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Falla dos Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal, SP, v.2, n.2, jan./dez. 2005 19 Um estudo sobre as representações visuais da peça Hamlet de William Shakespeare Flávia D. Costa Morais 1 UNIPINHAL/UNICAMP O presente ensaio tem como objetivo realizar uma análise da trajetória das representações visuais das peças de William Shakespeare, focalizando a tragédia Hamlet; bem como das implicações da tradição da Ut pictura poesis nestas produções artísticas. No período elisabetano, a Inglaterra teve como maior força transformadora de sua cultura e de sua sociedade, o teatro que foi, ao que nos mostra a história, uma forma empenhada e firme, de ativismo social que visasse superar o clima estritamente pietista dos tempos medievais ingleses. Se nos teatros anteriores apresentavam-se personagens diáfanas que, apesar de às vezes muito belas, escapavam à figuração do homem cotidiano, no teatro elisabetano – mormente sob a força inventiva de um Shakespeare – o público se deixa seduzir por personagens e histórias que poderiam ser as da vida cotidiana. O teatro, no período que desejamos focalizar, é trazido de regiões quase celestiais, para a representação da vida em sua crua realidade. O poder da poiésis mobiliza, no âmbito de uma única arte, vetores emocionais de grande sutileza e variedade. No entanto, o contato de diferentes âmbitos artísticos (pintura, literatura, escultura, arquitetura, etc.) mobiliza comunicações de conteúdo e emoção desencadeadoras de muito curiosas articulações entre diferentes expressões artísticas. Tomemos apenas um exemplo histórico do século XIX. É sabido que o pintor Bucher expôs impressionante quadro com o título: “A tarde de um fauno”; o poeta Mallarmé visitando a referida exposição, e sob impressão do citado quadro, escreveu o poema “A tarde de um fauno”; o músico Debussy, sob impressão do quadro e do poema de Mallarmé, compôs a peça musical “A tarde de um fauno”, sendo que, o não menos genial coreógrafo e dançarino russo Nijinski traduziu para a linguagem cênico-musical do ballet a dança imortalizada pelo próprio Nijinski e posteriormente também por Nureiev, “A tarde de um fauno”. 1 Mestre em Filosofia da Educação – Unicamp; doutoranda em Artes – Unicamp; Professora de Literatura Inglesa – Unipinhal.

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Um estudo sobre as representações visuais da peça Hamlet de William Shakespeare Flávia D. Costa Morais1 UNIPINHAL/UNICAMP

O presente ensaio tem como objetivo realizar uma análise da trajetória das

representações visuais das peças de William Shakespeare, focalizando a tragédia

Hamlet; bem como das implicações da tradição da Ut pictura poesis nestas produções

artísticas.

No período elisabetano, a Inglaterra teve como maior força transformadora de

sua cultura e de sua sociedade, o teatro que foi, ao que nos mostra a história, uma

forma empenhada e firme, de ativismo social que visasse superar o clima

estritamente pietista dos tempos medievais ingleses. Se nos teatros anteriores

apresentavam-se personagens diáfanas que, apesar de às vezes muito belas,

escapavam à figuração do homem cotidiano, no teatro elisabetano – mormente sob a

força inventiva de um Shakespeare – o público se deixa seduzir por personagens e

histórias que poderiam ser as da vida cotidiana. O teatro, no período que desejamos

focalizar, é trazido de regiões quase celestiais, para a representação da vida em sua

crua realidade.

O poder da poiésis mobiliza, no âmbito de uma única arte, vetores emocionais

de grande sutileza e variedade. No entanto, o contato de diferentes âmbitos

artísticos (pintura, literatura, escultura, arquitetura, etc.) mobiliza comunicações de

conteúdo e emoção desencadeadoras de muito curiosas articulações entre diferentes

expressões artísticas. Tomemos apenas um exemplo histórico do século XIX. É

sabido que o pintor Bucher expôs impressionante quadro com o título: “A tarde de um

fauno”; o poeta Mallarmé visitando a referida exposição, e sob impressão do citado

quadro, escreveu o poema “A tarde de um fauno”; o músico Debussy, sob impressão

do quadro e do poema de Mallarmé, compôs a peça musical “A tarde de um fauno”,

sendo que, o não menos genial coreógrafo e dançarino russo Nijinski traduziu para a

linguagem cênico-musical do ballet a dança imortalizada pelo próprio Nijinski e

posteriormente também por Nureiev, “A tarde de um fauno”.

