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1868 UTILITARISMO DE JEREMY BENTHAM: REFLEXÕES SOBRE SUAS CATEGORIAS CENTRAIS ACERCA DA MORAL 1 Amanda Cardoso Barbosa Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES Email: [email protected] Fabíola Francielle de Jesus Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES Email: [email protected] RESUMO: O presente artigo tem como objetivo apresentar algumas categorias centrais de- senvolvidas por Jeremy Bentham em Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Essa obra possui uma grande importância, em especial, no âmbito da filosofia política e nos estudos sobre ética e expressa um dos grandes escritos acerca da teoria utilitarista. Inicialmente apresentamos o conceito de utilidade desenvolvido por Bentham, que por sua vez, com foco nas consequências das ações, visa à maximização da felicidade e a minimização da dor. O autor desenvolve toda sua discussão a partir da premissa de que o gênero humano está submisso ao prazer e a dor e é através do balanço entre ambos que o mesmo introduz as noções de certo e errado. Apresentamos também os dois princípios contrários ao da utilidade, sendo eles, o “as- cetismo” e a “simpatia e antipatia”. Bentham demonstra como tais princípios se caracterizam e enfatiza a partir da fragilidade dos mesmos a sua defesa ao utilitarismo. Por fim, discorremos brevemente acerca da ética benthamiana e a sua estreita relação com o próprio sentido do prin- cípio de utilidade. O autor aqui referenciado não é o único a discorrer acerca do utilitarismo, no entanto, possui um lugar privilegiado nas discussões ao trazer uma aplicabilidade da sua teoria. Reconhecemos que as teorias utilitaristas são alvos de críticas e objeções, no entanto, optamos por apresentar uma discussão em torno das ideias do autor e não as críticas que lhe são direcio- nadas (embora reconheçamos a importância das mesmas). Palavras- chave: utilitarismo, prazer, dor, moral e ética. 1 O presente artigo é produto da disciplina intitulada “Estado e Teorias da Justiça”, ministrada pelos professores doutores Elton Dias Xavier e Gilmar Ribeiro dos Santos no Programa de Pós-Graduação em Desen- volvimento Social – PPGDS.

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UTILITARISMO DE JEREMY BENTHAM: REFLEXÕES SOBRE SUAS CATEGORIAS CENTRAIS ACERCA DA MORAL1

Amanda Cardoso BarbosaUniversidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES

Email: [email protected]

Fabíola Francielle de JesusUniversidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES

Email: [email protected]

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo apresentar algumas categorias centrais de-senvolvidas por Jeremy Bentham em Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Essa obra possui uma grande importância, em especial, no âmbito da fi losofi a política e nos estudos sobre ética e expressa um dos grandes escritos acerca da teoria utilitarista. Inicialmente apresentamos o conceito de utilidade desenvolvido por Bentham, que por sua vez, com foco nas consequências das ações, visa à maximização da felicidade e a minimização da dor. O autor desenvolve toda sua discussão a partir da premissa de que o gênero humano está submisso ao prazer e a dor e é através do balanço entre ambos que o mesmo introduz as noções de certo e errado. Apresentamos também os dois princípios contrários ao da utilidade, sendo eles, o “as-cetismo” e a “simpatia e antipatia”. Bentham demonstra como tais princípios se caracterizam e enfatiza a partir da fragilidade dos mesmos a sua defesa ao utilitarismo. Por fi m, discorremos brevemente acerca da ética benthamiana e a sua estreita relação com o próprio sentido do prin-cípio de utilidade. O autor aqui referenciado não é o único a discorrer acerca do utilitarismo, no entanto, possui um lugar privilegiado nas discussões ao trazer uma aplicabilidade da sua teoria. Reconhecemos que as teorias utilitaristas são alvos de críticas e objeções, no entanto, optamos por apresentar uma discussão em torno das ideias do autor e não as críticas que lhe são direcio-nadas (embora reconheçamos a importância das mesmas).

Palavras- chave: utilitarismo, prazer, dor, moral e ética.

