros, representante da Frente Negra
Pelotense432. Gilberto Freyre apresenta as seguintes moções:
“1- Sendo as classes trabalhadoras do Brasil, em grande parte, gente de sangue negro e herdeira de elementos valiosos de cultura negra, o Iº Congresso Afro-Brasileiro manifesta sua solidariedade a essas classes, contra toda forma de opressão. 2- O Iº Congresso Afro-Brasileiro louva a ação da Assistência a Psicopatas de Pernambuco reconhecendo nas seitas africanas de organização definida cultos religiosos e resguardando-as das perseguições policiais; ao mesmo tempo protesta contra essas coerções, onde quer que elas ainda se exerçam em nosso país. 3- O Iº Congresso Afro-Brasileiro protesta contra a atitude da Comissão de Censura Estética do Recife querendo fazer desta capital uma cidade de cores chamadas delicadas, isto é, cinzento, róseo, etc. e proibindo os encarnados, roxos e amarelos, as cores vivas mais do gosto da nossa população e mais de acordo com as nossas tradições, neste ponto, como em tantos outros, impregnadas de influência africana. 4- O Iº Congresso Afro-Brasileiro protesta contra toda espécie de discriminação contra negros ou mestiços, que ainda se verifique no Brasil.
5- O Iº Congresso Afro-Brasileiro, apelando para a colaboração dos africanistas do país, recomenda a fundação no Rio de Janeiro de um Instituto Afro-Brasileiro, nos termos da proposta junto dos congressistas Nóbrega da Cunha, José Lins do
431 I Congresso Afro-Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife,15 de nov. 1934. p.02. 432 O Encerramento do I Congresso Afro-Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife, 16 nov. 1934. p. 04.
Rego, Adhemar Vidal, Gilberto Freyre, Adherbal Jurema, Cícero Dias, Olivio Montenegro, Mario Lacerda de Melo, Luiz Jardim, José Valadares, Aluisio Campos, Vanderlino Virgínio, José Miranda, Abelardo d’Araujo Jurema Jr., A.Gonçalves de Mello Neto, Luiz Santa Cruz, Waldemar Cavalcanti, Manoel Diegues Jr., Emiliano Di Cavalcanti, Noemia Mourão e Odorico Tavares433.”
A proposta foi aprovada, sendo elaborada uma resolução composta de
treze artigos. Foram designados Gilberto Freyre, Adhemar Vidal, José Lins do
Rego, Miguel de Barros e José Valladares para tratarem da organização do
Instituto434. A publicação dos anais do Congresso ficou sob a responsabilidade de
Waldemar Cavalcanti, Olívio Montenegro, Arsenio Tavares e Adherbal Jurema.
Encerrado oficialmente o Iº Congresso Afro-Brasileiro do Recife, os
participantes dirigiram-se ao restaurante Manoel Leite, onde Adhemar Vidal
ofereceu um jantar. Às 21:30 horas, teve lugar o “toque” no terreiro do babalorixá
Rozendo, do culto Xambá435. Da Praça da República, partiram numerosas
pessoas, em automóveis, para assistir a ele436.
No dia seguinte, no Teatro Santa Isabel, os maestros Ernani Braga e
Vicente Fittipaldi dirigiram os alunos do Conservatório de Música na audição de
música afro-brasileira437.
O que podemos refletir desse conjunto de práticas, discursos, vozes e
imagens propagados em torno do Congresso é que, através do discurso da
“democracia dos saberes”, se instituiu uma linguagem que arrogou o direito de
dizer ao outro qual o seu lugar e o seu papel na construção da identidade afro-
brasileira que, naquele momento, estava sendo forjada.
Propõe-se a participação conjunta e harmoniosa de intelectuais, pais e
mães-de-santo, cozinheiras, analfabetos e trabalhadores rurais nas discussões e
debates travados. No entanto, essa participação tem o seu espaço delimitado,
organizado, hierarquizado, em que se procura instituir uma nova forma de relação
entre o saber e as práticas intelectuais, entre o saber e as práticas populares.
433 Idem. 434 Idem. 435 Culto em extinção, mesclado de elementos bantos e indígenas. CACCIATORE O. G. Xambá. In: CACCIATORE, O. G. op. cit., 1988. p. 249. 436 O Encerramento do I Congresso Afro-Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife, 16 nov. 1934. p. 04. 437 O I Congresso Afro-Brasileiro.Diário de Pernambuco, Recife, 17 nov. 1934. p.10.
As moções apresentadas ao final do Congresso protestam contra a
discriminação de negros e mestiços, destacando que a classe trabalhadora
brasileira é constituída, em sua maioria, de “gente de sangue negro”, herdeira de
elementos da cultura africana. Raça e cultura aparecem em confluência num
discurso que coloca o outro, o negro ou mestiço, como incapaz, pela posição que
ocupa no estrato social, de lutar contra o preconceito e a discriminação. Seria,
portanto, tarefa dos intelectuais estudá-los para melhor protegê-los. É esse o
papel que vem desempenhando a Assistência a Psicopatas de Pernambuco, e
também deverá fazê-lo o Instituto Afro-Brasileiro a ser criado na capital do país.
Arthur Ramos, num artigo acerca do Congresso Afro-Brasileiro de Recife,
afirma que, antes de tudo, foi uma esplêndida realização. Uma conseqüência dos
problemas que inquietavam uma parcela da sociedade: Agora, sim, começamos a
escrever a história do Brasil. Material de casa que estava esquecido438.
José Lins do Rego escreve sobre a repercussão do Congresso, assinalando
que é verdade que, fora do Brasil, o mesmo teve outro relevo. Jornais europeus e
americanos, como o The New York Times, foram mais longe na importância que
deram ao acontecimento. Para eles, o Congresso do Recife refletia um interesse
mais de cultura que de exibicionismo. E abriram as suas páginas para comentar o
movimento científico que se realizava pela primeira vez na América do Sul439.
Para Marilena Chauí, uma das maneiras mais eficazes de criar nos objetos
sociopoliticos a crença de que são sujeitos, consiste em elaborar uma série de
discursos por cujo intermédio é outorgada competência aos interlocutores que
puderem assimilá-los. Assim, surgem milhares de artifícios mediadores e
promotores de conhecimento que constrangem cada um e todos a se submeterem
à linguagem do especialista que detém os segredos da realidade vivida e que,
indulgentemente, permite ao não especialista a ilusão de participar do saber440.
Concordamos com a autora no que se refere à participação da comunidade afro-
religiosa no Congresso. 438 RAMOS, A. Convidando uma geração a depor: um interessante depoimento do Professor Arthur Ramos . Diário de Pernambuco, Recife, 28 abr. 1935. 2º secção. p. 01. 439 REGO, J. L. do. Estudos Afro-Brasileiros . Diário de Pernambuco, Recife, 07 jan. 1936. p. 02. 440 CHAUÍ, M. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 7. ed. São Paulo: Cortez, 1997.
Alguns trabalhos apresentados ao Congresso do Recife foram publicados à
parte: o de Adherbal Jurema, Insurreições Negras no Brasil, e o do Professor
Octavio de Freitas, Doenças Africanas no Brasil441. Os outros, foram publicados
em anais que constam de dois volumes. O primeiro, Estudos Afro-Brasileiros, foi
divulgado em 1935, no Rio de Janeiro, pela editora Ariel. Teve como prefaciador
Roquette Pinto, e foram publicados vinte e cinco trabalhos. O segundo volume só
viria a lume em 1937, pela editora Civilização Brasileira, com o título: Novos
Estudos Afro-Brasileiros. Nem todos os trabalhos apresentados ao Congresso
foram publicados; também somam-se aos anais trabalhos que não foram
apresentados.
No primeiro volume, os vinte e cinco trabalhos apresentados remetem-se
aos mais diferentes assuntos, tendo como mote que une as diversas tendências
dos estudos a cultura afro-brasileira.
O primeiro artigo, O Negro no Folk-lore e na Literatura do Brasil442, foi
escrito por Renato Mendonça. É dividido em duas partes. A primeira tem o
subtítulo Folk-lore e é dedicada à discussão sobre as crenças dos negros. Para
ele, o problema se prende às religiões da África. Desse modo, comparando-se as
crenças recriadas no Brasil com as existentes naquele continente, descobre-se em
ambas a presença do totemismo. Todavia, as crenças totêmicas, no Brasil,
receberam influência do catolicismo, originando sincretismo religioso. Para
Mendonça, a imaginação do africano se comunicou com a alma brasileira, de
forma mais significativa, nos contos populares443. A segunda parte é denominada
pelo autor de Literatura. Seu argumento principal é que o negro, em nossa
literatura, não ocupa a posição brilhante do indígena, em torno de quem se
desenvolveu uma escola literária. Renato Mendonça finaliza o texto fazendo
referência aos trabalhos de Arthur Ramos e Gilberto Freyre como contribuições
brilhantes ao estudo do negro no Brasil444.
441 FREYRE, G. op. cit., 1988. p. 352. 442 MENDONÇA, R. O Negro no Folk-lore e na Literatura do Brasil. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935.) pp. 01-16. 443Idem Ibdem. 444 Idem Ibdem.
Aqui, a escolha que o autor faz do que dizer se deve a uma orientação da
preocupação intelectual de época. Ao fazer as escolhas dentro das idéias
difundidas por Freyre e Arthur Ramos, participa da reconfiguração do sistema de
referência e, por isso, também do modelo de sociedade a partir do qual atua.
Dentro desse modelo, estão presentes os debates sobre o sincretismo religioso,
as crenças populares e a inserção do negro na literatura brasileira, temas
fortemente explorados pelos dois autores que referendaram sua análise.
O trabalho intitulado Ensaio Ethno-psychiatrico Sobre Negros e Mestiços445
objetiva estudar a contribuição que os africanos, em sua interfusão com outras
raças, vieram oferecer à patologia mental. Os autores tomam como referência a
obra de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, em que ele assinala o mérito da
contribuição africana no contingente racial negro em nossa formação histórica.
Nesse sentido, pretendem realçar o aspecto de relativa homogeneidade que se
nota entre os pretos importados e assimilados no país. Concordam com a
afirmação de Nina Rodrigues de que o tráfico lançou no Brasil os melhores
espécimes da grande família negra446. Para os autores, o negro brasileiro e o
mestiço de branco, símbolos elementares de transição em plena atividade
evolutiva, tendem cada vez mais para um tipo intermediário de certa estabilidade.
Tudo parece favorecê-lo com rápida assimilação em que os fatores arianizantes
entram fartamente447. À guisa de conclusão, afirmam:
“Já não existem negros representantes originários da África entre nós; os mulatos são o principal elemento da mestiçagem; a constituição mental dos negros favorece o desenvolvimento de correlativas personalidades, o desencadear de análogas psicoses. Tal constituição expressa correlações morfo-caracterológicas que servem de base à psicologia diferencial das raças.
445 CUNHA-LOPES ; REIS, J. C. de A. Ensaio ethno-psychiatrico sobre negros e mestiços. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935.) pp. 17-20. Trata-se de um trabalho da Clínica Psiquiátrica da Universidade do Rio de Janeiro sob a orientação do professor Henrique Roxo. Essa pesquisa abrange os seis primeiros anos do arquivo da Clínica Psiquiátrica do Rio de Janeiro. 446 Cf. NINA RODRIGUES, R. Os Africanos no Brasil. 7.ed. São Paulo: Ed. Nacional; [Brasília]: Ed. Universidade de Brasília, 1988. 447 CUNHA-LOPES ; REIS, J. C. de A. op. cit., 1988.
Considerando as doenças mentais nos negros, nota-se maior freqüência da esquizofrenia448, da confusão mental449 e da arteriosclerose cerebral450 no sexo feminino, o que precisamente é o contrário do que se observa nos brancos. A epilepsia, o alcoolismo, a sífilis cerebral e a paralisia geral predominam no sexo masculino. Em geral, as mulheres negras até 45 anos adoecem com mais freqüência que o outro sexo451.
O artigo demonstra claramente a visão racista e eugenista dos autores. Ao
se remeterem às afirmações de Gilberto Freyre e Nina Rodrigues, corroboram as
semelhanças presentes nos dizeres desses autores: o tráfico lançou no Brasil os
melhores espécimes de negro, o que tornou possível a sua significativa
contribuição para a formação histórica do Brasil.
Em Vocabulário Nagô, Rodolfo Garcia452 apresenta um vasto vocabulário
desta língua e o compara com o vocabulário apresentado por D’Avezac em seu
livro “Notice sur le pays et le peuple des Yébus en Afrique”, escrito em 1844; no
seu entender, ambos parecem muito semelhantes. A intenção do autor foi
contribuir com um material que pode futuramente ser analisado com mais
profundidade, desvendando, assim, novos aspectos da contribuição africana na
cultura brasileira.
Bastos de Ávila publica Contribuição ao Estudo do Índice de Lapicque453.
Partindo da teoria de Lapicque454, apresenta os resultados de uma pesquisa entre
448 Termo sugerido por Bleuler para substituir a expressão “demência precoce”. Designa uma das características fundamentais dos pacientes assim diagnosticados: a separação de porções da psique, as quais podem então dominar a vida psíquica do indivíduo durante certo tempo e levar a uma existência independente, ainda que tais porções possam ser contrárias e contraditórias à personalidade como um todo. CAMPBELL, R. J. Esquizofrenia. In: CAMPBELL, R. J. Dicionário de Psiquiatria. São Paulo: Martins Fontes, 1986. p. 283. 449 Estado de desorientação; perturbação da consciência no sentido que a percepção de tempo, lugar ou pessoa deixa de ser clara. CAMPBELL, R. J. Confusão Mental. In: CAMPBELL, R. J. op. cit., 1986. p. 122. 450 Enrijecimento e perda da capacidade funcional das artérias do cérebro. CAMPBELL, R. J. Arteriosclerose cerebral. In: CAMPBELL, R. J. op. cit., 1986. p.53. 451 CUNHA-LOPES; REIS, J. C. de A. op. cit., 1988. pp. 19-20. 452 GARCIA, R. Vocabulário Nagô. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935.) pp. 21-27. 453 AVILA, B. Contribuição ao estudo do Índice de Lapicque. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935.) pp. 29-38.
163 escolares fichados de 6 a 15 anos, com ascendência inegavelmente africana
comprovada pelo tipo de cabelo. Chega às seguintes conclusões: O Índice de
Lapicque, em seu valor dado como característico racial do negro, pode deixar de
ser verificado em mestiços de notória ascendência africana (a herança ancestral
branca se manifestou); inversamente, o índice de Lapicque pode ser encontrado
em indivíduos, sem característicos de possível ascendência africana, como
integrante de um tipo constitucional. Finalmente, o índice de Lapicque, ao lado de
outros característicos raciais, comprova a ascendência africana, ainda, em
indivíduos aparentemente de raça branca.
O autor, utilizando-se das teorias racialistas, busca em sua pesquisa
diferenciar biotipofisicamente pessoas de ascendência negra. O mapeamento de
indivíduos mestiços contribuiria decisivamente para beneficiar as práticas
eugênicas no processo de branqueamento da sociedade brasileira. Logo, os
dizeres de Bastos Ávila têm relação com o que foi dito em outros lugares para
produzir o mesmo efeito de verdade: é preciso, através da política eugênica,
selecionar, branquear, enaltecer a raça brasileira.
Já o artigo publicado por Mário de Andrade, A Calunga dos Maracatus455,
tenta provar que a boneca do Maracatu, denominada de Calunga, é uma
reminiscência de cultos feiticistas afro-americanos. Descreve os vários sentidos,
por ele encontrados, do termo Calunga e faz a seguinte indagação: Calunga dos
maracatus, carregada pela Dama do Passo, seria apenas o Calunga Boneco?456
Mário acredita que não. Para ele, deve ter se dado na psicologia dos negros uma
contaminação de sentidos, porque a Calunga dos Maracatus nunca é um boneco
de qualquer sexo, mas fixamente uma boneca do sexo feminino. Ela tem
significado religioso. É ídolo, feitiço e apenas objeto de excitação mística, e ainda
símbolo político-religioso de reis deuses.
454 Segundo o autor, Lapicque elaborou um sistema de medição do índice rádio-pélvico que consiste na relação centesimal entre o comprimento do rádio e o diâmetro externo máximo da bacia. 455 ANDRADE, M. de. A Calunga dos Maracatus.Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935.) pp. 39-47. 456 Idem Ibdem. p.42.
O autor assegura que o seu esforço neste trabalho foi explicar que a
Calunga, Catita ou Boneca, levada pela Dama do Passo nos Maracatus, é uma
emanação de um deus, um objeto de função e finalidade místicas, derivada de
costumes congueses tradicionais. Nesse sentido, o interesse do autor pelas
manifestações da religiosidade africana, transplantada para o Brasil pelos negros,
reside em tomar essas crenças como folclore, manifestação popular.
Psicologicamente inferiores, os negros foram contaminados e, no sentido que o
autor atribui, “confundidos” por crendices populares das mais diferentes culturas
africanas aportadas no Brasil.
Arthur Ramos, em Os Mytos de Xangô e sua Degradação no Brasil457,
descreve os diversos mitos do orixá Xangô, encontrados no Brasil, e as
transformações decorrentes do sincretismo religioso. Conclui o artigo afirmando
que Xangô, hoje, não é só um orixá iorubano. É um termo geral incorporado ao
patrimônio da língua e à larga esteira do folclore. Xangô é um orixá, é o próprio
lugar das cerimônias fetichistas, é uma entidade fantasmal escondida dentro do
inconsciente folclórico.
Como médico psiquiatra, Ramos recorre à psicanálise para entender o
sincretismo religioso e as transformações ocorridas, no Brasil, no culto do orixá
Xangô. Para ele, esta entidade é uma ponte de união psíquica entre a África e o
Brasil.
O artigo de Alfredo Brandão, Os Negros na História de Alagoas458, se
preocupa com a procedência dos escravos alagoanos. Para o autor, o primeiro
negro apareceu em Alagoas quase com o primeiro branco. Os negros, nos tempos
coloniais, vinham dos mercados do Recife. As pesquisas apontam para a
procedência Banto, pela quase ausência de tradições religiosas ou culto de
animais. Só foram encontrados ritos africanos em Alagoas tempos depois da
457 RAMOS, A. Os mythos de Xangô e sua degradação no Brasil . Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935.) pp. 49-54. 458 BRANDÃO, A. Os Negros na História de Alagoas.Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935.) pp. 55- 91.
Abolição. Isso indica que essas práticas foram herdadas dos bantos que vieram,
provavelmente, da Bahia, onde havia importação sudanesa459.
Quando disserta sobre a guerra dos Palmares, atribui a este acontecimento
o mais alto feito de heroísmo da raça africana no Brasil. Discorda dos escritos de
Nina Rodrigues sobre o assunto, enaltecendo o rei Zumbi pelo seu heroísmo. Para
ele, o negro, em Alagoas, foi um dos maiores elementos de civilização. Também
discorda de Gilberto Freyre quando este afirma que o negro parece ter sido o
elemento de melhor nutrição em nossa sociedade. Critica a teoria sobre a
psicologia sexual do negro, que lhe atribui traços hereditários e de atavismo em
que prevalecem a tendência à prostituição, o despudor e a diminuição das
faculdades afetivas.
A visão do autor acerca do negro aparentemente se apresenta dissonante
daqueles proferidos por seus colegas. Suas afirmações, ao tentar reproduzir idéias
já divulgadas, acabam por transformá-las em novos dizeres. O que significa
afirmar que o discurso se constitui em confronto com outros, criando novas formas
de interpretação. No entanto, sua interpretação não apresenta uma ruptura com o
pensamento dos organizadores do Congresso. Ao concluir o artigo, afirma: No
Brazil, com a extincção da escravidão, desappareceu o ódio de raça460.
Ulysses Pernambucano publica o artigo As Doenças Mentais entre os
Negros de Pernambuco461”, já divulgado na revista Arquivos da Assistência a
Psicopatas, em abril de 1932. Nele, conclui que a freqüência de doenças mentais
é maior entre os negros. É interessante notar que, ao publicar o artigo nos anais,
omite a co-autoria do mesmo. Em Arquivos da Assistência a Psicopatas, deixa
claro que esta pesquisa foi realizada em conjunto com Helena Campos, monitora
do Serviço de Higiene Mental.
459 Idem Ibdem. 460 Idem Ibdem. 461 PERNAMBUCANO, U. As Doenças Mentais entre os Negros de Pernambuco. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935.) pp. 93-98.
Longevidade: sua relação com os grupos ethnicos da população462 é o
resultado da pesquisa publicada por Robalinho Cavalcanti. Diz respeito ao
resultado de uma estatística por ele realizada no Hospital de Psicopatas do Rio de
Janeiro. Teve como objetivo verificar a veracidade da afirmação popular de que os
negros teriam maior longevidade. Diante dos resultados da pesquisa, concorda
parcialmente com a afirmação de Roquette Pinto: o indivíduo, negro ou mulato, é
menos propenso a garantias de longevidade463. Suas estatísticas corroboram a
veracidade da observação de Roquette Pinto no que se refere aos mulatos;
entretanto, observou no negro maior longevidade do que no branco. Explica que o
fenômeno se dá por ter o negro encontrado nas zonas tropicais e equatoriais
melhores condições de vida, em conformidade com a sua formação. Quanto à
menor longevidade do mulato, parece mais influenciada por fatores sociais do que
orgânicos.
Logo, o autor concorda com a afirmação de Gilberto Freyre: o negro
escravo brasileiro foi melhor alimentado do que os outros elementos que
compunham a população do Brasil escravocrata464.O autor demonstra neste artigo
uma preocupação maior em corroborar as teses de Freyre do que propriamente
em analisar os resultados de sua pesquisa, que é descrita de forma bastante
vaga, já que não apresenta quadros de amostragem e não faz referência à
metodologia.
Adhemar Vidal escreve Três Séculos de Escravidão da Parahyba465. Afirma
não se saber se os negros escravos da Paraíba provinham de Pernambuco ou da
África. Analisa a questão de que muitos escravos fugidos já descendiam do negro
legítimo cruzado com o branco. Por fim, fala das propagandas abolicionistas na
462 CAVALCANTI, L. R. Longevidade: sua relação com os grupos ethnicos da população. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935.) pp. 99-103. Trabalho realizado no Instituto de Pesquisas do Departamento de Educação do Distrito Federal. Quando escreveu este artigo, era assistente do professor A. Austregésilo na Clínica Neurológica. Ao apresentá-lo, expõe em nota tratar-se de trabalho do serviço do professor Adauto Botelho no Hospital Nacional de Psicopatas. 463Idem Ibdem. p. 101 464 FREYRE, G. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. 30.ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. 465 VIDAL, A. Três séculos de escravidão na Parahyba. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935.) pp. 105- 152.
Paraíba e nos movimentos em prol da abolição. Para Vidal, a política abolicionista
trouxe desordem para a agricultura, razão de os prejuízos advindos da crise terem
começado a se refletir nos lares dos mais ricos proprietários rurais.
O artigo apresenta um caráter descritivo e historiográfico. Demonstra
simpatia pelos proprietários rurais em sua crítica velada ao processo de abolição.
Trata-se de um discurso autoritário que se arroga o direito de dizer o que é o outro
e o que ele representou para a economia paraibana: mão-de-obra barata.
Jovelino Camargo466 apresenta um artigo que afirma ser a história a mais
atraente das ciências, concluindo que a abolição foi determinada: por
modificações gerais nas relações de produção; pela necessidade de substituir a
técnica velha pela nova e incorporar na produção a massa de desocupados; pela
expansão do comércio e pelo nascimento das indústrias nacionais que necessitam
de mercados internos; pela impossibilidade de renovar os quadros das senzalas;
pela ruína da indústria açucareira do Nordeste; pelo florescimento do plantio de
café no Sul; pela imposição da Inglaterra; e pela indisciplina dos escravos.
O trabalho do autor acrescenta uma característica que ainda não havia sido
refletida nos trabalhos até agora analisados. Apesar de o negro estar presente em
seu discurso como “coisa”, “mercadoria”, “máquina produtiva”, sua base de análise
é economicista; nesse sentido, considera o escravo a partir das relações de
produção.
Grupos Sanguíneos e Raça Negra467 é o trabalho de autoria de Abelardo
Duarte. Neste, o autor afirma que o cruzamento entre brancos e pretos e entre
estes e os mulatos vai diluindo, cada vez mais, o teor de sangue negro da
população. Para ele, os grupos ou tipos sanguíneos, se, por um lado, revelam o
caráter “tipológico” de uma raça, mostram, indubitavelmente, por outro, que não há
raças puras, pois uma raça pura só deveria contar indivíduos de um mesmo grupo
ou tipo. Conclui o artigo concordando com Oliveira Vianna quando este afirma que
os clássicos critérios da morfologia externa, de que se serve a velha antropologia
466 CAMARGO JR., J. M. de. Abolição e suas Causas. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935) pp. 153-170. 467DUARTE, A. Grupos Sanguíneos da Raça Negra. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935). pp. 171-179.
para as suas conclusões, continuam sendo os meios mais seguros de
classificação das raças468.
Nesse sentido, o artigo é revelador, pois Duarte acredita piamente que o
Brasil do futuro será um país de gente branca. Portanto, desenvolvido e livre dos
“atávicos” prejuízos causados pela “raça” negra. O cruzamento de brancos com
negros e mulatos é fator fundamental para o engradecimento da nação.
Mário Melo publica o artigo intitulado A República dos Palmares469, no qual
afirma que a destruição do Quilombo dos Palmares foi necessária, pois sua
permanência constituía grande entrave à administração e incalculável anteparo ao
futuro. Cita Nina Rodrigues quando este enaltece as armas portuguesas por o
terem destruído de uma vez, porquanto, vitorioso e implantado no coração do
Brasil, Palmares representaria a maior das ameaças à civilização do futuro povo
brasileiro, por ser refratário ao progresso e inacessível à civilização. Porém,
acrescenta que não é possível recordar esse acontecimento sem simpatia pelos
negros que, fugindo à escravidão, defenderam a liberdade de modo tão heróico.
As tendências claramente racistas do autor não o impedem, em sua
posição de intelectual, de sentir certa comiseração pela figura do negro, já que,
diante do quadro colocado, este não representa mais perigo, não ameaça, não
amedronta. Ao contrário, foi destruído, dizimado. Sua figura pode agora ser
reinventada com certa simpatia.
Robalinho Cavalcanti, em O recém-nascido branco, negro e mulato470,
através das fichas de recém-nascidos da maternidade do Recife, tenta encontrar
modificações na estatura e no peso de acordo com o grupo étnico. O interesse na
observação está na possibilidade de afirmar que a mestiçagem branco-negro
produz, ao nascer, indivíduos considerados fisicamente tão aptos quanto os de
raça pura. Cavalcanti admite que não constatou nenhuma divergência. As
diferenças que se observam posteriormente decorrem de condições de vida,
468 VIANNA, O. Raça e Assimilação. São Paulo: Edit. Nacional, 1932. 469 MELLO, M. A República dos Palmares.Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935). pp.181-185. 470CAVALCANTI, J. R. O recém-nascido branco, negro e mulato . Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935). pp. 187-189.
higiene, alimentação, doenças e fatores raciais hereditários, que só se evidenciam
em épocas mais tardias da vida. A partir dessa informação, lança a seguinte
questão: a mestiçagem não seria fator de debilidade congênita? Responde à
questão justificando que não seria possível responder satisfatoriamente devido à
diversidade de casos de debilidade.
O autor, apesar de não encontrar nenhuma diferenciação entre as raças,
insiste em indagações sobre inferioridade e superioridade destas. É a crença
eugenista de que a depuração dos sangues “inferiores” era uma tarefa que
libertaria a nação, beneficiando biologicamente a espécie humana.
O Trabalhador Negro no Tempo de Bangüê Comparado com o Trabalhador
Negro no Tempo das Uzinas de Assucar471 é de autoria de um trabalhador negro,
alugado, das usinas. Nele, Jovino da Raiz lamenta a situação em que vive
atualmente o trabalhador negro no campo. Ao comparar o tempo do Engenho
Bangüê com o tempo atual das usinas de açúcar, percebe uma diferença
extraordinária na convivência e na alimentação do negro. Para ele, depois que
apareceu a usina de açúcar, o negro, no campo, se viu privado de convivência, de
alimentação, de diversão.
O artigo é apresentado como forma de protesto contra a situação do negro
no campo. É visto pelos congressistas como figura exótica, que auxilia na
divulgação do certame. É a fala do outro a quem, através da benevolência, da
proposta democrática e do caráter inovador dos organizadores do Congresso, foi
conferida voz. Ao apresentar o seu protesto, acaba por concordar com a tese de
Freyre sobre a alimentação do negro escravo. Dessa forma, o discurso circula, se
expande além das fronteiras do mundo dos intelectuais. Jovino interage com os
dizeres propagados, reinterpreta-os, reinventa -os, produz efeitos de sentido dentro
da sua experiência de negro trabalhador.
471 RAIZ, J. da. O Trabalhador negro no tempo de bangüê comparado com o trabalhador negro no tempo das uzinas de assucar. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935).pp. 191-194.
O antropólogo americano Melville Herskovits472 também enviou trabalhos
para serem divulgados e publicados no Congresso. No primeiro deles, o
argumento principal é que, para investigar as origens ou a procedência dos negros
do Novo Mundo, devem-se utilizar dois métodos de investigação: o histórico e o
etnológico473. Esses dois métodos se relacionam e um depende do outro. Assim, o
que se tem apurado pela etnologia junta-se ao que se tem descoberto pela
pesquisa histórica para indicar a predominância de origens iorubanas, daomeanas
e da Costa do Ouro entre os grupos principais de negros do Novo Mundo.
Outro artigo enviado por Herskovits ao Congresso é denominado A Arte do
Bronze e do Panno em Dahomé474”. Nele, faz uma análise comparativa entre o
tratamento das figuras humanas e de animais de bronze e pano da cultura
africana de Dahomé, afirmando que elas se referem a diferentes tradições. O
autor conclui que, na arte dahomeana como em qualquer outra, os artistas
negros, não menos que os europeus, trabalham segundo meios de expressão
tradicionais e de acordo com regras estabelecidas de estilo e de composição.
Os trabalhos do antropólogo americano são os únicos que destoam dos
trabalhos apresentados no Congresso. Herskovits foi um dos divulgadores da
teoria culturalista475, em antropologia, no Brasil. Suas pesquisas trazem grande
visibilidade ao Congresso. Sua fala serve como emblema de que o acontecimento
contava com a atenção da intelectualidade norte-americana. Serve também como
472 HERSKOVITS, M. J. Procedência dos Negros do Novo Mundo. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935). pp. 195-197. 473 O método etnológico utilizado pelo antropólogo cultural compara padrões, costumes, estilos de vida, culturas do passado e do presente. Verifica diferenças e semelhanças a fim de obter melhor compreensão desses grupos. In: MARCONI, M. de A.; PRESOTTO, Z. M.N. Antropologia: uma introdução. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1987. 474 HERSKOVITS, M. J. A arte do bronze e do panno em Dahomé.Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935). pp. 227- 235. Foi publicado em Inglês na revista The American Magazine of Art, Vol. XXVII (1934) e traduzido para a língua portuguesa por Luiz Jardim. 475 Herskovits foi aluno de Boas e propagador de idéias, como: o imperativo metodológico do trabalho de campo; substituição do evolucionismo linear pelo pluralismo cultural; rejeição do difusionis mo e ênfase sobre a estabilidade e a mudança cultural. In: RIBEIRO, R. René Ribeiro: professor emérito. Recife: Massangana, 1990. Seu discípulo brasileiro mais famoso foi René Ribeiro. Médico psiquiatra formado pela Escola Pernambucana de Psiquiatria, sob a orientação de Ulysses Pernambucano, torna-se, mais tarde, discípulo de Herskovits de quem recebeu orientação para a elaboração de sua dissertação de mestrado, publicada em língua portuguesa com o título: Cultos Afro-Brasileiros do Recife: um estudo de ajustamento social.
referência de que o certame “rompia” com o pensamento racista e comungava
com uma nova forma de pensar a sociedade. Um pensar construído sobre o
orgulho da harmoniosa democracia racial e cultural em que se “constituiu” nos
trópicos a civilização do Brasil.
Ruy Coutinho, em Alimentação e Estado Nutricional do Escravo no Brasil476,
procura demonstrar ao longo do texto que os defeitos da alimentação do escravo
eram bem acentuados. Para o autor, os negros devem ter sofrido os efeitos de
uma dieta inadequada, apesar do interesse do senhor de bem alimentá-los.
Partindo da afirmação de Gilberto Freyre de que o escravo era mais bem
alimentado que o trabalhador rural de hoje, indaga:
“Se o nosso escravo, o elemento melhor alimentado da população, apresentava provas incontestáveis de deficiência alimentar, qual não seria o estado nutricional do brasileiro das classes livres, especialmente da classe média? Certamente era muito inferior477.”
Para Coutinho, é esse brasileiro, tão miseravelmente alimentado, indolente
e pouco capaz, que os ardorosos das raças nórdicas consideram racialmente
inferior, isto é, inferior porque não é dólico-louro. Quando não responsabilizam a
raça, acusam o clima quente, desprezando, segundo ele, os verdadeiros fatores
causadores daquele estado: as condições higiênicas e a dieta.
Dentro da perspectiva freyriana, o autor tenta defender a idéia de que nossa
inferioridade advém das péssimas condições de higiene e de alimentação.
Demonstra também sua perplexidade e indignação em face da disseminação das
idéias arianizantes, provenientes do nazi-fascismo, e que, naquele momento,
estavam sendo assimiladas com simpatia por determinados setores da elite
política.
476 COUTINHO, R. Alimentação e Estado Nutricional do Escravo no Brasil.Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935).pp. 199-213. 477 Idem Ibdem. p.201.
O artigo de Álvaro Faria, sobre o problema da tuberculose no preto e no
branco478, afirma ser leviano divulgar a idéia de que os pretos são mais fracos do
que os brancos só porque estão em maiores proporções do que estes nos centros
populosos infectados de peste branca e porque suas formas de moléstia são de
evolução mais rápida. Do que o autor pôde concluir, fica claro o seguinte: O negro
tem dado provas de capacidade intelectual; tem dado provas de rara capacidade
de adaptação ao meio; resiste a duríssimos trabalhos físicos; e tem um balanço de
economia social positivo, isto é, até aqui produziu muito mais do que tem
consumido das riquezas sociais.
Dessa forma, o autor apela para o discurso da aclimatabilidade, do
potencial de mão-de-obra barata, a fim de atribuir ao negro características
importantes para participar do processo de desenvolvimento econômico da
sociedade nacional. É inferior em cultura, mas adequado, se colocado em seu
devido lugar, para construir, trabalhar, contribuir para a produção de riquezas
materiais.
Edison Carneiro publica o trabalho intitulado Situação do Negro no Brasil479.
Para ele, a escravidão veio resolver o problema do branco, não o do negro. O
processo histórico de transformação da sociedade semifeudal do Brasil em
sociedade capitalista veio mudar apenas a forma de exploração e de domínio.
Somente a sociedade comunista, que reconhece às raças oprimidas até mesmo o
direito de se organizarem em Estado independente, conseguirá realizar a
igualdade social, abolindo a propriedade privada e acabando, de uma vez por
todas, com a exploração do homem pelo homem.
Carneiro, na época, era filiado ao Partido Comunista da Bahia, o que
justifica o cunho fortemente marxista presente em seu trabalho. Suas idéias
destoam do que é dito e inventado ali, mas têm ligação com o que é dito em
outros lugares, criando, assim, outros efeitos de verdade.
478 FARIA, Á. O Problema da Tuberculose no Preto e no Branco e Relação de Resistência Racial.Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro:Ariel, 1935). pp. 215- 225. 479 CARNEIRO, E. Situação do negro no Brasil.Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935). pp. 237-241.
Pedro Cavalcanti apresenta o artigo As Seitas Africanas do Recife480.
Explica que teve algumas dificuldades para se aproximar dos adeptos das seitas
devido às perseguições que sofriam os negros. Essa aproximação se deu com a
ajuda de pais-de-terreiro, que desde logo procuraram mostrar a seriedade do seu
culto, ao mesmo tempo em que clamavam contra os que abusavam do nome e da
tradição africanos em centros de diversão e exploração.
Aqui o discurso enaltece a tradição, reinventa-a, atribui a ela significado
ímpar. Essa (re)invenção tanto se encontra presente nos dizeres dos intelectuais
eugenistas como nos dos intelectuais culturalistas. Cavalcanti, neste artigo, apesar
de não apresentar claramente um cunho eugenista, faz análise desses terreiros,
dentro desta perspectiva, em artigos na Revista da Assistência a Psicopatas, na
Neurobiologia e no Boletim de Higiene Mental. Pode ser considerado como um
dos discípulos mais ardorosos de Ulysses Pernambucano, seguindo à risca suas
orientações.
Em Nota Antropológica sobre os mulatos Pernambucanos481, Geraldo de
Andrade apresenta resultados obtidos em pesquisa, informando que, entre os
mulatos de Pernambuco, mediante a averiguação do índice cefálico horizontal,
exprimem a sua tendência à braquicefalia e à clarificação da pele. Os seus
cabelos, entretanto, mantêm-se em cores muito carregadas.
O autor tenta provar o gradativo processo de branqueamento do mulato.
Neste sentido, suas afirmações estão relacionadas com as idéias propagadas por
Oliveira Vianna: o Brasil será no futuro um país de gente branca482.
Foram publicadas, também, as partituras de toadas do Xangô do Recife,
recolhidas para o Congresso pelo professor Ernani Braga. Os cantos africanos
foram apresentados um dia após o encerramento oficial do Congresso, o que
revela o lugar e a importância atribuídos à música africana. Também emerge
dessa prática o argumento presente nas falas e nas práticas dos congressistas: a
480CAVALCANTI, P. As seitas africanas do Recife .Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935). pp. 243-257. 481 ANDRADE, G. Nota anthropologica sobre os mulatos pernambucanos.Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935). pp. 261-263. 482 VIANNA, O. Evolução do Povo Brasileiro . São Paulo: Editora Nacional, 1938.
busca de elementos da tradição africana para compor o cenário da invenção da
tradição do Nordeste que ali estava sendo forjada. Diegues Junior, em entrevista
concedida ao Diário de Pernambuco, expressa uma das preocupações centrais do
Congresso, ou seja, a relação entre a cultura negra e a cultura brasileira:
“Cantos com aquella expressão viva da música africana. Optimo ponto de partida para um estudo completo do elemento negro na nossa música. Elemento tão forte, tão preponderante, que talvez não seja erro dizer que é delle que vem a verdadeira música afro-brasileira, com todas as características de sua formação483.”
