25

Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf
Page 2: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

ABRILCULTURAL

1978

EDITOR: VICTOR CIVITA

OsPensadores

Page 3: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

CIP-Brasil. Catalogação-na-FonteCâmara Brasileira do Livro, SP

Bachelard, Gaston, 1884-1962.BI 19f A filosofia do não ; O novo espírito científico ; A poética

do espaço / Gaston Bachelard ; seleção de textos de José Amé-rico Motta Pessanha ; traduções de Joaquim José Moura Ra-mos . . . (et al.). — São Paulo : Abril Cultural, 1978.

(Os pensadores)

Inclui vida e obra de Bachelard.Bibliografia.

1. Bachelard, Gaston, 1884-1962 2. Ciência - Filosofia 3.Ciência - Metodologia 4. Espaço (Arte) 5. Imaginação 6. PoesiaI. Pessanha, José Américo Mota, 1932- II. Título: A filosofiado não. III. Título: O novo espírito científico. IV. Título: Apoética do espaço. V. Série.

CDD-501-153.3-194-501.8700.1

78-0777 -809.1

índices para catálogo sistemático:1. Ciência : Filosofia 5012. Espaço : Artes 700.13. Filosofia francesa 1944. Filósofos franceses : Biografia e obra 1945. Imaginação : Psicologia 153.36. Metodologia científica 501.87. Poesia : História e crítica 809.1

Page 4: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

C A P I T U L O VII

A miniatura

I

O psicólogo — e afortiori o filósofo — dá pouca atenção às brincadeirascom miniaturas que intervém muitas vezes nos contos de fadas. Para o psicólogo,o escritor se diverte em fabricar casas que cabem num grão de ervilha. É umabsufdo inicial que situa o conto no lugar mais simples da fantasia. Nessa fanta-sia, o escritor não entra realmente no domínio do fantástico. O próprio escritor,quando desenvolve — às vezes de maneira grosseira — sua invenção fácil, nãoacredita, parece, numa realidade psicológica correspondente a tais miniaturas.Falta um pequenino sonho que possa passar do escritor a seu leitor. Para fazercrer, é preciso crer. Valerá a pena, para um filósofo, levantar um problemafenomenológico a propósito dessas miniaturas "literárias", desse objeto tão facil-mente diminuído pelo literato? A consciência — a do escritor, a do leitor — serásinceramente atuante na origem de tais imagens?

É preciso no entanto dar uma certa objetividade a essas imagens, pelo pró-prio fato de que elas recebem a adesão, até mesmo interesse, de numerosos sonha-dores. Pode-se dizer que essas casas em miniatura são objetos falsos providos deuma objetividade psicológica verdadeira. O processo de imaginação é aqui típico.Coloca um problema que é preciso distinguir do problema geral dos similaresgeométricos. O geômetra vê exatamente a mesma coisa em duas figuras seme-lhantes desenhadas em escalas diferentes. Planos de casas em escalas reduzidasnão implicam nenhum dos problemas que derivam de uma filosofia da imagina-ção. Não temos sequer de colocar-nos no plano geral da representação, ainda quenesse plano haja grande interesse em estudar a fenomenologia da semelhança.Nosso estudo deve ser especificado como provindo seguramente da imaginação.

Tudo ficará claro, por exemplo, se, para entrar no domínio em que se imagi-na, nos fizessem saltar no limiar do absurdo. Sigamos por um instante o herói deCharles Nodier, Tesouro das Favas, que entra na caleça da fada. Nessa caleça,que tem o tamanho de um feijão, um jovem entra com seis "litros" de feijões nascostas. O número está claramente em contradição, como a própria grandeza doespaço. Seis mil feijões dentro de um só. Da mesma forma o gordo Michel entrará— com que espanto! — na moradia da Fada das Migalhas, moradia escondidadebaixo de uma moita de capim, e se sentira bem. Ele se instala no lugar. Feliznum pequeno espaço, realiza uma experiência de topofilia. Uma vez no interiorda miniatura, verá seus vastos apartamentos. Descobrirá do interior uma belezainterior. Há nesse ponto uma inversão de perspectiva, inversão fugidia ou mais

Page 5: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

A POÉTICA DO ESPAÇO 295

atraente, segundo o talento do contista e o poder de sonhar do leitor. Muitasvezes desejoso demais de contar agradavelmente, divertido demais para ir aofundo da imaginação, Nodier deixa subsistir racionalizações mal camufladas.Para explicar psicologicamente a entrada numa moradia em miniatura, evocapequenas casas de cartolina das brincadeiras das crianças: as "miniaturas" daimaginação nos levariam simplesmente a uma infância, a participar dos brinque-dos, da realidade do brinquedo.

A imaginação vale mais que isso. De fato, a imaginação miniaturizadora éuma imaginação natural. Aparece em todas as idades do devaneio dos que nasce-ram sonhadores. Precisamente, é preciso separar o que diverte para descobrir aíraízes psicológicas efetivas. Por exemplo, poderemos ler seriamente esta páginade Hermann Hesse publicada na revista Fontaine (n.° 57, pág. 725). Um prisio-neiro pintou na parede de sua cela uma paisagem: um trenzinho entrando notúnel. Quando os carcereiros vêm procurá-lo, ele lhes pede "gentilmente quaespe-rassem um momento para que eu possa entrar no trenzinho da minha tela a fimde verificar aí uma coisa. Como de hábito, eles se puseram a rir, pois me olhavamcomo a um fraco de espírito. Eu me tornei pequenininho. Entrei em meu quadro,subi no trenzinho que se pôs em movimento e desapareceu na escuridão de umpequeno túnel. Por instantes, percebeu-se ainda um pouco de fumaça em flocosque saía pelo buraco arredondado. Depois essa fumaça desapareceu e com ela oquadro e com o quadro minha p e s s o a . . . " Quantas vezes o poeta-pintor, na pri-são, não perfurou as paredes por um túnel! Quantas vezes, curtindo seu sonho,não se evadiu por uma fenda da parede! Para sair da prisão, todos os meios sãoválidos. Precisando-se, o absurdo é capaz de libertar.

Assim, se seguirmos com simpatia o poeta da miniatura, se tornamos o tren-zinho do pintor preso, a contradição geométrica fica redimida, a Representação édominada pela Imaginação. A Representação não é mais que um corpo deexpressões para comunicar aos outros nossas próprias imagens. Na linha de umafilosofia que aceita a imaginação como faculdade de base, pode-se dizer, à manei-ra de Schopenhauer: "O mundo é a minha-imaginação". Possuo melhor o mundona medida em que eu seja hábil em miniaturizá-lo. Mas, fazendo isso, é precisocompreender que na miniatura os valores se condensam e se enriquecem. Nãobasta uma dialética platônica do grande e do pequeno para conhecer as virtudesdinâmicas da miniatura. É preciso ultrapassar a lógica para viver o que há degrande no pequeno.

Estudando alguns exemplos, vamos mostrar que a miniatura literária — istoé, o conjunto das imagens literárias que tratam das inversões da perspectiva dasgrandezas — ativa valores profundos.

II

Tomemos inicialmente um texto de Cyrano de Bergerac citado num belo ar-tigo de Pierre-Maxime Schuhl. Nesse artigo que se intitula: Le thème de Gulliveret le postulai de Laplace (C/tema de Gulliver e o postulado de Laplace), o autor

Page 6: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

296 BACHELARD

é levado a acentuar o caráter Íntelectualista das imagens divertidas de Cyrano deBergerac para aproximar essas idéias de astrônomo matemático.1 3 4

Eis o texto de Cyrano: "Essa maçã é um pequeno universo para si mesma,cuja semente, mais quente que as outras partes, espalha em torno de si o calor queconserva seu globo; e esse germe, sob essa visão, é o pequeno sol desse pequenomundo, que esquenta e alimenta o sal vegetativo dessa pequena massa".

Neste texto, nada desenha, tudo se imagina e a miniatura imaginária é pro-posta para servir de fecho a um valor imaginário. No centro está a semente queé mais quente que toda a maçã. Esse calor condensado, esse cálido bem-estaramado pelos homens, faz que a imagem passe do nível da imagem que se vê parao nível da imagem que se vive. A imaginação se sente reconfortada por essegerme que alimenta um sal vegetativo.13 5 A maçã, a fruta, não é mais o valor pri-meiro. O verdadeiro valor dinâmico é a semente. É a semente que paradoxal-mente^faz a maçã, que lhe dá seus sucos balsâmicos, sua força conservadora. Asemente não nasce apenas em terno berço, sob a proteção da massa da fruta. Elaé que produz o calor vital.