1 O presente artigo é produto da disciplina intitulada “Estado e Teorias da Justiça”, ministrada pelos professores doutores Elton Dias Xavier e Gilmar Ribeiro dos Santos no Programa de Pós-Graduação em Desen-volvimento Social – PPGDS.

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As teorias utilitaristas são dotadas de convergências e diferenciações. Nesse sentido, no presente texto delimitaremos o nosso olhar para a teoria desenvolvida por Jeremy Bentham. Embora as discussões do autor seja alvo de críticas, como por exemplo, a associação da mesma a uma tentativa de busca ingênua de exatidão ao apontar ações maximizadoras do prazer e indi-car uma submissão das vontades humanas a um poder absoluto da razão, não será esse, embora importante, o desenvolvimento do trabalho. Buscaremos discorrer acerca das categorias cen-trais apresentadas por Bentham em Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. O utilitarismo ganhou espaço de discussão, em geral, nos estudos sobre ética e fi losofi a política, haja vista sua relação com o âmbito das teorias normativas. Em sua essência o utilitarismo pri-ma pela atenção às consequências das ações, que por sua vez, devem ser realizadas de modo a propiciar maximização da felicidade e minimização da dor ou sofrimento. Nesse sentido, é que Bentham, considerado o pai do utilitarismo (é importante destacarmos que o referido autor não foi o primeiro a apresentar as ideias utilitárias), tenta fornecer bases capazes de avaliar as ações no interior de uma sociedade.

Segundo o autor, o princípio da utilidade “consiste em construir o edifício da felicidade através da razão e da lei” (BENTHAM, 1979, p.09). Tal princípio parte do pressuposto de que as ações dos indivíduos e⁄ou governados e instituições e⁄ou governos incidem de forma inevitá-vel e diversifi cada sobre o bem-estar dos sujeitos de uma dada sociedade. Assim sendo, a causa fi nal das ações é a “felicidade” de todos.

Por princípio da utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qual-quer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pes-soa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a promover ou comprometer a referida felicidade. Digo qualquer ação, com o que tenciono dizer que isto vale não somente para qualquer ação de um indiví-duo em particular, mas também de qualquer ato ou medida de governo (BENTHAM, 1979, p.10).

A defesa da maximização da felicidade parte da necessidade de identifi cação tanto dos interesses do indivíduo, quanto dos que estão envolvidos na ação, fato esse que possibilita a inserção signifi cativa dos termos certo e errado em determinadas situações. Nesse sentido, é possível, por exemplo, estabelecer um direcionamento quanto às punições a serem empregadas aos indivíduos membros de uma comunidade. “A comunidade constitui um corpo fi ctício, com-posto de pessoas individuais que se consideram como constituindo os seus membros” (BEN-THAM, 1979, p.10). A sujeição do indivíduo ao prazer e a dor é o fundamento do sistema que compreende o princípio da utilidade. O autor ao falar em interesse da comunidade elucida que este se defi ne enquanto a “soma dos interesses dos diversos membros que integram a referida comunidade” (BENTHAM, 1979, p.10), assim, não se pode identifi car qual o interesse da co-munidade, sem passar primeiramente pela compreensão do interesse do indivíduo.

Mas, de que modo uma ação está em conformidade com o princípio da utilidade? De

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forma objetiva, toda ação que está de mãos dadas com tal princípio tende em sua essência a majorar a totalização dos prazeres ou a subtrair as dores. No que concerne especifi camente às medidas de governo, a aplicabilidade do princípio da utilidade parte do pressuposto de que a tendência em maximizar a felicidade da comunidade é sempre maior do que a disposição a diminuí-la. Diante disso, o autor chega a seguinte conclusão:

Em se tratando de uma ação que é conforme ao princípio da utilidade, podemos sem-pre afi rmar ou que ela deve ser praticada, ou, no mínimo, que não é proibido praticá-la. Pode-se dizer, igualmente, que é reto praticá-la – ou, pelo menos, que não é errado praticá-la; ou então, que é uma ação reta – ou, pelo menos, que não é uma ação errada. Se assim forem interpretadas, têm sentido as palavras deveria, reto, errado, o mesmo valendo de outros termos análogos (BENTHAM, 1979, p. 11).

