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Virginia Woolf - As Ondas (Ed. Relógio D_Água, Portugal)

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As Ondas é considerado o mais rildical romance de Virginia Woolf -um desses raros escritores que nasceu no «instante em que uma estrela se pôs a pensar».

Marguerite Yourcenar, sua tradutora francesa, descreveu-o assim: «Ás Ondas é um livro com seis personagens, ou melhor, seis intrumen­

tos musicais, pois consiste unicamente em monólogos interiores, cujas curvas se sucedem e entrecruzam com uma segurança que lembra a Arte da Fuga de Bach. Nesta narrativa musical, os breves pensamentos de infância, as rápidas reflexões sobre os momentos de juventude e de confiante cama­radagem desempenham o mesmo papel dos allegri nas sinfonias de Mozart, abrindo espaço para os lentos andantes dos imensos solilóquios sobre a experiência, a solidão e a maturidade.

Tanto como uma meditação sobre a vida, As Ondas são um ensaio sobre a solidão. Trata-se de seis crianças, três raparigas, Rhoda, Jinny e Susan; e de três rapazes, Louis, Neville e Bernard, que vemos crescer, diferenciarem-se e envelhecer. Uma sétima criança, que nunca toma a palavra e que só conhecemos através dos outros, é o centro do livro, ou melhor, o seu coração.»

ISBN 978-989-641 -526-6

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As Ondas

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Relógio D'Água Editores Rua Sylvio Rebelo, n.º 15

1000-282 Lisboa te!.: 218 474 450 fax: 218 470 775

[email protected] www .relogiodagua.pt

Título: As Ondas Título original: The Waves (1931)

Autora: Virginia Woolf Tradução: Francisco Vale

Revisão de texto: Helder Guégués Capa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com) sobre

Symphony in White, No. 2: The Little White Girl (1864), de James McNeill Whistler

©Relógio D'Água Editores, abril de 2015

Esta tradução segue o novo Acordo Ortográfico.

Encomende os seus livros em: www .relogiodagua.pt

ISBN 978-989-641-526-6

Composição e paginação: Relógio D' Água Editores Impressão: Guide Artes Gráficas, Lda.

Depósito Legal n.º 391841/15

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Virginia Woolf

As Ondas

Tradução de Francisco Vale

Ficções

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O Sol ainda não nascera . O mar apenas se distinguia do céu pelo

leve preguear das águas, semelhante a um tecido finamente enruga­

do . Lentamente, à medida que o céu clareava, uma barra de sombra

desceu no horizonte, separando o céu do mar, e o grande tecido

cinzento ficou marcado por grossas linhas que se agitavam sob a

superfície, perseguindo-se num ritmo infindável.

Ao aproximarem-se da praia, as ondas erguiam-se, tomavam for­

ma e desfaziam-se arrastando pela areia um ténue véu de espuma

branca . A ondulação detinha-se, partia de novo, suspirando como

alguém que dorme e cujo sopro vai e vem sem que a sua consciência

o saiba . Pouco a pouco, a barra escura do horizonte clareou como as

impurezas de um vinho antigo que se depositassem na garrafa, dei­

xando transparecer o seu vidro . Lá ao fundo, também o céu se tornou

translúcido, como se nele se houvesse desprendido um sedimento

branco, ou o braço de uma mulher reclinada no horizonte erguesse

ao alto uma lâmpada. Faixas de branco, amarelo e verde alongaram­

-se sob o céu como longas folhas de um leque . Depois a mulher er­

gueu a lâmpada ainda mais alto; o ar inflamado pareceu cindir-se em

fibras vermelhas e amarelas, elevando-se da superfície verde num

frémito ardente, como as chamas envoltas em fumo de uma fogueira .

Pouco a pouco, todas as fibras se fundiram numa única massa incan­

descente e o cinzento do céu transformou-se num milhão de átomos

de um suave azul. A superfície do mar tornou-se transparente e as

grandes linhas escuras quase desapareceram no ondular das águas

e na sua cintilação . O braço que sustinha a lâmpada continuou a

subir devagar até que uma grande labareda surgiu .

Um disco de fogo ardeu no rebordo do horizonte e o mar à sua

volta tornou-se um esplendor de ouro.

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A luz feriu as árvores no jardim, e as folhas agora transparentes

iluminaram-se uma a uma . Um pássaro cantou alto . Houve uma

pausa . Depois outro pássaro retomou, mais baixo, o mesmo canto .

O Sol deu contornos às paredes da casa e poisou como a ponta de

um leque numa persiana branca, deixando uma dedada de sombra

azul sob a folhagem próxima da janela de um quarto . A persiana

estremeceu ao de leve, mas dentro de casa tudo permaneceu vago

e sem substância . Lá fora, os pássaros cantavam as suas melodias

vazias .

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- Vejo um anel , disse Bernard, suspenso por cima de mim. Tre­mula e balança num laço de luz .

- Vejo uma faixa de amarelo pálido , disse Susan , alongando-se ao encontro de um risco violeta.

·

- Ouço um ruído , disse Rhoda. Chip . . . Chap . . . Chip . . . Chap . . . sobe e em seguida volta a descer.

- Vejo um globo , disse Neville . Suspenso como uma pequena gota de água dos imensos flancos de uma colina.

- Vejo uma borla vermelha entrelaçada com fios de ouro , disse Jinny.

- Ouço qualquer coisa a bater, disse Louis . A pata de um grande animal acorrentado . A bater no chão , a bater no chão . . .

- Olhem a teia de aranha no canto da varanda, disse Bernard . Há nela gotas de água suspensas , brancas pérolas de luz .

- As folhas encostam-se à janela como orelhas pontiagudas , dis­se Susan .

- O braço dobrado de uma sombra cai sobre a vereda, murmurou Louis .

- Ilhotas de luz navegam entre o s ramos e flutuam sobre a relva disse Rhoda.

- Os olhos dos pássaros brilham no fundo das grutas abertas na folhagem, disse Neville .

- Os caules estão cobertos de uma penugem áspera, onde há go­tas de água suspensas , disse Jinny.

- Uma lagarta enrolada parece um anel verde em que as patas são entalhes , disse Susan.

- O caracol arrasta a casca cinzenta ao longo do carreiro , pisando as ervas à sua passagem, disse Rhoda.

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- Os reflexos do sol que se desprendem dos vidros dançam na relva, disse Louis .

- Sob os meus pés sinto as pedras frias , disse Neville . Sinto cada uma delas , angulosa ou redonda.

- Tenho as costas da mão a arder, disse Jinny. Mas a palma da

mão está húmida, molhada pelo orvalho . - O galo está a cantar, disse Bernard . Canta como um jorro de

água vermelha e dura contra a brancura da manhã.

- Os pássaros voam à nossa volta , cada um com o seu canto ,

disse Susan .

- O animal continua a bater com a pata; o elefante acorrentado;

a fera continua a desferir enormes patadas na praia, disse Louis .

- Olhem, disse Jinny. Há persianas brancas em todas as janelas da casa.

- A água fria da torneira começou a cair sobre o peixe no algui­

dar da cozinha, disse Rhoda. - As paredes estão revestidas de ouro e a sombra das folhas põe

dedadas azuis perto das janelas

- Agora Mrs . Constable começou a puxar para cima as suas gros­sas meias pretas , disse Susan .

- Quando o fumo se ergue , o sono eleva-se do telhado como uma

ténue neblina, disse Louis .

- Primeiro , os pássaros cantaram em coro , disse Rhoda. Depois

alguém abriu a porta da despensa. Os pássaros voaram, dispersos

como um punhado de sementes lançado ao vento . Mas há um que

ficou a cantar sozinho na janela do quarto .

- Bolhas formam-se no fundo da panela, disse Jinny. Depois

sobem cada vez mais depressa, numa cadeia de prata.

- Biddy arranca as escamas dos peixes com uma faca dentada, em cima da tábua de cozinha, disse Neville .

- A janela da sala de jantar ficou azul-escura, disse Bernard, e o ar ondula por cima da chaminé .

- Há uma andorinha poisada no fio da eletricidade , disse Susan .

Biddy lançou o balde de água nos ladrilhos da cozinha. - Ouçam a primeira badalada do sino da igreja, disse Louis . -

Depois , as outras : um, dois; um, dois .

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- Olhem a toalha toda branca a esvoaçar sobre a mesa, disse Rhoda. Em cima da toalha, em cada lugar, há um círculo branco de louça, e ao lado riscos de prata.

- Uma abelha zumbe perto do meu ouvido , disse Neville . Está aqui; já passou .

- Ardo e tremo, disse Jinny, quando saio do sol para me abrigar à sombra.

- Agora já se foram todos embora, disse Louis . Estou completamen­te só . Foram para dentro de casa, tomar o pequeno-almoço e eu fiquei parado, junto ao muro, no meio das flores . É muito cedo, não são ainda horas de ir para as aulas . Cada flor é uma mancha clara na profundidade verde. As pétalas são arlequins . Os caules erguem-se das c.avidades negras . As flores nadam como peixes luminosos em sombrias águas verdes . Tenho na mão o caule de uma planta. Eu sou esse caule . As minhas raízes mergulham na profundidade do mundo, através da argila seca e da terra húmida, atravessando veios de prata e chumbo. O meu corpo é uma fibra vegetal . Todos os tremores se repercutem em mim, e sinto nas minhas costas o peso da terra. Lá em cima, os meus olhos são verdes folhas cegas . Sou uma criança vestindo calções de flanela e com o cinto apertado por uma serpente de bronze. Lá em baixo , os meus olhos são os olhos sem pálpebras de uma estátua de pedras num deserto do Nilo . Vejo mulheres que passam, transportando cântaros vermelhos , em direção ao rio; vejo o passo oscilante dos camelos e homens com turbantes . Ouço à minha volta os passos , o frémito, a agitação .

Aqui perto de mim, Bernard, Neville , Jinny e Susan (mas Rhoda não) afloram os canteiros com as suas redes . Apanham borboletas nas corolas recurvas das flores . Acariciam a superfície do mundo . Têm as redes cheias de asas palpitantes . Põem-se a gritar: «Louis ! Louis ! Louis !» Mas não podem ver-me . Estou do outro lado da sebe . Entre as folhas , só há pequenas aberturas para espreitar. Oh, meu Deus , fazei com que se vão embora ! Oh, meu Deus , fazei com que poisem no chão as borboletas dentro de um lenço ! Deixai-os contar as suas borboletas-tartarugas , as suas almirantes vermelhos , as suas borboletas brancas ! Deixai-me, porém, permanecer invisível ! Sou verde como um teixo à sombra da sebe . O meu cabelo é feito de folhas . As minhas raízes estão no centro da terra. O meu corpo é um caule . Aperto o caule . Uma gota sai da minha boca, vagarosa e den-

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sa, e cresce sem cessar. Alguma coisa cor-de-rosa passa diante da abertura existente entre as folhas . Alguém desliza o olhar pela fresta. O raio de luz atinge-me . Sou outra vez uma criança vestida de flane­la cinzenta . Ela acaba de encontrar-me . Sinto alguma coisa tocar-me na nuca. Ela beijou-me . Tudo se estilhaça.

- Andava a correr depois do pequeno-almoço , disse Jinny. Vi que as folhas se mexiam numa abertura da sebe . Pensei: «É um pássaro no ninho .» Afastei as folhas e olhei; mas não era um pássaro no ninho . As folhas continuavam a mexer-se . Senti-me assustada. Passei a cor­rer por Susan, Rhoda, Neville e Bernard, que estavam a conversar na casa das ferramentas. Pus-me a gritar enquanto corria, mais depressa, cada vez mais depressa. Porque se agitavam as folhas? Porque se agitavam o meu coração , as minhas pernas? E precipitei-me para aqui e vi-te verde como um arbusto , como um ramo, Louis , imóvel , com os olhos fixos . «Estás morto?» , pensei e beijei-te , com o coração a saltar por baixo da roupa cor-de-rosa, como as folhas que continuam a mexer-se , mesmo quando nada as agita. Sinto agora o perfume dos gerânios , o cheiro do húmus. Danço . Vibro . Sou lançada sobre ti co­mo uma rede luminosa. E a tremer fico deitada sobre ti .

- Por uma fresta da sebe , vi Jinny beijá-lo , disse Susan . Levan­tei a cabeça do meu vaso de flores e espreitei pela abertura da sebe . Vi-a beijá-lo . Vi Jinny e Louis beijarem-se . Agora vou embrulhar a minha ansiedade no lenço . Vou dar-lhe um nó e fazer dele uma bola. Quero ir sozinha ao bosque das faias , antes das aulas . Não vou ficar à mesa , sentada, a fazer contas . Não me vou sentar junto da Jinny nem junto de Louis . Vou pegar na minha angústia e deixá­-la entre as raízes das faias . Quero observá-la bem, segurá-la nos dedos . Não hão de ser capazes de encontrar-me . Vou alimentar-me de nozes , procurar ovos entre as sarças . O meu cabelo ficará ema­ranhado e dormirei debaixo dos arbustos , bebendo água das poças , hei de morrer ali .

- Susan passou por nós, disse Bernard . Passou por nós diante da porta da casa das ferramentas com o lenço amarrotado como uma bola. Não estava a chorar, mas os seus olhos, tão lindos, pareciam os de um gato antes de saltar. Vou atrás dela, Neville . Vou segui-la cui­dadosamente , para estar junto dela e a consolar quando cheia de raiva pensar: «Estou sozinha.»

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Lá vai ela, a atravessar o campo , balouçando o corpo com indiferen­ça, tentando iludir-nos . Depois chega à encosta; pensa que ninguém a vê; larga a correr com os punhos fechados à sua frente . Crava as unhas no lenço amarfanhado . Corre em direção ao bosque de faias , fugindo da claridade . Chega e abre os braços ao entrar na sombra, como se nadasse . Mas está cega depois de tanta luz e cambaleia até às raízes sob as árvores , onde a luz entra e sai num movimento perpétuo . Aqui tudo é inquieto , agitado e lúgubre . A própria luz é indecisa. As raízes desenham esqueletos na terra e há folhas mortas amontoadas aqui e ali . Susan espalhou a ansiedade à volta. Tem o lenço caído entre as raízes das faias , e soluça, sentada, encolhida no lugar onde se deixou cair.

- Eu vi-a beijá-lo , disse Susan . Espreitei por entre as folhas e vi . Vi-a dançar, coberta por uma poeira de diamantes . Eu sou gorda, Bernard, gorda e baixa. Os meus olhos fitam o chão de perto e vejo insetos na erva. O meu entusiasmo transformou-se em pedra quando vi Jinny beijar Louis . Vou alimentar-me de ervas e morrer numa va­la, na água castanha onde apodrecem folhas mortas .

- Eu vi-te passar, disse Bernard. Quando passaste pela porta da casa das ferramentas ouvi-te exclamar: «Sou tão infeliz !» e pus de lado a minha faca. Neville e eu estávamos a fazer barcos de madeira. Trago o cabelo despenteado porque , quando Mrs . Constable me disse que precisava de o pentear, vi uma mosca presa na teia e pensei: «De­vo libertar a mosca? Ou deixar que a devorem?» É por coisas destas que ando sempre atrasado . Tenho o cabelo todo despenteado e cheio de aparas de madeira. Quando te ouvi chorar, vim atrás de ti , e vi-te quando deitaste ao chão o teu lenço amarrotado, com a cólera e o ódio fechados lá dentro . Mas isso passa depressa. Os nossos corpos estão agora lado a lado . Tu ouves-me respirar. Vês também o besouro que leva uma folha às costas . Ele corre para aqui e para ali e enquanto olhas o besouro o teu desejo de possuir uma única coisa (que é o Lou­is , agora) é forçado a vacilar como a claridade que vai e vem por entre as folhas das faias . E o obscuro movimento produzido pelas palavras no mais fundo de ti acabará por desatar o nó feito no teu lenço .

- Amo e odeio , disse Susan . Há uma só coisa que desejo . Tenho os olhos endurecidos . Os olhos de Jinny, esses estilhaçam-se em cintilações sem fim. Os olhos de Rhoda são como as pálidas flores que as mariposas procuram à noite . Os teus estão cheios a transbor-

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dar, e nada os perturba. Mas eu avanço pelo meu caminho . Vejo in­setos entre as ervas . Embora a minha mãe ainda faça meias de malha branca para mim e ponha bainhas nos aventais , embora eu seja ainda uma criança, amo e odeio .

- Mas quando nos sentamos juntos , muito próximos, disse Ber­nard, as palavras que dizemos fundem-nos· um no outro . Aqui esta­mos debruados pela névoa. Somos um território imaterial .

- Vejo o besouro , disse Susan . Vejo que é preto; vejo que é verde; estou amarrada por simples palavras . Mas tu vagueias sem destino; esvais-te; ergues-te mais alto , com palavras e palavras encadeadas em frases.

- Agora vamos explorar o que nos rodeia, disse Bernard . Ali está uma casa branca no meio das árvores . Lá está ela, longe de nós , muito lá em baixo . Vamos mergulhar como nadadores que mal tocam o fundo do mar com os dedos dos pés . Vamos mergulhar através do ar verde de folhas , Susan . A nossa corrida é um mergulho . As vagas fecham-se sobre nós , as folhas das faias juntam-se por cima das nos­sas cabeças . Lá está o relógio do estábulo com os ponteiros dourados a brilhar. Lá está a grande casa com os telhados planos e inclinados . O tratador dos cavalos anda pelo pátio com as suas botas de borra­cha, de um lado para o outro . Aquilo ali é Elvedon !

Eis-nos caídos dos altos ramos das árvores , sobre nós já não se des­dobram tristes e longas vagas cor de violeta. Tocamos a terra; pisamos o chão . Aquilo é a densa sebe do jardim das senhoras . Ao meio-dia, passeiam por lá com as suas tesouras , cortando rosas . Estamos agora no bosque circular, rodeado pelo muro . É Elvedon . Vi os marcos nas encruzilhadas , com um braço a apontar: «Elvedon» . Nunca ninguém lá esteve . Os fetos têm um odor intenso, e à sua sombra nascem cogu­melos vermelhos . Agora despertamos as gralhas adormecidas que nunca viram uma forma humana; calcamos as bolotas de carvalho em decomposição , que o tempo tornou vermelhas e escorregadias . Há um muro circular em tomo deste bosque; ninguém chega até aqui . Ouve ! É o salto de um enorme sapo na vegetação rasteira; e este ruído é a queda de uma pinha primitiva que vai apodrecer no meio dos fetos .

Põe o pé neste tijolo . Olha por cima do muro . Isto é Elvedon . A senhora está sentada entre duas grandes janelas . Escreve . Os jardi­neiros varrem a relva com gigantescas vassouras . Somos os primei-

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ros a vir até aqui . Somos o s exploradores de um território desconhe­cido . Não te mexas; se os jardineiros nos virem, disparam contra nós . Se nos apanhassem, espetavam-nos na porta da estrebaria como pe­les de arminho . Olha ! Não te mexas ! Segura-te bem aos ramos dos fetos na borda do muro .

- Estou a ver a senhora a escrever. Estou a ver os jardineiros a varrerem, disse Susan . Se morrêssemos aqui , ninguém nos enterrava.

- Foge ! disse Bernard. Foge ! O jardineiro das barbas negras já nos viu ! Vamos levar um tiro ! Vamos ser caçados como gaios e pre­gados nos muros ! Estamos em país inimigo . Temos de fugir para o bosque das faias . Temos de nos esconder nas árvores . Parti um ramo quando vínhamos para cá. Assinala um atalho secreto . Baixa-te o mais que puderes . Vem atrás de mim e não olhes para trás .Vão pen­sar que somos raposas . Foge .

Estamos salvos ! Já podemos pôr-nos de pé outra vez . Já podemos estender os braços à vontade debaixo desta abóbada, nesta floresta imensa. Não ouço nada. Apenas o murmúrio das ondas no ar. Agora um pombo-bravo deixa o seu refúgio no cimo das faias , ferindo o ar com as asas desajeitadas .

- Estás outra vez a afastar-te de mim com as tuas frases , disse Susan . Estás a subir cada vez mais alto como um balão , através da folhagem, para fora do meu alcance . Agora atrasas-te . Puxas a minha saia e olhas para trás , construindo frases . Foges de mim. Aqui está o jardim. Aqui está a sebe . Aqui está Rhoda, no carreiro . Embala uma bacia de cobre cheia de pétalas .

- São brancos todos os meus navios , disse Rhoda. Não quero pétalas vermelhas de malvas-rosa ou de gerânios . Só quero pétalas brancas que flutuem quando agito a bacia . Tenho uma frota que nave­ga de uma costa à outra. Vou atirar este raminho como se fosse uma jangada para o marinheiro que está a afogar-se . Vou lançar uma pedra na água e ver as bolhas que sobem do fundo do mar. Neville foi-se embora e Susan também; Jinny está no quintal talvez colhendo fram­boesas com Louis . Ainda tenho algum tempo para estar sozinha en­quanto Miss Hudson coloca os nossos cadernos na mesa da sala de estudo . Tenho um pequeno espaço de liberdade à minha frente . Colhi todas as pétalas caídas e fi-las flutuar. Espargi algumas com gotas de chuva. Vou plantar aqui uma ervilha-de-cheiro como se fosse um fa-

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rol . E agora agito a bacia de cobre para que os meus navios caval­guem as ondas . Alguns hão de afundar-se , outros esmagar-se contra as falésias . Um deles navega sozinho. É esse o meu navio . Navega nas grutas geladas , onde grunhe o urso-polar e as estalactites pendem em cadeias verdes . As ondas erguem-se; a sua crista curva-se; olhem os mastros iluminados . Todos os navios se dispersaram, naufragaram, todos exceto o meu, que cavalga as vagas e desliza diante do vento , alcançando as ilhas onde há papagaios que falam e lianas . . .

- Onde estará Bernard, disse Neville . Levou a minha faca. Estáva­mos na casa das ferramentas a fazer barquinhos de madeira e Susan passou diante da porta. Bernard largou o seu barco e foi atrás dela, levando-me a faca, a mais afiada, que serve para esculpir as quilhas . Ele é como um fio elétrico pendente, um cordão partido de um sino sempre a vibrar. É como a alga suspensa da janela, urnas vezes seca, outras molhada. Deixa-me para aqui sozinho; segue Susan; se Susan chorar, ele pega na minha faca e conta-lhe histórias . A grande lâmina é um imperador; a lâmina partida, um negro . Odeio coisas instáveis , coisas nevoentas . Odeio andar por aí a confundir as coisas . A sineta já começou a tocar e vamos chegar atrasados . Deixemos os brinquedos .

Ternos de entrar todos juntos . Os cadernos foram colocados uns ao lado dos outros sobre a mesa forrada de pano verde .

- Não conjugarei esse verbo, disse Louis , antes de Bernard o recitar. O meu pai é banqueiro em Brisbane e tenho sotaque austra­liano . Vou esperar e depois imito Bernard . Ele é inglês . São todos ingleses . O pai de Susan é clérigo . Rhoda não tem pai . Bernard e Neville são filhos de gentlemen. Jinny vive com a avó em Londres . Lá estão eles a chupar as canetas . Agora enrolam os cadernos e , por um canto do olho , espreitam Miss Hudson, contando os botões roxos do seu corpete . Bernard tem uma lasca de madeira no cabelo . Susan os olhos vermelhos . Ambos estão corados . Eu , porém, estou pálido , limpo e as minhas calças estão seguras por um cinto com urna ser­pente de cobre por fivela. Sei a lição de cor. Sei mais do que alguma vez eles poderão saber. Sei os géneros e os modos; querendo, nada haveria no mundo que não soubesse . Mas não quero expor-me a di­zer a lição . As minhas raízes entrelaçam-se à volta do globo corno as das plantas num vaso de flores . Mas não quero expor-me e viver sob o olhar daquele grande relógio de face amarela, com o seu infindável

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tiquetaque . Jinny e Susan , Bernard e Neville , confundem-se numa única correia de couro que me fustiga. Riem-se do meu asseio , do meu sotaque australiano . Mas agora vou procurar imitar Bernard, que docemente cicia o latim.

- Estas palavras são brancas como seixos apanhados na praia, disse Susan .

- Quando as pronuncio , disse Bernard, sacodem as caudas para a direita e a esquerda. Balançam as caudas no ar. Deslocam-se em flo­cos , por aqui , e por ali , todas juntas . Separam-se e reúnem-se de novo .

Estas palavras são amarelas , são palavras ardentes , disse Jinny. Gostava de ter um vestido assim, um vestido amarelo vivo , um fulvo vestido para usar à noite .

- Cada tempo do verbo tem um significado particular, disse Nev­ille . Existe ordem neste mundo; há distinções e diferenças no mundo em cuja margem caminho . Pois isto é apenas um começo .

- Agora Miss Hudson fechou o livro , disse Rhoda. Agora o terror começa. Pega num pedaço de giz e desenha números , seis , sete , oito , e depois uma cruz e uma linha no quadro negro . Qual a resposta? Os outros olham. Olham e compreendem. Louis está a escrever. Susan está a escrever. Neville está a escrever. Jinny está a escrever. Até Bernard começou agora a escrever. Mas eu não posso escrever. Tudo o que vejo são algarismos sem sentido . Um a um, os outros entregam as suas respostas . Agora é a minha vez . Não tenho resposta . Os ou­tros já tiveram licença para sair. Batem com a porta . Miss Hudson sai também. Fiquei sozinha à procura de uma solução . Os números nada querem dizer. O sentido desapareceu . O relógio continua a fazer ti­quetaque . Os ponteiros são caravanas avançando no deserto . As ris­cas pretas no mostrador são oásis verdes . O ponteiro maior adiantou­-se à procura da água. O outro cambaleia entre as rochas escaldÇtntes do deserto . Morrerá no deserto . A porta da cozinha bate . Há cães selvagens latindo na distância. Olhem! A curvatura deste algarismo começa a encher-se de tempo . Contém em si o mundo inteiro . Come­ço a desenhar um algarismo e o mundo está contido na sua curvatura mas eu estou fora dela; agora aproximo as duas extremidades da curvatura, fecho-a, completo-a. O mundo está ali inteiro e eu estou fora dele , chorando: «Ah, ajudem-me não me deixem ficar para sem­pre fora do tempo !» .

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- Lá está Rhoda, sentada, de olhos fixos no quadro preto , disse Louis , lá está ela na sala de aula, enquanto nós vagueamos , apanhan­do um pedaço de tomilho aqui , arrancando uma folha de artetemísia ali , enquanto Bernard nos conta histórias . As omoplatas de Rhoda juntam-se nas costas como as asas de uma pequena borboleta. E en­quanto fixa os algarismos traçados a giz , o seu pensamento aloja-se nesses contornos brancos e caminha solitária através deles em dire­ção ao vazio . Para Rhoda, eles nada significam. Não tem solução para lhes dar. Ela é diferente dos outros . Não tem corpo. Mas eu , com o meu sotaque australiano , com o meu pai banqueiro em Bris­bane , não tenho medo dela como tenho dos outros .

- Vamos rastejar sob a abóbada de folhas da groselheira, disse Bernard, e contar histórias . Instalemo-nos no mundo subterrâneo . Ocupemos o nosso território secreto iluminado por groselhas suspen­sas como se fossem candeeiros , vermelhas e brilhantes de um lado, negras do outro . Aqui , Jinny, se nos encolhermos um ao lado do outro, conseguiremos sentar-nos sob a abóbada das folhas da groselheira e observar os cachos oscilando como tunbulos de incenso . É este o nos­so universo. Os outros passam pela estrada das carruagens . As saias de Miss Hudson e de Miss Curry passam, arrastando-se como apagadores de velas . Eis as meias brancas de Susan. Aqueles são os sapatos , sem­pre limpos , de Louis deixando marcas no saibro . Sente-se o sopro morno das folhas em decomposição , a vegetação que apodrece. Aqui é um pântano, uma floresta virgem onde a malária impera. Há um elefante , que os vermes tomam branco; uma flecha atravessou-lhe um dos olhos . Surgem agora as pupilas brilhantes das aves de rapina -águias e abutres . Tomam-nos por folhas caídas . Debicam um réptil , uma cobra-capelo , e depois abandonam-na com a sua castanha ferida e purulenta para ser devorada pelos leões . É este o nosso mundo, ilu­minado pela lua crescente e estrelas cintilantes . Grandes pétalas semi­transparentes fecham as aberturas da folhagem como se fossem vitrais roxos . Tudo é estranho. As coisas são imensas e insignificantes . Os caules das flor�s têm a espessura dos carvalhos; as folhas elevam-se à altura das cúpulas de vastas catedrais . Somos gigantes deitados , capa­zes de abalar a floresta.

- O que dizes é verdadeiro aqui , disse Jinny. É verdadeiro neste momento . Mas em breve teremos de partir. Em breve soará o apito

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de Miss Curry. E será preciso ir. E teremos de nos separar. Vocês vão para o colégio , terão professores com crucifixos ao peito e gravatas brancas . Eu terei uma professora sentada sob o retrato da rainha Ale­xandra numa escola da Costa Leste . É para lá que vou com Susan e Rhoda. O que dizes só é verdadeiro aqui , só é verdadeiro agora. Estamos deitados sob os maciços de groselhas que o sopro da brisa marcheta de sombras . A minha mão é como pele de serpente . Os meus joelhos são flutuantes ilhas cor-de-rosa. O teu rosto uma ma­cieira coberta por uma fina rede .

- O calor já não impera sobre a selva, disse Bernard . Negras fo­lhas esvoaçam sobre nós . Miss Curry apitou no terraço . Temos de rastejar pára fora do abrigo das folhas da groselheira e fie� em pé , muito direitos . Há pequenos ramos no teu cabelo , Jinny. E uma la­garta verde no teu pescoço . Temos de ir em fila, dois a dois . Miss Curry sai connosco para um curto passeio , enquanto Miss Hudson continua sentada à secretária a fazer as suas contas .

- É aborrecido andar pela estrada sem janelas para observar, sem os turvos olhos do vidro azul dando para a calçada, disse Jinny.

- Temos de ir aos pares , disse Susan. Temos de andar em ordem, sem arrastar os pés , nem atrasar o passo , com Louis à frente , a fazer de guia, porque Louis está sempre vigilante , e nada tem de sonhador.

- Como julgam que sou demasiado frágil , disse Neville , para os acompanhar, que depressa me canso e depois adoeço , vou aproveitar esta hora de solidão , este silêncio , para percorrer todos os recantos da casa e, se for possível , reencontrar, parado no patamar a meio das escadas , o que senti quando a noite passada ouvi do outro lado da porta de batentes a cozinheira mexer no fogão enquanto falava dum homem morto . Foi encontrado com a garganta cortada. As folhas da macieira imobilizavam-se contra o céu; a Lua resplandecia; e eu não era capaz de abandonar o patamar. Descobriram o homem numa valeta. O sangue gorgolejava e o seu rosto estava tão branco como um pedaço de bacalhau morto . Chamarei sempre a essa contração, a essa rigidez , a «morte sob a macieira» . Havia nuvens de um cinzen­to pálido , flutuando; e a árvore impiedosa; a árvore implacável com casca de prata cinzelada. Em vão a minha vida palpitava. Não era capaz de seguir em frente . Havia um obstáculo . Sou incapaz de ul­trapassar este absurdo obstáculo , disse eu . E os outros passaram

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adiante . Mas estamos todos condenados pela macieira, a árvore im­placável , que nunca poderemos ultrapassar.

Agora essa contração e essa rigidez cessaram e vou continuar a minha deambulação pelos recantos da casa na tarde que se faz cre­púsculo . O Sol faz aparecer manchas oleosas no linóleo , enquanto uma fresta luminosa se ajoelha na parede , fazendo parecer quebradas as pernas da cadeira.

- Vi Florrie no quintal , disse Susan . Quando voltámos do passeio . A roupa lavada flutuava à sua volta, os pijamas , as ceroulas , as cami­sas de noite , insufladas pelo vento . E Ernest beijava-a. Trazia o avental de feltro verde , porque estivera a limpar as pratas ; a sua boca parecia uma bolsa pregueada e abraçou Florrie entre os pijamas que adejavam ao vento . Ele parecia um touro cego, enquanto ela desfalecia e peque­nas veias vermelhas se recortavam na palidez das suas faces . Agora, enquanto os dois carregam pratos com pão e manteiga e chávenas cheias de leite , porque é a hora do chá, vejo uma fenda na terra e um vapor quente que sobe aos silvos; a chaleira ruge como Ernest rugia ainda há pouco, e eu flutuo ao vento como os pijamas , enquanto os meus dentes se cravam no macio pão com manteiga e bebo o leite doce . Não temo o calor nem o inverno glacial . Rhoda sonha, chupando uma crosta de pão molhada no leite . Louis olha a parede em frente com os olhos verdes e pasmados . Bernard faz bolinhas de pão e diz que são «pessoas» ; Neville acabou de comer com gestos claros e pre­cisos . Dobrou o guardanapo e enfiou-o na argola de prata. Os dedos de Jinny rodopiam em cima da toalha, como se dançassem ao sol , fazen­do piruetas . Não tenho medo do calor nem do inverno glacial .