Em tal imaginação, há, diante do espírito de observação, uma inversão total.0 espírito que imagina segue aqui o caminho inverso do espírito que observa. Aimaginação não quer chegar a um diagrama que resuma conhecimentos. Procuraapenas um pretexto para multiplicar as imagens e, quando a imaginação se inte-ressa por uma imagem, majora o valor. Desde o instante em que Cyrano imagi-nasse a Semente-Sol, tinha a convicção de que a semente era um centro de vidae de fogo, em resumo, um valor.

Estamos naturalmente diante de uma imagem excessiva. O elemento queatua em Cyrano, como em muitos autores, como Nodier, a quem evocamos maisacima, prejudica a meditação imaginária. As imagens passam depressa demais,vão longe demais. Mas o psicólogo que leia devagar, o psicólogo que examine asimagens em câmara lenta, passando o tempo que for preciso em cada imagem,experimenta aí uma coalescência de valores sem limites. Os valores se engolfamna miniatura. A miniatura faz sonhar.

Pierre-Maxime Schuhl conclui seu estudo sublinhando nesse exemplo privi-legiado os perigos da imaginação, mãe dos erros e da mentira. Pensamos comoele, mas sonhamos de outra forma ou, mais exatamente, aceitamos reagir às nos-sas leituras como sonhador. É todo o problema da acolhida onírica dos valoresoníricos que é colocado aqui. Já é diminuir e sustar um devaneio o fato de descre-vê-lo objetivamente. Quantos sonhos contados objetivamente que não são maisque onirismo feito pó! Na presença de uma imagem que sonha, é preciso tomá-lacomo um convite a continuar o devaneio que a criou.

O psicólogo da imaginação que define a positividade da imagem pelo dina-mismo do devaneio deve justificar a invenção da imagem. No exemplo que estu-

1 3 4 Journal de Psychologie, abril-junho 1947, pág. 169.1 3 5 Quantas pessoas, depois de terem comido a maçã, atacam a semente ! Refreia-se em sociedade a maniainocente que nos faz catar as sementes para saboreá-las. E quantos pensamentos, quantos sonhos, quando secome o que germina !

Page 7: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

A POÉTICA DO ESPAÇO 297

damos, o problema colocado é absurdo: será a semente o sol da maçã? Usando-sebastantes sonhos — sem dúvida são precisos muitos — acaba-se por tomar estapergunta oniricamente válida. Cyrano de Bergerac não esperou o surrealismopara encarar alegremente perguntas absurdas. No plano da imaginação, ele nãose "enganou", já que a imaginação não se engana nunca, já que a imaginação nãotem que confrontar uma imagem com uma realidade objetiva. É preciso ir além:Cyrano não esperou enganar seu leitor. Sabia bem que o leitor não "cairia nessa".Sempre esperou que encontrasse leitores à altura de suas imaginações. Uma espé-cie de otimismo de ser está patente em toda obra de imaginação. Não foi Gérardde Nerval quem disse (Aurélia, pág. 41): "Creio que a imaginação humana nãoinventou nada que não seja verdadeiro, neste mundo ou nos outros"?

Quando se vive em sua espontaneidade uma imagem como a imagem plane-tária da maçã de Cyrano, compreende-se que essa imagem não é preparada pelospensamentos. Ela não tem nada de comum com imagens que ilustram ou susten-tam idéias científicas. Por exemplo, a imagem planetária do átomo de Bohr é —no pensamento científico, senão até mesmo em algumas pobres e nefastas valori-zações de uma filosofia de vulgarização — um puro esquema sintético de pensa-mentos matemáticos. No átomo planetário de Bohr, o pequeno sol central não équente.

Fazemos esta curta observação para sublinhar a diferença essencial que háentre uma imagem absoluta, que se completa em si mesma, e uma imagem pós-ideativa, que não pretende ser mais que um resumo de pensamentos.

III

Como segundo exemplo de miniatura literária valorizada, sigamos o deva-neio de um botânico. A alma botânica se compraz com a miniatura de ser que éa flor. O botânico utiliza ingenuamente palavras correspondentes a coisas degrandeza corrente para descrever a intimidade floral. Pode-se ler no Dictionnairede Botanique Chrétienne (Dicionário de Botânica Cristã), que é um volumosotomo da Nouvelle Encyclopédie Théologique (Nova Enciclopédia Teológica),editada em 1851, no verbete "Epiaire" esta descrição da flor do Stachys daAlemanha:

"Essas flores criadas em berços de algodão são pequenas, delicadas, cor-de-rosa e brancas. . . Apanho a pequena corola com o véu de longa seda que ac o b r e . . . o lábio inferior da flor é reto e um pouco recurvado; é de um rosa vivointeriormente e coberta no exterior com uma película grossa. Essa planta se enco-lhe toda quando a tocamos. Tem um pequeno costume bem hiperbóreo. Os qua-tro pequenos estames são como escovinhas amarelas". Até aqui, o texto podepassar por objetivo. Mas não demora e passa a sé psicologizar. Progressivamente,um devaneio acompanha a descrição': "Os quatro estames ficam retos e em muitobom lugar na espécie de pequeno nicho que forma o lábio inferior. Ficam sob ocalor das pequenas casamatás bem acolchoadas. O pequeno pistilo fica respeito-

Page 8: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

298 BACHELARD

samente a seus pés, mas como é de pequeno tamanho é preciso falar-lhes para quedobrem os joelhos. As pequenas mulheres têm muita importância; e aquelas cujotom parece mais simples têm freqüentemente uma conduta bem segura em seusafazeres. As quatro sementes nuas ficam no fundo da corola e se elevam até a suaaltura, como nas índias os meninos se embalam numa rede. Cada estame reco-nhece sua obra, e a inveja não pode existir".

Assim, na flor, o sábio botânico encontrou a miniatura de uma vida conju-gai, sentiu o doce calor guardado por uma película, viu a rede que embala asemente. Da harmonia das formas, concluiu pelo bem-estar da moradia. Será pre-ciso sublinhar que, como no texto de Cyrano, o doce calor das regiões fechadasé o primeiro índice de uma intimidade? Essa intimidade quente é a raiz de todasas imagens. As imagens — como vimos — não correspondem a nenhuma reali-dade. Sob a lupa, podia-se reconhecer a escovinha amarela dos estames, mas ne-nhuqj observador poderia ver o menor elemento real para justificar as imagenspsicológicas acumuladas pelo narrador da Botânica cristã. É de pensar que, se setivesse tratado de um objeto de dimensão corrente, o narrador teria sido mais pru-dente. Mas ele entrou na miniatura e logo as imagens se puseram a surgir emquantidade, a crescer, a evadir-se. O grande sai do pequeno, não pela lei lógica deuma dialética dos contrários, mas graças à libertação de todas as obrigações dasdimensões, libertação que caracteriza a atividade da imaginação. No verbete"Pervenche" ("Pervinca") no mesmo dicionário de Botânica cristã, lê-se: "Leitor,estude a Pervinca detalhadamente, verá como o detalhe aumenta os objetos".

Em duas linhas, o homem com a lupa exprime uma grande lei psicológica.Coloca-nos num ponto sensível da objetividade, no momento em que é precisocolher o detalhe despercebido e dominá-lo. A lupa condiciona, nessa experiência,uma entrada no mundo. O homem com a lupa não é um velho que quer, contraQS olhos cansados de ver, ler ainda o seu jornal. O homem com a lupa toma oMundo como uma novidade. Se nos confidenciasse suas descobertas vividas,dar-nos-ia documentos de fenomenologia pura, onde a descoberta do mundo,onde a entrada no mundo, seria mais que uma palavra usada, mais que uma pala-vra cansada pelo uso filosófico tão freqüente. Às vezes, o filósofo descrevefenomenologicamente sua "entrada no mundo", seu "ser no mundo" sob o signode um objeto familiar. Descreve fenomenologicamente seu tinteiro. Um pobre ob-jeto é então o porteiro do vasto mundo.

O homem com a lupa barra — simplesmente — o mundo familiar. É umolhar novo diante de objeto novo. A lupa do botânico é a infância reencontrada.Com ela, ele recolhe-se ao jardim, no jardim

onde as crianças olham ao largo. 1 3 6

Assim, o minúsculo, porta estreita, abre um mundo. O detalhe de uma coisapode ser o sinal de um mundo novo, de um mundo que, como todos os outros,contém atributos de grandeza.

A miniatura é uma das moradas da grandeza.