Bentham (1979) desenvolve a defesa do princípio da utilidade a partir da explicação de dois outros princípios que lhe são contrários, sendo eles, o “ascetismo” e a “simpatia e antipa-tia”. No que diz respeito ao primeiro, o mesmo não é considerado consistente, haja vista que, exige a aprovação das ações segundo o pressuposto que tendem a diminuir a felicidade. Desse modo, o ascetismo não pode ser tomado como um princípio generalizado, pois tanto no campo do governo, quanto no âmbito das legislações, implicaria em falha dos critérios de correção. Ou seja, para o autor, tal princípio corresponde a uma aplicação equivocada do princípio da utilidade.

O principio do asceticismo foi ideado, ao que parece, por certos especuladores apres-sados que, tendo percebido - ou imaginado - que certos prazeres, quando colhidos ou desfrutados em certas circunstâncias, trazem como consequência, a longo prazo, dores maiores do que o prazer desfrutado, utilizaram este pretexto para impugnar tudo aqui-lo que se apresenta sob o nome de prazer. Depois de chegarem ate este ponto, e esque-cendo o ponto do qual haviam partido, tais especuladores avançaram mais, chegando ao ponto de considerar meritório enamorar-se da dor (BENTHAM, 1979, p.15).

Para Bentham (1979) é possível que o princípio da utilidade seja seguido com fi rmeza e constância, sendo que, quanto mais constante, melhor para a humanidade. Em sentido contrá-rio, o autor não vê essa possibilidade no ascetismo e afi rma que “se apenas a décima parte dos habitantes da terra o praticasse com seriedade e constância, em um dia o planeta seria transfor-mado em um inferno” (BENTHAM, 1979, p.15).

O princípio da simpatia e da antipatia, apesar de algumas ressalvas, também é visto como dotado de fragilidades. “Por esta expressão entendo o princípio que aprova ou desapro-va certas ações, não na medida em que estas tendem a aumentar ou diminuir a felicidade da parte interessada, mas simplesmente pelo fato de que alguém se sente disposto a aprová-la ou reprová-la” (BENTHAM, 1979, p.15). Esse princípio, ao determinar o que é certo ou errado, não exprime um padrão externo de defi nição de aprovação e desaprovação, mas baseia-se em

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sentimentos internos do próprio agente. Em termos de aplicabilidade, o mesmo pode levar ao desenvolvimento de punições guiadas por desejos irrefl etidos, sem regularidades e previsibili-dades.

O autor não considera que o princípio acima esteja inserido do campo do real, mas sim que esteja restrito ao verbal, no sentido que representa a negativa de qualquer outro princípio. Ao estabelecer quais ações humanas são alvos da desaprovação, as pessoas que partilham da “simpatia e antipatia” tendem a agir da seguinte maneira: “é sufi ciente consultarmos os nossos próprios sentimentos: tudo aquilo que eu me sentir propenso a condenar, por esta simples razão é errado” (BENTHAM, 1979, p.15). O mesmo acontece nos casos de estabelecimento de uma punição:

se odiares muito uma determinada ação, pune-a com muita severidade; se a odiares pouco, pune-a com pouca severidade; deves punir na mesma medida que odiares. Se não odiares em absoluto uma determinada ação, não a punas em absoluto: os senti-mentos nobres da alma não devem ser dominados e tiranizados pelos rígidos e impla-cáveis ditames da utilidade política (BENTHAM, 1979, p.15).

Segundo o autor, apesar dos sistemas criados para defi nição do reto e do errado apre-sentarem expressões diferentes, os mesmos podem enquadrar-se no princípio da simpatia e antipatia, haja vista que, a partir da formulação de artifícios inventados, fogem da necessidade de se recorrer a uma norma que lhe é externa, limitando-se desse modo, a exposição de opiniões e convicções do próprio formulador como razão válida por si mesma.