- E agora todos nos levantamos , disse Louis . Estamos de pé . Miss Curry abre o livro preto pousado no harmónio . É difícil não chorar quando cantamos os hinos , quando suplicamos a Deus que nos guarde durante o sono, e nos chamamos crianças a nós próprios . Quando nos sentimos tristes e a inquietação nos faz tremer, é bom cantarmos juntos , levemente inclinados , eu em direção a Susan , Su­san em direção de Bernard, as mãos agarrando-se temerosas de mui­tas coisas , eu do meu sotaque , Rhoda dos algarismos , mas todos decididos a vencer.

- Subimos as escadas , saltando como póneis, disse Bernard, pa­teando com força, atropelando-nos uns aos outros à espera da nossa

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vez no quarto de banho. Esbofeteamo-nos , lutamos , saltamos e caímos nas nossas duras camas brancas . Chegou a minha vez . Aí vou eu .

Mrs . Constable , com uma toalha à volta da cintura , pega na es­ponja cor de limão e mergulha-a na água; a esponja toma-se cor de chocolate; pinga. E ela levanta-a sobre mim, que tremo, levanta-a muito alto , e espreme-a. A água desliza pelas fendas secas do meu corpo . O corpo frio aquece . O meu corpo inundado brilha. A água desce e percorre-me como uma enguia. Agora estou envolto em toalhas quentes e a sua aspereza faz o meu sangue ronronar quando esfrego as costas . Intensas e magníficas sensações formam-se no meu cérebro como num telhado . As imagens do dia chovem sobre mim - as florestas ; Elvedon; Susan e o pombo-bravo . Escoando­-se pelos muros do meu pensamento , reunindo-se em torrentes , o dia escorre copioso e resplandecente . Agora, ato frouxamente o meu pijama, e deito-me sobre o lençol fino , flutuando na luz difusa, como se houvesse uma película de água espalhada nos meus olhos por uma onda . Ouço ao longe , coado pela distância, o coro noturno que começa: o rodar dos carros , cães , homens gritando , o toque do sino das igrejas .

- Tal como dobro a minha saia e a blusa, disse Rhoda, dispo o meu vão desejo de ser Susan, de ser Jinny. Estendo os dedos dos pés até tocarem a barra de ferro na extremidade da cama. Tocando a barra de ferro , sinto-me segura. Agora não posso deixar-me ir ao fundo; não posso deixar-me cair através deste fino lençol . Estendo o meu corpo neste frágil colchão e fico suspensa no ar. Plano acima da terra. Já não estou de pé, já não corro o risco de ser atacada e ferida. Agora tudo se toma suave e flexível .

Os armários e as paredes embranquecem e inclinam os seus qua­dros amarelados sobre os quais reluz um vidro pálido . Agora o meu pensamento pode transbordar para fora de mim. Posso sonhar com as minhas armadas vogando em altas ondas . Estou a salvo dos em­bates . Navego solitária entre recifes brancos . Mas , oh , estou a afun­dar-me , a cair ! Mas reconheço o canto do armário; e o espelho do quarto das crianças . Mas eles estendem-se , alongam-se . . . Mergulho na plumagem obscura do sono; as suas asas densas pesam-me nos olhos . Viajando na escuridão , vejo os longos canteiros de flores , e Mrs . Constable surge a correr de trás das ervas , a dizer que a minha

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tia me vem buscar de carruagem. Elevo-me nos ares, escapo; fujo; alço-me com sapatos de salto em mola, até à copa das árvores . Mas caio agora em plena carruagem, à porta do vestíbulo , onde a minha tia está sentada, agitando as penas amarelas , com os olhos duros como pequenas esferas vítreas . Oh o despertar do sonho ! Ali está a cómoda. Quero sair destas águas . Mas as ondas precipitam-se sobre mim; arrastam-me nos seus ombros imensos ; voltam-me e fazem-me cair; estou estendida no meio das longas luzes , no meio das grandes ondas , em alamedas intermináveis , cheias de pessoas que me perse­guem, perseguem.

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O Sol ergueu-se mais . Ondas azuis, ondas verdes, abrem um rápi­

do leque sobre a praia, rodeando as pontas dos cardas marinhos e

deixando aqui e ali.finas poças de luz . Atrás de si, as ondas largam

uma pálida orla negra . As rochas, ainda há pouco enevoadas e ma­

cias, endureceram e mostram as suas fendas vermelhas .

Agudas sombras jazem sobre a relva; o orvalho, dançando na

ponta das folhas e das flores, transforma o jardim num mosaico de

cintilações dispersas, que não chegam a fundir-se numa só mancha

luminosa . Os pássaros, com o peito salpicado de amarelo e rosa,

cantavam juntos uma ou duas melodias, desenfreados como um par

de patinadores enlaçados . Depois, subitamente, ficavam em silêncio

e partiam.

Sobre a casa, o sol lançava agora raios mais largos . A luz aflorava

qualquer coisa verde no canto da janela, qualquer coisa que se trans­

formava numa esmeralda, numa gruta de puro verde, um fruto sem

sementes . Depois, tornava mais agudos os contornos das cadeiras e

das mesas e iluminava a renda branca das toalhas entretecidas de fios

doirados. A medida que a luz aumentava, abria-se aqui e ali um botão,

soltando flores cheias de pequenas veias verdes ainda palpitantes,

como se o esforço do desabrochar as tivesse transtornado. Ao baterem

nas paredes brancas, as suas frágeis corolas faziam um vago carri­

lhão. Tudo se fundia e perdia docemente a sua forma. Dir-se-ia que o

prato de porcelana se diluía e a faca de aço se tornava líquida. E

durante todo esse tempo, as ondas desfaziam-se nos rochedos, numa

vibração surda, como troncos de árvores tombando na areia.

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- A hora chegou , disse Bernard . Chegou o dia. O fiacre está à porta. O peso da minha mala arqueia ainda mais as pernas de George . A horrível cerimónia dos conselhos e das despedidas no hall já aca­bou . Agora é a cerimónia dos adeuses à minha mãe , cheia de soluços sufocados e o ritual do aperto de mão a meu pai . É preciso continuar a acenar até dobrar a esquina, é preciso continuar a acenar. Estou sozinho: vou para o colégio , pela primeira vez na vida.

Cada um de nós parece ter qualquer coisa a fazer num dado momen­to , qualquer coisa que só pode acontecer uma vez. Nunca mais . É ter­rível este sentimento de imediata fatalidade . Toda a gente sabe que vou para o colégio , que estou a ir para o colégio pela primeira vez: «Aque­le rapaz vai para o colégio pela primeira vez» , diz a criada enquanto lava os degraus das escadas . Não devo chorar. Devo aparentar indife­rença. Agora abrem-se diante de mim as horríveis portas da estação. O relógio com cara de Lua está a olhar para mim. Tenho de inventar frases e mais frases para interpor qualquer coisa de duro entre mim e o olhar das criadas , o olhar dos relógios , esses rostos que me fitam, esses rostos indiferentes . Sem isso choraria. Aqui está Louis , aqui está Nev­ille , com os seus casacos compridos e pequenas malas de mão, junto da bilheteira. Tranquilos . E, no entanto , parecem diferentes do habitual .

- Cá está o Bernard, di!lse Louis . Calmo, à vontade. Balança a mala enquanto caminha. Vou segui-lo , porque ele não tem medo. So­mos arrastados da bilheteira até à plataforma, como uma torrente arras­ta gravetos e bocados de palha à volta do pilar de uma ponte . Eis a poderosa máquina verde-garrafa cheia de força, a máquina sem pesco­ço, toda costas e quadris, soprando vapor. O chefe da estação apita; uma bandeira agita-se . Sem esforço, por impulso próprio, como uma avalancha iniciada com um ligeiro impulso, seguimos em frente . Ber-

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nard abre uma espécie de toalha e começa a jogar com ossinhos . Nev­ille está a ler. Londres fragmenta-se, Londres cresce e desaparece, eri­çada de chaminés e torres. Aqui , uma igreja branca, ali um mastro entre campanários. Um canal . Agora grandes espaços abertos com caminhos de asfalto onde é estranho ver as pessoas passarem. Há uma colina raiada de casas vermelhas. Um homem atravessa uma ponte sempre seguido pelo cão. O rapazinho vestido de vermelho começa a disparar contra um faisão . O rapazinho vestido de azul desvia-o para o lado . «Ü meu tio é o melhor atirador de Inglaterra. O meu primo é mestre dos cães de caça.» Começam a vangloriar-se . Mas eu não posso vangloriar­-me; o meu pai é banqueiro em Brisbane e tenho sotaque australiano .

- Depois desta confusão toda, disse Neville , de todo o barulho e de todos os encontrões estamos a chegar. Este é realmente um mo­mento , é realmente um momento solene . Entro como um senhor no seu domínio . Eis o fundador do colégio; o ilustre fundador, imóvel , no jardim, com um pé no ar. Saúdo o fundador. Um nobre ar romano paira sobre o pátio . Há já luzes acesas nas salas de aula. Ali talvez sejam os laboratórios . Aqui , uma biblioteca, onde eu hei de explorar a exatidão da língua latina, caminhar com firmeza por entre frases solidamente construídas e pronunciar os hexâmetros sonoros e explí­citos de Virgílio e Lucrécio . Com paixão nunca vaga ou obscura, cantarei os amores de Catulo , lendo-os num enorme livro , um in­-quarto de amplas margens . Também hei de deitar-me nos campos , onde os caules das ervas nos arranham ao de leve . Hei de deitar-me em companhia dos meus amigos sob os olmos gigantes .

Atenção ! Vem aí o reitor. Que Deus me proteja, mas ele parece-me ridículo . É demasiado educado , demasiado lustroso , como uma está­tua numa praça pública. E do lado esquerdo do colete retesado como um tambor, há um crucifixo pendurado .

- O velho Crane ergue-se para nos falar, disse Bernard. O velho Crane , o Reitor, tem um nariz como uma montanha ao pôr do sol , e a cova do queixo parece uma ravina cheia de árvores que algum viajante incendiou , uma ravina cheia de árvores vista de uma janela do comboio . Crane balouça-se ligeiramente ao proferir as suas pala­vras tremendas e sonoras . Gosto de palavras tremendas e sonoras .

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Mas as suas são demasiado cordiais para serem verdadeiras . E , con­tudo , neste momento , ele acredita nas suas palavras . Sai da sala os­cilando pesadamente de um lado para o outro , abrindo caminho através das portas giratórias e todos os professores fazem o mesmo, oscilam pesadamente e atravessam as portas giratórias . É esta a nos­sa primeira noite no colégio , longe das nossas irmãs .

- Esta é a minha primeira noite no colégio , disse Susan, separada do meu pai , longe de casa. Tenho os olhos inchados ; os meus olhos estão magoados de lágrimas . Odeio o cheiro da madeira de pinho e do linóleo . Odeio os arbustos agitados pelo vento e os azulejos da casa de banho . Odeio os ditos joviais e o aspeto polido de toda esta gente . Antes de partir confiei o meu esquilo e os meus pombos ao criado mais novo . A porta da cozinha bate e o tiro atravessa a folha­gem quando Percy dispara contra as gralhas . Aqui tudo é falso , tudo é mentira. Rhoda e Jinny sentam-se longe , vestidas de sarja castanha, e olham Miss Lambert, que está sentada sob o retrato da rainha Ale­xandra, lendo um livro aberto à sua frente . Há também uma tapeçaria azul bordada por alguma antiga aluna. Se não mordo os lábios , se não amarfanho o lenço , vou chorar.

- Do anel de Miss Lambert desprende-se um clarão violeta, disse Rhoda. O clarão vai e vem, atravessando a mancha negra da página branca do Livro de Orações . É uma apaixonada luz cor de vinho . Desfizemos as malas no dormitório e agora estamos sentados em rebanho , juntas , sob mapas que representam o mundo inteiro . Há escrivaninhas com tinteiros a transbordar. Aqui serão escritos a tinta os nossos deveres . Mas aqui não sou ninguém. Não tenho rosto . Es­ta grande comunidade , toda vestida de sarja castanha, roubou-me a identidade . Somos todas insensíveis , hostis . Vou procurar um rosto , um calmo rosto monumental e vou conceder-lhe o dom da sabedoria, usá-lo por baixo do vestido como um talismã, e então hei de encon­trar (é uma promessa) um pequeno vale numa floresta e aí poderei depositar a minha provisão de estranhos tesouros . Prometo a mim própria. Assim, já não preciso de chorar.

- Aquela mulher de cabelos negros com as maçãs do rosto salien­tes , disse Jinny, tem um vestido brilhante , atravessado de veiozinhos ,

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como uma concha, um vestido para usar à noite . É bom para o verão , mas no inverno preferia um fino vestido brocado de fios vermelhos , brilhando à luz da lareira . Então , quando as lâmpadas se acendes­sem, vestiria o meu vestido vermelho , ténue como um véu , flutuando

à volta do meu corpo e ondulando quando eu entrasse na sala com passos de bailarina. Depois , quando me deixasse cair numa cadeira dourada a meio da sala, o vestido tomaria a forma de uma flor. Mas Miss Lambert usa um vestido opaco , descendo em cascata pelos tu­fados brancos , quando ela se senta sob o retrato da rainha Alexandra comprimindo um dedo branco contra a página. E nós rezamos .

- Agora, disse Louis , marchamos dois a dois, ordeiramente , em procissão para a capela. Gosto da penumbra que nos envolve quando entramos neste edifício sagrado. Gosto de desfilar em ordem. Entramos nas filas de bancos . Sentamo-nos nos nossos lugares . Aqui despojamo­-nos das nossas diferenças . Gosto deste momento em que o doutor Crane sobe ao púlpito oscilando levemente mas graças apenas ao seu próprio ímpeto e lê um texto da Bíblia aberta no dorso de uma águia de bronze . A sua corpulência e a sua autoridade enchem-me de júbilo . Ele dissipa as nuvens de poeira do meu espírito trémulo , do meu espírito ignominiosamente agitado - tal como quando dançávamos à volta da árvore de Natal e, na altura da entrega dos presentes , se esqueciam de mim e a mulher gorda dizia: «Este menino ainda não recebeu nenhum presente» ; dando-me depois uma reluzente bandeira inglesa que estava em cima do pinheiro, e eu começava a chorar de raiva, porque era por piedade que se lembravam de mim. Tudo se dissipa agora por causa da sua autoridade e de crucifixo que traz ao peito e começo a sentir terra firme sob os pés , as raízes mergulhando cada vez mais, cada vez mais até se emaranharem em qualquer coisa dura. Enquanto o doutor Crane lê , recupero a minha continuidade . Transformo-me num personagem da procissão, num raio da imensa roda que gira até me depositar aqui e agora. Estava nas trevas; estava escondido; mas quando a roda gira (quando ele lê) , ergo-me na clara penumbra onde a custo vislumbro rapazes ajoelhados , colunas e placas funerárias em bronze . Aqui não há crueldade alguma, nem beijos inesperados .

- As orações deste bruto ameaçam a minha liberdade, disse Neville . Sem o ardor da imaginação, as palavras dele desabam gélidas sobre a minha cabeça, como pedras da calçada, enquanto a cruz dourada oscila

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no seu colete . Todos os dogmas são corrompidos por quem os expõe. Só sinto escárnio e riso por esta religião tristonha, estas figuras nausea­das e trémulas avançando, cadavéricas , feridas , por uma estrada branca sombreada de figueiras , com crianças rolando-se no pó . Crianças nuas . E os odres em pele de cabra, inchados de vinho, estão pendurados à porta da taberna. Na Páscoa, estive em Roma com o meu pai . A imagem vacilante da mãe de Cristo passeava pelas ruas ; passou também a fla­gelada imagem de Cristo, no interior de uma caixa de vidro.

Agora vou inclinar-me para o lado como se estivesse a coçar a coxa. E hei de ver Percival . Está ali sentado , muito direito , entre os mais pequenos ; respira profundamente através do seu nariz grego . Os olhos azuis , estranhamente inexpressivos , fixam com indiferença pagã a coluna em frente . Podia vir a ser um pároco admirável . Deve­ria ter na mão uma vara de vidoeiro e bater nas crianças que se por­tassem mal . Está absorto nas palavras latinas inscritas no bronze das placas funerárias . Nada vê; nada ouve . Está longe de nós todos, mergulhado no seu universo pagão . Mas , vejam: leva a mão à nuca. Um gesto assim pode deixar-nos irremediavelmente apaixonados para o resto da vida. Dalton, Jones , Edgar e Bateman levam também a mão à nuca. Mas sem o mesmo efeito .

- Finalmente , estão a acabar os grunhidos do doutor Crane , disse Bernard. O sermão terminou. Reduziu a pó o bailado das borboletas brancas na porta. A voz dele é áspera como um queixo por barbear. Agora regressa ao seu lugar cambaleando como um marinheiro bêba­do . Os outros professores vão tentar imitá-lo; mas moles e insignifi­cantes , tudo o que hão de conseguir é parecer ridícuios nas suas calças cor de cinza. Não os desprezo. Os seus trejeitos parecem-me dignos de compaixão . Anoto este facto , entre outros , no meu caderno, para futu­ras referências . Quando for grande , terei sempre comigo um espesso caderno de notas com numerosas páginas metodicamente dispostas por ordem alfabética. Aí escreverei as minhas notas . Na letra B , have­rá por exemplo «Borboletas brancas reduzidas a pó» . Se no meu ro­mance tiver de descrever um raio de sol num parapeito da janela, irei ver a letra B e lá encontrarei as palavras «Borboletas brancas reduzidas a pó» . Há de ser-me útil. A árvore «projeta na janela a sombra dos seus

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dedos verdes» . Esta frase também me será útil. Mas ai de mim, tudo me distrai . Os cabelos entrançados como açúcar em ponto de carame­lo ou a coberta em marfim do livro de orações de Célia. Louis pode , sem pestanejar, olhar a natureza durante horas . Eu sucumbo logo que me falta o estímulo das palavras . Ao deixar de ser agitado pelos remos , o lago do meu espírito ondula pacificamente e em breve desfalece, calmo como um mar de azeite . Esta também pode servir.

- E agora, disse Louis , saímos desta igreja fria para a extensão amarela dos campos de jogos . E como temos meio-dia de feriado (é o aniversário do duque) , vamos sentar-nos entre a erva alta, enquan­to os outros jogam críquete . Se pudesse estar no lugar deles , não hesitaria; havia de me curvar sobre as caneleiras e correr pelo campo fora à frente da minha equipa. Olhem, como todos vão agora atrás de Percival . Percival é pesado . Caminha desajeitadamente pelo campo, no meio da relva alta, até ao sítio onde se elevam os grandes olmos . Tem a magnificência de um comandante medieval . Um rasto de luz parece desprender-se da relva que pisou . Olhem, como trotamos atrás dele , servos fiéis , prontos a servir-lhe de carne de canhão, por­que ele vai tentar certamente alguma empresa desesperada e morrerá em combate . O meu coração agita-se , rasga-me o peito como uma espada de dois gumes; por um lado , adoro a sua magnificência; por outro , desprezo a sua pronúncia negligente (aí sou superior a ele) e tenho ciúmes .

- E agora, disse Neville , deixemos Bernard começar. Deixemo--lo enredar-se nas histórias que conta enquanto repousamos tranqui-lamente deitados . Deixemo-lo descrever aquilo que todos vimos, até que isso adquira a sequência lógica do que já é conhecido . Bernard diz que há sempre uma história. Eu sou uma história; Louis é uma história. Há a história do rapazinho das botas , a história do homem que só tinha um olho , a história da vendedora de caracóis . Deixá-lo enredar-se nas suas histórias , enquanto eu fico deitado de costas fi­tando os vultos rígidos dos jogadores , com caneleiras , batendo a bola por entre as ervas que estremecem. O mundo parece feito de flutuantes linhas curvas - as árvores sobre a terra, as nuvens no céu . Através das árvores olho para o céu . O jogo parece travar-se aí e ténues gritos soam entre as macias nuvens brancas : «Corre?» ou «0 que foi?» A brisa desprende flocos brancos das nuvens . Se este céu

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azul pudesse continuar para sempre; se esta fresta entre as ramagens permanecesse; se este momento pudesse durar sempre . . .

Mas Bernard continua a falar. As suas imagens fervilham: «como um camelo . . . um abutre» . O camelo é um abutre; o abutre , um ca­melo; porque Bernard é um fio suspenso , desprendido mas sedutor. Sim, com as suas palavras , as suas comparações disparatadas , senti­mo-nos leves . Ficamos a flutuar como uma bolha de ar; ficamos li­vres ; escapei ! é o que sentimos ao ouvi-lo . Até os rapazinhos gordos (Dalton , Larpent e Baker) sentem a mesma ligeireza. Preferem-no ao críquete . Apanham as frases enquanto elas fervilham no ar. Deixam as ervas fazer-lhes cócegas no nariz . E de repente , todos sentimos Percival instalar-se pesadamente entre nós . O seu estranho riso pare­ce aprovar a nossa alegria. Mas eis que rola entre as ervas altas . Pa­rece mastigar um caule nos dentes . Sente-se aborrecido: também eu me sinto aborrecido . Imediatamente Bernard percebe que nos abor­recemos . Adivinho um esforço nas suas palavras , uma certa extrava­gância, uma maneira de dizer: «Olhem» . Mas Percival diz: «Não !» Ele é sempre o primeiro a detetar a insinceridade e é extremamente brutal . A frase de Bernard perde-se na sua própria debilidade . Sim, é o momento terrível em que Bernard falha, e deixa de haver continui­dade , e ele engasga-se e torce entre os dedos um pedaço de cordel e fica em silêncio , pasmado, prestes a chorar. Entre os tormentos e devastações da vida, conta-se também este - o de os nossos amigos não serem capazes de completar as suas histórias .

- Agora, disse Louis , antes de nos levantarmos , antes de irmos tomar o chá, deixem-me tentar captar este momento , num supremo esforço da vontade . É preciso que este momento permaneça. Esta­mos a separar-nos; uns vão para o chá; outros, para os campos de ténis ; eu vou mostrar o meu ensaio a Mr. Baker. É preciso que este momento permaneça. Após a discórdia, após o ódio (desprezo os que têm uma imaginação superficial) ; o ascendente de Percival magoa­-me, o meu pensamento estilhaçado sente-se reconstruído por uma perceção inesperada. Tomo as árvores e as nuvens como testemunhas da minha perfeita integração . Eu, Louis , que deverei andar pela terra nos próximos setenta anos , nasço inteiro , sem ódio , fora da discór­dia . Aqui , neste círculo feito na relva, estamos sentados , unidos pela terrível força de uma compulsão interior. As árvores acenam, as nu-

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vens passam, o tempo há de vir em que todos estes monólogos serão partilhados . Não ficaremos para sempre a emitir apenas sons como os de um gongo que ressoa quando as sensações o atingem. Crianças , as nossas vidas eram gongos batidos ; clamor e orgulho; lágrimas de desespero; as nucas tocadas no meio dos jardins .

Neste momento , a erva e as árvores , o vento que passa e abre na ramaria espaços de céu azul , espaços que as próprias árvores reco­brem de novo agitando as folhas que retomam os antigos lugares, e o círculo que formamos aqui sentados , uns junto dos outros com os joelhos entre os braços , tudo isto sugere uma outra ordem das coisas , uma ordem superior, cuja razão de ser é eterna. Percebo-a por um instante . E esta noite , tentarei fixar esta descoberta em palavras , fun­di-la num anel de aço , embora seja qualquer coisa que Percival pode destruir quando se afasta com o seu ar pesado , esmagando a erva sob os seus passos , seguido pelos alunos mais pequenos , que humilde­mente trotam atrás dele . E contudo , é de Percival que preciso; porque é Percival quem inspira a poesia .

- Durante quantos meses , disse Susan, quantos anos , subi a correr estas escadas , em sombrios dias de inverno, em frescos dias de prima­vera? Agora estamos em pleno verão . Subimos para nos mudarmos , para vestirmos roupas brancas de ténis - Jinny e eu e Rhoda, que vem atrás de nós . Conto os degraus enquanto subo, conto cada degrau como uma coisa definitivamente passada. Do mesmo modo, todas as noites arranco do calendário o dia que acabou e amarroto-o numa pequena bola. Faço-o para me vingar enquanto Betty e Clara rezam ajoelhadas . Eu não rezo . Vingo-me do dia, descarregando o meu ódio contra as suas imagens . Agora estás morto , digo, dia passado no co­légio , dia odiado . Esta gente conseguiu dar a todos os dias de junho - hoje são já 25 - o mesmo ar limpo e arranjado, com as mesmas pancadas de gongo, as mesmas lições , as mesmas ordens para nos lavarmos , mudarmos de roupa, trabalharmos , comermos . Ouvimos missionários vindos da China. De carruagem pelo asfalto das estra­das , fomos ouvir concertos e visitar galerias de arte .

Lá em casa, o feno ondula nos campos . O meu pai está encostado à cerca a fumar. Uma porta, depois outra, bate dentro de casa, quan­do o ar do verão atravessa os corredores vazios . Talvez um quadro antigo oscile na parede . Uma pétala cai de uma jarra cheia de rosas .

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As carroças da quinta deixam tufos de feno pelas sebes . Vejo todas estas coisas , estou sempre a vê-las , ao mesmo tempo que passo pelo espelho do patamar, com Jinny à minha frente a Rhoda, atrasando-se . Jinny dança. Jinny dança sempre no vestíbulo , atravessando os ladri­lhos feios e gastos; faz rodar o arco no pátio; colhe uma flor proibida e enfia-a na orelha, e os olhos escuros de Miss Perry ardem de admi­ração - por Jinny, não por mim. Miss Perry ama Jinny; eu poderia tê-la amado; agora, todavia, não amo ninguém, exceto meu pai , os pombos e o esquilo que deixei em casa dentro da gaiola ao cuidado do criado mais novo .

- Odeio o pequeno espelho do patamar, disse Jinny. Só mostra a cabeça das pessoas ; decapita-nos . E os meus lábios ficam grandes de mais e os olhos muito próximos . Quando me rio , veem-se as gengi­vas . O meu rosto é eclipsado pelo de Susan , com o seu olhar cruel e olhos verdes cor de relva, que os poetas hão de amar, como diz Ber­nard , ao vê-los pousar em minuciosos bordados brancos ; até o rosto de Rhoda, lunar e vazio , se basta a si próprio, tal como as pétalas brancas que ela costumava lançar na água da bacia de cobre . É assim que subo as escadas , ultrapassando-as a ambas até ao próximo pata­mar, onde está pendurado o espelho comprido . Aí vejo-me inteira. Vejo o meu corpo e a cabeça juntos, pois até nesta roupa de sarja o meu corpo e a minha cabeça são uma só coisa. Sim, quando movo a cabeça, todo o meu corpo estreito ondula, até as minhas pernas ma­gras ondulam, como um caule ao vento . Oscilo entre o duro rosto de Susan e o rosto sempre vago de Rhoda. Irrompo como uma dessas chamas que correm entre as fendas da terra; movimento-me; danço; não paro de me movimentar e dançar. Movo-me como se movia a folha na sebe quando eu era pequena e me assustava. Danço nestas paredes raiadas , nestas paredes impessoais debruadas a amarelo , co­mo uma chama dançando sobre um bule . Incendeio-me até sob os olhares frios das mulheres . Quando estou a ler, uma risca violeta corre pela mancha escurecida dos livros . E, contudo, sou incapaz de seguir uma palavra através das suas significações variáveis . Não con­sigo acompanhar nenhum pensamento que remonte do presente ao passado . Não fico parada, perdida, como Susan, de lágrimas nos olhos , ao lembrar-me da casa; nem me vou deitar como faz Rhoda, encolhida entre os fetos que mancham de verde a minha roupa cor-de-

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-rosa, enquanto sonho com plantas que florescem no fundo do mar e com rochedos onde há peixes nadando lentamente . Eu não sonho.

Agora, apressemo-nos . Quero ser a primeira a tirar estas roupas grosseiras . Aqui estão as minhas meias , brancas e limpas . Aqui estão os meus sapatos novos . Prendo o cabelo com uma fita branca, e quan­do estiver a jogar a fita vai ondular sem nunca deixar o seu lugar sobre a minha nuca. Nem um só dos meus cabelos ficará em desordem.

- É o meu rosto que vejo no espelho , por trás do ombro de Susan, disse Rhoda. Aquele rosto é o meu rosto . Vou agachar-me atrás dela e escondê-lo pois não estou aqui . Não tenho rosto . As outras pessoas têm rosto; Susan e Jinny têm rosto; estão aqui . O mundo delas é real . Os objetos que levantam têm peso . Dizem «sim» ; dizem «não»; en­quanto eu hesito , me modifico e desvendo num instante . Se encontram uma criada, ela olha-as sem rir. Se for eu , a criada ri-se . E sabem sem­pre o que devem dizer quando alguém fala com elas . Riem-se de ver­dade e zangam-se de verdade, enquanto eu tenho de olhar à volta e fazer o que vejo que os outros fazem.

Olhem com que extraordinária exatidão Jinny calça as meias para ir jogar ténis . Admiro-a. Mas prefiro os modos de Susan, porque é mais resoluta e tem menos desejos de brilhar que Jinny. Ambas me desprezam porque as imito , mas , às vezes , Susan ensina-me, por exemplo , a dar um laço , enquanto Jinny guarda para si a sabedoria que possui . Têm amigas junto de quem se sentam. Têm segredos que ciciam pelos cantos . Mas eu só me ligo a nomes e rostos e entesouro­-os como amuletos que evitam a desgraça. Escolho na sala um rosto desconhecido e quase não consigo tomar o chá quando aquela cujo nome não sei se senta à minha frente . Sufoco . A violência da emoção faz-me vacilar. Imagino todas essas pessoas desprovidas de nome , imaculadas , observando-me por detrás dos arbustos . Dou grandes saltos para despertar a sua atenção . À noite , na cama, procuro exci­tar-lhes a admiração . Morri muitas vezes trespassada por flechas apenas para lhes arrancar algumas lágrimas . Se me dissessem, ou eu descobrisse pela etiqueta das malas , que tinham estado a passar fé­rias em Scarborough, a cidade ficaria dourada e as pedras da calçada começariam a refulgir. Por isso , odeio os espelhos, que me revelam o meu verdadeiro rosto . Quando estou sozinha, acontece-me muitas vezes mergulhar no vazio . Preciso de poisar furtivamente os pés no

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rebordo do mundo para não cair no nada. Tenho de bater com a mão numa porta dura para regressar ao meu corpo .

- Atrasámo-nos , disse Susan . Temos de esperar pela nossa vez de jogar. Vamos deitar-nos aqui , sobre a erva alta, fingindo que estamos a ver jogar Jinny e Clara, Betty e Mavis . Mas não estaremos a vê-las . Detesto ver as outras pessoas jogarem. Vou atribuir às coisas que me cercam significados odiosos e enterrá-las o mais fundo possível . Esta pedrinha reluzente é Madama Cario e vou enterrá-la por causa dos seus modos aduladores e insinuantes e da moeda de seis pence

que me deu para me obrigar a ter os dedos estendidos quando toco escalas . Vou enterrar a sua moeda de seis pence . Seria capaz de en­terrar a escola inteira: o ginásio , a sala de aula, o refeitório sempre a cheirar a carne, e a capela. Gostava de enterrar os tijolos vermelhos , e os retratos oleosos dos homens velhos , benfeitores ou fundadores de escolas . Há aqui algumas árvores de que gosto , como a cerejeira com a casca cheia de resina translúcida. E gosto da vista que se tem do sótão para as colinas distantes . À parte isso , gostava de enterrar tudo , como estou a enterrar as horríveis pedras espalhadas nesta praia cheia de paredões e turistas . Em minha casa, as vagas têm lé­guas de comprimento . Em noites de inverno, ouve-se o seu bramido . O ano passado , no Natal , um homem afogou-se quando estava sozi­nho, sentado na sua carroça.