Esses cantos dariam visibilidade à tradição afro-brasileira no Nordeste.
As Receitas de quitutes afro-brasileiros, apresentadas no Congresso pela
ialorixá Santa e pelos babalorixás Oscar Almeida e Apolinário Gomes, foram
publicadas no primeiro volume dos anais. Aqui, mais uma vez, se repete a busca
do exótico, da tradição, da expressão dos valores africanos que deveriam ser
incorporados e preservados nessa reinvenção da cultura do Nordeste. Cultura
autêntica, exótica, diferente da do Sul, com suas bases formadas na harmoniosa
fusão cultural e racial dos povos.
Por fim, o vigésimo quinto trabalho, palavras de Miguel Barros484,
representante da Frente Negra Pelotense. Este inicia seu artigo afirmando que a
entidade defendia três preceitos, União, Cultura e Igualdade, os quais deveriam
ser invocados quando se inicia um movimento de elevação moral, intelectual e
social do negro:
“Raça entregue á si mesma e que não tem outra cousa sinão sua extraordinária capacidade de trabalho e intelligência virgem, que deve e merece ser cultivada .485”
Mais adiante, acrescenta:
483 DIEGUES JUNIOR. Música Afro-Brasileira .Diário de Pernambuco, Recife, 16 nov. 1934. p. 03. 484 BARROS. M. Discurso do representante da Frente Negra Pelotense. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de: Rio de Janeiro: Ariel, 1935). pp. 269-271. 485Idem. Ibdem. p. 267.
“...não queremos selecção, mas sim suprimil-a e equiparar nossa gente, pelo desenvolvimento intellectual.486”
Os dizeres de Miguel Barros são palavras de um negro militante que as
declama, de forma veemente, para denunciar a situação do negro diante do
preconceito e da discriminação. No entanto, defende sua “raça” utilizando os
mesmos argumentos, o mesmo discurso, de que os eugenistas se utilizaram. Aqui
os saberes circulam.
Essa circularidade se dá tanto de baixo para cima como de cima para baixo.
Quem circula não são as idéias por si mesmas, mas os homens e suas criações,
como assinala Ginzburg 487.
Assim, os trabalhos apresentados no primeiro volume dos anais do
Congresso do Recife se caracterizam por conferir, através de uma multiplicidade
de vozes, as idéias propagadas por Ulysses Pernambucano e Gilberto Freyre. A
reafirmação dos dizeres desses intelectuais aparece como status, cria efeitos de
verdade, harmoniza e concilia contradições. A única voz destoante dessas
práticas discursivas é a de Herskovits. É um discurso deslocado,
descontextualizado, isolado das “verdades” que ali estavam sendo produzidas.
Dizeres que servem como emblemas, que legitimam as práticas que estavam
sendo construídas.
Dois anos após a publicação do primeiro volume dos anais, é divulgado, em
1937, no Rio de Janeiro, pela Editora Civilização Brasileira, Novos Estudos Afro-
Brasileiros, segundo volume dos anais do Primeiro Congresso do Recife. Contém
dezoito artigos e é prefaciado por Arthur Ramos.
O primeiro artigo, Aspectos da influência africana na formação social do
Brasil, é de autoria de Rodrigues Carvalho488. Para ele, é o mestiço o tipo ideal
humano para a construção de nossa civilização. Reafirma a inferioridade do negro
486 Idem Ibdem. p. 271. 487 GINZBURG, C. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 488 CARVALHO, R. Aspectos da Influência Africana na Formação Social do Brasil. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 15-74.
e do índio e indica alguns defeitos dos portugueses para corroborar sua afirmação
de que o mestiço é o que se poderia ter de melhor para o Brasil:
“O índio por si só levaria sempre este paiz a uma solidão de matta virgem; o sangue luso sem a sedução do cruzamento, cansaria sob a canícula entorpecente do Equador. Os africanos embrutecidos de origem e secandijados pelo atrazo constante(...)seriam só por si massa bruta inoperante e retardatária489.”
É o discurso do enaltecimento da miscigenação harmoniosa entre as três
raças formadoras da civilização brasileira. Miscigenação escalonada,
hierarquizada, em que cada elemento contribui para o engradecimento da nação,
sem perigos de sublevação de nenhuma delas, já que cada uma apresenta
limitações para, por si só, criar mecanismos autônomos de sobrevivência nos
trópicos. Raça, clima, fatores psicológicos, atraso cultural, inaptidão para
adaptação, são todos fatores levados em consideração por Carvalho para justificar
seu argumento.
O trabalho de autoria de Câmara Cascudo490 traz em seu conteúdo uma
semelhança com os escritos sobre as seitas africanas, feitos pelos participantes
da Escola Psiquiátrica do Recife. Inclusive concorda com a idéia de que, em vez
de fechar os terreiros, era mais interessante estudá-los para facilitar o trabalho dos
psiquiatras e criminalistas. Para Cascudo, os doentes curados de todas as classes
sociais são inúmeros. O Catimbó é a derradeira esperança instintiva. A sugestão
do ambiente justifica, nos nervos predispostos e nos cérebros fracos, ser o
Catimbó, na sua acepção de baixo espiritismo, um dos grandes fornecedores dos
hospícios491. Por fim, o autor conclui que a existência do catimbó está garantida
por alguns séculos. Impossível desarraigar do espírito popular a crendice fácil e
atraente, sugestiva e misteriosa, tão ao sabor das raças impressionáveis que nos
formaram.
489 Idem Ibdem. p. 17 490 CÂMARA CASCUDO, L. da. Notas sobre o Catimbó.Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 75-129. 491 Idem Ibdem.
Já Carlos Pontes492, em seu texto, faz uma descrição de casos esdrúxulos
sobre a compra e venda de escravos. Nem sempre indica as fontes de onde
obteve as informações, não analisa os casos pitorescos narrados nem emite
opinião sobre eles.
O artigo de autoria de Edison Carneiro493 tem um caráter mais descritivo do
que o publicado no volume I dos anais. Lá, o autor apresenta uma análise com
características fortemente marxistas. Este artigo do segundo volume preocupa-se
em ressaltar as características do orixá Xangô, seus mitos e como ele é cultuado
na Bahia. Trata-se de uma rápida análise comparativa do sincretismo dos santos
católicos com os orixás africanos.
É importante levar em consideração que este segundo volume foi publicado
em 1937, ano da implementação do Estado Novo no Brasil, regime ditatorial,
fortemente centralizado e que já vinha, a partir do levante comunista de 1935,
empreendendo uma verdadeira caça aos militantes do Partido Comunista. Edison
Carneiro, como militante do PC da Bahia, tem suas ações fortemente vigiadas494.
Portanto, não é de estranhar que seus dizeres, divulgados neste segundo volume,
apresentem uma característica mais descritiva, menos comprometedora com
relação as suas práticas políticas entre os negros da Bahia.
A viúva de Juliano Moreira495, de quem Ulysses Pernambucano foi
discípulo, contribui neste volume, apresentando diversos trechos de trabalhos de
seu marido, nos quais se encontram referências ao negro e ao mestiço. Dentre
eles, cita “Notícia sobre a evolução da assistência a alienados no Brasil496”, em
que Juliano Moreira afirma:
492PONTES, C. Uma escrava original..Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 130-138. 493CARNEIRO, E. Xangô. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 139-145. 494 Sobre o assunto, vide LANDES, R. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 495 MOREIRA, Viúva J. Juliano Moreira e o Problema do Negro e do Mestiço no Brasil. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 146-150. 496 MOREIRA, J. “Notícia sobre a evolução da assistência a alienados no Brasil”. Archivos Brasileiros de Psychiatria, Neurologia e Sciencias Affins. nº I, 1905.
“A má natureza dos elementos formadores da nossa nacionalidade deve-se a nossa vasta degenerescência physica, moral e social que injustamente tem sido attribuida ao único fato da mestiçagem497”.
Nessas idéias de Moreira, dentre muitas outras, Ulysses Pernambucano se
inspirou para criar, na Escola Psiquiátrica de Pernambuco, um grupo de discípulos
que o acompanhariam nas práticas, intermediações e discursos, interessados na
construção de um saber que arrogantemente tomava para si o direito de colocar o
negro na condição de ser humano inferior, mentalmente doente e socialmente
marginalizado.
Em Estudos Biotipológicos de Negros e Mulatos Brasileiros498, os autores
se assumem claramente como eugenistas, utilizando-se da escola italiana, tal qual
Nina Rodrigues. Neste sentido, criticam a nação quando informam que, enquanto
a Alemanha procura constituir um povo homogêneo, de características próprias,
capaz de realizar o ideal de progresso e de supremacia dos seus atuais dirigentes,
o Brasil persiste num formidável laboratório de caldeamento humano, mistura
desordenada de tantas raças e etnias diferentes.
Os autores defendem idéias assegurando a sobrevivência de um pensar, de uma
prática, que se vê condenada e/ou ameaçada pelos rumos que, para eles, a nação
brasileira está tomando.
Jovelino Camargo, em A Inglaterra e o Tráfico499, afirma que a atitude da
Inglaterra, ante o tráfico e a escravidão do homem negro, em nada se diferenciou
da dos demais países cristãos, a não ser na parte mais prática. Nestes termos,
indaga: Qual a situação do negro hoje? A liberdade legal que conquistou
representa alguma coisa de prático?
“Falam que não existe preconceito de cor aqui no Brasil. É uma mentira refinada, uma hipocrisia torpe. O preconceito racial existiu ontem e
497 Idem Ibdem. p. 52. 498 RIBEIRO, L.; BARARDINELLI, W.; BROWN, I. Estudo biotypológico de negros e mulatos brasileiros normaes e delinqüentes. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 151-170. 499 CAMARGO Jr., J. M. de. A Inglaterra e o Tráfico. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 171-184.
continua a existir hoje. Não raro ouvimos a palavra negro atirada como insulto – UM NEGRO! Ao negro estão vetadas todas as possibilidades. Inspecionai as cadeias e as penitenciárias, aí sim, o negro é maioria. Instinto mau de uma raça inferior? Não! Não existem raças inferiores ou raças superiores. A miséria, a opressão, a ignorância, a exploração geram os crimes500.”
O artigo discute a questão racial e da cidadania do negro no Brasil,
preocupando-se em rechaçar a existência de hierarquias entre raças. O discurso é
inflamado, claro, sem subterfúgios, destoante. Não encontra similar na
multiplicidade de vozes que ressoam nos anais do Congresso.
Jarbas Pernambucano501escreve um artigo acerca do uso social da
maconha. Esclarece que a planta foi trazida para o Brasil pelos escravos africanos
e que é fumada em reuniões, como nos Catimbós. Explica que não pôde assistir a
nenhum dos rituais de Catimbó em que se utilizava a planta, pelo fato de os
catimbozeiros recearem as diligências policiais. Apesar de afirmar, nas
informações que obteve, que quem mais utilizava a maconha eram os índios,
acredita que este fenômeno ocorria pelo fato de o índio ser mais imitador que
criador, adquirindo este hábito pela convivência com os negros.
Mais uma vez, aqui, a situação do negro e do índio é escalonada segundo
os padrões arianizantes da época. Neste caso, o negro aparece numa posição
intermediária entre a inferioridade do índio e a suprema superioridade do branco.
Branco inteligente, cientista, entendedor da situação do outro. Aquele que pode
falar do outro, pela competência que lhe foi atribuída pela raça.
O artigo de autoria de Nair de Andrade, Musicalidade do escravo negro no
Brasil502, afirma que, salvo raros trabalhos, a discussão em torno do negro foi
posta à margem depois do movimento entusiasmado de Nabuco. A questão
500 Idem. 501 PERNAMBUCANO, J. A Maconha em Pernambuco.Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 185 -191. 502 ANDRADE, N de. Musicalidade do Escravo Negro no Brasil. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 192 -200.
ressurgiu através do livro Casa Grande & Senzala e do Congresso Afro-Brasileiro.
Faz referência a Gi lberto Freyre quando este afirma que foi o negro quem
enriqueceu a vida doméstica do brasileiro de sua maior alegria. Para o autor, das
três raças formadoras da nacionalidade brasileira, foi a preta que maiores
pendores demonstrou para a música.
Aqui novamente a repetição das idéias e práticas propagadas por Freyre. O
discurso enaltece a participação do negro na musicalidade brasileira, mas não a
contribuição do negro em si, e sim a do negro escravo, submisso, feliz por ter um
senhor a quem pertence e obedece.
Gonsalves de Mello Neto publica o artigo A Situação do Negro sob o
domínio Holandês503. Justifica a relevância de sua pesquisa na medida em que
Freyre já estudou a situação do negro perante o português em Casa Grande &
Senzala. Já o mesmo não se pode dizer do povo holandês. Para o autor, caso os
holandeses tivessem permanecido na região, em vez da confraternização entre as
três raças, teríamos, como sugeriu Freyre, uma minoria de homens louros
dominando e explorando uma maioria proletária de homens pretos e vermelhos.
Inclina-se a acreditar que o tratamento dado aos negros pelos holandeses foi mais
duro e cruel504.
Apresenta uma contribuição quanto à forma como os negros viviam no
período holandês no Brasil e tenta dar o mesmo caráter “culturalista” que Freyre
atribuiu ao elemento negro sob o domínio português. A preocupação do autor é
mimetizar o discurso freyriano. Mais uma vez a assertiva do mestre é propagada:
sob o domínio português, o Brasil se constituiu em uma democracia racial.
Fizeram os Negros Teatro no Brasil? é o artigo de autoria de Samuel
Campello505. Neste texto, procura demonstrar que os negros fizeram teatro no
Brasil de forma rudimentar e popular. Para Campello, o que nos resta dos autos
503GONSALVES DE MELLO NETO, J. A. A. Situação do Negro sob o domínio Hollandez. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 201-221. 504 Idem. 505 CAMPELLO, S. Fizeram os Negros Teatro no Brasil? Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 222 -242.
introduzidos pelos negros no Brasil, o que resiste a todos os tempos, é o Bumba-
meu-boi, sob diversas variantes, conforme a região onde é representado.
O texto busca comparar, procura similaridades, diálogo entre as culturas
africana e portuguesa. Mas um diálogo em que a capacidade do negro de
mimetizar a cultura européia é rudimentar, popular. Popular em oposição à cultura
erudita, superior, que só os brancos portugueses conseguem criar.
Além do artigo sobre o que foi o Iº Congresso Afro-Brasileiro do Recife,
Freyre publica Deformações de corpo dos negros fugidos506. Nele, salienta
algumas das deformações de corpo que ocorrem com mais freqüência, de modo
mais impressionante, nos anúncios de negros fugidos e também nos escravos à
venda. Os anúncios de negros fugidos, destacados como típicos, apresentam o
negro importado da África para o Brasil não como um elemento cacogênico ou
transmissor de doenças e males africanos, mas desprestigiado nas suas
qualidades eugênicas e nas suas virtudes nativas por deformações, em grande
parte, de causas nitidamente sociais e brasileiras: excesso de trabalho em
plantações e em casas burguesas, às vezes má dormida, má alimentação e más
condições de vida nas senzalas, castigos, vícios, acidentes de trabalho,
precocidade no esforço bruto507.
Freyre reafirma sua tese de que qualquer povo que fosse extraditado para o
Brasil, nas mesmas condições do negro, teria estes ou mais outros tipos de
patologia508. A ênfase de Freyre em destacar as qualidades “eugênicas” do
escravo aportado em Pernambuco como superiores às de outros negros
existentes na África reitera o dado de que ele, pelo menos nesta questão,
comungava com as idéias de Nina Rodrigues acerca da existência de hierarquias
raciais. Tanto para Nina Rodrigues como para Gilberto Freyre, o negro africano
estaria escalonado em graus de desenvolvimento. No caso de Freyre, o negro
506 FREYRE, G. Deformações de corpo dos negros fugidos. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 243-248. 507 Idem Ibdem. 508 Idem Ibdem.
pernambucano era forte e plástico, geneticamente bom e tecnicamente apto ao
trabalho da lavoura de cana509.
O artigo de Jacques Raymundo510 é dividido em duas partes: Lendas Fons
ou Daomeanas e Uma Santidade Afro-Brasileira. Na primeira parte, afirma que
entre os negros, provindos da Guiné, Costa do Ouro ou da Mina e Costa dos
Escravos, se acentua que a religião é o traço dominante do seu caráter moral,
exaltando-lhes a imaginação no fanatismo, que lhes enseja muitas vezes a
polimorfose de algumas entidades ou santidades. Na segunda parte, o autor se
detém na especial devoção do culto jeje-iorubano, na Bahia e em Pernambuco, a
Anamburucu. Esta não é conhecida na África pelos iorubas e pelos daomeanos.
Para ele, não há dúvida de que a fantasia exaltada do negro e do mestiço
cristianizados criou ou inventou mais um mito. Finaliza o texto afirmando que
Anamburucu não é o único orixá imaginado ou criado pelos afro-brasileiros511.
O texto também não foge ao tema do enaltecimento da miscigenação.
Atribui ao afro-brasileiro, portanto à mistura, a capacidade criativa. Neste sentido,
a miscigenação propiciaria uma capacidade moral e intelectual ao afro-brasileiro
que não se encontraria presente no negro puramente africano.
Em Alguns dados antropológicos da população do Recife512, Ulysses
Pernambucano e alguns de seus discípulos fazem uma verificação da
percentagem de brancos, negros e mestiços na população do Estado. Esta
pesquisa já havia sido publicada, em 1935, na revista Arquivos da Assistência a
Psicopatas.
Trata-se de um trabalho de cunho fortemente eugênico, apresentando
dados bastante generalizados. Assim como no trabalho publicado no primeiro
volume dos anais, o autor não apresenta textos novos. Ao reapresentar os seus
509 Sobre esta questão, vide FREYRE, G. Nordeste. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 1989. 510RAYMUNDO, J. Ohum Êniadúdu. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 249-256. 511 Idem Ibdem. 512 PERNAMBUCANO, U. et. al. Alguns Dados Anthropologicos da População do Recife. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 257-261.
dizeres, atribui maior visibilidade a suas idéias, práticas e saberes já instituídos e
incorporados nos debates travados em torno do assunto.
O texto de Jorge Amado, Biblioteca do Povo e Coleção Moderna513”, fala
dessas duas publicações do Estado da Bahia, que divulgam trovas, histórias,
recitativos, orações e são vendidas, a preços populares, a um público numeroso e
certo: carregadores, mendigos em busca de repertório, negros tatuados que
malandreiam nas festas de N. S. do Bonfim e nas Macumbas da Bahia de Todos
os Santos. Jorge Amado recolheu vários exemplares desses livros em viagens
pelo Estado da Bahia514. Para ele, muitas das coisas que vêm publicadas nesses
volumes não são do folclore negro. Porém, mesmo aquilo que não é negro nessas
coleções, é colhido para o gosto do público negro que compra e lê ou ouve ler
esses folhetos. Trata-se de material para ser analisado por estudiosos e
romancistas515.
É um artigo informativo em que o autor sugere o estudo da literatura
popular vendida na Bahia, a qual, para ele, certamente em muito contribuirá para o
estudo da cultura negra. O discurso de Jorge Amado se caracteriza pela inclusão
da cultura popular e afro-brasileira na construção da visibilidade e dizibilidade das
camadas baixas na invenção da cultura brasileira. Para Durval Muniz, o
pensamento de Amado, nos anos 30, atribui à cultura negra o traço diferenciador
da civilização e da personalidade brasileiras, notadamente no Nordeste516.
O artigo A Mestiçagem no Brasil como fator Eugênico517, de autoria de A.
Austragésilo, expressa a perplexidade do autor com relação ao movimento
eugenístico propagado por Hitler, critica os brasileiros que o seguem e enaltece a
513AMADO, J. “Bibliotheca do Povo” e “Colleção Moderna”. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 262 -324. 514 Idem Ibdem. 515 Idem Ibdem. 516 ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 1999. p.222. 517 AUSTRAGESILO, A. A Mestiçagem no Brasil como fator Eugênico. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 325- 333.
Freyre, Roquette Pinto, Manoel Bomfim e a ele próprio, por acreditar que a
mestiçagem é um processo positivo para a construção da nação brasileira.
“A capacidade intelectual e a existência de gênios no Brasil, mais do que em qualquer país ibero-americano, provam que não é o arianismo e sim a mestiçagem fixada que dá origem à capacidade intelectual e criadora do brasileiro. Temos bons elementos étnicos e creio que a grandeza do Brasil advém da mestiçagem. Estou certo que para o Brasil a mestiçagem trouxe e trará mais benefícios do que malefícios518.”
Aqui, mais uma vez, encontra-se a repetição do discurso freyriano da
positividade da miscigenação. Na medida em que exaltar a nacionalidade
brasileira, a partir de uma raça pura, consistia em tarefa impossível, dotar de
positividade a mestiçagem foi a estratégia encontrada.
Bastos de Ávila519 publica, neste segundo volume, um texto sobre o negro
no nosso meio escolar. Inicia o artigo fazendo referência ao trabalho publicado no
primeiro volume dos Estudos Afro-Brasileiros, em que teve a ocasião de chamar a
atenção para o fato de que nem sempre o índice de Lapicque se apresenta
positivo em indivíduos de reconhecida ascendência africana. Para ele, no meio
escolar, a Antropometria encontra dois tipos diversos de negros: um, em que o
índice de Lapicque é superior a cem, e caracterizando-se pela estatura
relativamente elevada; e outro com índice rádio-pélvico negativo, e de estatura
menos pronunciada. Desse modo, pôde inferir que, dos característicos somáticos
que discriminam os dois grupos de escolares negros, os do primeiro grupo são,
por assim dizer, mais negros que os do segundo, porquanto, além de serem
portadores de um índice rádio-pélvico positivo, neles predomina a tonalidade mais
escura da pele.
Acrescenta, ainda, que é cedo demais para que se tirem conclusões
fundamentais e definitivas. Prosseguindo a pesquisa sobre o índice rádio-pélvico e
518 Idem Ibdem. 519 AVILA, B. de. O Negro no Nosso Meio Escolar. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). pp. 334-347.
os diferentes grupos raciais, verificou a positividade do índice em escolares de
pais portugueses.
O texto demonstra que, por mais inconclusivos que sejam os resultados que
o pesquisador encontra, existe uma certa insistência em continuar com a
pesquisa. Em reafirmar a inferioridade biológica do negro a qualquer custo.
No último artigo, de autoria de Gilberto Freyre520, este descreve,
minuciosamente, o que, na sua concepção, representou o Iº Congresso Afro
Brasileiro do Recife. Para Freyre, o certame libertou do exclusivismo acadêmico
ou cientificista das “escolas” rígidas os estudos “africanológicos”, como também
trouxe um sentido social mais profundo dos fatos. A prova de que o Congresso do
Recife atraiu a simpatia dos maiores especialistas em assuntos negros, ou de
antropologia em geral, e dos afro-brasileiros, em particular, está na atenção que a
ele dedicaram Franz Boas, Nancy Cunard, Roquette Pinto, Odum, Froes da
Fonseca, Nuno Simões, Osório de Oliveira, Rüdiger Bilden, Azevedo Amaral,
assim como na colaboração que lhe enviaram Rodolfo Garcia, Mario de Andrade,
Arthur Ramos, Antonio Austregésilo, Bastos de Ávila, Cunha Lopes, Melville J.
Herskovits521. O texto busca visibilidade, busca primazia e inovação aos dizeres ali
propagados.
Nesses trabalhos, mais importante do que se tentar analisar a inutilidade
de idéias racistas no Brasil seria notar que elas se constituíram acompanhando a
retórica da igualdade formal de uma prática de manutenção de desigualdades
sociais e que, embora esta prática tivesse a “raça” como mote proposto pela
ciência, num determinado momento, esta não seria sua única maneira de
expressar-se522.
Essas práticas discursivas reproduziram um dispositivo de poder que
reservou ao negro e a sua religiosidade o lugar de marginalizados, inferiorizados
pela produção desses intelectuais.
520 FREYRE, G. op. cit., 1988. 521 Idem Ibdem. 522 Cf. CORRÊA, M. As Ilusões da Liberdade: a escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil. 1982. Tese ( Doutorado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1982. p. 44.
A miscigenação, na maior parte desses discursos, aparece como estratégia
possível para mudar a sociedade diante da disseminação do movimento
arianizante defendido pelo nazi-fascismo. Eles tentam demonstrar que o racismo
tinha seu lugar assegurado dentro de um sistema teórico e político compatível com
sua existência.
Assim, o primeiro Congresso Afro-Brasileiro realizado no Recife resultou em
dois volumes de trabalhos, em que inúmeros estudiosos do negro levantam suas
vozes, preocupados, cada um dentro dos seus temas, em provar a aptidão do
mestiço, a inferioridade ou a incapacidade do negro e as potencialidades, através
da miscigenação, de se construir uma civilização ímpar nos trópicos. Nesta, o
Nordeste se diferenciaria do Sul do Brasil pela sua maleabilidade, pelo seu
modernismo tradicionalista. Passado e presente harmonicamente convergindo em
direção à ordem e ao progresso.
Os processos foram retratados como coisas ou acontecimentos de um tipo
quase natural, de tal modo que o seu caráter social e histórico é eclipsado. Já que
nenhum discurso pode ser considerado neutro, a constituição da imagem da
neutralidade em relação ao dito, invocada e constantemente redita, visa à
constituição de determinados sentidos e ao apagamento daqueles com os quais
se colocam em contradição. É preciso mascará-los para torná-los eficientes na
crítica. O que o leva a se apresentar como melhor e mais apropriado à situação
social523.
Roquette Pinto524, além de tecer elogios ao Congresso, emite uma série de
propostas que gostaria que fossem acatadas pelos participantes. Desejaria que o
Congresso iniciasse uma campanha documentária sobre o negro. Espera também
que o Congresso principie designando uma comissão de homens capazes para
organizar a bibliografia da raça negra no Brasil. E faz votos para que, nessa
reunião de 34, fiquem esboçadas as principais questões que deverão ser
estudadas nas sessões subseqüentes. Sugere também que o Congresso do
Recife trate de interessar sábios de Portugal e do resto da Europa no estudo do
523 Dentro da perspectiva da análise do discurso proposta por FOUCAULT, M. op. cit., 1997. 524 Na época, diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro.
negro no Brasil. E que obtenha recursos para enviar à Costa da África estudiosos
capazes de investigar o que for possível525.
Os dizeres de Roquette Pinto ecoam no Congresso. Suas sugestões e
pretensões são acatadas com reverência, como podemos verificar nas moções
apresentadas ao final do mesmo.
Por outro lado, as considerações feitas por Roquette Pinto não foram bem
aceitas por parte de alguns intelectuais baianos. Froes da Fonseca, em resposta
ao artigo do colega, emite uma série de críticas. Primeiro, não é tão escassa e
sem valor a bibliografia, nem tão grande o descaso dos estudiosos com o tema.
Segundo, como pioneiro, cumpre que recaia em primeiro plano o vulto de Nina
Rodrigues, seguido de seus discípulos, do Instituto Histórico e Geográfico da
Bahia. Terceiro, digna de reparo afigura-se a idéia de uma missão científica
brasileira à Costa d’África para estudos. Tal missão será passeata inútil,
dispendiosa e sem utilidade. Quarto, os parcos recursos de que dispõe a ciência
brasileira devem encaminhar-se ao mais necessário: os mestiços que devem ser
estudados e seguidos na sua evolução por institutos bem dotados526.
Ainda acerca das palavras proferidas por Roquette Pinto, Arthur Ramos, no
prefácio do segundo volume dos anais do Congresso, acrescenta:
“Desejo apenas fazer uma pequena observação (...) do eminente professor Roquette Pinto, (...) É que desde 1926, na Bahia, o nome de Nina Rodrigues, (...) foi retomado no propósito firme de uma reinterpretação do problema negro-brasileiro, à sombra da sua escola imensa. Esta prioridade, eu a tenho reivindicado em outras oportunidades, e é agora tacitamente reconhecida pelo grupo do Recife, com a homenagem a Nina Rodrigues referida por Gilberto Freyre, no seu artigo deste livro.(...)527”
525 ROQUETTE PINTO, E. O Congresso Afro-Brasileiro do Recife. Diário de Pernambuco, Recife, 16 nov. 1934. p. 04. 526 FONSECA, A. F. Congresso Afro-Brasileiro do Recife.Diário de Pernambuco, Recife, 28 nov. 1934. p. 02. 527 RAMOS, A. Prefácio. Novos Estudos Afro Brasileiros . Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. (Fac-símile de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937). p 12.
Este foi apenas o início do embate. Em entrevista concedida ao Diário de
Pernambuco528, Gilberto Freyre tece uma série de críticas sobre a organização do
IIº Congresso Afro-Brasileiro a ser realizado na Bahia. Primeiro, só há dois ou três
dias soube, por uma carta do escritor Edison Carneiro, que ia realizar-se um
segundo Congresso afro-brasileiro na Bahia. Segundo, receia que vá ter todos os
defeitos das coisas improvisadas. Deveria ser muito maior o prazo para os
estudos. Os verdadeiros estudiosos trabalham devagar. Para Freyre, ao que
parecia, os organizadores do Congresso estavam preocupados com o lado mais
pitoresco e mais artístico do assunto: as “rodas” de capoeira, de samba e os
toques de “candomblé”. Discorda, ainda, da orientação do IIº Congresso Afro-
Brasileiro no tocante à relação com o governo do Estado. Defende que
Congressos de estudiosos deveriam ser inteiramente independentes dos governos
ou de qualquer organização política, com interesses partidários ou fins
imediatos529.
No mês seguinte, o jornal publica uma resposta às críticas de Freyre num
artigo escrito por Aydano do Couto Ferraz530. Nele, Aydano ressalta que Gilberto
Freyre refere-se, na primeira parte de sua entrevista, ao receio que tem de “O
Congresso da Bahia ressentir-se dos defeitos das coisas improvisadas”.
Argumenta que, desde maio de 1936, a sua Comissão organizadora endereçava
convites aos maiores estudiosos da matéria, entre os quais Melville Herskovits, E.
Frazer, Fernando Orti, Arthur Ramos, Roquette Pinto, Mário de Andrade, o próprio
Gilberto, e fazia propaganda entre os pais-de-terreiro da Bahia531. Quanto ao
aspecto pitoresco e artístico, a que Freyre se refere, é uma afirmação leviana.Este
lado de festividades nitidamente afro-brasileiras também o teve o Congresso do
Recife532. O autor continua suas críticas, indagando se Freyre estava decidido a
não enviar trabalhos ao IIº Congresso.
Aydano Ferraz também acusa Gilberto Freyre de querer trazer para o
terreno rigorosamente científico da africanologia uma luta política de grupos ou de 528 Em Torno do II Congresso Afro-Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife, 10 nov. 1936. p. 03. 529 Idem Ibdem. 530 FERAZ, A. C. Uma Questão de Escolas. Diário de Pernambuco, Recife, 13 dez. 1936. p. 02. 531 Idem Ibdem. 532 Idem Ibdem.
escolas. Para ele, a Escola do Recife, que tem como chefe este sociólogo,
começa a combater a Escola da Bahia, chefiada pelo não menor etnógrafo Arthur
Ramos533.
Com relação à subvenção esperada do governo da Bahia, o autor é
veemente: não quer dizer que façamos um Congresso social-democrata, por ter
essa orientação o partido da maioria no plenário. Esta não tirará o caráter de
independência ao Congresso da Bahia. Para Ferraz, nenhum estado, não só por
suas condições para as pesquisas africanistas como por questões objetivas de
política, se presta tanto para a realização de um Congresso do quilate do Afro-
Brasileiro como o da Bahia. E ainda acrescenta: no Congresso da Bahia nós não
subestimaremos a colaboração do grupo intelectual do Nordeste534.
Vê-se nesses artigos que, dentre as repercussões do Congresso, uma
suscitou disputas no campo das vaidades entre a Escola Baiana e a Escola
Pernambucana acerca do tema. A forma como os baianos se preocuparam em
organizar o segundo Congresso Afro-Brasileiro e o prefácio apresentado nos seus
anais expressam bem essa disputa político-intelectual pela precedência dos
estudos sobre o negro no Brasil.
Adiado por duas vezes, o IIº Congresso Afro-Brasileiro foi realizado entre os
dias 11 e 20 de janeiro de 1937. Em seu prefácio, escrito por Edison Carneiro e
Aydano do Couto Ferraz, ressalta-se, entre outras questões, tratar-se de uma
realização, no campo da africanologia, da Escola Baiana de Nina Rodrigues.
Certame de caráter rigorosamente científico, sem nenhum protocolo, exatamente
como aconteceu com o seu congênere no Recife. Os autores não se esquecem de
acrescentar que muitos pensaram que um Congresso de africanologia, para ser
levado a efeito, precisava ter à frente um Gilberto Freyre. E não eram somente os
incrédulos da Bahia que assim pensavam535.
Porém, as disputas parecem ter sido abrandadas nos bastidores. Freyre, no
seu artigo O que foi o 1º Congresso Afro-Brasileiro do Recife, afirma:
533 Idem Ibdem. 534 FERAZ, A. de C . op. cit., 1936. p. 02. 535 O Negro no Brasil: trabalhos apresentados ao 2º Congresso Afro-Brasileiro (Bahia). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940.
“Neste volume de Novos estudos Afro-Brasileiros cumpre-se uma das resoluções votadas pelo 1º Congresso Afro-Brasileiro: a de publicar nos seus annaes o retrato de Nina Rodrigues. Homenagem ao professor da Faculdade de Medicina da Bahia que deu tão grande impulso aos estudos afro-brasileiros, impondo-se ao respeito dos africanologistas de toda a parte536”.
Soma-se a essa questão o fato de o prefaciador do segundo volume dos
anais ter sido Arthur Ramos, discípulo fervoroso de Nina Rodrigues e continuador
de seus estudos na Escola Baiana. Nesse prefácio, Ramos escreve:
“A publicação deste volume (...) realiza um elo de approximação cordial entre a escola de Nina Rodrigues e o grupo que, no Recife, sob a alta inspiração de Gilberto Freyre, tomou esta iniciativa magnífica que foi o 1º Congresso Afro-Brasileiro537.”
Pelo que foi divulgado pela imprensa sobre as resoluções tomadas pelos
congressistas de 1934, não existe nada registrado acerca desta medida. Mariza
Corrêa acredita que, nestas disputas, o que está em pauta são mais que simples
disputas inter-regionais. As intrigas de bastidores, as múltiplas acusações, as
vinculações políticas dos atores envolvidos nesta história fazem parte da intricada
rede de alianças pessoais, políticas e institucionais que construíram as Ciências
Sociais no Brasil538.
Neste combate acerca da prioridade dos estudos sobre o negro, Freyre, em
Problemas brasileiros de Antropologia, lembra ter-lhe cabido a iniciativa de criar no
Brasil uma cátedra de Antropologia Social e Cultural, talvez a primeira a se
estabelecer na América do Sul. E acrescenta:
“Não é justo dizer-se nem de Nina Rodrigues nem de Arthur Ramos que foram os pioneiros ou fundadores dos modernos estudos brasileiros de antropologia(...)Têm outra origem os estudos que
536FREYRE, G. op. cit., 1988. p. 352. 537 RAMOS, A. op. cit., 1988. p.13. 538 CORRÊA, M. op. cit., 1982. p.05.
situam o negro africano e o seu descendente na vida e na cultura brasileira...539”
Mariza Corrêa lembra que Freyre, no prefácio à segunda edição de
Problemas Brasileiros de Antropologia, escrito em 1957, utilizava a mesma data,
1926, que Ramos utilizou no prefácio de “Novos Estudos Afro-Brasileiros”, para
marcar o início dos estudos sobre o negro no Brasil, mas em Pernambuco, através
do Iº Congresso Brasileiro de Regionalismo540.
Certas áreas da comunidade recifense não acolheram bem o Congresso.
Havia desconfiança de alguns setores de que fosse iniciativa de comunistas541. Na
parte de propostas, por ocasião do encerramento do Congresso, Di Cavalcanti
pediu a inserção nos anais de uma proclamação, havia pouco recebida por ele e
vários outros congressistas, na qual agremiações comunistas faziam ataques ao
Congresso. Os congressistas resolveram tomar conhecimento da proclamação,
mas não inseri-la nos anais, devido aos termos em que estava redigida542. Freyre
assim se refere ao assunto:
“Qualquer insinuação contra a pureza intelectual das suas intenções peca por leviana. Ou então revela um excesso de faro policial, talvez desenvolvido em detrimento de qualidades intelectuais mais nobres543.”
Um artigo publicado na revista Fronteiras traz o seguinte comentário:
“Não, respondemos nós, que estamos a par do grande esforço da III Internacional Comunista no sentido de organizar os homens de côr, para fins revolucionários.(...) o Congresso Afro-Brasileiro conclui-se de theses, como ‘Potencial revolucionário do Negro Brasileiro’ de Adherbal Jurema, onde se prediz, dentro da melhor tendência marxista, que o ‘sentimento revolucionário que o negro possui e nos transmitiu
539 FREYRE, G. Problemas Brasileiros de Antropologia. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro,1973. p. LXVIII. 540 CORRÊA, M. op. cit., 1982. p. 230. 541 MELLO, J. A. G. de. op. cit., 1988. 542 O Encerramento do I Congresso Afro-Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife, 16 nov.1934. p. 04. 543 FREYRE, G. op. cit., 1988. p. 349.
há de se transformar em consciência revolucionária de classe; não à vista da these ‘Abolição e sua Causas’ de Jovelino M. de Camargo Junior, que é um estudo baseado na concepção materialista da história e onde a cultura ‘burguesa’ ou da ‘classe dominante’ – como ele diz – é violentamente atacada (...) não – diante de trabalhos como ‘Situação do Negro no Brasil’, de Edson Carneiro, onde está dito com todas as letras: ‘Sabe-se que os negros tem fornecido um grande contingente para as fileiras do Partido Communista do Brasil. (...) Diante do exposto, conclui-se que se tratou dum Congresso francamente tendecioso, justo sendo, portanto, as suspeitas com que o receberam os catholicos544”.
Assim, não só alguns intelectuais baianos fizeram algumas restrições ao
Congresso como também alguns setores da sociedade recifense, mais
particularmente, alguns setores católicos.
Para Freyre, O afro-brasileiro representa uma reação necessária. O sangue
negro não deve ser vergonha para ninguém545.