1 3 6 P. de Boissy, Main Première, pág. 21. *

Page 9: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

A POÉTICA DO ESPAÇO 299

IV

Esboçando uma fenomenologia do homem com lupa, não visamos ao traba-lhador de laboratório. O trabalhador científico tem uma disciplina de objetivi-dade que susta todos os devaneios da imaginação. O que ele observa ao micros-cópio, já viu. Poderíamos dizer, de uma maneira paradoxal, que ele não vê nuncapela primeira vez. Em todo caso, no reino da observação científica com objetivi-dade certa, a "primeira vez" não conta. A observação é, pois, do reino das "vá-rias vezes". É preciso inicialmente, no trabalho científico, psicologicamente, dige-rir a surpresa. O que o sábio observa está bem definido num corpo depensamentos e de experiências. Não é no nível dos problemas da experiência cien-tífica que temos que fazer observações quando estudamos a imaginação. Esque-cendo, como dissemos na Introdução, todos os nossos hábitos de objetividadecientífica, devemos procurar as imagens da primeira vez. Se formos tomar docu-mentos psicológicos da história das ciências — já que assim também objetarãodizendo que há nessa história uma reserva de "primeira vez" — veremos que asprimeiras observações microscópicas eram lendas de pequenos objetos, e, quandoo objeto era animado, lendas de vida. Tal observador, ainda no reino da ingenui-dade, não terá visto formas humanas nos "animais espermatozóides".13 7

Uma vez mais, somos levados a colocar os problemas da Imaginação emtermos de "primeira vez". Isso justifica irmos buscar exemplos nas fantasias maisextremas. Como variação surpreendente do tema: o homem com a lupa, vamosestudar um poema em prosa de André Pieyre de Mandiargues que se intitula:L 'Oeufdans le Paysage (O Ovo na Paisagem). ^3 8

O poeta, como tantos outros, sonha atrás da vidraça. Mas, no própriovidro, descobre uma pequena deformação que vai propagar a deformação do uni-verso. De Mandiargues diz a seu leitor: "Aproxima-te da janela, esforçando-tepara não deixares demais tua atenção voltada para o lado de fora. Até que tenhassob os olhos um desses núcleos que são como quistos, ossinhos às vezes transpa-rentes, mas com maior freqüência enfumaçados ou vagamente translúcidos e comuma forma alongada que evoca o fino pêlo dos gatos". Através desse pequenofuso vitrificado, através do fino pêlo do gato, em que se transforma o mundo exte-rior? "A natureza do mundo muda? (pág. 106), ou será a verdadeira natureza quetriunfa da aparência! Em todo caso, o fato experimental é que a introdução donúcleo na paisagem basta para conferir a esta um caráter débil. . . Muros,rochas, troncos de árvores, construções metálicas, perderam toda a rigidez nasparagens do núcleo móvel." E, de toda parte, o poeta faz sair imagens. Ele nos dáum átomo de um universo em multiplicação. Guiado pelo poeta, o sonhador, des-locando seu rosto, renova seu mundo. Da miniatura do quisto de vidro, o sonha-dor faz cair um mundo. O sonhador obriga o mundo "aos mais insólitos rastejos"(pág. 107). O sonhador faz correr ondas de irrealidade sobre o que era o mundo

1 3 7 Cf. ia Formation de l"Esprit Scieptifique.1 3 8 Ed. Métamorphoses, Gallimard, pág. 105.

Page 10: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

300 BACHELARD

real. "O mundo exterior, em sua unanimidade, transformou-se num meio maleá-vel para o desejo diante desse único objeto duro e cortante, verdadeiro ovo filosó-fico que teus menores lances do rosto fazem girar através do espaço."

Assim, o poeta não foi procurar muito longe sua ferramenta para o sonho.E, entretanto, com que arte ele nuclearizou a paisagem! Com que fantasia eledotou o espaço de múltiplos torneados. Eis o espaço curvo riemanniano da fanta-sia ! Pois todo o universo se fecha em curvas; todo o universo se concentra em umnúcleo, em um germe, em um centro dinamizado. E esse centro é poderoso, já queé um centro imaginado. Um passo a mais no mundo das imagens que Pieyre deMandiargues nos oferece e vemos o centro que imagina; então, lê-se a paisagemno núcleo de vidro. Olhamo-lo de soslaio. Esse núcleo nuclearizante é um mundo.A miniatura se estende até as dimensões de um universo. O grande, uma vezmais, está contido no pequeno.

Tomar uma lupa é prestar atenção, mas prestar atenção não será possuiruma lupa? A atenção é por si só uma lente de aumento. Em outra obra,139 Pieyrede Mandiargues, meditando sobre a flor do Eufórbio, escreveu: "O eufórbío, sobum olhar atento, como uma lâmina de pulga sob o microscópio, tinha crescidomisteriosamente: era agora uma fortaleza pentagonal, erguida a uma altura pro-digiosa diante dele, um deserto de rochedos brancos e flechas rosas parecendoinacessíveis, cinco torres que em forma de estrelas encimavam o castelo avan-çado como vanguarda da flora sobre a região árida".

Um filósofo dotado de razão — e a espécie não é rara — objetará talvez quenossos documentos são exagerados, que tiram com excessiva gratuidade, compalavras, o grande, o imenso, do pequeno. Não seria mais que prestidigitação ver-bal, bem pobre diante do feito do prestidigitador que tira um despertador de umdedal. Defenderíamos entretanto a prestidigitação "literária". O ato do prestidigi-tador espanta, diverte. O ato do poeta faz sonhar. Não posso viver e reviver o atodo primeiro. Mas a página do poeta só me pertence se amo o devaneio.

O filósofo racional toleraria nossas imagens se pudessem ser dadas como oefeito de alguma droga, de alguma mescalina. Teriam então para ele uma reali-dade fisiológica. O filósofo se serviria disso para elucidar seus problemas daunião do corpo com a alma. Quanto a nós, tomamos os documentos literárioscomo realidade da imaginação, como puros produtos da imaginação. Ora, porque os atos da imaginação não haveriam de ser tão reais quanto os atos dapercepção?

E por que ainda essas imagens "excessivas" que nós próprios não sabemosformar, mas que podemos, nós leitores, receber sinceramente do poeta, não se-riam — se mantivermos a noção — "drogas" virtuais que nos proporcionam ger-mes de devaneios? Essa droga virtual é de uma eficácia puríssima. Estamos cer-tos, com uma imagem "exagerada" de estar no eixo de uma imaginaçãoautônoma.

1 3 9 Pieyre de Mandiargues. Marbre, ed. Laffont. pág. 63.

Page 11: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

A POÉTICA DO ESPAÇO 301

V

Não é sem escrúpulo que reproduzimos um pouco mais acima a longa des-crição do botânico da Nouvelle Encyclopédie Théologique. A página abandonacedo demais o germe do devaneio. Ela proseia. Nós a acolhemos quando temostempo para brincar. Dispensamo-la quando queremos escontrar os germes vivosdo imaginário. É, se ousarmos dizer, uma miniatura feita com grandes peças.Convém travar um melhor contato com a imaginação miniaturizante. Não pode-mos, filósofo de gabinete que somos, aproveitar a contemplação das obras pinta-das pelos miniaturistas da Idade Média, esse grande tempo das paciências solitá-rias. Mas imaginamos com precisão essa paciência. Ela põe a paz nos dedos. Aoimaginá-la, a paz invade a alma. Todas as coisas pequenas pedem vagar. Foi pre-ciso dar-se um grande lazer no quarto tranqüilo para miniaturizar o mundo. Épreciso amar o espaço para descrevê-lo tão minuciosamente como se aí houv'essemoléculas de mundo, para encerrar todo um espetáculo numa molécula de dese-nho. Nesse feito, que dialética da intuição que sempre vê aumentado e do traba-lho hostil às revoadas! Os intuicionistas, com efeito, se dão tudo com um únicoolhar, enquanto os detalhes se descobrem e se ordenam uns depois dos outros,pacientemente, com a malícia discursiva do fino miniaturista. Parece que ominiaturista desafia a contemplação preguiçosa do filósofo intuicionista. É elequem lhe diz: "Você não viu isso! Tome tempo para ver todas essas pequenascoisas que não se podem contemplar em seu conjunto". Na contemplação daminiatura, é preciso uma atenção perspicaz para integrar o detalhe.

Naturalmente, a miniatura é mais fácil de falar do que de fazer e poderemoscolecionar facilmente descrições literárias que ponham o mundo no diminutivo.Por que essas descrições falam das coisas pelo pequeno, são automaticamenteprolixas. Assim esta página de Victor Hugo (nós a abreviamos) de quem temos aautoridade para pedir alguma atenção ao leitor sobre um tipo de devaneio quepode parecer insignificante.