- Quando Miss Lambert passa, diz Rhoda, conversando com o pastor, as outras riem e imitam-lhe a corcunda. Apesar disso, tudo se transfigura e ilumina. A própria Jinny salta mais alto quando Miss Lambert passa. Onde quer que ela vá, as coisas transmutam-se sob o seu olhar. Como conseguirão voltar a ser o que eram quando ela se vai

embora? Miss Lambert atravessa a cancela e conduz o pastor ao seu jardim privativo . Quando chegar ao tanque, há de ver uma rã sobre uma folha e a rã também se vai transformar. Quando para, como uma estátua numa gruta, tudo à sua volta se toma solene e pálido. Deixa cair dos ombros a capa de longas franjas e só o seu anel de ametista conti­nua a brilhar, o seu anel cor de vinho. Quando nos deixam, as pessoas tomam-se misteriosas . Posso acompanhá-las até ao tanque e transformá­-las em majestosas estátuas . As margaridas transformam-se quando Miss Lambert passa; e ao cortar a carne nascem labaredas . No decurso dos meses , as coisas à minha volta perdem a sua dureza; até o meu

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corpo deixa passar a luz; as minhas vértebras tomam-se macias como a cera junto à chama de uma vela. Estou a sonhar . . . a sonhar . . .

- Ganhei o jogo, disse Jinny. Agora é a vossa vez. Tenho de me deitar no chão e retomar fôlego. Sufoco de correr tanto, de tanto vencer. No meu corpo tudo parece mais límpido com a corrida e a vitória. E o meu sangue deve estar vermelho vivo, excitado, batendo no peito . Te­nho as plantas dos pés tão sensíveis como se nelas houvessem ramifi­cações de fios elétricos . Vejo com toda a nitidez os caules da erva. Contudo, o sangue lateja de tal modo na minha cabeça, atrás dos meus olhos, que tudo dança: a rede de ténis , a relva. Os vossos rostos esvoa­

çam como borboletas e as árvores parecem saltar. Não há nada de fixo, nem de definitivo neste universo . Tudo ondula, e dança; tudo é rapidez e triunfo. E, no entanto, quando vos vejo jogar, deitada sozinha na terra dura, começo a ter vontade de ser escolhida, convidada, chamada por alguém que vem e me encontra, se sente atraído por mim, e não é capaz de se afastar e fica a meu lado quando me sento na cadeira dou­rada, com o vestido flutuando aos pés , como uma flor. E retiramo-nos para um canto , sentados numa sacada, sozinhos , os dois a conversar.

Agora a maré está a descer. As árvores voltam a enraizar-se no solo , as vagas que batiam no meu peito acalmam e o meu coração lança âncora, como um barco cujas velas caem devagar no convés imaculado . O jogo acabou . Agora vamos tomar chá.

- O grupo de meninos convencidos foi jogar críquete, disse Louis . Partiram na grande carruagem cantando em coro. Na esquina, junto do maciço dos loureiros , viraram todos a cabeça ao mesmo tempo. Agora, exibem-se . O irmão de Larpent foi da equipa de futebol de Oxford; o pai de Smith pertence há um século à Câmara dos Lordes; Archie e Hugh; Parker e Dalton; Larpent e Smith - os nomes repetem-se, são sempre os mesmos , são eles os escuteiros, os jogadores de críquete, os membros da Sociedade de História Natural . Andam sempre em filas de quatro, em bandos com emblemas nos bonés . Quando passam pela estátua do seu general , fazem uma saudação simultânea. É tão majes­tosa a sua ordem, tão magnífica a sua obediência ! Se pudesse ir com eles , se pudesse acompanhá-los , sacrificaria tudo o que conheço . Con­tudo, eles deixam atrás de si borboletas cujas trémulas asas vão mur­chando; atiram para os cantos lenços sujos de sangue coagulado; fa­zem soluçar os rapazes mais novos nos corredores sombrios ; têm

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enormes orelhas vermelhas despontando sob os bonés . E, contudo, Neville e eu gostaríamos de ser como eles . Olho-os com inveja. Es­preitando-os atrás da cortina, observo deliciado a simultaneidade dos seus movimentos . Se as minhas pernas tivessem a força das deles , como haveriam de correr! Se os tivesse acompanhado, se tivesse ven­cido nas partidas de críquete e nas provas de remo, se tivesse galopado o dia inteiro, com que voz de trovão não entoaria as canções da meia­-noite , que torrente de palavras não jorraria da minha garganta !

- Percival foi-se agora embora, disse Neville . Só pensa nos jogos . Nem sequer acenou quando a carruagem dobrou a esquina junto ao maciço de loureiros . Despreza-me por ser fraco de mais para jogar (embora se mostre sempre atencioso para com a minha fragilidade) . Despreza-me porque a mim não me interessa que eles ganhem ou per­cam, a não ser na medida em que isso lhe interesse a ele . Aceita, no entanto, a minha dedicação; aceita a trémula e, sem dúvida, abjeta oferenda que lhe faço de mim próprio , de mim que tanto desdém tenho pela sua estupidez . É mesmo incapaz de ler. Mas quando leio alto Shakespeare ou Catulo, deitado entre as ervas altas , ele percebe melhor que Louis . Não o sentido das palavras - mas o que são afinal as pala­vras? Acaso não sei como imitar os versos de Pope, Dryden, até de Shakespeare? Mas sou incapaz de ficar um dia inteiro ao sol de olhos postos na bola; não sou capaz de sentir o voo da bola no meu corpo e de pensar apenas nela. Serei para o resto da vida alguém agarrada à fímbria das palavras . Contudo, não seria capaz de viver com Percival e suportar a sua estupidez. Ele vai tomar-se grosseiro , e começará a roncar. Vai casar-se e haverá cenas de ternura no seu pequeno-almoço . Agora, porém, ainda é jovem. Nem um fio, nem uma folha de papel se interpõem entre ele e o sol , entre ele e a chuva, entre ele e a lua, quan­do se deita nu e se envolve no calor da sua cama. Agora, enquanto a carruagem os leva pela estrada, o seu rosto tem manchas de amarelo e vermelho. Vai tirar o casaco e postar-se de pernas abertas e mãos pron­tas , fitando a baliza. E vai rezar: «Meu Deus , fazei com que vençamos a prova.» A vitória da sua equipa será o seu único pensamento.

Mas como poderia eu acompanhá-los na carruagem e jogar críque­te? Só Bernard poderia fazê-lo , mas Bernard chega sempre atrasado . Atrasa-se demasiado para poder ir com eles . A sua incorrigível me­lancolia impede-o de ir. Para enquanto está a lavar as mãos , e diz:

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«Está uma mosca presa naquela teia. Devo salvar a mosca? Ou dei­xar que aranha a devore?» Flutua sempre em inumeráveis perplexi­dades . Se tivesse ido com eles , deitava-se na relva, a olhar o céu , e só se lembraria de correr quando a bola já tivesse sido arremessada há muito . Mas os outros desculpavam-no , porque Bernard arranjaria uma história para lhes contar.

- Já partiram, disse Bernard, e eu cheguei demasiado tarde para os acompanhar. Esses miúdos horríveis , mas tão belos , que Louis e tu , Neville , os invejam tanto , foram-se embora, voltando todos a cabeça ao mesmo tempo . Mas eu sou insensível às vossas subtis distinções . Os meus dedos deslizam sobre as teclas sem sequer repa­rar se são brancas ou pretas . Archie atinge cem pontos com facilida­de . Eu , às vezes , se tiver sorte , chego a fazer quinze . Mas que dife­rença existe entre nós? Espera, Neville deixa-me dizer. Bolhas sobem numa corrente de prata do fundo de uma caçarola. Imagens juntam-se a imagens . Não sou capaz de ficar debruçado sobre um livro , como o faz Louis , com a sua feroz persistência. Tenho neces­sidade de abrir a portinhola do meu alçapão e deixar sair as frases que servem para ligar os acontecimentos. Deste modo , o sentimento de incoerência é substituído por uma ligação sinuosa que une flexi­velmente as coisas entre si . Vou contar-te uma história do reitor.

Quando, depois das orações , o Dr. Crane cambaleia ligeiramente ao atravessar a porta giratória, parece convencido da sua imensa su­perioridade . E, de facto , Neville , é impossível negarmos que a sua saída nos dá uma sensação de alívio e de que alguma coisa em nós foi removida, como quando nos arrancam um dente . Agora, vamos segui­-lo através da porta giratória, até aos seus aposentos . Imaginemo-lo a despir-se , no seu quarto, por cima das cavalariças . Desaperta as ligas das meias (não devemos recear a trivialidade destes pormenores ínti­mos) . Depois , com um gesto característico (é difícil evitar as frases feitas; em todo o caso, elas são aqui perfeitamente aplicáveis) , tira as moedas de prata e cobre das algibeiras das calças e coloca-as sobre a cómoda. Com as mãos poisadas nos braços da cadeira, está agora a refletir (é nesse momento que se encontra a sós consigo próprio: é o momento em que devemos tentar compreendê-lo) . Vai ou não atraves­sar a passadeira cor-de-rosa que leva ao quarto conjugal? O abat-jour

da cabeceira projeta uma luz cor-de-rosa entre os dois aposentos . Mrs .

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Crane está deitada, com os cabelos espalhados no travesseiro , lendo um livro de memórias sobre a corte francesa. À medida que lê , passa a mão pela fronte , num gesto de abandono e desespero e suspira; «Era só isto?» , comparando-se com certa duquesa de França. «Dentro de dois anos reformo-me» , diz o reitor. Vou para oeste , e entretenho-me a aparar as sebes de teixo do meu jardim. Podia ter sido almirante, ou juiz , em vez de mestre-escola. O reitor fita as chamas de gás , enquan­to os seus ombros se erguem mais do que é habitual (lembremo-nos que ele está agora em mangas de camisa) . Que forças me trouxeram até aqui? Que forças inexoráveis , pergunta, deixando-se arrastar no curso torrencial das frases majestosas , ao mesmo tempo que espreita a janela por cima de um dos ombros . A noite é de tempestade; os ramos dos castanheiros agitam-se e entre eles brilham estrelas . «Que forças do destino me trouxeram até aqui?» , pergunta-se, notando melancoli­camente que a pressão da sua cadeira fez um pequeno rasgão no tape­te cor de vinho . É assim que ele fica sentado, balouçando os braços. São difíceis as histórias que seguem a pessoa até ao seu quarto . Não consigo continuar esta história. Começo a torcer um cordel; remexo em quatro ou cinco moedas no bolso das calças .

- De início as histórias de Bernard divertem-me, disse Neville . Mas quando se tomam absurdas e ele tenta recuperar fôlego retorcendo um cordel entre os dedos , sinto a minha própria solidão. Ele vê todos os seres como imagens de contornos imprecisos . Por isso não posso falar­-lhe de Percival . Não posso expor à sua compreensão a minha paixão violenta e absurda. Também ela passaria a ser uma «história» . Preciso de alguém cujo pensamento caia como o machado sobre o toro de ma­deira e considere sublime o cúmulo do absurdo e adorável o laço do cordão de um sapato . A quem poderei expor a urgência da minha pai­xão? Louis é demasiado frio, demasiado universal . Não há ninguém aqui entre os arcos de pedra cinzenta e o arrulhar triste dos pombos , entre a alegria dos jogos e essas tradições e competições meticulosa­mente organizadas para evitar que nos sintamos sós . Mas até ao cami­nhar sou assaltado por súbitas premonições do futuro. Ontem, ao pas­sar pela porta aberta que leva à parte reservada do jardim, vi Fenwick com o bastão no ar. O vapor do chá espalhava-se pela relva. Havia grupos de flores azuis. E, de súbito , senti crescer em mim o sentimen­to obscuro e místico de adoração e perfeição que vence todo o caos .

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Ninguém viu a minha silhueta concentrada e grave, postada no limiar da porta aberta. Ninguém adivinhou a necessidade que eu sentia de oferecer a um deus todo o meu ser, a necessidade de perecer e de me extinguir. O bastão do jogador desceu; a visão desfez-se .

Deverei escolher uma árvore? Afastar-me destas salas de aula, destas bibliotecas , da grande página amarela em que leio Catulo , trocar tudo pelos campos e os bosques? Deverei caminhar sob as faias ou vaguear ao longo da margem do rio , onde os reflexos das árvores se enlaçam nas águas como amantes? A Natureza é contudo demasiado vegetal , demasiado insípida. Apenas possui a imensidão sublime da água e das folhas . Começo a desejar a intimidade de um quarto iluminado por uma lareira e o corpo de uma única pessoa.

- Começo a desejar que a noite chegue, disse Louis . Aqui parado, com a mão na áspera almofada de carvalho da porta de Mr. Wickham, imagino-me amigo de Richelieu ou do duque de Saint-Simon, esten­dendo ao rei em pessoa uma caixinha de rapé . É um privilégio meu. Os meus ditos espirituosos «propagam-se pela corte como relâmpa­gos» . Em sinal de admiração, as duquesas arrancam as esmeraldas dos seus brincos - mas estes fogos de artifício explodem com mais brilho na escuridão , à noite , na minha cama. Agora não passo de um rapaz com sotaque colonial comprimindo os dedos contra a áspera porta de carvalho de Mr. Wickham. Foi um dia cheio de ignomínias e vitórias , que dissimulo por temor ao riso alheio . Sou o melhor aluno do colégio . Mas , quando vem a noite , saio deste corpo inviável - do meu grande nariz , dos lábios finos , do meu sotaque - e habito outro espaço . Tomo-me companheiro de Virgílio e de Platão . Sou o último descen­dente de uma das maiores casas de França. Porém, sou também aque­le que em breve será forçado a abandonar esses territórios lunares , varridos pelo vento , esses passeios à meia-noite , para defrontar áspe­ras portas de carvalho . Durante toda a minha vida - queira Deus que não seja longa - realizarei a gigantesca amálgama dessas contradi­ções tão cruelmente evidentes em mim. Hei de ser capaz de o fazer à força de sofrimento. Bato à porta. Vou entrar.

- Arranquei do calendário os dias de maio e de junho, disse Susan e vinte e dois dias de julho . Arranquei-os e amarfanhei-os , e por isso

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já só existem como um peso no meu coração . São dias mutilados , como borboletas noturnas com as asas arrancadas , incapazes de voar. Já só faltam oito dias . Dentro de oito dias , descerei do comboio e fi­carei parada no cais às seis e vinte e cinco . A minha liberdade vai então desabrochar, fazendo estalar todas as obrigações que me tolhem e diminuem - os horários , a ordem, a disciplina, o ter de estar aqui e ali a horas certas . O dia explodirá de brilho quando eu abrir a porta e vir o meu pai com o seu velho chapéu e as polainas . Vou tremer. Rom­per em lágrimas . Depois , na manhã seguinte , levanto-me de madruga­da. Saio pela porta da cozinha. Irei pelo paul , ouvindo trovejar atrás de mim os grandes cavalos montados por fantasmas que de súbito se detêm. Verei a andorinha roçando a erva. Vou atirar-me para um banco junto ao rio e ficar a ver os peixes deslizando entre os juncos . Terei nas palmas das mãos as marcas das agulhas dos pinheiros . Então po­derei desdobrar e examinar com atenção tudo o que aqui nasceu em mim, qualquer coisa de duro . Porque alguma coisa cresceu dentro de mim, através do inverno e do verão , dos dormitórios e escadarias . Ao contrário de Jinny, não quero ser admirada. Não quero que as pessoas ergam os olhos de admiração quando entro . Quero dar e receber e quero a solidão onde possa desdobrar em paz tudo o que possuo .

Voltarei a casa por trémulas áleas sob as folhas do castanheiro . En­contrarei uma velha empurrando um carrinho com gravetos de lenha. Depois o pastor. Mas não conversaremos . Regressarei pela horta, verei as folhas das couves cobertas de orvalho e , no jardim, a casa com ja­nelas que as cortinas cegam. Subirei ao meu quarto e passarei em re­vista as minhas coisas cuidadosamente fechadas no armário: as minhas conchas , os meus ovos de pássaro , as minhas estranhas ervas . Darei de comer aos meus pombos e ao meu esquilo . Irei ao canil escovar o meu spaniel. Desse modo, pouco a pouco, afastarei do meu coração essa coisa dura que nele cresceu . Mas aqui as sinetas não param de tocar e há ruídos de pés arrastando-se sem descanso .

- Odeio a escuridão , o sono e a noite , disse Jinny. Deitada na cama, aguardo ansiosamente que o dia nasça; gostava que a semana fosse apenas um único dia invisível . Quando acordo cedo - e os pássaros acordam-me sempre cedo - , fico na cama a olhar para as maçanetas de cobre da cómoda, depois o lavatório e o toalheiro , que recomeçam a brilhar. À medida que as coisas começam a brilhar no

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quarto , o meu coração bate mais depressa. Sinto o corpo endurecer, tomar-se cor-de-rosa, amarelo , castanho . As minhas mãos erram ao longo das pernas e de todo o corpo . Sinto as suas curvas , a sua deli­cadeza. Gosto de ouvir o gongo ressoar pela casa e a movimentação que recomeça - aqui uma pancada surda, ali passos rápidos . Há portas que batem; água a correr. É outro dia, grito , quando os meus pés tocam o chão . Talvez seja um dia maculado, um dia imperfeito . Sou muitas vezes repreendida, censurada por ser preguiçosa e rir; apesar disso , mesmo quando Miss Matthews resmunga por causa da minha negligência, vejo mover-se alguma coisa - talvez a mancha do sol num quadro , ou o burro que arrasta a cortadora de relva no parque , ou a vela de um navio que passa entre as folhas do loureiro . Por isso , nunca me sinto abandonada. Ninguém pode impedir-me de brincar e saltar nas costas de Miss Matthews , enquanto ela reza.

Agora chegou a altura de sairmos do colégio e usarmos vestidos compridos . Usarei colares e um vestido de noite branco , sem man­gas . Haverá festas em salões iluminados; e um homem para me es­colher entre todas , dizendo-me o que nunca disse a mais ninguém. Gostará mais de mim que de Susan ou de Rhoda. Descobrirá em mim uma qualidade particular, alguma coisa que me é própria. Mas não me deixarei prender por uma só pessoa. Não quero ser imobilizada, manietada. Tremo e vibro como as folhas da sebe , sentada na borda da cama e balouçando os pés quando se inicia um novo dia. Tenho cinquenta, sessenta anos para viver. Não abri ainda o cofre dos meus tesouros . Estou apenas no começo .

- Ainda faltam muitas horas para poder apagar a luz, disse Rhoda, e deitar-me, flutuando na cama, acima do mundo . Ainda faltam muitas horas para que eu possa fazer cair o crepúsculo e para que a árvore cresça em frementes bandeiras verdes à minha volta. Aqui não posso deixá-la crescer. Alguém a fere por dentro. E as pessoas fazem-me perguntas , interrompem-me, atiram tudo ao chão .

Agora vou para a casa de banho, tiro os sapatos e lavo-me; en­quanto me estiver a lavar com a cabeça inclinada para o lavatório , deixarei cair em cascata, pelos meus ombros , o véu de imperatriz da Rússia . Os diamantes da coroa do Império cintilam na minha fronte . Quando vou à varanda, ouço o clamor da multidão hostil . Agora, enxugo as mãos com força, de tal modo que a Miss Não Sei o Seu

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Nome não desconfie de que o meu punho fechado ameaça a multidão em fúria. «Povo , sou a vossa imperatriz» . É de desafio a minha ati­tude . Não tenho medo. Vencerei .

Mas isto é apenas um frágil sonho. Uma árvore em papel pintado. Miss Lambert é capaz de a deitar por terra com um simples sopro . Basta o olhar dela quando passa no corredor e desaparece ao longe, para tudo isto se desfazer em poeira. Não é sólido , nem me contenta, o meu sonho imperial . Agora que o sonho se dissolveu fiquei a tremer no corredor. As coisas parecem empalidecer. Vou à biblioteca procurar um livro qualquer, ler e olhar em volta; ler de novo e depois olhar outra vez. Este poema fala de uma sebe . Vou descer por ela e colher flores de abóbora e de espinheiro cor de luar, rosas bravas e ramos de hera. Vou agarrá-las bem nas minhas mãos e pousá-las no tampo da secretária. Vou sentar-me na margem trémula do rio a olhar os grandes nenúfares brilhantes que espalham sobre o carvalho que domina a sebe a sua luz húmida como um raio lunar. Vou colher flores , entrançá-las numa grinalda e oferecê-las . - Oh, a quem? Surge um obstáculo no fluxo do meu ser; o rio profundo esbarra em qualquer coisa; empurra; puxa; no centro há um nó que não cede . Ah, esta dor, esta angústia. Desfaleço, perco a consciência. Agora, o meu corpo funde-se; estou liberta, incandescente . Agora, o rio expande-se numa imensa maré fértil , rompendo os diques , insinuando-se à força nas fendas , inundan­do livremente a terra. A quem darei tudo o que flui através de mim, através da argila tépida e porosa do meu corpo? Vou fazer uma grinal­da com as minhas flores e oferecê-la - Oh, mas a quem?

No paredão vagueiam marinheiros e pares de amantes; os autocar­ros arfam ao passar no cais a caminho da cidade . Quero dar; quero enriquecer alguém; quero devolver ao mundo toda esta beleza. Enla­çar as minhas flores numa única grinalda e avançar com ela na mão estendida, oferecendo-a - Oh, mas a quem?

- Agora, disse Louis , é o último dia do último período, o último dia para Neville , Bernard e para mim. Recebemos tudo o que os nos­sos mestres tinham para nos dar. A iniciação cumpriu-se; conhecemos o mundo. Os mestres ficam, nós partimos . O imenso reitor, que vene­ro acima de todos os homens , avançou oscilando um pouco entre as mesas com volumes encadernados e distribuiu Horácio , Tennyson, as obras completas de Keats e de Matthew Arnold, com as dedicatórias

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apropriadas . Respeito a mão que distribuiu os livros . O reitor falou com absoluta convicção. Para ele , as suas palavras são verdadeiras , embora não o sejam para nós . Falando com uma voz que a profunda emoção tomava áspera, arrebatado e comovido, disse-nos que íamos

partir. Aconselhou-nos a que nos portássemos «como homens» (nos seus lábios , as citações da Bíblia e as citações do Times parecem igual­mente grandiosas) . Uns farão isto; outros , aquilo . Alguns nunca mais se voltarão a encontrar. Neville , Bernard e eu nunca mais nos encon­traremos aqui . A vida vai separar-nos . Mas estabelecemos certos laços entre nós . Acabaram-se os anos da infância. Acima de tudo herdámos tradições . Estas lajes de pedra são usadas há seiscentos anos . Nestas paredes estão inscritos nomes de cabos de guerra, de homens .de Esta­do e de alguns poetas infelizes (o meu ficará entre estes) . Abençoadas sejam todas as tradições , todas as garantias e limitações ! Sinto-me pleno de gratidão perante vós , homens de traje negro , e perante vós mortos que nos conduziram e guardaram. Mas apesar disso, o proble­ma permanece . As contradições ainda não foram resolvidas . As flores inclinam a cabeça contra a janela. Vejo pássaros selvagens . E instintos mais selvagens que o mais selvagem dos pássaros vibram no meu coração . Os meus olhos são selvagens ; os meus lábios apertam-se com força. O pássaro voa; a flor dança; mas eu ouço sempre o surdo bater das ondas; e o animal acorrentado batendo com as patas na areia. O animal que não para de bater com as patas na praia.

- É a cerimónia final , disse Bernard. É a última de todas as cerimó­nias . Sentimo-nos dominados por estranhos sentimentos . O chefe da estação segura a bandeira e está prestes a apitar; o comboio exala vapor e vai partir dentro de momentos . Gostaríamos de dizer qualquer coisa, de sentir qualquer coisa apropriada à ocasião . O espírito está prepara­do, os lábios também. É então que uma abelha surge e começa a zum­bir à volta das flores do raminho que lady Hampton, a mulher do ge­neral , estava a cheirar numa manifestação do agrado que a oferta lhe causara. E se a abelha a picasse no nariz? Estamos profundamente emocionados e , apesar disso, continuamos irreverentes e constrangi­dos . Ansiosos por que tudo acabe e com medo da partida. A abelha distrai-nos; o seu voo ocasional parece troçar da intensidade das nossas emoções . Zumbindo vagamente , deambulando ao acaso, a abelha aca­ba por instalar-se num cravo . Muitos de nós não voltarão a encontrar-

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-se . Não voltaremos a desfrutar certos prazeres , quando formos livres de ir para a cama ou de ficar sentados , quando eu já não precisar de levar furtivamente para o quarto cotos de vela para ler à noite livros indecentes . A abelha zumbe agora à volta da cabeça do majestoso rei­tor. Larpent, John, Archie , Percival , Baker e Smith - gostei muito deles . Só conheci um rapaz louco . Odiei apenas um rapaz. Saboreio retrospetivamente os meus pequenos-almoços com torradas e compota, à mesa do reitor, onde me sentia terrivelmente desajeitado. Só o reitor não reparou na abelha. Se poisar no nariz dele , vai sacudi-la com um gesto majestoso . O reitor disse agora o seu gracejo; a voz quase se quebrou, mas não completamente . Agora despedem-se de Louis , Nev­ille e de mim. Para sempre . Pegamos nos livros de capas reluzentes com dedicatórias escolásticas , escritas numa letra pequena e severa. Levantamo-nos; dispersamo-nos; a pressão diminui . A abelha volta a ser um inseto insignificante e voa, atravessando a janela aberta per­dendo-se na obscuridade . Amanhã vamo-nos embora.

- Vamos partir, disse Neville . Aqui estão as malas ; aqui estão as carruagens . Lá está Percival com o seu chapéu de feltro . Vai esque­cer-me . Deixará as minhas cartas sem resposta, caídas entre armas e cães . Vou mandar-lhe poemas e talvez ele responda com um postal ilustrado . Mas é por isso que o amo . Vai sair da minha vida, esquecer­-me , quase completamente alheado do que foi para mim. E, por inacreditável que pareça, eu entrarei noutras vidas . Talvez isto seja apenas uma fuga, um simples prelúdio . Embora não suporte os ges­tos pomposos do reitor e as suas emoções fingidas , sinto a aproxima­ção de acontecimentos até agora vagamente entrevistos . Serei livre de entrar no jardim onde Fenwick ergue o seu bastão . Os que me desprezam reconhecerão a minha soberania. Mas , por uma impers­crutável lei do meu ser, nem a soberania nem o poder me hão de bastar. Continuarei a deslizar para trás das cortinas , para a intimida­de , procurando as palavras murmuradas na solidão . Por isso parto hesitante mas altivo , sentindo uma dor intolerável , seguro , porém, de que hei de vencer nessa aventura após tanto sofrimento . Seguro (quero crer) de descobrir por fim o objeto do meu desejo. Pela última vez olho a estátua do piedoso fundador do colégio com pombas à volta da cabeça. As pombas hão de voar eternamente em volta da sua cabeça, sujando-a de branco, enquanto o órgão geme na capela. Vou

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buscar o meu bilhete; e, quando descobrir o meu lugar no canto do compartimento reservado , esconderei os olhos atrás de um livro para ocultar uma lágrima. Esconderei os olhos para observar; para esprei­tar um rosto . É o primeiro dia das férias grandes .

- É o primeiro dia das férias grandes , disse Susan . Mas é ainda um dia por desdobrar. Não o examinarei antes de descer à noite na estação do comboio . Não me permitirei sequer cheirá-lo antes de respirar o frio ar verde dos campos . Mas estes campos já não são os do colégio; estas já não são as sebes do colégio; os homens destes campos fazem coisas verdadeiras ; enchem as carroças de feno autêntico; e aquelas são vacas verdadeiras que em nada se parecem com as do colégio . Mas tenho ainda nas narinas o cheiro a desinfetante dos corredores e do giz das salas de aula, carrego ainda nos olhos o aspeto envernizado e bri­lhante dos soalhos do colégio . Preciso de campos e sebes , bosques e campos , e das escarpas íngremes por onde passa o caminho de ferro, salpicadas de arbustos e tojo, de camiões, estradas e túneis , e jardins dos subúrbios com mulheres a estender roupa lavada, e depois de mais campos e crianças balouçando nos portões; tudo isso para enterrar profundamente o colégio que odeio .

Não mandarei os meus filhos para colégios nem passarei uma só noite em Londres em toda a minha vida. Aqui , nesta estação imensa, tudo ecoa num som cavo . A claridade é a de uma luz amarela filtrada por um toldo . Jinny vive aqui . Jinny leva o cão a passear por estes sí­tios . Aqui as pessoas atravessam as ruas em silêncio . Só veem as montras . As cabeças inclinam-se e levantam-se quase ao mesmo tem­po . As ruas estão ligadas umas às outras por fios de telégrafo. As casas são todas de vidro, com festões e adornos brilhantes . Do comboio só vejo as portas da frente e cortinas rendadas , colunas e degraus brancos . Mas saímos de Londres e de novo surgem os campos e as casas , e as mulheres a estender roupa lavada, e as árvores e ainda os campos . Londres oculta-se , desaparece , desmorona-se , afunda-se . O cheiro a desinfetante e a terebentina vai desaparecendo . Respiro o odor dos campos de trigo e de nabais . Desembrulho um pacote preso com um cordel branco. Cascas de ovo tombam para a ravina aberta entre os meus joelhos . Agora paramos numa estação e depois noutra, e o com­boio descarrega vasilhas de leite . As mulheres beijam-se e ajudam-se a carregar cestos . Agora vou debruçar-me da janela. O ar inunda-me

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as narinas e a garganta - o ar frio , o ar salgado que traz o cheiro das plantações de nabos . E lá está o meu pai , de costas , a falar com um agricultor. Começo a tremer e a chorar. Lá está o meu pai , com as polainas . Lá está ele .

- Estou bem aconchegada no meu canto a caminho do Norte , disse Jinny, neste comboio atroador e , ao mesmo tempo , tão leve que alisa as sebes e prolonga as colinas . Passamos como um raio pelos sinais , fazendo tremer a terra . Sem cessar, o horizonte fecha-se à nossa frente , e sem cessar o rompemos . Os postes telegráficos vão e vêm, sobem e descem. Agora o comboio ruge e oscila ao atravessar um túnel . Um senhor fecha a janela. Vejo imagens que se refletem no vidro cintilante , ao longo do túnel . Vejo o senhor baixar o jornal e sorrir para o meu reflexo . Instintivamente o meu corpo vibra sob o seu olhar. Agora a janela escura toma-se de novo verde . Saímos do túnel . O senhor lê outra vez Ô jornal . Mas os nossos corpos trocaram já sinais de aprovação . Há uma grande sociedade de corpos , e o meu acaba de aí ser recebido; o meu corpo entrou no salão de cadeiras doiradas . Vejam como dançam todas as janelas , todas as cortinas brancas das mansões; e os homens sentados nas sebes dos campos de trigo com lenços azuis ao pescoço despertam também, como eu , para o ardor e o encanto . Um deles acena quando passamos . Há pér­gulas e caramanchões nos jardins das mansões e, nas escadas , rapa­zes em mangas de camisa podando as roseiras . Um homem a cavalo galopa pelos campos . O cavalo cabriola quando passamos . O cava­leiro volta-se na sela para nos olhar. De novo , trovejamos pela escu­ridão dentro . Recosto-me , abandono-me ao meu êxtase , imaginando que , ao sairmos do túnel , entrarei numa sala iluminada, cheia de cadeiras , numa das quais me vou sentar, admirada por todos , com o vestido ondulando aos pés . Mas - atenção ! - , ao erguer os olhos deparo com uma mulher carrancuda, que suspeita do meu êxtase . Como se fosse um guarda-chuva, o meu corpo fecha-se , insolente , na sua cara . Abro e fecho o meu corpo à vontade . A vida apenas come­ça. O tesouro da minha vida permanece intacto .

- É este o primeiro dia das férias grandes , disse Rhoda. E agora, enquanto o comboio passa por estas rochas vermelhas , por este mar azul , o último período escolar vai tomando forma atrás de mim. Vejo as suas cores . Junho foi completamente branco, com o campo cheio

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de margaridas , incontáveis vestidos de verão e roupas de ténis com grandes riscas brancas . Veio depois o vento e a violência dos trovões . Certa noite , uma estrela cavalgava entre as nuvens , e eu disse-lhe: «Devora-me .» Foi já em pleno verão depois da festa do jardim, da festa em que me senti humilhada. O vento e as tempestades foram as cores de julho . E, a meio , houve a horrível poça, cinzenta e mortal , no pátio . Passei por ela, levando comigo um envelope , quando me mandaram entregar uma mensagem. Senti-me perto da morte; não consegui passar por cima da poça; o meu sentido de identidade esvaiu-se . Não somos nada, gritei , e caí. Senti-me arrastada pelo ar como uma pena, arrojada através de túneis . Depois , cautelosamente , estendi o pé sobre a água escura. Apoiei-me com a mão a um muro de tijolo . Voltei para trás com uma dor infinita, arrastando de novo o meu próprio corpo sobre a extensão cinzenta e mortal da poça de lama. Esta é a vida que recebi como destino .