1 Mestre em Filosofia da Educação – Unicamp; doutoranda em Artes – Unicamp; Professora de Literatura Inglesa – Unipinhal.

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Encontraríamos uma quantidade de outros exemplos de comunicação entre as

artes. Porém, fixamo-nos no objetivo específico do presente trabalho que, como já foi

dito, pede observação acerca de obra literária que tenha sido ricamente contemplada

pelas artes plásticas – sobretudo a pintura

1. Considerações Sobre O Teatro Elisabetano

Não há como pensar o teatro renascentista inglês, sem considerá-lo um

desdobramento das manifestações artísticas medievais.

Naquilo que diz respeito à reflexão sobre o cultural, toma vulto cada vez mais

expressivo a pesquisa acerca da evolução do imaginário humano mediante a avaliação

de um suceder de matrizes epistêmicas (ou simplesmente epistemes, como preferia

Michel Foucault em As palavras e as coisas). Isto em razão de que a dinâmica

dialética entre continuidade e descontinuidade, que dá como resultado o intrincado

tecido da história, ao mesmo tempo que nega separações estanques ou rupturas entre

momentos diversos da periodização histórica, também afirma que o “espírito do

tempo” hegeliano não é propriamente uma fantasia, pois – e isto é tão claro! – o

homem moderno não mostra viver a realidade existencial e a visão de mundo

medievais, do mesmo modo que o contemporâneo mostra-se instalado num

imaginário que, provavelmente, não tenha tanto a ver com o homem do século XVII,

por exemplo. Ressalte-se o historiador da ciência e filósofo contemporâneo Alexander

Koyré, o qual elaborou o conceito de revoluções ontológicas (em Estudos de História

do Pensamento Científico (1991)), com a finalidade de focalizar exatamente o

descontínuo na trajetória civilizacional, do mesmo modo que Thomas Kuhn teorizou

acerca das rupturas paradigmáticas que refletem, no âmbito da ciência, modificações

profundas na visão de mundo (em Estrutura das Revoluções Científicas (1975)).

Porém, o pensador que conduziu este tema a regiões de maior radicalidade foi, sem

dúvida, Michel Foucault (As Palavras e as Coisas (s/d)).

Do que lemos em Foucault, episteme é a estrutura inconsciente da cultura em

um dado momento histórico; essa mesma estrutura resulta da complexa dinâmica de

um conjunto de forças que se cruzam no imaginário, marcando, no seu exato ponto

de intersecção, a conformação de um foco irradiador de conhecimento e arte com o

qual resolvem-se uns tantos problemas, na medida em que outros tantos não são

resolvidos. Digamos que a episteme possa ser considerada o código dos códigos de

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uma cultura, podendo simplesmente ser entendida como o substrato – muito dinâmico

por sinal! – de sua mentalidade.

Vendo com nitidez que o período medieval não comporta visão monolítica, no

sentido de haver apresentado uma única característica, mesmo assim constatamos –

como de resto o têm feito tantos autores – que se tratou de um período

marcadamente teocêntrico e contemplativo. Precisamente, o Renascimento inglês

será, após aproximadamente dez séculos de auto-negação humana, o momento de

explosão de um antropocentrismo que, especialmente mediante o teatro, logrará

recuperar uma antropologia que ponha o ser humano como centro do significado da

história.

O teatro inglês do século XVI é herdeiro da tradição medieval das “moralidades”

e “mistérios”, apresentações dramáticas que tiveram origem nas liturgias católicas, e

que tinham como finalidade difundir as idéias e valores religiosos, bem como recrear.