Victor Hugo, que, diz-se, vê grande, sabe também descrever miniaturas. EmLe Rhin (O Reno),'1 40 lê-se: "Em Freiberg, esqueci por muito tempo a imensapaisagem que tinha sob os olhos para me fixar no quadrado de relva em que euestava sentado. Era uma pequena saliência selvagem da colina. Lá também, haviaum mundo. Os escaravelhos andavam lentamente debaixo das fibras profundasda vegetação; flores de cicuta em forma de guarda-sol imitavam os pinheiros daItália. . ., um pobre zangão molhado, de veludo amarelo e preto, subia penosa-mente ao longo de um galho espinhoso; nuvens espessas de mosquitos lhe escon-diam a luz; uma campainha azul tremulava ao vento, e toda uma nação de pul-gões se abrigara sob sua coro la . . . Eu via sair do lodo e se torcer voltada parao céu, aspirando o ar, uma minhoca semelhante aos pítons antediluvianos, e quetalvez também tenha, no universo microscópico, seu Hércules para matá-la e seuCuvier para descrevê-la. Em suma, aquele universo é tão grande quanto o outro".

• "0 Victor Hugo. Le Rhin. ed. Hei/.el.V III. p á t . 98.

Page 12: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

302 BACHELARD

A página se alonga, o poeta se distrai, evoca Micrômegas e segueentão uma teo-ria fácil. Mas o leitor não tem pressa — é a única coisa que podemos esperar —e entra certamente no devaneio miniaturizante. Esse leitor ocioso sempre teve taisdevaneios, mas nunca teria ousado escrevê-los. O poeta acaba de lhes dar digni-dade literária. Gostaríamos — grande ambição! — de lhes dar dignidade filosó-fica. Pois, enfim, o poeta não se engana, acaba de descobrir um mundo. "Lá tam-bém havia um mundo." Por que o metafísico não se confrontaria com aquelemundo? Renovaria, com motivos suficientes, suas experiências de "abertura para0 mundo", "de entrada no mundo". Muitas vezes, o mundo designado pelo filó-sofo não passa de um não-eu. Sua enormidade é um acúmulo de negatividades. Ofilósofo passa para o positivo depressa demais e se dá o Mundo, um Mundoúnico. As fórmulas: ser-no-mundo, o ser do Mundo são majestosas demais paramim; não chego a vivê-las. Fico mais à vontade nos mundos da miniatura. Sãopar» mim mundos dominados. Vivendo-os sinto partir de meu ser sonhadorondas mundificadoras. A enormidade do mundo não é para mim mais que oruído das ondas mundificadoras. A miniatura sinceramente vivida me desprendedo mundo ambiente, ajuda-me a resistir à dissolução da ambiência.

A miniatura é um exercício de frescor metafísico; permite mundificar compequenos riscos. E que descanso em tal exercício de mundo dominado! A minia-tura descansa sem nunca adormecer. A imaginação permanece vigilante e feliz.

Mas para nos entregarmos de boa fé a tal metafísica miniaturizante, temosnecessidade de multiplicar os nossos apoios e selecionar alguns textos. Sem isso,teríamos medo, confessando nosso gosto pela miniatura, de reforçar o diagnós-tico que a Sra. Favez-Boutonier nos indicava no início de nossa boa e velha ami-zade, faz um quarto de século: suas alucinações lilliputianas são característicasdo alcoolismo.

São numerosos os textos em que a pradaria é uma floresta, onde uma moitade capim é um bosquete. Num romance de Thomas Hardy, um punhado demusgo é um bosque de sobreiros. Num romance de paixões finas e múltiplas:Niels Lyne, J. P. Jacobsen descreve assim a floresta da felicidade: as folhas dooutono, as parreiras curvadas ao "peso dos cachos vermelhos", completa seuquadro pelo "musgo vigoroso e basto que parecia com sobreiros, com palmeiras".E "havia ainda o musgo mais leve que revestia o tronco das árvores e fazia pensarnos campos de trigo dos gnomos" (trad. fr., pág. 255). Que um autor cuja tarefaseja seguir um drama humano de grande intensidade como é o caso de Jacob-sen,1 41 interrompa a narrativa da paixão para "escrever essa miniatura", eis umparadoxo que devíamos elucidar se quiséssemos ter a exata medida dos interessesliterários. Se vivermos um pouco mais de perto o texto, parece que algo de huma-no se afina nesse esforço em ver a floresta franzina encaixada na floresta dasgrandes árvores. De uma floresta à outra, da floresta em diástole à floresta emsístole, respira uma cosmicidade. Paradoxalmente, parece que, vivendo Tia minia-tura, chegamos a nos acalmar num pequeno espaço.

1 4' Niels Lyne era para Rilke um livro de cabeceira.

Page 13: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

A POÉTICA DO ESPAÇO 303

Esse é um dos mil devaneios queíios põem fora do mundo, que nos põe nou-tro mundo, e o romancista tem necessidade deles para nos transportar a essealém-mundo que é o mundo de um amor novo. As pessoas apressadas pelos afa-zeres humanos não penetram nele. O leitor de um livro que segue as ondulaçõesde uma grande paixão pode espantar-se com essa interrupção pela cosmicidade.Não lê o livro senão linearmente, seguindo o fio dos acontecimentos humanos.Para ele, os acontecimentos não precisam de um quadro. Mas de quantos deva-neios nos priva a leitura linear!

Tais sonhos são chamados à verticalidade. São pausas da narrativa duranteas quais o leitor é chamado a sonhar. São puras, pois não servem para nada. Épreciso distingui-las do costume do conto em que um anão se esconde atrás deuma alface para armar uma cilada para o herói, como é o caso em Le Nain Jaune(O Anão Amarelo), da Sra. d'Aulnoy. A poesia cósmica é independente das intri-gas do conto para crianças. Ele reivindica, nos exemplos que citamos, uma parti-cipação de um vegetalismo realmente íntimo, de um vegetalismo que escape aoentorpecimento a que o condenava a filosofia bergsoniana. Com efeito, pela ade-são às forças miniâturizadas, o mundo vegetal é grande no pequeno, vivo na suaternura, vivo em seu ato verde.

Às vezes, o poeta compreende um drama íntimo, como Jacques Audiberti,que, em seu espantoso Abraxas, nos faz sentir, na luta da trepadeira contra a pa-rede de pedra, o instante dramático em que a "trepadeira se ergue sobre a pedracinzenta". Que Atlas vegetal! Em Abraxas, Audiberti faz um tecido cerrado desonhos e de realidades. Conhece os devaneios que põem a intuição no punctumproximum. Gostaríamos até de ajudar a trepadeira a fazer uma intumescência amais no velho muro.

Mas teremos tempo, neste mundo, para amar as coisas, para ver as coisas deperto, quando elas desfrutam sua pequenez. Uma única vez em minha vida, vi umtenro líquen nascer e se estender sobre o muro. Que novidade, que vigor para aglória da superfície!

Perderíamos o sentido dos valores reais, é certo, se interpretássemos asminiaturas no simples relativismo do grande e do pequeno. O pedacinho demusgo pode muito bem ser um sobreiro, mas nunca o sobreiro será um pedacinhode musgo. A imaginação não trabalha nos dois sentidos com a mesma convicção.

É nos jardins do minúsculo que o poeta conhece o germe das flores. E eugostaria de poder dizer como André Breton: "Tenho mãos para te colher, timominúsculo de meus sonhos, alecrim de minha extrema palidez".1 42

VI

O conto é uma imagem que raciocina. Tende a associar-se a imagensextraordinárias como se pudessem ser imagens coerentes. O conto traz assim aconvicção de uma primeira imagem a todo um conjunto de imagens derivadas.

1 4 2 André Breton, Le Revolver auxdheveux Blancs, ed. desCahiers Libres. 1932, pág. 122.

Page 14: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

304 BACHELARD

Mas a ligação é tão fácil, o racioanio é tào tácito que em pouco tempo não sabe-remos mais onde está o germe do conto.