É assim que me liberto do período do verão . Em sacudidelas inter­mitentes , repentinas como os saltos de tigre , a vida emerge pesada­mente a sua crista negra acima da superfície do mar. Estamos presos a esse monstro; amarrados a ele , como corpos de condenados a cavalos selvagens . É verdade que inventamos expedientes para tapar as bre­chas e esconder as fissuras . Cá está o revisor a pedir os bilhetes . Há dois homens; três mulheres ; um gato dentro de um cesto; e eu , com o cotovelo apoiado no peitoril da janela - é isto o que há, aqui e agora. Seguimos em frente , partimos com o rumor das searas de trigo doura­do. Nos campos ficam mulheres espantadas porque as deixamos para trás com as suas enxadas . Agora o comboio avança pesadamente , respira ofegante, porque vamos a subir, a subir. Finalmente , chegamos ao ponto mais elevado do paul . Aqui só vivem alguns carneiros selva­gens e póneis de espessa crina. Mas nenhum conforto nos falta; temos mesas para poisar os jornais, e anéis para segurar os nossos copos. Atingimos o cume, transportando todos esses objetos . O silêncio vai voltar a fechar-se sobre nós . Se olhar para trás , para além desta cabeça calva, posso ver o silêncio fechar-se à nossa passagem e sombras de nuvens perseguindo-se sobre os pântanos vazios. O silêncio fecha-se à nossa passagem. Isto , digo , é o momento presente . Ê o primeiro dia das férias grandes . E tudo isto faz parte do monstro que se ergue das águas , do monstro a que estamos presos .

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- Agora estamos a caminho, disse Louis . Por instantes estou sus­penso no vazio , livre de amarras , não estamos em parte nenhuma. Atravessamos a Inglaterra de comboio . A Inglaterra desliza pela janela, numa transformação contínua, colinas e depois bosques , rios e salguei­ros , depois cidades . E não avisto terra firme para onde me dirija. Ber­nard e Neville , Percival, Archie, Larpent e Baker vão para Oxford ou Cambridge , para Edimburgo, Roma, Paris , Berlim, ou para qualquer universidade americana. Eu, sou alguém que caminha vagamente, no vago desígnio de ganhar algum dinheiro . É por isso que uma sombra pungente e uma significação atroz descem sobre estas sedas doiradas , estes campos de papoulas , este trigo movente que nunca ultrapassa os campos mas os preenche por completo numa ondulação fremente .

Este é o primeiro dia, de uma nova vida, outro raio desta roda que sobe . Mas o meu corpo atravessa-o errante como a sombra de uma ave . Se não forçasse o meu cérebro a tudo delimitar por detrás da minha fronte , tudo seria transitório como uma sombra no campo, em breve desvanecida, em breve obscurecida, desaparecendo ao encontrar a flo­resta; forço-me a fixar este instante , ainda que apenas no verso de um poema que não escreverei; obrigo-me a assinalar esta polegada na longa história que começou no Egito, na era dos faraós , no tempo em que as mulheres carregavam cântaros vermelhos até ao Nilo . Tenho a impressão , neste instante , de já ter vivido milhares de anos . Mas se fecho os olhos , se não consigo relacionar o passado e o presente , se não tomo consciência de estar sentado numa carruagem de terceira classe, cheia de rapazes que vão de férias para casa, roubarei à história huma­na a visão de um momento . Os olhos que neste instante observariam através de mim fechar-se-iam se, por distração ou cobardia, adorme­cesse , me afundasse no passado, nas trevas ; ou se me tomasse conci­liador, como Bernard a contar as suas histórias; ou convencido como Percival , Archie , John, Walter, Lathom, Larpent, Roper,

,Smith - têm

sempre os mesmos nomes , esses jovens convencidos . Todos se vanglo­riam, todos falam, exceto Neville , que , de vez em quando, deita uma olhadela a um romance francês , pois Neville deslizará sempre por salas com sofás e lareiras , com muitos livros e um amigo, enquanto eu fica­rei a lutar atrás de um guichê , sentado à sua mesa de escritório . Isso há de tomar-me amargo e maledicente a seu respeito . Invejá-los-ei por passarem a vida a caminhar ao longo das estradas antigas , à sombra dos

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velhos teixos , enquanto as minhas relações serão com a gente suburba­na, com contínuos , e andarei ao acaso pelas ruas da cidade .

Mas agora saí do meu corpo e atravesso campos sem abrigo (há um rio; um homem a pescar; uma torre de igreja, a rua da aldeia com a sua estalagem de janelas góticas) e tudo é vago e imerso em sonho . Estes duros pensamentos , esta inveja, esta amargura não devem ter lugar em mim. Sou o fantasma da Louis , um viajante efémero , cujo espírito é governado pelos sonhos e os rumores de um jardim onde as pétalas das flores flutuam em profundezas insondáveis e pássaros cantam a aurora. Mergulho , banho-me nas águas claras da infância, fazendo estremecer o seu ténue véu . Mas a besta acorrentada conti­nua a bater com a pata na praia.

- Louis e Neville , disse Bernard, estão sentados em silêncio . Ab­sortos . Ambos sentem a presença de outras pessoas como um muro . Mas eu sinto-me à vontade na companhia de outras pessoas . As pala­vras começam logo a fazer anéis de fumo e as frases a fluir em espirais dos meus lábios . Parece que se chegou um fósforo a uma matéria in­candescente; qualquer coisa começa a arder. Entra agora no comparti­mento um homem idoso, aparentemente próspero , um viajante . Dese­jo imediatamente aproximar-me dele; desagrada-me instintivamente sentir a sua presença, fria, inassimilada entre nós . Não acredito na se­paração . Não somos singulares . Quero também aumentar a minha valiosa coleção de observações sobre a verdadeira natureza da vida humana. O meu livro terá por certo muitos volumes , abarcando todas as variedades conhecidas de homens e mulheres . Encho o espírito com tudo o que está contido numa sala ou numa carruagem de comboio , tal como se enche uma caneta num tinteiro . A minha sede é constante e insaciável . Vejo agora, por impercetíveis sinais, que não posso ainda interpretar (serei capaz de o fazer mais tarde) que a sua desconfiança está prestes a diluir-se . Surgem fendas na sua solidão . Fez uma obser­vação sobre uma casa de campo . Um anel de fumo (falo de colheitas) desprende-se dos meus lábios e envolve-o, entrando em contacto com ele . A voz humana tem uma virtude que desarma (sozinhos somos in­completos , fomos feitos para estar unidos) . Enquanto trocamos raros comentários amáveis , sobre casas de campo, vou compondo uma imagem dele , colocando-o no mundo das realidades . É um marido indulgente mas infiel . Talvez um pequeno construtor empregando al-

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guns operários . É importante na sociedade local , já é conselheiro e talvez, com o tempo, chegue a presidente da câmara. Usa uma grande joia de coral , semelhante a um par de dentes arrancados com a raiz, presa à corrente do relógio . Walter J. Trumble é o género de nome que lhe cai bem. Esteve na América, com a mulher, em viagem de negó­cios e um quarto de casal num hotel de segunda custou-lhe o ordenado de um mês . Tem um dente da frente obturado a ouro .

A verdade é que não tenho aptidão para refletir. Em todas as coisas procuro o que é concreto . Só assim consigo agarrar o mundo. Contudo, uma frase bem feita parece-me ter uma existência independente . Ainda assim penso que as melhores frases são talvez construídas na solidão . Requerem não sei que arrefecimento final que sou incapaz de lhes dar, pois me perco sempre em mornas palavras solúveis . Apesar disso, o meu método tem certas vantagens sobre o deles . Neville sente repulsa pela grosseria de Trumble . Louis , com uma olhadela, avança com grandes passos de garça altiva e apanha as palavras como se usasse uma pinça de açúcar. É verdade que os seus olhos - selvagens , riso­nhos , embora desesperados - exprimem algo de que ainda não ava­liamos a profundidade . Há em Neville e em Louis uma precisão, uma exatidão que admiro mas nunca hei de ter. Apercebo-me agora de que preciso agir. Aproximamo-nos de um entroncamento ferroviário onde terei de mudar. Tenho de tomar o comboio para Edimburgo . Não me é possível tocar com a mão esse facto que se aloja nos meus pensamen­tos como um botão , uma pequena moeda. Aqui está o rapaz bem­-disposto que pica bilhetes . Eu tinha um, tinha um de certeza. Mas não interessa. Ou o encontro , ou não o encontro . Examino a carteira. Veri­fico todos os bolsos . É o género de incidentes que constantemente me interrompem no perpétuo esforço para encontrar a frase perfeita, adap­tada ao instante que passa.

- Bernard saiu sem encontrar o bilhete , disse Neville . Escapou-se construindo uma frase , acenando com a mão. Fala tão facilmente com um criador de cavalos ou a um canalizador como connosco . O cana­lizador aceitou-o com devoção . Se tivesse um filho assim, pensava ele , havia de arranjar maneira de o mandar para Oxford. Mas que pode Bernard sentir pelo canalizador? Não desejaria ele apenas con­tinuar a história que não para de contar a si próprio? Começou-a ainda criança quando fazia bolinhas de pão . Uma bolinha era um

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homem, outra bolinha uma mulher. Somos todos bolinhas . Somos todos frases da história de Bernard, coisas que ele põe no seu livro de apontamentos na letra A ou B . Revela nas suas histórias uma extraor­dinária compreensão , exceto quando se trata dos nossos sentimentos mais profundos . Porque ele não precisa de nós . Nunca depende da nossa clemência. Lá está ele agitando os braços na plataforma. O comboio partiu sem ele . Perdeu a ligação. Perdeu o bilhete . Mas pou­co importa. Irá ao bar e falará com a empregada sobre a natureza do destino humano. Partimos e ele já nos esqueceu; saímos do seu cam­

po de visão. Prosseguimos no nosso caminho cheio de sensações in­decisas , meio amargas , meio doces , pois de certo modo ele merece a nossa compaixão , ao enfrentar o mundo com frases inacabadas e perder o bilhete . Merece também ser amado .

De novo pretendo voltar a ler. Ergo o livro quase até esconder os olhos . Mas não posso ler na presença de criadores de cavalos e cana­lizadores . Não tenho o poder de me insinuar entre as pessoas . Não admiro este homem, nem ele me admira a mim. Pelo menos quero ser honesto . Quero denunciar este mundo tolo , frívolo e enfatuado . Estas poltronas de crina, estas fotografias coloridas de paredões e diques . Poderia gritar diante desta presunção, da mediocridade de um mundo que produz criadores de cavalos com correntes de relógio ornamenta­das com pedaços de coral . Tenho em mim a força que os há de destruir por completo . O meu riso obrigá-los-á a contorcerem-se nas poltronas . Há de escorraçá-la diante de mim aos gritos . Não: eles são imortais . Triunfam sempre . Hão de impedir-me sempre de ler Catulo numa car­ruagem de terceira classe . Em outubro , vão obrigar-me a procurar re­fúgio numa universidade onde acabarei por ser deão , ir com outros professores visitar a Grécia e pronunciar conferências sobre as ruínas do Pártenon. Prefiro criar cavalos e viver numa dessas casas do campo de tijolos vermelhos a deslizar como um verme nos crânios de Sófo­cles e Eurípides , em companhia de uma mulher culta, uma dessas universitárias . Será, contudo, esse o meu destino. Vou sofrer. Aos de­zoito anos possuo já um tal poder de desdém que até os criadores de cavalos me odeiam. É esse o meu triunfo. Não procuro os compromis­sos . Não sou tímido. Não tenho sotaque . Não me inquieto com o que as pessoas possam pensar do «meu pai que é banqueiro em Brisbane» , como acontece a Louis .

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Aproximamo-nos do centro do mundo . Lá estão os gasómetros de formas familiares e os jardins públicos atravessados por alamedas asfaltadas .

Amantes deitados na relva ressequida beijam-se despudoradamen­te . Neste instante Percival já quase chegou à Escócia . O seu comboio atravessa os pântanos vermelhos . Vislumbra a linha de colinas fron­teiriças e os muros das fortificações romanas . Lê um romance poli­cial , mas compreende tudo .

O comboio abranda a marcha à medida que nos aproximamos de Londres , do centro . Também o meu coração hesita de medo e exulta­ção . Estou prestes a encontrar . . . O quê? Que extraordinária aventura me pode aguardar entre os camiões dos correios, os carregadores e o formigueiro de gente que procura um táxi? Sinto-me insignificante e perdido , mas exulto . Paramos com uma sacudidela suave . Vou deixar os outros saírem antes de mim. Vou ficar tranquilamente sentado por um instante antes de emergir no caos , no tumulto . Não quero antecipar o que me espera. Os meus ouvidos estão cheios do imenso rumor. Soa e ressoa sob esta coberta de vidro como as ondas do mar. Somos arras­tados para o cais com as nossas malas . Redemoinhos separam-nos uns dos outros . O meu sentido de mim próprio , o meu desdém, quase de­saparecem. Deixo-me arrastar, submergir, projetar para o céu . Desço para o cais agarrando firmemente tudo o que possuo: uma mala.

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O Sol ergueu-se . Raios verdes e amarelos tombaram sobre a praia

dourando os flancos de barco carcomido e arrancando reflexos azul

de aço aos cardos marinhos de folhas couraçadas . A luz qll:ase tres­

passa as frágeis ondas que correm em leque pela praia . A jovem que

ao sacudir a cabeça fizera dançar o topázio, a água-marinha, todas

as joias cor de água com cintilações de fogo, afastou os cabelos da

fronte e de olhos muito abertos traçou um caminho a direito sobre

as ondas . O seu brilho fremente escureceu; as ondas confundiram­

-se; os seus verdes abismos aprofundaram-se e escureceram, atra­

vessados talvez por cardumes de peixes errantes . Ao recuarem de­

pois de se desfazerem na areia, as ondas deixam na praia uma linha

escura de gravetas e pedaços de cortiça, ciscos de palha e pequenos

ramos, como se uma frágil chalupa tivesse naufragado e rompido o

casco e o seu marinheiro houvesse nadado para a praia e escalado

a falésia deixando a sua leve carga ser arrastada pela corrente .

No jardim, os pássaros que na madrugada cantaram ao acaso,

espasmodicamente na penumbra de uma árvore, de um silvado, can­

tavam agora em coro, em sons nítidos e estridentes, ora juntos como

se estivessem conscientes da presença dos seus companheiros, ora

solitários, como se se dirigissem ao pálido azul do céu . Voaram to­

dos ao mesmo tempo quando o gato preto se movimentou ao longo

dos arbustos e a cozinheira os assustou lançando mais cinzas para

o monte . Havia medo no seu canto e suspeita de dor e também a

alegria que tem de ser arrancada a cada instante . Depois cantaram

todos ao desafio no ar límpido da manhã, voando muito por sobre

os olmos, perseguindo-se, escapando-se, bicando-se, volteando no

espaço . Em seguida, cansados de se perseguirem, cansados de voar,

desceram graciosamente, baixaram delicadamente, pousaram silen-

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ciosos nas árvores, nos muros, com os olhos brilhantes à espreita, as

cabeças voltando-se para aqui e para acolá, atentos, despertas, in­

tensamente conscientes de qualquer coisa, de um objeto particular.

Talvez fosse uma casca de caracol erguida na relva como uma

catedral cinzenta, um edifício incendiado marcado por círculos es­

curos na sombra verde da relva . Ou talvez" vissem o esplendor das

flores formando um clarão vermelho sobre os canteiros, enquanto os

espaços abertos entre os caules formavam uma série de túneis aver­

melhados e sombrios . Ou então fitavam as pequenas folhas brilhan­

tes da macieira, dançando de modo contido, cintilando hirtas por

entre as flores salpicadas de cor-de-rosa . Ou então viam uma gota

de chuva cair sobre a sebe e aí ficar suspensa, com a imagem de uma

casa inteira contida dentro dela e olmos tão altos como torres . Ou

então contemplavam o Sol de frente e os seus olhos tornavam-se

grãos de ouro .

De olhos voltados para um e outro lado, desciam mais para baixo

entre os ramos, nas sombrias áleas desse universo onde as folhas

apodrecem e as flores caem. Depois, um deles desceu como uma

flecha, num voo certeiro e bicou o corpo mole e monstruoso de um

verme indefeso, bicou-o uma e outra vez e deixou-o a apodrecer. Lá,

em baixo, entre as raízes onde as flores sucumbem, há odores de

morte e gotas no flanco intumescido das coisas inchadas . A pele dos

frutos apodrecidos estala, deixando escapar uma substância dema­

siado espessa para escorrer. As lesmas deixam atrás de si secreções

amarelas e às vezes, aqui e ali, um corpo informe, com uma cabeça

em cada extremidade, oscila lentamente de um lado para o outro . Os

pássaros de olhos de ouro, saltando entre as folhas, observam ironi­

camente essa húmida podridão . De vez em quando mergulham sel­

vaticamente a ponta do bico na mistura pegajosa .

O Sol atingiu finalmente a altura da janela, aflorou a cortina bor­

dada a vermelho e revelou círculos e linhas . A claridade da luz

nascente instalou-se no fundo do prato e o seu brilho concentrou-se

no gume de uma faca . Cadeiras e armários surgiram em segundo

plano, mas apesar de separados uns dos outros parecem inextrinca­

velmente entrelaçados . Tornaram-se mais brancas as águas do espe­

lho na parede . No peitoril da janela a.flor real recebeu a companhia

de uma .flor fantasma . E, no entanto, o fantasma fazia parte da .flor

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As Ondas 55

verdadeira pois quando um botão abria, um outro botão semelhante

.desabrochava também na f/,or mais pálida do espelho .

O vento soprou. As ondas ressoaram na praia, como guerreiros

com turbantes, como homens de turbante brandindo azagaias enve­

nenadas sobre as cabeças e precipitando-se ao encontro de reba­

nhos de ovelhas brancas .

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- Aqui , na universidade , a complexidade das coisas é mais sufo­cante , disse Bernard . O movimento e a tensão da vida tomam-se ex­tremos e a excitação de viver faz-se cada dia mais urgente . A cada instante pesco qualquer coisa de novo no fundo desse enorme saco de surpresas . Que sou eu? Pergunto-me . Isto? Não, sou aquilo . Sobretu­do neste momento - em que deixei uma sala onde havia pessoas a conversar, as lajes de pedra ressoaram sob os seus passos solitários e contemplo a Lua que se ergue , sublime e indiferente , acima da antiga capela - toma-se evidente para mim que não sou simples mas com­plexo e múltiplo . Em público Bernard é esfuziante . Mas em privado toma-se reservado . É isso que eles não compreendem e agora, sem dúvida falam de mim, dizendo que fujo deles , que sou esquivo . Não compreendem que preciso de efetuar diversas transições , cobrir o melhor possível as entradas e saídas de vários indivíduos que alterna­damente desempenham o papel de Bernard . Sou anormalmente cons­ciente das circunstâncias . Não consigo ler num comboio sem me in­terrogar: o meu vizinho será um construtor? E ela será infeliz? Hoje percebi logo que o pobre Simes sofria amargamente por saber que a sua cara cheia de espinhas lhe retirava todas as possibilidades de causar boa impressão em Billy Jackson . Cheio de piedade , convidei­-o apressadamente para jantar comigo . Sei que vai atribuir esse con­vite a uma admiração que não sinto . Sim, é verdade que esse aspeto do meu caráter existe . Mas Bernard «reunia a uma sensibilidade de mulher (cito o meu futuro biógrafo) a sobriedade lógica de um ho­mem» . Ora as pessoas que dão a impressão de serem simples (isso é favorável , pois a simplicidade parece uma virtude) são as que se conseguem manter em equilíbrio , a igual distância das duas margens , em pleno rio (imagino instantaneamente um cardume de peixes com

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os focinhos voltados para o mesmo lado e a corrente empurrando para o outro) . Canon, Lycett, Peters , Hawkins , Larpent, Neville , to­dos eles são peixes nadando na corrente . Mas tu compreendes , tu que és o meu eu , que vens sempre que te chamo (é uma experiência atroz chamar e ninguém aparecer, qualquer coisa que provoca o vazio da meia-noite e explica a expressão dos velhos nos clubes , pois eles re­nunciaram para sempre a chamar um eu que não vem) , tu compreen­des que só superficialmente sou representado pelas minhas palavras desta noite . No mais fundo de mim, no momento em que me mostro mais discordante , experimento também um sentimento de acordo . Simpatizo de um modo efusivo: mas , semelhante a um sapo no seu buraco , acolho os acontecimentos com perfeita frieza. Muit�s poucos dos que neste momento discutem o meu caráter têm esta dupla capa­cidade de raciocinar e de sentir. Lycett, estão a ver, acredita na caça às lebres . Hawkins passou a tarde a estudar na biblioteca. Peters está enamorado de uma jovem que trabalha na biblioteca itinerante . Vocês estão todos envolvidos , comprometidos , atraídos , com todas as ener­gias implicadas , todos exceto Neville , cujo espírito é demasiado complicado para se consagrar inteiramente apenas a uma atividade . Também eu sou demasiado complexo para isso . Em mim há sempre qualquer coisa que fica a flutuar, livre de tudo .

Agora - é uma prova da minha sensibilidade a toda esta atmos­fera - no momento em que entro no meu quarto e acendo a luz e vejo uma folha de papel branco sobre a mesa e o meu roupão negli­gentemente caído nas costas da cadeira, sinto que sou um homem enérgico embora reflexivo , uma figura audaciosa e temível , que despe rapidamente a sua capa, pega na caneta e escreve num impul­so uma carta de amor à jovem por quem está apaixonado .

Sim, tudo é propício . Sinto-me disposto a isso . Posso escrever a carta tantas vezes iniciada. Acabo de entrar. Atirei para longe o cha­péu e a bengala e estou a escrever a primeira coisa que me ocorre , sem sequer me preocupar em colocar a folha de papel numa posição correta. É preciso que ela pense que esta pequena obra-prima foi es­crita sem qualquer pausa ou rasura. Vejam como as letras são infor­mes e há mesmo uma mancha de tinta ! Tudo deve ser sacrificado à rapidez , à irreflexão . Vou escrever numa pequena letra rápida e apres­sada, exagerando a perna do Y e cortando o T, assim, com um só

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traço . Como data escreverei apenas terça, dia 1 7 , e depois um ponto de interrogação . Mas devo dar-lhe a impressão que embora ele -pois não se trata de mim - escreva de um modo improvisado e pre­cipitado, exprime uma subtil sugestão de intimidade e respeito . Devo aludir a conversas que tivemos no passado a recordar uma situação de que guardei memória. Devo também parecer-lhe - isso é muito im­portante - alguém que passa de um assunto para o outro com extre­ma facilidade . Passarei do serviço fúnebre do homem que recente­mente morreu afogado (tenho uma frase já pronta sobre o assunto) para uma descrição de Mrs . Moffat e os seus ditos (tomei nota deles) e algumas reflexões aparentemente casuais mas profundas (às vezes uma crítica profunda é escrita de um modo casual) acerca de um livro que acabei de ler, algum livro fora do vulgar. Quero que ela diga, quando escovar os cabelos ou apagar a vela: «Onde foi que li isto? Ah, na carta de Bernard.» Procuro um efeito rápido, ardente , frases fluindo como a lava . . . Em quem estou a pensar? Em Byron natural­mente . Sob alguns aspetos pareço-me com Byron. Talvez um frag­mento de Byron me ajude a encontrar o tom. Vou ler uma página dele . Não; é insípido , lacunar e demasiado formal . Agora estou a apanhar o jeito e o ritmo procurado pulsa no meu cérebro (quando se escreve , nada há de mais importante que o ritmo) . Agora vou começar sem interrupções ao exato ritmo do meu impulso.

Mas tudo se desmorona em insipidez . A inspiração esgota-se . Não consegui o impulso suficiente para ultrapassar as diferentes transições. O meu verdadeiro eu afasta-se do meu eu fictício . E se me ponho a reescrever tudo ela dirá: «Bernard está a assumir poses de literato; Bernard está a pensar no seu futuro biógrafo.» O que é verdade . Não. Escreverei esta carta amanhã logo depois do pequeno-almoço .

Agora vou preencher o espírito com imagens inventadas . Vou su­por que me pediram para passar alguns dias em Restover, King's Laughton, a três milhas da estação de Langley. Chego ao crepúsculo. No pátio da casa, arruinada mas distinta, há dois ou três cães esquivos e de pernas compridas . Tapetes desbotados cobrem o vestíbulo . Um cavalheiro de porte militar caminha de um lado para o outro no terra­ço . Tudo tem um ar de pobreza distinta, de pertencer a uma farm1ia de militares . O casco de um cavalo de caça repousa sobre a escrivaninha (trata-se , sem dúvida, de um cavalo favorito) . «Sabe montar a cava-

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lo?» «Sim, senhor, adoro andar a cavalo» . «A minha filha espera-nos no salão» . O coração bate-me com força. Ela está de pé junto de uma mesinha baixa; acaba de voltar da caça; mastiga uma sanduíche com gestos viris . Causei bastante boa impressão ao coronel . Não me acha muito inteligente nem mal-educado . Além disso sei jogar bilhar. De­pois entra a criada simpática que há trinta anos serve na farru1ia. Os pratos têm desenhos de pássaros orientais de longas caudas . O retrato da mãe, vestida de musselina, está pendurado sobre a lareira. Posso esboçar este ambiente com extraordinária facilidade . Mas como mo­vimentar os personagens? Serei capaz de ouvir a sua voz , o exato tom com que , ao ficarmos sós , diz «Bernard»? E depois?

A verdade é que preciso de ser estimulado pela presença de outras pessoas . Quando fico só , debruçado sobre o fogo extinto , tenho ten­dência a ver só o lado frágil das minhas histórias . O verdadeiro ro­mancista, o ser humano perfeitamente simples , poderia continuar a imaginar indefinidamente . Não faria uma síntese como eu faço . Não experimentaria como eu a sensação devastadora das cinzas frias nu­ma lareira apagada. Tudo se toma impenetrável . Não consigo inven­tar mais nada.

Mas , recapitulando , tenho de concluir que apesar de tudo foi um bom dia . A pequena gota que todas as noites se forma no telhado da alma humana é hoje redonda e multicolor. A manhã foi magnífica. À tarde dei um passeio . Gosto de avistar campanários na extensão dos campos cinzentos . Gosto de olhar por entre os ombros das pes­soas . Constantemente me ocorreram coisas e mais coisas . Sentia-me inventivo e subtil . Depois do jantar fui brilhante . Dei forma a muitas coisas vagamente observadas acerca de amigos comuns . Efetuei com facilidade as minhas transições . Mas agora sentado diante deste fogo cinzento , face a este árido promontório de carvão negro , vou formu­lar a pergunta decisiva: de todos esses eus qual é o meu? Dependo muito do ambiente . Quando digo para mim próprio «Bernard» , quem é que faz a sua aparição? Um homem fiel , sardónico , desiludido , mas não amargurado . Um homem sem idade nem posição social . Apenas eu . É ele quem agora segura no atiçador e remexe as cinzas fazendo­-as cair como chuva através da grelha de ferro . «Meu Deus» , diz a si mesmo, observando as cinzas caindo, «que sujidade» . Depois acres­centa lugubremente , mas em jeito de consolação: «A senhora Moffat

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virá limpar tudo isto .» Imagino que repetirei muitas vezes esta frase seguindo pela estrada da vida, golpeando para um e outro lado, gol­peando as cinzas , sujando inúmeras coisas . «Ah, sim, a senhora Moffat virá limpar tudo .» E agora, para a cama.

- Num mundo que contém o momento presente , de que vale a pena distinguir? - disse Neville . Nada deveria ser nomeado, de mo­do a não ser transformado. Deixemos este banco, esta beleza, aban­donados ao puro prazer de existirem. O sol aquece . Vejo o rio . Vejo árvores manchadas e queimadas à luz do sol de outono . Barcos desli­zam ao longe , num fundo verde e vermelho . Ao longe um sino dobra, mas não dobra por nenhum morto . Há sinos que dobram pela vida. Uma folha cai de alegria . Ah, amo a vida. Vejam como o salgueiro estende para o céu os seus ramos finos ! Um barco passa entre os ra­mos do salgueiro , cheio de jovens indolentes , vigorosos e inconscien­tes . Estão a ouvir um gramofone. Comem fruta que retiram de sacos de papel e lançam ao rio as cascas de banana que mergulham como enguias . É belo tudo o que eles fazem. Habitam num meio ornamen­tado de bibelôs e porcelanas baratas . Os seus quartos estão repletos de gravuras e remos, mas eles convertem tudo em beleza. Um barco passa sob a ponte . Outro aproxjma-se . Outro ainda. Aquele é Percival , recostado nas almofadas , monolítico no seu repouso de gigante . Não, não é ele , é apenas um dos seus satélites imitando o seu monolítico repouso de gigante . Percival é o único que não repara nestes imitado­res e quando os surpreende dá-lhes uma bofetada bem-humorada, com a sua pata. Também eles passaram sob a ponte , através dos «ra­mos das árvores que caem como a água das fontes» , sob os seus frá­geis ramos , amarelos e cor de ameixa. A brisa sopra, a cortina estre­mece e através das folhagens avisto os edifícios solenes e apesar disso eternamente alegres , de aparência porosa e desprovidos de peso , que desde tempos imemoriais se erguem neste velho recanto de terra. Agora um ritmo familiar começa a palpitar dentro de mim. Palavras que estavam adormecidas despertam, agitam as cristas , erguem-se e caem sem parar. Sou um poeta. Certamente sou um grande poeta. Barcos e jovens que passam e árvores ao longe e «ramos das árvores que caem como a água das fontes» . Vejo tudo, sinto tudo . Estou ins­pirado . Os meus olhos enchem-se de lágrimas . Mas mesmo ao sentir estas sensações deixo crescer o meu arrebatamento , que espuma,

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tomando-se artificial e falso . Palavras , palavras e mais palavras , co­mo elas galopam e agitam as suas longas caudas , as suas crinas . . . Mas não sei o que me impede de me abandonar aos seus dorsos , de galopar com elas por entre as mulheres em fuga e os sacos derruba­dos . Existe um defeito em mim, uma hesitação fatal que ao ser igno­rada tudo transforma em espuma e falsidade . Mas como acreditar que não sou um grande poeta? Não foi poesia o que escrevi a noite passa­da? Escrevo com excessiva rapidez? Com demasiada facilidade? Não sei . Às vezes nem sequer me reconheço e não sou capaz de nomear, medir e juntar os fragmentos de que sou feito .

Alguma coisa sai agora de mim e vai ao encontro de um vulto que se aproxima assegurando-me que o conheço mesmo antes de ver quem é . Que curiosa mudança sentimos quando se nos junta um amigo mesmo à distância. E como se tomam úteis quando nos fazem voltar à realidade . E, no entanto , é doloroso esse regresso . Sentimo­-nos mitigados , adulterados , misturados , parte de outro ser. À medi­da que essa pessoa se aproxima, deixo de ser eu para me tornar Ne­ville misturado a alguém - quem? Bernard? Sim, é Bernard, e é a Bernard que perguntarei . «Quem sou?»

- Que estranho é ver o salgueiro quando se está acompanhado, disse Bernard. Eu era Byron e a árvore era a árvore de Byron, lacri­mosa, pendente , cheia de lamentos . Agora que a contemplamos jun­tos tem um ar bem penteado, cada ramo distingue-se de todos os outros e, compelido pela tua clareza, vou dizer-te o que sinto .