Os dramaturgos da Era Elisabetana não perderam, como nos parece claro, sua

relação com o teatro medieval, transformando-o e criando diferentes formas, sob o

impacto de uma nova visão de mundo renascentista com sua filosofia humanista, com

novo interesse pelas artes e literatura, retomando valores greco-romanos, mas nos

moldes da Renascença.

Numa época em que as grandes descobertas marítimas alargaram os horizontes

e mostraram ser, nosso mundo, muito maior em extensão e possibilidades do que até

então imaginado, a promessa de um progresso humano, fruto também de uma ciência

experimental nascente, levou o homem para o centro do palco da vida. Afinal,

tratava-se do início do que seria um vasto processo denominado pelos historiadores

da cultura “a europeização do mundo”.

No que diz respeito ao teatro, é preciso considerá-lo no período em foco, dentro

de suas peculiaridades. Na descrição de Stevens e Mutran sobre o espaço físico e

público temos:

“O público participava da peça muito mais do que o do teatro convencional moderno. O palco era uma plataforma nua, uma parte da qual se estendia até o meio da platéia. Os espectadores conservavam-se em pé ou acomodavam-se em assentos dispostos em três lados ao redor do palco, onde se sentavam os homens da classe mais abastada, que, durante a encenação, faziam comentários a respeito da peça e dos atores, e chegavam até mesmo a tocar-lhes as roupas para avaliar-lhe sua qualidade. (...)

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Havia pouco cenário. Esse fato obrigava o autor a usar recursos para criá-lo na imaginação do público; o texto trazia, por isso, descrições muito realistas e vivas (...)”.2

Como não é difícil perceber-se, o século XX, sobretudo em sua segunda

metade, procura trazer de novo algumas das características comentadas pelos autores

acima quanto à proximidade do público (teatros de arena), e quanto a interações

eventuais entre textos, atores e platéia [por exemplo, o dramaturgo Pedro Bloch, com

sua histórica peça (um monólogo) “As mãos de Eurídice”].

Na época da Reforma, do Humanismo, dos tipos móveis de Gutenberg e da

prensa de Caxton, na Inglaterra, a necessidade de expressão aumentou, o que fez

com que um público ainda não apto para o contato mais abrangente com a literatura

escrita, buscasse no teatro essa possibilidade, devido exatamente a sua participação

ativa, como demonstrado pela citação acima. Via-se o teatro, fiel à sua história,

cumprindo um papel importante de formação social.

A força imaginativa de Shakespeare aproveitou o seu momento, trazendo para

as luzes do século XVI, um teatro pobre em cenografia, porém riquíssimo em

sugestões visuais; tão rico que encontrou, nas artes pictóricas a partir do século

XVIII, sobretudo, e no cinema a partir do século XX, excelentes veículos.

Nas palavras de Bárbara Heliodora:

“É perfeitamente possível argumentar que o palco italiano, com sua cenografia, presta um grande serviço à platéia por criar visualmente o universo de que o texto fala naquele momento. O que seria, nesse caso, a inferioridade do teatro elisabetano, isto é, a ausência dessa espécie de muleta para a imaginação, passa a ser na verdade a sua maior qualidade: desde que o autor seja muito bom, o espetáculo elisabetano é um desafio, uma provocação à imaginação de cada espectador”.3

Oswald Spengler, historiador e filósofo alemão, destaca em sua obra A

decadência da civilização ocidental, considerando a abertura de uma das cenas de Rei

Lear, que só um gênio como Shakespeare descreveria tão completamente um cenário

ao enunciá-lo assim: “Uma rua”. Noutras palavras, comenta Spengler, que por essa

rua passam todas as ruas do mundo; passa a minha rua; passa a rua da minha

curiosidade pela existência.