No caso de uma miniatura contada, como é o caso do conto do PequenoPolegar, parece que se encontra sem dificuldade o princípio da imagem primeira:a simples pequenez vai facilitar todos os feitos. Mas, examinada de mais perto, asituação fenomenológica dessa miniatura contada é instável. Está, com- efeito,submetida à dialética do maravilhoso e da brincadeira. Um traço a mais basta àsvezes para deixarmos de participar da surpresa. Num desenho, admiraríamosainda, mas o comentário ultrapassa os limites: um Polegar, citado por GastonParis,1 43 é tão pequeno "que fura com a cabeça um grãozinho de areia e passapor dentro do grãozinho". Outro é morto pela patada de uma formiga. Nenhumvalor onírico neste último traço. Nosso onirismo animalizado que é tão forte, notocante aos animais de grande porte, não registrou os fatos e os gestos dos ani-maÍF>minúsculos. Do lado do minúsculo, nosso onirismo animalizado não vai tãolonge quanto nosso onirismo vegetal.1 4 4

Gaston Paris observa bem que, nessa situação em que o Polegar é mortopela patada de uma formiga, chega-se ao epigrama, a uma espécie de ofensa pelaimagem que exprime o desprezo pelo ser diminuído. Estamos diante de umacontraparticipação. Encontramos essa forma entre os romanos; um epigrama dadecadência, dirigido a um anão (dizia): "A pele de uma pulga faz uma roupalarga demais para você". Em nossos dias ainda, acrescenta Gaston Paris, as mes-mas brincadeiras podem ser encontradas na canção do Petit Mari (Pequeno Mari-do). Gaston Paris dá aliás essa canção como "infantil", o que não deixará deespantar os nossos psicanalistas. Há três quartos de século, os meios de explica-ção psicológica cresceram bastante, felizmente.

De qualquer maneira, Gaston Paris indica claramente o ponto sensível dalenda (loc. cit., pág. 23): as peças em que se faz pouco da pequenez deformam oconto primitivo, a miniatura pura. No conto primitivo o fenomenólogo deve resti-tuir sempre "a pequenez não é ridícula, mas maravilhosa; pois aí é que está ointeresse do conto, são as coisas extraordinárias que o Polegar realiza graças asua pequenez; em todas as ocasiões, aliás, sua vivacidade e malícia o tiram sem-pre e de uma maneira triunfal das enrascadas em que se mete".

Mas então, para participar realmente do conto, é preciso desdobrar essasutileza do espírito em uma sutileza material. O conto nos convida a nos "envol-vermos" nas dificuldades. Ou seja, além do desenho, é preciso tomar o dina-mismo da miniatura, que é uma instância fenomenológica suplementar. Queânimo recebemos então do conto se seguimos a causalidade do pequeno, o movi-mento que nasce do ser minúsculo agindo sobre o ser maciço! Por exemplo, odinamismo da miniatura é freqüentemente revelado pelos contos em que o Pole-gar, instalado na orelha do cavalo, é senhor das forças que puxam o arado. "Aíestá, a meu ver", diz Gaston Paris (pág. 23), "o fundo primitivo de sua história;a marca que se encontra em todos os povos, enquanto que as outras histórias que

1 43 Gaston Paris, Le Petit Poucet et Ia Grande Ourse, Paris, 1875, pág. 22.1 " * Notemos no entanto que alguns neuróticos pretendem ver micróbios roendo seus órgãos.

Page 15: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

A POÉTICA DO ESPAÇO 305

lhe são atribuídas, criadas pela fantasia, despertadas por sua vez pela figura ale-gre do pequeno ser, diferem comumente em diferentes povos."

Naturalmente, na orelha do cavalo, o Polegar diz ao animal: hue et dia. Eleé o centro de decisão que os devaneios da nossa vontade nos levam a constituirnum pequenino espaço. Dizíamos mais acima que o minúsculo é a morada dagrandeza. Se simpatizamos dinamicamente com o ativo Pequeno Polegar, eis queo minúsculo aparece como o centro de uma força primitiva. Um cartesiano diria— se um cartesiano gostasse de brincadeiras — que, nessa história, o PequenoPolegar é a glândula pineal do arado. Em todo caso, é o ínfimo que é o mestre dasforças, é o pequeno que comanda o grande. Quando o Polegar falou, o cavalo, arelha do arado e o homem tiveram que segui-lo. Quanto melhor esses três seressubalternos obedecerem, mais seguramente será feito o sulco.

O Pequeno Polegar está em casa no espaço de uma orelha, na entrada dacavidade natural do som. É um ouvido na orelha. Assim, o conto figurado pelasrepresentações visuais se desdobra no que chamaremos, no parágrafo seguinte, deminiatura do som. Com efeito, estamos convidados, seguindo o conto, a descerabaixo do centro de audição, para ouvir com nossa imaginação. O Polegar se ins-talou na orelha do cavalo para falar baixo, isto é, para comandar com segurança,com uma voz que ninguém ouve a não ser aquele que deve "escutar". A palavra"escutar" toma aqui o duplo sentido de ouvir e de obedecer. Não será na tonali-dade mínima, numa miniatura do som como a que ilustra a lenda que o duplosentido representa seu papel com mais finura?

Esse Polegar que guia por sua inteligência e sua vontade a parelha do lavra-dor nos parece bem distante do Polegar de nossa juventude. É entretanto, atravésdessas fábulas e seguindo Gaston Paris, grande pesquisador da primitividade, quevamos chegar à lenda primitiva.

Para Gaston Paris, a chave da lenda do Pequeno Polegar — como de tantaslendas! — está no céu: é o Polegar que conduz a constelação da Ursa Maior(Grande Carro). Com efeito, Gaston Paris notou que, em vários países, designa-se uma pequena estrela que fica acima do carro com o nome de Polegar.

Não vamos seguir todas as provas convergentes que o leitor poderá encon-trar na obra de Gaston Paris. Insistamos somente numa lenda suíça que nos vaidar um belo exemplo de ouvido que sabe sonhar. Nessa lenda contada por Gas-ton Paris (pág. 11), um carro vira à meia-noite com um grande estrondo. Tallenda não nos ensina a escutar à noite? O tempo da noite? O tempo do céu estre-lado? Onde é que li que um eremita que olhava sem rezar para a sua ampulhetaouviu barulhos que lhe dilaceravam os ouvidos? Na ampulheta ele ouviu subita-mente a catástrofe do tempo. O tique-taque de nossos relógios é tão grosseiro, tãomecanicamente contido que não temos ouvidos capazes de ouvir o tempo quepassa.

' VII

O conto do Pequeno Polegar, traduzido no céu, mostra que as imagens pas-sam facilmente do pequeno»para o grande e do grande para o pequeno. O deva-

Page 16: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

306 BACHELARD

neio de Gulliver é natural. Um grande sonhador vive duplamente suas imagens,na terra e no céu. Mas, nessa vida poética das imagens há mais que um simplesjogo de dimensões. O devaneio não é geométrico. O sonhador se envolve a fundo.Encontraremos um apêndice à tese de C. A. Hackett: LeLyrisme de Rimbaud (OLirismo de Rimbaud) sob o título: Rimbaud e Gulliver, páginas excelentes ondeRimbaud é mostrado em ponto pequeno junto de sua mãe, grande no mundodominado. Enquanto que junto dela não passa senão um "tiquinho de gente naterra de Brobdingnag", na escola o pequeno "Arthur imagina ser Gulliver naterra de Lilliput". E C. A. Hackett cita Victor Hugo, que em Les Contemplations(Souvenirs Paternels) (As Contemplações — Lembranças Paternas), mostracrianças que riem

De ver medonhos gigantes tão burros, ( Vencidos pelos anões perspicazes.

C. A. Hackett indicou, nessa ocasião, todos os elementos para uma psicaná-lise de Arthur Rimbaud. Mas se a psicanálise, como freqüentemente temos obser-vado, nos fornece considerações preciosas sobre a natureza profunda do escritor,pode, no entanto, desviar-nos do estudo sobre a virtude direta de uma imagem.Há imagens tão grandes, e o seu poder de comunicação nos chama tão longe davida, da nossa vida, que os comentários psicanalíticos só podem ser desenvol-vidos à margem de valores. Que imenso devaneio nestes dois versos de Rimbaud:

Pequeno Polegar sonhador, desfiei pelo caminhoRimas. Meu albergue era a Ursa Maior.

Podemos certamente admitir que a Ursa Maior erá para Rimbaud "umaimagem da Sra. Rimbaud" (Hackett, pág. 69). Mas esse aprofundamento psicoló-gico não nos explica o dinamismo desse impulso que faz que o poeta reencontrea lenda do Polegar da Valônia. É preciso que eu ponha realmente entre parêntesesmeu saber psicanalítico se quiser receber a graça fenomenologica da imagem dosonhador, do profeta de quinze anos. Se o albergue da Ursa Maior é apenas adura casa de um adolescente sofrido, ela não desperta em mim nenhuma lem-brança positiva, nenhum devaneio ativo. Só posso sonhar no céu de Rimbaud. Acausalidade particular que a psicanálise extrai da vida do escritor, ainda que sejapsicologicamente exata, tem pouca probabilidade de provocar uma ação num lei-tor qualquer. Entretanto, recebo a comunicação dessa imagem tão extraordinária.Ao desligar-me de minha vida, da vida, ela faz de mim um ser imaginante. Emtais ocasiões de leitura, cheguei a pôr em dúvida não apenas a causalidade psica-nalítica da imagem, mas ainda toda a causalidade psicológica da imagem poética.A Poesia, em seus paradoxos, pode ser contracausal, o que ainda é uma maneirade ser deste mundo, de estar envolvido na dialética das paixões. Mas, quando apoesia atinge sua autonomia, pode-se dizer que ela é acausal. Para receber direta-mente a virtude de uma imagem isolada — e uma imagem tem toda a sua virtudenum isolamento — a fenomenologia nos parece então mais favorável que a psica-

Page 17: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

A POÉTICA DO ESPAÇO 307

nálise, pois a fenomenologia supõe precisamente que assumamos, sem crítica,com entusiasmo, essa imagem.