Embora, em geral, não seja a intenção, vários dos ditames do princípio da simpatia e da antipatia coincidem com o princípio da utilidade, no entanto, o mesmo é dotado de uma exces-siva severidade, pois sempre achará um motivo a punir. Nas palavras do autor:

Não existe ato algum imaginável, por mais trivial e por menos censurável que seja, que o princípio da simpatia e antipatia não encontre motivo para punir. Quer se trate de diferenças de gosto, quer se trate de diferenças de opinião, sempre se encontra motivo par punir. Não existe nenhum desacordo, por mais trivial que seja, que a per-severança não consiga transformar em incidente sério. Cada qual se torna, aos olhos do seu semelhante, um inimigo e, se a lei o permitir, um criminoso [...] (BENTHAM, 1979, p. 16).

A partir de tais exposições, Bentham (1979) afi rma que é a utilidade o único alicerce correto da ação, outros princípios podem até explicar o porquê daquela ação ter se realizado, no entanto, somente o princípio da utilidade “explica por que a mencionada ação pode (moral-mente) ou deve ser praticada” (BENTHAM, 1979, p.18). No decorrer da sua discussão, o autor elenca algumas circunstâncias que possuem infl uência na determinação do valor do prazer e da dor, sendo elas: intensidade, duração, certeza ou incerteza, proximidade no tempo (longinqui-dade), fecundidade, pureza e extensão. Todas essas circunstâncias devem ser levadas em conta

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ao avaliar um prazer ou uma dor.No que diz respeito especifi camente à fecundidade e a pureza, o autor defi ne a primeira

como “a probabilidade que o prazer ou a dor têm de serem seguidos por sensações da mesma espécie” (BENTHAM, 1979, p.22), ou seja, a possibilidade que o prazer tem de gerar mais pra-zer e da dor de gerar mais dor. Já a pureza implica na probabilidade do prazer e da dor manterem sensações relativas ao seu estado inicial, ou seja, de não desencadearem sensações que lhe são contrárias, como exemplo, o prazer gerar sensações de dor e a dor desencadear sensações de prazer. O autor ressalta que a fecundidade e a pureza geralmente não podem ser atribuídas como atributos do prazer e da dor em si mesmos, desse modo, na valoração do prazer e da dor não devem ser considerados no sentido estrito do termo. A consideração dos mesmos direciona-se a atos ou eventos que produzem a dor ou o prazer, desse modo, “devem ser consideradas na avaliação da tendência do respectivo ato ou do respectivo evento” (BENTHAM, 1979, p.23).

Depois de elencar as circunstâncias que possuem infl uência no valor do prazer e da dor, o autor apresenta como deve ser feito esse balanço. O primeiro momento corresponde à identi-fi cação da pessoa que aparentemente os seus interesses serão os mais afetados pela ação, para então realizar o exame dos seguintes elementos:

(I) O valor de cada prazer distinto que se manifesta como produzido pelo ato na primei-ra instância; (2) O valor de cada dor distinta que se manifesta como produzida pelo ato na primeira instância; (3) O valor de cada prazer que se manifesta como produzido pelo ato após o primeiro prazer. Isto constitui a fecundidade do primeiro prazer e a impureza da primeira dor; (4) O valor de cada dor que se manifesta como produzida pelo ato após a primeira. Isto constitui e fecundidade da primeira dor e a impureza do primeiro prazer (BENTHAM, 1979, p.23).

Feito isso, o próximo passo é a soma dos valores de todos os prazeres e de todas as do-res. A tendência do ato será boa caso o resultado seja favorável ao prazer, e respectivamente, a tendência será má, caso for favorável à dor. Posteriormente é necessário:

uma avaliação do número das pessoas cujos interesses aparecem em jogo e repete o processo acima descrito em relação a cada uma delas. Soma depois os números que exprimem os graus da tendência boa inerente ao ato, com respeito a cada um dos indi-víduos em relação ao qual a tendência do ato é boa em seu conjunto. Ao depois, faze o mesmo com respeito a cada indivíduo em relação ao qual a tendência do ato é má em seu conjunto (BENTHAM, 1979, p.23-24).