“Creio que o fato do Congresso Afro-Brasileiro do Recife ter encarado o negro e o mestiço de negro, não como um problema de patologia biológica, a exemplo do que fez o próprio Nina Rodrigues – que era um convencido da absoluta inferioridade do negro e do mulato - mas como um problema principalmente de desajustamento social, representa uma conquista notável para o problema dos estudos sociais brasileiros546.”
Já o Boletim de Higiene Mental, editado pela Diretoria de Higiene Mental da
Assistência a Psicopatas, sob a responsabilidade de Ulysses Pernambucano,
esclarece:
“O Serviço de Higiene Mental mantem sob controle constante, sob observação, essas chamadas religiões inferiores. Ninguem pode
544 O Congresso Afro-Brasileiro uma Organização Puramente Scientífica? Fronteiras , Recife, v.4, n.4, dez. 1935. p. 13. 545 FREYRE, G. op. cit., 1934. p. 03. 546Em Torno do II Congresso Afro-Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife, 10 no. de 1936. p. 03.
ignorar o que de interesse para a Higiene Mental representa essa vigilancia.
Esse Congresso que se vai realizar trará aos nossos tecnicos momentos de observação mais acurada, material que só uma reunião dessas, ventiladas questões intimas ás seitas, poderá vir à tona.Não tem outro fim547.”
Os objetivos do Congresso parecem diferenciados para as escolas dos dois
pensadores pernambucanos que o organizaram. Em seu livro, Sobrados &
Mucambos, Gilberto Freyre faz o seguinte comentário:
“Divergimos de Ulysses Pernambucano de Melo quando afirma que as condições de vida dos negros não diferem, sob qualquer outro ponto de vista, da dos brancos e mestiços das classes pobres – a maioria dos doentes por ele examinados. Quer nos parecer que mesmo entre as classes pobres atuam às vezes influências desfavoráveis aos negros(...)Influências que podem muito bem interferir na sua saúde mental e na sua normalidade social de vida548”
Nos trabalhos da Escola Psiquiátrica de Pernambuco, sob a liderança de
Ulysses Pernambucano, é patente a influência das idéias de Nina Rodrigues.
Gilberto Freyre acredita ter erradicado a influência dessa Escola através de suas
discussões com Ulysses, tendo-a substituído pela orientação do antropólogo
americano Franz Boas, de quem foi aluno. Sobre a questão, relata:
“...já depois de algum convívio entre nós me pôs na obrigação de contesta-lo, devido ao aspecto com que primeiro se apresentou esse seu interesse, através de pesquisas africanológicas que ele apreendeu por conta própria(...)Baseava-se, entretanto , na arcaica africanologia do aliás ilustre maranhense Raimundo Nina Rodrigues, fixado na Bahia, para quem o negro seria um inferior biológico, cuja presença, por isso mesmo, na formação étnico-social e sociocultural do Brasil,
547 1º Congresso de Seitas Africanas no Brasil. Boletim de Higiene Mental , Recife, ano 2, n.7, jul. 1934. p. 01. 548 FREYRE, G. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento urbano. 9. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 639.
teria sido e continuaria a ser antes negativa do que positiva. Justamente a desorientação antropológica, contra a qual eu, (...)me preparava para investir.Foi intensa a nossa troca de informações e de critérios, desde os conceituais aos metodológicos, a esse respeito.(...) resultou, da parte dele, sobre o assunto, completa modificação de critério. Repúdio ao Ninarodriguismo549”
Em Quase Política, Freyre volta a afirmar:
“Pois nos seus últimos anos – e creio não vangloriar-me em vão dizendo que em grande parte por influência minha e não de nenhum Herskovits, como às vêzes se insinua – Ulysses deixava de ver o problema de tais sobrevivências pura expressão de ‘patologia social’, para considerar as culturas negro-africanas sob novo aspecto: sem preconceito que as deformasse em material apenas clínico550
Tal repúdio não parece ter sido completo. Gonçalves Fernandes, discípulo
de ambos, coloca a interpretação da possessão como um ponto de discordância
de ambos:
“ A conceituação patológica, do ponto de vista da Medicina Mental, das possessões era idéia que dificilmente se podia erradicar da formação médica, estritamente médica dos psiquiatras de então, mesmo daqueles como Ulysses Pernambucano, tão psicólogo experimental, tão psiquiatra social, tão renovador como jamais houve quem o fosse.Enquanto para um grupo ainda um tanto rígido as possessões eram encaradas como síndromes patológicas que mereciam cuidadosa observação por parte do Serviço de Higiene Mental, tentava o professor Gilberto Freyre dissuadi-lo, apresentando os estados de possessão não como se ensinava, mas como expressão de um passado cultural que eclodia em determinadas circunstâncias, favorecida por uma ação reflexa.Esse que é o conceito pacificamente aceito hoje em dia pelos
549 FREYRE, G. op. cit., 1978. p. 133. 550 FREYRE, G. Quase Política . 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966. p. 19.
antropólogos culturais mantinha-se, por aquele tempo, como uma das coisas que o Mestre Ulysses Pernambucano não aceitava do seu querido amigo e colaborador551”.
Para Mariza Corrêa, longe de formarem um grupo homogêneo de
intelectuais lutando pela implantação do progresso científico do país, eles estão
vinculados, por laços políticos, de parentesco, regionais, profissionais ou outros, a
interesses muitas vezes antagônicos entre si. Para a autora, isso se deve, em
parte, ao fato de as fronteiras entre as várias áreas de atividade intelectual não
estarem ainda tão estreitamente delimitadas que não pudessem ser cruzadas com
freqüência. Deve-se também à rarefação intelectual da elite em geral, o que lhe
propiciava possibilidades de atuação não circunscritas aos limites de sua
formação profissional552.
É interessante também notar que, no âmbito da política estadual, estavam
os dois primos organizadores do Congresso em posições opostas. Enquanto no
processo apreendido em 1930 Gilberto Freyre foge para o exílio com o então
governador representante da antiga ordem, Estácio Coimbra, o seu parceiro na
organização do Congresso é convidado pelo então interventor federal, Lima
Cavalcanti, a fazer parte do seu governo, para implementação do processo de
modernização do sistema psiquiátrico de Pernambuco.
Estácio Coimbra, governador de Pernambuco deposto no movimento de 30,
era usineiro e constituía o núcleo das classes dominantes em Pernambuco, em
torno das quais giravam as políticas públicas. Já Carlos de Lima Cavalcanti,
também usineiro e dono de dois jornais, sem o espaço pretendido no governo, se
transformou no principal oposicionista do Estado. Com a vitória armada de 30, foi
nomeado governador logo nas primeiras horas553.
É importante lembrar que 1933 foi o ano de ascensão do nazismo ao poder
na Alemanha. A questão racial colocava em discussão a “inferioridade racial” dos
não arianos. A posição racista apoiava-se na ciência de generalizações
551 FERNANDES, G. Prefácio à segunda Edição.In: FREYRE, G. Problemas Brasileiros de Antropologia. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973.pp. XXI-XXII. 552 CORRÊA, M. op. cit., 1982. p.05. 553 SARMENTO, A. N. op. cit., 1998.
deterministas. É bom, também, recordarmos que, quando o Congresso se
realizou, a Abolição da Escravatura tinha apenas 47 anos. Até então, a
colonização do Novo Mundo fora baseada na concepção de um pretenso direito
dos europeus de reduzir à escravidão índios e negros.
Outra questão a ser levantada diz respeito à fidelidade às tradições
africanas. Tenta-se, com esses trabalhos, assentar as bases para fiscalização dos
terreiros, reprimindo-se os que fugissem da categoria de religião africana, os
quais, segundo os estudiosos, seriam aqueles que conservassem uma maior
fidelidade com a África. Era necessário selecionar o que convinha à elevação
moral do negro e descartar o que concorria para desmoralizá-lo socialmente.
Nessa perspectiva, o Xangô tradicional deveria ser preservado porque não
denegria a imagem do negro. No entanto, o Xangô moderno, deturpado,
constituía-se num entrave, gerando, muitas vezes, casos “policiáveis”554.
Nesse sentido, formulou-se um arquivo de imagens e enunciados, um
estoque de “verdades”, uma visibilidade do afro-umbandista. Nas formulações de
saber e de poder que produziram essas imagens, tanto os intelectuais quanto os
afro-umbandistas são produtos de efeitos de verdade emersos em uma luta e
mostram os rastros dela através de suas linguagens e de suas práticas.
Concordando com a afirmação de Clóvis Moura555de que a grande maioria
dos explorados no Brasil é constituída de afro-brasileiros, criou-se, de um lado, a
mitologia da “democracia racial” e, de outro, continuou-se o trabalho de
desarticulação das suas religiões, transformando-as em simples manifestações de
laboratório. As religiões afro-brasileiras passam a ser vistas como manifestações
do passado escravista que não tiveram condições de compreender o progresso e
que, por essa razão, deverão ser toleradas.
Tzvetan Todorov afirma que a história exemplar da conquista da América
nos ensina que a civilização ocidental venceu, entre outras coisas, graças a sua
superioridade na comunicação humana; mas também que essa superioridade
se afirmou à custa da comunicação com o mundo. Saídos do período colonial,
554 DANTAS, B. G. op. cit., 1988. 555 MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.
sentimos confusamente a necessidade de revalorizar essa comunicação com o
mundo556.
Para Foucault, não se explica inteiramente o poder, quando se procura
caracterizá-lo por sua função repressiva.O que lhe interessa basicamente não é
expulsar os homens da vida social, impedir o exercício de suas atividades, e sim
gerir a vida dos homens, controlá-los em suas ações para que seja possível e
viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um
sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades, como a
diminuição de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra a ordem do
poder, isto é, tornar os homens dóceis politicamente557.
Se entendermos esta história como um combate de interesses e conflitos,
em que não existem, de um lado, os que têm o poder e, de outro, aqueles que se
encontram dele alijados, esses acontecimentos narrados constituíram práticas e
relações de poder que se exerceram, se efetuaram e que funcionaram. Não como
objeto, coisa, mas como uma relação que não se situa em um lugar exclusivo,
mas que se dissemina por toda a estrutura social. Como afirma Foucault:
“O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso558”.
Enquanto para os eugenistas o negro é considerado ser inferior e o
Congresso deveria estudá-lo como tal, para os culturalistas, é parte importante e
integrante da formação da sociedade brasileira e deveria ser estudado no sentido
de contribuir para o engrandecimento da cultura brasileira.
Para os negros participantes do Congresso, este era visto como um
reconhecimento da sociedade de sua importância na formação social do Brasil e
como uma forma de divulgação e manutenção de suas práticas religiosas. Tanto
556 TODOROV, T. A conquista da América: a questão do outro. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p.247. 557 MACHADO, R. Introdução: por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 11. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993. p. XVI. 558FOUCAULT, M. op. cit., 1993. p. 08.
eugenistas quanto culturalistas os colocavam em evidência, cada um com seus
objetivos, em face da ilegalidade e da ilegitimidade de sua religiosidade.
CAPÍTULO V
1937: REPRESSÃO E INTEGRAÇÃO NACIONAL
“Eram os tempos dos ‘capangas de Deus’, no histerismo de suas exorcizações, Igreja e polícia confundindo-se num abraço de terríficas ameaças559“.
Com este capítulo, iniciamos a segunda parte deste trabalho.
Estabelecemos como objetivo entender as transformações históricas, ocorridas no
Brasil e em Pernambuco, e as novas relações que se estabeleceram entre a
sociedade e os afro-umbandistas com a implementação do Estado Novo. A
análise partirá da posição mais abertamente repressora e discriminatória do
Estado, como também do papel exercido pela Igreja, mais particularmente, pela
Congregação Mariana, na contribuição da radicalização do processo.
O Estado Novo se impôs como objeto específico de estudo na historiografia
a partir do momento em que os historiadores enfrentaram o desafio de estudar a
história do presente. Esse estudo se desenvolve, na perspectiva de interpretação
do poder, por outros prismas que não os utilizados pelas teorias do Estado,
reconhecendo outras formas de política e de poder560. Nesse sentido, possibilitou
a inclusão de novas temáticas de pesquisa, como as que objetiva este capítulo.
Transformam-se as relações políticas, mas permanecem em cena as
personagens principais através das quais gira a temática desta história. Uma
parcela da intelectualidade de Pernambuco, composta por eugenistas e
culturalistas, que protagonizaram as discussões anteriores, se encontra afastada
dos lugares de poder que até então ocuparam.
Como lembra Michel Foucault, para que seja feita uma análise das relações
de poder, é preciso procurar saber como as relações de sujeição podem fabricar
sujeitos. Melhor do que procurar a forma única, da qual todas as modalidades de 559 CAVALCANTI, P. A Luta Clandestina (o caso eu conto como o caso foi)- Memórias Políticas. Recife: Guararapes. Vol. 4, 1985. p.20. 560 CAPELATO, M. H. R. Multidões em Cena: propaganda política no varguismo e no peronismo Campinas: Papirus, 1998.
poder derivariam, é preciso primeiro deixá-las aparecer nas suas multiplicidades,
nas suas diferenças. Estudá-las, portanto, como relações de força que se
entrecruzam, que remetem umas às outras, convergem ou, ao contrário, se opõem
e tendem a se anular561. Nesses termos, o estudo das relações políticas, em que
os fatos aqui estudados estão imbricados, é fundamental.
Durante o Estado Novo, Getúlio Vargas consolidou projetos que vinham
sendo discutidos desde outubro de 1930, quando assumiu a Presidência da
República. Segmentos importantes das elites civis e militares foram sendo alijados
do poder. Em junho de 1934, parlamentares, escolhidos pelo voto direto,
promulgaram uma Constituição, elegendo Vargas, chefe do governo provisório,
para a Presidência da República. A nova Carta, ao mesmo tempo que assegurava
o predomínio do legislativo e ampliava a capacidade intervencionista do Estado,
reduzia o poder do presidente da República562.
O golpe de 1930 teve a participação de forças políticas bastante
diversificadas. A proposta de reestruturação do Estado é esboçada: nos
movimentos intelectuais dos anos 20 (grupos modernistas)563; no tenentismo da
Velha República; no movimento integralista de Plínio Salgado564; e também nas
novas formulações doutrinárias, oriundas do contexto internacional. Sendo assim,
as visões acerca da condução do processo eram consideravelmente distintas.
Nos anos 30, o Brasil não seguiu rumos diferentes dos que estavam sendo
trilhados pelos países europeus565. Os movimentos de caráter nacionalista,
apelando para traços culturais da História de cada povo, ganhavam força em toda
561 FOUCAULT, M. Resumos dos discursos do College de France. 1970-1982. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. 562 PANDOLFI, D. C. Apresentação. In. Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. 563OLIVEIRA, L. L. et. al. Apresentação In.Estado Novo: Ideologia e Poder. Rio de Janeiro:Zahar,1982 p.10. 564O Integralismo de Plínio Salgado possuía uma lógica particular próxima do conservadorismo europeu que vigorava na época. Seu caráter mobilizante foi responsável pela transformação, em meados da década de 30, num grande partido de massa, ativo em todo o país. Sua atividade caracterizava-se por um grande esforço de arregimentação de militantes, pela criação de núcleos sanitários, esportivos e culturais e pela afirmação de uma nova modalidade de cidadania. In.ARAÚJO, R. B.Totalitarismo e Revolução: O Integralismo de Plínio Salgado. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. 565Mussolini chega ao poder em 1923, Salazar chega a 1º ministro de Portugal em 1929, Hitler ascende, na Alemanha em 1933, e a França vinha enfrentando fortíssimos movimentos nacionalistas desde o fim do Séc. XIX. In. OLIVEIRA, L. L. et. al. op. cit. , 1982. p.7.
a Europa. O Fascismo, o Nazismo e o Stalinismo, não necessariamente
identificados entre si, intercambiaram fórmulas e experiências que pretendiam
congelar os focos de tensão da História e resolver a questão social, redimindo da
exploração as populações trabalhadoras566. Aliás, desde a Iª Guerra Mundial, o
modelo liberal clássico de organização da sociedade vinha sendo questionado, em
detrimento de concepções totalitárias, autoritárias, nacionalistas, estatizantes e
corporativas567.
Getúlio, ao se dirigir aos jornalistas estrangeiros, logo após o golpe de 37,
afirma que a nova Constituição “não é fascista, nem integralista. É brasileira,
corresponde apenas à índole do momento político em que o Brasil se
encontrava568”. A repercussão dos acontecimentos, no exterior, é largamente
notificada pela imprensa do Recife. É proclamado que Londres e Paris registram e
comentam, com destaque, os acontecimentos no Brasil. A imprensa alemã exalta
a personalidade de Vargas e ridiculariza as insinuações dos franceses a respeito
da suposta influência do Reich nos negócios internos do Brasil. Já o Presidente do
Senado italiano admite, publicamente, que houve uma contribuição do Fascismo
nos acontecimentos que transformaram a Constituição do Brasil e que a Itália, de
uma maneira ou de outra, é responsável pelo que aconteceu. A Suíça encarou os
acontecimentos com diplomacia569.
Através da repercussão dos acontecimentos registrados na Imprensa
internacional, percebe-se que Vargas e sua política interna eram vistos com
grande simpatia pelos governos nazi-fascistas. O Estado Novo trouxe uma fonte
de pensamento racista que parecia indicar as tendências do pensamento político
da Alemanha de Hitler e da Itália de Mussolini.
Boris Fausto, ao analisar a conexão do Estado Novo com o contexto
internacional, acrescenta certas influências, na formação do autoritarismo
566 LENHARO, A. Sacralização da Política.Campinas: Papirus, 1986. 567 PANDOLFI, D. C. op. cit., 1999. 568 Novo Regime é Instituído no Brasil. Jornal do Commercio, Recife,17 nov. 1937. p. 03; O Presidente Getúlio Vargas fala aos Jornalistas Estrangeiros sobre a Nova Constituição e a Orientação da Política Exterior. Diário da Manhã , Recife, 17 nov. 1937. p. 01. 569 In. Jornal do Commercio, Recife,13 nov. 1937; Diário da Manhã , Recife, 12, 13 e 14 nov. 1937.
brasileiro, que vêm de áreas periféricas da Europa. Essas influências, apesar de
menos conhecidas, não deixam de ter significado. Trata-se, primeiramente, do
romeno Manoilescu, cujas idéias foram uma espécie de bíblia para boa parte dos
industriais brasileiros. Sua principal idéia era a defesa do protecionismo como
forma de desenvolver a economia nas áreas periféricas. Kemal Ataturk,
modernizador da Turquia, foi a outra figura que constituiu ponto de referência
entre uma parcela da elite econômica do Brasil. Por outro lado, o General Góis
Monteiro vislumbrou, em suas idéias, um exemplo a ser seguido, colocando-o ao
lado de figuras como Mussolini570.
Com a instalação do governo constitucional, o clima político do país
radicalizou-se. Dois importantes movimentos de massa, com idéias distintas,
mobilizaram a população: a Ação Integralista Brasileira (AIB), nacionalista e
antiliberal, e a Aliança Nacional Libertadora (ANL), nitidamente de oposição a
Vargas e que congregava socialistas, comunistas, católicos e nacionalistas. Em
novembro de 1935, com a eclosão dos levantes comunistas, estes foram utilizados
como justificativa para intensificar mecanismos de controle social, conduzindo a
um gradativo fechamento do regime571.
Em 1937, a campanha eleitoral para a Presidência da República fez vir à
tona antigas e novas divergências políticas. A Carta Constitucional legalizou um
aparato de medidas destinadas a estreitar o espaço das liberdades políticas, a
controlar os movimentos dos trabalhadores, a disciplinar a mão-de-obra e a
industrializar o país572.
O Jornal do Commercio, ao comentar a Constituição do Estado Novo,
esclarece que:
“De acordo com a lei básica, mantem-se a actual divisão política, mas desapparecem bandeiras, hinos e escudos estaduaes – reformada integralmente, a estrutura do parlamento – legislatura de quatro annos e sessões legislativas de quatro meses, havendo dez deputados por
570 FAUSTO, B. O Estado Novo no Contexto Internacional. In. PANDOLFI, D. C. (org.) Repensando o Estado Novo.Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. pp. 17-20. 571 PANDOLFI, D. C. op. cit., 1999. 572 CAPELATO, M. H. op. cit., 1998. p. 43.
Estado – período presidencial de seis annos e eleição indireta – haverá pena de morte em tempo de guerra, assim como em diversos casos, inclusive assassinato por motivos fúteis – como fica estabelecido o mandato dos atuaes governadores573.”
Constrói-se, assim, o imaginário do nacionalismo centralizador, em que
todos estão submetidos a um Estado que representa em si a única vontade.
Nessa categoria devem estar incluídos os cidadãos que não pensam, não agem,
não questionam e que não podem trazer mal algum ao sistema.
Nesses termos, emergiu o Estado intervencionista que fundou sua
legitimidade na defesa do desenvolvimento econômico, da integração territorial,
política e social, da criação dos direitos sociais, da construção do progresso dentro
da ordem574. No entanto, o regime não pode ser explicado somente pela
emergência de circunstâncias sociopolíticas favoráveis. Levando em conta essas
condições, foi elaborado um projeto político que soube capitalizar acontecimentos
e convencer a sociedade da necessidade de uma nova ordem centralizada no
fortalecimento do Estado575.
Nos dias que se sucederam à implementação do novo regime, a imprensa
de Pernambuco pontua os seguintes acontecimentos: o discurso de Getúlio
Vargas à Nação, explicando suas ações desde 1930, seu alheamento às
competições partidárias, a tarefa de restauração econômica e financeira e o
aperfeiçoamento da obra de justiça social576; O General Eurico Gaspar Dutra,
Ministro de Guerra, reitera seu apoio à nova Constituição, garantindo que a Pátria
e o regime repousam sob sua guarda577. Em conseqüência da nova Constituição,
é decretada a dissolução da Câmara Federal, das Assembléias legislativas e das
573 A Constituição por que se regerá o Estado Novo do Brasil. Jornal do Commercio, Recife,12 nov. 1937. p.04. 574 CAPELATO, M. H. op. cit., 1998. 575VELLOSO, M. P. Cultura e Poder Político: Uma Configuração do Campo Intelectual. In: OLIVEIRA. L. L. et. al. Estado Novo:Ideologia e Poder. Rio de Janeiro:Zahar,1982. pp. 71-108. 576 Decretada, hontem, a Intervenção Federal em Pernambuco. Jornal do Commercio, Recife, 11 nov. 1937. p. 03. 577 Penhor de Segurança e ordem. Jornal do Commercio, Recife, 11 nov. 1937. p. 14.
Câmaras Municipais578. Getúlio recebe telegramas de solidariedade, por parte dos
governadores, com exceção dos de Pernambuco e da Bahia579. Para facilitar a
recomposição do governo, o Ministério renunciou coletivamente580. Também
aparece, em destaque, a criação de um Conselho de Imprensa para controlar
melhor o exame da situação política581. Assim, é propagado que a nova
Constituição corresponde às necessidades do país. Desse modo, “o Brasil, sob o
Estado Novo, marcha tranqüilamente para os seus grandes destinos582”.
Assim, a propaganda do novo regime era amparada pela necessidade de
ordenar a nação, de protegê-la do perigo, da desordem. Getúlio Vargas é
colocado em posição de neutralidade política e, nesses termos, o governante ideal
para construir uma nação forte, sadia e de futuro brilhante.
Projetar, então, o Estado nacional significava construir uma nova nação, o
que se faz com um novo modelo técnico-administrativo de Estado. Assim,
buscando demarcar o seu lugar na História, o Estado Novo precisava refazer o
próprio “sentido” da História do Brasil. Nesse empreendimento, era imprescindível
a ação de especialistas, capazes de recuperá-la e divulgá-la não só através do
sistema de educação formal como através de uma política destinada a um público
muito mais amplo583.
A elite intelectual, voltada para questões que eram debatidas na Europa,
propunha e reinterpretava soluções diante da realidade nacional. Intelectuais,
vindos das mais diferentes origens, foram desembocar numa corrente comum,
inserida no projeto de construção do Estado Nacional. Modernistas, integralistas,
positivistas, católicos e socialistas são encontrados trabalhando lado a lado584.
578 O Brasil está desde hontem, sob o regime da Nova Constituição. Diário da Manhã. Recife, 11 nov. 1937. p. 01. 579 Penhor de Segurança e ordem. Jornal do Commercio, Recife,11 nov. 1937. p. 14. 580 Novo Regime é Instituído no Brasil. Jornal do Commercio, Recife, 12 nov. 1937. p. 05. 581 Novo regime político no país. Jornal do Commercio, Recife, 11 nov. 1937. p. 03. 582 Frase em destaque no Jornal Pequeno. Recife, 13 nov. 1937. p. 03. 583 GOMES, A. M. C. História e Historiadores. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996. 584OLIVEIRA, L. L., op. cit., 1982. p.11.
Soma-se a esses movimentos o papel que a Igreja Católica exerceu, no
Estado, durante esse período. Como assinala Oscar Lustosa585, a Igreja legitimava
o Estado, manifestando tendências e tentações de querer o regime enquadrado
em uma cristandade sui generis. O autor ainda acrescenta que o gênio getulista,
através do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, faz questão de enfatizar a
influência da doutrina Social Cristã, mediante o aproveitamento das Encíclicas
Sociais, no planejamento e na ação oficial em favor do povo. Além disso, percebe-
se a cooptação de líderes eclesiásticos e leigos para colaborarem com os setores
governamentais na área trabalhista.
Maria Helena Capelato analisa como a propaganda política do varguismo
se valeu, exaustivamente, das imagens religiosas. A busca de apoio da Igreja
tinha um sentido político. A formação ibérica habilitou ao uso e ao culto de
imagens e símbolos propagados pelo catolicismo desde a conquista e a
colonização. A autora também se refere à postura do Estado Novo, em relação ao
trabalhador, como sendo bem diversificada. A preocupação maior consistia em
transformar o brasileiro em trabalhador586.
Os símbolos mais explorados, nas representações visuais do Estado Novo,
eram a bandeira brasileira e a figura de Vargas587. O cartaz588 que se segue
traduz, em síntese, toda essa simbologia:
585 LUSTOSA, O. F. A Igreja Católica no Brasil República. São Paulo: Edições Paulinas, 1991. 586 CAPELATO, M. H. op. cit., 1998. 587 Idem Ibdem. 588 Propaganda do Estado Novo. In. Nosso Século (1930-1945). São Paulo: Abril Cultural, 1980. p.176.
A bandeira, com a imagem de Vargas desenhada na esfera azul e os
dizeres ao lado: Fortes e unidos, os brasileiros do Estado Novo são guiados pela
grande Trindade Nacional: Nossa Pátria, Nossa Bandeira, Nosso Chefe, sacraliza
os símbolos através da simbologia da Santíssima Trindade.
O golpe de 1937 foi justificado como a salvação do Brasil do perigo
comunista. Trabalhava-se a representação de que o processo empreendido em
1930 livrara o país das oligarquias decadentes e retrógradas, enquanto o Estado
Novo vencera, definitivamente, o Comunismo. As mensagens da propaganda
alardeavam que a “sociedade feliz” se concretizara e que a “felicidade brasileira
oficial” deveria ser comemorada em todas as datas cívicas589.
Aqui é importante levar em consideração o fato de que, apesar de os
discursos e as práticas de Getúlio Vargas estarem identificados com o
Totalitarismo, não se pode afirmar que houve uma prática totalitária por parte do
Estado Novo, no sentido atribuído a esse conceito a partir da experiência histórica
de países da Europa e da Rússia. Durante todo o período em que dominou o
Estado Novo, as oposições democráticas e os adversários políticos continuaram
589 CAPELATO, M. H. op. cit., 1998.
atuando, embora bastante vigiados e constantemente reprimidos. Porém, não
ocorreu o monopólio absoluto do Estado no plano físico, jurídico e econômico590.
Por outro lado, deve-se observar que, embora sob censura, durante o
Estado Novo, a imprensa, mesmo antes de 1937, nunca fora favorável ou mesmo
simpática a Vargas. Isso justifica, de acordo com Ângela de Castro Gomes, a
montagem de um jornal para ser o porta-voz do regime. A Manhã, jornal carioca,
diário e matutino, começa a circular, em agosto de 1941, firmando uma postura
francamente doutrinária e assumindo um caráter didático na exposição das idéias
do presidente e dos feitos do regime591.
Para Edgar Carone, as relações entre o Estado Novo e as classes
dirigentes foram estreitas e cordiais. As exposições e críticas continuaram a existir
contra o governo, porém, a maior parte da oligarquia agrária e da burguesia
urbana manteve contatos contínuos com Getúlio e seus representantes numa
recíproca troca de favores592.
Ao lado das práticas de repressão, o regime adotou uma série de medidas
que iriam provocar modificações substantivas no país. O Estado voltou-se para a
consolidação de uma indústria de base e passou a ser o agente fundamental da
modernização econômica593.
Na maioria dos Estados, a implantação do regime autoritário não implicou
um remanejamento da elite política, mas uma acomodação dessa elite a uma nova
situação. No caso específico de Pernambuco, a política se redefine e a antiga
elite, liderada pelo governador Carlos de Lima Cavalcanti, é totalmente alijada do
poder594.
A partir de 1935, o prestígio do governador Carlos de Lima Cavalcanti, junto
ao Governo Federal, decresce. Este é um momento que representa um marco na
590 Aqui concordando com as idéias colocadas por Helena Capelato. In. CAPELATO, M. H. op. cit., 1998. 591 GOMES, A. M. C. op. cit.,1996. 592 CARONE, E. O Estado Novo (1937-1945). São Paulo:DIFEL, 1977. 593 PANDOLFI, D.C. op. cit., 1999. 594 PANDOLFI, D. C. Pernambuco de Agamenon Magalhães: consolidação e crise de uma elite política. Recife:Massangana,1984.
vida política nacional. O levante comunista, ocorrido em novembro de 1935 em
diversas capitais do país, dentre elas Recife, conduz a um recrudescimento da
tensão política. A partir de então, o Congresso aprova o estado de sítio e,
posteriormente, o estado de guerra, que é prorrogado, praticamente sem
interrupções, até novembro de 1937. No caso de Pernambuco, a situação era
complexa. O governador Lima Cavalcanti, uma das expressivas lideranças do
processo empreendido em 1930, tinha ampla legitimidade junto aos diversos
setores da sociedade595.
Nos meses que precedem a decretação do Estado Novo, a efervescência
política domina o cenário nacional, e as posturas políticas do governador diante da
marcha dos acontecimentos o enfraqueceram. A alegação de conivência com o
Comunismo foi a estratégia utilizada pelo Governo Central para justificar o
afastamento do antigo aliado. No entanto, a questão era seu posicionamento
diante do problema da sucessão presidencial, em que não apoiava a continuidade
de Getúlio. Por outro lado, a liderança regional, e mesmo nacional de Lima
Cavalcanti constituía-se num embaraço para o Governo Central596.
Em outubro de 1937, o Poder Central nomeia, para o cargo de
Comandante da 7a. Região Militar, em Pernambuco, o Coronel Azambuja
Vilanova. Logo após assumir o cargo, este denuncia, pela imprensa, a descoberta
de um plano de levante comunista no Estado. Agamenon Magalhães, peça
importante dentro da nova ordenação de forças políticas, torna-se, também, um
poderoso instrumento de que Vargas dispõe para intervir no Estado. No mesmo
dia em que é outorgada a nova Constituição, é decretado o estado de emergência
em Pernambuco, e o Coronel Azambuja Vilanova é nomeado interventor597. Sobre
esses acontecimentos, o Jornal Pequeno publica:
Em conseqüência da intervenção federal decretada, e imediatamente executada, os destinos do Estado foram confiados ao Coronel Azambuja Villa-Nova. O novo governo do Estado
595 PANDOLFI, D. C. op. cit., 1984. pp. 44-45. 596 Idem Ibdem. 597 Idem Ibdem.
não adimite perseguições sob qualquer pretexto, por motivo de natureza política598”
Já o Jornal do Commercio destaca as seguintes informações:
“A preocupação máxima é desfazer o nevoeiro que à intriga e o ódio lançaram na sociedade pernambucana. O governador se sente autorizado em declarar que o Estado se conserva em perfeita ordem. Se for preciso 5 ou 6 mil homens se deslocarão para abafar qualquer velleidade de políticos ambiciosos de algum Estado vizinho, visando-se advertência599.”
Em maio de 1937, Lima Cavalcanti é acusado de envolvimento com o
levante comunista de 1935, e Agamenon Magalhães compartilha de tal suspeição.
Vargas o encarrega de documentar a causa antiLima Cavalcanti.
Foi rápida a passagem de Azambuja Vilanova pelo cargo de interventor de
Pernambuco. Em 15 de novembro, é promovido a General600. Em sua
homenagem, uma parada cívica é levada a efeito, como descreve o Jornal do
Commercio:
“Uma expressiva homenagem às classes armadas, representada na pessoa do interventor federal neste estado.Tomaram parte nesta parada, vinte associações carnavalesca, caboclinhos, maracatus, blocos, troças e clubes.(...)O desfile iniciou-se ás 20 horas e terminou ás 23 horas. As "rainhas" do maracatu "Leão Coroado" e "Elephante", subiram ao palco, para cumprimentar o SNR interventor, junto ao qual foram photographados601.”
598 Pernambuco tem novo governo. Jornal Pequeno, Recife, 11 nov. 1937. p. 01. 599 Uma Proclamação dirigida ao povo pelo novo governo. Jornal do Commercio, Recife, 11 nov. 1937. p. 03. 600 Promoção ao generalato de Azambuja Vilanova. Jornal Pequeno. Recife, 16 nov. 1937. p.01. 601 A parada cívica levada a efeito, hontem, pela agremiação carnavalesca. Jornal do Commercio, Recife, 19 nov. 1937. p. 03 .
Em 25 de novembro, foi nomeado o novo interventor federal, o então
Ministro do Trabalho Agamenon Magalhães602. Sua chegada ao Recife foi
acompanhada de grandes comemorações, dentre elas, passeatas, missas e
discursos603. No dia 26, o General Azambuja Vilanova é exonerado do comando
da 7a. Região Militar e nomeado Comandante da 7a. Brigada de Infantaria604.
Finalmente, Pernambuco integrava-se ao projeto do Estado Novo.
A Interventoria de Agamenon Magalhães, em Pernambuco, assumiu como
uma de suas metas erradicar tudo o que simbolizasse o velho, o obsoleto, ou seja,
tudo o que representasse a República Velha. Uma das primeiras medidas da
Interventoria foi formular um plano de remodelação da cidade, segundo o qual a
miséria, em todas as suas nuances, deveria ser extirpada, porque, através dela,
se expressava o retrato da feiúra do Recife. A capital deveria ganhar status de um
arrojado centro urbano, deixando para trás seu perfil de pequena aldeia605.
Para Aspásia Camargo, a reestruturação da disputa política em
Pernambuco se fez pelo deslocamento das elites políticas açucareiras, aliadas a
Lima Cavalcanti, em favor dos coronéis do sertão. Paralelamente a essa
estratégia, Agamenon articulava novas alianças com os grupos urbanos menos
favorecidos, estimulando a sindicalização dos trabalhadores e dos funcionários
públicos, tomando iniciativas favoráveis aos mesmos. Consolidava-se, assim, a
formação de um eixo de sustentação política diversificada, reunindo as oligarquias
do sertão e as camadas populares do Recife. Ao incorporar à cena política novos
atores, reforçava o poder das oligarquias periféricas, protegendo, política e
economicamente, setores decadentes ou marginais, tais como os coronéis e os
602 Nomeado para pasta do trabalho o ex- senador cearense Waldemar Falcão. Diário de Manhã. Recife, 26 nov. 1937. p. 01. 603 Próxima chegada a esta capital do novo Interventor Federal no Estado. Jornal do Comercio. Recife, 28 nov. 1937. p. 03. 604 Exonerado do Comando da Sétima Região Militar e Nomeado Commandante da Sétima Brigada de Infantaria, o General Azambuja Valanova. Jornal do Commercio. Recife, 27 nov. 1937. p. 03. 605 ALMEIDA, M. G. A. A. A Construção da Verdade Autoritária: Palavras e Imagens da Interventoria Agamenon Magalhães em Pernambuco.(1937 – 1945). 1995. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.
fornecedores de cana de Pernambuco, alijados do sistema produtivo com a
expansão das usinas606.
Durante a vigência da interventoria de Agamenon Magalhães, Pernambuco
viveu tempos de demagogia, intolerância e ódio. Além da proibição de atividades
político-partidárias e da farta e maciça propaganda em torno da “paz social”, o
Governo vigiava, policialescamente, os movimentos sociais considerados nocivos
ao regime607.
A descrição realizada por Agamenon acerca da situação econômica e social
do Estado aponta um grave cenário. Em seu relatório ao presidente da República,
afirma que, em um ano, a situação econômica foi revertida, entretanto não
aparecem detalhes:
“Quando assumimos o governo do estado, em dezembro de 1937, nos defrontamos com a seguinte situação: déficit orçamentário, dívida flutuante, crise de autoridade, fuga de capitais, pauperismo e depressão econômica profunda. Diante desse quadro tivemos que adotar, ao lado de enérgica política de compressão das despesas, largo plano de recuperação econômica e social. Logo, no primeiros ano, isto é, 1938, conseguimos por a administração em ordem e alcançar o equilíbrio orçamentário608(... )”
O interventor ressalta que, ao assumir o cargo, a situação do Estado era de
confusão, desordem e caos. Através de medidas rápidas e eficientes,
reestabeleceu a ordem. Suas ações aparecem como estratégia particular de luta e
não como atividades de uma administração. Cria, assim, a idéia de que os
conflitos sociais foram totalmente resolvidos, graças ao “braço forte” do Interventor
que, sozinho, acionou dispositivos de controle da vida coletiva. É um discurso que
606 CAMARGO, A. M. Autoritarismo e Populismo: a bipolaridade do sistema político brasileiro. In. Dados. 12, Rio de Janeiro, 1976. 607 CAVALCANTI, P. op. cit., 1985. p. 19. 608 MAGALHÃES, A. RELATÓRIO Apresentado ao Exmo. Snr. Presidente da República em virtude do Art. 46 do Decreto-Lei Federal nº 1202. Recife: Imprensa Oficial, 1940.
busca fundar a crença numa voz de comando segura e auto-suficiente. Nesse
sentido, qualquer forma de resistência era sufocada.
Dessa forma, a linguagem, a análise e a prática política estão imersas
numa narrativa que inclui “coisas”, como: opressão, legitimação, direitos, Estado,
Governo e Autoridade. Assim, o governo é mais que a legitimação do seu
exercício de autoridade. Ele é uma arte, uma atividade que atinge tudo. Não saiu
simplesmente do nada: teve que ser inventado. Para Foucault, a arte do governo
ou a governamentalidade atinge a todos; não existem formuladores e realizadores
autônomos de projetos individuais609.