Sinto a tua força e a tua desaprovação. Contigo tomo-me um ser humano impulsivo e pouco asseado, com o grande lenço estampado sempre manchado com gordura de bolos . Sim, numa das mãos tenho a Elegia de Gray e com a outra apanho a torrada de baixo , a que ab­sorveu a manteiga derretida e ficou colada ao prato . Isto ofende-te e eu sou sensível ao teu descontentamento . Inspirado pelo inquieto de­sejo de recuperar a tua estima, começo a contar-te como arranquei Percival ao leito e descrevo os seus chinelos , a sua mesa, a vela der­retida e os seus rudes lamentos quando lhe tirei os cobertores de cima e ele se enrolou como um casulo . Descrevo tudo isso tão bem que tu , apesar de estares absorvido por uma secreta tristeza (pois um vulto embuçado preside ao nosso encontro) cedes e ris , achando-me delicio­so . O meu encanto e o fluir espontâneo e imprevisto das minhas pala-

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vras também a mim me deliciam. Fico espantado quando desvendo as coisas através das palavras , e verifico que observei infinitamente mais do que aquilo que consigo dizer. À medida que falo , vão surgindo dentro de mim imagens e mais imagens . E sinto que é desta abundân­cia que preciso . Porque não serei então capaz de terminar a carta que estou a escrever? O meu quarto está sempre cheio de cartas inacaba­das . Quando estou junto de ti , percebo sempre que sou um dos ho­mens de mais talento que conheço. Estou cheio do delicioso sentimen­to da minha juventude , de poder, de tudo o que há de vir. Desajeitado mas cheio de fervor, vejo-me a zumbir entre as flores , penetrando nos seus cálices vermelhos , fazendo ressoar nas cavidades azuis o ruído prodigioso do meu voo . Fazes-me acreditar na possibilidade de sabo­rear intensamente a juventude, Londres e a liberdade . Mas já chega. Não me estás a ouvir. A tua mão desliza ao longo do joelho e num gesto familiar e impossível de descrever parece exprimir um movi­mento de protesto . É através de sinais como estes que diagnosticamos as doenças dos nossos amigos . Pareces dizer: «Não te afastes de mim com a tua fluência e plenitude . Para. Pergunta-me de que sofro.» Dei­xa-me então criar-te (acabas de fazer o mesmo por mim) . Estás deita­do na margem quente do rio , neste belo dia de outono que se desva­nece mas ainda se mantém luminoso . Olhas os barcos que deslizam uns após outros através dos ramos bem penteados do salgueiro . E sonhas ser poeta; e sonhas ser amante . Mas a esplêndida claridade da tua inteligência e a tua inquebrantável honestidade intelectual levam­-te a parar a meio do caminho (devo-te estas palavras eloquentes de que me acabo de servir; as tuas qualidades fazem com que me sinta sempre um tanto inseguro e levam-me a ver os remendos e os rasgões do meu equipamento intelectual) . Recusas a ilusão . Não te deixas envolver nem sequer por neblinas cor-de-rosa ou de ouro .

Terei razão? Interpretei corretamente o pequeno gesto da tua mão esquerda? Se assim tiver sido, entrega-me os teus poemas , essas pá­ginas escritas na noite passada com um tal fervor e inspiração que agora te sentes um pouco envergonhado. Sim, porque tu desconfias da inspiração , seja a tua ou a minha. Regressemos juntos pelo cami­nho coberto de olmos que atravessa a ponte . Vamos até ao meu quar­to onde , protegidos pelas paredes e com as cortinas de sarja vermelha corridas , poderemos afastar as vozes que nos distraem, os aromas e o

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sabor das tílias , e as outras vidas , as atrevidas caixeiras de andar des­denhoso , as velhas de passo incerto que se arrastam carregadas de embrulhos , as furtivas visões de alguma forma vaga que se desvanece - talvez Jinny, talvez Susan ou Rhoda, desaparecendo numa alame­da. Mais uma vez uma leve contração me permitiu adivinhar o que sentes e fui-me embora, parti zumbindo como um enxame de abelhas

para sempre errante , para sempre incapaz de , como tu , me fixar num único objeto . Mas hei de voltar.

- Diante de edifícios como estes , disse Neville , não posso supor­tar a presença das empregadas das lojas . Os seus risinhos , os seus mexericos irritam-me, perturbam a minha serenidade e obrigam-me

a lembrar, em momentos de pura exaltação , a degradada condição humana.

Mas eis-nos de novo no nosso território, depois de uma breve pas­sagem entre ciclistas , o odor das tílias e os vultos evanescentes na confusão das ruas . Aqui somos senhores da tranquilidade e da ordem; herdeiros de uma nobre tradição . As luzes começam a projetar os seus raios amarelos pela praça. A neblina que sobe do rio enche estes luga­res e prende-se suavemente às rugosidades das pedras antigas . As alamedas dos campos estão recobertas por uma espessa camada de folhas mortas e os carneiros pastam nos campos húmidos . Mas aqui , no nosso quarto , estamos bem abrigados . Conversamos na intimidade , enquanto o movimento das chamas faz brilhar a maçaneta da porta.

Tens estado a ler Byron . E sublinhaste as passagens que exaltam sentimentos semelhantes aos teus . Encontro traços a lápis em todas as frases que parecem exprimir uma natureza irónica mas apaixonada e uma impetuosidade semelhante à da mariposa que não se cansa de bater contra o vidro duro. Ao sublinhar esta página, pensaste - «tam­bém eu tiro assim a minha capa, também eu faço estalar os dedos no rosto do destino» . E, no entanto , nunca Byron preparou assim o chá, enchendo de tal modo o bule que quando se coloca a tampa o chá transborda. Há uma poça castanha sobre a mesa que alastra entre livros e papéis . Agora estás a secá-la desajeitadamente com o lenço . Depois metes de novo o lenço no bolso , num gesto que nada tem de byronia­no, que é teu . Tão essencialmente teu , que se se pensar em ti daqui a vinte anos , quando formos ambos célebres , gotosos e insuportáveis , será desta cena que me lembrarei . E se , entretanto , tiveres morrido , a

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sua invocação far-me-á chorar. Há algum tempo eras discípulo de Tolstoi; agora és discípulo de Byron . Talvez em breve o sejas de Me­redith . Depois , nas férias da Páscoa, vais visitar Paris e regressarás usando uma gravata preta transformado em discípulo de um odioso francês de que nunca ninguém ouviu falar. Então abandono-te .

Sou apenas uma pessoa - eu próprio : Não personifico Catulo , que adoro . Sou o mais estudioso dos estudantes , sempre carregado com um dicionário e um caderno em que anoto os modos mais curio­sos de empregar o particípio passado . Mas não se pode passar a vida a raspar com um canivete as velhas inscrições gravadas na pedra. Estarei condenado a fazer eternamente o gesto de puxar a cortina de sarja vermelha e a ver sempre o meu livro como um bloco de már­more pálido sob a luz? Seria um programa de vida admirável , consa­grar-me inteiramente à perfeição , seguir as curvas das frases onde quer que elas nos queiram levar, no deserto , ao longo das colinas arenosas , desdenhando as miragens e as seduções . Ficar para sempre pobre e desleixado . Ser ridículo em Piccadilly.

Sinto-me demasiado nervoso para poder terminar a minha frase . Falo depressa, andando de um lado para o outro para esconder a minha agitação . Fico exasperado com os teus lenços cheios de gor­dura. Tenho a certeza que vais sujar o teu exemplar de Don Juan .

Mas não me estás a ouvir. Constróis frases sobre Byron . E enquanto gesticulas , com a tua capa, a tua bengala, esforço-me por te revelar um segredo que ainda não confiei a ninguém. Peço-te (no momento em que estou de costas voltadas para ti) que tomes a minha vida nas tuas mãos e me digas se estou para sempre condenado a ser repelido por aqueles a quem amo .

Estou de pé , de costas voltadas para ti , inquieto . Não, agora as mi­nhas mãos estão absolutamente calmas . Com um gesto preciso, afasto os livros de uma prateleira e coloco aí o Don Juan . Pronto . Preferia ser amado, preferia ser famoso, a perseguir a perfeição nas areias do de­serto . Estarei condenado a causar repugnância? Serei um poeta? Es­tende os braços . O desejo que carrego atrás dos meus lábios , frio como o chumbo, pesado como uma bala, aquele que aponto às empregadas das lojas , às mulheres , às pretensões , à vulgaridade da vida (porque a amo apesar de tudo) , tudo isso sai disparado contra ti , no momento em que te lanço o manuscrito do meu poema . . . Segura-o !

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- Saiu do quarto disparado como uma seta, disse Bernard . E dei­xou-me o seu poema. Ah, tema amizade , também eu secarei flores entre as páginas de sonetos de Shakespeare . Ah, amizade , como são penetrantes e contínuos os teus dardos . Olhou-me, voltou-se para me olhar. E entregou-me o poema. Todas as neblinas se desvaneceram no telhado da minha alma. Guardarei esta confidência até ao dia da minha morte . Como uma grande onda de pesadas águas , a sua devas­tadora presença caiu sobre mim descobrindo os mais pequenos sei­xos na praia da minha alma. Foi humilhante . Sentia-me completa­mente esmagado . Todas as aparências humanas me foram arrancadas . «Não és Byron, és tu próprio.» É tão estranho ser-se reduzido por alguém a uma única pessoa !

Como é estranho ver o fio que nós tecemos estender o seu ténue filamento através dos espaços brumosos do mundo exterior. Ele partiu e eu fico aqui parado segurando o seu poema. Entre nós este fio . Mas como é agradável e tranquilizador não mais sentir o peso dessa presen­ça alheia, saber que os seus olhos perscrutadores se afastaram, ou fo­ram cobertos por um véu ! Como é bom fechar as persianas , não deixar entrar mais ninguém, e ver sair dos sombrios recantos em que se ha­viam refugiado os desprezíveis locatários , esses personagens familia­res , que , com a sua energia superior, Neville obrigou a fugir. Os espí­ritos maliciosos e atentos que me observam até durante as crises mais patéticas regressam a casa em multidão . Graças a eles sou Bernard, mas também Byron, sou isto , aquilo e outra coisa. Por ridículas que possam parecer as suas reflexões enriquecem-me e obscurecem o ar toldando a simplicidade pura deste momento de emoção . Pois sou mais complicado do que Neville imagina. Não somos simples , como os nossos amigos gostariam que fôssemos para irmos ao encontro da necessidade que têm de nós . E, no entanto, o amor é simples .

Ei-los de regresso , os meus hóspedes , os meus familiares . Já está reparada a brecha aberta nas minhas defesas pelo admirável golpe de espada de Neville . Volto a ser eu próprio e rejubilo trazendo à cena tudo aquilo que Neville ignora de mim. Olhando através das janelas e afastando as cortinas , digo para mim mesmo: «Aquilo que estou a ver não lhe daria prazer, mas a mim enche-me de alegria» (servimo­-nos dos nossos amigos para nos avaliarmos a nós próprios) . A mi­nha vista abrange aquilo que Neville jamais alcançará. Na estrada

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gritam canções de caça. Celebram alguma corrida de cães . Os rapa­zinhos de barretes na cabeça que se voltavam todos ao mesmo tempo quando a carruagem dobrava a esquina dão palmadas nas costas e gabam-se das suas proezas . Mas Neville , evitando cuidadosamente qualquer contacto , furtivo como um conspirador, regressa apressada­mente ao seu quarto . Vejo-o afundar-se na poltrona baixa e contem­plar o fogo que por um momento assume a aparência da solidez ar­quitetural . «Se a vida, pensa ele , pudesse manter esta ordem, esta permanência» - pois acima de tudo ele deseja a ordem e detesta o meu desmazelo byroniano . Por isso corre a cortina e fecha a porta à chave . Os seus olhos enchem-se de desejo e lágrimas (porque ele ama; a figura sinistra do amor presidiu ao nosso encontro) . Agarra o atiçador e de um só golpe destrói a momentânea solidez do edifício de carvão incandescente . Tudo se modifica. Tudo passa, a juventude e o amor. O barco que flutuava sob a abóbada de salgueiros passa agora debaixo da ponte . Percival , Tony, Archie ou outro qualquer partirão para a Índia . Não nos voltaremos a ver. E Neville estende a mão para o caderno - um belo volume encadernado com papel mosqueado - e febrilmente escreve longos versos com o estilo do poeta que de momento mais admira.

Eu prefiro vaguear, debruçar-me à janela, escutar. Volto a ouvir o alegre coro dos rapazes . Agora estão a partir louça, uma tradicional manifestação de alegria. O coro é como as águas de uma corrente es­calando as rochas , tomando de assalto as velhas árvores e precipitan­do-se no fundo dos abismos com um abandono magnífico . Gingam, galopam, atrás dos cães e das bolas de futebol , curvam-se agarrados aos remos como sacos de farinha. As divisões individuais desapare­cem; agem como um só homem. O tempestuoso vento de outono dispersa o clamor em rajadas alternadas de som e de silêncio . Agora estão de novo a partir louça como está convencionado . Uma velha mulher de andar inseguro regressa a casa, carregada com uma mala, trotando ao longo das janelas iluminadas . Tem receio que se lancem sobre ela e a empurrem para a valeta. Para, contudo, como se quisesse aquecer as mãos , que o reumatismo tomou nodosas , na lareira que se espalha numa chuva de fagulhas e pedaços de papel que esvoaçam. A velha detém-se diante da janela iluminada. É um contraste . Eu vejo isto e Neville não vê . Sinto isto e Neville não sente . Por isso ele alcan-

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çará a perfeição e eu falharei , não deixarei atrás de mim mais do que frases imperfeitas , cobertas de areia.

Agora penso em Louis . Que olhar malévolo e inquisidor Louis não lançaria sobre este fim de tarde de outono, sobre esta louça quebrada e sobre estas canções de caça gritadas em coro , sobre Neville , Byron e toda a vida que aqui levamos? Os seus lábios finos estão ligeira­mente apertados , as faces pálidas , e sentado num escritório lê algum obscuro documento comercial . O pai «banqueiro em Brisbane» , de que falava a todo o instante por ter vergonha dele , faliu e Louis , o melhor aluno do colégio , trabalha agora num escritório . Muitas ve­zes na minha procura de contrastes pareceu-me sentir o seu olhar pousado em nós , o seu olhar risonho , o seu olhar feroz , enquanto sentado no seu escritório acrescenta um algarismo insignificante ao grande total que calcula sem cessar. E um dia, pegando numa pena fina e mergulhando-a em tinta vermelha, completará a soma. O nos­so total será conhecido . Mas nem isso será suficiente .

Bang ! Atiraram uma cadeira contra a parede . Que vão para o diabo que os carregue. De resto o meu caso também não é claro . Não estou sempre a entregar-me a emoções duvidosas? Sim, quando me debruço à janela e deixo cair o meu cigarro de modo que rodopie ligeiramente até ao chão, sinto os olhos de Louis que vigiam até a queda do meu cigarro . E Louis diz: «Tudo isto tem um significado . Mas qual?»

- Há sempre gente a passar, disse Louis . Passam sem interrupção diante da montra do restaurante . Automóveis , furgões e autocarros e de novo autocarros , furgões e automóveis. Passam diante da montra. Ao longe avisto casas e lojas . Avisto também os campanários cinzentos de uma igreja da cidade. Em primeiro plano estão as prateleiras de vidro com pratos de doces e sanduíches de presunto . Tudo está um tanto toldado pelo vapor que sai de um bule de chá. Um odor substancial de carne de boi e carneiro , de salsichas e guisado, pende como uma rede húmida a meio do restaurante . Apoio o meu livro contra um frasco de molho Worcester e procuro parecer-me com os outros clientes .

Mas não consigo (a procissão desordenada continua a passar dian­te da montra) . Não consigo ler, nem encomendar com convicção o prato de carne. Repito . «Sou um inglês comum, um empregado de escritório comum» , mas sou obrigado a olhar os meus vizinhos do lado para ter a certeza de que faço o que eles fazem. Rostos flácidos ,

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de peles enrugadas , sempre agitados pela multiplicidade das sensa­ções , ágeis como macacos a pegar nas coisas , submissos a este mo­mento particular, discutem com gestos apropriados a venda de um piano . O piano estorva a entrada, de modo que o homem aceitaria uma nota de dez libras . As pessoas continuam a passar, continuam a passar diante do campanário da igreja e dos pratos com sanduíches de presunto . A sua desordem agita e altera constantemente o curso da minha consciência . Não consigo sequer concentrar-me no jantar. «Eu aceitaria uma nota de dez . O armário do piano é bonito mas atravan­ca a entrada.» Mergulham e emergem como aves aquáticas de asas brilhantes . Todo o excesso para lá desta norma de conduta é futilida­de . Tenho diante de mim a média, a mediocridade . Entretanto , os chapéus inclinam-se e erguem-se e a porta abre e fecha num movi­mento perpétuo . Sinto-me envolvido numa corrente desordenada, aniquilado , desesperado . Se a vida é isto , não vale a pena ser vivida. Mas também sinto o ritmo do restaurante . É como o som de uma valsa que rodopia, rodopia sem cessar. Baloiçando as travessas , as criadas entram e saem e giram sobre si próprias apresentando os pratos de verduras , doce de damasco e pudins , no momento exato ao cliente certo . Os homens comuns inserindo o ritmo da sua vida neste ritmo (aceitaria uma nota de dez libras porque ele atravanca a entra­da) , aceitando os legumes , o doce de damasco e o pudim. Onde es­tará a rutura nesta continuidade? Onde está a brecha por onde se possa avistar o desastre? O círculo fechou-se; a harmonia é perleita . É este o ritmo central , a mola que a todos nos move . Vejo como se expande , contrai e expande de novo . Mas eu não estou incluído nele . Se falo , procurando imitar o seu sotaque , eles arrebitam as orelhas , esperando que fale de novo para decidirem se sou do Canadá ou da Austrália. Eu , que acima de tudo desejo ser abraçado com amor e me sinto estrangeiro e excluído ! Eu , que desejo sentir as protetoras on­das da vida comum, olho de soslaio os horizontes distantes . Tenho consciência da perpétua agitação dos chapéus que se inclinam e er­guem. E é a mim que se dirige um espírito errante e desesperado (uma mulher desdentada hesita diante do balcão) - «Levem-nos de volta ao redil , a nós que passamos dispersos , inclinando-nos e er­guendo-nos diante das montras com pratos de sanduíches de presun­to .» Sim, vou reconduzi-los à origem.

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Vou continuar a leitura do meu livro , que está apoiado no frasco de molho Worcester. Contém volteios bem forjados , algumas linhas ad­miráveis , palavras contidas , poesia. Todos o ignoraram. Esqueceram as palavras deste poeta morto . E não poder traduzi-las de modo que o seu poder de persuasão vos subjugue e faça compreender a ausência de sentido da vida, a vulgaridade deste ritmo e vos liberte da degra­dação que , se não for compreendida, precocemente vos tomará senis ! A minha tarefa neste mundo será a de traduzir o poema de modo a que ele se tome inteligível . Eu , o companheiro de Platão e de Virgílio , vou bater na porta de carvalho . Oponho ao que se passa este bastão de metal forjado . Não me submeterei a este inútil desfile de chapéus de coco e de feltro e de adornos emplumados que as mulheres trazem na cabeça (Susan, a quem respeito , usaria um simples chapéu de palha neste dia de verão) . Nem à poeira e ao vapor que em gotas desiguais escorre pelas vidraças; às travagens e arranques dos autocarros; às hesitações diante do balcão; às palavras que se arrastam vazias de significado . Sim, hei de reconduzir-vos à origem.

As minhas raízes descem por entre veios de chumbo e prata, pela terra húmida que exala um odor pantanoso, até ao nó central formado por raízes de carvalho. Cego e surdo, com os ouvidos tapados com terra, ainda assim escuto os fragores da guerra e o canto do rouxinol; sinto o passo precipitado de inumeráveis hordas errando de um para o outro lado em procura da civilização, tal como os bandos de aves mi­gratórias procuram o verão . Vi mulheres carregando cântaros verme­lhos junto do Nilo . Acordei num jardim com um toque na nuca e o beijo ardente de Jinny. Recordo-me de tudo isso, como se recordam gritos confusos , colunas que se desmoronam e os escombros verme­lhos e negros de um incêndio noturno. A minha vida é despertar e adormecer. Umas vezes durmo, outras estou desperto . Vejo o bule brilhar; as prateleiras de vidro repletas de sanduíches de um amarelo pálido; homens com casacos sentados em tamboretes ao balcão; e por detrás deles vejo a eternidade . É como uma marca feita por um ferro em brasa na minha carne por um carrasco de rosto velado. Vejo este restaurante projetado no passado como num fundo de milhares de asas , emplumadas , esvoaçantes , ou caídas . É isso que explica os meus lábios contraídos , a minha doentia palidez e o meu aspeto desagradável e um pouco repugnante quando, com amargura e ódio, me volto para Ber-

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nard e Neville , que passeiam sob os teixos , herdaram poltronas e ao crepúsculo correm as cortinas para que a luz incida sobre os seus livros .

Respeito Susan , porque ela fica sentada a bordar. Borda à luz tran­quila de uma lâmpada, numa casa rodeada de campos de trigo e a sua recordação tranquiliza-me . Sou o mais fraco, o mais novo de todos eles . Sou uma criança olhando os fios de água que a chuva faz correr a seus pés . «Isto é um caracol , digo . Isto é uma folha.» Encantam-me os caracóis e as folhas . Sou sempre o mais novo, o mais inocente e confiante . Todos estão protegidos . Só eu estou nu . Quando a criada com uma coroa de tranças na cabeça passa diante de vocês , entrega­-lhes , sem hesitações , o doce de damasco e o pudim, como se fosse vossa irmã. Vocês são irmãos dela. Mas quando me levanto , sacudin­do as migalhas do colete , coloco uma gorjeta excessiva, um xelim sob o rebordo do prato , para que ela só o encontre quando eu tiver partido e o seu riso de troça ao pegar nele não me atinja antes de ter afastado os batentes da porta.

- Agora o vento ergue as persianas , disse Susan, e começam a dis­tinguir-se jarras , taças , as esteiras e a poltrona já esburacada. As des­botadas riscas de sempre atravessam o papel das paredes . Já terminou o coro matinal dos pássaros , e agora só um deles canta junto da janela. Vou vestir as meias , passar discretamente pelas portas dos quartos, descer à cozinha, sair para o jardim, passar pela estufa e vaguear pelos campos . É ainda muito cedo e a neblina paira sobre os pântanos . O dia está frio e rígido como uma mortalha de linho. Mas tudo se há de tor­nar mais macio e quente . A esta hora tão matinal tenho a sensação de me confundir com os campos , de ser o celeiro e as árvores. São meus os bandos de pássaros e esta jovem lebre que salta no momento em que ia pisá-la. Minha a garça que estende preguiçosamente as asas; a vaca que avança pesadamente sem deixar de mastigar; a intrépida an­dorinha descendo do céu; meu o vermelho pálido do céu e o verde em que se desvanece . O silêncio e o tocar dos sinos; o grito do homem que chama os cavalos dispersos pelos campos, tudo isso me pertence .

Não posso ser separada de tudo isto , mantida à margem. Mandaram-me para o colégio; enviaram-me para a Suíça a con­

cluir os estudos . Odeio o linóleo; odeio pinheiros e montanhas . Dei­xem-me ao menos deitar-me nesta planície , sob o pálido céu onde lentamente as nuvens deslizam. A carroça vai-se tomando cada vez

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maior à medida que avança pela estrada. O s carneiros juntam-se uns contra os outros no meio do campo . As aves reuniram-se na estrada - não precisam ainda de voar. O fumo de lenha queimada sobe no ar. A rigidez da madrugada diminui . O dia começa a movimentar-se . A cor regressa à superfície das coisas e ondula em vagas douradas pelos campos de trigo . A pesada terra estende-se a meus pés .

Mas quem sou eu , encostada a esta cancela a observar o setter que fareja em círculos? Às vezes acontece-me pensar (eu que ainda não tenho vinte anos) que não sou uma mulher, mas a luz que ilumina esta cancela e este pedaço de campo. Às vezes penso que sou as estações , o mês de janeiro, o mês de maio, novembro, a alma, a neblina e a ma­drugada. Não posso deambular de um lado para o outro, nem flutuar suavemente, nem misturar-me com as outras pessoas . Mas debruçada nesta cancela até o ferro se imprimir na carne dos meus braços , sinto o peso que cresceu no meu coração. Alguma coisa nasceu dentro de mim enquanto estive na Suíça. Alguma coisa de duro. Não se trata de suspi­ros nem de risos de alegria. Nem de engenhosas frases circulares . Nem dos estranhos olhares de compreensão de Rhoda quando fita o vazio por cima dos nossos ombros . Nem das piruetas de Jinny em que o cor­po e os membros formam uma só peça. É cruel o que tenho para ofe­recer. Não posso flutuar suavemente misturando-me com as outras pessoas . Prefiro o olhar fixo dos pastores que encontro na estrada; ou o olhar das ciganas sentadas na berma da estrada, ao lado da carroça, amamentando os filhos como eu hei de amamentar os meus . Pois em breve, no ardente meio-dia em que as abelhas zumbem à volta das malvas , o meu amor chegará. Estará parado sob o cedro. Dirá apenas uma palavra a que responderei com uma só palavra. Ofertar-lhe-ei o que cresceu dentro de mim. Terei filhos , criadas de avental , caseiros com forquilhas . Terei uma cozinha para onde vão trazer os cordeiros doentes para serem aquecidos em cestos e haverá presuntos pendura­dos e cebolas brilhando. Serei silenciosa como a minha mãe e de aven­tal azul andarei pela casa fechando à chave os armários .

Mas agora tenho fome . Vou chamar o meu setter. Estou a pensar em bolos e pão com manteiga e em pratos brancos numa sala cheia de sol . Vou regressar através dos campos . Seguir pelo caminho tra­çado na erva com passos firmes e iguais , fazendo desvios para evitar as poças e saltando agilmente os maciços de arbustos . Na minha saia

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de tecido áspero depositam-se gotículas de humidade e os meus sa­patos estão ensopados e escuros . A rigidez do dia desfez-se e surgi­ram sombras cinzentas , verdes e castanhas . Já não há pássaros pou­sados na estrada.

Regresso , como um gato ou uma raposa, com o pelo cinzento da geada e as patas endurecidas pela lama espessa. Passo entre as cou­ves , fazendo ranger as suas folhas de onde tombam gotas de água. Sento-me , atenta aos passos arrastados do meu pai , que caminha ao longo do corredor, segurando entre os dedos um pedaço de erva. Encho várias chávenas , enquanto as flores de pétalas fechadas se mantêm muito direitas sobre a mesa, entre os frascos da compota, as fatias de pão e a manteiga. Ficamos calados .

Depois vou ao armário e pego nos sacos húmidos onde estão as excelentes uvas passas ; seguro no pesado saco de farinha e pouso-o na mesa da cozinha, esfregada e limpa. Amasso , bato , estendo, mergu­lhando as mãos na tépida espessura de massa. Deixo a água fria correr em leque sobre os meus dedos. O fogo crepita, as moscas voam em círculo . As minhas uvas passas , o meu arroz, os sacos prateados e azuis estão de novo fechados no armário . A carne está no forno. O pão leveda, formando uma suave cúpula sob o pano limpo. À tarde dou um passeio até ao rio . Em todo o lado há sinais de fertilidade . Os insetos erram de planta em planta. As flores estão carregadas de pólen . Os cisnes sobem ordenadamente o rio . As nuvens agora cálidas e repletas de sol deslizam entre as colinas , depondo ouro nas águas e no pescoço dos cisnes . Com o seu passo lento , as vacas caminham nos campos mastigando sempre . Procuro sob as ervas as copas brancas dos cogu­melos . Quebro-lhes o caule, colho a orquídea vermelha que cresce ao lado, e deponho a flor junto do cogumelo manchado de terra. Depois regresso a casa para ferver água para o chá do meu pai , entre as rosas que abriram sobre a mesa as suas pétalas vermelhas .

Mas a noite chega e acendem-se as luzes . E quando vem a noite as lâmpadas acesas lançam reflexos dourados na hera que recobre os mu­ros . Sento-me junto da mesa com a minha costura. Penso em Jinny. Em Rhoda. Ouço na estrada o chiar das carruagens que regressam, lenta­mente puxadas pelos cavalos da quinta. Ouço os ruídos que vêm da estrada misturados ao vento da noite . . . Olho as folhas trémulas no jardim escuro e penso: «Estão a dançar em Londres . Jinny beija Louis .»

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- Como é estranho, disse Jinny, que neste momento as pessoas re­gressem a casa, apaguem as luzes e subam as escadas para se irem deitar. Despem a roupa e vestem camisas de dormir. Já não há luz em nenhuma destas casas . As chaminés recortam-se contra o céu e há dois ou três candeeiros que iluminam as ruas tristes como lâmpadas acesas de que ninguém precisa. As únicas pessoas que se veem nas ruas são pobres caminhando apressadamente . Não há ninguém a passar nesta rua. O dia acabou. Há polícias postados nas esquinas . Mas a noite ainda mal começou . Sinto o meu corpo resplandecer na escuridão . Os meus joelhos são de seda. Suavemente as minhas pernas de seda ro­çam uma na outra. No meu pescoço repousam as frias contas de um colar. Os meus pés sentem-se oprimidos nos sapatos . Sento-me muito direita de modo que o meu cabelo não toque as costas da cadeira. Es­tou arranjada, estou preparada. Esta é apenas a pausa de um instante, um intervalo sombrio . Os violinistas levantam os arcos .

Agora o carro detém-se suavemente . Um pedaço da rua fica ilumi­nado . A porta abre-se e fecha-se . Chegam pessoas ; não falam; apres­sam-se a entrar. Ouve-se depois o leve som das capas caindo no vestíbulo . É o prelúdio, o começo . Olho, espreito à volta , passo pó de arroz pelas faces . Tudo está preparado e em ordem. O meu cabelo tem a curva exata . Os lábios o vermelho que eu queria. Estou pronta para me juntar aos homens e mulheres que sobem a escada, aos meus pares . Passo por eles , exposta aos seus olhares , tal como eles estão expostos ao meu . Olhamo-nos um instante , mas não abrandamos o passo, nem mostramos sinais de reconhecimento . Os nossos corpos comunicam. Esta é a minha vocação . O meu mundo . Tudo está pre­parado e antecipadamente decidido . Os criados , postados em fila, recebem o meu nome , o meu recente e desconhecido nome e anun­ciam-no diante de mim. Entro .

Há cadeiras douradas nas salas vazias que nos esperam. E flores mais calmas e belas que as dos jardins, que crescem espalhando man­chas de verde e branco ao longo das paredes . E um livro encadernado pousado sobre uma pequena mesa. Foi isto que sonhei; o que previ . É este o meu lugar. Piso com naturalidade os espessos tapetes . Des­lizo com facilidade por soalhos lustrosos . Nesta atmosfera de perfu­me e esplendor abro-me como um feto desdobrando as suas grandes folhas . Paro . Avalio este mundo . Olho os grupos de pessoas desco-

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nhecidas . Entre as mulheres resplandecentes de verde , rosa ou cinza­-pérola, distinguem-se os corpos muito eretos dos homens . Vestem de negro e branco e sob os vincos da roupa percebem-se os músculos . Sinto de novo mover-se o meu reflexo no vidro , ao fundo do túnel . Os vultos negros e brancos dos homens desconhecidos contemplam o meu rosto inclinado para eles . Quando me volto para olhar um quadro , voltam-se também. As suas mãos ajeitam maquinalmente as gravatas , os coletes , os lenços . São muito jovens . Desejam causar boa impressão . Sinto mil possibilidades nascerem dentro de mim. Sou sucessivamente travessa, alegre , lânguida e melancólica. Tenho raí­zes mas flutuo . Numa ondulação dourada digo àquele homem: -«Vem.» Numa ondulação sombria digo a outro: - «Não.» Um dos jovens , apoiado numa consola, abandona a sua imobilidade . Apro­xima-se . Caminha em direção a mim. É o momento mais intenso da minha vida. Sinto o corpo fremente . Ondulo . Flutuo como uma plan­ta no rio , deslizando ora para um ora para outro lado, mas solidamen­te enraizada, de modo que ele possa aproximar-se sem receio que a corrente me arraste . «Vem, digo , vem.» O seu rosto é pálido e os cabelos negros . É melancólico e romântico . E imediatamente me tomo travessa, inconstante e caprichosa, para contrastar com o seu romantismo e a sua melancolia. Ei-lo . Já está a meu lado .

E de súbito, com um pequeno movimento , desprendo-me como uma lapa se desprende da rocha. Aceito-o , deixo-me arrastar. Abando­namo-nos ao fluxo da música, lento e hesitante . Aqui e ali a sua cor­rente é desviada pelos rochedos; ele vibra, estremece . Entramos e saímos , sempre envolvidos pela grande figura da dança. Não conse­guimos sair para fora dos seus muros hesitantes , abruptos , sinuosos , perfeitamente circulares . O seu corpo rígido e o meu corpo que ondu­la estão apertados um contra o outro no interior dessa grande figura. É o seu ritmo que nos mantém unidos . Depois desdobrando-se em pregas suaves e sinuosas faz-nos voltear dentro de si cada vez mais depressa. De súbito a música interrompe-se . O sangue continua a cor­rer apressado no meu corpo imóvel. A sala gira à minha volta. Depois tudo se imobiliza.