Fica-nos claro que a genialidade de Shakespeare, bem como a importância

social e cultural do teatro no século XVI, propiciou para os séculos seguintes, um

manancial de estudos artísticos sobre o legado deste dramaturgo, no qual se insere

2 Kera STEVENS e Munira H. MUTRAN, O teatro inglês da Idade Média até Shakespeare, p. 17. 3 Bárbara Heliodora, Reflexões shakespearianas, p. 51.

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uma enorme quantidade de representações visuais de inestimável valor estético, seja

em campo de estudos cenográficos, de ensaios de design, de experiências pictóricas e

mesmo escultóricas.

2. O Status artístico de Shakespeare e as artes visuais.

A forte turbulência política, motivada também por questões de ordem religiosa,

do século XVII acabou por obstaculizar grandemente as manifestações dramáticas na

Inglaterra. Em 1642, os puritanos conseguiram aquilo que consideraram uma vitória

ante um tipo de manifestação cultural tida como espúria - fecharam os teatros

acabando, assim, com uma tradição de encenação e interpretação que jamais pôde

ser resgatada com a força que adquirira até então. Os teatros permaneceram

fechados até 1660; após esta data, o renascer desta modalidade de arte se deu com o

chamado drama especialista, com uma platéia de gosto um tanto estreito e duvidoso,

que não aceitava mais a densidade do drama shakespeariano, por exemplo. Era uma

das primeiras tentativas do primado ou mesmo imposição do entretenimento.

Como exemplifica Anthony Busgess, mencionando comentários de Samuel

Pepys sobre representações de Shakespeare:

“1662 – [...] vi Romeu e Julieta (Shakespeare) na primeira vez em que foi encenada, a pior peça que já vi em minha vida. Sonho de uma noite de verão (Shakespeare), que jamais vira antes, nem verei de novo, pois é a peça mais insípida, ridícula, que já vi em minha vida.

1663 – A noite de Reis (Shakespeare), uma peça tola e sem qualquer relação com seu nome e época”.4

Contudo, e apesar de reações semelhantes a que pudemos observar acima

(afinal, quem pôde, em qualquer época, conter a mediocridade?), vemos que, na

aurora do século XVIII, a figura de William Shakespeare começa a adquirir um status

de ícone nacional, posteriormente ganhando a aceitação como gênio da literatura

universal.

Em razão disso, os estudos pictóricos relativos às peças de Shakespeare

começaram a proliferar a partir da metade deste século.

“The proliferation of images relating to Shakespeare’s plays was only one part of the process that led to the virtual canonization that began

4 Anthony BUSGESS, A literature inglesa, p. 160.

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perhaps with the unveiling in 1741 of a memorial statue of Shakespeare in Westminster Abbey.”5

Estava instaurada a chamada bardolatria, que colocaria o dramaturgo

finalmente em lugar correspondente com a sua grandeza. Com o Jubileu de

Shakespeare, celebrado em 1769, em Stratford Upon Avon (sua cidade natal), temos

uma grande multiplicação de encenações de suas peças que acabaram notabilizando

alguns atores, como por exemplo David Garrick.

“So successful to this date had Garrick been at establishing Shakespeare on the stage, at acting major Shakespearean roles, and at winning credit as the finest of interpreters of Shakespeare, that his status had acquired mythic proportions. His contemporaries, and later many theater historians, credited him as almost single-handedly having rediscovered Shakespeare and as having interpreted him aright.”6

Fica-nos claro que, a partir sobretudo desta data, o culto ao poeta, bem como

as leituras interpretativas de suas peças, de seus personagens, cresceu imensamente,

chegando a adequações um tanto mutiladoras, como é o caso das adaptações

moralizantes que, embora não deixem de ser terríveis do ponto de vista da arte, são

importantes mostras da grandeza de Shakespeare e do retrato de épocas cujas

necessidades ditaram tais reações (sirva-nos como exemplo o período vitoriano).