Destruir o velho e construir o novo transformaram-se em prioridade do
governo que anteviu, nas construções das casas populares, uma fórmula de
colocar em prática o que, até então, era apenas projeto social. Estas construções
se apresentavam em duas vertentes intimamente relacionadas: uma que construía
habitações populares para erradicação dos mocambos da cidade e outra que
construía, destruindo a tradição e buscando o moderno, o progresso, sob o
artifício do embelezamento610.
Essas modificações se constituíram num importante marco na consolidação
de uma política urbana para o Recife. A política de combate aos mocambos
resultou numa experiência singular pela amplitude das ações empreendidas. Além
disso, articula-se com outros projetos de política social urbana levados a efeito em
outras cidades do Brasil611.
Exercer o controle sobre as massas, tornando-as acríticas, apolíticas,
apáticas, anticomunistas e anti-semitas fazia parte do projeto político então
vigente. O objetivo a que a Interventoria Agamenon Magalhães, em Pernambuco,
se propôs, foi o de apreender a relevância da manipulação das massas e executá-
la através do pacto Estado/Igreja, apoiado em um sistema de representações,
dentre as quais os valores católicos se faziam presentes. Além dessa colaboração
609 FOUCAULT, M. Governamentalidade. Microfísica do Poder. 11. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 610 ALMEIDA, M. G. A. op. cit., 1995. 611 MELO, M. A. B. C. A Cidade dos Mocambos: Estado, Habitação e Luta de Classes no Recife (1920/1964) In. Cadernos do CEAS. Salvador: Centro de Estudos e Ações Sociais. nº 92, jul/ago. 1984.
que significava um elo de ligação entre a sociedade civil, o Estado também se
apercebeu da importância que representava a educação para a reprodução de
suas idéias612.
Assim, além do critério político para a escolha dos seus auxiliares, o vínculo
católico transforma-se numa referência importante. Agamenon estabeleceu, de
imediato, relações entre a Interventoria e a Igreja Católica. O secretariado
escolhido é composto, na sua maioria, por jovens católicos, oriundos da
Congregação Mariana613.
A Congregação Mariana era o braço político da Igreja na Interventoria. O
grupo que assessorou Agamenon Magalhães era constituído de ferrenhos
militantes, para os quais as idéias e as religiões não católicas passaram a ser
encaradas e tratadas como problema de vida ou de morte para salvaguardar a
ortodoxia da Igreja. Agindo sob múltiplos aspectos, os congregados marianos
exerciam forte influência nas esferas do poder614.
Dessa forma, a política autoritária e personalista do Estado Novo adquire
contornos próprios, em Pernambuco, na pessoa do interventor. A estratégia de
comunicação direta entre o governo e o povo, a partir do golpe de 1937, é
repetida, de forma sistemática, pelos meios de comunicação como símbolo de um
governo popular615.
Todas as datas nacionais eram comemoradas amplamente. Os órgãos
governamentais eram responsáveis pela organização dos festejos. Em nível
nacional, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e o Ministério de
Educação e Saúde encarregavam-se dela. O DIP constituiu peça fundamental na
organização do controle dos atos e das idéias do período, já que a Constituição de
1937 estabeleceu a censura prévia aos meios de comunicação616.
612 ALMEIDA, M. G. A. A. op. cit., 1995. 613 PANDOLFI, D. C. op. cit.,1984. 614 CAVALCANTI, P. op. cit., 1985. p. 20. 615 ALMEIDA, M. G. A. op. cit., 1995. 616 CAPELATO, M. H. op. cit., 1998.
A multiplicidade de intérpretes e de interpretações para os acontecimentos
fundamenta a visão de que o regime não produziu uma doutrina oficial única. Os
intelectuais a ele ligados é que se transformaram em doutrinadores, em intérpretes
da nova ordem617. Assim, ao lado de uma forte simpatia pelo regime nazi-fascista
europeu, o Estado brasileiro realçava a contribuição do trabalhador nacional, em
nítida oposição ao estrangeiro. E, neste particular, destacava a presença do
trabalhador negro, que marcava positivamente a “raça brasileira” e devia ser
respeitado e glorificado, sobretudo diante do passado escravista. Este era o
sentido da criação do “Dia da Raça”, demonstrando que o Estado Novo assumia
uma postura de combate aos preconceitos de cor e de elogio ao ecletismo étnico
do Brasil e sepultava os ideais de eugenia e branqueamento618.
“O heróico espírito da gente do sul já estabeleceu um premio para victoriar a graça e a virtude da raça negra, no Brasil, pelo menos na sua parte feminina: o monumento á Mãe Preta. Seria uma gloriosa estátua onde uma, até pelos cincoenta annos de edade, de cabello bem carapinhado, bem nutrida e bem forte de cadeiras, sentada num banco de bronze posasse deante da multidão, vendendo o seu muguzá ou ninando o filho rescem-nascido de sua sinhá moça619.”
Em Pernambuco, valorizava-se a cultura popular e incentivava-se a
realização de festas tradicionais, como o carnaval, o São João e as diversas
manifestações que envolviam os festejos de final de ano. Clubes e associações
carnavalescas dos subúrbios ofereciam momentos de lazer, durante todo o
ano620. Por ocasião dos festejos carnavalescos de 1939, Agamenon fala para o
povo a respeito do Frevo e do Maracatu:
617OLIVEIRA, L. L. Tradição e Política: O Pensamento de Almir de Andrade In: OLIVEIRA, L. L. et. al. Estado Novo: Ideologia e Poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. pp. 31-32. 618 GOMES, A. M. A Invenção do Trabalhismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. pp. 206-207. 619 O teu cabello não nega...Folha da Manhã, Recife, 22 mar. 1938. p. 1. Edição das 16 horas. 620 GOMINHO, Z. O. Veneza Americana X Mucambópolis: O Estado Novo na cidade do Recife (década de 30 e 40). 1997. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1997. p.121.
“Sahindo das ruas e entrando nos clubes, as rainhas do maracatu aparecem em outros scenarios e com outras galas. Mil phantasias lhe escondem o requito e a côrte. Ciganos geishas, camponezes daqui e dalém mar, um gosto fino de dissimulação e decalque, uma reminiscencia de outras épocas e outros costumes, enfim, o frêvo, que é uma saudade desesperada de um passado, que ninguém sabe qual é, e que temos fervendo nas veias. Rainha do Maracatu, eu ti vi sabbado em todas as ruas e em todas as côrtes621. ”
Contudo, era exercido um cerceamento da liberdade criativa a essas
manifestações populares. O Estado, ao estabelecer o controle sobre o lazer,
passou a disciplinar o carnaval em Pernambuco, o qual também foi inserido no
contexto da ordem, de higiene e de moral. Sob os auspícios da Secretaria de
Segurança Pública, estabelecia uma série de medidas, ordenando a folia:
“Realizando-se nos dias 7,8 e 9 de fevereiro os festejos carnavalescos, recomendo-vos, para o effeito de attender á coveniencia e necessidade do policiamento, a fiel observancia das seguintes instruções:
1. Não consentir o emprego de liquidos ou pós; 2. Esclarecer, a quantos interessar possa, que ficam estabelecidas,
para facilidade do transito, mão e contra-mão, nas partes lateraes da ponte da Boa Vista;
3. Impedir o uso do symbolo da Cruz Vermelha, ou de qualquer symbolo patriotico, especialmente da Bandeira Nacional;
4. Prohibir a venda de bebidas alcoolicas (brancas); 5. Não permitir a execução do hyno de nenhum País ou Estado; 6. Não consentir ultrajes a qualquer crença religiosa, villipendio ou
profanação aos seus symbolos; 7. Manter, terminantemente, a prohibição do uso de mascaras ou de
quaesquer disfarces phisionomicos; 8. Prohibir que se cantem quaesquer canções offencivas, ou mesmo
allusivas ás autoridades constituidas e ás corporações militares; 9. Revistar á shaida das respectivas sédes, as pessõas que fizerem
parte de clubs, blocos, grupos e cordões, prendendo as que se acharem armadas;
10. Prohibir o encontro de blocos, clubs, grupos e cordões;
621 Rainha do Maracatu. Folha da Manhã, Recife, 23 fev. 1939. p 01. Edição Matutina.
11. Cassar, incontinenti, a licença dos clubs, blocos, cordões e grupos que pertubarem a ordem politica, detendo os responsaveis para responderem na forma da lei;
12. Prohibir criticas ou allusões a quaesquer partidos politicos. As pessôas que transgredirem as presentes intrucções, bem como as que estiverem indecentemente vestidas, alcoolisadas ou aspirando ether, deverão ser presas e apresentadas ao delegado de plantão nesta Secretaria, para os devidos fins622”
Estas normas procuravam garantir o controle e a manutenção da ordem,
sem, contudo, proibir os festejos. O medo da subversão à ordem recaía sobre tudo
o que pudesse ofender o Estado e a Igreja: utilização de símbolos patrióticos,
profanação de símbolos religiosos, canções consideradas ofensivas e alusões a
partidos políticos.
O discurso estado-novista também confere grande ênfase à ampliação dos
poderes da Polícia623. Tanto o medo quanto a censura funcionaram como
poderosos instrumentos de controle social, fazendo deles emanar, cada um a seu
modo, energia que, por sua vez, colabora para a sustentação dos sistemas
autoritários. Para garantir a ordem, segundo conceito elaborado e gerenciado
pelos homens do Estado, era necessário apontar culpados. No caso do governo
Vargas, comunistas, anarquistas, judeus, negros, ciganos e japoneses
transformaram-se em focos de vigilância oficial. A Polícia Política (DOPS) assumiu
importante papel junto à dinâmica instituída pelo processo de domesticação das
massas624.
Paralelamente ao intenso nacionalismo do regime Vargas, pelo seu esforço
em criar uma cultura nacional, com base na unificação do povo brasileiro, ocorreu,
na cidade do Rio de Janeiro, a difusão de uma nova religião, a Umbanda625,
síntese da aglutinação das três matrizes culturais consideradas formadoras da 622 APEJE/DOPS. Portarias. Recife, 20 de janeiro de 1937. Fundo SSP nº 27880. 623VELLOSO, M. P. op. cit., 1982. p. 99. 624 CARNEIRO, M. L. T. O Estado Novo, o DOPS e a Ideologia da Segurança Nacional. In. PANDOLFI, D. C. (org.) Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro:FGV, 1999. p.335. 625É necessário salientar que existe uma diferença entre o que se denomina religiões Afro-Brasileiras e a Umbanda. As religiões Afro-Brasileiras se referem aos diferentes tipos de manifestação religiosa ligados diretamente à tradição africana. A Umbanda é uma religião brasileira, criada na década de 30, no Rio de Janeiro, que aglutina elementos da tradição religiosa africana, indígena e européia.
sociedade brasileira. Os fundadores da Umbanda foram entusiásticos defensores
da política de Getúlio626.
Renato Ortiz, ao tratar do surgimento da Umbanda, nos anos trinta, chama
a atenção para o fato de que as transformações de ordem social e econômica por
que passava a sociedade brasileira, eram palco mais que propício para a
emergência desta nova religião. Como descreve o autor:
“...a historia desta religião podia ser descrita em duas etapas fundamentais. Primeiro, o desenvolvimento larvar das casas de culto, as quais não têm entre elas nenhum laço de organização; segundo, o momento da ‘tomada de consciência’ de uma camada de intelectuais, da emergência de uma nova prática religiosa que se orientava no sentido de integração na sociedade brasileira.(...)após o encontro de 1941627, assiste-se a um crescimento cada vez maior desta direção intelectual que se organiza sob a forma de federações ou congregações regionais628.”
No Brasil de Vargas, o Comunismo foi o grande catalisador de sentimentos
que mobilizaram temores de desintegração da sociedade e de instauração do
caos. Porém, as representações negativas, em torno das religiões de origem afro-
umbandistas, foram muito fortes. Embora a repressão tenha sido dirigida,
sobretudo, contra organizações políticas e sindicatos de esquerda, atingiu grupos
sociais e religiosos muito menos radicais, como maçons, kardecistas, umbandistas
e seguidores das religiões afro-brasileiras.
Assim é que os cultos afro-umbandistas, as várias modalidades de
Protestantismo, a Maçonaria e o Espiritismo eram perseguidos pelos setores
encarregados da segurança do Estado, havendo, na chefia de polícia, uma seção
626Cf. BROWN, D. Umbanda Religion and Politics in Urban Brasil. Michigan: Um Research Press, 1986. 627 Os líderes das Federações de Umbanda organizaram e patrocinaram em 1941 o Iº Congresso do Espiritismo de Umbanda. O maior esforço nesse encontro foi o de classificar a doutrina e o ritual da Umbanda. In. BROWN, D. Uma História da Umbanda no Rio. Cadernos ISER: Umbanda & Política, 18 – Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985. 628 ORTIZ, R. A Morte Branca do Feiticeiro Negro: umbanda e sociedade brasileira. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. p.182.
de cadastramento em que se registravam suas ações. Templos protestantes
realizavam suas cerimônias sob trêmulos cuidados, enquanto os pastores sofriam
vexames em suas peregrinações, quando não fugiam virtualmente, corridos, a
pedradas629. De acordo com Diana Brown, a Polícia justificava as perseguições às
macumbas630 declarando que estas eram subversivas. Desempenhavam
atividades comunistas, fazendo uma associação, por exemplo, do Orixá Ogum,
sincretizado no Catolicismo com São Jorge, com o “Cavaleiro da Esperança”631.
Em Pernambuco, o governo Agamenon Magalhães foi um dos mais fiéis e
ortodoxos na prevenção dessas práticas religiosas. No relatório apresentado a
Vargas acerca das orientações tomadas em seu governo, Agamenon ressalta
como umas das “medidas de profilaxia moral e social” tomadas pela secretaria de
Segurança Pública:
“...a severa repressão ao funcionamento de centros espíritas que, embora licenciados, se desviavam da sua finalidade e o fechamento de inúmeros outros onde se praticava o baixo espiritismo e a proibição do funcionamento das seitas africanas e da prática de ciências herméticas, cassadas todas as licenças anteriormente expedidas 632.”
Deve-se destacar que a criação de órgãos voltados para a segurança
pública, no sentido de manter o controle social, remonta ao governo instalado com
o golpe de 1930. Como assinala Marcília Silva, no primeiro ano, após o golpe, foi
criada a Secretaria de Segurança Pública (junho de 1931). Em novembro deste
mesmo ano, é criada a Delegacia Auxiliar sob a direção da Polícia de Costumes.
Em 1935, é decretada a Lei de Segurança Nacional e dá-se a criação de órgãos
de caráter repressivo. Em dezembro, visando ao aperfeiçoamento do aparelho do
629 Cf. CAVALCANTI, P. op. cit., 1985. 630 Termo comum nos anos 30 e 40 para designar tanto a Umbanda quanto as religiões afro-brasileiras. 631 Cf. BROWN, D. op. cit., 1986. 632 APEJE – SDI. O Governo de Agamenon Magalhães e a Secretaria de Segurança Pública, 1939. Exposição Nacional de PE - 1940 - Recife -Imprensa Oficial - 1939.
Estado em defesa da ordem, é criada a Delegacia de Ordem Política e Social
(DOPS)633.
É importante salientar que as restrições à prática de religiões de origem
africana, no Brasil, não se iniciaram com a implantação do Estado Novo. Porém,
foi nessa época que o Estado exerceu uma ação mais controladora dessas formas
de manifestações religiosas. A Polícia tornou-se o principal agente de repressão,
durante esse período, e tinha toda liberdade para tratar daqueles que foram
considerados como inimigos do Estado. Invadiu e fechou terreiros, confiscou
objetos rituais e, muitas vezes, prendeu os participantes.
Os policiais foram acusados de extorquir elevadas somas de dinheiro em
troca de promessas de proteção634. Os adeptos dessas religiões ocuparam as
primeiras páginas do jornal da cidade, sendo tratados como caso de polícia. Uma
dessas reportagens, na primeira página do jornal Folha da Manhã, registra:
“UM ESPÍRITO RUIM NO CORPO DO CATIMBOZEIRO PEREIRA INESPERADA "MANIFESTAÇÃO DEANTE DA PRÓPRIA POLÍCIA: Um grupo de catimbozeiros que o delegado João Roma metteu no xadrez, a semana finda635.”
Não só a religião praticada pelos descendentes de africanos era
considerada perniciosa à sociedade. Nesta reportagem, o jornalista aponta o
“físico” como determinante de caráter na medida em que descreve o “criminoso”
como um tipo perfeito de malandro. Para Maria das Graças Ataíde, os valores
preconceituosos serviam de parâmetros de alteridade, segundo os quais o negro
era considerado como o outro, e sua imagem é edificada como um modelo
exemplar de vagabundo. Esta interpretação era adequada a um regime que
reificava o trabalho e em que o próprio interventor usava, como epígrafe dos seus
633SILVA, M. G. O D.O.P.S. e o Estado Novo: os bastidores da repressão em Pernambuco. (1935-1945). 1996. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1996. pp. 25-26. 634 CF. BIRMAN, P. op. cit.,1985. 635 Um Espírito Ruim no Corpo do Catimbozeiro Pereira. Folha da Manhã , Recife, 21 mar. 1938. pp. 01 e 08. Edição das 16 horas.
discursos, o lema: “Quem quiser trabalhar que me acompanhe”636. Em artigo para
a Folha da Manhã e a Rádio Clube de Pernambuco, Agamenon Magalhães refere-
se à preguiça como uma doença que “amolece a inteligência”:
“(...)Há outras formas de preguiça. A preguiça intellectual, por exemplo! Moços que compram muitos livros, môços que têem muito, e não escrevem. A leitura é um hábito, ou um vício. E, nella, ficam as intelligencias amolecidas, sem nervo, nem especulação, mortas como as lampadas apagadas. Falta-lhes a faisca, a centelha, o fogo da revelação. E essa faisca é a vontade de crear, mas vontade integral, sem vacilos, nem solução de continuidade 637.”
As práticas de repressão adotadas pelo Estado Novo são construídas e
justificadas a partir de um padrão ideal de homem brasileiro, perfeito de corpo e
mente, os brancos europeus. Portanto, o projeto de eliminar da sociedade a
cultura dos grupos negros, exteriorizada através das manifestações religiosas,
atendia ao projeto de construir uma identidade para o Brasil a partir dos ideais de
modernidade e de progresso.
A repressão policial teve como efeito estimular a formação de
federações638 protetoras da Umbanda e das religiões afro-brasileiras, em alguns
Estados. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, segundo Diana Brown, as federações
assumiram, rapidamente, a forma de um patronato apoiado pelas classes
dominante e média639.
No ano de 1945, que marca o fim da ditadura Vargas e da Segunda Guerra
Mundial, embora a Umbanda e as religiões afro-brasileiras não fossem mais alvo
de perseguição sistemática, ainda lhes era exigido o registro na Polícia. Esse
registro obrigatório na Delegacia vigorou, no Rio de Janeiro, até 1964, com a
636 ALMEIDA, M. G. A. A. op. cit., 1995. 637 MAGALHÃES, A. A Preguiça e o Tempo. Folha da Manhã, Recife, 22 mar. 1938. p. 02. Edição Matutina. 638Federações, são associações político-religiosas cujo principal objetivo é assegurar o livre funcionamento das religiões afro -umbandistas e procurar legitimar essas formas de religiosidade diant e da sociedade civil. 639 BROWN, D. op. cit, 1985.
reorganização do Departamento de Polícia. A partir desse período, passou-se a
exigir um simples registro em Cartório, como pessoa jurídica. Mesmo após essa
mudança, muitos umbandistas e religiosos afro-brasileiros continuaram sendo alvo
de extorsões por parte de policiais640.
As federações foram criadas com o objetivo expresso de oferecer proteção
contra a ação policial a todos os Centros de Umbanda e terreiros de Xangô e
Candomblé. Procuraram adquirir um estatuto legal, firmando alianças com
representantes de diversos Partidos, ou tentando, eles mesmos, os líderes das
Federações, se lançar na carreira política. Esse processo se consolida com o
retorno do governo constitucional, em 1945641.
As reformas eleitorais de Vargas, na década de 1930, ampliaram,
significativamente, a representatividade dentro dos setores urbanos médios e de
baixa renda. Esses segmentos da população, a partir de 1945, tornaram-se muito
significativos, em termos eleitorais. Assim, no Rio de Janeiro, foram eleitos verea-
dores e deputados que exerciam a presidência de federações de religiões afro-
umbandistas, o mesmo ocorrendo em São Paulo e Rio Grande do Sul642.
Os ideais nacionalistas, construídos por uma parcela de intelectuais em
Pernambuco, tendo como uma das referências a tradição da cultura religiosa afro-
brasileira, não sensibilizaram o interventor empossado com o golpe de 1937. Com
relação a essa questão, o próprio Agamenon escreveu:
“As seitas africanas, notadamente, a princípio em pequeno número, tiveram nos últimos tempos, grande desenvolvimento no Recife, para o que contribuíram a transigência da autoridade e a influência da propaganda de certos meios intelectuais, visando esta, na sutileza da sua interferência, a formação entre os indivíduos de cor das camadas populares, de um proselitismo á
640 Idem Ibdem. 641 Idem Ibdem. 642 Idem Ibdem.
nossa cultura e, portanto, propício á idéias dissolventes da nossa civilização... .643”
Portanto, o Interventor, ao tratar das religiões dos negros, tinha uma atitude
de completo repúdio à proposta desses intelectuais.
Nesses termos, a governamentalidade está dirigida para assegurar a
correta distribuição das “coisas”, arranjadas de forma que levem a um fim
conveniente cada uma das “coisas” que devem ser governadas644.
Com a queda de Vargas, em 1945, a vitória dos Aliados na Guerra
inviabiliza a sustentação de um regime autoritário que passou a ser contestado por
diversos setores da sociedade645.
É um momento rico para a delimitação de uma construção intelectual da
História do Brasil que, pela sua competência e pelo volume de recursos investidos,
foi capaz de deixar marcas bastante nítidas na tradição historiográfica. Como
afirma Ângela de Castro Gomes, poucas vezes, em nossa História, um período tão
curto de tempo concentrou tantos empreendimentos, orientados por uma larga
visão de longo prazo. Ele abarca diversas facetas da vida social brasileira em um
esforço de mobilização simbólica, que se definia como o da reconstrução de uma
“nova” cultura política nacionalista para o país646.
Podem-se encontrar marcas do processo de desarticulação do Estado Novo
desde 1942. Certamente, o envolvimento do Brasil na IIª Guerra Mundial,
associando-se por várias razões aos aliados e rompendo com a Alemanha
nazista, contribuiu para o enfraquecimento do regime647.
A política cultural do Estado Novo deve ser entendida como um conjunto
que guarda significados múltiplos, possui pluralidade de pontos de vista, muitos
deles contraditórios e, neste sentido, pode ser apreendida de diversas formas.
Como afirma Boris Fausto, O Estado Novo não é um espécime morto, sobre o
643APEJE -SDI . O governo Agamenon Magalhães e a Secretaria de Segurança Pública, 1939. Exposição Nacional de PE – 1940 – Recife - Imprensa Oficial, 1939. p.151. 644 Cf. FOUCAULT, M. op. cit., 1979. 645CAPELATO, M. H. op. cit., 1998. 646 GOMES, A. M. C. op. cit.,1996. 647 PANDOLFI, D. C.op. cit., 1999.
qual se possa debruçar com o olhar zoológico. As questões que emergem dele
não são “frias” e se abrem a muitas discussões648.
Sendo assim, as mudanças ocorridas no Brasil e em Pernambuco, que
propiciaram uma radicalização do processo de repressão aos afro-umbandistas,
não podem ser atribuídas, apenas, a questões políticas e religiosas. Uma
multiplicidade de fatores sociais, econômicos, políticos, religiosos e culturais
convergiram para propiciar esses acontecimentos. Porém, os laços estabelecidos
entre o Estado e a Igreja, durante a interventoria de Agamenon Magalhães,
concorreram para a radicalização do processo.
Nesse sentido, o próximo capítulo será dedicado às atividades
desenvolvidas pelos congregados marianos, preocupados em apagar da
sociedade todo tipo de prática religiosa contrária ao Catolicismo oficial.
648 FAUSTO, B. op. cit., 1999.
CAPÍTULO VI
MARIANOS RECATEQUIZANDO PERNAMBUCO
“A humanidade não estaciona em formas sociaes primitivas, sejam quaes forem as actividades que ellas condicionem: politicas, religiosas, moraes e artisticas.(...) O respeito á tradição não exige a sobreviência da selvageria, da mesma maneira por que a preservação dos costumes pitorescos não impõe a falta de hygiene individual 649.”
Esse texto, de autoria de José Campello, revela sinais de como o grupo dos
Congregados Marianos percebia as práticas religiosas afro-brasileiras no Recife.
Para eles, estas são praticadas em lugares insalubres e contribuem para a
disseminação de doenças provenientes da falta de higiene. São acusadas,
também, de exercer a “selvageria”, a “luxúria”, o “crime”, o “charlatanismo” e,
portanto, deveriam ser combatidas e erradicadas.
Sob a influência dos Congregados Marianos e do seu líder, o padre jesuíta
Antônio Fernandes, a Interventoria elaborou uma campanha contra todas as
práticas religiosas não católicas, exercendo maior pressão sobre as religiões afro-
brasileiras.
Dessa forma, depois de analisarmos algumas transformações, no plano
político e social de Pernambuco, durante o Estado Novo, a quais geraram uma
série de práticas repressivas às religiões de origem afro-brasileira, neste capítulo,
pretendemos discutir a participação da Igreja, personalizada na Congregação
Mariana, na radicalização desse processo.
O ano de 1930 marca, para os católicos do Brasil, o início de vitórias
sucessivas, sempre obtidas politicamente, em face de um Estado temeroso do
crescente poder da Igreja e consciente da necessidade de contar com a
649 CAMPELLO, J. Xangôs. Folha da Manhã. Recife, 27 jan. 1938. p.3. Edição Matutina.
legitimação eclesiástica para superar os seus momentos de instabilidade e a
precariedade das instituições civis650.
No processo empreendido em 1930, a Igreja não apresenta uma posição
uniforme, em nível nacional. Seu mais alto representante no Brasil, o Cardeal
Leme, mantém uma atitude de extrema cautela. Em Pernambuco, o Episcopado
só vai apoiar o golpe de Trinta após sua consolidação. Ao contrário da hierarquia
eclesiástica, uma parcela dos católicos teve sentimento de hostilidade e de
suspeita em relação aos acontecimentos políticos651.
A aproximação entre a Igreja e Getúlio Vargas tem início com o episódio de
outubro de 1930, quando D. Leme, após regressar de Roma revestido da púrpura
cardinalícia, ajudou a convencer Washington Luiz a renunciar, evitando um
confronto com as tropas “revolucionárias”. Após Vargas assumir a chefia do
governo provisório, as relações entre a Igreja e o governo não estavam definidas.
Nesses termos, em 1931, D. Leme mobilizou clérigos e fiéis numa cruzada em
nome do fortalecimento do Catolicismo no Brasil. A primeira mobilização ocorreu
em maio, sob a invocação de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, e,
depois, em outubro, em homenagem ao Cristo Redentor. A estátua do Cristo foi
inaugurada no topo do Corcovado, no dia do descobrimento da América652.
Dessa forma, a Igreja aproveita a conjuntura e demonstra ao governo sua
capacidade de arregimentar as massas católicas653.
No imaginário das elites católicas, adquiriu expressão e visibilidade o
reconhecimento da questão social, a partir da encíclica Rerum Novarum, do Papa
Leão XIII, que defendia um projeto de organização corporativa da sociedade e de
harmonização entre Trabalho e Capital e a luta contra o Comunismo654.
650 LUSTOSA. O. F. A Igreja Católica no Brasil República: cem anos de compromisso:1889-1989. São Paulo: Edições Paulinas, 1991. p.48. 651 MIRANDA, C. A. C. Igreja Católica do Brasil: uma trajetória reformista (1872-1945). 1988. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1988. 652 DELLA CAVA, R. Igreja e Estado no Brasil do Século XX: sete monografias sobre o catolicismo brasileiro. Estudos CEBRAP, São Paulo: Brasiliense, n.12, p. 7-52, 1975. p.14. 653 LUSTOSA. O. F. op. cit., 1991. 654 MEDEIROS, R. P. Estado, Igreja e Políticas Assistenciais em Pernambuco (1935-1945): Imaginário das Elites e Ações Políticas. 1995. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1995.
A Igreja, em sua quase totalidade, aceita colaborar com o novo regime, na
medida em que se associa a diversos projetos de iniciativa do Estado. Este
financiava e utilizava estruturas sociais ou educativas, e a Igreja fazia uso das
estruturas do Estado, como as escolas públicas, por exemplo, para a sua obra
pastoral655. Dessa forma, o Cardeal D. Leme encarnará as práticas instituídas pelo
novo regime.
Os caminhos dessa relação foram preparados com a colaboração do
arcebispo de Porto Alegre, D. João Becker, fervoroso adepto do Movimento
getulista e figura importante no entendimento, por parte da Igreja, de que as
práticas impostas por Getúlio Vargas não eram comunistas. Assim, entre Estado e
Igreja se desenvolveu uma aliança, na qual os termos e o alcance do
relacionamento não foram explicitados, mas as duas Instituições sabem o que
desejam e o que pretendem dessa relação656.
A Igreja se lançou à mobilização da opinião pública e à organização do
movimento católico leigo. Seus intelectuais formularam um projeto de
cristianização, com o objetivo de organizar a sociedade, sob o imperativo ético do
comunitarismo cristão657.
Em julho de 1934, foi promulgada a nova Constituição Brasileira. Nas
eleições para a constituinte, os católicos contribuíram para a vitória de numerosos
deputados. Graças à atuação de Dom Sebastião Leme, realizou-se o velho sonho
dos políticos ligados à Igreja de restituir ao Catolicismo a prerrogativa de religião
oficial, privilégio perdido com a Constituição de 1891. A Constituinte de 1934
acatara as principais reivindicações das lideranças católicas: foi promulgada em
nome de Deus; o Catolicismo, instituído como religião oficial; o matrimônio,
considerado indissolúvel; o casamento religioso, oficialmente reconhecido; foi
implantado, nas escolas primárias e secundárias, o ensino facultativo da Religião
655 Cf. MIRANDA, C. A. C. op. cit., 1988. 656 LUSTOSA. O. F. op. cit., 1991. 657 MEDEIROS, R. P. op. cit.,1995. p. 81.
Católica; a assistência religiosa às Forças Armadas, às penitenciárias, aos asilos
foi oficialmente autorizada658.
Para Enrique Dussel, a Igreja Latino-Americana atuou em face das práticas
do Estado populista de quatro maneiras: através da Ação Católica; através dos
grandes Congressos; através da Ação Social, principalmente no setor trabalhista;
e, por fim, através do anticomunismo659.
Com o advento do Estado Novo, houve uma certa restrição à liberdade das
práticas católicas alcançadas pela Igreja na Constituição de 1934. No entanto,
através do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, o governo getulista faz
questão de enfatizar a influência da Doutrina Social Cristã, mediante o
aproveitamento das Encíclicas sociais, no planejamento e na ação oficial em favor
das massas trabalhadoras, como também coopta líderes eclesiásticos para
colaborarem com o Governo660.
De seu lado, a Igreja, a partir de dezembro de 1937, amplia sua campanha
contra o Laicismo. Aconselha e convoca os católicos a assumirem uma posição
política e ressalta que seria um mal incalculável um católico permanecer
indiferente à vida política de sua pátria. As principais discussões, nas revistas
católicas que circulavam em Pernambuco, consistiam na crítica ao liberalismo que
levava ao Laicismo, tornando-se gerador do Comunismo661.
Em Pernambuco, a colaboração entre a Igreja e o Estado Novo é uma
iniciativa do próprio Interventor Agamenon Magalhães que, ao assumir a
Interventoria, compôs quase todo o seu secretariado com jovens oriundos da
Congregação Mariana. Manoel Lubambo ocupa a pasta da Fazenda; Etelvino Lins,
a da Segurança; Apolônio Sales, a da Agricultura; Arnóbio Tenório Wanderley, a
da Secretaria de Governo; e Nilo Pereira, o Departamento de Educação662.
658 AZEVEDO, T. A Religião Civil Brasileira: um instrumento político. Petrópolis: Vozes, 1981. pp. 81-82. 659 Cf. DUSSEL, E. História da Igreja Latino Americana (1930-1945). São Paulo:Paulinas, 1989. 660 MEDEIROS, R. P. op. cit., 1995. 661 ALMEIDA, M. G. A. A. A Construção da Verdade Autoritária: Palavras e Imagens da Interventoria Agamenon Magalhães em Pernambuco.(1937 – 1945). 1995. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995. 662 Cf. PANDOLFI, D. C. Pernambuco de Agamenon Magalhães: consolidação e crise de uma elite política. Recife:Massangana, 1984.
A Congregação Mariana da Mocidade Acadêmica foi criada pelo arcebispo
de Olinda e Recife, D. Miguel Valverde. Consistia em um movimento da Igreja,
seguindo a linha do Catolicismo reformado. A intenção de D. Valverde, ao criar a
Congregação no Recife, era estimular na arquidiocese um movimento semelhante
ao já criado no Estado da Bahia e que resultara em um grande sucesso. Assim,
em março de 1924, o padre jesuíta Antônio Magalhães inicia os trabalhos com
treze rapazes. O objetivo maior do movimento seria o de acabar com o
“indiferentismo religioso” dos católicos e combater as idéias consideradas
pagãs663.
Depois de uma atuação pouco expressiva de 1924 a 1929, a Congregação
entrou em uma fase de pleno desenvolvimento com a atuação do padre Antônio
Fernandes e do movimento da “Liga Para a Restauração dos Ideais”, implantado
por ele no Estado. A Liga era uma Associação de caráter patriótico-religioso e
tinha a visão do Brasil unificado culturalmente pelo binômio Catolicismo-
Patriotismo. O ditado “para ser brasileiro verdadeiro tem que ser católico” reflete,
perfeitamente, a visão cultural da Liga664. Seguindo estes ideais, tinha o intuito de
combater as doutrinas de esquerda, bem como o Espiritismo, o Protestantismo e a
Maçonaria. Visava ainda à formação de futuros “chefes” católicos para exercerem
uma ação opositora a tudo o que fosse de encontro aos princípios cristãos,
principalmente junto à Imprensa e à intelectualidade665.
As doutrinas de esquerda, bem como o Espiritismo, o Protestantismo e as
Religiões de origem afro-brasileira, são encaradas como uma séria ameaça ao
Catolicismo.
Padre Fernandes tinha tendências autoritárias. Elogiava o corporativismo
da Idade Média e era simpatizante do Estado Novo de Antônio Salazar, em
Portugal. Para ele, Salazar oferecia o melhor modelo desse sistema para o século
XX666.
663Cf. MIRANDA, C. A. C. op. cit., 1988. pp. 60-61. 664Cf. AZEVEDO, F. A Missão Portuguesa da Companhia de Jesus no Nordeste 1911-1936. Recife: Fundação Antônio dos Santos Abranches-FASA, 1986. 665Cf. MIRANDA, C. A. C. op. cit., 1988. p. 61. 666 AZEVEDO, F. op. cit., 1986.
Associada ao modelo catequético, a Igreja tinha, a seu lado, um laicato fiel,
representante da elite dominante do Estado, intelectuais orgânicos que
colaboravam e sistematizavam as visões de mundo a serem interiorizadas. A partir
daí, uma cruzada contra o laicismo seria empreendida no Estado Novo. Esta nova
relação da Igreja com a esfera do político, em Pernambuco, foi construída também
através da ocupação dos cargos públicos por católicos. Agamenon Magalhães
exigia, como pré-requisito para o exercício de um cargo público, a prática do
Catolicismo. Esse critério, no seu entender, garantiria ao Estado um corpo de
funcionários fiéis e obedientes667.
Agamenon Magalhães era um defensor dos valores tradicionais. Trata-se
de uma postura, aparentemente contraditória diante de sua determinação na
modernização do Recife, pois seu corpo de secretários, em sua maior parte, era
oriundo da Congregação Mariana668.
Os congregados reuniam-se semanalmente na Capela do antigo Palácio da
Soledade, onde recebiam instruções para a luta contra as idéias liberais. Desses
encontros, surgiu o Círculo de Estudo da Mocidade Acadêmica em que eram
discutidos temas religiosos, filosóficos e científicos669.
Também fazia parte da Congregação Mariana a Associação Desportiva
Acadêmica (ADA). Esta foi criada com a finalidade de que seus associados,
paralelamente ao desenvolvimento do físico, através da prática de esportes,
cultivassem idéias que fortalecessem os princípios religiosos da Congregação670.
No início dos anos trinta, a Congregação Mariana iniciou uma campanha
em prol da implantação do ensino religioso no Estado de Pernambuco. Para lutar
em favor desse ideal, os Congregados Marianos criaram uma organização,
denominada União Nacional Católica por Deus e pela Pátria (UNCDP), cujos
membros eram chamados de “Soldados de Cristo” e tinham como objetivo lutar
667 ALMEIDA, M. G. A. A. op. cit., 1995. 668 GOMINHO, Z. O. Veneza Americana X Mucambópolis: o Estado Novo na cidade do Recife (décadas de 30 e 40). 1997. Dissertação (Mestrado em História). Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife,1997. 669Cf. MIRANDA, C. A. C. op. cit., 1988. p. 61. 670 Idem Ibdem. p. 62.
em favor desses dois ideais: Deus e a Pátria671. Os “Soldados de Cristo”
justificavam suas ações defendendo idéias, como:
“Na religião, a pedagogia se completa e aperfeiçoa. Ali se encontra o conceito total do bem e da verdade, fins ultimos da educação. A perfeita educação é, portanto, a religiosa672”
A estratégia de trabalho do grupo consistia, principalmente, na realização de
comícios, que aconteciam nos bairros e nas cidades vizinhos ao Recife. Esses
comícios, ao arregimentarem centenas de pessoas, davam visibilidade e
legitimidade ao movimento proposto pelos congregados. É o lançamento de uma
nova prática religiosa, um esforço de marketing, através do qual se pretendia
ampliar a influência católica.