Vem, deixemo-nos rodopiar até às cadeiras douradas . Os nossos corpos têm sobre nós mais poder do que imaginava. Estou mais es­tonteada do que supunha. Nada no mundo me importa além deste

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homem cujo nome desconheço . Não somos belos , Lua? Não somos adoráveis sentados aqui juntos , eu com o meu vestido de cetim e ele de branco e negro? Agora os meus pares podem olhar-me, homens e mulheres . Devolvo com segurança o seu olhar. Sou um deles . Este é o meu mundo. Seguro neste fino cálice e bebo . O sabor do vinho é forte e adstringente . Ao beber, não consigo evitar um estremecimento . Aromas e flores , o calor e o brilho do sol foram destilados neste ar­dente líquido dourado . Atrás de mim, um vulto severo fecha os gran­des olhos e embala-se lentamente adormecido . É o alívio , o êxtase . O nó da minha garganta desfaz-se . As palavras aglomeram-se , empur­ram-se , atropelam-se umas às outras . Não importa que palavras são . Empurram-se e sobem aos ombros umas das outras . As palavras únicas e solitárias formam pares , revolvem-se e formam muitas ou­tras . Pouco importa o que digo . Como um pássaro que voa, uma frase atravessa o espaço vazio entre nós . Pousa nos seus lábios . Encho de novo o meu cálice . Bebo . Caem os véus que nos separam. Sou admi­tida na quente intimidade de outro ser. Estamos juntos , muito alto , em qualquer cume dos Alpes . Ele está melancolicamente postado na beira do caminho. Abaixo-me. Colho uma flor azul e erguendo-me nas pontas dos pés prendo-a no seu casaco . Aí está . Esse foi o mo­mento do êxtase . Agora já passou .

Somos invadidos pela indiferença e o desânimo . Pessoas acotove­lam-nos ao passar. Perdemos consciência dos nossos corpos unidos sob a mesa. Também me agradam os homens louros e de olhos azuis . A porta abre-se . A porta está sempre a abrir-se . Da próxima vez que ela se abrir toda a minha vida poderá mudar. Alguém en­trou . Quem é? É apenas uma criada que traz os copos . Está ali um ancião - devo parecer-lhe uma criança. Aquele é uma grande da­ma - à beira dela passaria despercebida. Eis as raparigas da minha idade , adversários com quem me posso medir. Estes são os meus pares . Sou naturalmente deste mundo . É aqui que vou correr riscos , viver as minhas aventuras . A porta abre-se . «Vem» , digo a este homem, inclinando-me para ele como uma flor dourada. «Vem» , digo , e ele aproxima-se de mim.

- Vou deslizar por detrás deles , disse Rhoda, como se tivesse visto alguém que conheço . Mas não conheço ninguém. Vou entrea­brir a cortina e olhar a Lua. Sopros de esquecimento acalmam a

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minha agitação . A porta abre-se . O tigre salta. O terror entra. Terror e mais terror, perseguindo-me . Visitarei às escondidas os tesouros escondidos na minha solidão . Do outro lado do mundo há colunas de mármore refletidas em lagos . A andorinha roça com as asas a super­fície de lagos sombrios . Mas aqui a porta abre-se e entra gente . Vêm na minha direção . Sorriem levemente para esconder a crueldade e a indiferença e apoderam-se de mim. A andorinha roça a superfície do lago e a Lua solitária percorre mares azuis . Devo estender-lhe a mão; responder. Mas que resposta dar? Retrocedo com violência, sentindo escaldar o corpo desajeitado e exposto à indiferença e ao desdém dos homens , eu que imagino colunas de mármore e lagos onde as ando­rinhas molham as asas do outro lado do mundo .

A noite adensou-se um pouco mais sobre as chaminés . Olhando sobre o ombro deste homem, vejo através da janela um gato tranqui­lo , que nenhuma luz ofusca e nenhuma seda tolhe . Um gato livre de parar, espreguiçar-se e recomeçar a andar. Odeio os pormenores da vida individual . Mas aqui sou obrigada a escutar. Um enorme peso me oprime . Não posso mover-me sem carregar o peso de séculos . Sou trespassada por um milhão de flechas . Sinto-me atingida pelo ridículo . Eu que seria capaz de expor o peito às tempestades e de me deixar alegremente cobrir pelo granizo , estou imobilizada. Fico ex­posta . O tigre salta. As línguas golpeiam-me como chicotes . Móveis e incessantes , agitam-se contra mim. Preciso de simular, evitar os seus golpes com mentiras . Que amuleto me poderá proteger de se­melhante mal? Que rosto poderei invocar que seja uma fonte de frescura neste calor abafado? Penso em nomes que li nas etiquetas das malas , mães de vestidos caindo sobre os joelhos brancos , clarei­ras por onde descem colinas escarpadas . Protejam-me , grito , escon­dam-me, porque sou a mais nova e a mais desprotegida de todas . Jinny, tal como uma gaivota cavalgando as ondas , dirige habilmente os seus olhares de um lado para outro , dizendo isto e aquilo sem precisar de mentir. Mas eu minto . Dissimulo .

Quando estou só , embalo as minhas bacias cheias de água. Reino sobre os meus navios . Mas aqui , torcendo distraidamente as bodas das cortinas de brocado , sinto-me dilacerada; não me sinto inteira. Onde vai Jinny buscar a segurança que tem ao dançar, ou Susan a certeza com que tranquilamente sentada à luz da lâmpada enfia na

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agulha a linha branca? Dizem «sim» , dizem «não» ; são capazes de bater com o punho na mesa. Porém, eu duvido, tremo, vejo a sombra do espinheiro selvagem que se agita no deserto .

Agora vou caminhar como se tivesse um objetivo e atravessarei o quarto até à varanda coberta por um toldo . Vejo o céu onde a Lua espalha o seu fulgor súbito . Vejo também as grades da praça e duas pessoas sem rosto , imóveis como estátuas contra o céu . Existe , pois , um mundo onde nada se modifica. Basta sair deste salão onde se agitam as línguas que me golpeiam como facas , que me fazem bal­buciar e me obrigam a mentir, para encontrar rostos envoltos em beleza onde não há vestígios de traços conhecidos . Os amantes estão abrigados sob o plátano . A uma esquina há um polícia, sentinela imóvel . Um homem passa. Eis um mundo onde nada muda.

' Mas eu

ainda não estou suficientemente serena para poder formar uma frase , continuo parada na ponta dos pés à beira do fogo, queimada pelo seu sopro ardente , com medo de que a porta se abra e o tigre salte . O que digo é sempre contestado . Sou interrompida cada vez que a porta se abre . Ainda não tenho vinte e um anos . Nasci para ser estilhaçada. Nasci para que se riam de mim. Estou destinada a andar à deriva, entre os homens e mulheres de faces contraídas e línguas mentirosas , como um pedaço de cortiça num mar revolto . De cada vez que a porta se abre sou projetada para longe como uma alga. Sou a espuma que deposita a sua brancura nas mais longínquas rochas . Sou tam­bém uma rapariga, aqui , de pé nesta sala.

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O Sol já não repousava sobre o manto de águas verdes. Deixou de

lançar sobre o mundo os seus raios vacilantes, através das joias lique­

feitas, e expôs o rosto olhando diretamente sobre as ondas. Estas

caíam agora num som surdo e regular, semelhante ao bater dos cascos

de cavalos correndo sobre a relva . Os seus salpicos erguiam-se como

lanças arremessadas sobre a cabeça dos cavaleiros, enquanto as on­

das de azul de aço, marchetadas de diamantes, varriam a praia . As

ondas avançavam e depois recuavam, com a energia muscular de uma

máquina que se contrai e dilata alternadamente . A luz do sol cobriu

os bosques e os campos de trigo . Os rios tornaram-se azuis ou multi­

colores e os relvados que desciam até à beira da água ficaram tão

verdes como penas suavemente eriçadas de aves . Arqueadas e sere­

nas, as colinas pareciam contidas por tiras de couro como o corpo

humano o é pelos feixes de músculos . E os bosques, altivamente eri­

çados de ramos, eram como a crina densa de um cavalo .

No jardim, onde as copas das árvores se adensam sobre canteiros

de flores, poças de água e estufas, os pássaros cantavam sob o sol

cálido, cada um por si . Um deles cantava solitariamente debaixo da

janela do quarto . Outro no ramo mais alto de um arbusto . Um ter­

ceiro no rebordo de um muro . Cantavam com estridência, com pai­

xão, com veemência, de tal modo que o seu coração parecia ir re­

bentar, e sem se preocuparem com a áspera dissonância produzida

com o canto de outro pássaro . Os seus olhos redondos brilhavam

tanto que pareciam saltar. As suas patas agarravam os ramos ou as

grades das cancelas . Cantavam expostos, desabrigados, ao ar e ao

sol, belos na sua nova plumagem nacarada ou com manchas bri­

lhantes, aqui raiadas de azul suave, ali com manchas douradas ou o

adorno de uma pena brilhante . Cantavam como se o seu canto lhes

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fosse arrancado pela pressão da manhã. Cantavam como se as ares­

tas do seu ser se tivessem tornado subitamente mais afiadas e preci­

sassem de cortar a suavidade da luz azul-esverdeada, a humidade da

terra encharcada; os fumos e vapores gordurosos da cozinha e o

quente aroma da carne de carneiro e de vaca; o perfume dos pastéis

e da fruta; as cascas húmidas e outros restos lançados no lixo da

cozinha de onde se desprendia um vapor lento . Os pássaros de bicos

pontiagudos lançavam-se rápidos e impiedosos sobre todas essas

coisas pastosas, manchadas, repletas de humidade . Lançavam-se em

súbitos voos dos lilases ou do alto das sebes . Descobriam um cara­

col e batiam-lhe com a concha contra uma pedra, furiosamente,

metodicamente, até ela se partir e alguma coisa viscosa escorregar.

Fendiam o ar e planavam lá no alto, emitindo notas breves e agudas,

pousando nos ramos mais altos das árvores e descendo o olhar so­

bre as folhas e os campanários das igrejas e a planície branca de

flores ou as ervas ondulantes e o mar que soava como o tambor

convocando o regimento de soldados com plumas e turbantes . As

vezes o canto dos pássaros fundia-se em velozes escalas, como as

águas de um arroio montanhoso que se chocam e misturam, descen­

do cada vez mais depressa ao longo dos declives, roçando as largas

folhas . Mas depois surgia uma pedra e as águas separavam-se .

Duros raios de sol entravam no quarto . Os objetos iluminados pa­

recem adquirir uma vida intensa . Um prato tornava-se um lago bran­

co . Uma faca um punhal de gelo . E de repente os copos dir-se-iam

apoiados em raios de luz. As mesas e as cadeiras emergiam à super­

fície como se tivessem estado mergulhadas debaixo de água e ficado

recobertos de uma ténue película avermelhada, laranja e violeta, co­

mo a aveludada casca de um fruto maduro. As veias que atravessavam

a transparência da porcelana, a textura da madeira, as fibras do ta­

pete, pareciam gravados em traços mais finos . Nada possuía sombra.

O verde intenso de uma jarra parecia sugar o olhar, agarrando-o a ela

como uma lapa. Depois as formas assumiram volume e contorno. Ali

estava o relevo de uma cadeira; ali o vulto de um guarda-louça . E à

medida que a luz adquiria intensidade, expulsava diante de si exérci­

tos de sombras, que se aglomeravam umas contra as outras e forra­

vam a distância com os seus tecidos de mil pregas .

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- Como é maravilhoso e estranho , disse Bernard, ver Londres sob o nevoeiro , cintilante e repleta de cúpulas . Guardada pelos gasó­metros e as chaminés das fábricas , dorme enquanto nos aproxima­mos . Segura o formigueiro contra o peito . Todos os gritos , todos os clamores , estão suavemente envoltos em silêncio . Nem Roma possui esta majestade . Vamos para Londres e já se percebe alguma inquie­tação no seu sono maternal . Os contornos do casario emergem da neblina . Surgem fábricas , catedrais , cúpulas de vidro , instituições e teatros . O comboio matinal do Norte lança-se sobre a cidade como um projétil . Abrimos as cortinas ao passar.

Os rostos vazios e expectantes de pessoas que aguardam olham-nos quando atravessamos as estações com a rapidez de um relâmpago . Os homens seguram com mais força os jornais e sentem passar a morte . Mas trovejando o comboio prossegue . Em breve explodiremos nos flancos da cidade como uma bomba no ventre de um pesado e majes­toso animal materno . A cidade murmura e trauteia. Londres espera-nos .

Estou de pé , junto à porta do comboio , com a estranha e persuasiva sensação de que por causa da minha grande felicidade (estou noivo) faço parte desta velocidade , deste projétil lançado contra a cidade . Sinto-me disposto a tudo tolerar e admitir. Meu caro senhor, porque se agita, pega na mala, e tenta enfiar nela o barrete que usou toda a noite? Nada do que fazemos pessoalmente pode ser útil . Uma espécie de esplêndida unanimidade envolve-nos a todos , aos viajantes , como a asa cinzenta de um gigantesco ganso (está uma bela manhã sem sol) . Somos projetados para lá das nossas proporções normais , sole­nes e semelhantes e só temos um desejo: chegar à estação . Não quero que o comboio se detenha com uma sacudidela brusca. Não quero que seja quebrado o laço que nos uniu durante esta noite em que estive­mos sentados um diante do outro . Não quero que o ódio , a rivalidade

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e todas as variedades do desejo retomem o s seus poderes. Foi muito agradável a comunhão que sentimos no comboio , sentados um junto do outro , tendo como único desejo chegar à estação de Euston . Mas , atenção ! Isso acabou . Realizamos o nosso desejo. O comboio para na plataforma do cais . A pressa, a confusão e a vontade de passar primei­ro no guichê e apanhar o ascensor dominam os nossos atos . Mas eu não pretendo ser o primeiro a sair, a assumir o fardo da existência individual . Eu que desde segunda-feira, o dia em que ela me aceitou , senti intensamente em todos os nervos a sensação da minha identida­de , eu que não podia ver uma escova de dentes num copo sem gritar: «a minha escova de dentes» , desejo abrir as mãos e deixar escapar os meus objetos e ficar parado na rua sem participar em nada, sem dese­jo, sem inveja, olhando os autocarros com esta insaciável curiosidade sobre o destino humano que seria a única necessidade do meu espíri­to se ele ainda tivesse necessidades . Mas a verdade é que já as não tem. Cheguei . Fui aceite . Não peço mais nada.

Satisfeito como uma criança ao deixar o seio da mãe , tenho final­mente liberdade para mergulhar profundamente na imensa, omnipre­sente vida comum (quero chamar a atenção para o facto de muitas coisas dependerem do estado das calças ; um homem inteligente fica completamente anulado por umas calças coçadas) . É curioso ver como as pessoas hesitam à porta do elevador. Vão passar por aqui ou por ali? Então a individualidade afirma-se na escolha e saem. Uma qualquer necessidade as empurre , a miserável obrigação de irem a um encontro , ou comprar um chapéu , separa todos estes seres huma­nos ainda há pouco perfeitamente unidos . Quanto a mim, não tenho objetivo nem ambições . Deixo-me arrastar pela corrente . A superfí­cie do meu espírito desliza como um pálido ribeiro refletindo os objetos que passam. Sou incapaz de recordar o passado , a forma do meu nariz , a cor dos meus olhos , a opinião que tenho de mim pró­prio . Só em momentos críticos , num cruzamento , na beira de um passeio , o meu instinto de conservação reage fazendo-me parar dian­te de um autocarro . Decididamente todos se agarram à vida. Depois , novamente a indiferença me invade . O rumor do tráfego , a passagem de rostos iguais transportam-me para um sonho alucinado em que todos os traços faciais são suprimidos . As pessoas poderiam atravessar-me . E que é este instante , este dia entre tantos outros dias ,

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a que me sinto preso? O rumor do tráfego poderia ser qualquer outro rumor, as árvores na floresta, o rugido de animais selvagens . A roda do tempo recuou um pouco , uma ou duas polegadas apenas . O nosso pequeno avanço foi suprimido . Na realidade os nossos corpos estão nus . Estamos apenas ligeiramente cobertos por tecidos abotoados com cuidado e, sob a calçada, há conchas , ossos e silêncio .

Apesar disso é verdade que o meu sonho, a tentativa de mergulhar nas águas e me deixar arrastar é interrompida, estilhaçada por sensa­ções espontâneas e irrelevantes , de curiosidade , cobiça e desejo de que sou tão irresponsável como das que experimento durante o sono (desejava ter aquela mala, etc .) . Não, o meu desejo é mergulhar, co­nhecer as mais remotas profundezas . Quero exercer por uma vez o meu direito de examinar as coisas e não de agir, de escutar os sons ancestrais dos ramos que se quebram, dos mamutes , abandonar-me ao desejo irrealizável de abarcar o universo inteiro com os braços da compreensão , desejo impossível para os homens de ação . Enquanto caminho , sinto o corpo atravessado por estranhas oscilações e vibra­ções de simpatia que - por eu estar desligado do meu ser íntimo - me convidam a abraçar estes rebanhos humanos: os que cami­nham em passos rápidos e os que olham à volta , os moços de recados e estas furtivas raparigas que olham as montras ignorando o seu trágico destino . Mas eu tenho consciência plena de como é efémera a nossa vida.

É verdade que a vida adquiriu agora para mim misteriosos prolon­gamentos . Talvez tenha filhos , possa lançar um punhado de sementes para lá desta geração , desta gente cercada pela sua própria condena­ção , arrastando-se pelas ruas numa rivalidade sem fim. As minhas filhas voltarão aqui em outros Verãos . Meus filhos hão de lavrar novos campos . Não somos gotas de chuva que o vento depressa seca. Graças a nós os jardins crescem e ouve-se o rugido das florestas . Renascemos sempre sob novas formas . É isso que explica a minha confiança, o meu sentimento de uma estabilidade essencial , que de outro modo seria monstruosamente absurda, quando enfrento a cor­rente humana nesta rua congestionada, abrindo caminho entre a multidão de corpos , e aproveitando os instantes em que não há risco para atravessar a rua. Isto não é vaidade , porque eu não tenho ambi­ções . Não me recordo dos meus dons particulares, nem das minhas

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características pessoais , nem dos sinais de nascença, nem da forma dos olhos , da boca ou do nariz . Nestes momentos eu não sou eu .

Mas ei-lo que regressa. É impossível desembaraçarmo-nos do odor persistente da nossa identidade . Desliza através de uma fenda qualquer da nossa estrutura. Não faço parte da rua, não, eu contemplo a rua. Por isso me separo , me desintegro . Por exemplo , nesta rua lateral há uma rapariga à espera de alguém. Por quem espera ela? Uma história ro­mântica. Uma pequena roldana está fixada na parede desta loja. Por­quê? Imagino uma enorme mulher redonda, vestida de púrpura, içada de uma carruagem pelo marido, que escorre suor e tem, pelo menos , sessenta anos . Uma história grotesca . . . Nasci com o dom de formar palavras e sopro as minhas bolas de sabão através do mundo . São ob­servações espontâneas como estas que me permitem diferenciar-me, construir-me; e ao escutar a voz interior que me diz para anotar tudo o que encontro nas minhas deambulações , imagino que nasci destinado a encontrar, numa noite de inverno, o sentido de todas as coisas , o fio que as liga, o resumo que as completa. Mas os solilóquios em ruelas laterais depressa se tomam insípidos . Preciso de auditório . Essa é a minha fraqueza. É ela que perturba a marcha das minhas conclusões , e impede a sua formação. Sou incapaz de me sentar nos fundos de um restaurante sórdido e pedir dia após dia a mesma bebida até ficar com­pletamente impregnado desse fluxo, dessa vida. Moldo a minha frase e precipito-me com ela para um quarto mobilado , onde dezenas de velas a farão brilhar. Necessito do olhar dos outros para desenhar todos estes ornamentos e enfeites . Para ser eu (sei isso) preciso da ilumina­ção dos outros e é por isso que nunca estou completamente seguro de mim. Os seres autênticos , como Louis e Rhoda, só existem por com­pleto na solidão. Suportam mal a iluminação vinda de fora, a multipli­cação . Voltam os seus quadros contra a parede mal acabam de os pintar. Nas palavras de Louis há uma espessa camada de gelo . As suas palavras saem condensadas , concentradas , duradouras .

Depois desta sonolência em que mergulhei , desejo brilhar em inú­meras facetas à luz do olhar dos meus amigos . Acabo de atravessar regiões sombrias da não identidade . Estranha terra. E ouvi , nesse mo­mento de apaziguamento , nesse instante de embrutecedora satisfação, ouvi o suspiro da maré que se movimenta para lá deste círculo de luz resplandecente , para lá deste pulsar de vida, furioso e insensato . Tive

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um momento de imensa paz . Talvez a felicidade seja isto . Agora retro­cedo sob o impulso de pungentes sensações , pela curiosidade, pela inveja (tenho fome) e pelo irresistível desejo de ser eu . Penso naqueles a quem poderia explicar certas coisas , em Louis , Neville , Susan, Jinny e Rhoda. Na sua presença tenho mil facetas . Eles arrancam-me às trevas . Graças a Deus encontramo-nos esta noite . Graças a Deus não terei de estar só . Jantamos juntos . Diremos adeus a Percival , que parte para a Índia. A hora do nosso encontro ainda está longe , mas já sinto a presença desses arautos que são para nós as imagens dos amigos au­sentes . Vejo Louis , esculpido em pedra como uma estátua; Neville , exato , cortado à tesoura; Susan como olhos que parecem pedaços de cristal; Jinny dançando como uma chama, febril , ardente , sobre a terra seca; e Rhoda, a ninfa da fonte sempre à beira das lágrimas . São ima­gens fantásticas , irreais, grotescas estas imagens dos amigos ausentes. Desvanecem-se ao primeiro toque . Mas apesar disso chamam-me à vida. Dispersam estes vapores . Começo a impacientar-me com a soli­dão , a sentir-me sufocado pelas suas cortinas doentias . Ah, se pudesse afastá-las com um gesto e agir ! Qualquer pessoa me serve , não sou exigente . Serve-me o varredor de ruas , o carteiro, o empregado deste restaurante francês . Mas preferia mesmo assim o amável proprietário cujo acolhimento parece a cada cliente uma honra que lhe está parti­cularmente reservada. Com as suas próprias mãos prepara a salada para um cliente privilegiado . Quem é esse senhor e de onde lhe vem o privilégio? E que diz ele àquela dama de brincos pendentes? É uma amiga ou uma cliente? Desde que me sentei nesta mesa sinto uma deliciosa confusão de incertezas , de possibilidades , de hipóteses . As imagens formam-se por geração espontânea. Sinto-me incomodado com a minha própria fecundidade . Seria capaz de descrever com a maior profusão de detalhes cada cadeira, cada mesa, casa comensal . O meu espírito zumbe por aqui e ali , pronto a cobrir todas as coisas com um véu de palavras . Falar, mesmo que apenas para pedir vinho ao empregado, é provocar uma explosão. O foguete é lançado nos ares . Os seus grãos dourados caem e fertilizam o solo da minha imaginação. O imprevisto desta explosão está na alegria de comunicar. Quem sou eu misturado com este desconhecido empregado? Neste mundo não existe estabilidade . Quem será capaz de exprimir o significado das coisas? Quem pode prever o voo que uma palavra descreve depois de

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dita? E um balão que plana sobre as árvores . E o esforço de conhecer é sempre inútil . Tudo é experiência e aventura. Constantemente forma­mos novas combinações de elementos desconhecidos . O que está para vir? Ignoro-o completamente . Mas no momento em que pouso o copo sobre a mesa a memória volta. Estou noivo . Esta noite janto com os meus amigos . Sou Bernard. Sou eu .

- Faltam exatamente cinco minutos para as oito , disse Neville . Cheguei antes da hora combinada. Sentei-me à mesa dez minutos antes para saborear cada momento de espera em que a porta se abre e eu posso dizer: «Será Percival? Não, não é Percival .» Há uma es­pécie de amargo prazer em dizer: «Não, não é Percival .» A porta já se abriu e fechou umas vinte vezes. De cada vez a espera tomou-se mais ansiosa. Este é o lugar para onde Percival se dirige . Esta a me­sa em que se sentará. Aqui , por inacreditável que pareça, estará o seu corpo . Esta mesa, estas cadeiras , este vaso de metal com as suas três flores vermelhas , estão prestes a sofrer uma transformação extraor­dinária. E a sala, com a sua porta de batentes , as mesas carregadas de frutos e carnes frias , têm já o aspeto irreal dos locais onde se es­pera que alguma coisa aconteça. As coisas vibram como se ainda não tivessem alcançado completamente o seu ser. A alva toalha resplan­dece . A hostilidade e indiferença dos outros comensais é opressiva; olhamo-nos; constatamos que não nos conhecemos e desviamos os olhares . São como chicotes estes olhares . Neles sinto toda a indife­rença e crueldade do mundo . Não poderia suportá-los se Percival não viesse a caminho . Iria embora. Mas alguém o deve estar a ver neste momento . Deve estar num táxi , passar diante das montras . A todo o momento ele parece espalhar nesta sala essa luz ardente , esse apai­xonado sentido da vida que faz perder às coisas os seus valores usuais , de tal modo que o gume de uma faca se toma uma cintilação de luz e não um objeto feito para cortar. A normalidade é abolida.

A porta abre-se , mas não é ele . É Louis que entra, hesitante . E a sua estranha mistura de segurança e timidez . Olha-se no espelho ao entrar; ajeita o cabelo . Está descontente com o seu aspeto . Diz «Sou um duque , o último descendente de uma estirpe antiga» . E amargo, desconfiado, tirânico , difícil (estou a compará-lo com Percival) . Mas é ao mesmo tempo formidável porque os seus olhos riem. Já me viu . Aqui está.

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- Lá está Susan, disse Louis . Ela ainda não nos viu . Não se vestiu de modo especial porque despreza as frivolidades londrinas . Detém-se um instante junto da porta, olhando em volta, deslumbrada pelo res­plendor de uma lâmpada. Agora avança. Mesmo no meio destas mesas e cadeiras tem os gestos furtivos mas seguros de um animal selvagem. Parece encontrar instintivamente o caminho entre as pequenas mesas , sem tocar em nenhuma delas , sem prestar atenção aos empregados , avançando até ao canto onde nós estamos . Quando nos vê, a Neville e a mim, o seu rosto assume uma expressão de inquietante segurança, como se tivesse finalmente obtido o que desejava. Ser amado por Su­san é como ser trespassado pelo agudo bico de um pássaro, ser prega­do à porta do celeiro de uma vez para sempre .

Agora chega Rhoda vinda de nenhum lado . Esgueirou-se para dentro da sala sem darmos por isso . Deve ter feito inúmeros desvios , escondendo-se atrás de um empregado , ou de uma dessas colunas que ornamentam a sala , para adiar o mais possível a emoção do en­contro , para ter mais um instante a liberdade de embalar a bacia das suas pétalas . Despertamo-la. Somos os seus carrascos . Teme-nos e despreza-nos , mas vem para junto de nós porque , apesar da nossa crueldade , há sempre um rosto , um nome , que resplandece e lhe permite repovoar os sonhos .

- A porta abre-se , a porta continua a abrir-se , disse Neville . Mas ele nunca mais vem.

- Aí está Jinny, disse Susan. Parada à porta. Tudo se imobilizou . Até o empregado se detém. Os comensais da mesa que fica junto da porta olham. Jinny parece o centro do mundo . As mesas , as portas , as janelas e os tetos ordenam-se à sua volta como os raios em tomo de uma estrela que se desenha num vidro estilhaçado . Ela situa as coisas , atribui-lhes uma ordem. Mas agora viu-nos e move-se e todos os raios ondulam, fluem e vibram sobre nós , trazendo-nos uma maré de novas sensações . Sentimo-nos transformados . Louis ajeita a gravata. Neville , que espera com uma ansiedade dolorosa, endireita nervosamente os garfos . Rhoda olha-a com surpresa, como se avistasse um incêndio no horizonte longínquo . E eu , embora para me proteger dela povoe a memória com a recordação de ervas molhadas , de campos encharca­dos , do som da chuva caindo no telhado e das rajadas de vento contra as paredes da casa no inverno, assim defendendo a minha alma, sinto

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o seu desdém envolver-me, o seu riso soltar línguas de fogo à minha volta, iluminando sem piedade o meu desastrado vestido e as minhas unhas quadradas que imediatamente escondo sob a mesa.

- Ele não vem, disse Neville . A porta abre-se e ele não vem. É

Bernard quem chega. Quando tira o sobretudo mostra um pedaço da camisa azul sob as axilas . E depois , ao contrário de nós , entra sem mesmo se dar ao trabalho de abrir completamente o batente da porta, sem perceber que entra num local cheio de estranhos . Não olha o es­pelho . Os cabelos estão em desordem mas não repara nisso . Não per­cebe que é diferente de nós e que esta mesa é o seu destino . Hesita quando se aproxima de nós . «Quem será?» pergunta-se ao reparar numa mulher envolta numa capa de noite . Conhece vagamente toda a gente; não conhece ninguém (estou a compará-lo com Percival) . Mas agora, ao avistar-nos, dirige-nos um aceno benevolente . Aproxima-se com uma tal cordialidade , com um tal amor pela humanidade (matiza­da, é certo, pela irónica constatação de como é fútil esse amor pela humanidade em geral) que , se não fosse a ausência de Percival que tudo transforma em vaga neblina, sentiria o mesmo que os outros já sentem, que celebramos uma festa e somos felizes por estar juntos . Mas sem Percival nada parece sólido . Sem ele somos apenas silhuetas , fantasmas vazios que se movem numa neblina sem fundo.

- A porta não para de bater, disse Rhoda. Continuam a entrar des­conhecidos , pessoas que não voltaremos a ver, gente que nos roça com a sua familiaridade, a sua indiferença, e nos dá a sensação desagradá­vel de que há um mundo que prossegue sem nós . Não podemos desa­parecer, não podemos esquecer os nossos próprios rostos . Nem sequer eu , que não tenho rosto , que nada altero quando entro num local (Su­san e Jinny transformam os rostos e os corpos) , até eu tenho a sensação de flutuar liberta de todas as amarras , incapaz de ancorar, incapaz de achar um espaço branco, uma continuidade, um mundo onde estes corpos se recortem. Mas talvez esteja assim por causa de Neville e da sua angústia. O halo penetrante da sua tristeza dispersa o meu ser. Nada pode fixar-se nem ganhar forma. De cada vez que a porta se abre ele olha fixamente a mesa. Não se atreve a erguer os olhos . Depois olha por um segundo e diz: «Ele não veio .» Mas aqui está ele .

- Finalmente , disse Neville , floresce a árvore da minha alegria. O meu coração dilata-se . Todos os obstáculos desapareceram, todas

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as opressões foram mitigadas . Terminou o reinado do caos . Percival impôs a ordem à sua volta. As facas voltaram a cortar.

- Aí está Percival , disse Rhoda. Não se vestiu para a ocasião . - Aí está Percival , disse Bernard . Alisa os cabelos , mas não o faz

por vaidade (não se olha ao espelho) mas para agradar ao deus da compostura. Como todos os heróis , respeita as convenções sociais . Os miúdos seguiam-no no campo de jogos . Assoavam o nariz como ele assoava, mas sem qualquer êxito , pois Percival é Percival . Agora que está prestes a deixar-nos , a partir para a Índia, todos esses por­menores se reúnem para formar um todo . É um herói . Ninguém pode negá-lo . E quando se senta junto de Susan , de quem está apaixonado , o momento fica completo . Nós , que latíamos como chacais prestes a despedaçarem-se , assumimos agora a expressão calma e confiante dos soldados na presença do seu comandante . Nós que fomos sepa­rados pela nossa juventude (o mais velho de nós ainda não tem vinte e cinco anos) , que cantamos cada um a sua canção como pássaros ávidos , que golpeamos com o egoísmo selvagem e sem escrúpulos da juventude a nossa própria casca de caracol até ela se quebrar ( es­tou noivo) , ou que solitariamente debruçados à janela de um quarto entoamos os nossos hinos de amor e de glória, e outras experiências individuais tão caras ao imaturo pássaro com um tufo de penas ama­relas junto ao bico , aproximamo-nos agora uns dos outros . Estamos acocorados neste poleiro , reunidos neste restaurante onde cada um pensa em si , e a incessante passagem de pessoas oferece continua­mente novas distrações e a almofada de vidro da porta se abre a todo o momento para nos lançar no rosto milhares de tentações , insultos e golpes na nossa confiança - e nós aqui sentados juntos gostamos uns dos outros e acreditamos na duração do nosso amor.