Shakespeare não deixou de fazer parte do cenário inglês, nem mesmo quando

suas peças, se lidas na íntegra (sem cortes ou adaptações), gerariam desconforto e

mesmo aversão. Passou por diferentes períodos histórico-artísticos com a mesma

força, trazendo, aos dias de hoje, declarações como a de Jan Kott, sobre a peça

Hamlet:

“(...) Muitas gerações reconheceram seus traços nele [Hamlet]. E a genialidade de Shakespeare talvez resida no fato de a peça servir como um espelho. Um Hamlet perfeito seria ao mesmo tempo o Hamlet mais shakespeariano e o mais contemporâneo.”7

Seja no teatro como, posteriormente, no cinema a questão psicanalítica da

identificação é crucial. Alguns psicanalistas referem-se a algo que denominam

“regressão narcísica”, o que significa que, ao assistir a uma peça ou a um filme, a

história que vemos e que nos toca, toca-nos porque vemo-nos no espelho das águas à

feição da figura mitológica de Narciso.

E é justamente esta peça - Hamlet, uma das mais encenadas e estudadas

dentre as demais obras de Shakespeare, que será o foco de nossa atenção no tocante

a sua representação visual. 5 Alan R. YOUNG, Hamlet and the visual arts 1709-1900, p. 42. 6 Alan R. YOUNG, Hamlet and the visual arts 1709-1900, p. 45. 7 Jan KOTT, Shakespeare nosso contemporâneo, p.70.

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3. Considerações sobre Hamlet nas artes visuais – A tradição da Ut Pictura

Poesis.

Dante Gabriel Rossetti. Hamlet and Ophelia, 1858.

De um modo geral, poderíamos dizer que as peças de Shakespeare ganharam

representatividade nas artes visuais destacando-se algumas, notadamente aquelas

mais encenadas, ou mesmo aquelas que melhor traduziram as necessidades de uma

determinada época, considerando-se o período que vai do século XVIII ao XX.

O Renascimento é todo permeado pela questão da comparação entre poesia e

pintura, proporcionando desdobramentos importantes para a teoria da pintura nos

séculos seguintes, considerando tanto a pintura como a poesia como a imitação da

natureza, diferentemente do privilegiamento proposto por Leonardo da Vinci em

relação à pintura (Paragone).

O conceito de arte, que ao longo da Idade Média foi filtrado pela concepção

pietista de mundo, recobra as angulações aristotélicas de imitação da natureza, nas

palavras de Aristóteles, não como ela é, mas como ela deveria ser, segundo a

subjetividade do artista.

No caso de Shakespeare, o que vemos é a apresentação, em suas peças, de

personagens mais próximas da realidade do homem comum, com suas paixões,

incertezas e questionamentos; com toda a miríade complexa de significações internas,

bem distante daquele herói trágico grego, que habitava uma espécie de Olimpo

divinizador das expressões humanas. O fato é que Shakespeare é como um

Copérnico do teatro, de vez que provoca intencionalmente o seguinte

descentramento: do núcleo grego da questão do destino nas tragédias, para dramas

concernentes à dinâmica emocional e cotidiana do homem comum.

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Após a comemoração do Jubileu, imagens relativas à peça Hamlet começam a

aparecer, sendo que o primeiro item só apareceu em 1775 - curiosamente era um

desenho da cabeça de Ofélia, por John Hamilton Mortimer, exibido na Society of

Artists.

John Everett Millais. Ophelia, 1852.

A partir daí, a reprodução de desenhos das peças de Shakespeare se afigurou

como algo muito rentável para os editores, fazendo com que os mesmos fossem

procurados até como objetos de decoração.

Um interessante aspecto destas representações é a grande quantidade de

desenhos e pinturas baseadas em encenações das peças, trazendo, na própria obra

pictórica, a figura de atores famosos em seus personagens e momentos mais

aclamados.