A Congregação Mariana reforçava a Hierarquia eclesiástica, já que o
sentido do seu apostolado estava na firme disposição de ajudar os padres a seguir
as diretrizes estabelecidas pelos bispos. Assim tomaram como tarefa formar um
grupo de intelectuais cujo objetivo maior era defender a hegemonia da Igreja
Católica perante as outras religiões e contribuir para uma prática mais ortodoxa do
Catolicismo. Era seu interesse, também, colaborar com o Estado na campanha
anticomunista673.
Dessa forma, o discurso da Igreja, em Pernambuco, durante o Estado
Novo, apresentava como solução para a crise social a formação de uma elite fiel,
envolvida nos cargos políticos e comprometida com a irradiação do Catolicismo. O
paradigma catequético trouxe, entre seus cânones, os elementos necessários ao
controle sobre esse laicato: ordem, fidelidade, autoridade e tradição674.
Esses elementos serviram como mote para uma aproximação mais íntima
com o Governo Estadual. Ordem, Fidelidade, Autoridade e Tradição eram temas
exaustivamente utilizados pelo governo estadual na sua campanha de
doutrinamento das massas em favor do regime.
671 Idem Ibdem. pp.63-64. 672 “O Afro-brasileiro” e o problema da educação visto através das palavras do governo pernambucano. Fronteiras , Recife, ano 7, n. 12, p. 5, dez. 1938. 673 Cf. MIRANDA, C. A. C. op. cit., 1988. p.65. 674 ALMEIDA, M. G. A. A. op. cit., 1995.
A Igreja tinha na Congregação Mariana o setor mais combatente na defesa
do ideário católico675. O padre Fernandes, ao participar da campanha promovida
pelo cardeal Leme pela obtenção de mais espaço síciocultural contra os inimigos
da Igreja, os quais, segundo ele, também eram inimigos do Brasil, enumerou
judeus, maçons, comunistas e os praticantes das religiões afro-brasileiras como os
principais adversários.
A prática desses grupos é apresentada como uma forte ameaça à ordem da
sociedade. Por outro lado, isso justifica apresentar esses grupos como perigosos e
sujeitos à repressão.
É, também, desse grupo que, em 1931, nasce a Revista Fronteiras, sob a
orientação de Manoel Lubambo, seguindo a mesma linha de luta em defesa das
tradições cristãs e exercendo uma forte influência nos meios conservadores, pelos
seus temas nacionalistas, religiosos e anticomunistas676.
“E em verdade Manuel Lumbambo vale como um símbolo de coragem patriótica, de compreensão nacional, vale como uma esperança nos destinos da raça. A sua ação em FRONTEIRAS se iniciou e se desenvolveu num momento de traições, comodismos, indiferenças e, sobretudo, de trabalhos sorrateiros contra as bases da nação677."
A revista Fronteiras batalhava por uma nova cristandade, na qual o
Catolicismo seria a religião do Estado e as relações entre ambos seriam definidas
por uma espécie de Concordata678:
“O Recife é realmente uma fronteira não no sentido geográfico de Vassorvia em face da mare vermelha, mas no sentido ideologico, de cidade avançada em que se embatem os extremos. Dahí a enorme responsabilidade dessa turma Catholica. Que hoje vejo com alegria, reunida nessa trincheira Fronteira, onde poderá fazer um trabalho incomparavel, de arejamento das intelligencias pela sua modernidade e de disciplina dos espiritos
675 Cf. MIRANDA, C. A. C. op. cit., 1988. 676 Idem Ibdem. p. 61. 677 AULER, G. Não esqueçamos Antônio Sardinha. Fronteiras , Recife, ano 9, n. 6, p. 21, jun. 1940. 678 AZEVEDO, F. op. cit., 1986.
pelo que há de sadio e eterno em seu medievalismo(...)679”
O corpo editorial da revista Fronteiras incluía, além de Manoel Lubambo,
Arnóbio Wanderley e o poeta Willy Lewin. O pintor cubista Vicente do Rego Barros
colaborava com matérias e desenhos em suas páginas. O períódico tinha
tendências conservadoras e apoiava, sem restrição, o regime ditatorial:
“Nós somos pela dictadura. Mas duma dictadura sem prazo fixo, o Brasil sendo, na nossa opinião, uma dessas patrias anarchicas e ibericamente individualistas que só podem ser dirigidas por homem de rija tempera e governos de autoridade.(...)O Brasil nesta quadra difícil, tem que ser governado por um dictador que se approxime mais dum bom tyrano do que dum presidente constitucional: porque immensa é a legião dos gozadores e peculatários de toda a espécie e immensos os estragos do liberalismo680.”
Os redatores da revista Fronteiras, ao considerarem o verdadeiro Brasil
católico, empreenderam uma cruzada contra todas as práticas religiosas não
católicas, consideradas pelos congregados marianos como instrumento de
descaracterização moral da sociedade. Sobre o grupo católico de Pernambuco,
Tristão de Athayde escreve nas páginas de Fronteiras:
“Não existe em todo o Brasil uma turma intellectual - Catholica igual a que actualmente se encontra no Recife. São pelo menos, oito ou dez nomes de primeira classe que só tinham até hoje um grande defeito: não se juntacem para um trabalho comum. Citar nomes é sempre perigoso, pelas inevitáveis omissões.(...) O grupo representa não apenas um rol de catholicos que escrevem, mas um grupo homogenio de verdadeiros escriptores-catholicos681.”
679 ATHAYDE, T. op.cit., 1936. p.5. 680 Revista Fronteiras, Recife, ano 5, n.14, p. 3, mai. 1936. 681 ATHAYDE, T. Gente do Norte. Fronteiras , Recife, ano 5, n.12, p. 5, mar.1936.
Dentro desse contexto, Estado e Igreja se juntaram numa caçada a todos
aqueles que ameaçavam a ordem estabelecida. Dessa forma, ao objetivarem
empreender uma caçada aos inimigos da Igreja, que automaticamente eram
considerados inimigos do Brasil, elegeram as religiões afro-brasileiras como uma
das mais perigosas práticas anticatólicas na sua luta contra todos os “elementos
dissolventes de nossa civilização”. Em 1938, o Secretário de Segurança Pública e
congregado mariano Etelvino Lins baixou uma Portaria proibindo em todo o estado
de Pernambuco o funcionamento das “seitas africanas” e gabinetes de “ciências
herméticas”682.
Os mecanismos repressores são legalizados e a Religião Oficial serve de
referência e apoio às ações repressoras dos órgãos policiais do Estado. Uma das
estratégias de combate à religião “perigosa” é transformá-la em religião de
bruxaria. Assim, procuram inferiorizá-la a partir da posição social em que os seus
seguidores se situam.
A revista Fronteiras, ao comentar a proibição do funcionamento dos
terreiros de xangô, afirma:
“Fez pois o Sr. Etelvino Lins obra de Hygiene - Mental e Social - Mandando fechar os Xangôs e aprehender o copioso material de culto encontrado nos vários "terreiros" remettendo-o para o competente Museu da Assistencia a Psicopatas. Ahí terão os interessados tempo e vagar para estudá-lo "Sem nenhum partido, sem nenhuma doutrina religiosa, sem nenhuma côr politica". Como do Congresso Afro-Brasileiro disseram os seus organizadores683.”
Essa prática se inscreve dentro de uma perspectiva estratégica: descolar os
objetos religiosos do seu contexto significaria descolar a própria crença da
sociedade. Transformar os objetos rituais em peças de museu representava
destruir o lugar social em que eles se inserem.
682 MAGALHÃES, A. RELATÓRIO Apresentado ao Exmo. Snr. Presidente da República em virtude do Art. 46 do Decreto-Lei Federal nº 1202. Recife: Imprensa Oficial, 1940. 683 A Repressão dos Xangôs. Fronteiras, Recife, ano 7, n. 1 e 2, p. 12, jan./fev. 1938.
Dessa forma, a polícia de Agamenon Magalhães, sob a influência dos
Congregados Marianos e do seu líder, o padre jesuíta Antônio Fernandes, se
outorgam o direito de espionar as atividades dos pais-de-santo, tratando-os como
excomungados, constituindo-se, também, uma ameaça social e, portanto,
passíveis de ser alvos da repressão policial684.
A proibição do funcionamento das “seitas africanas” fez vir à tona a
lembrança do Iº Congresso Afro-Brasileiro. Os católicos Marianos atribuíam a
grande quantidade de adeptos das religiões afro-brasileiras, no Recife, às idéias
propagadas no Congresso.
“Com o impulso que tinham tomado as ideais emanadas dos indeferidos Congressos Afro-Brasileiros, novos tabus se fixaram de tal maneira entre nós que temia-se a pecha de retrogrado ao tocar em qualquer um deles. E o espantoso é que o raciocínio sobre eles nos levava a conclusões consideradas absurdas há bem pouco tempo685.”
Ao rememorarem o Congresso, associam-no a atividades comunistas. Todo
esse movimento alimentou posturas contrárias às manifestações culturais
africanas em que se reafirmava como modelo ideal de homem o europeu e ariano.
Para os católicos marianos, o Congresso Afro-brasileiro de 1934 era fruto de
artimanhas do Komiterm, no sentido de estimular o ódio de classe entre negros e
brancos. O Congresso passou também a ser apontado como “covil de judeus e
comunistas que almejavam destruir a sólida cultura cristã”686.
“O neo-Aphricanismo, proclamando-se inimigo do sentimentalismo e da literatura tinha seu auge com a realização do Congresso Afro-brasileiro de Recife, em 1934. Com a preparação ao movimento comunista que deveria rebentar um ano depois. Isso está tão claro que é ocioso insistir. E um pouco antes, os xangôs, fabricas de doentes mentais, eram matriculados na
684 CAVALCANTI, P. A Luta Clandestina (o caso eu conto como o caso foi)- Memórias Políticas. Recife: Guararapes. Vol. 4, 1985. 685 A Repressão dos Xangôs. Fronteiras , Recife, ano 7, n. 1 e 2, p. 12, jan./fev., 1938. 686 LEVINE, R. A Velha Usina – Pernambuco na Federação Brasileira (1889-1937). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p. 114.
Assistência a Psycophatas e tinham licenças legalizadíssimas para funcionar livremente687.”
Apesar dessas observações, uma curiosa contradição se opera. Ao mesmo
tempo que acusa os organizadores do Congresso de ateus, comunistas e
disseminadores de práticas religiosas perniciosas, o discurso dos Católicos
Marianos retoma as idéias propagadas pela Escola Psiquiátrica do Recife, liderada
por Ulysses Pernambucano. As religiões afro-brasileiras são acusadas de fábricas
de psicopatas, sinal patológico de manifestação do sagrado.
O Congresso afro-brasileiro, por dar relevância ao folclore e às formas de
expressão da cultura africana, levou as autoridades e os católicos a elaborar
explicações, de conformidade com o imaginário político daquele período que era
simpatizante das idéias nazi-fascistas. Consideraram que os organizadores do
Congresso foram responsáveis por desviar comportamentos e idéias de pessoas
“bem intencionadas”:
“O congresso Afro-Brasileiro e seus inspiradores, algumas de escepcional intelligencia, estragaram muita gente boa, mas de poucas letras e menos fortaleza de caracter688.”
Ao defender a moral e os bons costumes, os redatores da revista Fronteiras
ficam horrorizados com as idéias propagadas por Freyre em Casa Grande &
Senzala:
“LUBAMBO, que foi a primeira vez que se insurgiu contra elle, no Brasil, caracterizou-o definitivamente, quando o chamou de "Literatura de watter closet". Gilberto Freyre fez da Casa Grande um bordel, onde na promiscuidade das negras, mulatas eroticas e ‘indias priapicas’ se gerou a raça brasileira. A leitura monotona, insistente, acerca da formação da familia brasileira, em Gilberto Freyre, é evidente: o papel hygienico, o erotismo a sodomia, o priapismo. A que atribuí-lo? Entrego o "caso" á competencia techinica de Golçalves Fernandes, o jovem e
687A Repressão dos Xangôs. Fronteiras , Recife, ano 7, n. 1 e 2, p. 12, jan./fev., 1938. 688 CAMPELLO, J. op. cit., 1938. p.03.
brilhante psychiatra que em recente estudo faz tão agudas observações sobre schizophrenia e suas relações com as producções artisticas e litterarias...689.”
Nesse sentido, os Congregados Marianos empreenderam uma campanha
contra as apresentações públicas de Gilberto Freyre, atribuindo ao seu trabalho
todos os defeitos que propiciariam a dissolução e o caos da sociedade, inclusive
acusando-o de ser comunista.
“Conforme prevíamos, a conferencia do Sr. Gilberto Freyre - "José Americo, solução brasileira e Solução Social"- pronunciada no theatro Sta. Isabel, redundou num fracasso completo. (...) A casa não estava cheia, (...) O expediente de que se valeu é genial. Um terço do discurso é dedicado ao architeto Vouthier, (...)Outro terço aos feitos do Sta. Isabel(...) O terço restando ao José Americo propriamente, aos bonzos literarios do momento e a barretadas a todo mundo(...), ao Comunismo, ao Catholicismo e até ......ao integralismo. De facto, fala nas igrejas e no seminario de Olinda, expressões ilustres da civilização pernambucana (barretada nos catholicos). (...) ‘Na fraternidade entre os homens de todos os credos’ (barretada aos maçons, livre pensadores e democraticos)690”.
Também acusavam as religiões de origem africana de selvagens e imundas
e aconselhavam os sociólogos e historiadores que tivessem cautela em não
permitir o retorno dessas religiões “primitivas”. Elas atentavam contra todas as
formas de higiene do corpo e da mente:
“As seitas africanas, que vinham se multiplicando em Recife (...) não podem fugir ao simile nem a condenação dos nossos commentarios. Por que interessam á sociologia e á história e a propria arte as tradições e costumes das tribus d’Africa que forneceram maior numero de escravos ao Brasil, segue-se dahi que devamos promover a
689 MONTEIRO, V. R. Uma Impressão Sobre Casa Grande & Senzala. Fronteiras , Recife, ano 5, n.15, p.3, jul. 1936. 690 Gilberto, o Zé-Americano. Fronteiras , Recife, ano 6, n. 26, p. 1, jul. 1936.
ressurreição effectiva de xangôs e semelhantes menifestações bárbaras, que atenttam contra todas formas de hygiene, inclusive a hygiene mental?691”
Barbarismo e falta de higiene mental e social são termos que se opõem à
civilização. Na sua luta para desqualificar as práticas religiosas afro-brasileiras, os
Congregados Marianos dirigem suas armas justamente para aqueles aspectos
que o pensamento da elite dominante queria eliminar. As “macumbas” não eram,
apenas, um atentado contra a fé cristã, contra a moral e contra os foros de
educação. Eram, também, um atentado contra a higiene e a segurança pública.
Logo, eram o atestado alarmante de nossa ignorância religiosa e científica e de
nossa falta de policiamento.
Nas sistemáticas rondas policiais realizadas pela Secretaria de Segurança
Pública de Pernambuco, eram apreendidos e levados à delegacia todos os objetos
pertencentes aos cultos dispostos no terreiro. A presença de imagens cristãs nos
terreiros de Xangô, fruto do sincretismo que associa os santos católicos aos orixás
e a outras entidades místicas das religiões afro-brasileiras, era considerada pelas
autoridades encarregadas das diligências policiais como:
“(...) um desrespeito à nossa tradição (...) os santos das imagens do culto católico no xangô, tem denominações extravagantes o que equivale a uma verdadeira profanação (...)692”
À ilegalidade social e à ilegalidade jurídica, acrescenta-se a profanação
religiosa. Esse conjunto transforma as religiões afro-umbandistas em suspeitas e,
por conseguinte, culpadas.
Na campanha em prol do ideal católico e da manutenção do Estado Novo,
os Congregados Marianos responsabilizavam as autoridades governamentais da
gestão anterior de terem sido complacentes com os “exploradores da baixa
feitiçaria”. Também acusavam o antigo governador, Carlos de Lima Cavalcanti, de
freqüentar os “terreiros”:
691 CAMPELLO, J. Xangôs. Folha da Manhã, Recife, 27 jan. 1938. p. 3. Edição Matutina. 692Fechados pela polícia vários xangôs. Diário de Pernambuco, Recife, 13 fev. 1938. p. 7.
“Os exploradores de baixa feitiçaria africana até pouco tempo, exerciam livremente a pratica ilegal da medicina acobertados por uma licença regularmente fornecida pelas repartições publicas estaduaes que abriram assim uma excepção injustificavel ao funcionamento de xangôs onde se praticam o baixo espiritismo, o curandeirismo perigoso e até o lenocínio, sob os olhares complacentes das autoridades, algumas convencidas de que estavam bancando o “sociólogo”, o “avançado”, o “moderno”. E mais importante de todos elles, o “pae de santo” mais hábil em predicar nos terreiros ao som do batuque, era o sr. Carlos de Lima Cavalcanti...693”
A radicalização da repressão e o controle das práticas consideradas
perigosas e ameaçadoras tinham no Secretário da Fazenda Manoel Lubambo seu
principal defensor:
“Manuel Lumbambo declarou guerra de morte às forças ocultas que, como em Portugal, nos tempos sombrios da Mafalda democracia, tentaram desmoronar o movimento espiritual do Brasil, pelo deturpamento da sua verdadeira história, pelo denegrimento de seus heróis. Que a ação de FRONTEIRAS sintetizava o pensamento de todos os seus bons brasileiros e simbolizava os anseios da própria alma nacional provam-nos a solidariedade e os aplausos que Manuel Lumbambo recebeu dos elementos mais representativos das forças vivas do paiz, demonstra-o o "recuo estratégico" daqueles que se atreveram a pisar a fonte sagrada dos mártires da campanha libertadora, sob o pretexto de glorificarem os nomes dos falsos colonizadores694."
Dessa forma, tanto o Comunismo como as práticas religiosas afro-
brasileiras eram reprimidas tanto pelo sistema político, econômico e moral, como
693 CAMPELLO, J. op. cit., 1938. p. 03. 694 AULER, G. Não esqueçamos Antônio Sardinha. Fronteiras , Recife, ano 9, n. 6, p. 21, jun. 1940.
ameaça à ordem estabelecida, como também pelas idéias exóticas, isto é,
estranhas à tradição Católica Romana.
A postura contrária às manifestações da religiosidade popular, por parte dos
Congregados Marianos que integravam o Secretariado da Interventoria em
Pernambuco, pode ser percebida nas dificuldades encontradas pelos membros da
Missão Folclórica, enviada por Mário de Andrade695 ao Recife para registrar, em
discos, as manifestações populares da região.
Os integrantes da Missão, ao desembarcarem no Recife, em fevereiro de
1938, fizeram referência à situação política local, considerando-a delicada.
Representaram as autoridades políticas do Recife como exigentes e
conservadoras696. Luiz Saia, chefe da Missão, ao descrever, para Mário de
Andrade, as primeiras atividades do grupo em Pernambuco, comenta, em carta,
os entraves enfrentados devido à situação política local. A carta é enviada através
de um amigo para evitar a censura dos correios:
“(...) aqui no Recife foi absolutamente necessário entrar em contato com o mundo oficial. Agamenon me tratou muito bem porém parece que a política dele é deixar o barco ser levado pela corrente que escolheu para as secretarias. (...) Dos secretários o que está mais em contato com a batina é o Manoel Lubambo, com a sua turma ultra-direita da revista Fronteiras. Com a carta de Jorge de Lima conversei com este último elemento do governo. Imediatamente ele me deu a entender que se a Missão não quisesse ser embaraçada(...) eu deveria me afastar o máximo possível do Gilberto Freyre ou de qualquer outro elemento que não fosse da turma de Fronteiras. Qualquer desobediência(...)prejudicaria completamente o trabalho da Missão, pois os padres estão dando as cartas. Ora, esta turma católica é ariana e erradíssima697.”
695 Por iniciativa de Mário de Andrade, diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, foi organizada uma Missão que tinha como objetivo recolher o folclore musical da Região. Em Pernambuco, a missão encontrou uma série de dificuldades por parte do Interventor Federal e do Secretário designado para assessorá-la. 696 CARLINI, A. Cante Lá que Gravam Cá: Mário de Andrade e a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938. 1994. Dissertação (Dissertação em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994. 697 Correspondência. Doc 34: de Luiz Saia para Mário de Andrade, Recife, 16 de fevereiro de 1938.
A manifestação folclórica de maior interesse etnográfico para a Missão, em
Recife, era o Xangô. A delicadeza da situação política dificultava a obtenção de
autorização oficial prévia, cedida pela Polícia da capital, necessária para registro
dos cultos de feitiçaria afro-brasileira. No entanto, apesar da radicalização do
processo empreendido pelos Católicos Marianos, no sentido de apagar da
sociedade todo e qualquer tipo de manifestação religiosa afro-brasileira, os
integrantes da Missão conseguiram permissão para que fosse realizado um toque
de Xangô para efeito de filmagem698.
A luta dos Congregados Marianos em prol da recatequização da sociedade
e contra todas as práticas consideradas perigosas para a moral cristã objetivava
educar o novo homem e criar uma nova tradição, baseada nos ideais cristãos, no
progresso, no trabalho e na ordem.
A religiosidade e a herança cristã foram proclamadas como forças e
princípios, valores e garantias da ordem, da estabilidade, da solidez política, da
higiene da cidade, do enaltecimento da herança cívica, herdada dos europeus
católicos.
O pacto entre a Igreja Católica e o Estado, configurado através do uso da
Educação, construiu um saber que representou a tentativa de erradicação das
práticas consideradas “dissolventes”. A relevância desse pacto pode ser medida
através da ocupação de cargos públicos por intelectuais católicos, como forma de
a Igreja inserir seu laicato fiel a serviço dos seus propósitos. Esses intelectuais, ao
exercerem cargos políticos do Estado, assumiram, com lealdade e fidelidade, as
atividades de veiculadores das visões de mundo de um Governo que elegeu como
uma das vias para exercício da governamentalidade o autoritarismo, a
excludência, o racismo e a intolerância religiosa às práticas não católicas.
Os mecanismos de repressão são então montados. A Polícia, com a sua
força material e social, implementa medidas nesta luta em prol de uma sociedade
ordenada, obediente aos valores tradicionais cristãos. Luta pela hegemonia
católica que se vê solapada pela concorrência de uma outra profissão de fé. A
Imprensa e o Rádio transformam-se, dessa forma, em meios eficazes de
698 CARLINI, A. op. cit., 1994.
publicidade, difundindo largamente as idéias propagadas pelos Marianos que têm
o completo apoio do Interventor.
O próximo capítulo será dedicado às práticas repressivas da Polícia,
objetivando apagar por completo as atividades religiosas consideradas perigosas
à construção do Brasil novo, católico e sadio.
CAPÍTULO VII
A POLÍCIA CONTRA O CATIMBÓ
“As seitas africanas, o baixo espiritismo, a jogatina desenfreada, as ofensas ao decoro público e outras práticas corrutoras, foram problemas que tivemos que enfrentar, vencendo a resistência que o seu arraigamento oferecia ás medidas saneadoras699.”
Nosso objetivo, neste capítulo, é analisar as estratégias de perseguição e
repressão, por parte do aparato policial, às religiões afro-umbandistas através da
propaganda veiculada pela imprensa, particularmente o jornal Folha da Manhã ,
no período de 1937 a 1945. Nosso estudo também analisa a documentação
registrada na Secretaria de Segurança Pública (SSP), através do trabalho policial
da DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social).
Os bastidores da repressão, em Pernambuco, começam a se delinear a
partir do Movimento Político-Militar de 1930, através do projeto de construção do
Estado Nacional, em que se observam mudanças do perfil administrativo-
governamental baseadas em um projeto de modernização700.
Este projeto reprime qualquer tipo de mobilização fora do controle estatal. O
Estado Novo, em Pernambuco, procurava incorporar os diversos grupos sociais,
inclusive as camadas populares, ao seu projeto. O interventor Agamenon
Magalhães, como teórico e praticante do regime, defendia uma obra política em
que teve participação direta701.
Sua administração foi sustentada por um clima de insegurança, terror e
violência que assegurava a implantação de uma situação em que exonerações e
aposentadorias forçadas transformaram-se em instrumento de punição e em
699 O Governo Agamenon Magalhães e a Secretaria de Segurança Pública, 1939. Exposição Nacional de PE – 1940 - Recife – Imprensa Oficial – 1939. p. 1. 700 SILVA, M. G. O D.O.P.S. e o Estado Novo: os bastidores da repressão em Pernambuco. (1935-1945). 1996. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1996. p. 10 701 Cf. PANDOLFI, D. C. Pernambuco de Agamenon Magalhães: consolidação e crise de uma elite política. Recife: FUNDAJ-Massangana, 1984.
armas de combate contra aqueles que representavam a “anarquia” e a
“imoralidade”. Tinha-se, portanto, consciência do papel da Polícia e dos chefes
políticos, assim como da força das palavras e das imagens para a
operacionalização de um clima de “paz” e “tranqüilidade” no Estado702.
A criação de órgãos especializados da Polícia, a partir do movimento
empreendido em 1930, foi marcada por dois momentos: o primeiro, elaborado logo
nos primeiros anos do processo, tinha como medida principal a criação da
Secretaria de Segurança Pública (SSP), pelo Decreto nº 73, de junho de 1931, a
qual substituiu a antiga Repartição Central de Polícia. O segundo é marcado pelo
Decreto nº 102, de novembro de 1931, pelo qual é criada a Delegacia Auxiliar703.
Essas reformas administrativas do Estado caminhavam para a
centralização, racionalidade e técnica, vistas como elementos fundamentais ao
funcionamento eficiente do aparelho estatal. A partir de 1935, o acirramento das
críticas ao Novo Regime, as greves e as tentativas de sublevação, como o levante
comunista, levaram à decretação da Lei de Segurança Nacional e à criação de
órgãos mais eficientes na prática da repressão, dentre eles, a DOPS.704.
A Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) foi criada em dezembro de
1935, pela Lei nº 71, tendo como função proceder a inquéritos sobre crime de
ordem política e social, exercer as medidas de política preventiva e controlar os
serviços cujos fins estivessem em conexão com a ordem política e social705.
Assim, os objetivos que nortearam as atividades da DOPS estavam centrados na
investigação, na censura e na repressão.
A importância da DOPS, enquanto aparato repressivo, para a administração
policial da interventoria de Agamenon Magalhães é ressaltada por este quando
afirma:
702 Cf. ALMEIDA,M.G. A. A. A construção da verdade autoritária: palavras e imagens da interventoria Agamenon Magalhães em Pernambuco. (1937-1945). 1995. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995. 703 Acto nº 143, de 09/02/1931 do Interventor Federal. Decretos, Actos e Notas do Governo provisório, ano de 1931– Imprensa Oficial – PE. 1931/32. pp. 58-59. 704 Cf. SILVA, M. G. op. cit., 1996. 705 SILVA, M. G. O acervo do DOPS: da administração à história. Revista do Arquivo Público, Recife, v. 42, n.47, p. 77-88, dez. 1997. p. 77.
“As diligências realizadas pela Delegacia de Ordem Política e Social que é, hoje, uma das mais bem organizadas e aparelhadas do País, e que vem prestando ao regime os melhores serviços, e o ambiente tranqüilo de Pernambuco, onde reina a mais completa ordem, jamais presenciada nesses últimos anos, são dados, enfim, que mostram não vir a atual administração policial faltando ao programa que de início se traçou706.”
Assim, a DOPS era considerada pelo Interventor como elemento central da
manutenção da ordem no Estado. Representa o mais avançado instrumento de
que dispõe para garantir a paz e a harmonia da administração pública. Nesse
sentido, a DOPS representava um instrumento cuja eficiência era desconhecida,
até então. Era a materialização do poder do Interventor na implementação do seu
projeto de paz e tranqüilidade para o Estado.
Dessa forma, o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é
uma certa potência de que alguns sejam dotados. É o nome dado a uma situação
estratégica, complexa, numa sociedade determinada707. No caso analisado, uma
sociedade que estava sendo forjada através dos ideais da ordem, do
engrandecimento nacional, da moralização dos costumes e da modernização, de
higiene e da beleza da cidade.
Nesses termos, vão se processando sucessivas medidas de proteção ao
modelo de Estado que, naquele momento, estava se configurando. Essas práticas,
ao objetivarem impor a nova ordem à nação, utilizaram-se do aparato policial e
das propagandas, conclamando o povo a cooperar com o Estado para a
reconstrução nacional.
Observa Maria Helena Capelato que, em qualquer regime, a propaganda
política é estratégia para o exercício do poder, porém adquire uma força maior
naqueles em que o Estado, graças ao monopólio dos meios de comunicação,
706 MAGALHÃES, A. RELATÓRIO apresentado ao Exmo. Sr. Presidente da República em virtude do art. 46 do Decreto Lei Federal nº 1202. Recife:Imprensa Oficial, 1940. p. 137. 707FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 12. ed. Rio de Janeiro:Graal, 1997. pp. 88-89.
exerce censura rigorosa ao o conjunto das informações e as manipula, procurando
bloquear toda atividade espontânea708.
O advento do Estado Novo consolidou essas medidas de controle da
sociedade, instaurando, progressivamente, um sistema de vigilância ostensivo a
toda e qualquer forma de manifestação contrária às idéias forjadas pelos
idealizadores do processo. Daí a implantação dos serviços de censura e
repressão, operacionalizados por uma polícia técnica especializada, cujas funções
vão sendo transformadas, no decorrer do processo, através das diferentes idéias
propagadas e implementadas pelos protagonistas dessa história.
Em reportagem concedida ao Jornal Folha da Manhã e à Rádio Clube de
Pernambuco, Agamenon Magalhães declara:
“Uma das preocupações de meu governo foi dar a polícia uma organização technica, que correspondesse às exigências da ordem social. Substitui-se o velho aparelho repressivo, inadequado, sem efficiencia, nem mais finalidade, por uma orientação inteiramente nova. Adaptamos como base da reforma, os meios preventivos, executando-se uma serie de medidas cujos resultados foram imediatos(...)Completando essas providências, a propaganda pela imprensa e pelo radio dos princípios de renovação e saude moral, consagrados pelo novo regime, operou rapidamente a mudança de ambiente, que se tornou propicio as boas maneiras e as boas acções709.”
A criação de uma Secretaria de Segurança Pública diretamente
subordinada ao Governo do Estado, sugere um controle direto da Interventoria
sobre o setor de segurança. O caráter preventivo, ostensivo e repressivo de sua
atuação possibilitava o uso de todas as formas de coerção e correção disciplinar
do indivíduo. Ao adquirir o “status” de Secretaria, é conferida uma hierarquia
privilegiada ao aparato policial. O Diário do Estado, órgão de imprensa oficial,
justifica a criação da Secretaria, bem como a hierarquia então estabelecida: 708 CAPELATO, M. H. R. Multidões em Cena. Propaganda política no varguismo e no peronismo. Campinas: Papirus, 1998. p.36. 709 MAGALHÃES, A. (Agamenon Magalhães) Para a Folha da Manhã e a Rádio Clube de Pernambuco. Folha da Manhã, Recife, 11 dez. 1938. pp.1- 2. Edição Matutina.
“Tudo indicava a necessidade de uma subordinação direta de todos os serviços ao Secretário de Segurança, ao mesmo tempo que se mostrava necessária a criação duma delegacia a que ficasse afetas a prevenção e a repressão aos crimes contra a propriedade na capital.(...) Fixou esse Decreto o regime hierárquico conveniente, com a subordinação de todos os órgãos policiais ao Secretário, estabelecendo ainda normas de colaboração entre as autoridades, atribuições dos novos delegados e ordem jurisdicional apropriada ao bom desempenho dos serviços710.”
A Delegacia de Ordem Política e Social foi criada tendo como uma das
justificativas o uso de medidas autoritárias de combate à “Desordem Social”711.
O primeiro semestre do ano de 1938 se apresenta, ainda, como um período
de dificuldade política, no que se refere à legitimação do novo regime. Esta
dificuldade se reflete na relevância dada ao doutrinamento das massas acerca das
novas idéias implementadas, como também através da excessiva propaganda
política, interessada em construir uma verdade que confluísse para o acatamento
da nova ordem712. Assim, foram forjadas estórias contra determinadas instituições
que, exploradas e veiculadas pela imprensa, serviram como tática de semear um
ambiente propício ao medo. Este só seria vencido através das medidas
saneadoras do Estado.
A estratégia da segurança tomou corpo através do uso da Polícia, a qual
representou o braço armado da ditadura, requisitada para atuar nas situações
mais inusitadas. Etelvino Lins, secretário de Polícia de Agamenon Magalhães,
perfeitamente integrado com a polícia política de Felinto Muller, no Rio de Janeiro,
reproduzia, em Pernambuco, o terror e a repressão policial713. Acerca de suas
atividades, a Imprensa notifica:
“Como Secretário de Segurança Pública, que foi durante os sete anos do governo Agamenon
710 As Realizações do Estado Novo em Pernambuco: Exposição dos trabalhos da Secretaria de Segurança Pública. Diário do Estado , Recife, 10 nov.1938. p. 18. Edição Especial. 711 Cf. SILVA, M. G. op. cit., 1996. 712 Cf. ALMEIDA,M.G. A. A. Imprensa: repressão e censura nos anos 30 em Pernambuco. Revista do Arquivo Público, Recife, v. 42, n.47, p. 39-53, dez. 1997. 713 ALMEIDA, M. G. A. A. op. cit.,1997. p. 40.
Magalhães, o Dr. Etelvino Lins revelou altas qualidades garantindo a ordem pública e da tranquilidade da família pernambucana. Sua administração á frente daquela secretaria foi norteada por uma compreensão dos nossos problemas e por uma atuação vigilante e energica que alcançou á mais ampla e notável repercussão no pais714.”
A importância dada ao papel da Imprensa se tornou referência na
interventoria de Agamenon Magalhães. Ela foi tomada como estratégia
fundamental para a construção dos ideais do Estado Novo em Pernambuco.
Nesse sentido, era a própria reificação da “verdade”, da legitimidade, do discurso
da competência e da sabedoria do Estado.
Essas idéias atingiam o cotidiano da população, imprimiam “valores”, na
tentativa de apontar “os males sociais” a serem extirpados. Normas e condutas
eram sugeridas à população, até mesmo no tocante ao vestuário. O alvo dessas
recomendações eram principalmente as camadas pobres oriundas do campo715.
O jornal Folha da Manhã foi o porta-voz do Interventor. Para tanto, esse
veículo de comunicação elegeu como um dos seus temas a problemática social.
Dentre eles, receberam particular atenção os adeptos das religiões afro-
umbandistas, identificados como casos de polícia.
Como já observamos, esses grupos, desde 1930, para poderem funcionar,
eram obrigados a solicitar registro especial dos departamentos de polícia local que
fixavam, inclusive, taxas716. Essa medida colocou os praticantes da Umbanda717
e das religiões afro-brasileiras718 numa situação dúbia. Teoricamente, os registros
permitiam a prática legal da religião. Por outro lado, aumentavam o controle da
polícia, como também a possibilidade de intimidação e extorsão. Solicitava-se às
714 Interventor Etelvino Lins. Folha do Sertão, Sertânea, 10 jun. 1945. 715 Cf. ALMEIDA,M.G. A. A. op. cit.,1995. 716Cf. BROWN, D. Umbanda Religion and Politics in Urban Brasil. Michigan: Um Research Press, 1986. 717 Religião formada no Brasil por uma seleção de valores doutrinários e rituais, feitos a partir da fusão dos cultos africanos, com a pajelança (ritual indígena) sofrendo ainda influências do catolicismo e do espiritismo. CACCIATORE, O. G. UMBANDA. In:_______. DICIONÁRIO de Cultos Afro-Brasileiros. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1988. pp.242-143. 718 Religiões de origem africana, reinterpretadas no Brasil pelos escravos e pelos seus descendentes. In: RIBEIRO, R. Cultos Afro-Brasileiros do Recife: Um Estudo de Ajustamento Social. Recife: IJNPS,1952.
seitas, para efeito de registro, a apresentação do seu regulamento. Uma cópia do
regulamento de uma das seitas, em funcionamento no Recife na década de 1930,
apresentava as seguintes informações:
"ESTATUTO DA SEITA AFRICANA EM ADORAÇÃO A SANTA BARBARA SITUADA A RUA FRANCISCO BERENGER Nº 147, LOGAR ENCRUZILHADA Apolinário Gomes de Mota, babalorixá da referida seita em adoração aos encantados da Costa da África com os seus regulamentos seguintes:
Temos que oferecer os nossos sacrifícios a todos os encantados da Costa da África de conformidade com as ordens e respeito, conforme o rito da seita.
Temos que foncionar as festas depois dos sacrificios oferecidos a todos os babarumael.
Não poderão os filhos dos santos ir dansar sem que primeiro não cumpram com seus deveres.
Ir ao peji fazer o seu adobalê aos pés dos santos, aos pés do seu babalorixá, aos pés de sua inan e sua mãi pequena e ao Ogan. Não poderão os filhos de santo tomarem bebidas alcoolicas nem fumarem na ocasião das festas.
Os filhos de santo na ocasião das manifestações terão o direito a uma iabá como a uma toalha para enchugar todos aqueles que estiverem manifestados tendo o cuidado para não deixar nem um cair, estas resposabilidades caberão a mãi pequena e a todas as ilais".719
O estatuto normatizava, organizava os rituais, como também procurava
descrever minuciosamente os direitos e deveres de cada participante. Dessa
forma, o regulamento revela uma normatização dos rituais, assim como, as
relações de poder entre os praticantes da religião. Como assinala Foucault, o
poder deve ser analisado como algo que circula, como algo que funciona em
cadeia. Nas suas malhas, os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em
posição de exercer esse poder e de sofrer sua ação. Nunca são o alvo inerte ou
719 FERNANDES, G. Xangôs do Nordeste: Investigação sobre os cultos negro-fetichistas do Recife. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1937. p. 23-24.
consentivo do poder; são sempre centros de transmissão. O poder não se aplica
aos indivíduos, passa por eles720.
A percepção do poder estava configurada nas manifestações organizativas
da sociedade, em termos de ação, dominação, carisma, autoridade, disciplina e
controle. O poder se esboçava, também, a partir da força física dos aparelhos
institucionalizados que faziam valer suas decisões. Nessa forma de coerção, ele
produz efeitos na sociedade.
Esses efeitos tornam-se mais visíveis quando o secretário de Segurança
Pública do Estado de Pernambuco, Etelvino Lins, expede a Portaria proibindo o
funcionamento dos Centros Espíritas, baseando-se na Constituição de 1937, que
permitia a liberdade de expressão a todos os brasileiros, mas que coibia as
práticas viciosas que corrompem e degradam as pessoas. Justificava que era
dever das autoridades combater essas práticas, exercendo, assim, a defesa do
Estado e da Sociedade.