- Agora vamos sair das trevas da solidão , disse Louis . - Agora, disse Neville , confessemos de um modo direto e brutal

o que vai dentro de nós . Abandonemos o isolamento e a espera. Fa­lemos dos dias passados , cheios de segredos e dissimulações , das revelações nas escadas , dos nossos momentos de terror e êxtase .

- A velha Mrs . Constable erguia sobre as nossas cabeças a espon­ja que escorria água quente , disse Bernard . Sentíamo-nos imediata­mente envoltos nesse mutável e sensual vestuário de carne.

- O empregado de limpeza fazia amor com a criada na horta, no meio da roupa que secava, disse Susan .

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- As rajadas de vento eram como o rugido de uma pantera, disse Rhoda.

- O homem degolado jazia muito pálido no meio do regato , dis­se Neville . E ao subir as escadas eu não conseguia levantar o pé; não conseguia ultrapassar a macieira implacável com as suas rígidas fo­lhas de prata.

- A folha agitava-se na sebe sem que nada soprasse , disse Jinny. - Num recanto ensolarado do jardim, disse Louis , as pétalas das

flores nadavam em profundidades verdes . - Em Elverdon, os jardineiros varriam o jardim com grandes

vassouras e a senhora estava sentada a uma mesa a escrever, disse Bernard.

- Ao lembrar os encontros passados , disse Louis , puxamos o fio dos novelos cuidadosamente enrolados .

- Então , disse Bernard, a carruagem deteve-se diante da porta, e , puxando para os olhos as abas dos nossos chapéus de feltro para esconder as lágrimas indignas de homens , atravessamos ruas onde até as criadas nos olhavam e os nossos nomes escritos a branco sobre as malas proclamavam ao mundo inteiro que íamos para o colégio , levando o número regulamentar de meias e cuecas onde as nossas mães tinham passado noites a bordar iniciais . Uma segunda separa­ção do corpo da nossa mãe .

- E Miss Lambert, Miss Cutting e Miss Bard, disse Jinny, mulhe­res monumentais , de golas brancas , rostos cor da pedra, enigmáticas , presidindo aos estudos com os seus anéis de ametista que se moviam sobre as páginas de francês , geografia e aritmética como círios virgi­nais ou turvos pirilampos . E havia mapas , carteiras recobertas de pano verde e filas de sapatos numa estante .

- As campainhas tocavam sempre a horas , disse Susan , chaman­do as criadas de quarto, que chegavam rindo e aos encontrões . As cadeiras eram arrastadas e colocadas nos seus lugares sobre o linó­leo . Mas do sótão avistava-se uma paisagem azul , um distante campo sem a corrupção daquela vida regulamentada e irreal .

- Das nossas cabeças pendiam véus , disse Rhoda. Tínhamos gri­naldas de flores onde as folhas verdes murmuravam docemente .

- Mudámos , estamos irreconhecíveis, disse Louis . Exposto à ação de diferentes luzes, o que em nós havia (éramos todos diferentes)

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emergiu sob a forma de manchas brutais com espaços brancos entre elas , como se tivessem espargido um ácido sobre uma lâmina de me­tal . Eu era isto; Neville aquilo; Rhoda era diferente e Bernard também.

- As canoas deslizavam sob o verde pálido dos salgueiros , disse Neville , e Bernard avançando distraidamente contra o fundo de ver­dura e dos antigos edifícios , deixou-se cair a meu lado , como uma massa inerte . Num acesso de emoção (os ventos não podiam ser mais fortes nem os relâmpagos mais súbitos) peguei no meu poema, atirei-lho , e saí batendo com a porta.

- Eu, porém, disse Louis , perdi-vos de vista. Sentei-me no meu gabinete a arrancar as folhas do calendário e anunciar ao mundo dos corretores marítimos, dos comerciantes de cereais e dos acionistas das companhias de navegação que sexta-feira, dia dez , ou terça-feira, dezoito , amanhecera na cidade de Londres .

- Então , disse Jinny, Rhoda e eu , expostas a todos os olhares nos nossos reluzentes vestidos, com um círculo de pedras preciosas em volta do pescoço , fizemos reverências , apertámos mãos e, com um sorriso , servimo-nos de sanduíches de uma bandeja.

- O tigre saltou e a andorinha molhou a ponta das asas em som­brios lagos situados na outra vertente do mundo , disse Rhoda.

- Mas aqui , neste momento , estamos juntos , disse Bernard . Reu­nimo-nos neste instante e neste local . Fomos atraídos por qualquer profunda emoção comum. Será correto chamar-lhe amor? Devemos chamar-lhe amor a Percival , porque Percival vai partir para a Índia?

- Não, a palavra é demasiado pequena, demasiado particular. Uma tão pequena etiqueta não pode cobrir a extensão dos nossos sentimentos . Viemos do Norte e do Sul , da quinta de Susan e da casa comercial de Louis , para realizar qualquer coisa que nada tem de perdurável (mas o que é afinal perdurável?) , que é apenas visível para nós durante este momento em que as nossas vidas se confun­dem. Há um cravo vermelho nesta jarra . Enquanto aqui estivemos à espera era uma simples flor.

Mas agora é uma flor heptagonal , uma flor de mil pétalas , vermelha, acastanhada, sombreada de roxo, uma flor com rígidas folhas de prata. E a esta flor total cada um dos nossos olhares acrescenta um atributo.

- Depois das chamas caprichosas e da infinita monotonia da ju­ventude , a luz cai finalmente sobre objetos reais , disse Neville . Aqui

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estão facas e garfos. O mundo revelou-se e nós também; por isso podemos falar.

- É muito profundo o que nos diferencia, disse Louis , e talvez impossível de definir. Mas , apesar disso , procuremos uma definição . Ao entrar, ajeitei o cabelo para me tomar parecido convosco. Mas não o consegui , porque não sou uno e completo como vocês . Já vivi mil vidas . Em cada dia cavo e desenterro alguma coisa, descubro restos de mim na areia pisada pelas mulheres há milhares de anos , na época em que escutava os cantos que se elevavam na margem do Nilo e as pata­das da besta acorrentada. O Louis que estão a ver é feito das cinzas de alguém outrora sublime . Fui príncipe árabe; a nobreza dos meus gestos é disso testemunha. Na época de Elizabeth fui um grande poeta. E era duque na corte de Luís XIV. Sou vaidoso e destemido e tenho um imenso desejo de que as mulheres suspirem de ternura por mim. Hoje não almocei para que Susan me achasse pálido e Jinny estendesse so­bre mim a singular fragrância da sua simpatia. Mas , ao mesmo tempo que admiro Susan e Percival , odeio os outros , pois é por causa deles que me torno ridículo, à força de me pentear e procurar esconder o meu sotaque . Sou o macaquinho que brinca com uma noz e vocês são as mulheres desmazeladas , com reluzentes sacos de pastéis apodreci­dos . Sou também o tigre enjaulado e vocês os guardas armados com ferros incandescentes . É exatamente isso . Sou mais forte e mais feroz do que vocês e , no entanto, esta minha breve aparição sobre a terra, após milénios de não ser, será consumida no temor de que se riam de mim, a mudar com o vento conforme sopram as tempestades de fuli­gem, esforçando-me por forjar o anel de aço da clara poesia que reúna as gaivotas e as mulheres de dentes apodrecidos, os campanários das igrejas e os chapéus de coco que desfilam pelas ruas quando estou a almoçar e apoio um dos meus poetas preferidos (talvez Lucrécio) no galheteiro e no cardápio sujo com molho de carne.

- Mas a mim nunca me odiará, disse Jinny. Sempre que me veja, mesmo que seja do outro lado do salão cheio de embaixadores e cadeiras douradas , há de atravessá-lo em busca da minha simpatia. Quando há pouco entrei , tudo se imobilizou como num quadro . Os empregados pararam e os garfos dos comensais ficaram suspensos no ar. Estava preparada para tudo . Quando me sentei , vocês ajeita­ram as gravatas e depois esconderam as mãos sob a mesa. Mas eu

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nada tenho a esconder. Estou pronta . De cada vez que a porta se abre , grito: «Mais» ! Mas a minha imaginação é corporal . Nada posso ima­ginar fora do círculo que o meu corpo alcança. O meu corpo precede­-me como uma lanterna numa álea sombria, resgatando das trevas um objeto após outro e fazendo-os entrar no meu círculo de luz . Deslumbro-vos . Dou a ilusão de que tudo está contido neste instante .

Quando fica de pé junto à porta, disse Neville , a sua presença imo­biliza-nos, exigindo admiração e é esse o maior obstáculo à liberdade dos encontros . Fica à porta obrigando-nos a tomar consciência da sua existência. Mas a mim ninguém me viu aproximar. Cheguei cedo; vim depressa, diretamente para aqui , para me sentar ao lado da pessoa que amo. A minha vida tem uma rapidez que à vossa falta. Sou comparável ao cão de caça que fareja uma pista. Caço desde o amanhecer ao pôr do Sol . Nada, nem a busca de perfeição nas areias do deserto , nem a glória, nem o dinheiro , têm significado para mim. Terei riquezas , serei famoso . Mas nunca possuirei o que desejo, pois ao meu corpo falta a beleza e a segurança que ela traz . O meu corpo não acompanha a agi­lidade do meu espírito . As minhas forças abandonam-me antes de al­cançar o meu objetivo e caio transformado numa massa repleta de suor, talvez repugnante . Nos momentos de crise , inspiro piedade em vez de amor. É por isso que sofro cruelmente . Mas , ao contrário de Louis , não temo o ridículo . O meu sentido da realidade é demasiado intenso para me permitir esses malabarismos e fingimentos . Vejo tudo - com uma exceção apenas - com a maior clareza. É isso que me permite ser imperioso quando estou calado . E, apesar de num certo sentido ser iludido pela vida (pois que a pessoa que amo muda cons­tantemente , embora o meu desejo se mantenha, e pela manhã não saiba junto de quem me sentarei à noite) nunca estou parado . Sobrevi­vo aos piores desastres . Levanto-me. Transformo-me. As pedras fazem ricochete na armadura do meu corpo. Nesta busca envelhecerei .

- Se pudesse acreditar, disse Rhoda, que a minha vida se passava em procuras e mudanças , ficaria livre do medo de que nada dure . Um momento não nos prepara para o momento seguinte . A porta abre-se e o tigre salta. Não me viram entrar. Fiz mil desvios entre as cadeiras para evitar o horror de um encontro brusco . Tenho medo de vocês . Tenho medo do choque das sensações pois não posso acolhê-las como vocês fazem, não sou capaz de fundir o momento presente com o que

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vem a seguir. Para mim todos os momentos são violentos e isolados . E se sucumbisse ao choque do instante , lançar-se-iam sobre mim para me despedaçar. Não tenho nenhum objetivo . Não consigo enfiar uns nos outros os minutos e as horas , dissolvendo-os por um processo simples , de modo que formem essa massa indivisível a que vocês chamam vida. Porque, ao contrário de mim, vocês têm um objetivo , uma pessoa ao lado de quem se sentar, ou talvez uma ideia, ou a pró­pria beleza . . . Não sei . Mas assim as horas e os dias passam como os ramos das árvores , passam como o suave verde do bosque diante do cão que corre atrás da sua presa. Mas para mim não existe nenhuma presa, um corpo que me incite a procurá-lo . E não tenho rosto . Sou como a espuma que desliza sobre a praia ou o luar que cai a� acaso sobre uma lata, os picos do cardo marinho, um osso ou um barco meio carcomido . Um torvelinho arrasta-me para o fundo das cavernas , flu­tuo como um pedaço de papel ao longo de infindáveis corredores e tenho de apoiar a mão na parede para poder voltar para trás .

Mas , como acima de tudo desejo manter as aparências , finjo ter um objetivo qualquer quando subo lentamente as escadas atrás de Jinny e Susan . Tiro as meias como elas tiram as suas . Espero que falem e depois falo do mesmo modo. Atravessei Londres e cheguei até aqui , a este lugar determinado , não para ver um qualquer de vo­cês , mas para acender o meu fogo no incêndio unânime dos que vi­vem inteiros , indivisíveis e despreocupados .

- Quando esta noite entrei na sala, disse Susan, parei e olhei à minha volta, como um animal que mantém os olhos perto do chão . O cheiro dos tapetes , dos móveis e do perfume causam-me repugnância. Gosto de caminhar solitária pelos campos húmidos , ou de encostar-me a uma cancela a observar o meu setter farejar em círculo e perguntar: onde está a lebre? Gosto da companhia de pessoas que torcem pedaços de erva com os dedos , cospem no fogo e arrastam os chinelos por longos corredores , como meu pai faz . As únicas palavras que com­preendo são os gritos simples de amor, ódio , raiva e dor. Esta conver­sa é como despir uma velha cujo vestido parecia fazer parte dela, mas que agora, à medida que falamos , se vai tomando cor-de-rosa, de co­xas enrugadas e peitos descaídos (só quando se calam voltam a ser belos) . Só aceitarei a felicidade natural . Com ela ficarei quase satisfei­ta. Irei deitar-me fatigada. Serei como o campo em que as colheitas se

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sucedem. No verão o calor dançará sobre mim; no inverno o frio gre­tará o meu corpo . Mas o calor e o frio hão de seguir-se um ao outro naturalmente, sem que a minha vontade intervenha. Os meus filhos vão arrastar-me para a frente . O nascer dos seus dentes , o seu choro, a ida para a escola e a chegada a casa serão como as ondas do mar em que me deixarei arrastar. Nenhum dia passará sem um ligeiro avanço . Serei levada mais alto no dorso das estações do que qualquer um de vocês . Quando morrer, possuirei mais que Jinny e Rhoda. Mas , por outro lado, enquanto vocês foram variados e vibraram mil vezes com as ideias e os sorrisos dos outros , eu permanecerei sombria, terei a cor púrpura da tempestade . Serei aviltada, endurecida pela paixão sublime e bestial da maternidade . Sem o menor escrúpulo ajudarei os �eus filhos a triunfar. Odiarei todos os que lhes descubram defeitos . Serei capaz das mentiras mais vis para os ajudar. Deixarei que me separem de qualquer um de vocês . Também eu sou dilacerada pelo ciúme. Odeio Jinny, porque a sua presença me lembra que as minhas mãos são vermelhas e tenho as unhas roídas . Amo tão ferozmente , que me sinto morrer quando o objeto do meu amor revela com uma frase que me pode escapar. Ele desaparece e eu fico no mesmo sítio , segurando a ponta do fio que aparece e desaparece entre as folhas das copas das árvores. Não compreendo as frases.

- Se ao menos tivesse nascido sem saber que uma frase se segue a outra frase , disse Bernard, talvez tivesse conseguido ser alguém. Mas como não foi assim, encontro por todo o lado sequências infindáveis de palavras e sou incapaz de suportar o peso da solidão . Quando não vejo as palavras enrolando-se à minha volta como anéis de fumo, mergulho nas trevas e não sou nada. Quando estou só , soçobro na letargia e digo melancolicamente a mim mesmo, enquanto faço cair as cinzas por en­tre a grade de ferro da lareira: «A senhora Moffat virá limpar isto .» Quando está só, Louis é capaz de perceber as coisas com uma espanto­sa intensidade e escrever frases que talvez nos sobrevivam. Rhoda gosta de estar só . Receia-nos , porque ameaçamos a sua consciência do ser, que tão clara é quando estamos sós - vejam como brande o garfo, a sua arma contra nós . Mas eu só começo a existir quando o canaliza­dor, o vendedor de cavalos , ou seja lá quem for, dizem alguma coisa que me incendeia a imaginação . E como é então formoso o fumo das minhas frases , elevando-se e depois caindo sobre o vermelho das lagos-

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tas e o amarelo da fruta e envolvendo tudo numa única beleza ! Mas como são corruptas as frases , sempre feitas de evasivas e velhas men­tiras ! Porque , em parte, o meu caráter resulta de estímulos exteriores e não me pertence, como acontece convosco. Há nele não sei que fissura fatal , um irregular veio de prata que o enfraquece . Era isso que irritava Neville no colégio, quando subitamente o abandonava. Partia com os meninos convencidos, com barretes e emblemas , em grandes carrua­gens . Alguns deles estão aqui esta noite , jantando juntos, elegantemen­te vestidos para irem assistir a concertos . Amava-os , porque tal como vocês , me despertavam para a vida. É também por isso que quando me despeço e o vosso comboio parte , vos parece que não é o comboio que se afasta mas eu, Bernard, indivíduo despreocupado e insensível , que perdeu o bilhete e talvez mesmo o porta-moedas . Susan olha o fio per­dido entre as folhas da faia e grita: «Foi-se embora, escapou-se .» Por­que nada me pode reter. Constantemente me faço e refaço. Pessoas di­ferentes suscitam em mim diferentes palavras .

Esta noite não desejo estar sentado ao lado de uma pessoa mas de cinquenta. Mas sou o único que não precisa de se mostrar desenvolto para se sentir à vontade . Não sou grosseiro nem pedante . Abandono­-me às pressões do mundo. Mas nem por isso deixo , com a destreza da minha palavra, de lançar na corrente algumas perguntas difíceis . Todos se divertem com os pequenos jogos que em poucos instantes extraio do nada. Não guardo coisa nenhuma - quando morrer deixarei ape­nas atrás de mim um armário com velhas roupas - e sou quase indi­ferente às pequenas vaidades que tanto atormentam Louis . Mas fiz muitos sacrifícios . Eu, que sou feito de ferro , prata e veios de lama vulgar, não sou capaz de me crispar como um punho, tal como o fazem os que não dependem de nenhum estímulo exterior. Sou incapaz das renúncias e heroísmos de Louis e Rhoda. Nunca serei capaz, nem em conversa, de construir uma frase perfeita. Mas terei contribuído mais do que qualquer um de vocês para o momento que passa; e terei entra­do em mais salas , em mais salas diferentes . Mas serei esquecido por­que há em mim qualquer coisa que vem de fora e não de dentro; quando a minha voz se calar, não se lembrarão mais de mim, a não ser como o eco de uma voz que um dia entrelaçou frutos com palavras .

- Olhem, disse Rhoda, escutem. Vejam como a luz se toma mais intensa e o brilho e a perfeição se espalham por todas as coisas . E

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como os nossos olhos , ao percorrerem a sala mobilada com pequenas mesas , parecem atravessar cortinas coloridas , vermelhas , laranja, de tons sombrios e estranhamente ambíguos , que cedem como véus e depois se fecham. Vejam como cada coisa se funde noutra formando um todo indiferenciado .

- Sim, disse Jinny, o domínio dos nossos sentidos ampliou-se . Mem­branas e fibras nervosas até há pouco flácidas retesaram-se, distenderam­-se e flutuam à nossa volta como filamentos; são eles que tornam o ar tangível e nos permitem captar longínquos sons antes inaudíveis .

- Estamos rodeados pelo rumor de Londres , disse Louis . Automó­veis, camiões e autocarros passam e voltam a passar. Todos os ruídos se fundem no ruído único de uma roda que gira. Cada som particular - o trânsito , os sinos , gritos de bêbados e de folgazões - modelam--se num único som circular, de um azul de aço . De súbito ouve-se o grito de uma sirene . As praias afastam-se num movimento insensível , as chaminés aplanam-se e o navio dirige-se para o mar alto .

- Percival vai partir, disse Neville . Estamos aqui sentados , cerca­dos e iluminados por mil cores . E todas as coisas , as mãos , as corti­nas , os garfos e as facas e os outros comensais , se confundem. Aqui estamos rodeados de paredes . Mas lá fora , a Índia existe .

- Vejo a Índia, disse Bernard . Vejo uma longa praia plana. Vejo as tortuosas ruelas de lama pisada que conduzem a pagodes arruina­dos . Vejo douradas construções com ameias , frágeis e decadentes , como se fossem tendas de alguma feira oriental . Vejo uma parelha de bois puxando uma carroça ao longo de uma estrada escaldante . A carroça desengonçada balança de um lado para o outro . De súbito , uma das rodas fica atolada no trilho e imediatamente numerosos in­dígenas , com um pedaço de tecido em volta da cintura, rodeiam a carroça e discutem com excitação . Mas não fazem nada. O tempo parece infinito e a ambição inútil . Por cima de tudo paira a sensação da inutilidade de qualquer ação humana. No ar flutuam odores acres e estranhos . Um velho estendido numa vala continua a mascar béte­le e a contemplar o umbigo . Mas subitamente surge Percival . Perci­val monta uma égua malhada e usa capacete . Usando os princípios ocidentais e a violenta linguagem que lhe é habitual , consegue de­sembaraçar o carro em menos de cinco minutos . O problema oriental foi resolvido . Afasta-se . A multidão rodeia-o , contemplando-o como se ele fosse - o que realmente é - um Deus .

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- Desconhecido , com ou sem segredo, disse Rhoda, isso não im­porta, pois ele é como a pedra caída num tanque repleto de peixes . Nós , que com os peixes nadávamos de um lado para o outro, precipitámo­-nos para ele e rodeámo-lo logo que chegou . Como peixes que acabam de tomar consciência de uma grande pedra, volteamos satisfeitos à sua volta. A sua presença conforta-nos . O ouro corre nas nossas veias . Um, dois , um, dois , serenamente bate o coração, confiante , numa espécie de transe de alegria e êxtase; e os locais mais remotos da terra, pálidas sombras do horizonte longínquo, como a Índia, por exemplo, surgem diante dos nossos olhos . O mundo antes encarquilhado volta a arredon­dar-se . Províncias distantes saem das trevas . Vemos estradas lamacen­tas , espessas selvas , multidões de homens e abutres que devoram uma carcaça inchada, como se tudo isso pertencesse ao nosso esplêndido e altivo território , pois Percival , cavalgando uma égua malhada, avança por um caminho solitário, erguendo a sua tenda à sombra de árvores desoladas , ou sentando-se só, a contemplar enormes montanhas .

- É Percival silenciosamente sentado entre nós , disse Louis , tal como outrora se sentava entre as ervas , sob o céu em que o vento dis­persava e reunia as nuvens , que nos faz compreender como são falsas estas tentativas de dizer «eu sou isto» , eu «sou aquilo» , que estamos a fazer desde que nos juntamos aqui , como partes separadas de um mes­mo corpo e de uma mesma alma. O medo faz-nos sempre calar qual­quer coisa. A vaidade leva-nos a modificar outras . Esforçamo-nos por acentuar as diferenças . O desejo de nos distinguirmos uns dos outros levou-nos a acentuar defeitos e particularidades . Mas há uma cadeia que rodopia à nossa volta, que rodopia num círculo azul de aço .

- É amor, é ódio, disse Susan . É o furioso arroio de águas som­brias que nos causa vertigens quando nos debruçamos sobre ele . Estamos aqui , de pé , na saliência de uma rocha, mas ao olharmos para baixo sentimos vertigens .

- É amor, disse Jinny, é ódio , como o que Susan sente por um dia ter beijado Louis no jardim; porque quando entrei aqui , arranjada como estou , a fiz pensar: «as minhas mãos estão vermelhas» . Mas o nosso ódio quase se não distingue do nosso amor.

- Estas águas rumorejantes , disse Neville , sobre as quais cons­truímos as nossas loucas plataformas , são , apesar de tudo, mais está­veis que os gritos selvagens , inconsequentes e frágeis que soltamos

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quando tentamos falar, quando raciocinamos e pronunciamos menti­ras do género «eu sou isto , . . . eu sou aquilo» . A linguagem mente .

Mas , apesar disso , como . E ao comer perco pouco a pouco a noção dos pormenores . Tomo-me pesado de tanta comida. Estes deliciosos pedaços de pato assado, acompanhados de legumes , sucedem-se numa delicada sucessão de calor, peso , doçura e amargor e servem de lastro ao meu corpo . Sinto-me pleno de calma, gravidade e domí­nio de mim. Tudo se tomou sólido . Instintivamente o meu paladar reclama e prevê as sensações de doçura e leveza, qualquer coisa de açucarado e evanescente; e o vinho frio assenta como uma luva nos delicados nervos que estremecem no céu da minha boca , desliza na caverna abobadada, com cheiro a almíscar e recoberta com as verdes folhas da videira e o roxo das uvas . Agora já posso olhar firmemen­te a corrente do moinho que espuma lá em baixo . Mas que nome lhe havemos de dar? Deixem falar Rhoda, que tem o rosto vagamente refletido no espelho em frente; Rhoda, que um dia perturbei quando balouçava pétalas na bacia castanha, perguntando-lhe pelo canivete que Bernard roubara. Para ela o amor não é um redemoinho . Não sente vertigens ao olhar para baixo . Olhando sobre as nossas cabe­ças , Rhoda fita um lugar que está para além da Índia.

- Sim, para lá dos nossos ombros e das vossas cabeças , disse Rhoda, contemplo uma paisagem, um vale apertado entre colinas semelhantes a asas dobradas de pássaros . Lá, entre a erva rasteira, elevam-se arbustos de folhas sombrias e contra a sua massa escura vejo um vulto branco , mas não é uma pedra, é qualquer coisa de móvel , talvez um ser vivo . Não é, porém, nenhum de vocês , nem Percival , nem Susan , nem Jinny, nem Louis , nem Neville . Quando repousa sobre o joelho , o alvo braço forma um triângulo . Quando se ergue , parece uma coluna; agora é uma fonte caindo . Não nos faz sinal , não acena, não nos vê . Atrás dele ouve-se o fragor do mar. Está fora do nosso alcance . Mas eu aventuro-me até lá . É aí que vou preencher o vazio que existe em mim, prolongar as minhas noites e povoá-las de sonhos . E por um segundo , mesmo aqui , mesmo neste instante , alcanço o meu objetivo e digo: «Não andes mais . Tudo o resto é dor e mentira. O fim é aqui .» Mas estas peregrinações , estes instantes de separação, só começam na vossa presença, nesta mesa, com estas luzes , com Percival e Susan . Vejo sempre o bosque de

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folhas sombrias sobre as suas cabeças , entre os vossos ombros , ou através de uma janela, quando atravesso uma sala em festa e me ponho a olhar a rua lá em baixo .

- Mas e os seus chinelos? disse Neville . E a sua voz ecoando , lá em baixo , no vestíbulo? E a visão do seu rosto quando pensa que está só? Esperamos e ele não vem. Chega cada vez mais tarde . Es­queceu-nos . Está com outra pessoa. É infiel e o seu amor nada signi­fica. Ah, esta angústia, este intolerável desespero ! Mas de repente a porta abre-se . É ele .

- Em ondulações douradas digo-lhe; «vem» , disse Jenny. E ele vem. Atravessa a sala e aproxima-se do local onde estou sentada, com o meu vestido flutuando como um véu em redor da cadeira dourada. As nossas mãos tocam-se e um ardor súbito incendeia os nossos corpos . A cadeira, a taça, a mesa, saem da sombra. Tudo vi­bra, brilha, arde luminosamente .

- Olha Rhoda, disse Louis , tomaram-se seres noturnos , apaixo­nados . Os seus olhos são como as asas das mariposas que batem tão depressa que parecem imóveis .

- Soam trompas e cometas , disse Rhoda. As folhas desdobram-se e os cervos bramem nas florestas . Ouve-se um som de danças e de tambores , semelhantes às danças e aos tambores dos selvagens nus que agitam azagaias .

- A sua dança é como a dos selvagens em volta da fogueira, dis­se Louis . São selvagens e impiedosos . Dançam em círculo brandindo as armas . As chamas iluminam os rostos pintados , as peles de leopar­do e os membros sangrentos arrancados de corpos vivos.

- As chamas da festa elevam-se no céu , disse Rhoda. A grande procissão passa, agitando ramos verdes e flores . Um fumo azul sai das suas trompas e, à luz das tochas , a sua pele surge manchada de vermelho e amarelo . Espalham violetas à sua volta. Cobrem a bem­-amada com grinaldas e folhas de loureiro , ali no local aberto entre as colinas escarpadas . A procissão passa. E quando passa, Louis , somos invadidos por sensações de derrota e decadência. As sombras caem. Semelhantes a conspiradores debruçados sobre uma fria uma, olhamos as chamas vermelhas que se extinguem.

- A morte está entrelaçada de violetas , disse Louis . A morte , sempre a morte .

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Que orgulhosos nos sentimos , disse Jinny, aqui sentados em volta desta mesa, nós que ainda não temos vinte e cinco anos ! Lá fora as árvores florescem e as mulheres passeiam. Lá fora os táxis deslizam sem cessar. Apenas saídos das dúvidas , da obscuridade e do deslumbramento da adolescência, olhamos a direito , prontos a en­frentar todos os acontecimentos (a porta abre-se , a porta abre-se sem cessar) . Tudo é real , firme , sem sombras nem ilusões . Nas nossas frontes repousa a beleza. Na minha, na de Susan . A nossa carne é firme e fresca. Os nossos contrastes são tão nítidos como sombras de rochedos ao sol . À nossa frente estão pousados pequenos pães fres­cos , duros , de um amarelo vítreo . A toalha é branca e as nossas mãos repousam semicerradas , prontas a contraírem-se . Temos muito tem­po à nossa frente , dias de inverno e dias de verão . Mal começamos ainda a usar as reservas de futuro . O fruto arredonda-se entre as fo­lhas . A sala tem a cor do ouro e eu murmuro: «Vem.»

- Ele tem orelhas vermelhas , disse Louis , e o cheiro da carne pende como uma rede húmida em volta dos empregados de escritório que comem pequenos pratos ao balcão .

- Que faremos do tempo infinito que temos à nossa frente? disse Neville . Passearemos ao longo de Bond Street , olhando as montras , comprando talvez uma caneta por causa da sua bela cor verde e per­guntando quanto custa o anel de pedra azul? Ou ficaremos sentados em nossa casa a contemplar os carvões incandescentes? Estendere­mos a mão para segurar um livro e ler uma página aqui e outra ali? Daremos grandes gargalhadas sem qualquer motivo? Passearemos por prados floridos colhendo margaridas? Ou perguntaremos a que horas parte o comboio para as Hébridas e reservaremos um compar­timento? Tudo está ainda por vir.

- Para vocês talvez seja verdade, disse Bernard . Mas eu bati on­tem com a cabeça num poste . Fiquei noivo .

- Como são estranhos , disse Susan , os montículos de açúcar junto dos nossos pratos . E a casca pintalgada das peras ou as mol­duras de camurça dos espelhos . Ainda não tinha reparado neles . Agora tudo se fixou nos seus lugares . Bernard ficou noivo . Qual­quer coisa de irrevogável aconteceu . Um círculo foi traçado sobre as águas , uma cadeia foi-nos imposta . Nunca mais poderemos des­lizar livremente .

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- Só por um momento , disse Louis , antes que a cadeia se rompa e a desordem regresse , contemplemos esta imobilidade , esta ordem, de quem está preso .

Mas bruscamente o círculo rompe-se e de novo a corrente flui . Deslizamos mais rapidamente que nunca. As paixões que repousa­vam nas profundezas onde crescem as algas sombrias vêm à super­fície e sacodem-nos com as suas ondas . O ciúme e a dor, o desejo e a inveja e qualquer coisa de mais profundo ainda, mais forte e sub­terrâneo que o amor. É a voz da ação que fala. Ouve Rhoda (porque somos conspiradores com as mãos sobre a uma fria) , a rápida, des­preocupada e excitante voz da ação, dos cães correndo atrás da presa. Falam sem a preocupação de terminar as frases . Falam uma lingua­gem infantil como a dos amantes . Estão possuídos por qualquer coisa de brutal e imperioso . Os nervos das suas coxas tremem. Os seus corações pulsam agitando o peito . Susan amarrota o lenço . Há chamas dançando nos olhos de Jinny.

- São imunes aos olhares curiosos e às mãos que os procuram, disse Rhoda. Com que à-vontade se voltam e olham; que atitudes de orgulho e energia, as suas ! Quanta vida resplandece nos olhos de Jinny ! Como é cruel e concentrado o olhar de Susan procurando in­setos entre as raízes ! Ambas têm cabelos cintilantes e os seus olhos brilham como os dos animais que abrem caminho entre as folhas em busca da presa. O círculo foi destruído e estamos outra vez dispersos .