Caso o mesmo tenha sido favorável ao prazer, inferir-se-á que o ato possui uma tendên-cia boa geral em relação aos afetados pela ação, mas caso aconteça o contrário, o ato possui uma tendência má geral com respeito aos mesmos indivíduos ou comunidade. Bentham (1979) reconhece a difi culdade se seguir o referido método de forma rigorosa antes de toda ação ju-dicial ou julgamento moral, mas ressalta a necessidade de tê-lo sempre em mente e de buscar uma aproximação.

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O balanço feito pelo autor entre prazer e dor, infere que as consequências das ações possuem um custo benefício, o que torna indispensável em certas ocasiões ora a aplicação de sanções morais, ora da própria legislação. Nesse balanço, o indivíduo, enquanto ser inserido em uma sociedade é capaz de medir as consequências das ações através de cálculos que devem sempre levar em conta os dois senhores (prazer e dor).

A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como determi-nar o que na realidade faremos. Ao trono desses dois senhores está vinculada, por uma parte, a norma que distingue o que é reto do que é errado, e, por outra, a cadeia das causas e dos efeitos (BENTHAM, 1979, p.02).

Ao defi nir os limites do setor penal da jurisprudência, o autor laça luz de mais um con-ceito chave em sua teoria, a noção de ética. “Em sentido amplo, a ética pode defi nir-se como a arte de dirigir as ações do homem para a produção da maior quantidade possível de felicidade em benefício daqueles cujos interesses estão em jogo” (BENTHAM, 1979, p.69). Quando o direcionamento concentra-se nas próprias ações do homem, temos o que o autor intitula de arte do auto governo ou ética privada.

Aqui, a questão do dever está relacionada tanto aquele destinado ao próprio indivíduo, quanto ao dever com o próximo. Caso a felicidade do sujeito dependa de uma ação que não afete o prazer de outros, o mesmo deve focar apenas nos seus próprios interesses, porém, caso a felicidade desse indivíduo dependa de ações que, além de afetar a sua própria felicidade, interfi ra também na felicidade de outras pessoas, o interesse de todos afetados pela ação deve ser consultado. Ao analisar a ética privada, Bentham (1979) discorre acerca do que ele defi ne por arte da educação. O autor afi rma que os indivíduos possuem dois estados que se referem à “maturidade das suas faculdades”, o estado adulto e o estado não adulto. Assim, a arte da edu-cação se defi ne enquanto arte do governo em dirigir as ações das pessoas em estado não adulto. A referida arte desdobra-se em arte da educação privada e arte da educação pública:

Na medida em que este ofício é confi ado àqueles que, em virtude de alguma relação privada, possuem a melhor disposição e as melhores habilidades para assumir e de-sempenhar tal missão, pode ser denominada a ate da educação privada ou particu-lar; na medida em que esta arte é exercida por aqueles cujo ofício é supervisionar o comportamento da coletividade inteira, pode chamar-se a arte da educação pública (BENTHAM, 1979, p.70).

Dentro dessa perspectiva, Bentham (1979) difere as ações em três formas distintas. A primeira diz respeito à prudência, e abarca o fato do indivíduo agir em benefício próprio, ou seja, é uma ação para consigo mesmo. A Segunda forma corresponde à benefi cência e visa ações que gerem prazer para outras pessoas. Por último temos aquelas ações que se direcionam no sentido de abster-se de propiciar dor a outros, o que o autor intitula de probidade. Mas, exis-

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tem motivos pelos quais uma pessoa pode ser obrigada a cumprir as exigências da probidade e da benefi cência? Bentham (1979, p.71) responde da seguinte maneira:

Em resposta a tal interrogativo, é imperioso admitir que os únicos interesses para cuja salvaguarda uma pessoa possa encontrar, com certeza e sempre, motivos adequados são os seus próprio interesses. Não obstante isto, não existe nenhuma ocasião em que uma pessoa não tenha alguns motivos para promover a felicidade de outras. Em primeiro lugar tem, em todas as ocasiões, o motivo puramente social da simpatia ou benevolência; em segundo lugar, na maior parte das ocasiões, os motivos semi-sociais do amor à amizade e do amor à reputação. O motivo da simpatia agirá sobre ele com maior ou menor efi ciência conforme a tendência da sua sensibilidade; os dois outros motivos, de acordo com uma variedade de circunstâncias, sobretudo conforme a força das suas faculdades intelectuais, a fi rmeza e constância da sua inteligência, o quantum da sua sensibilidade moral, e os tipos das pessoas com as quais tenha que tratar.

Vimos anteriormente que o conceito de ética empregado por Bentham (1979) possui relação intrínseca com a produção de felicidade, portanto, com o próprio princípio de utilida-de. Porém, podemos afi rmar que tal relação se expande também para o campo da moral, haja vista que, o autor considera a inexistência de ações boas ou más em si mesmas, cabendo-nos, portanto, o julgamento quanto às consequências dessas ações, pois são estas as causadoras de prazer ou dor.

No que tange a qualidade boa ou rná de algo, acontece com os motivos o mesmo que acontece com tudo o que não seja em si mesmo dor ou prazer (estes sim, e só estes, são intrinsecarnente maus, respectivamente bons). Se os motivos são bons ou maus, será exc1usivamente em razão dos seus efeitos; serão bons em razão da tendência que tem a produzir o prazer ou a impedir a dor; serão maus em razão da tendência que tem a produzir a dor ou a afastar o prazer (BENTHAM, 1979, P.37).

Concomitante ao conceito de ética, o autor discorre também acerca de alguns aspectos que englobam a legislação. Esta, assim como a ética privada, tem por objetivo a felicidade. “A ética privada e a arte da legislação andam de mãos dadas” (BENTHAM, 1979, p.71). No en-tanto, existe uma diferenciação quanto aos atos que os mesmos se ocupam, haja vista, que não serão na sua totalidade os mesmos. Ao contrário da ética privada que não prevê casos em que a pessoa não deva dirigir as suas ações em favor da sua felicidade e da de outros, a legislação possui âmbitos em não cabe a sua ação. Para Bentham, não cabe ao governo estabelecer leis que regulam a conduta de um único indivíduo em si, de um indivíduo em que suas ações não possuem interação com a de outros, caso contrário, estaria desenvolvendo ações coercitivas que soariam mais como perseguição do que aplicabilidade do princípio da utilidade. Porém, quando o autor coloca as questões que perpassam o campo da benefi cência, o mesmo afi rma que as mesmas estão ligadas ao campo da ética, pois, implica em um agir para com o outro. Nessa mesma linha de raciocínio, as ações de probidade, nas quais se direcionam no sentido de abster-

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se de propiciar dor a outros possuem espaço tanto no campo da legislação, quanto da ética.As leis visam em primeiro lugar excluir tudo que é pernicioso, ou seja, tudo que tende

a diminuir a felicidade. No entanto, a própria punição é considerada pelo autor como algo per-nicioso, portanto, a partir do princípio de utilidade, deve ser empregada somente na medida em que evite um mal maior. Bentham (1979, p.65) apresenta quatro casos em que a punição não deve ser empregada, sendo eles:

(1) quando não houver motivo para punição, ou seja, quando não houver nenhum prejuízo a evitar, pelo fato de o ato em seu conjunto não ser pernicioso. (2) quando a punição só pode ser inefi caz, ou seja, quando a mesma não pode agir de maneira a evitar o prejuízo (3) quando a punição for inútil ou excessivamente dispendiosa; isso aconteceria em caso de o prejuízo produzido por ela ser maior do que o prejuízo que se quer evitar (4) quando a punição for supérfl ua, o que acontece quando o prejuízo pode ser evitado – ou pode cessar por si mesmo – sem punição, ou seja, por um preço menor.