Sobre o assunto, José Campello, Redator-Chefe da Folha da Manhã,
escreve:
“A Secretaria de Segurança baixou uma portaria prohibindo em todo o território pernambucano o funccionamento de seitas africanas e gabinetes de “sciencias” herméticas. Já tivemos ocasião de analisar em nossa secção de comentários o acto do sr. Etelvino Lins, focalizando alguns dos seus aspectos e das sua conseqüências mais úteis á collectividade. Mas a medida é de tamanha significação para os nossos costumes e a hygiene mental da cidade, que não perde o público por insistirmos no assumpto, adduzidos novos argumentos áquelles primeiros commentarios721”
De acordo com Yvone Maggie, a magia, desde os tempos coloniais, dispõe
de mecanismos reguladores das acusações a “bruxos e feiticeiros” nos terreiros e
locais de culto. No entanto, foi a partir da República, com o Decreto de 11 de
outubro de 1890, que o Estado criou mecanismos reguladores do combate aos 720 FOUCAULT, M. op. cit., 1997. p. 183. 721 CAMPELLO, J. Xangôs. Folha da Manhã, Recife, 27 jan. 1938, p. 3. Edição Matutina.
feitiços, instituindo o Código Penal. Três artigos dizem respeito a esta questão: o
artigo 156, que se refere à prática ilegal da Medicina; o artigo 157, que estabelece
como crime a prática do Espiritismo, da Magia, da Cartomancia, do uso de
talismãs, como também a de subjugar a credulidade pública; e, por fim, o artigo
158, que proíbe a prática do curandeirismo722.
Para a autora, o Estado passou, dessa forma, a intervir nos assuntos da
magia no combate aos feiticeiros, regulando acusações, criando juízos especiais e
pessoal especializado. À medida que os anos passavam, instituições iam sendo
criadas na Polícia, para regular este combate, identificar e punir aqueles que eram
considerados produtores de malefícios723. Assim, essa ação já formalizada pelo
Estado veio a ser utilizada com mais intensidade em Pernambuco, apoiando-se no
Capítulo 2 da Constituição Federal dos Estados Unidos do Brasil. Nele, o artigo
122, parágrafo 4, afirma:
“Todos os indivíduos de diferentes confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum, as exigências da ordem pública e dos bons costumes.724”
No artigo 141, deste mesmo Capítulo, se encontra:
“7º Parágrafo – É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo os que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil.
8º Parágrafo – Por motivo de convicção religiosa, filosófica ou política, ninguém será privado de nenhum dos seus direitos, salvo se o invocar para se eximir de obrigação, encargos ou serviços impostos pela lei aos brasileiros em geral, ou recusar os que ela estabelecer em substituição daqueles deveres, a fim de atender escusa de consciência725.”
722 MAGGIE, Y. Medo do Feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. p. 22. 723 Idem Ibdem. p.23. 724 BRASIL. Constituição (1937) Constituição Federal dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946. p. 38. 725 Idem. p. 38.
O combate ao “catimbó” tinha uma justificativa legal. Sendo assim, as
instâncias do poder se eximem do que é praticado, mas acabam incorporando a
crença. Se existem catimbozeiros, feiticeiros, embusteiros, é porque se acredita
nesse tipo de feitiçaria. Como assinala Foucault, não existe o discurso do poder de
um lado e, em face dele, um outro contraposto. Podem existir discursos diferentes
e mesmo contraditórios, dentro de uma mesma estratégia; podem, ao contrário,
circular, sem mudar de forma, entre estratégias opostas726.
Essas medidas também expressam o pensamento do Interventor Federal e
de seu secretariado. Tomando o Catolicismo como religião oficial do Brasil,
empenharam-se na tentativa de apagar da sociedade todas aquelas práticas
religiosas que “ameaçavam” a doutrina social cristã, propagada na época.
A Folha da Manhã, de propriedade de Agamenon Magalhães, veiculava a
doutrina proposta através do processo de “catequização” da sociedade. Os afro-
umbandistas deveriam ser desconstruídos, marginalizados e, finalmente,
silenciados. Uma estratégia encontrada foi dar visibilidade às ações praticadas
pela Polícia.
Tais ações eram divulgadas, pelo jornal, repetidamente, no período de 1938
a 1945. Eram inúmeras as matérias, com o objetivo de doutrinar, educar, alertar a
sociedade para o mal dessas práticas, apresentadas como perniciosas e
criminosas. Nas matérias de jornal, os afro-umbandistas eram tratados com
expressões preconceituosas, como: catimbozeiros, curandeiros, feiticeiros
perigosos, exorcistas, embusteiros, exploradores, patifes, covardes sem
escrúpulos, malandros, cavadores de vida fácil.
A estratégia de guerra, de combate, aponta para a construção de um clima
social em que a Polícia se apresenta com grande eficiência. As manchetes do
jornal são reveladoras da construção dessa representação:
“A polícia no 2º districto combate o baixo espiritismo”727 “Combatendo o Catimbó”728 “Guerra aos catimbozeiros”729 726 FOUCAULT, M. op. cit., 1997. 727 Folha da Manhã, Recife, 28 out. 1937. p. 06. Secção O Dia Policial. Edição Matutin a. 728 Folha da Manhã, Recife, 10 jul. 1938. p. 08. Edição Matutina.
“Combate a magia negra: mais um culto devassado pela polícia”730 “Combatendo os feitiços”731 “A Delegacia de Vigilância Combate a baixa magia”732 “Combatendo os exploradores da crendice popular”733
A palavra combate aparece repetidamente e traz, junto a ela, o efeito de
sentido pertinente à eficiência da Polícia. O combate é a guerra, a busca do
extermínio de elementos e práticas considerados “dissolventes da sociedade”. É
um discurso que busca, através da repetição, infundir na opinião pública que a
guerra ou o combate travado entre a polícia e os “catimbozeiros” era eficaz. Em
outras palavras o “bem” estava vencendo o “mal”.
Nessa guerra estabelecida do “bem contra o mal”, a palavra contra aparece
constantemente:
“Contra o baixo espiritismo”734 “Campanha contra catimbozeiros”735 “Contra o espiritismo e a falsa medicina”736 “Contra o espiritismo” 737 “Contra os catimbozeiros”738 “Contra a baixa magia”739 “Diligência contra catimbozeiros”740 “Contra a atividade dos catimbozeiros”741 É possível observar que a polícia é representada como estando numa
campanha das mais intensas. A palavra contra funciona numa relação de força, ou
seja: a ordem contra a desordem, a lei contra o crime, o Estado contra o catimbó.
Nesses dizeres, a palavra contra também se remete a um outro efeito de sentido:
729 Folha da Manhã, Recife, 18 set.1938. p. 10. Edição Matutina. 730 Folha da Manhã, Recife, 14 mar. 1939. p. 12. Edição Matutina. 731 Folha da Manhã, Recife, 20 mar. 1939. p. 12. Edição Matutina. 732 Folha da Manhã, Recife, 24 out. 1940. p. 05. Edição Matutina. 733 Folha da Manhã, Recife, 10 abr. 1943. p.07. Edição Matutina. 734 Folha da Manhã , Recife, 08 mai. 1938. p. 08. Edição Matutina. ; Folha da Manhã , Recife, 06 jul. 1938. p. 08 Edição Matutin a.; Folha da Manhã , Recife, 27 jul. 1938. p.12. Edição Matutina.; Folha da Manhã, Recife, 12 fev. 1939. p. 12. Edição Matutina. 735 Folha da Manhã, Recife, 09 jul. 1938. p. 08. Edição Matutina. 736 Folha da Manhã , Recife, 17 ago. 1938. p. 12. Edição Matutina. 737 Folha da Manhã, Recife, 19 ago. 1938. p. 12. Edição Matutina. 738 Folha da Manhã, Recife, 23 ago. 1938. p. 12. Edição Matutina. 739 Folha da Manhã, Recife, 03 jun. 1939. p. 12. Edição Matutina. 740 Folha da Manhã, Recife, 29 set. 1939. p. 12. Edição Matutina. 741 Folha da Manhã , Recife, 06 nov. 1940. p. 05. Edição Matutina.
a situação está sob controle, porque estamos diante de um aparato policial forte e
determinado que controla, reprimindo as forças contrárias.
Diante das constantes manchetes que anunciavam o “combate”, a guerra,
“contra” os catimbozeiros, a palavra “repressão” foi pouco utilizada pelo jornal:
“Repressão aos Catimbozeiros”742 “Repressão ao baixo espiritismo”743
A segunda manchete é apresentada quatro vezes. Nesse sentido, de 1937
a 1945, período em que estudamos as matérias do jornal, a palavra “repressão”
apareceu apenas cinco vezes nas manchetes referentes à pratica da Polícia com
relação aos afro-umbandistas. Portanto, nesse caso, era necessário incutir na
população muito mais um clima de guerra, de combate, que, propriamente, de
repressão. Era importante, nesse processo de desconstrução, que ficasse claro:
ali se estabelecia uma guerra contra bandidos. E a polícia representava não só o
aparato estatal mas também os heróis, os protetores dos cidadãos de bem.
A estrutura dos relatos no jornal é sempre a mesma, quer seja o acusado
incriminado por prática ilegal da Medicina, falso Espiritismo ou Curandeirismo, pois
a acusação sempre se refere a práticas vistas como capazes de produzir
malefícios ou à prática da mistificação:
“Foram presos de ordem do Comissario Maranhão, as catimboseiras Francelina Pereira da Silva, Isabel Pereira do Nascimento, Leonor Pereira da Silva na ilha de Nictheroy em Afogados. Tambem foi presa a rua Amador Araujo 95, Areias, a mulher Anna Alves de Oliveira, vulgo "caboclinha" quando exercia a baixa magia tendo se "manifestado" perante os investigadores 22 e 49. A policia apprehendeu cartas, bilhetes, bloco para receitas, receituarios, etc. etc.744”
742 Folha da Manhã, Recife, 17 out. 1938. p. 06. Edição Matutina. 743 Folha da Manhã , Recife, 09 fev. 1939. p. 12. Edição Matutina. ; Folha da Manhã , Recife, 08 mai. 1943. p.07. Edição Matutina.; Folha da Manhã , Recife, 03 set. 1943. p.07. Edição Matutina.; Folha da Manhã , Recife, 02 nov. 1943. p. 07. Edição Matutina. 744 Prisão de Catimboseiros. Folha da Manhã , Recife, 03 jul. 1938. p. 08. Secção O Dia Policial. Edição Matutina.
A polícia, ao divulgar a prisão de acusados por crime de catimbó, sempre
repete de quem foi a ordem. No caso das “catimbozeiras” acima citadas, de ordem
do comissário Maranhão. A maior parte das matérias são finalizadas, dizendo “A
polícia apreendeu”, e aí vem citado, minuciosamente, todo o material apreendido.
O leitor do jornal deverá acreditar que os acusados são culpados, pois as provas
do crime estão materializadas nos objetos. A arma do crime, no caso, é o próprio
crime: a prática ilegal do catimbó materializada nos objetos apreendidos.
Os policiais não estranham a possessão e os rituais que descrevem ao repórter
do jornal. Eles, como os próprios participantes da seita, usam a expressão baixo-
espiritismo, narram e dão significado aos objetos, hierarquizam, tendo o cuidado
de dizer que os rituais descritos são reuniões de “baixo espiritismo”, realizadas
clandestinamente :
“A mulher Thereza de Jesus Soares,(...), há tempo se entrega aos trabalhos de baixo espiritismo. Ultimamente, o commissario Ildefonso Vasconcellos vem procurando ceçar-lhe a acção, mantendo, vez por outra, seria vigilancia na casa de Thereza. Mas, hontem, quando menos se esperava a citada catimbozeira achou de desenrolar o serviço. Na ora porém, mais complicada da "sciencia", dois investigadores appareceram e fizeram apprehensão de tudo que existia na resistencia da citada mulher. Quadros de Santos, alecrim, cravos de defunto,(...). Foram transporctados para a Secção de Costumes na Secretaria de Segurança Publica, enquanto a feiticeira se encontra no Xadrez dessa repartição745.”
Essa noção de “baixo espiritismo” implica a prática de um “alto espiritismo”,
exercido livremente. Porém, o “alto” espiritismo também encontrou dificuldade
para funcionar no decorrer da interventoria de Agamenon Magalhães. Em 1938,
uma comissão formada pela Federação Espírita Pernambucana, Cruzada Espírita
Pernambucana e Liga Espírita Suburbana dirigiu um documento ao Interventor,
745 Repressão ao baixo espiritismo. Folha da Manhã , Recife, 09 fev. 1939. p.12. Secção O Dia Policial. Edição Matutina.
protestando contra a situação humilhante em que se encontravam, por serem,
através da Portaria nº 1005, equiparadas ao “Catimbó”:
“A comissão abaixo-assinada, constituída dos responsáveis pela propaganda do espiritismo neste Estado, e neste carater representante da família espírita pernambucana, conquanto queira compreender que, na prática das medidas excepcionais que visam combater o falso Espiritismo, o catimbó, o xangô e a exploração, a autoridade pretendia efetivamente adotar providências de caráter moralisador, não póde deixar de confessar, por meio deste memorial, o seu profundo sentimento de pezar pelo modo por que a Secretaria de Segurança Pública acaba de regulamentar o funcionamento dos Centros Espíritas do Estado, baixando as instruções constantes da portaria N.º 1005, publicada no Diário do Estado, de 27 de Agosto de 1938746.”
Diante do protesto dos Centros Espíritas, o secretário de Segurança Pública
do Estado baixou a seguinte Portaria:
“O Secretario de Segurança Pública no uso de sua attribuições, resolve baixar as seguintes instruções para o funcionamento dos centros espíritas, no Estado:
Art. 1º - São condições gerais para o funccionamento dos centros espíritas neste Estado
a) O licenciamento por esta Secretaria, processado pela Comissão de Censura das Casas de Diversões Públicas;
b) A filiação a uma das seguintes federações espíritas – Cruzada Espírita de Pernambuco, Federação Espírita Pernambucana e Liga Suburbana;
c) O funccionamento em predio apropriado a seus fins, vistoriado convenientemente;
d) Finalidade prevista em estatuto devidamente appropriado;
e) Direcção representada por uma directoria de pessoas indoneas;
f) Effectivo não inferior a trinta sócios.
746 APEJE – D.O.P.S. Federação Espírita Pernambucana, Cruzada Espírita. 1938. fundo SSP nº 337.
Art. 2º - O licenciamento devera ser annual e requerido em petição ao Secretário da segurança, com os seguintes documentos:
(...)
Art. 3º- Não será renovada a licença de centro espírita com mais de (2) annos de existência, que não provar alguma actividade meritória em beneficio de seus associados, a juízo da Secretaria de segurança.
(...)
Art. 5º- É vedado terminantemente as Federações e aos centro espíritas as praticas referidas no art. 156 e 158 da Consolidação das Leis penaes e outras já proibidas por esta secretaria, por nocivas ao bem publico.
(...)
Art. 8º- revogam-se as disposições em contrário747.”
Os policiais, a partir de então, distinguiam o “baixo” do “alto” Espiritismo. Os
termos expressos nessa documentação enfatizam uma diferença clara entre o alto
e o baixo Espiritismo e indicam que o alto Espiritismo é percebido como prática
benéfica, ao contrário do que realiza o baixo Espiritismo. Sendo assim, o que é,
finalmente, que se criminaliza? Certamente não se pune o “Espiritismo”, mas uma
certa maneira ou modo de praticá-lo. É a partir dessa formulação que se instaura a
guerra travada contra os terreiros.
Nesse período, o movimento espírita procurou, de diversas formas, mostrar
a diferença em relação às práticas afro-umbandistas. Realizou-se toda uma
propaganda com a finalidade de mostrar que todos os espíritas praticavam o bem.
Era chamado de “espiritismo científico” para distingui-lo das outras práticas
religiosas populares. De acordo com Vera Borges de Sá, os espíritas insistiam em
não ser confundidos com indivíduos que praticam o mediunismo popular e,
também, com os charlatães. Utilizavam denominações, tais como “verdadeiro
espiritismo”, para se contraporem ao sincretismo afro-brasileiro. Também havia
747 A Regulação dos Centros Espíritas. Folha da Manhã, Recife, 27 ago. 1938. p. 2. Edição das 16 horas.
uma grande predominância do assistencialismo religioso, prática assimilada à
própria doutrina do Estado Novo748.
A forma como a imprensa veiculou os acontecimentos na construção da
“verdade” do Estado Novo, em Pernambuco, aponta para os mecanismos que são
acionados amplamente pelo aparato repressivo do Estado. A Polícia se mostra
como um dos mais atuantes e competentes setores. A violência está na existência
do “catimbó” na sociedade e não no ataque, no combate e no extermínio dessas
práticas religiosas. A atuação criminosa dos catimbozeiros não é, apenas, contra a
sociedade e a religião Católica, mas também contra o patrimônio público: o Estado
e os seus mais altos representantes.
Assim, eram tidos como inimigos da ordem aqueles que dificultavam o
reerguimento econômico e social de Pernambuco, e, por essa razão, foram presos
e processados. As manchetes acerca das prisões eram bombásticas:
“Processada uma charlatã”749 “Ação criminosa dos catimbozeiros: o operário faleceu depois de banhos de ervas”750 “Prisão de catimbozeiro”751 “Preso quando se entregava ao catimbó”752 “Prisão de exploradores do espiritismo”753 “Prisão de Catimbozeiros e apreensão de material”754 “Catimbozeiro no xadrez”755 “Foi presa a catimbozeira de Santo Amaro”756 “Prisão de vários catimbozeiros”757 “Processado um curandeiro”758
Era o processo de moralização implementado pelo Estado e pela Igreja na
luta contra a “degradação dos bons costumes”. Aí também se configurava uma
748 SA, V. B. Religião e Poder: introdução à história do espiritismo em Pernambuco. 2001. Tese (Doutorado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001. 749 Folha da Manhã, Recife, 01 mar. 1938. p. 06. Edição das 16 horas. 750 Folha da Manhã, Recife, 01 jul. 1938. p. 08. Edição das 16 horas. 751 Folha da Manhã, Recife, 19 ago. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. 752 Folha da Manhã, Recife, 21 ago. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. 753 Folha da Manhã, Recife, 28 ago. 1938. p. 10. Edição das 16 horas. 754 Folha da Manhã, Recife, 03 set. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. 755 Folha da Manhã, Recife, 27 out. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. 756 Folha da Manhã, Recife, 06 nov. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. 757 Folha da Manhã, Recife, 13 dez. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. 758 Folha da Manhã, Recife, 19 fev. 1941. p. 04. Edição das 16 horas.
formação discursiva em que o poder cria formas de comportamento permitidos
socialmente, alargando os limites do espaço público através da invasão do espaço
privado. Essa invasão do espaço privado é percebida através de manchetes,
como:
“Cerco a uma casa de catimbó em Areias”759 “Cerco numa casa de catimbó”760 “Cercada pela polícia uma sessão de catimbó”761 “Descoberto em Afogados um centro de catimbozeiros”762 “Busca na casa de uma catimbozeira”763 “Cercado pela polícia um mocambo em plena sessão”764
As diligências efetuadas pela Polícia invadiam as casas ditas suspeitas e
prendiam os seus moradores. Só após a apreensão e prisão dos suspeitos, estes
eram interrogados e submetidos a julgamento:
“Durante o serviço de ronda procedido, hontem, na rua de Afogados e immediações foi descoberto á rua João leite, 106, na Mangueira, um centro de catimbozeiros. Uma vez constatado que naquelle local se reuniam individuos affeitos á pratica de catimbó a policia de Afogados enviou para ali uma turma de guardas, á frente o commandante do destacamento do comissário, effectuando dentro de poucos minutos a prisão de todos. O "serviço" era dirigido por Francisco Severino Venancio, com a collaboração de João Amancio de Souza. Tertuliano de Castro e a mulher Julia Virginia de Souza. Os catimbozeiros estão trancafiados no xadrez do referido commissário para os fins competentes765.
Assim, o poder é imposto através de mecanismos de conhecimento; para
dominar, é preciso que se conheça e, para conhecer, é preciso obter a confissão,
o depoimento do criminoso. Prender o acusado e apreender o material suspeito, 759 Folha da Manhã, Recife, 22 out. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. 760 Folha da Manhã , Recife, 23 out. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. 761 Folha da Manhã, Recife, 14 jan. 1939. p. 12. Edição das 16 horas. 762 Folha da Manhã, Recife, 10 fev. 1939. p. 12. Edição das 16 horas. 763 Folha da Manhã, Recife, 09 mar. 1939. p. 12. Edição das 16 horas. 764 Folha da Manhã, Recife, 10 abr. 1943. p. 07. Edição das 16 horas. 765 Descoberto um centro de catimboseiros. Folha da Manhã , Recife, 10 fev. 1939. Secção Casos de Polícia, Edição das 16 horas, p.7.
antes da confissão, é uma técnica que visa construir a peça da acusação. Para
que as medidas de repressão produzam o efeito desejado, é necessário agir com
rapidez, eficácia. Prender e punir antes de interrogar e conseguir a confissão se
justifica pelo fato de que as práticas religiosas eram vistas como atos criminosos.
Nas práticas de um órgão voltado para a repressão reúne-se o exercício do
poder que intimida, da experiência que assusta, da demonstração de força que
ameaça, levando o acusado a confessar o crime ou estabelecer a “verdade”, que é
retirada do indivíduo através do uso de procedimentos extra-oficiais, antes e
durante o interrogatório, como instrumento de confissão de culpa:
“(...)passando a ser interrogado confessou a grave acusação que lhe era feita pelo cego, afirmando mais que explorava desde muito o catimbó; baixa magia e toda espécie de feitiçaria, com o encargo das mulheres Coriniana e Matilde de tal, (...) sendo que estas eram encarregadas de arranjar os “clientes” e propagandistas do rendoso negocio(...)766.”
Uma vez assumida a culpa pelo delito, constatam-se o crime e a sentença
de punição. Esse tipo de sanção era uma prática comum, na medida em que
funcionava como manifestação inibidora do “crime”. Toda a estratégia era
montada com o objetivo de fazer o acusado sentir-se culpado, criminoso.
A imprensa empenhou-se numa acirrada campanha doutrinária, veiculando,
diariamente, as “batidas policiais” pelos lugares em que se suspeitava haver a
prática do “baixo espiritismo”, do “catimbó”, da “feitiçaria”. O uso da polícia como
instrumento de terror e violência era apresentado como garantia do cumprimento
das normas instituídas. Todo o material “suspeito” era apreendido, e as
reportagens policiais davam grande ênfase ao ocorrido. As manchetes de jornal
informavam:
“Entre os objectos de catimbó a polícia apreendeu um caixão de defunto” 767 “Utensílios de catimbó”768 “Na casa do catimbozeiro existia strychinina”769
766 Ação contra os catimbozeiros. Folha da Manhã, Recife, 30 jul. 1944. Edição das 16 horas. 767 Folha da Manhã, Recife, 06 ago. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. 768 Folha da Manhã, Recife, 13 ago. 1938. p. 12. Edição das 16 horas.
“Apreensão de objetos de baixo espiritismo”770
“Na casa do catimbozeiro havia arma de fogo”771 “Utensílios de catimbó”772 “Objetos de espiritismo apreedidos”773 “Apreensão em Casa Amarela”774 “Objetos de catimbó”775 “Apprehenção de objectos de "catimbó" pela delegacia de vigilância”776
A apreensão do material era a prova concreta do crime. Nesse sentido, os
policiais tornam-se peritos, pois são capazes de classificar os objetos como sendo
dos catimbozeiros, dos espíritas ou dos curandeiros. Usam termos da crença que
todos parecem compreender. São eles quem anuncia onde estão os criminosos.
“Prosseguindo na Campanha de repressão á prática de baixo espiritismo, macumba e outras seitas de exploração, a polícia effectuou uma busca na residência de Severino Miguel de Barros, (...), onde foi apprehendido pelo investigador n. 35 o seguinte material: varios livros para magia, 13 "serviços feitos", 3 figuras de animaes, 1 retrato de Padre Cícero, 11 vidros contendo xarope de hervas, 1 documentario completo de baixa magia, caveiras de animaes, ossos do corpo humano, grande quantidade de hervas differentes, 1 espada de ferro, 1 vidro hermeticamente fechado contendo solução de mercurio, 1 "cachimbo de Roberto do Diabo" e muitas outras bruxarias777.”
As provas materiais, figuras de animais, retrato de Padre Cícero, vidro
contendo solução de mercúrio, nada significam. Mas, em conjunto, são evidências
de uma crença. Os católicos não utilizam esse tipo de objeto. A evidência do crime
é a própria crença. Os policiais apreenderam os objetos e prenderam Severino
Miguel de Barros, porque eles próprios conheciam a “macumba” que o criminoso
769 Folha da Manhã, Recife, 17 ago. 1938. p. 12. das 16 horas. 770 Folha da Manhã, Recife, 25 ago. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. 771 Folha da Manhã, Recife, 26 ago. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. 772 Folha da Manhã, Recife, 06 set. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. 773 Folha da Manhã, Recife, 13 set. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. 774 Folha da Manhã, Recife, 13 out. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. 775 Folha da Manhã, Recife, 04 dez. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. 776 Folha da Manhã, Recife, 25 out. 1940. p. 05. Edição das 16 horas. 777 A Macumba dentro da noite: a policia apprehendeu vasto material de catimbó. Folha da Manhã , Recife, 12 mar. 1938. p.07. Edição das 16 horas.
praticava e acreditavam que podia fazer mal. Assim, o discurso circula entre
estratégias diferentes. Os delegados e os policiais devem conhecer para prender,
punir e julgar. E só uma pessoa que conhece os rituais poderia fazer a descrição
do flagrante e dos objetos de apreensão. Além disso, o policial descreve os
objetos de forma bastante detalhada.
Uma outra presença constante nos fragmentos dos jornais é o depoimento
dos acusados, sempre negando as acusações:
“(...)Interrogado o explorador do espiritismo e da medicina, declarou á autoridade que de facto vendia remedio por não saber que era prohibido, mas, não explorava o espiritismo nem a medicina illegal778.” “(...)Em palestra com nossa reportagem o velho Severino declarou não ser explorador do baixo espiritismo, e nunca ter sido preso779.” “(...) De ordem do commissario Fhenelon Godoy, o guarda civil 251, prendeu a catimboseira, que foi recolhida ao xadrez, negando porem a responsabilidade no facto que lhe é attribuido780.”
A negação do crime é uma estratégia de defesa do acusado, porém não
atenua a punição. Os indícios e as evidências da prática do crime já são
elementos suficientes para punir antes da instalação de um processo.
A repetição constante, nas matérias da imprensa, das ordens proferidas
pelos comissários ou delegados de polícia revela mais um ponto que desejamos
enfatizar:
“(...)Na madrugada de hoje, em obediencia as opportunas recommendações daquella autoridade, foi cercada pela madrugada, a casa da mulher Severina Josepha da Conceição,(...) onde se effectuava concorrida sessão de catimbó. A diligencia foi effectuada pelos guardas civis 204, 316 e investigador 253, chefiados pelo
778 Folha da Manhã, Recife, 17 ago. 1938. p.02. Secção Casos de Polícia.Edição das 16 horas. 779 Prisão de exploradores do espiritismo. Folha da Manhã, Recife, 29 ago. 1938. p.07. Edição das 16 horas. 780 Uma catimbozeira capturada. Folha da Manhã, Recife, 29 abr. 1939. p.07. Edição das 16 horas.
investigador Lourival Campos, auxiliar do mesmo delegado, sendo presos em flagrante, os adeptos e exploradores da feitiçaria, Maria Ferreira dos Santos, José Pereira e outros (...) Os presos e os objectos acima descriptos, foram, pelo commissario Ildefonso Vasconcellos apresentados ao dr. Fabio Correia para os devidos fins781.”
Aqui podemos perceber que os policiais, sempre cumprindo ordem de seus
superiores, fazem as prisões e são testemunhas do flagrante. Os jornais
descrevem não só a prisão do acusado como o que estava ele praticando na hora
da ocorrência.
Os policiais descrevem minuciosamente os objetos apreendidos. Embora
pareçam conhecer bem o material, sempre querem, com visível violência,
incriminar os acusados. Para incriminar, sempre afirmam que são exploradores de
incautos, embusteiros. Cabe a eles determinar se os objetos apreendidos são
próprios para os rituais de “macumba”, definir se os objetos servem para produzir
malefícios e se o método empregado pelo acusado é o usado por “baixos” ou
“falsos espíritas”. Como também definir se praticam a medicina ilegal.
As narrativas das práticas religiosas proibidas ganham destaque, porque
são elas que provam que a crença ilegal existe. Do mesmo modo, os objetos
dessas práticas devem ser relacionados e nomeados de forma que adquiram o
estatuto de proibição e criminalidade das referidas práticas:
“O commissario Ildefonso Vasconcellos não mede esforço na campanha contra os macumbeiros. E assim vae dando combate aos raros ‘terreiros’ que apesar da repressão energica da policia, ainda existem782.”
O “catimbó” tem materialidade, os “catimbozeiros” e seus objetos devem ser
“farejados”, caçados pela polícia e encontrados.
Assim foram sendo construídos os discursos nesse campo. Revelados, os
rituais, as maneiras de curar, os nomes de entidades, os tipos de devoção, 781 Cercado um centro de catimbó em pleno funcionamento. Folha da Manhã, 24 mar. 1939. p.02. Edição das 16 horas 782 Combate aos catimboseiros. Folha da Manhã , Recife, 05 fev. 1939. p.12. Secção O Dia Policial. Edição Matutina.
ganham visibilidade e são inscritos no domínio da Polícia. O instrumento utilizado
pela Polícia, para o combate a essas práticas religiosas, acaba hierarquizando
crenças por meio desse poder que circula, nomeia e materializa o invisível.
Buscava -se, também, através das reportagens, construir uma imagem de
eficiência do aparato policial.
Os números servem como comprovação do empenho da Polícia.
“OCCORENCIAS POLICIAES EM CASA AMARELLA DURANTE O MÊS DE OUTUBRO Prisões --- Por crime de furto - 4. Por crime de embriaguez - 19. Por crime de embriaguez e desordens - 28. Por crime de offensas a moral - 34. Por crime de abuso de confiança - 1. Por crime de jogos prohibidos nos termos do art. 369 - 5. Por crime de atentado ao pudor - 1. Por crimes de armas prohibidas - 3. Por crime de catimbó - 11. Por crime de ferimentos leves - 1. Por crime de comunista - 1. Por crime de embriaguez e ofensas a moral - 5. Para averiguações - 11. Desobediencia á polícia - 3. Total de 127783.
OCCORENCIAS NO DISTRICTO DE CASA AMARELLA EM NOVEMBRO PROXIMO FINDO Prisões --- Por crime de desordens, 21; por crime de offensa a moral, 12; por crime de embriaguez, 11; por crime de desobediencia a policia, 15; por crime de defloramento, 4; por crime de catimbó, 2; por crime de furto, 5; por crime de receptador de furto, 3; por crime de falsa autoridade, 1; por crime de abuso de confiança, 3; por crime de tentativa ao pudor, 1; para averiguações, 20784.”
As fontes demonstram o número de diligências e buscas realizadas, bem
como o número de capturados, presos e processados. A prova contundente de
uma prática sediciosa está no fato de ocultar os elementos que questionam.
Principalmente se pensarmos no empenho com que a polícia afirmava combater
as práticas vistas como perniciosas.
O aparato de idéias construídas com a repressão atua no sentido de tolher
o pensamento. As práticas e manifestações populares devem ser silenciadas e,
com elas, os envolvimentos, as identidades, as crenças, a religiosidade não oficial.
É preciso transformar as camadas populares em seres apáticos, mansos,
783 Occorencias policiaes em Casa Amarela durante o mês de outubro. Folha da Manhã, Recife, 11 nov. 1939. p. 6. Secção O Dia Policial, Edição Matutina. 784 Occorenc ias no Districto de Casa Amarela em novembro próximo findo. Folha da Manhã, Recife, 06 dez. 1939. p. 7. Secção O Dia Policial, Edição Matutina.
domesticados. É necessário incutir-lhes a disciplina, a moral, a ordem, em nome
de um projeto político que tentava inventar uma nação vencedora. Também é
necessário, de forma simultânea, apagar, negar a existência dessas práticas
nocivas:
“Abolidos os sensacionalismos na imprensa, o baixo espiri tismo, as seitas africanas e a pratica das chamadas sciencias hermeticas, e outras formas de exploração da credibilidade e da miseria social, desappareceram os factores da exacerbação e desespero785.”
Os artigos de Agamenon Magalhães para a Folha da Manhã e lidos na
Rádio Clube de Pernambuco, passam a comentar, à medida que a polícia é
acionada, a completa erradicação dos catimbós. É o discurso do vencedor,
daquele que não admite, sob nenhuma hipótese, o descumprimento da ordem. Se
os afro-umbandistas representavam a desordem, o desespero, a exploração, sob
o seu governo, foram apagados, exterminados. Eles desapareceram da sociedade
através das ações eficientes daqueles que “sabem” exercer o poder.
Esses fragmentos de discursos retirados da Folha da Manhã possibilitam
reconstruir as formas de acusação e os modos de condenar. Esses discursos
também demonstraram que as personagens da trama participam das mesmas
premissas culturais. Todas as personagens participam das crenças não só no
plano das idéias. Há, de um lado, uma hierarquia, no plano das idéias, mas há,
também, a construção de um campo, em que comportamentos são classificados e
constituídos.
Finalmente, os casos descritos revelam que o feitiço é um operador lógico
atuante no mundo social e que parece instaurar-se na ordem da sociedade. Ele
hierarquiza e coloca grupos e idéias em relação uns com os outros através de
aproximações e contigüidades.
A repressão ampara-se na autoridade da lei para legitimar-se. É dessa
forma que nos governos autoritários são fechados os canais democráticos de
785 MAGALHÃES, A. op. cit., 1938. pp. 1-2.
liberdade de expressão, criando-se normas excepcionais de conduta baseadas no
domínio extremado do medo, do silêncio, da ordem e da disciplina786.
O material apreendido pela polícia serviu para três finalidades. Uma delas,
tinha o efeito de moralizar, de disseminar o medo àqueles que praticavam o crime.
Portanto, deveria ser queimado, extinto:
“O Dr. José Francisco, delegado de Vigilancia Geral e Costumes, sabendo que, a mulher Sebastiana Thomazia de Sant’Anna,(...) vinha secretamente explorando á baixa magia, deu instrucções (...) para proceder diligencias a respeito.(...), foi á casa indicada, revistada, com a presença do commissario Ildefonso, pelo investigador 242 e guarda civil 271, sendo encontrado occulto sob a cama da catimbozeira, dentro de uma lata, envolta num sacco, um morcêgo e varios apetrechos empregados na baixa magia. Todo o “material” foi levado para a Delegacia de Vigilancia Geral e Costumes, afim de ser incinerado787.”
Essa medida moralizadora deveria servir também como efeito de apagamento.
Queimar os utensílios da prática indesejada, a prova de que o crime existia,
significava, também, queimar a própria prática. Materializava, assim, a extinção
dos afro-umbandistas da sociedade.
Uma outra quantidade de utensílios foi, por ordem da polícia, para o Museu
da Diretoria de Higiene Mental do Serviço de Assistência a Psicopatas788.
Posteriormente, devido à grande quantidade de material apreendido, algumas
peças foram levadas ao Museu do Estado, onde foi instalado em suas
dependências um Peji789. Em 1940, o Governo do Estado criou, no Museu, um
Centro de Estudos de Arte Retrospectiva e Histórica, como demonstra a
reportagem da Folha da Manhã:
786 SILVA, M. G. op. cit., 1996. p. 87. 787 Outra casa de magia fechada pela polícia. Folha da Manhã , Recife, 24 out. 1940. p. 4. Edição das 16 horas. 788 Cf. ALMEIDA, M. G. A. A. op. cit., 1995. 789 Altar dos Orixás, onde ficam os símbolos, assentamentos e comidas do mesmo. In: CACCIATORE, O.G. PEJI. In: CACCIATORE, O.G. op. cit., 1988. p. 209.
“Esta folha já se tem referido por varias vezes ao Museu do Estado,(...) alem da finalidade profundamente educativa, o Museu é uma das grandes iniciativas do Estado Novo(...) o Museu é uma fonte de informações preciosas, capaz de fornecer amplo material para estudos e pesquisas(...) Quando as autoridades fizeram cessar as actividades dos cultos Afro-brasileiros neste Estado, todo o material usado nos Xangôs, nos terreiros foi recolhido pacientemente.Não houve destruição. Evitou-se a propagação de crendices de effeitos nocivos e explorações policiaveis. Mas o que merecia estudo e o que confiava em documentario ficou guardado. No salão destinado a esse fim os estudiosos encontrarão as vestes, os idolos e objectos do culto africano790.”
A exposição de objetos do “catimbó” serve não só para materializar o crime,
mas também para atualizar a crença no feitiço, sendo provas concretas de que
essas práticas existem na sociedade e devem ser dizimadas. Servem, também,
para estudo, já que é uma prática doentia, nociva. A Ciência deverá, através da
sua imparcialidade, corroborar a violência do Estado.
Outra parte do material foi doada à Missão de Pesquisa Folclórica do Norte
e Nordeste, em 1938. Intermediados por Ascenso Ferreira e Waldemar de
Oliveira, obtiveram não só a oportunidade de coletar a documentação etnográfica
do culto de Xangô791, como também foi concedido o direito de resgatar da
Delegacia de Investigação e Capturas qualquer dos objetos ligado ao culto,
recolhidos durante as diligências diárias da Polícia. Ao todo, a Missão resgatou em
torno de 491 peças que, depois de catalogadas, foram enviadas a São Paulo792.
Portanto, os utensílios poderiam, também, ser expostos como parte do
folclore negro. Eram a materialização do passado de uma cultura “primitiva” e
“atrasada” que, depois de “dizimada”, já não mais apresenta riscos para o
“engradecimento” de uma nação.
A prática da repressão busca adquirir legitimidade, no exterior, divulgando
crimes de “macumba” nos Estados Unidos:
790 Centro de estudos e arte retrospectiva e História. O museu de Pernambuco creado pelo governo do Estado. Folha da Manhã, Recife, 12 mai. 1940. p. 07. Edição Matutina. 791 Forma pernambucana de denominar as religiões de origem africana. 792 CARLINI, Alvaro. Cante lá que Gravam Cá: Mario de Andrade e a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938. 1994. Dissertação. (Mestrado em História) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,1994.