Na época do Romantismo, Hamlet continua sendo de interesse central; a

personagem ganha grande difusão, em parte por causa das imagens pictóricas

baseadas na peça. E mesmo neste período vemos mostras de uma discussão que

ainda faz parte das preocupações dos teóricos; notem para o que escreveu Boydell no

prefácio ao seu catálogo da Shakespeare Gallery, em maio de 1789:

"... it must always be remembered, that he [Shakespeare] possessed powers which no pencil (i.e. brush) can reach; for such was the force of his creative imagination, that though he frequently goes beyond nature,

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he still continues to be natural, and seems only to do that, which nature would have done, had she o'erstepp'd her usual limits. - It must not then be expected, that the art of the Painter can ever equal the sublimity of our Poet. (…) It is therefore hoped, that the spectator will view this Pictures with this regard, and not allow his imagination, warmed by the magic powers of the Poet, to expect from Painting, what Painting cannot perform"8

Mas há algumas cenas que deram ensejo a um número maior de

representações pictóricas, principalmente pela carga de significados que possuíam e

pelas possibilidades de fidelidade ao texto. São elas:

A aparição do fantasma do Rei Hamlet.

Hamlet e os coveiros.

A peça-dentro-da-peça - a encenação da morte do rei Hamlet, forjada pelo

príncipe Hamlet.

A loucura e morte de Ofélia.

A cena do quarto da rainha Gertrude, em que Hamlet mata Polônio.

Analisando esta incidência, percebemos que há uma riqueza de motivações

pictóricas nelas. São cenas que trazem a possibilidade da unidade representativa de

importantes momentos da peça, momentos que se tornaram emblemáticos. No caso

da aparição do fantasma do pai de Hamlet, observamos a necessidade de expressão

de diversas reações envolvendo: terror, medo, admiração, entre outros sentimentos;

evocados pela força das palavras reveladoras do fantasma e pela própria aparição.

"The artist should rather convey the impressions of speech and indicate the emotional reactions of the figures in his paintings by means of their movements and, above all, their facial expressions".9

Fascinante é esse jogo de imaginações; Shakespeare pinta na sua imaginação

aquilo que tão habilmente escreve; os atores se não lograrem pintarem em sua

própria imaginação algo semelhante, trairão a Shakespeare; os pintores, nessa

cadeia, precisam também exprimir por pinceladas e composições o que lograram

imaginar a partir de Shakespeare.

8 Apud, Alan R. YOUNG, Hamlet and the visual arts 1709-1900, p. 73. 9 Charles Le BRUN, The expression of the Passions, p.61.

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HAMLET - An original painting by H. Fuseli.

Eis aqui alguns outros exemplos:

Hamlet and the Gravediggers , Jean Dagnan-Bouverte

Nesta imagem vemos retratada a famosa cena de Hamlet, com o crânio de

Yorick nas mãos; um momento de falas que mesclam comicidade e espanto ante os

mistérios da existência humana. Edward Edwards foi um dos primeiros a retratar a

cena:

"Edward showed Hamlet holding Yorick's skull accompanied by the quotation "Alas, poor Yorick!"

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(…)

Whatever may have been the intent behind Edwards's design, it retains a singular importance in that it was the first of a long and copious series of art works on the subject of the Graveyard Scene and in particular of Hamlet's reaction to Yorick's skull"10

Eugène Delacroix. Hamlet and Horatio in the Graveyard, 1835.

"… lithographs of Eugène Delacroix appear primarily to have been an attempt to express the poetry of reverie and the quiet lyricism and brooding melancholy that he valued in the play".11

Os pintores, como se observa, nem sempre se prendem às visões de palco para

as quais Shakespeare escreveu; a riqueza é tal que as cenas são trazidas para

paisagens e locais outros que não os espaço cênico.

A cena que envolve o momento da representação teatral da morte do pai de

Hamlet é especialmente intrigante, porque envolve a necessidade de agrupamento de

focos interpretativos importantes contendo: a objetivação da cena representada pelos

atores; a reação de Hamlet; a reação de Cláudio (tio de Hamlet e assassino do rei); a

reação do público.