Podemos perceber a partir dos quatros casos expostos acima que a fi nalidade da lei prima pela ampliação dos direitos, ao invés da imposição da obrigação, dor ou peso sobre a so-ciedade. Desse modo, a menos que haja razões justas e satisfatórias, nenhum desprazer deve ser produzido ou nenhuma lei deve ser criada. Anteriormente apresentamos as três formas de ações colocadas por Bentham (prudência, benefi cência e probidade), cabe-nos interpretar aqui que o indivíduo encontrado nas ações intituladas de prudência não é alvo da legislação, não é objeto da lei, pois, as consequências das suas ações incidem somente sobre si e não afetam outros, des-se modo, as suas ações, bem como as consequências da mesma limita-se ao âmbito da moral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O utilitarismo de Bentham estabelece uma relação entre lei e razão e vê nessas a pro-babilidade de viabilizar a maximização do prazer. O princípio da utilidade fundamenta-se na sujeição dos indivíduos ao prazer e a dor e é defi nido pelo autor como o princípio que aprova ou desaprova qualquer ação segundo a possibilidade que tem de majorar ou comprometer a fe-licidade dos envolvidos. Cabe-nos ressaltar aqui que, tais envolvidos ou “aqueles cujo interesse está em jogo” são apresentados no texto aqui analisado como “comunidade”. Apesar de todas as críticas direcionadas a sua teoria, Bentham enxerga no princípio da utilidade a possibilidade se ser seguido com fi rmeza e constância, ao contrário do que ele aponta ocorrer com o princípio do ascetismo.

É a partir do pressuposto de que a utilidade é o único alicerce correto da ação que o autor realiza sua crítica ao princípio do ascetismo e ao princípio da simpatia e da antipatia. Aquele é analisado como uma aplicação equivocada do princípio da utilidade, haja vista que, a sua aprovação das ações acontece na medida em que estas objetivam diminuir a felicidade, fato

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este contrário ao apregoado pela utilidade benthamiana. Já o princípio da “simpatia e antipatia” apesar de possui semelhanças com o da utilidade, peca por sua severidade e necessidade de punição.

Ao realizar o balanço entre dor e prazer Bentham tentou explicar a tendência dos atos em si. Ao fi nal de seu método mostrou que, inferiremos que o ato possui uma tendência boa geral caso o balanço seja favorável ao prazer. Da mesma forma, no sentido contrário, conclui-remos que o ato possui uma tendência má geral caso este seja favorável à dor. Apesar de ter exposto o seu método de análise das consequências das ações, o autor reconhece a complexi-dade de empregá-lo em todo julgamento, mas ressalta que o seu emprego só traria benefícios à sociedade.

Ao associar o utilitarismo ao âmbito jurídico, Bentham (1979) apresenta uma importan-te discussão acerca da ética. Ao visar à obtenção de prazer para todos os envolvidos em alguma ação, o signifi cado de ética benthamiana afi na-se com o próprio sentido utilitarista. Interessante ressaltarmos que é nesse momento que o autor aponta a inexistência de ações boas ou más em si mesmas, e chama a nossa atenção quanto à necessidade de julgarmos as reais causadoras da dor e dor prazer: as consequências das ações.

No livro também identifi camos o posicionamento do autor quanto ao governo e conco-mitante, a própria legislação. No pensamento de Bentham as leis devem ser criadas e aplicadas no sentido impedir que determinadas ações diminuam a felicidade da comunidade e de eliminar o que ele intitula de pernicioso. Por fi m, ressaltamos que apesar de atribuir esse papel as leis, o autor considera a própria punição como algo pernicioso, portanto, não deve ser aplicada de forma irrefl etida, mas buscando sempre um bem maior.

REFERÊNCIAS

BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Trad. Luiz João Baraúna. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.