"Barba Azul, negro, Harris, natural dos Estados Unidos e de trinta e seis annos, foi preso sob accusação de ter assassinado cinco mulheres durante as orgias do culto voodista. O criminoso será levado para Highland Park no Michigan, afim de ser processado tendo desistido dos requisitos da extradição. Durante dois annos foi organizada uma caçada contra elle, tanto nos Estados Unidos como no Canadá.(...) O criminoso entregava-se a pratica do "voodismo" com os pretos das Indias Occidentais793.”
O fato de o indivíduo ter cometido o assassinato é colocado como algo
natural para aqueles que praticam o culto. Imediatamente o caso é associado à
prática do “catimbó”, em Pernambuco. Se lá eles matam as pessoas, por que não
o farão aqui? O próprio culto que o criminoso praticava, somado a sua cor negra,
era suficiente para fazer a correlação com a práticas religiosas afro-umbandistas
em Pernambuco.
A repressão às religiões afro-brasileiras materializou-se numa prática
violenta que marcou toda uma geração de adeptos dessa forma de religiosidade.
Porém, a repressão não barrou a manutenção e o desenvolvimento da crença, ao
contrário, fez com que esta buscasse outras formas para sobreviver. Nesses
termos, o poder, como assinala Foucault, não é uma propriedade ou coisa natural,
ele envolve formas distintas, relações heterogêneas, em contínuo deslocamento.
Ele está em toda parte, não porque englobe tudo, e sim porque provém de todos
os lugares794.
Essa perseguição foi além das fronteiras religiosas. Ela também tinha
relação com os valores racistas evidenciados pela interventoria de Agamenon
Magalhães. O preconceito contra o negro evidenciava-se em vários aspectos que
diziam respeito à cultura africana, vista como primitiva, atrasada, provinciana.
793 Os crimes de “Macumba” nos Estados Unidos. Folha da Manhã , Recife, 22 dez. 1938. p. 8. Edição das 16 horas. 794Cf. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 1996.
Dessa forma, no próximo capítulo, buscaremos resgatar as estratégias e
lutas por parte dos integrantes dessa religião em face das práticas repressivas do
Estado e da Igreja.
CAPITULO VIII
OS AFRO-UMBANDISTAS E A RESISTÊNCIA
“Dentro do amplo quadro dos contatos de raças e culturas que caracterizaram a formação das sociedades atuais na América, a persistência de crenças e rituais das religiões negras(...)tem sido objeto do particular interesse de um bom número de investigadores795.”
O psiquiatra e antropólogo René Ribeiro, no texto acima, aponta a
preocupação, por parte dos estudiosos, de entender a influência das religiões de
origem africana na América.
Em conseqüência do processo de escravidão, a religião dos negros passou
a ser vista pelas elites brasileiras como estratégia de resistência social e cultural
ao sistema de dominação existente. Nascem, a partir daí, os mecanismos para
justificar as técnicas de repressão, ou seja, da mesma forma que se justificava a
escravidão do negro, pela sua condição de bárbaro, justificava-se a perseguição a
suas religiões, por serem fetichistas, animistas, contribuindo para a propagação de
elementos dissolventes da sociedade.
No processo de legitimação e de integração social dessas práticas
religiosas, a resistência às tentativas oficiais de destruí-las se manifesta, em
diversas ocasiões e sob diferentes formas. Inúmeros atos de rebeldia estão
registrados na Delegacia de Ordem Política e Social, o que leva a acreditar que os
afro-umbandistas não foram agentes passivos diante do autoritarismo que marcou
o período. Desse modo, o objetivo deste capítulo é analisar as estratégias e lutas,
por parte desses grupos, no sentido de fazer circular na sociedade suas práticas,
durante os anos trinta e quarenta. Também, através do depoimento oral de uma
mãe-de-santo, procuramos resgatar algumas marcas de memória de uma
protagonista desta história.
795 RIBEIRO, R. Antropologia da Religião e outros ensaios. Recife:FUNDAJ/Massangana, 1982. p. 123.
Além de René Ribeiro, muitos estudiosos se preocuparam em explicar as
estratégias de resistência dessas práticas religiosas. Waldemar Valente796, ao
tratar do assunto, atribui, como estratégia dos negros, o fenômeno do sincretismo
religioso. Para o autor, os negros recebiam a religião católica como uma espécie
de anteparo para esconder ou disfarçar, conscientemente, os seus próprios
conceitos e rituais religiosos797.
Sendo assim, a oposição que separou negros e brancos, a partir do regime
escravista, nunca excluiu o intercâmbio cultural e religioso. Ao mesmo tempo que
os negros tentavam resistir aos padrões religiosos católicos, tomando como base
as suas crenças, foram obrigados a adaptar essas crenças ao ambiente natural,
social e político em que viviam. Resistência e assimilação são, portanto,
fenômenos interligados, nesse caso específico.
Gonçalves Fernandes fala da presença dos xangôs disfarçados em blocos
carnavalescos, escapando, dessa forma, à ação repressiva da polícia:
“ Da pressão da policia resultou camuflarem de sociedade carnavalesca e centro espírita os terreiros afro-pernambucanos. Maracatu e Centro Espírita aparece de tal maneira que fez desconfiar798.”
Os relatos de disfarce dos Terreiros de Xangô em Centros de Espiritismo também
eram comuns nas matérias veiculadas pelo jornal Folha da Manhã:
“Muitos macumbeiros, cartomantes, disfarçados de espíritas tentam se instalar no Recife. A Delegacia de Vigilância e Capturas não os deixou em paz799.”
Dessa forma, alguns terreiros de Xangô funcionavam utilizando o nome de centros
espíritas, como: Centro Espírita Paz, Luz, Amor e Caridade800, Centro Espírita
796 VALENTE, W. Sincretismo religioso Afro-brasileiro. São Paulo: Nacional, 1955. 797 VALENTE, W. op. cit., 1955. pp.114-15. 798 FERNANDES, G. Xangôs do Nordeste: investigações sobre os cultos negro-fetichistas do Recife. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937. p. 10. 799 A “Macumba” a serviço do futebol. Folha da Manhã, Recife, 31 jul. 1944. p. 4. Edição Matutina. 800 Aprehensão de objectos de baixo espiritismo. Folha da Manhã , Recife, 25 ago. 1938. p. 12. Edição Matutina.
João Baptista – verdade e luz801, Centro Espírita Boa Fraternidade dos Reis802,
entre outros.
As sociedades espíritas, por sua vez, temendo perseguições da Secretaria
de Segurança Pública, passam a demarcar quais Centros estariam dentro dos
princípios Kardecistas em suas práticas mediúnica-doutrinárias e quais aqueles
que estariam fugindo a esses padrões803. Assim, os adeptos das religiões afro-
umbandistas eram duplamente perseguidos. Do lado do espiritismo Kardecista, os
orixás africanos apresentavam pouca elevação espiritual; do lado cristão católico,
a religião afro é sacrílega e demoníaca.
Porém, as estratégias de preservação da religiosidade afro-brasileira, no
decorrer da sua história, não se resumem ao fenômeno do sincretismo e da
camuflagem. Muitos foram os mecanismos de resistência; algumas táticas
acionadas por esses grupos chegam a ser criativas e fantásticas. Diante da
preocupação das elites intelectuais, nos anos trinta e quarenta, de estudar essas
formas de religiosidade; e da cruzada empreendida pelo Estado, juntamente com
a Igreja Católica, para acabar de vez com a existência dessas religiões, as
estratégias de resistência adquirem uma nova visibilidade.
Em qualquer contexto marcado por alguma forma de dominação social, é
possível localizar conjuntos de significados extrínsecos ao modo de pensar
disseminado pelos membros da elite. Em sendo assim, no nosso entender, os
afro-umbandistas estabeleceram uma identidade própria que se contrapõe às
pressões dos grupos dominantes.
A violência da repressão não impediu o seu funcionamento. Mesmo depois
de presos, uma vez postos em liberdade, os adeptos insistem na manutenção de
suas crenças:
801 PERNAMBUCO. Museu do Estado. Coleção Culto Afro-Brasileiro: um testemunho do Xangô pernambucano. Recife, 1983. p. 106. 802 Folha da Manhã, Recife, 27 ago. 1938. p.2. Edição das 16 horas. 803 SA, V. B. Religião e Poder: introdução à história do espiritismo em Pernambuco. 2001. Tese (Doutorado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001.
“Insistindo na reincidência, foi agora novamente detido e processado pela mesma autoridade que acaba de enviar os autos ao juiz da Comarca804.”
Apesar da imposição, as idéias e os modelos de conduta circulam, são
apropriados, sofrem intervenções e são ressignificados de diversas formas. São
recebidos com submissão e passividade, em alguns casos, e com sublevações e
revoltas em outros. O Estado e a Igreja, com suas práticas repressivas e punitivas,
acabaram por contribuir para a preservação dessas práticas religiosas. Neste caso
o poder repressivo gerou saber, criou estratégias de lutas.
A repressão cultural e religiosa exige submissão. Ela estabelece também
uma rede de relações tensas que se aprofundam dentro da sociedade. Cria
circularidade nos focos de instabilidade. Se uns se submetem ao poder repressor,
outros tentam inverter essa relação de força. Foi o caso da “Baiana do Pina” ao
enxotar um pesquisador dos seus domínios:
“Não nos foi possível pesquizar melhor a liturgia fetichista desta gente, visto que fomos interrompidos até quando anotávamos as divindades. A mãe do terreiro, já avançada em idade, como a principio frisamos, se levantou da cadeira, procurando arrebatar-nos os croquis que havíamos composto, dizendo que fossemos para a Abyssinia, sua terra natal se quizessemos aprender a fazer xangô805.”
Este relato de Vicente Lima, membro do Centro de Cultura Afro-Brasileiro,
faz ver que a visita de intelectuais aos terreiros era vista com desconfiança. No
caso acima, a visita de Vicente Lima ao terreiro foi viabilizada pelo técnico do
Serviço de Higiene Mental de Pernambuco, Pedro Cavalcanti. Assim, o acesso
aos terreiros, para a observação dos rituais religiosos, não se dava de forma livre.
A relação de submissão dos praticantes dessa religião não se estabelecia de
forma passiva. Se eram os técnicos e pesquisadores ligados ao Serviço de
Higiene Mental que mediavam, junto à polícia, o funcionamento dos terreiros, os
adeptos do Xangô estabeleciam quem, além deles, poderia assistir a seus rituais. 804 Prisão de catimboseiro. Folha da Manhã , Recife, 21 jul. 1938. p. 8. Edição Matutina. 805 LIMA, V. Xangô. Recife: Empresa Jornal do Commercio, 1937. p. 34.
Dessa forma, o poder circula, produz efeito e, às vezes, é reconduzido pela
posição dos que são dominados:
“São os próprios páis de terreiro que nos dizem: os modernos Babalorixás do Xangô atualizado, com intuito explorativo, pernicioso e ofensivo, afastados de quaisquer fins religiosos, formam crendices sugestivas que atingem a todas as nossas camadas sociais806.”
Da mesma forma que o poder circula, o saber e a cultura também estão em
movimento. Ao acusar os terreiros e os babalorixás “modernos” de disseminarem
“crendices sugestivas” com o objetivo de explorar pessoas “desavisadas”,
apropriam-se do discurso competente do outro para, com ele, participar do saber,
e do poder que perpassam esses dizeres. Ao se apropriarem de uma parcela do
discurso competente, eles o reformulam, de acordo com suas possibilidades, e o
utilizam como legitimador e mantenedor de suas práticas.
Aí se encontra um triplo movimento de resistência. Primeiro, aceitando os
critérios das elites dominantes, aceitam o combate aos curandeiros, tentando
provar que não se encontram entre eles. Segundo, esse processo de distinção
hierarquiza. É utilizado internamente para classificar múltiplos movimentos de
concorrência entre os diferentes grupos na luta por melhores posições no campo
religioso. Em terceiro lugar, passam a se constituir como instâncias que negociam
politicamente com a sociedade o lugar de cada terreiro, em particular, como
religião ou como caso de polícia. Ou seja, transformaram-se em mediadores
políticos que atuam no espaço de negociação existente em torno da liberdade de
culto.
Dois anos após Vicente Lima ter publicado o relato acerca do terreiro da
Baiana do Pina, esta aparece nos jornais com uma postura mais humilde de
alguém que já sofreu retaliações pela prática da religião “proibida”:
“A negra africana já não corta a palestra as risadas do principio. A sua voz é grave. Fala de crença. Adianta os seus principios, a sua fé. Não foi uma “xangozeira” nem nunca procurou fazer o mal. Apenas – declara – é uma sacerdotisa do
806 LIMA, V. op. cit., 1937. pp. 45-46.
culto negro. Ama o Brasil como qualquer brasileiro. Identificou-se com a terra e com o povo. Não quer shair do Brasil. Mas tem um desgosto muito profundo. Tão profundo que lhe está fazendo mal á vida.... Implora ao reporter para enterceder junto ás autoridades afim de que lhes sejam descobridos os santos que trouxe da Abyssinia e que estão actualmente no museu do Estado. É essa a sua única tristeza numa vida de cento e dezoito annos807.”
Para a Baiana do Pina, ser xangozeira significava praticar o mal, operar no
plano da religião proibida. Ser sacerdotisa do culto negro conduz a um outro tipo
de prática. Aquela que faria o bem, portanto, não deveria ser proibida. A acusação
de xangozeira, que usa a boa fé dos incautos, em oposição à categoria de
sacerdotisa do culto negro, coloca as pessoas e os grupos em posições
diferenciadas, hierarquiza-os.
As notícias veiculadas pelo jornal acerca da guerra empreendida pela
polícia, no combate ao catimbó, demonstram que, apesar da repressão, essas
práticas continuaram operantes:
“Apesar da campanha enérgica que a policia vem fazendo aos catimbozeiros e exploradores do xangô, vez por outra, apparece um desses elementos tentando burlar as determinações prohibitivas das autoridades policiaes808.” “Não obstante, esses cavadores recuam apparentemente, para vez por outra ressurgindo nas suas práticas condenáveis, apesar das penalidades que lhes são aplicadas pela polícia809.”
Assim, os praticantes das religiões afro-umbandistas tentavam se adequar
às condições políticas impostas, não de forma passiva, e sim se apropriando dos
mecanismos que a própria prática repressiva permitia. Propagar pelos jornais o
807 A única tristeza na vida da macróbia. Folha da Manhã, Recife, 9 dez. 1939. p. 1. Edição das 16 horas. 808 Uma catimbozeira capturada. Folha da Manhã, Recife, 29 abr., 1939. p. 7.Edição Matutina. 809 Repressão aos catimbozeiros. Folha da Manhã, Recife, 17 out. 1939. p. 6. Edição Matutina.
extermínio da crença também demonstra que ela ainda está presente, existe,
circula:
“O Pina era apenas, mocambos, peixe, xangô. Ali ouve um dos cultos mais desenvolvidos da cidade.negra velha, que não se curvou com o peso dos seu cento e dezoito annos, era a dona da praia. O seu canto se ouvia longe. Impunha nos moradores um mixto de respeito e de medo. Eram temidas as suas rezas e os seus canticos.(...) Mas tudo passou. Isso, hoje, serve apenas como material de estudos sociológicos mercê da louvavel repressão movida pela policia contra os exploradores810.” “O FUNDÃO antigamente foi zona perigosa. Serviu por muito tempo de campo de acção as doutrinas estravagantes. O “xangô”, o baixo espiritismo, os templos de adoração á natureza, tiveram no Fundão essa epoca de fastigio. Havia o celebre “xangô” de “Maria Gorda”, que encheu o suburbio de supertições de lendas811(...)”
Os artigos veiculados pela imprensa, que notificavam a continuidade das
diligências da polícia do Recife contra os rituais de religiosidade afro-brasileira,
demonstram uma outra estratégia de resistência por parte dos seus integrantes:
“(...) Essa campanha recrudesceu depois que a delegacia se certificou de que os infractores, principalmente os adeptos da seita africana, se mostravam dispostos a burlar as determinações contidas na circular do Secretário de Segurança, prohibindo seu funccionamento. Verificou a polícia que os xangôs, depois da referida prohibição, passaram a funccionar em sedes diferentes e a altas horas da noite, sem o característico toque dos tambores.(...)812”
Os adeptos dessa religião, mesmo sendo perseguidos e caçados
brutalmente, continuavam suas práticas, encontrando maneiras de escapar das
rondas policiais. Surge, assim, uma nova forma litúrgica, o xangô rezado baixo, 810 Não há mais “Xangô” nem “Pae de Santo” (outra paisagem apresenta o Pina). Folha da Manhã , Recife, 30 mar. 1939. pp. 1 e 3. Edição das 16 horas. 811 Cahiu do “altar” o ultimo “orixá”.Folha da Manhã, Recife, 15 abr. 1939. p.8. Edição das 16 horas. 812 Fechados pela policia vários xangôs. Diário de Pernambuco, Recife, 13 fev. 1938. p. 7.
em que a música desaparece, celebrando-se as cerimônias unicamente através
de orações sussurradas a altas horas da madrugada:
“A secção de Costumes, apezar da madrugada invernosa de hoje, effetuou pelos seus investigadores uma importante diligência na Estrada dos Remédios prendendo a celebre catimbozeira africana Joaquina Francisca dos Santos(...)813”
Os integrantes da Missão Folclórica relataram o caso do pai-de-santo
Apolinário Gomes da Mota que, durante esse período, mantinha em sua casa,
ocultas aos olhos da polícia, todas as atividades rituais do Xangô. Luiz Saia
registrou, em sua caderneta de campo, croquis de detalhes interiores e uma planta
baixa da casa do referido pai-de-santo. Nesses croquis, pode-se verificar que, na
parte posterior da residência, estão delimitados o terreiro, o espaço destinado aos
instrumentos do culto e, em sala reservada, o altar armado (peji)814.
A estratégia de defesa desses grupos vai consistir no reforço dessa prática,
por todos os meios possíveis. Várias eram as possibilidades. Os disfarces eram
comuns Antonio da Costa utilizou-se do artifício de falso policial:
“O delegado de São Lourenço remeteu hontem, a juízo, o inquérito procedido contra o curandeiro e falso policial Antonio da Costa. Este individuo fazendo-se passar por curandeiro e autoridade propoz-se a tratar a saúde do velho José Ferreira do Monte(...)que se encontrava seriamente doente(...) o curandeiro foi preso e processado(...)815”
Da mesma forma que a polícia encontra informantes entre os moradores
dos lugares onde eram comuns essas práticas religiosas, os “catimbozeiros”
também têm os seus informantes:
“O comissário Ildefonso, da Secção de Costumes foi informado dos processos usados por Maria
813 Catimbozeira, negra e forte ainda aos 72 annos de idade. Folha da Manhã , Recife, 18 mar. 1938. p. 5. Edição das 16 horas. 814 CARLINI, A. Cante Lá que Gravam Cá: Mário de Andrade e a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938. 1994. Dissertação (Dissertação em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,1994. 815 Processado um Curandeiro. Folha da Manhã, Recife,19 fev. 1941. p. 4. Edição Matutina.
Anunciada para explorar a crença pública e resolveu dar antehontem, uma busca no templo o qual não estava funcionando em virtude da filha de santo ter sido antes informada816.”
Se a maior parte dos adeptos, ao serem surpreendidos pela polícia,
negavam as suas práticas, existiam aqueles que a afirmavam:
“Deante da visita inesperada da policia, parou de comer, levantou-se e entregou os pontos. E elle próprio foi entregando a policia uma variada collecção de objectos do culto: uma boneca preta com olhos de vidro e cabelos negros, uma grande figa encarnada(...) José Almeida foi intimado a comparecer á polícia, onde será identificado817.”
A aceitação da imposição não implicava necessariamente resignação e
conformismo pela descoberta da prática ilegal. Também existiam casos de
resistência direta por parte dos praticantes. A “catimbozeira” Maria Baiana, de
Casa Amarela, resistiu á prisão e tratou mal a polícia:
“A catimbozeira recebeu com hostilidade a policia, mimoseando-a com várias insultos(...) ao chegar a Delegacia de Investigações, ás 10 horas(...) ainda se insurgiu contra a policia, usando, em altas vozes, de termos descortezes818”
Também ocorriam reações inesperadas por parte dos adeptos. O caso do
“Catimbozeiro Pereira” surpreende a polícia:
“Foi preso e logo conduzido á Delegacia de Investigações e Capturas. Entrou na sala, olhou de lado, cuspiu e sentou-se. Perto, um visitante desconhecido vendo o homem fez na testa o signal da cruz, para o que désse e viésse. O commissário Maranhão, jeitosamente, mas sem medo nenhum, começou a interrogál-o Em derredor outros auxiliares da polícia ouviam o catimbozeiro, cautelosamente. Repentinamente.....Repentinamente Antonio Pereira da Silva recebe uma inesperada e imprudente visita: um espírito. Sim, senhor: - em semelhante hora, o mallogrado Pereira já preso ainda por cima receber aquillo! É espírito ruim, barulhento,
816 Combatendo os catimbozeiros. Folha da Manhã, Recife, 13 dez. 1938. p. 12. Edição Matutina. 817 Bruxaria! Vassoura, chifres de boi e aguardente. Folha da Manhã, Recife, 24 fev. 1938. p. 4. Edição das 16 horas. 818 A Catimboseira tratou mal a policia. Folha da Manhã, Recife, 6 mai. 1938. p. 7. Edição das 16 horas.
que passou a gritar, gesticular, bater com os pés, tudo dentro do corpo mofino do cidadão Antonio Pereira da Silva! A brincadeira durou assim cinco minutos de ruidoso espectaculo. O commissário Maranhão, sem perder a serenidade esperou, esperou..... Por fim, por sua conta e risco, receitou a medicação infallivel para o caso: metteu o catimbozeiro no xadrez, com espirito, gritaria e tudo.Pouco tempo depois o homem recobrara a calma, livre do zombeteiro e atribulado espírito que, aproveitando um descuido do plantão fugira por uma brecha de telhado..819”(Grifos nossos).
O que chama a atenção na notícia, além de o pai-de-santo ter incorporado
um espírito, é a forma como o fato foi relatado. O texto possibilita a leitura da
resistência, da revolta e da não-aceitação de um estado de coisas que leva o pai-
de-santo Pereira a não consentir na dominação. No entanto, sugere, também, um
certo receio da polícia em autuar um religioso que demonstra poderes. A
reportagem faz questão de frisar que “o comissário Maranhão” não teve medo
algum de tratar com o criminoso. Assim, se é necessário informar que “este”
comissário não tem medo, é porque existem, mesmo na polícia, aqueles que o
têm. Esse dado leva a pensar que a polícia participa da crença de que há pessoas
que recebem “espíritos ruins” e, por isso, produzem o mal.
O fato de o criminoso, logo em seguida, conseguir executar a fuga pela
brecha do telhado demonstra que a ação da polícia não é tão eficaz quanto
aparenta. Ela também se descuida, comete falhas, suas instalações são precárias.
Soma-se a isso a astúcia do pai-de-santo.
Ao implementar uma caçada cega às práticas religiosas afro-brasileiras, a
polícia muitas vezes chegava a gerar a reação da população que colocava notas
no jornal em defesa de algum preso, como:
“Estamos informando que a lavadeira Odete Alves da Silva, Conhecida por Baiana e residente á rua da Macaiba, distrito de Casa Amarela, não é catimboseira conforme denuncia levada a polícia820.”
819 Um espírito ruim no corpo do catimbozeiro Pereira. Folha da Manhã , Recife, 21 mar. 1938. p. 1. Edição das 16 horas. 820 Não é catimboseira. Folha da Manhã , Recife, 21 fev. 1945. p. 9. Edição Matutina.
O fato de Odete Alves da Silva ter provocado a suspeita do aparato policial
aponta para a questão de que pequenos sinais, tidos como suspeitos, eram
considerados suficientes pela polícia para prender um cidadão. Em relação a
Odete, por ser lavadeira, provavelmente negra ou mulata, residente em Casa
Amarela, distrito onde a presença das práticas religiosas afro-umbandistas era
comum, seguramente esses dados fazem com que ela seja vista com suspeita
pelos policiais. Num contexto em que alguém é colocado sob uma firme pressão
criminalizadora, toda e qualquer manifestação de sua parte vale como indício de
culpa.
Aceitação, resistência, consenso, dissenso representam formas, estratégias
de resistência desses grupos.
Assim que é possível, bus cam proteção legal e jurídica. O mesmo
Apolinário Gomes da Mota, apontado pelos integrantes da Missão Folclórica como
um dos pais-de-santo que atuavam na clandestinidade, depois de baixada a
Portaria proibindo o funcionamento dessas práticas, aparece, juntamente com
outros pais e mães-de-santo, em 1967, remetendo um abaixo-assinado,
solicitando à Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco a equiparação dos
terreiros de Xangô às outras religiões em funcionamento no Estado:
“Nós abaixo assinados, chefes e presidentes das associações que cultuam a seita africana, nesta capital, conhecida por "Candomblê" (...) viemos a essa Egrégia Assembléia, baseados no que preceitua o Art. n.º141 da Constituição Federal, parágrafos 11 e 12, (...) Conforme dizemos acima, solicitar que nos sejam extensivas as mesmas prerrogativas e os mesmos direitos que têm, as demais religiões, nas quais a polícia não tem intervenção direta e nem as consideram como diversões públicas.(...) Frisamos aos Exmos. Srs. Deputados, que atualmente, todas as sociedades acima descritas, são constituidas de gente humilde, mas tendo em vista o maior nível social e moral dos seus componentes, que no seu todo coletivo somente benéficos-resultados poderão trazer a vida do próprio Estado.
Nessas condições não viemos pedir nenhuma ajuda financeira, apenas que nos sejam dados o direito de reunião e das festas comemorativas do nosso culto, nas mesmas bases que têm as religiões: católica, espírita e protestante, as quais realizam os seus rituais e suas festas litúrgicas, sem a obrigação sistemática de pedidos a polícia para esse fim, como vem acontecendo com o
culto africano, numa evidente diminuição de direitos que a própria Constituição garante. Com a obtenção desta facilidade que a própria constituição Federal permite, ficariamos incentivados e obrigados moralmente, e em um futuro próximo, organizarmos uma federeção que superentenda e fiscalize os maus adeptos e exploradores do povo que comumente aparecem em toda forma de religião.(...) Firmemente confiamos no senso de democracia e de amor a liberdade que se constituem os componentes dessa augusta e douta Assembléia, nos firmamos agradecidos.
Recife, em Leovigiedo Guildes Alcoforado, Benedito dos Santos Leal, Carlos Josê Pereira, Josefina Guedes Santos, Manoel Dutra dos Martins, Eustáquio de almeida, Manoel Mariano da Silva, Luiza Ferreira Pimentel, Iracema Leocardia Ferreira, Josefa Alcantara Fransilina, Apolináro Gomes da Mota, Severino Bezerra de Souza, Josefa Domingos Neto, Joana Batista dos Santos, Sebastiana Pascoal do Nascimento e Lídia Alves da Silva821.”(Grifos nossos)
Ao empreenderem a campanha em prol da legalização da religião, utilizam
como argumento principal a Constituição Federal. Portanto, a mesma justificativa
legal utilizada em 1938, pelas autoridades do Estado Novo, em Pernambuco, para
decretar a sua ilegalidade. Dessa forma, parece que o círculo de trocas culturais
ligava os grupos dominantes aos subalternos sem a necessidade de mediadores,
correndo ao largo dos andarilhos, bastardos, charlatães, catimbozeiros e
aventureiros que vagavam por toda parte. Assim, caberia pensar o tecido da
sociedade complexa como algo extremamente intricado. Trata-se de reconhecer a
presença de diversos sistemas cognitivos entrecortados por influências recíprocas
num estado de permanente conflito822.
Além da legalidade, o grupo também reivindica equiparação com outras
religiões. Porém, ao criticarem a diminuição dos seus direitos enquanto grupo
religioso, logo em seguida prometem criar Federações para fiscalização da
religião. Dessa forma, utilizam-se, mais uma vez, das práticas e dos saberes
oficiais: existem maus e bons adeptos, e os maus adeptos devem permanecer
821 APEJE/DOPS. Seita Africana. Recife, 1967. Fundo SSP nº 7856. 822 No sentido atribuído por Mikhail Bakhtin, em BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rebelais. 4. ed. São Paulo:Hucitec; Brasília: editora da Universidade de Brasília, 1999.
reprimidos. Cabe aos integrantes dessas religiões fazer essa distinção, apropriar-
se do saber que, décadas antes, era conferido ao médico psiquiatra.
Os afro-umbandistas também tinham, em uma parcela da intelectualidade
de Pernambuco, aliados no incentivo do funcionamento de suas crenças. O
discurso do jornalista Odorico Tavares, na sessão de encerramento da semana do
homem de cor, expressa sua indignação pela proibição da prática:
“Hoje, os negros do Recife não teem mais seus candomblés livres. Hoje, suas poderosas vozes de pais e maes de santo, se se fazem ouvir, são abafadas, temendo os boleguins sinistros, que se aproximam nas sombras da noite. Hoje, os negros do Recife sabem que não podem rir com esta grande e esplêndida vitalidade de uma raça tão rica e poderosa, porque seu riso é suspeito, seu canto não agrada, não aos brancos, mas aos malaios que teem, no momento, o poder policial nas mãos. As vozes do Camdomblé, dos maracatús, são vozes proibidas823. “
Esses intelectuais simpáticos à causa da religião dos negros a percebiam
como folclore, coleção de curiosidades. Distinguiam nas idéias, nas crenças, nas
visões de mundo desses grupos religiosos nada mais do que um acúmulo
desordenado de fragmentos de idéias, crenças, elaborados por uma classe
inferior.
As práticas promovidas pelos intelectuais eugenistas (que queriam os
terreiros funcionando para estudar a saúde mental) e culturalistas (que se
interessavam pelo funcionamento dos terreiros como contributo para a construção
da identidade nacional), no início dos anos trinta, produziu no outro uma
apropriação dos dois discursos através da idéia de tradição. Esta apropriação
serviu para a manutenção da prática, para a construção do saber e para o
exercício do jogo do poder entre os praticantes dessa forma de religiosidade.
Assim, as estratégias de resistência foram montadas de modo tenaz e
contínuo. Os mecanismos reguladores, criados pelo Estado e pela Igreja, ao
tentarem extirpar a crença da sociedade, foram fundamentais para sua
823 APEJE/DOPS. Protuário de Jornal. Recife, 1944. Fundo SSP nº 31.225.
manutenção. Se no plano econômico e político um determinado grupo social pode
se impor aos demais, o mesmo não ocorre na esfera da cultura. Manipular algo
tão abstrato como a moral, as crenças, os valores e os comportamentos dos
indivíduos sempre será mais difícil do que impor o extermínio de uma prática.
A resistência da religião afro-umbandista, numa sociedade que tentava
apagá-la, embora nenhuma tentativa de sublevação coletiva tenha ocorrido,
demonstra que seus praticantes não só imprimiram sua marca na sociedade, mas
também transformaram relações. Dessa forma, podemos afirmar que, entre as
práticas autoritárias e repressivas dos intelectuais, do Estado e da Igreja, nos anos
trinta e quarenta, e os afro-umbandistas, existiu um relacionamento circular feito
de influências recíprocas, que se moviam de baixo para cima, bem como de cima
para baixo, no sentido definido por Mikhail Bakhtin824: a circularidade da cultura.
Essas práticas repressivas, principalmente as vivenciadas durante o Estado
Novo, deixaram marcas na memória dos praticantes dessa religiosidade. Dessa
forma, enveredaremos, aqui, pelas marcas de memória de uma mãe-de-santo no
sentido de entendermos como a mesma elaborou, atribuiu significado, resistiu à
repressão institucionalizada pela interventoria de Agamenon Magalhães.
Marcas de Memória de uma Protagonista desta História
A entrevista do resgate da história de vida foi realizada com Elizabeth de
França Ferreira (Mãe Beta), mãe-de-santo de 92 anos, que vivenciou a época da
perseguição e do fechamento dos terreiros de Xangô, na interventoria de
Agamenon Magalhães em Pernambuco, durante o Estado Novo.
O debate historiográfico, no que concerne à historia oral e à memória, vem
concentrando sua atenção na história política e cultural. Para Michel Pollak825, a
história está se transformando em histórias parciais e plurais, até mesmo sob o
aspecto da cronologia. Para o autor, não se podem distinguir cronologias falsas e
824 BAKHTIN, M. op. cit., 1999. 825 POLLAK, M. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos 10 Teoria e História, Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas.1992.
verdadeiras, o que existe são cronologias plurais em função de um modo de
construção.
Na concepção de Marieta Ferreira, o que ocorreu foi a valorização do papel
do sujeito na história, permitindo que a história oral ocupe novo espaço nos
debates historiográficos atuais. Ainda segundo a autora, o que tem sido chamado
de história oral permite detectar duas abordagens distintas: A primeira utiliza a
denominação história oral e trabalha com os depoimentos orais como instrumento
para preencher lacunas deixadas pelas fontes escritas. A segunda abordagem
privilegia o estudo das representações e atribui um papel central às relações entre
memória e história. Nessa vertente, a subjetividade e as deformações do
depoimento oral não são vistas como elementos negativos para o uso da história
oral. Essa perspectiva tem sido adotada para o estudo das elites políticas e
também para o estudo das representações das camadas populares826.
A concepção de Pollak827 se enquadra nessa primeira abordagem. Para o
autor, a memória é socialmente construída, como também toda documentação.
Desse modo, não há diferença fundamental entre fonte escrita e fonte oral.
No que se refere à segunda vertente, os estudos sobre memória e história,
Pierre Nora828 distingue a memória da história. Para o autor a memória é a vida
sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente
evolução, vulnerável a todos os usos e manipulações. É um fenômeno sempre
atual, um elo vivo no eterno presente. A história é uma representação do passado.
É a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A
memória é absoluta e a história só conhece o relativo, já que é operação
intelectual e demanda análise do discurso crítico.
Nessa mesma perspectiva de discussão sobre memória e história, Maurice
Halbwachs829 também estabelece uma nítida distinção entre memória e história.
Primeiramente, o autor ressalta que existe uma diferença entre memória histórica
826FERREIRA, M. História oral: Um inventário das Diferenças.Entrevistas: abordagens e usos da história oral . Rio de Janeiro:Editora da Fundação Getúlio Vargas,1994. 827 POLLAK, M. op.cit, 1992 828 NORA, P. Entre Memória e História: A Problemática dos Lugares. Projeto História. São Paulo (10) dez 1993. pp. 7-28 829 HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990
e memória coletiva. A primeira suporia a reconstrução dos dados fornecidos pelo
presente da vida social, projetando-o no passado e reinventando-o; e a segunda, a
memória coletiva, recompõe magicamente o passado. Entre as duas dimensões
da consciência coletiva e individual, desenvolveram-se as diversas formas de
memória, que mudam conforme os objetivos que elas implicam. Nesse sentido, a
memória coletiva não se confundiria com a história, sendo o termo "memória
histórica" quase um absurdo, já que associa dois conceitos que se excluem830.
Para Halbwachs, a história começa somente no ponto em que acaba a
tradição, momento em que se apaga a memória social. O autor distingue a
memória coletiva da história pelo menos em dois aspectos: a memória é múltipla e
a história é única. A memória só retém do passado aquilo que ainda está vivo na
consciência do grupo; a história divide a seqüência do século em períodos, coloca-
se fora dos grupos e acima deles831.
Antônio Montenegro832 concorda com a distinção de Halbwachs entre
memória e história, porém entende estes termos como inseparáveis quando define
a história como:
“...uma construção que ao resgatar o passado, aponta para formas de explicação do presente e projeta o futuro. Este operar encontraria em cada indivíduo um processo anterior semelhante através da memória.”833
Para o autor, o resgate da memória coletiva e individual se projeta como
uma possibilidade de trazer para o historiador o registro da própria reação vivida
aos acontecimentos e fatos históricos. Nesse sentido, sua proposta abarca uma
perspectiva abrangente na medida em que o resgate da memória traria um outro
significado dos acontecimentos e fatos históricos que complementariam a fonte
830 HALBWACHS, M. op.cit., 1990. 831 HALBWACHS, M. op.cit., 1990. 832MONTENEGRO, A. T. Memória e história. Idéias (o tempo e o cotidiano na História). São Paulo:FDE. Diretoria técnica,1993 833MONTENEGRO, A. T. op.cit., 1993, p 14.
impressa com a intenção de enriquecer as diversas formas de esculpir o fazer
historiográfico834.
Urge destacar que nem a idéia de Halbwachs, que dissocia a memória da
história, nem tampouco o ponto de vista de Pollak, que não diferencia a fonte oral
da fonte escrita, foram adotados na abordagem metodológica deste estudo.
Compreendemos aqui que o ofício do historiador é analisar a representação do
que está registrado. Dessa forma, as bases metodológicas assumidas para
análise da entrevista são as utilizadas por Montenegro835, que entende o registro
da memória como sendo e não sendo história. Para o autor, a memória é história
porque se constrói em cima do registro, mas não o é porque sofre o processo de
seletividade e de elaboração interior. A memória é o como as pessoas viveram o
momento histórico, como o sentiram, como o experimentaram836.
Ao transcrever a entrevista na íntegra, optamos, posteriormente, por editá-
la, organizando a narrativa em blocos temáticos, tentando na medida do possível,
retirar as perguntas e repetições e dar forma lógica ao pensamento da narradora.
A intenção foi produzir uma forma de texto escrito a partir da transcrição oral.
Pensamos que a entrevista organizada dessa maneira facilitará sua
utilização. Vale salientar que consideramos como documento original a fita
gravada. Esta poderá ser utilizada futuramente por outros pesquisadores. Aqui
também é importante ressaltar que a divulgação da entrevista foi devidamente
autorizada através de uma carta de cessão de direitos sobre o depoimento oral.
O relato de Mãe Beta nem sempre obedeceu a uma cronologia, nem
tampouco sua narrativa foi um discurso lógico e coerente. As suas marcas de
memória se apresentaram de forma fragmentada, percorrendo trilhas que
perpassavam por variadas experiências de vida, ressaltando mais e, muitas vezes,
repetindo constantemente determinados acontecimentos.
Toda entrevista, como todo documento, oferece ao pesquisador diversos
pontos de abordagem, e é evidente que não se pode tratar de todos eles em um
834 MONTENEGRO, A. T. op. cit., 1993 835MONTENEGRO, A. T.História Oral e Memórias: A cultura Popular revisitada. São Paulo:Contexto, 1992. 836 MONTENEGRO, A. T.. op. cit.,1992.