Ora, em seu aspecto de devaneio direto, "o Albergue da Ursa Maior" não éuma prisão maternal, como também não é uma insígnia da aldeia. É uma "casado céu". Desde o momento em que sonhamos intensamente vendo um quadrado,sentimos sua solidez, sabemos que é um refúgio de grande segurança. Um grandesonhador pode ir habitar entre as quatro estrelas da Ursa. Foge talvez da terra, e0 psicanalista enumera as razões da sua fuga, mas o sonhador está seguro logo deinício de que encontrará uma morada, uma morada na medida dos seus sonhos.E como dá voltas essa casa do céu! As outras estrelas perdidas nas marés do céufazem voltas mal feitas. Mas a Ursa Maior não perde sua rota. Vê-la dar voltastão bem já é ser dono da viagem. E o poeta certamente vive, sonhando, umacoalescência de lendas, todas essas lendas são reanimadas pela imagem. Nãp sãoum velho saber. O poeta não repete os contos da avó. Ele não tem passado. É deum novo mundo. Em relação ao passado e às coisas deste mundo, realizou asublimação absoluta. O fenomenólogo tem que seguir o poeta. O psicanalista sepreocupa apenas com a negatividade da sublimação.

VIII

Sobre o tema do Pequeno Polegar, tanto no folclore como no trabalho dopoeta, acabamos de assistir a transposições de grandeza que dão vida dupla aosespaços poéticos. Dois versos às vezes bastam para essa transposição, tais comoestes de Noél Bureau:1 4 5

Ele se deitava atrás de um pé de capimPara ampliar o céu.

Mas, às vezes, as transações do pequeno e do grande se multiplicam, serepercutem. Quando uma imagem familiar cresce até ter dimensões do céu,somos de súbito chocados pelo sentimento de que, correlativamente, os objetosfamiliares se transformam em miniaturas de um mundo. O macrocosmo e omicrocosmo são correlativos.

Nessa correlação suscetível de atuar nos dois sentidos estão fundados mui-tos poemas de Jules Supervielle, particularmente os poemas reunidos sob o títulorevelador de Gravitations (Gravitações). Todo centro de interesse poético, queresteja no céu ou na terra, é um centro de gravitação ativo. Para o poeta, esse cen-tro de gravitação poética está, se podemos dizê-lo, no céu e na terra, ao mesmotempo. Por exemplo, com que facilidade de imagens a mesa familiar se trans-forma numa mesa aérea celeste que tem por lâmpada o sol?1 4 6

1 4 5 Noél Bureau,Les Mains Tendues, pág. 25.1 4 6 Jules Supervielle, Gravitations, p*ágs. 183-185.

Page 18: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

308 BACHELARD

O homem, a mulher, as criançasNa mesa aéreaApoiada num milagreQue procura dejlnir-se.

E o poeta, depois dessa "explosão de irreal", volta à terra:

Estou de novo à mesa habitualSobre a terra cultivadaQue dá milho e dá rebanhos.

Eu reencontrava as faces em torno de mimCom os cheios e os vazios da verdade.

A imagem que serve de base a esse devaneio transformante, terrestre e aéreo,familiar e cósmico, é a imagem da lâmpada-sol e do sol-lâmpada. Poderíamosreunir aqui milhares de documentos literários sobre essa imagem velha como omundo. Mas Jules Supervielle nos traz uma variação importante, fazendo-a repre-sentar nos dois sentidos. Dá assim à imaginação toda a sua flexibilidade, flexibili-dade essa tão miraculosa que se pode dizer que a imagem totaliza o sentido quecresce e o sentido que concentra. O poeta impede que a imagem se imobilize.

Se vivermos a cosmicidade de Supervielle, sob o título de Gravitations, tãocarregada de significação científica para um espírito do nosso tempo, reencon-tramos pensamentos de um grande passado. Quando não se moderniza abusiva-mente a história das ciências, quando tomamos como exemplo Copérnico, com atotalidade de seus devaneios e de seus pensamentos, notamos que é em torno daluz que gravitam os astros. O sol é antes de tudo o grande Luminar do Mundo.Os matemáticos farão dele uma massa atraente. A luz é, no alto, o princípio dacentralização. Tem um valor tão grande na hierarquia das imagens! O mundo,para a imaginação, gravita em torno de um valor.

A lâmpada sobre a mesa da casa familiar é também um centro do mundo. Amesa clareada pela lâmpada é, por si só, um pequeno mundo. Um filósofo sonha-dor não poderá temer que nossas iluminações indiretas não nos façam perder ocentro do aposento da noite. Será que a imagem guarda, então, faces de outrora?

Com os cheios e os vazios da verdade.

Quando se tiver seguido todo o poema de Supervielle em ascensões astrais eem seus retornos ao mundo dos humanos, perceber-se-á que o mundo familiartoma o novo relevo de uma miniatura cósmica deslumbrante. Não se sabia que omundo familiar era tão grande. O poeta nos mostrou que o grande não é incom-patível com o pequeno. E se pensa então em Baudelaire, que, a propósito das lito-grafias de Goya, chegara a falar de "vastos quadros em, miniatura"1 4 7 e nue diziade um pintor de esmaltes, Marc Baud,1 48 que "sabia fazer o grande no pequeno".

1 4 7 Baudelaire, Curiosités Esthédques, pág. 429.1 48 Baudelaire, loc. cit., pág. 316.

Page 19: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

A POÉTICA DO ESPAÇO 309

De fato, como veremos ainda tratando mais especialmente da imagem daimensidão, o minúsculo e o imenso são consoantes! O poeta está sempre prontopara ler o grande e o pequeno. Por exemplo, a cosmogonia de um Claudel assimi-lou rapidamente, beneficiada pela imagem, o vocabulário — senão o pensamento— da ciência de hoje. Claudel escreve em Les Cinq Grandes Odes (As CincoGrandes Odes) (pkg. 180):

"Como a gente vê as pequenas aranhas ou certas larvas de insetos como pe-dras preciosas bem escondidas em sua bolsa de algodão e de cetim.

"Foi assim que me mostraram uma porção de sóis ainda embaraçados nasbarras frias da nebulosa".

Olhe um poeta no microscópio ou no telescópio, vê sempre a mesma coisa.

IX1

O distante fabrica aliás miniaturas em todos os pontos do horizonte. Osonhador, diante desses espetáculos da natureza distante, destaca essas miniatu-ras como ninhos de solidão em que sonha viver.

Assim Joè Bousquet escreve:1 49 "Penetro nas dimensões minúsculas que oafastamento permite, inquieto em medir nesse encurtamento a imobilidade a queestou preso". Preso a seu leito, o grande sonhador supera o espaço intermediáriopara "se aprofundar" no minúsculo. As aldeias perdidas no horizonte são entãopátrias para o olhar. O distante não dispersa nada. Ao contrário, ele reúne numaminiatura um país em que gostaríamos de viver. Em miniaturas do distante, ascoisas disparatadas "se compõem". Elas se oferecem então a nossa "posse",negando o distante que as criou. Possuímos o longínquo e com que tranqüilidade!

Desses quadros-miniaturas sobre o horizonte, deveríamos aproximar osespetáculos tomados pelos devaneios do campanário. São tão numerosos que osjulgamos banais. Os escritores os notam superficialmente e quase não criamvariações sobre esse tema. E, no entanto, que lição de solidão! O homem na soli-dão do campanário contempla os homens que "se agitam" na praça iluminadapelo sol de verão. Os homens são "gordos como moscas", movem-se sem razão"como formigas". Essas comparações tão usadas que não ousamos mais escre-vê-las aparecem inadvertidamente em muitas páginas em que se fala de um deva-neio de campanário. Só resta o fenomenólogo da imagem para notar a extremasimplicidade dessa meditação que destaca tão facilmente o sonhador do mundoagitado. O sonhador se dá, com facilidade, uma impressão de domínio. Mas,quando toda a banalidade de tal devaneio é assinalada, percebemos que ele tratade uma solidão da altura. A solidão fechada teria outros pensamentos. Ela nega-ria o mundo de outra maneira. Ela não teria, para dominá-lo, uma imagem con-creta. Do alto de sua torre, o filósofo da dominação miniaturiza o universo. Tudoé pequeifo porque é alto. É alto, logo é grande. A altura de sua morada é umaprova de sua própria grandeza.