10 Alan R. YOUNG, Hamlet and the visual arts 1709-1900, pp. 64-65. 11 Ibidem, p. 108.

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Daniel Maclise. The Play Scene in "Hamlet," 1842

A personagem Ofélia é uma das mais representadas nas artes visuais. Sua

importância, como heroína shakespeariana e como representante de um universo

feminino que envolve submissão ao pai, ao irmão, aos soberanos, ao próprio Hamlet,

leva-nos a buscar nela respostas para os meandros implicados neste universo até os

dias de hoje.

Ofélia ora é representada com ares de ninfa complacente, ou com um

semblante de carregada melancolia, ora desgrenhada, em plena loucura, e mesmo no

momento da morte por afogamento.

George Frederic Watts. Ophelia, c. 1864.

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Dominico Tojetti (1817-92). Ophelia, 1880.

Joseph Severn. Ophelia, c. 1831.

Arthur Hughes Oil on canvas with an arched top, approximately 27 x 49

inches. Manchester City Art Galleries, Manchester, England. 1852.

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Eugène Delacroix. The Death of Ophelia, 1853.

Instruir e deleitar - no caso de Shakespeare parece que ambos os conceitos se

aplicaram ora distintamente, ora simultaneamente.

"Horacio, como satírico, había vuelto el espejo de su arte a las flaquezas humanas, y sentia un interes profundo, aunque cortés y desapasionado, por el perfeccionamiento de la vida humana. Directamente de él procedia la recomendación de que la pintura, como la poesia (Horacio pensaba em el efecto del arte dramático en el auditorio) debía instruir a la vez que deleitar."12

Percebemos que, ao tempo de Shakespeare, o teatro tinha uma manifesta

função de entretenimento, que motivou inclusive os ataques ferrenhos dos adeptos do

puritanismo. Shakespeare, ao que parece de forma intencional, usava a referida

função manifesta (de entretenimento) juntamente com a função latente, cujo objetivo

era fazer pensar sobre a existência.

As violências da guerra civil, do regicídio, do fechamento dos teatros, no século

XVII, e o século XVIII, com suas pretensões cientificistas, delinearam um século XIX

cultor da moral de aparência, atribuindo às manifestações artísticas uma forte

conotação de educação dos sentimentos e veículo de valores morais, ou seja, cabia à

arte, mais do que deleitar, instruir.

Como conclusão...

É conveniente por primeiro concluirmos o óbvio: de um lado a circulação de

sentidos e de sentimentos que mobiliza as artes em geral; de outro, a energia

artística de Shakespeare como geradora de grandes obras em outras formas de

manifestação artística.

12 R. W. LEE, Ut pictura poesis, p. 59.

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No entanto, esta conclusão pede também o mais sutil que, neste caso, é a

manifestação de um mundo subjetivo em constante ebulição estabelecendo nítido

diálogo com o seu tempo e com o seu povo. Mais do que isso, esta coisa mesma de

gênio que é a diacronia que leva a estética teatral e poética, bem como os arroubos

de pensamento de Shakespeare a todas as gerações a ele posteriores, naturalmente

as capazes de sensibilidade e inteligência para do bardo se aproximarem.

Oswald Spengler, já citado neste trabalho, alerta para o tecido literário de

Shakespeare, no qual os fios e os espaços vazios (aparentemente) comungam entre

si. Isto é, lê-se Shakespeare no que ele disse e no que ele calou, nas linhas e nas

entrelinhas. Uma vida cheia de muitas vidas pulsava vigorosamente e destilava uma

literatura capaz de envolver todos os séculos posteriores.

Neste texto, dadas as suas dimensões, precisamos deter-nos em algumas

expressões da pintura oriundas da influência shakespeariana, sendo que a pesquisa

nos mostra que são muito mais abundantes no campo pictórico tais influências.

Cremos, no entanto, ter apresentado – com intenção didática e explicativa – pintores

os mais expressivos que se viram envolvidos na aura de arte e pensamento de

Shakespeare.

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