único texto837. Nesse sentido esse trabalho foi elaborado após a seleção de alguns
temas que foram abordados na entrevista, como: Mãe Beta fala de si; a
perseguição e a prisão; e, por fim, Sobre Agamenon, Getúlio, Carlos de Lima
Cavalcanti. Esses fragmentos permitem identificar a imagem que a narradora
construiu de si, do grupo e do espaço social que ocupa. É importante lembrar que
esta análise nem de longe esgota as possibilidades de estudo dessa entrevista.
Logo que iniciamos a conversa percebemos que estávamos diante de uma
narradora exemplar. Lembramos de Eclea Bosi, em seu livro sobre a lembrança
de velhos, quando diz que o narrador é um mestre do ofício que conhece seu
mister838. Essa capacidade de narrar é demonstrada logo nos primeiros momentos
da entrevista.
"Eu, por exemplo, meu estado civil é solteira, mas eu vivi só com um homem que foi o pai de minha filha. Eu vivi com ele 27 anos. Todo mundo me considerou casada. O pai de Marta. E ela é registrada, ela tem certidão e identidade. É professora. Eu não sei a idade de Marta, mas ela ainda não tem 50 anos, não. Meu genro é advogado. Quando eu me consagrei, foi no ano em que Carlos de Lima Cavalcanti era governador. Foi no ano que ele caiu e Agamenon assumiu o governo como interventor. No primeiro ano da interventoria dele, que ele perseguiu a gente. Eu tinha um ano de consagrada. Eu sei da época minha. Quem souber a época da interventoria de Agamenon e do governo de Carlos Lima... Que eu fui consagrada no governo de Carlos de Lima Cavalcanti. Quando fez um ano de eu consagrada, aí o governo de Carlos de Lima caiu e entrou Agamenon pela primeira vez. Quer dizer que eu tenho mais de sessenta anos de consagrada! Eu fui Yalorixá muito nova. Eu não tinha 30 anos ainda, eu era tida como a Yalorixá mais nova; me chamavam a caçula."
Nesse fragmento de memória em que Mãe Beta fala de si, reflete a história
numa perspectiva cotidiana, relembrada pelos acontecimentos da mocidade,
intercalados pelas suas marcas de memória da vida pública. Como lembra Verena
Alberti, uma entrevista de história oral não apenas fornece relatos de ações
passadas, mas é ela mesma um conjunto de ações que visam a determinados
efeitos, que se pretende que ajam sobre o interlocutor na própria entrevista, e
837 ALBERTI, V. "Idéias" e "fatos" na entrevista de Afonso Arinos de Mello Franco. Entre - Vistas: abordagens e usos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994. p.34. 838 BOSI, E. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
efeitos outros, que repercutam, para além da relação de entrevista, no público que
a consulta e, eventualmente, na sociedade como um todo839.
Assim, Mãe Beta não só se preocupa em demarcar, através da história
oficial, um acontecimento de extrema importância em sua vida, sua iniciação como
mãe-de-santo, como também se preocupa em legitimar sua importância dentro da
comunidade afro-brasileira pelo seu tempo de iniciada. Portanto, o ano de 1937 é
marcado, na memória de nossa narradora, por três acontecimentos: o afastamento
de Carlos de Lima Cavalcanti; o início da interventoria de Agamenon; e sua
iniciação/consagração dentro das religiões afro-brasileiras. Esses acontecimentos
são, para mãe Beta, quase que indissociáveis.
A imagem de Agamenon como grande perseguidor das religiões afro-
brasileiras se encontra fortemente presente em todo o depoimento. Algumas
passagens da narrativa de Mãe Beta pouco se diferenciam do que está
documentado em outras fontes e estão fortemente marcadas em sua memória.
"...e da perseguição de Agamenon, eu lembro de tudo! Ele perseguiu muitos terreiros. Ele foi muito ruim pra nós, Agamenon Magalhães. Eu mesmo fui perseguida. Era novata, né? Ainda fui presa, eu fui. Fui! Fui pro Brasil Novo. Eu só, não, eu e tudo quanto era Yalorixá e Babalorixá.. e eu fui presa. Agora só passei horas. Eu tinha muitas amizades com promotor. Eu tinha mais de um cliente promotor que gostava muito de mim, e me soltava. Me soltaram imediatamente. Eu fui presa e eu fiquei... questão de horas. Por que o diretor do gabinete de identificação era meu amigo. Me conheceu menina. Era João Murilo, Dr. Murilo, conhecido demais. Era amicíssimo de minha família e meu. O que me prendeu mesmo, mandou, mas por ordem do governador que mandou perseguir, foi Fábio Correia. Dr. Fábio. Chamavam ele Dr. Flavinho, Fabinho. Filho de Fábio Correia velho. Fábio Correia velho foi meu cliente; o pai dele e as tias dele, tudo se consultava comigo. E ele me prendeu. Dr. Fábio Correia mandou me buscar no Tintureiro. Mas eu não fui no Tintureiro. Defronte a minha casa morava o sargento da polícia. Sargento Adalberto. Ele me... Eu morava numa casa ...eu ainda tenho essa casa lá ... e existe a casa do sargento Adalberto defronte. O sargento hoje já é morto, a mulher dele, tudo é morto. Ele, então, ele me conhecia e sabia que eu não fazia nada demais ali, a não ser dar consulta pura e simples. Sim! Aí o sargento Adalberto, quando viu o carro da polícia lá, o tintureiro, aí ele veio. Ele conheceu, né? Era da polícia. Era muito conhecido
839 ALBERTI, V. op. cit., 1994. p.34.
na polícia. Ele aí foi dizer aos investigadores que vieram me buscar que ele ia alugar um táxi: - E o Sr. Vai. Vai comigo e ela. Ela não vai no tintureiro. - Aí ele...aí o investigador deixou. Eles me botaram no Brasil Novo, e quando foi mais tarde, entrou um monte de rapariga, mulher de vida fácil. A maior parte eu conhecia que era a maioria, minhas clientes. Ah! Mas me chamavam Minha Velha. Eu era mais moça do que elas. - Minha velha, o que foi, que crime a senhora praticou para tá aqui? Eu disse: - Não sei! Eu não matei ninguém, não roubei...Aí elas...Aí elas muito aperreada, cada uma sabia que eu tinha mediunidade, né? Aí eu, dentro do Brasil, fiz consulta pra elas todinhas. E elas se deram... Eu disse as que iam sair logo, as que iam demorar mais presas, eu... elas disseram: e a Sra.? Eu disse: - Daqui a pouco eu devo sair. Porque o espírito me disse que eu ia demorar pouco. Aí, nisso, quando elas estavam conversando comigo, as mulher do Brasil Novo, aí tinha um...aí abriu a grade. O guarda disse: - Dona Elizabeth. - Eu disse: - Pronto! - Aí ele disse ...ali defronte eu vi uma cela, tinha um rapaz branco. Tinha a impressão que tava preso. Aí ele disse: - aquele rapaz, a senhora conhece?- Eu disse: - Não Sr., conheço não senhor! Aí ele disse: - É por que ele tá mandando um almoço pra Sra.. Foi! Não! Um jantar, né? Aí eu disse: - Não sei por que ele tá mandando não. Aí eu abri a bandeja, nem vi a conta! Eu não sei quem foi aquele homem que mandou aquela comida pra mim. Mas, menina, foi uma bandeja importante! Com tudo quanto foi de comida tinha: sobremesa, sorvete. Eu não comi nada! Aí as mulheres que tavam com fome: - A Sra. permite que a gente se sirva do seu jantar? Eu disse: - Pois Não! Botei a bandeja lá, elas se serviram, eu não comi nada. Depois a minha mãe foi me ver. Minha mãe chorava muito. – Mamãe, eu não cometi crime não, mamãe. Não vou ficar com vergonha de tá presa não. Nunca me envergonhei de ser presa por causa da seita africana! Até hoje! Nunca tive vergonha! Sinto prazer de ter servido e de continuar servindo.
Como lembra Eclea Bosi, se a memória da infância e dos primeiros
contatos com o mundo se aproxima, pela sua força e espontaneidade, da pura
evocação, a lembrança dos fatos públicos acusa, muitas vezes, um pronunciado
sabor de convenção. Leitura social do passado com os olhos do presente, o seu
teor ideológico se torna mais visível. Eclea lembra também que o sujeito não se
contenta em narrar como testemunha histórica neutra. Ele quer também julgar,
marcando bem o lado em que estava naquela altura da história e reafirmando sua
posição ou matizando-a840. É o que parece transparecer no discurso de Mãe Beta.
Ela não só reafirma sua posição em relação à religião que pratica, como também
840 BOSI, E. op. cit., 1994. p.453
enaltece sua própria conduta diante da repressão, transformando a si mesma em
mártir.
Neste relato também existe um aspecto interessante a ser problematizado:
o momento em que nossa narradora se coloca em confronto direto com o seu
algoz, no caso, Fábio Correia. Nesse momento, Mãe Beta matiza sua posição
diante do acontecimento:
E eu disse a Fábio Correia! Ele...Ele depois de ter me soltado, porque ele não pôde me prender muito tempo, aí ele... ele mandou me chamar no outro dia, e eu fui. Tava à mesa, lá no gabinete dele, lá com aquele pessoal que tava cada um nas bancas...aí ele mandou me... como é que bota pra fazer... o número... foi na folha corrida da polícia, ele aí botou. Mandou me botar. Mas quando ele falou comigo... ele aí veio dizer: Olhe, se a Sra....aí ele sabia quem eu era. Soube de quem eu era filha. Disse assim: Se a Sra. continuar, se você continuar com terreiro, eu mando lhe buscar, você vai daqui presa, vem lá de Tejipió, presa, até aqui pro Brasil Novo. Aí eu disse: Disso eu não tenho medo, Dr. Fábio. Eu sou cidadã brasileira. Não sou assassina, não sou ladrona, nunca cometi crime nenhum. E o que eu faço é a religião em que eu acredito. E o Sr., nem ninguém no mundo, pode tirar, me tirar dessa religião. Eu tô nela até o dia deu morrer. A única coisa que pode o Sr. fazer é mandar me matar! A única coisa! Mas eu deixar, absolutamente! E nem tenho medo do Sr. mandar me buscar. Eu vim de Tejipió a pé, a pé até aqui na delegacia. Isso eu não tenho medo que o Sr. não pode fazer! O Sr. não pode fazer isso! Nem comigo, nem com ninguém! Eu não sou escrava! Nem nunca fui escrava! Eu sou uma cidadã brasileira! Eu disse a ele! Ele olhou assim pra mim... bateu na mesa com força! Por que eu tinha dito isso. Mas eu disse! Aí eu não quis mas....porque ficou com medo...mas eu podia ter dito: Seu pai freqüenta o meu terreiro, suas tias, mas eu não disse! Não denunciei nem as tias. Nem... agora... O professor Ferreira Lima disse a ele: - Olhe, Dona Elisabeth foi muito decente com você, Fábio. Por que ela podia dizer que Fábio Correia, seu pai, vai muito na casa dela. E suas tias que são dona...são fazendeiras, levam muito presente pra ela e tudo! - Mas eu não disse. Por que eu ia denunciar as tias dele na frente de todo mundo?! Não tinham culpa, né? E eu, não... Eu respeitei.
Alessandro Portelli841, em seu artigo Sonhos Ucrônicos: memórias e
possíveis mundos dos trabalhadores, afirma que a narrativa depende de fatores
sociais e coletivos. Muitas vezes o depoimento resulta menos de uma imperfeita
rememoração que de uma imaginação criativa. É a forma narrativa do sonho de
841 PORTELLI, A. Sonhos Ucrônicos: Memórias e Possíveis Mundos dos Trabalhadores. Projeto História. São Paulo (10) dez 1993. pp.41-58.
uma vida pessoal e de uma diferente história coletiva. Para o autor, a imaginação
ucrônica resguarda a preciosa consciência da injustiça do mundo existente, mas
fornece os meios de resignação e reconciliação.842 Mais que isso, a narrativa de
Mãe Beta, sempre atenta aos acontecimentos presentes, reconstrói sua
experiência diante da autoridade, colocando-se como cidadã.
Relembrar o passado implica reconstruir o caráter contraditório da memória
no sentido em que esta reflete as experiências humanas vivenciadas e
interiorizadas. Relembrar também coloca em relevo a força das marcas das
histórias que se tornaram hegemônicas. É o caso da imagem de Getúlio Vargas
como o grande aliado dos trabalhadores. Essa marca é parte importante da nossa
memória coletiva. Assim, a imagem de Getúlio ficou gravada na memória de mãe
Beta:
Eu sempre vi se elogiar muito Getúlio Vargas. Ele governou o Brasil 14 anos. Foi! Mas ele foi muito bom, principalmente pra classe...foi ele que fez a lei dos trabalhadores. Muito importante. É. Ele foi... Getúlio Vargas foi... ele ganhou... ele ganhou por uma, como é? Como é que diz? Houve uma revolução e ele ganhou. É. As forças armadas pediram, né? E ele ganhou. Como é o nome? Como é que chama? Quando há uma revolução e ganha? Até meu genro disse... Eu me lembro da época que ele ganhou...aí ele foi presidente 14 anos. Ele foi muito bom presidente. Ele foi um ótimo presidente.
Mas, ao lado da imagem de Getúlio como um bom governante para os
trabalhadores brasileiros, encontra-se nas reminiscências de nossa narradora a
imagem de Agamenon Magalhães, para Pernambuco, como o grande perseguidor.
Fez miséria com a gente, Agamenon. Tirou as coisas da gente, tirou as
coisas do terreiro, fechou os terreiros, foi! No primeiro ano em que ele foi interventor. Ele foi a Segunda vez e a terceira vez, ele teve três vezes. Nunca me esqueci do que ele fez no primeiro ano. Agamenon fez miséria com a gente, Ele custou muito a permitir a reabertura. Porque ele achava que a religião, que a igreja africana, não era uma religião. Ainda hoje em dia tem muita gente que diz. Porque tem, a gente tem compromisso de sacrifício de animais, né? Agora, Carlos de Lima Cavalcanti, não foi um ruim governo, mas não foi dos melhores também. E se dava muita nota dele. E Agamenon, que era
842 Ucronia é definida no texto de Portelli como sendo uma espécie de universo paralelo no qual se cogita sobre o desdobramento de um evento histórico que não se efetuou..
interventor dele, perseguiu. Ele perseguia todo mundo. Eu fui do Governo de Carlos de Lima Cavalcanti, ele saiu escondido. Disseram que ele saiu vestido de mulher, pelos fundos do palácio. Foi ...ele foi botado pra fora do governo e Agamenon assumiu pela primeira interventoria.
Como afirma Antônio Montenegro, o exemplo de Getúlio para o país, como
o de Agamenon para Pernambuco, aponta que o lugar do poder é, em princípio,
capaz de produzir marcas que fixam para a população formas de compreender o
presente e projetar o futuro843. Assim, as marcas de memória de Mãe Beta sobre
Getúlio aparecem dissociadas da imagem que tem de Agamenon. Enquanto
Vargas se apresenta como um personagem distante que é relembrado através da
memória coletiva, Agamenon Magalhães parece fazer parte do cotidiano. Essas
marcas não são importante apenas pela sua proximidade física, enquanto parte de
um poder local, mas, e principalmente, porque interferiram diretamente nos
acontecimentos da vida privada da nossa narradora.
O trabalho de história oral com as camadas populares tem a possibilidade
de estabelecer um campo documental de uma população que tem, em grande
parte, deixado escassos registros do seu sentir, pensar e fazer historicamente844.
Assim, através desses fragmentos de memória, tivemos condições de conhecer
outros significados dos acontecimentos e fatos que constroem a historiografia
pernambucana. A forma como Mãe Beta sentiu e experimentou esse passado
explica o seu viver, constrói o seu saber e justifica as suas ações.
843 MONTENEGRO, A. T. História Oral e Memória: A cultura popular revisitada. - São Paulo: Contexto, 1992. 844 MONTENEGRO.A T. et all. Senhores da Rua: o imaginário dos meninos e meninas de (na) rua da cidade do Rio Branco: Globo, 1996. p.165.
FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS*
1.1- Fontes Primárias Manuscritas (Citadas)
IEB Correspondência. Doc 34: de Luiz Saia para Mário de Andrade, Recife, 16 de fevereiro de 1938.
1.2- Fontes Primárias Impressas (Citadas)
APEJE/ SDI 1931/32 - Acto nº 143 de 09/02/1931 do Interventor Federal. Decretos, Actos e Notas do Governo provisório, ano de 1931. p. 58-59 – Imprensa Oficial – PE 1931/32. 1939 - O Governo de Agamenon Magalhães e a Secretaria de Segurança Pública, 1939. Exposição Nacional de PE - 1940 - Recife -Imprensa Oficial - 1939. 1940 - MAGALHÃES, A. RELATÓRIO Apresentado ao Exmo. Snr. Presidente da República em virtude do Art. 46 do Decreto-Lei Federal nº 1202. Recife: Imprensa Oficial, 1940. APEJE/DOPS 1933 - Recortes de Jornais. O Estado. 03 nov. 1933. Fundo SSP n.º 27.545. 1934 - Jornal do Povo . 17 out. 1934. p 01. Fundo SSP 27902. 1934 - Prontuário Funcional. 1º Congresso Afro-Brasileiro. Jornal do Povo, 19 out.1934. Fundo SSP, n. 27902. 1937 - Portarias. Recife, 20 de janeiro de 1937. Fundo SSP nº 27880. 1938- Federação Espírita Pernambucana, Cruzada Espírita. 1938. Fundo SSP nº 337. 1944 - Prontuário de Jornal. Recife, 1944.Fundo SSP nº 31.225. 1967 - Seita Africana. Recife, 1967. Fundo SSP nº 7856.
* Antecede as fontes primárias o local onde foi coletada a documentação. O significado das siglas utilizadas se encontram nas primeiras páginas desta Tese.
Jornais: APEJE – Setor de Periódicos Diário do Estado As Realizações do Estado Novo em Pernambuco: Exposição dos trabalhos da Secretaria de Segurança Pública. Diário do Estado, Recife, 10 nov.1938. p. 18. (edição especial) Folha do Sertão Interventor Etelvino Lins. Folha do Sertão, Sertânea, 10 jun. 1945. Diário da Manhã O Brasil está desde hontem, sob o regime de Nova Constituição. Diário da Manhã. Recife, 11 nov. 1937. p. 01. O Ministério demitiu-se collectivamente. Diário da Manhã, Recife, 12 nov. 1937. p. 01. Falando à Nação. Diário da Manhã, Recife, 13 nov. 1937. p. 03. Luiigi Federzoni exalta a contribuição do fascismo nos acontecimentos que transformaram constitucionalmente o Brasil. Diário da Manhã, Recife, 14 nov. 1937. p. 01. O Presidente Getúlio Vargas fala aos Jornalistas Estrangeiros sobre a Nova Constituição e a Orientação da Política Exterior. Diário da Manhã, Recife, 17 nov. 1937. p. 01. Nomeado para pasta do trabalho o ex-senador cearense Waldemar Falcão. Diário de Manhã. Recife, 26 nov. 1937. p. 01. Jornal Pequeno Pernambuco tem novo governo. Jornal Pequeno, Recife, 11 nov. 1937. p. 01. O Brasil, sob o Estado Novo, marcha tranqüilamente para o seu grande destino. Jornal Pequeno. Recife, 13 nov. 1937. p. 03. Promoção ao generalata de Azambuja Vilanova. Jornal Pequeno. Recife, 16 nov. 1937. p.01. Jornal do Commercio
Novo Regime Político no País. Jornal do Commercio. Recife, 11. nov.1937. p. 03. Uma Proclamação dirigida ao povo pelo novo governo. Jornal do Commercio, Recife, 11 nov. 1937. p. 03. Decretada, hontem, a intervenção federal em Pernambuco. Jornal do Commercio, Recife, 11 nov. 1937. p. 03. Penhor de Segurança e Ordem. Jornal do Commercio, Recife, 11 nov. 1937. p. 14. A Constituição por que se regerá o Estado Novo do Brasil. Jornal do Commercio, Recife,12 nov. 1937. p.04. Novo Regime é instituído no Brasil. Jornal do Commercio, Recife, 12 nov. 1937. p. 05. Inicia-se agora, para o Brasil o Regime da decisão e da clareza. Jornal do Commercio, Recife,13 nov. 1937. p. 03. Novo Regime é Instituído no Brasil. Jornal do Commercio, Recife,17 nov. 1937. p. 03. A parada cívica levada a efeito, hontem, pela agremiação carnavalesca. Jornal do Commercio, Recife, 19 nov. 1937. p. 03 . Exonerado do Comando da Sétima Região Militar e nomeado commandante da Sétima Brigada de Infantaria, o General Azambuja Vilanova. Jornal do Commercio. Recife, 27 nov. 1937. p. 03. Próxima chegada a esta capital, do novo Interventor Federal no Estado. Jornal do Comercio. Recife, 28 nov. 1937. p. 03. Folha da Manhã Edição matutina A polícia no 2º districto combate o baixo espiritismo. Folha da Manhã, Recife, 28 out. 1937. p. 06. Secção O Dia Policial. Edição Matutina. CAMPELLO, José. Xangôs. Folha da Manhã, Recife, 27 jan. 1938. p.3. Edição Matutina. MAGALHÃES, A. A Preguiça e o Tempo. Folha da Manhã, Recife, 22 mar. 1938. p. 02. Edição Matutina.
Contra o baixo espiritismo. Folha da Manhã, Recife, 08 mai. 1938. p. 08. Edição Matutina. Prisão de Catimboseiros. Folha da Manhã, Recife, 03 jul. 1938. p. 08. Secção O Dia Policial. Edição Matutina. Contra o baixo espiritismo. Folha da Manhã, Recife, 06 jul. 1938. p. 08 Edição Matutina. Campanha contra catimbozeiros. Folha da Manhã, Recife, 09 jul. 1938. p. 08. Edição Matutina. Combatendo o catimbó. Folha da Manhã, Recife, 10 jul. 1938. p. 08. Edição Matutina. Prisão de catimboseiro. Folha da Manhã, Recife, 21 jul. 1938. p. 8. Edição Matutina. Contra o baixo espiritismo. Folha da Manhã, Recife, 27 jul. 1938. p.12. Edição Matutina. Contra o espiritismo e a falsa medicina. Folha da Manhã, Recife, 17 ago. 1938. p. 12. Edição Matutina. Contra o espiritismo. Folha da Manhã, Recife, 19 ago. 1938. p. 12. Edição Matutina. Contra os catimbozeiros. Folha da Manhã, Recife, 23 ago. 1938. p. 12. Edição Matutina. Aprehensão de objectos de baixo espiritismo. Folha da Manhã, Recife, 25 ago. 1938. p. 12. Edição Matutina. RAMOS, Arthur. Habitação e Higiene Mental .Folha da Manhã, Recife, 31. ago. 1938. p. 10. Edição Matutina. Guerra aos catimboseiros. Folha da Manhã, Recife, 18 set.1938. p. 10. Edição Matutina. Repressão aos catimbozeiros. Folha da Manhã, Recife, 17 out. 1938. p. 06. Edição Matutina. MAGALHÃES, A. (Agamenon Magalhães) Para Folha da Manhã e a Radio Clube de Pernambuco. Folha da Manhã, Recife, 11 dez. 1938. p.1- 2. Edição Matutina. Combatendo os catimbozeiros. Folha da Manhã, Recife, 13 dez. 1938. p. 12. Edição Matutina.
Combate aos catimboseiros. Folha da Manhã, Recife, 05 fev. 1939. p.12. Secção O Dia Policial. Edição Matutina. Repressão ao baixo espiritismo. Folha da Manhã, Recife, 09 fev. 1939. p.12. Secção O Dia Policial. Edição Matutina. Contra o baixo espiritismo. Folha da Manhã, Recife, 12 fev. 1939. p. 12. Edição Matutina. Rainha do Maracatu. Folha da Manhã, Recife, 23 fev. 1939. p 01. Edição Matutina. Combate a magia negra: mais um culto devassado pela polícia. Folha da Manhã , Recife, 14 mar. 1939. p. 12. Edição Matutina. Combatendo os feitiços. Folha da Manhã, Recife, 20 mar. 1939. p. 12. Edição Matutina. Uma catimbozeira capturada. Folha da Manhã, Recife, 29 abr. 1939. p. 7.Edição Matutina. Contra a baixa magia. Folha da Manhã, Recife, 03 jun. 1939. p. 12. Edição Matutina. Diligência contra catimbozeiros. Folha da Manhã, Recife, 29 set. 1939. p. 12. Edição Matutina. Repressão aos catimbozeiros. Folha da Manhã, Recife, 17 out. 1939. p. 6. Edição Matutina. Occorencias policiaes em Casa Amarela durante o mês de outubro. Folha da Manhã, Recife, 11 nov. 1939. p. 6.Secção O Dia Policial, Edição Matutina. Occorencias no Districto de Casa Amarela em novembro próximo findo. Folha da Manhã, Recife, 06 dez. 1939. p. 7. Secção O Dia Policial, Edição Matutina. Centro de Estudos e Arte retrospectiva e história. O museu de Pernambuco creado pelo governo do Estado. Folha da Manhã, Recife, 12 mai. 1940. p. 07. Edição Matutina. A delegacia de vigilância combate a baixa magia. Folha da Manhã, Recife, 24 out. 1940. p. 05. Edição Matutina. Contra a atividade dos catimbozeiros. Folha da Manhã, Recife, 06 nov. 1940. p. 05. Edição Matutina.
Processado um Curandeiro. Folha da Manhã, Recife,19 fev. 1941. p. 4. Edição Matutina. Combatendo os exploradores da crendice popular. Folha da Manhã, Recife, 10 abr. 1943. p.07. Edição Matutina. Repressão ao baixo-espiritismo. Folha da Manhã, Recife, 08 mai. 1943. p.07; Edição Matutina. Repressão ao baixo espiritismo. Folha da Manhã, Recife, 03 set. 1943. p.07; Edição Matutina. Repressão ao baixo espiritismo. Folha da Manhã, Recife, 02 nov. 1943. p. 07. Edição Matutina. A “Macumba” a serviço do futebol. Folha da Manhã, Recife, 31 jul. 1944. p. 4. Edição Matutina. Não é catimboseira. Folha da Manhã , Recife, 21 fev. 1945. p. 9. Edição Matutina. Folha da Manhã Edição das 16 horas Bruxaria! Vassoura, chifres de boi e aguardente. Folha da Manhã, Recife, 24 fev. 1938. p. 4. Edição das 16 horas. Processada uma catimbozeira. Folha da Manhã, Recife, 01 mar. 1938. p. 06. Edição das 16 horas. Verificada Irregularidades no Serviço de Assistência a Psicopatas. Folha da Manhã, Recife, 03 mar. 1938. p. 04. Edição das 16 horas. A Macumba dentro da noite: a policia apprehendeu vasto material de catimbó. Folha da Manhã, Recife, 12 mar. 1938. p.07. Edição das 16 horas. Catimbozeira, negra e forte ainda aos 72 annos de idade. Folha da Manhã, Recife, 18 mar. 1938. p. 5. Edição das 16 horas. Um Espírito Ruim no Corpo do Catimbozeiro Pereira. Folha da Manhã, Recife, 21 mar. 1938. p. 01 e 08. Edição das 16 horas. O teu cabello não nega... Folha da Manhã, Recife, 22 mar. 1938. p. 1. Edição das 16 horas. A Catimboseira tratou mal a policia. Folha da Manhã , Recife, 6 mai. 1938. p. 7. Edição das 16 horas.
Ação criminosa dos catimbozeiros: o operário faleceu depois de banhos de ervas. Folha da Manhã, Recife, 01 jul. 1938. p. 08. Edição das 16 horas. Como se conta a história. Folha da Manhã, Recife, 28 jul. 1938. Edição das 16 horas, p. 02. Entre os objectos de catimbó a policia apreendeu um caixão de defunto. Folha da Manhã, Recife, 06 ago. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. Utensílios de catimbó. Folha da Manhã, Recife, 13 ago. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. Na casa do catimbozeiro existia strychinina. Folha da Manhã, Recife, 17 ago. 1938. p.02. Secção Casos de Polícia.Edição das 16 horas. Folha da Manhã, Recife, 17 ago. 1938. p. 12. Secção Casos de Polícia. Edição das 16 horas. Prisão de catimbozeiro. Folha da Manhã , Recife, 19 ago. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. Preso quando se entregava ao catimbó. Folha da Manhã, Recife, 21 ago. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. Apreensão de objectos de baixo espiritismo. Folha da Manhã, Recife, 25 ago. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. Na casa do catimbozeiro havia arma de fogo. Folha da Manhã, Recife, 26 ago. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. A Regulação dos Centros Espíritas. Folha da Manhã, Recife, 27 ago. 1938. p. 2. Edição das 16 horas. Prisão de exploradores do espiritismo. Folha da Manhã, Recife, 28 ago. 1938. p. 10. Edição das 16 horas. Prisão de catimbozeiros e apreensão de material. Folha da Manhã, Recife, 29 ago. 1938. p.07. Edição das 16 horas. Prisão de catimbozeiros e apreensão de material. Folha da Manhã, Recife, 03 set. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. Utensílios de catimbó. Folha da Manhã, Recife, 06 set. 1938. p. 12. Edição das 16 horas. Objetos de espiritismo apreendidos. Folha da Manhã, Recife, 13 set. 1938. p. 12. Edição das 16 horas.
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Cahiu do “altar” o ultimo “orixá”. Folha da Manhã, Recife, 15 abr. 1939. p.8. Edição das 16 horas. Uma catimbozeira capturada. Folha da Manhã, Recife, 29 abr. 1939. p.07. Edição das 16 horas. A única tristeza na vida da macróbia. Folha da Manhã, Recife, 9 dez. 1939. p. 1. Edição das 16 horas. Centro de estudos e arte retrospectiva e História. O museu de Pernambuco creado pelo governo do Estado. Folha da Manhã, Recife, 12 mai. 1940. p. 07. Edição das 16 horas. Outra casa de magia fechada pela polícia. Folha da Manhã, Recife, 24 out. 1940. p. 4. Edição das 16 horas. Apprehensão de objectos de “catimbó” pela delegacia de vigilância. Folha da Manhã, Recife, 25 out. 1940. p. 05. Edição das 16 horas. Processado um curandeiro. Folha da Manhã, Recife, 19 fev. 1941. p. 04. Edição das 16 horas. Cercado pela polícia um mocambo em plena sessão. Folha da Manhã, Recife, 10 abr. 1943. p. 07. Edição das 16 horas. Ação contra os catimbozeiros. Folha da Manhã, Recife, 30 jul. 1944. Edição das 16 horas. Não se iludam com o comunista Gilberto Freire. Folha da Manhã. Recife, 26 nov. 1945. p. 14 e 16. Edição das 16 horas. Diário de Pernambuco FUNDAJ- Setor de microfilmagem Primeiro Congresso Afro-Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife, 07 set. 1934. p.04 FREITAS JR., Octavio. O Brasil e o Negro. Diário de Pernambuco, Recife, 07 nov. 1934.p. 33. 1º Congresso Afro-Brasileiro: o programa e suas reuniões. Diário de Pernambuco, Recife, 09 nov. 1934. p. 01. I Congresso Afro-Brasileiro. Diário de Pernambuco, Recife, 10 nov. 1934. p. 10.
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03-1997.
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APEJE – DOPS
NOME DO DOC. Individuais datiloscópicas de prontuários que foram incendiados FUNDO SSP N.º 29160 DATA: 08/31 a 03/57 QUANTIDADE DOC.: 45 D N.º DOC.: 08/31 a 03/57 ASSUNTO:
POLÍCIA DO ESTADO DE PERNAMBUCO GABINETE DE IDENTIFICAÇÃO E ESTATÍSTICA CRIMINAL
PERNAMBUCO, 18 DE NOVEMBRO DE 1937. AO SNR. DELEGADO DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL;
Atendendo á requisição contida no ofício N.º 1168, datado de 17/11/1937 da Delegacia da ordem Política e Social, envio a V.S., a individual Datiloscópica de Dr. Ulysses Pernambucano, que figura no Registro Geral deste Gabinete, sob o número 13892. Saudações. O Diretor. Obs.: assinatura ilegível. No verso.... Sobrenome Pernambucano ___________ Nome Dr. Ulisses___ Vulgo _________________________________ Idade 43__ anos. Nascido em não declarou de ______ de ________ E. Civil casado nacionalidade brasileira natural de Pernambuco _______________ Filiação: Pai Dr. José Antonio Gonçalves Mello Mãe D. Maria da Conceição Mello_________ Instrução sim_______ Profissão médico Residência Rua Cardeal Arco Verde N.º 98 Notas Cromáticas. .. Cor: branca Cabelos: Cast. Cresp. Estatura 1m. e 73 cts. Barba feita bigode raspados Olhos castanhos Preso em ___ de ________ de _____ identificado em 02 de Dezembro de 1935.
(continuação) Sinais Particulares Fotografia tirada em 2 de Dezembro de 1935. ______________________________ ______________________________ ______________________________ Observações 13.175 Mandado apresentar ao Gabinete com Guia da Casa de Detenção, data de 2/ 12/935, a fim de ser identificado por motivo de "Ordem de Segurança Pública", recolhido aquele estabelecimento, em 1/12/935, por determinação do Snr. Capitão ASSINATURA DO IDENTIFICADO Secretário da Segurança Pública.
____________________________________ ____________________________________
____________________________________ ____________________________________
Escriturário_____________________________ REGISTRO GERAL N.º 13892 INDIVIDUAL datiloscópica Série V-1333 Secção V-1122 Obs.: Onde tem assinatura do identificado consta a assinatura de Ulysses Pernambucano. A fotografia foi retirada do documento. Após o N.º do registro geral segue as digitais dos dez dedos da mão.
13.175
APEJE - DOPS NOME DO DOC. Prontuário de Jornal FUNDO SSP N.º 31.359 DATA: 1944-1945-1947-1950 QUANTIDADE DOC. 19 N.º DOC. 130 Jornal: A GAZETA
ANO XXXI RECIFE – SEGUNDA-FEIRA, 26 DE MAIO DE 1947 Nº 790
SANATORIO RECIFE
FUNDADOR: Prof. Ulisses Pernambucano - Catedrático de clínica neurologica da Faculdade de Medicina Casa de Saúde destinada a doentes de clinica medica,
intoxicados, necessitados de repouso, regimes nervosos e mentais
Estabelecimento situado a 5 minutos do centro urbano, em local aprasivel, tranquilo e discreto, compreende: a) um grande prédio de administração com espaçoso refeitorio, salas de estar para doentes, farmácias, laboratório e metabolismo basal; b) um pavilhão para clínica médica, repouso, regimes nervosos, etc.; um pavilhão para doentes mentais agudos (não agitados); c) um pavilhão com salas de exames médicos, diretoria; d) serviço de eletroterapia (eletro-diagnóstico, raios ultra-violetas, infra-vermelhos, ondas ultra-curtas, correntes galvanica, faradica e galvano-faradicas) salas para aplicação de Método de Sakel e Von Mednna, gabinetes de psicologia; e) um pavilhão de isolamento para doentes agitados. Todos os pavilhões dispõem de apartamento de luxo ( sala, quarto, sala de banho), quartos com sala de banho, Quartos para um e dois doentes, banhos mornos,etc. O Sanatório está aberto a todos os médicos que podem dirigir o tratamento de seus doentes. No estabelecimento residem o Diretor e três médicos internos. DIÁRIA A PARTIR DE 22$000 Informações: SANATÓRIO DO RECIFE End. Telegr.: "Sanatório" Rua do Padre Inglês n. 257 - telef. 2072-2662 Recife - Pernambuco - Brasil
APEJE - DOPS NOME DO DOC Individuais datiloscópicas de prontuários que foram incendiados FUNDO SSP N.º 29160 DATA: 08/31 a 03/57 QUANTIDADE DOC: 45 D N.º DOC: sem número ASSUNTO: Obs.: Esses prontuários foram incendiados em data de 13.12.1946, pela portaria N.º 1381, do Exmo. Sr. Secretário da Segurança Pública.
POLÍCIA DO ESTADO DE PERNAMBUCO GABINETE DE IDENTIFICAÇÃO E ESTATÍSTICA CRIMINAL
PERNAMBUCO, 19 DE FEVEREIRODE 1935
AO Snr. Inspetor de Ordem Política e Social
Atendendo á requisição contida no Ofício N.º47 datado de 19/2/1935, da inspectoria de Ordem P. e Social, envio a V. S. a individual Dactiloscópica de Gilberto de Mello Freyre, que figura no Registro Geral deste Gabinete, sob N.º13175. Saudações O Diretor Obs.: Assinatura iligevível. (Folha de verso) Sobrenome de Melo Freyre____________ Nome Gilberto___ Vulgo ___________________________________ Idade 34__ anos. Nascido em não declarou de ______ de ________ E. Civil solteiro nacionalidade brasileira natural de Pernambuco _______________ Filiação: Pai Dr. Alfredo Alves da Silva Freyre Mãe Francisca de Mello Freyre___________ Instrução sim_______ Profissão escritor Residência Av. da Rosa e Silva, 317 Notas Cromáticas. .. Côr branca Cabelos Cast. Lisos Estatura 1m. e 71 cts. Barba feita bigode cast. Esc. Olhos castanhos Preso em ___ de ________ de _____ identificado em 19 de fevereiros de 1935. ____________________________________________________________
ASSUNTO: (Continuação...) Sinais Particulares Fotografia tirada em 19 de fevereiro de 1935. ______________________________ ______________________________ ______________________________ Observações 13.175 Mandado apresentar ao Gabinete com Officio n.47, da inspectoria de Ordem Política e Social, de 19/2/935, afim De ser identificado com a nota de "agitador operario" ASSINATURA DO IDENTIFICADO ____________________________________ ____________________________________ ____________________________________ ____________________________________ Escriturário _______________________________ REGISTRO GERAL N.º13175 INDIVIDUAL Série V-2444 Secção V-4442 Obs. Onde tem assinatura do identificado, consta a assinatura do Gilberto Freyre. A fotografia foi descolada. Após o n.º do registro geral segue as digitais dos dez dedos da mão.
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DELEGACIA DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL
Dr. EDSON MOURYDELEGADO
COMISSÁRIORECIFE-1939
AMARO CARVALHO DE SIQUEIRA
COMISSÁRIO
desenho de f.j. lauria19/03/39