1 4 9 Joê Bousquet, Le Meneur de Lurctfpág. 162.

Page 20: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

310 BACHELARD

Quantos teoremas de topoanálise teríamos que elucidar para determinartodo o trabalho do espaço em nós. A imagem não quer deixar-se medir. Por maisque fale do espaço, muda de grandeza. O menor valor a estende, a eleva, a multi-plica. E o sonhador se transforma no ser de sua imagem. Absorve todo o espaçode sua imagem. Ou então ela se confina na miniatura de suas imagens. É em cadaimagem que é preciso determinar, como dizem os metafísicos, nosso ser-lá sob orisco de não encontrar às vezes senão uma miniatura do ser. Voltaremos a essesaspectos do nosso problema em capítulo posterior.

X

Como centralizamos todas as nossas reflexões nos problemas do espaço •vivido, a miniatura provém, a nosso ver, exclusivamente das imagens da visão.Ma&>a causalidade do pequeno mexe com todos os sentidos e teríamos que fazer,sobre cada sentido, um estudo de suas "miniaturas". Para sentidos como o pala-dar, o olfato, o problema seria talvez mais interessante mesmo que para a visão.A vista encurta seus dramas. Mas, uma marca de perfume, um cheiro íntimo podedeterminar um verdadeiro clima no mundo imaginário.

Os problemas da causalidade do pequeno foram examinados naturalmentepela psicologia das sensações. De uma maneira positiva, o psicólogo determinacom o maior cuidado os diferentes começos que fixam o funcionamento dosdiversos órgãos dos sentidos. Esses começos podem ser diferentes em diferentesindivíduos, mas sua realidade é incontestável. A noção de começo é uma dasnoções mais claramente objetivas da psicologia moderna.

Neste parágrafo queremos examinar se a imaginação não nos atrai paraaquém do começo, se o poeta ultra-atento à palavra interior não ouve, num alémdo sensível, fazendo falar as cores e as formas. As metáforas paradoxais são nesteponto numerosas demais para que as não examinemos sistematicamente. Elasdevem cobrir uma certa realidade, uma certa verdade da imaginação. Daremosalguns exemplos daquilo que, para sermos breves, chamaremos de miniaturassonoras.

Devemos a princípio afastar as referências habituais aos problemas da aluci-nação. Essas referências a fenômenos objetivos, patenteados num comportamentoreal mesmo que as pudermos fixar graças à fotografia de um rosto angustiadopelas vozes "imaginárias", essas referências nos impediriam de entrar realmentenos domínios da imaginação pura. Não se compreende, na minha opinião, poruma mistura de sensações verdadeiras e alucinações verdadeiras ou falsas, a ati-vidade autônoma da imaginação criadora. O problema, para nós, convém repeti-lo, não é examinar homens, mas examinar imagens. E não podemos examinarfenomenologicamente senão imagens transmissíveis, imagens que recebemosnuma transmissão feliz. Mesmo que houvesse alucinação num criador1 de ima-gem, a imagem poderia satisfazer o nosso desejo de imaginar, nós leitores, quenão somos alucinados.

É preciso reconhecer uma verdadeira mudança-ontológica quando, em nar-

Page 21: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

A POÉTICA DO ESPAÇO 311

rativas como as de Edgar Poe, aquilo que o psiquiatra indica como alucinaçõesauditivas recebe, do grande escritor, a dignidade literária. As explicações psicoló-gicas ou psicanalíticas, no tocante ao autor de uma obra de arte, podem entãolevar-nos a colocar mal — ou a não colocar — os problemas da imaginação cria-dora. De uma maneira geral, os fatos não explicam os valores. Em obras daimaginação poética, os valores têm tais mostras de novidade que tudo o que deri-va do passado é, a seu ver, inerte. Toda memória está para ser reimaginada.Temos na memória microfilmes que não podem ser lidos senão quando recebema luz viva da imaginação.

Podemos naturalmente afirmar sempre que. se Edgar Poe escreveu o conto:A Queda da Casa Usher, foi porque "sofreu" alucinações auditivas. Mas "sofrer"vai de encontro a "criar". Pode-se estar seguro que não foi enquanto "sofria" quePoe escreveu o conto. As imagens, no conto, são genialmente associadas. Assombras e os silêncios têm correspondências delicadas. Os objetos, na noite* "ir-radiam docemente as trevas". As palavras murmuram. Todo ouvido sensível sabeo que é um poeta que escreve em prosa, que, em determinado ponto, a poesiaacaba por dominar a significação. Em suma, na ordem da audição, temos umaimensa miniatura sonora, a de todo um cosmos que fala baixo.

Diante de tal miniatura dos barulhos do mundo, o fenomenólogo deve assi-nalar sistematicamente aquilo que ultrapassa a ordem do sensível, tanto organica-mente quanto objetivamente. Não é o ouvido que zune nem a lagartixa da paredeque cresce. Há uma morta no jazigo, uma morta que não quer morrer. Há, numaprateleira da biblioteca, muitos livros velhos que ensinam outro passado diferentedo que o sonhador conheceu. Uma memória imemorial trabalha num aquém-mundo. Os sonhos, os pensamentos, as lembranças formam um único tecido. Aalma sonha e pensa, e depois imagina. O poeta nos conduziu a uma situação-limite, a um limite que tememos ultrapassar, entre a alienação e a razão, entre osvivos e uma morta. O menor barulho prepara uma catástrofe. Os ventos incoe-rentes preparam o caos das coisas. Murmúrios e estrondos estão lado a lado.Ensinam-nos a ontologia do pressentimento. Enlevam-nos na pré-audição. Pedemque tenhamos consciência dos mais débeis indícios. Tudo é indício antes de serfenômeno nesse cosmos de limites. Quanto mais débil é o indício, mais tem senti-do, pois que indica uma origem. Compreendidos como origens, parece que todosesses indícios começam e recomeçam ininterruptamente o conto. Recebemoslições elementares de gênio. O conto acaba por nascer na nossa consciência eessa é a razão por que se transforma em propriedade do fenomenólogo.

E a consciência se desenvolve aqui, não em relações inter-humanas — rela-ções que a psicanálise põe com mais freqüência na base de suas observações.Como nos ocuparmos do homem que somos diante de um cosmos em perigo? Etudo vive num pré-terremoto, numa casa que desmoronará, sob paredes quedesmoronando acabarão por soterrar uma morta.

Mas esse cosmos não é real. É, para usar uma palavra de Edgar Poe, de umaidealidade "sulfurosa". É o sonhador que o cria a cada ondulação de suas ima-gens. O Homem e o Mundo, o homem e seu mundo, estão agora em seu ponto

Page 22: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

312 BACHELARD

mais próximo, pois o poeta sabe indicar-nos seus momentos de maior proximi-dade. O homem e o mundo estão numa comunidade em perigo. São temidos umpelo outro. Tudo isso se ouve, se pré-ouve no murmúrio submurmurante dopoema.

XI

Mas nossa demonstração de realidade das miniaturas poéticas sonoras serásem dúvida mais simples se tomarmos como exemplos miniaturas menos com-postas. Vamos ver alguns exemplos bem curtos.

Os poetas nos fazem freqüentemente entrar no mundo dos barulhos impossí-veis, de uma impossibilidade tal que bem os podemos tachar de fantasia sem inte-resse. Sorrimos e passamos. E entretanto, muitas vezes, o poeta não tomou seupoema como um jogo, pois existe uma certa ternura nessas imagens.

René-Guy Cadou, vivendo na Aldeia da casa feliz, escrevia:1 50

Ouvimos gorjear as flores do biombo.

Pois todas as flores falam, cantam, mesmo as que desenhamos. Não se podedesenhar uma flor, um pássaro, permanecendo taciturno.

Outro poeta dirá:1 51

Seu segredo era

Escutar a florUsar sua cor.

.152Claude Vigée também, como tantos poetas, ouve a erva crescer. Escreve:

EscutoUma aveleirazinha

Verdejar.

Tais imagens devem, ao menos, ser tomadas em seu ser de realidade deexpressão. É da expressão poética que é tirado todo o seu ser. Diminuiríamos seuser se quiséssemos relacioná-las com uma realidade, mesmo uma realidade psico-lógica. Elas dominam a psicologia. Não correspondem a nenhum impulso psico-lógico, afora a pura necessidade de exprimir, num lazer do ser, quando se escuta,na natureza, tudo o que não pode falar.

É supérfluo que tais imagens sejam verdadeiras. Elas são. Elas têm o abso-luto da imagem. Ultrapassaram o limite que separa a sublimação condicionadada sublimação absoluta.

Mas, mesmo partindo da psicologia, uma transferência das impressõespsicológicas à expressão poética é às vezes tão sutil que somos tentados a dar

1 50 René-Guy Cadou, Hélène ou le Règne Vegetal, ed. Seghers. pág. 13.1 5 1 Noêl Bureau. Les Mains Tendues, pág. 29. ,

Claude Vigée, loc. cit., pág. 68.

Page 23: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

A POÉTICA DO ESPAÇO 313

uma realidade psicológica de base ao que é pura expressão. Moreau (de Tours)não "resiste ao prazer de citar Théophile Gautier quando traduz como poeta suasimpressões de maconhado".1 53 "Minha audição", diz Théophile Gautier, "sedesenvolvera prodigiosamente; eu ouvia o barulho das cores; sons verdes, verme-lhos, azuis, amarelos me ocorriam em ondas perfeitamente distintas." Mas Mo-reau não é tolo e nota que cita as palavras do poeta "apesar da poética exagera-ção de que são marcadas e que é inútil revelar". Mas, então, para quem é odocumento? Para o psicólogo ou para o filósofo que estuda o ser poético? Ou,ainda, quem é que "exagera" aqui: a maconha ou o poeta? Por si só, a maconhanão pode exagerar tão bem. E nós, leitores tranqüilos, que não estamos "maço-nhados" senão por delegação literária, não ouviríamos as cores arrepiar-se se opoeta não tivesse sabido nos fazer escutar, superescutar.

Então, como ver sem ouvir? Existem formas complicadas que mesmo nodescanso fazem barulho. O que está retorcido continua rangendo e se coator-cendo. E Rimbaud sabia quando

Ele escutava o ronco engalicado dos pomares.

(Les Poetes de SeptAns.)

A mandrágora em sua própria forma mantém sua lenda. Teve que gritarquando a arrancavam, essa raiz com forma humana. E que barulho de sílabas, emseu nome, para um ouvido que sonha! As palavras, as palavras são conchas dequeixumes. Na miniatura de uma única palavra, como há histórias!

E grandes ondas de silêncio vibram poemas. Numa pequena antologia depoemas publicados com um belo prefácio de Mareei Raymond, Pericle Patocchiconcentra num verso o silêncio do mundo longínquo:

Ao longe eu ouvia orar as fontes da terra.

(Vingt Poèmes.)

Há poemas que penetram no silêncio como nós descemos numa memória.Assim, este grande poema de Milosz:

Enquanto a ventania zumbe nomes de mortasOu o barulho da velha chuva açoita em alguma estrada

Escuta — mais nada — só o grande silêncio — escuta.

(O. W. de L. Milosz — reproduzido por Les Lettres, Ano 2, n.° 8.)

Nada precisa aí de uma poesia imitativa como na peça, tão famosa e bela, deVictor Hugo, Les Djinns. É antes o silêncio que vem obrigar o poeta a escutá-lo.O sonhq^ é então mais íntimo. Não se sabe mais onde está o silêncio: no vasto

' | mundo ou no passado imenso? O silêncio vem de mais longe que um vento que

i j 1 53 J. Moreau (de Tours). "Du Haschisch et de 1'Aliénation Mentalc". Études Psychologiques, Paris. 1845.

i f pág. 71. »

Page 24: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

314 BACHELARD

acalma, que uma chuva que ameniza. Em outro poema (loc. cit., pág. 372), Mi-losz diz num verso inesquecível:

O cheiro do silêncio é tão velho. . .

Ah, de que silêncios precisamos nos lembrar na vida que passa !

XII

Como os grandes valores do ser e do não-ser são difíceis de situar! O silên-cio, onde está sua raiz, é uma glória do não-ser ou uma dominação do ser? Ele é"profundo". Mas onde está a raiz de sua profundeza? No universo onde rezamsuas preces as fontes que vão nascer, ou no coração de um homem que sofreu?Em que altura do ser devem aguçar-se os ouvidos que escutam?

.Quanto a nós, filósofo do adjetivo, estamos na posição incômoda da dialé-tica do profundo e do grande: do infinitamente reduzido que aprofunda ou dogrande que se estende sem limite.

A que profundidade do ser não desce este curto diálogo entre Violaine eMara em L 'Annonce Faite à Marie (Anunciação Feita a Maria). Enceta, comalgumas palavras, a ontologia do invisível e do inaudível.

Violaine (cega) — Ouço. . .Mara — O que ouves?Violaine — As coisas existirem comigo.

O estilo é aqui tão profundo que deveríamos meditar longamente sobre ummundo que existe em profundidade por sua sonoridade, um mundo cuja exis-tência seria a existência das vozes. A voz, ser frágil e efêmero, pode testemunharas mais fortes realidades. Ela toma, nos diálogos de Claudel — e encontraríamosfacilmente numerosas provas disso — as certezas de uma realidade que une ohomem e o mundo. Mas, antes de falar, é preciso ouvir. Claudel foi um grandeouvinte.

XIII

Acabamos de encontrar unidas na grandeza do ser a transcendência do quese vê e a transcendência do que se ouve. Para indicar com o traço mais simplesessa dupla transcendência podemos perceber a audácia do poeta que escreve:1 5 4

Eu me ouvia, fechando os olhos, e reabrindo-os. . .

Todo sonhador solitário sabe que ouve de outra maneira quando fecha osolhos. Para refletir, para escutar a voz interior, para escrever a frase central,condensada, que vai ao "fundo" do pensamento, quem não põe a mão na frontee aperta as palpebras com pressão forte? Então o ouvido sabe que os olhos estão

1 5 " Loys Masson, Icare ou le Voyageur, ed. Seghers. pág. 15. '

Page 25: Texto 3 - Bachelard Miniatura.pdf

A POÉTICA DO ESPAÇO 315

fechados, sabe que a responsabilidade do ser que pensa, que escreve, está nele. Acalma virá quando a pessoa reabrir as pálpebras.

Mas quem nos falará dos devaneios de olhos fechados, semifechados, ouinteiramente abertos? O que será preciso guardar do mundo para se abrir àstranscendências? Pode-se ler no livro de J. Moreau, livro que data de mais de umséculo (loc. cit., pág. 247): "O simples abaixar das pálpebras basta, em certosdoentes, e durante o estado de vigília, para produzir alucinações da vista". J. Mo-reau cita Baillager e acrescenta: "O abaixar das pálpebras não produz apenasalucinações da vista, mas alucinações da audição".

Quantos devaneios me proporciono reunindo essas observações dos bons edos velhos médicos e desse doce poeta que é Loys Masson! Como o poeta tem oouvido aguçado! Que mestria tem no manejo do jogo desses aparelhos que ser-vem para sonhar: ver e ouvir, ultra-ver e ultra-ouvir, ouvir-se, ver.

Outro poeta nos ensina, se assim podemos dizer, a nos ouvir escutar: *"Escuta bem no entanto. Não minhas palavras, mas o tumulto que se eleva

em teu corpo quando te escutas".1 6 5 René Daumal compreendeu bem que seencontrava diante de uma fenomenologia do verbo escutar.

Colhendo todos os documentos da fantasia e dos devaneios que gostam dejogar com as palavras, com as impressões mais efêmeras, confessamos uma vezmais uma vontade de permanecer superficiais. Exploramos apenas a camadamais fina das imagens nascentes. Sem dúvida, a imagem mais frágil, mais incon-sistente pode revelar vibrações profundas. Mas seriam precisas indagações emoutro estilo para separar a metafísica de todos os "além" de nossa vida sensível.Em particular, para dizer como o silêncio trabalha simultaneamente o tempo dohomem, a palavra do homem, o ser do homem, seria preciso um livro grande.Esse livro, aliás, já está escrito. Leiam de Max Picard: O Mundo doSilêncio.1 5 6

1 5 5 René Daumal, Poésie Noire, Poésie Blanche, ed. Gallimard. pág. 42.1 5 6 Max Picard. Die Welt des Schwejgens, Rentsch Verlag, Zurique. 1948. trad. fr.: Le Monde du Silence,trad. J. J. Anstett, Paris, P. U. F., 1954.