- Mas depressa, demasiado depressa, disse Bernard, a exaltação individual desvanece-se . Depressa passa o momento de ávida identi­ficação . O desejo da felicidade é saciado . A pedra cai no fundo , o momento passa. Uma atmosfera de indiferença envolve-me . Agora abrem-se nos meus olhos mil curiosidades . Concedo a qualquer um de vocês o desejo de assassinarem Bernard, que está noivo , desde que deixem intacta esta margem do território desconhecido , esta floresta de um mundo ignorado . Por que razão , indago num discreto murmúrio , há mulheres a jantar sozinhas? Quem são elas? E o que as terá trazido aqui esta noite? A julgar pelo modo nervoso como leva, de vez em quando , a mão à nuca, o jovem sentado naquele canto deve ser da província. É humilde e sente-se tão desejoso de demonstrar reconhecimento ao seu anfitrião , um velho amigo do pai que o convidou para jantar, que mal consegue usufruir aquilo que

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amanhã de manhã lhe parecerá ter sido uma noite encantadora. Re­paro também que aquela dama, aparentemente mergulhada numa absorvente conversa (trata-se talvez do amor ou da infelicidade da sua melhor amiga) já empoou três vezes o nariz . «Meu Deus , como está o meu nariz ! » , pensa ela tirando a caixa de pó de arroz da mala e apagando de passagem os mais fervorosos sentimentos . Há tam­bém o insolúvel enigma da presença solitária daquele homem de óculos ; e da velha dama solitária que pediu champanhe . Quem são estes desconhecidos?, pergunto-me . Poderia pôr nos seus lábios uma dúzia de histórias , compor outros tantos quadros . Mas de que servem as minhas histórias? São brinquedos moldados pelas minhas mãos , bolas de sabão que eu sopro , um anel passando através de outro anel . Começo mesmo a duvidar que as histórias possam conter a realida­de . Qual é a minha história? E a de Rhoda? E a de Neville? É evi­dente que há os factos . Por exemplo . «Ü elegante jovem de fato cinzento , cujo laconismo contrasta estranhamente com a loquacidade dos outros, sacudiu as migalhas de pão do colete e com um gesto característico , ao mesmo tempo imperioso e benevolente , chamou o empregado, que acorreu imediatamente e regressou pouco depois com a conta discretamente dobrada na bandeja.» Eis os factos , as realidades : tudo o resto são trevas e conjeturas .

- Agora, disse Louis , vamos pagar a conta e separarmo-nos mais uma vez . O ciclo do qosso sangue , tantas vezes bruscamente inter­rompido , porque somos diferentes , fecha-se num anel . Alguma coisa foi criada. Sim, quando nos levantamos um tanto nervosos , suplica­mos todos com as mãos juntas sobre um pensamento comum. «Não se movam, não deixem a porta de batentes desfazer a realidade por nós criada, aqui formada entre estas luzes , estas cascas de pera, estas migalhas de pão e gente passando .» Não se movam, não partam! Mantenham tudo isto para sempre !

- Vamos reter este momento , disse Jinny, o amor, o ódio , o que se queira chamar-lhe , o universo feito pela presença de Percival , a nossa juventude , a nossa beleza, sentimentos tão profundamente enraizados em nós que talvez nunca consigamos um momento seme­lhante com nenhum outro homem.

- As florestas e os países do outro lado do mundo, disse Rhoda, fazem parte dele ; o mesmo acontece com os mares e as selvas , os

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uivos dos chacais e o luar que ilumina o inacessível rochedo sobre que planam as águias .

- A felicidade faz parte dele , disse Neville , e também a paz das coisas familiares . Uma mesa, uma cadeira, um livro com um estilete pousado entre as suas páginas . E a pétala que cai de uma rosa e o bruxulear da luz quando estamos sentados em silêncio ou quando, ao recordar talvez qualquer coisa sem importância, pronunciamos subi­tamente uma palavra.

- Há nele dias da semana, disse Susan , segunda, terça e quarta--feira. Cavalos vão para os campos e regressam; as gralhas voam e depois voltam a pousar cobrindo os olmos com a rede das suas asas , tanto em abril como em novembro .

- Tudo o que há de vir está contido nele , disse Bernard. É a altura de deixarmos cair uma última gota, resplandecente como o celeste mercúrio, no esplêndido momento criado à volta de Percival . Que irá acontecer? Que nos espera lá fora?, pergunto , sacudindo as migalhas do colete . A comer, a falar, mostramos ser capazes de enriquecer o tesouro destes momentos . Não somos escravos para sempre condena­dos a receber nas costas curvadas as chicotadas da mesquinhez. Não somos um rebanho forçado a seguir um pastor. Somos criadores . Construímos qualquer coisa que se vai juntar às inumeráveis criações do passado. E neste momento , em que pomos os chapéus e abrimos a porta, não entramos no caos , mas num mundo que a nossa força pode subjugar e em que podemos abrir uma estrada eterna e luminosa.

Olha à tua volta Percival , enquanto te chamam um táxi , olha a paisagem que em breve perderás . A rua está polida pela passagem de incontáveis rodas . O dossel ardente da nossa terrível energia pende sobre nós como um pano em chamas . São os teatros, salas de concer­to e as lâmpadas nos interiores das casas que fazem esta iluminação .

- Nuvens cansadas viajam no céu sombrio como barbatanas de baleias , disse Rhoda.

- Agora começa a angústia; o horror prendeu-me nas suas garras , disse Neville . Chegou o táxi . Percival vai partir. Que podemos fazer para o reter? Como preencher a distância que nos separa? Como alimentar o fogo de modo a que ele arda eternamente? Como fazer saber ao tempo que há de vir que nós , aqui parados na rua à luz dos lampiões , amávamos Percival . Mas Percival partiu .

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O Sol atingira o ponto mais alto do seu percurso . Agora já não

era apenas entrevisto, adivinhado na alusão dos seus reflexos, como

se uma jovem deitada num colchão de águas verdes, com a fronte

adornada de joias formadas de gotas de água, lançasse luzes opali­

nas brilhando no ar indeciso como os flancos de golfinho ao sair da

água ou o clarão de uma espada que golpeia . Agora o Sol impiedo­

so queimava sem que se pudesse refutá-lo . Os seus raios incidiam na

areia dura e os rochedos tornavam-se fornalhas de rubro calor. O

sol devassava todas as poças de água, iluminava os peixes escondi­

dos nas fendas das rochas e mostrava a roda do carro enferrujada,

o osso esbranquiçado, a bota sem cordões enterrada na areia e ne­

gra como um pedaço de ferro . A tudo o sol concedia a sua exata

ração de cor; às dunas de areia os seus inumeráveis reflexos; às

ervas o seu verde resplandecente . Ou então brilhava; sobre a árida

extensão do deserto sulcado pelo vento, semeado de desolados mon­

tículos de pedra e salpicado pelo verde-escuro de árvores raquíticas .

Iluminava as superfícies douradas da mesquita, as frágeis casas

brancas e rosa da aldeia do Sul e mulheres de cabelos brancos e

seios pendentes, ajoelhadas no leito do rio a bater nas pedras a

roupa torcida . Os navios a vapor avançavam surdamente pelo mar,

abraçados pelo calmo olhar do sol que através dos toldos amarelos

incidia sobre os passageiros que dormitavam ou passeavam pela

coberta e com a mão em pala procuravam terra, encerrados nos

flancos palpitantes e viscosos do navio que os transportava dia após

dia sobre a monotonia das águas .

O sol incidia nas povoadas colinas do Sul e resplandecia nos

leitos pedregosos dos rios, onde a água corria escassa sob as altas

pontes de arcos, mal chegando para as lavadeiras ajoelhadas nas

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As Ondas 1 05

rochas quentes molharem as roupas . Mulas escanzeladas avança­

vam cuidadosamente entre as pedras cinzentas e inseguras carre­

gando alforges nos lombos estreitos . Ao meio-dia o calor do sol

tornava cinzentas as colinas, como se um incêndio as tivesse quei­

mado . Mas mais para o norte, em terras ricas de nuvens e de chu­

va, as colinas que pareciam alisadas pelas costas de uma faca

brilhavam com um fogo interior, como se um guarda andasse de

um lado para outro nas suas profundas cavernas segurando uma

lanterna verde . Atravessando os átomos de ar azul-cinzento, o sol

descia sobre os campos de Inglaterra iluminando os pântanos e os

charcos, uma gaivota branca pousada numa estaca, a lenta passa­

gem das sombras sobre as florestas densas, o trigo que amadurece

e os ondulantes campos de feno . Incidiu no muro do pomar e o

grão do tijolo ficou pontilhado de prata e púrpura e tão macio que

aparecia prestes a dissolver-se numa poeira ardente . As groselhei­

ras inclinavam-se ao longo dos muros, formando cascatas de um

vermelho brilhante; as ameixas amadureciam entre a folhagem e

cada risco de erva parecia fazer parte de um único tecido verde .

A sombra das árvores formava uma espécie de escuro charco à

volta das raízes . A luz, que descia em jorras, fundia todas as folhas

isoladas numa massa verde .

Os pássaros cantavam apaixonadamente e depois calavam-se .

Com trinados e gorjeios, transportavam ciscos de palha e gravetas

para as sombrias ramificações dos ramos mais altos .

Alguns pousavam as suas cores de ouro e púrpura no jardim, onde

as flores do laburno e amaranto espargiam ouro e lilás - ao meio-dia

o jardim era uma profusão de flores e mesmo o obscuro espaço entre

as plantas ficava verde, púrpura e ouro, quando o sol para aí desliza­

va através de uma pétala vermelha, ou das grandes pétalas amarelas

ou esbarrava em algum caule verde de densa penugem.

O sol incidia a prumo sobre a casa e as paredes brancas reluziam

entre as janelas sombrias . As sombras verdes das árvores encaixavam­

-se nos vidros, onde havia círculos de impenetrável obscuridade . Du­

ros traços de luz pousavam nos peitoris e revelavam no interior dos

aposentos pratos com anéis de azul, a asa curva das taças, a massa de

um grande vaso, o complicado desenho de um tapete e os imponentes

armários e estantes . Depois começava uma zona de sombra, que con-

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1 06 Virginia Woolf

tinha talvez outras formas prestes a serem resgatadas da sombra, e

para lá dela as mais densas regiões de obscuridade .

As ondas desfaziam-se e as águas deslizavam rapidamente pela

areia . Erguiam-se uma após outra e tombavam, arrastando os res­

pingas na violência do seu recuo . As ondas eram de um azul profun­

do, à exceção da luz semeada de diamantes que se formava no seu

dorso semelhante ao dos grandes cavalos que galopam. As ondas

tombavam, retiravam-se e voltavam a cair, com um ruído semelhan­

te ao das patadas de um gigantesco animal.

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- Ele morreu , disse Neville . Caiu do cavalo . O seu cavalo trope­çou e lançou-o por terra . As velas do mundo giraram bruscamente e atingiram-me na cabeça. Tudo acabou . Todas as luzes do mundo se apagaram. Aí está a árvore impiedosa barrando-me o caminho .

Oh, amarrotar este telegrama entre os dedos e acender de novo as luzes do mundo , poder dizer que Percival não morreu ! Mas de que me serve agitar a cabeça de um lado para o outro? É a verdade . Um facto . O seu cavalo tropeçou e ele caiu por terra. As árvores que deslizavam rápidas e as vedações brancas desapareceram num turbi­lhão de chuva. Ouve um safanão , um rufar de tambores nos seus ouvidos . Depois um choque; e o mundo estilhaçou-se . Respirava com dificuldade . Morreu no próprio local em que caiu .

Dias de verão no campo , celeiros , quartos em que estivemos sen­tados um junto do outro , tudo isso faz agora parte do mundo irreal do passado . Um abismo separa-me dos dias de outrora. Chegaram pessoas a correr. Homens com botas de montar e capacete transporta­ram-no para um pavilhão . Entre esses homens desconhecidos mor­reu . Muitas vezes a solidão e o silêncio o envolveram. Abandonou­-me muitas vezes . Depois voltava. E eu dizia: «olhem, ele aí vem!»

Passam mulheres sob a minha janela, como se um abismo não se tivesse cavado na rua, como se a árvore de folhas rígidas não lhes barrasse o caminho . Merecemos ser esmagados como o montículo de terra de uma toupeira. Somos infinitamente abjetos quando passa­mos de olhos fechados . Mas porque me hei de submeter? Por que continuar a subir os degraus da escada? Imóvel , com o telegrama na mão , permaneço neste degrau . O passado , a recordação dos dias de verão e dos quartos em que estivemos sentados juntos , dispersa-se na distância como um papel queimado onde brilham ainda os olhos

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vermelhos das chamas . Para quê encontrar outras pessoas e reatar velhas ligações? Para quê comer, falar e estabelecer novos contac­tos? A partir de hoje serei solitário . Ninguém me conhecerá. Guardo três cartas dele . «Tenho um encontro com o coronel para jogar a malha, nada mais que isso .» A nossa amizade terminou nestas pala­vras , com ele a abrir caminho entre a multidão e a agitar o braço num aceno de despedida. Esta farsa não merece cerimónias solenes . E, no entanto , se alguém tivesse dito «espera» e tivesse apertado um pouco mais a correia, ele teria feito justiça por cinquenta anos , teria presi­dido aos tribunais , cavalgado sozinho à frente das tropas , denunciado alguma monstruosa tirania e regressado para junto de nós .

Agora vejo um esgar de riso , um subterfúgio . Alguém escarnece nas nossas costas . Por pouco aquele menino ia caindo ao saltar do autocarro . Percival caiu . Morreu . Está enterrado . E eu olho as pes­soas que passam. Todas se agarram com força aos varões do autocar­ro firmemente decididas a viver.

Não subirei os degraus . Deter-me-ei um instante diante da árvore impediosa, a sós com o homem que foi degolado, enquanto lá em baixo a cozinheira limpa o fogão . Não subirei a escada. Uma maldi­ção pesa sobre nós . As mulheres passam com os sacos das compras . As pessoas continuam a passar. Mas não serão capazes de me des­truir. Neste momento , neste momento único , estamos juntos . Aperto­-te contra mim. Vem dor, apodera-te de mim. Enterra as tuas garras no meu corpo . Rasga-me em pedaços . Soluço , estou a soluçar.

- É tão incompreensível a combinação das coisas , disse Bernard, e tão grande a sua complexidade que agora, ao descer as escadas , não consigo destrinçar a alegria da dor. O meu filho nasceu . Percival morreu . Avanço por um paredão embatido de ambos os lados pela corrente brutal das emoções . Mas onde está a dor e onde está a ale­gria? É inutilmente que faço esta pergunta. Apenas sei que necessito de silêncio e solidão , de sair e examinar com tempo a perturbação que a morte provocou no meu universo .

É este o universo que Percival nunca mais verá. Examinemo-lo . O talhante entrega uma encomenda de carne na casa de um vizinho . Dois velhos avançam aos tropeções pela rua. Alguns pardais estão pousados no chão . Isto quer dizer que a máquina funciona: percebo o seu ritmo, a sua pulsação, mas como que vindas de qualquer coisa em

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que não participo , pois Percival já não os pode ver (está deitado , páli­do , coberta de ligaduras) . Agora tenho a possibilidade de descobrir o que é importante , mas preciso de ter cuidado e não mentir. Os meus sentimentos em relação a Percival podem resumir-se do seguinte mo­do . «Ele ocupava o centro .» Agora já não tenho razões para me apro­ximar do centro . Esse lugar ficou vazio . Oh, sim, posso assegurar-lhes , homens de chapéus de feltro e mulheres carregando sacos de comida, que perderam algo de importante . Perderam um chefe que teriam se­guido . E um de vós perdeu a felicidade e os filhos . Morreu aquele que vos teria dado tudo isso . Jaz numa cama de campanha, com a cabeça ligada, na atmosfera asfixiante de um hospital da Índia, enquanto os coolies acocorados no chão agitam leques cujo nome esqueci . Mas o importante é que, no momento em que o meu filho nasceu , em que as pombas desceram sobre o meu telhado, eu pude murmurar como se fizesse uma constatação: «Tiveste sorte em deixar isto .» Recordo-me de que , rapaz , ele tinha já um curioso ar de desprendimento . E, en­quanto os meus olhos alternadamente se secam e enchem de lágrimas , digo: «Mas o que aconteceu é melhor do que se poderia esperar.» E acrescento , dirigindo-me ao ser abstrato e cego que me olha do fundo da avenida, recortado contra o céu . «É isto que és capaz de fazer?»

Se é assim, fomos nós que triunfámos . «Fizeste o pior mal de que és capaz» , digo dirigindo-me ao rosto vazio e brutal (pois Percival tinha vinte e cinco anos e poderia ter vivido oitenta) . E fizeste-o inutilmente . Mas não me vou lançar ao chão e chorar o resto da vida (tenho de registar no meu caderno o desprezo que sinto pelos que condenam os outros a uma morte inútil) . Agora devo fazer o possível por colocar Percival em situações triviais e ridículas , para que ele não se sinta absurdo montado no seu grande cavalo . Preciso de ser capaz de dizer: «Percival , aí está um nome ridículo .» E, no entanto , deixem-me dizer-lhes , homens e mulheres que descem apressada­mente as escadas do metro , que teriam sido obrigados a respeitá-lo . Teriam caminhado em filas atrás dele . É estranho caminhar entre a multidão quando se tem os olhos queimados de lágrimas . . .

E, contudo, já surgem os sinais, os apelos , as tentativas de me fazer retroceder. Ao fim de algum tempo, a minha curiosidade vem ao de cima. Não se pode viver fora da engrenagem durante mais de meia hora. Reparo que os corpos readquiriram o seu aspeto habitual : mas

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o que está por detrás deles é diferente . A perspetiva mudou . Por detrás deste placard com jornais está o hospital; uma grande sala com ho­mens escuros puxando cordas ; depois enterram-no . Mas , como um dos jornais diz que uma famosa atriz se divorciou , pergunto-me ins­tantaneamente de quem se tratará . . . Não sou , porém, capaz de tirar um único tostão do meu bolso para comprar o jornal . Não consigo tolerar nenhuma interrupção no curso das minhas recordações.

Pergunto-me se não te voltarei a ver, se a impressão de solidez que causavas desapareceu para sempre dos meus olhos e que aspeto terão daqui por diante as nossas relações . Atravessaste o campo tomando cada vez mais ténue o fio que nos unia. Mas continuas a existir em algum lado . Alguma coisa de ti ficou. Continuarás a ser o meu juiz . Se um dia descobrir em mim alguma coisa nova, submetê-la-ei em segre­do à tua consideração . Perguntarei : qual é o teu veredicto? Continuarás a ser o árbitro . Mas por quanto tempo? Com o passar do tempo as coisas começarão a ser difíceis de explicar; novos factos surgirão; mes­mo agora já há o meu filho . Estou no ponto culminante da minha ex­periência. Mas o declínio virá. Já não grito «que sorte» , com convic­ção . A exaltação passou . As pombas já não vêm pousar no meu telhado. Sou outra vez sensível aos pormenores , mergulho no caos . Já não olho sem compreender para os nomes escritos nas portas das lojas . Já não acho inútil apressar-me e apanhar o comboio. As séries reconstruíram­-se: as coisas implicam-se umas às outras . Tudo regressou à ordem.

Mas continuo a revoltar-me contra essa ordem habitual . Não consentirei em ser arrastado pelo ritmo das coisas . Continua­

rei a caminhar sem alterar o ritmo do meu pensamento , sem parar nem olhar à minha volta . Vou subir os degraus desta galeria de arte e submeter-me à influência de espíritos que , como eu , estão libertos de engrenagem. Já me resta pouco tempo para responder à interroga­ção; a minha atenção vacila; caio numa espécie de torpor. Aqui há quadros . Aqui veem-se frias estátuas da Virgem entre colunas . Espe­ro que estas imagens acalmem a inquietação do meu espírito - onde constantemente surgem a cabeça coberta de ligaduras e homens pu­xando cordas - de modo a poder descobrir por detrás de tudo isso qualquer coisa de invisível . Aqui há jardins e Vénus entre as flores . Aqui existem santos e virgens azuis . Piedosamente , estes quadros não fazem qualquer alusão e nada indicam. Deste modo posso alar-

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gar a consciência que tenho dele e vê-lo de forma diferente . Recordo­-me da sua beleza. «Olhem, ele voltou» , digo .

Estas linhas e estas cores quase me convencem de que também eu posso ser capaz de heroísmo, eu , o hábil construtor de frases , tão facil­mente seduzido pela mudança, incapaz de cerrar os punhos e construin­do frases de acordo com as circunstâncias . A visão da minha própria fragilidade esclarece-me, finalmente, sobre o que Percival representava para mim: era o meu contrário . Todos os exageros eram estranhos à sua inata lealdade e possuía um profundo sentido do seu lugar no universo, o que fazia dele um verdadeiro mestre da arte de viver, de tal modo que parecia ter atrás de si a experiência de um longo passado . . . Espalhou à sua volta uma calma que quase se confundia com indiferença e que era muito nítida em relação à sua própria carreira. Mas era capaz de uma grande compaixão pelos outros . Uma criança brinca - é uma noite de verão - e as portas abrem-se e fecham-se , continuarão a abrir-se e a fechar-se e através delas vejo coisas que me fazem chorar. As experiên­cias da vida são incomunicáveis e é essa a causa de toda a solidão e de toda a desolação humana. Há em mim um lugar essencial que ficou vazio . Esmaga-me o sentimento da minha própria fraqueza. Ele já não está aqui para se opor a ela.

Contemplo a Virgem azul do rosto banhado em lágrimas . Este mo­mento de contemplação é a cerimónia fúnebre que ofereço a Percival . Já não temos rituais , mas apenas elegias; só temos sensações violentas sem qualquer relação entre si . Nunca nada foi dito que convenha à nossa dor. Estou sentado na sala italiana da National Gallery, recolhen­do fragmentos . Duvido que Ticiano tenha sentido esta dor. Os pintores vivem em metódica absorção, juntando uma pincelada de cor a outra pincelada. Não são, como os poetas , bodes expiatórios . Não estão acorrentados à rocha. Daí o seu silêncio e o seu aspeto sublime. Mas aquele vermelho deve ter queimado as vísceras de Ticiano . Deve ter experimentado a sensação de se erguer segurando uma cornucópia nos braços poderosos e de se reclinar de cansaço . Mas o silêncio pesa-me, na sua perpétua solicitação do olhar. Agora as pressões são intermiten­tes e surdas . Distingo poucas coisas e apenas de um modo vago. Sou a campainha que se comprime e não toca, ou apenas emite sons cavos e dissonantes . Sinto-me excitado pelo esplendor deste vestido verme­lho com um forro verde , o desfile de colunas e as folhas negras e

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pontiagudas das oliveiras recortadas contra um céu cor de laranja. Sensações desordenadas atingem-me com as suas flechas .

E, no entanto , qualquer coisa foi acrescentada à minha interpreta­ção do mundo . Alguma coisa jaz no mais profundo do meu ser. Por um momento , pensei que a alcançava. Mas é melhor deixá-la perma­necer no mais profundo de mim até que possa germinar. Talvez ao fim de uma longa vida, num momento de revelação , eu consiga segurá-la sem qualquer esforço . Mas agora podia quebrar-se nas minhas mãos . Por cada ideia que chega a definir-se , mil se estilha­çam. Estilhaçam-se e desmoronam-se sobre mim. Porém, as linhas e as cores sobrevivem-nos e por isso . . .

Bocejo. Estou saturado de sensações . Este esforço e o longo tem­po (vinte minutos , meia hora) em que permaneci fora da engrenagem esgotaram-me. Sinto-me entorpecido e com as pernas adormecidas . Como ultrapassar este torpor que revela a secura do meu coração? Há outros sofrimentos , multidões de pessoas que sofrem. Neville está a sofrer. Amava Percival . Mas eu não consigo suportar nada que seja excessivo . Necessito de alguém com quem possa rir e bocejar, com quem possa recordar o modo particular que Percival tinha de coçar a cabeça, alguém com quem ele se sentia à vontade (não Susan que ele amava, mas Jinny) . No seu quarto poderia confessar-me . Poderia perguntar-lhe: «Ele contou-te que um dia me convidou a ir a Hampton Court e eu recusei?» São estes os pensamentos que me despertarão , mergulhado em desespero , a meio da noite . São estes os crimes de que , de cabeça descoberta, terei de me penitenciar em to­das as praças do mundo , crimes como os de não ter ido com ele a Hampton Court nesse dia .

Mas agora, depois desta revelação , preciso sentir a vida à minha volta, livros e bibelôs , de repousar a cabeça exausta nas vozes fami­liares dos vendedores e fechar os olhos . Vou descer as escadas da galeria de arte , chamar o primeiro táxi que aparecer e dirigir-me a casa de Jinny.

- Ali está a poça de lama, disse Rhoda, e não consigo atravessá-la. Ouço o ruído da grande mó rodando muito perto de mim. O vento que ela levanta sopra contra o meu rosto . Todas as formas palpáveis de vida me abandonaram. Se não conseguir estender as mãos e tocar em qualquer coisa de consistente, serei eternamente arrastada pelo vento

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através destes corredores . Mas em que poderei tocar, em que tijolo , em que pedra, para atravessar este precipício e regressar ao meu corpo?

Agora a sombra caiu e a luz violeta inclinou-se . A imagem reves­tida de beleza está em ruínas . A imagem que se erguia no bosque rodeado de colinas escarpadas desmoronou-se , tal como predisse na noite em que disseram que amavam a sua voz , os seus velhos sapatos e os momentos que passavam junto dele .

Vou descer Oxford Street imaginando um mundo iluminado pela luz dos relâmpagos , vendo carvalhos fendidos, abrasados no sítio em que o ramo florido tombou . Irei a Oxford Street comprar meias para uma festa. Farei as coisas habituais à luz dos relâmpagos . Na terra dura vou colher violetas de que farei um ramo para oferecer a Perci­val (é alguma coisa de mim que lhe ofereço) . E agora vejamos o que Percival me deu a mim. Olhemos a rua agora que Percival morreu . As casas foram construídas em alicerces tão frágeis que um sopro de ar parece capaz de as derrubar. Indiferentes e sem objetivo , os auto­móveis rugem perseguindo-nos até à morte como se fossem cães ferozes . Estou só num mundo hostil . O rosto humano é atroz . É dis­so que gosto . Quero anúncios publicitários e violência, quero ser lançada como uma pedra contra a rocha. Gosto das chaminés das fábricas , dos guindastes e camiões . Gosto da interminável passagem dos rostos diante de mim deformados e indiferentes . Estou cansada da beleza e da intimidade . Vogo em águas revoltas e quando me afundar não estará lá ninguém para me salvar.

Com a sua morte, Percival ofereceu-me este presente , revelou-me este horror, obrigou-me a sofrer esta humilhação , estes milhares de rostos servidos como pratos de sopa por criados desmazelados , ros­tos grosseiros, ávidos e indiferentes , rostos que olham as mercado­rias expostas nas montras , rostos de pessoas que tudo sujam e des­troem e são até capazes de manchar o nosso amor se lhe tocarem com os dedos impuros .

Aqui está a loja das meias . Por um instante tenho a. ilusão que a corrente interrompida da beleza recomeça a fluir. O seu murmúrio ouve-se nos corredores , atravessa estas rendas e os cestos repletos de fitas coloridas . Há calmos vazios no coração deste mundo agitado, grutas de silêncio em que podemos refugiar-nos sob as asas da bele­za nascida das verdades que procuro . A dor imobiliza-se , encantada

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pelo silencioso gesto da empregada que abre uma gaveta. Depois ela fala e a sua voz desperta-me . Mergulho profundamente entre as ervas daninhas e vejo a inveja, os ciúmes , o ódio e o despeito , avançando como caranguejos sobre a areia, enquanto ela fala. São estes os nos­sos companheiros . Vou pagar a conta e sair com o meu embrulho .

Esta é Oxford Street. Aqui o ódio, o ciúme, a pressa e a indiferença, revestem a áspera aparência da realidade . São estes os nossos compa­nheiros . Penso nos amigos com quem me sento e almoço. Penso em Louis , entregue à leitura da secção desportiva de um vespertino. Tem medo do ridículo , é um snobe . Olha as pessoas que passam e diz para si que seria capaz de nos guiar se consentíssemos em segui-lo . Se nos submetêssemos, poderia reconduzir-nos à ordem. Conseguirá fazer entrar a morte de Percival na sua conceção da vida, enquanto olha fi­xamente sobre o galheteiro o céu que se avista para lá das casas . Quan­to a Bernard, está certamente afundado numa poltrona com os olhos vermelhos . Tira o caderno do bolso e escreve na letra M algumas frases «para serem usadas na morte dos amigos» . Jinny volteia através da sala e depois apoia-se no braço da poltrona em que Bernard está senta­do e pergunta-lhe: «Pensas que Percival me amava?» «Que me amava mais do que a Susan?» Susan , noiva de um agricultor da região, ficará um instante parada, segurando um prato nas mãos e olhando o telegra­ma; depois fechará a porta do forno com o tacão do sapato . Neville , olhando pela janela através das lágrimas , surpreender-se-á a murmurar: «Que rapaz encantador está neste momento a passar diante da janela !» É este o meu tributo a Percival, violetas murchas , sombrias violetas .

Aonde irei? A um museu onde se guardam anéis em caixas de vi­dros , armários secretos e vestidos que pertenceram a rainhas? Ou a Hampton Court ver os muros vermelhos e os pátios interiores e os teixos formando pirâmides negras simetricamente erguidas sobre a relva, entre as flores? Serei aí capaz de recuperar a beleza e de impor ordem à minha alma alvoraçada? Mas que será possível construir em solidão? Sozinha, ficarei de pé sobre a relva vazia a dizer: «As gra­lhas voam; alguém passa com um saco na mão , está ali um jardinei­ro com um carrinho. Terei de esperar na fila dos visitantes; de respi­rar o cheiro de suor misturado com o do perfume, que é ainda mais horrível , e sentir-me-ei suspensa ao lado dos outros visitantes como se fôssemos peças de carne penduradas num talho .

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Aqui está uma sala em que, depois de pagar, se entra para ouvir música, entre pessoas sonolentas , que acabaram de almoçar nesta tarde escaldante . Comeram carne e pudim em tal quantidade que poderiam dispensar refeições durante uma semana. Por isso estão apertados uns contra os outros como vermes nas costas de um animal . São pessoas de elevada condição, corretamente vestidas . As mulheres têm brancos cabelos ondulados sob os chapéus , sapatos elegantes , pequenas bolsas . Os cavalheiros , as faces escanhoadas e, aqui e ali , vê-se um bigode militar. Nem uma só partícula de pó está autorizada a pousar nas suas roupas . Segurando e abrindo os programas , trocam breves impressões com os amigos antes de se instalarem como focas num rochedo, como pesados corpos incapazes de se arrastarem até ao mar e que esperam uma onda que as ajude a flutuar. Mas são demasiado pesados· e há de­masiadas rochas secas entre eles e o mar. Repousam, empanturrados de comida, embrutecidos pelo calor. É então que a enorme mulher contida no resvaladiço vestido de cetim verde vem em nosso auxílio . Aspira o ar, assume uma expressão apaixonada, dilata o peito e lança-se para o frente no momento exato, como se tivesse visto uma maçã e a sua voz fosse a flecha voando no interior da nota musical . «Ah !»

Um machado fendeu o tronco da árvore até ao coração . O coração está quente . O som vibra envolto na casca. «Ah !» , gritou uma mulher ao seu amado , debruçando-se numa janela de Veneza. «Ah ! » , ah !» , gritou . E depois voltou a gritar: «Ah !» A mulher deu-nos um grito . Sim, apenas um grito . E que é um grito? Então , alguns homens com aspeto de escaravelhos entram em cena com os seus violinos: espe­ram, contam, fazem sinal com a cabeça e baixam os arcos . E agora há ondulações e risos como na dança das oliveiras que agitam as incontáveis línguas cinzentas , até que um viajante vindo do mar, mordiscando um pequeno ramo entre os lábios , desembarca na praia para onde descem as escarpadas colinas .

As comparações sucedem-se . Mas o que é que se esconde sob a aparência das coisas? Agora que o raio atingiu a árvore , o ramo florido tombou e Percival com a sua morte me deixou este legado, quero ver o que está para lá das aparências . Há um quadrado, há um retângulo . Os músicos pegam no quadrado e colocam-no sobre o retângulo . Colocam-no com o maior cuidado, construindo uma habitação perfei­ta. Só uma pequena parte fica de fora. Agora a estrutura é visível .

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O que antes era apenas esboço está agora realizado . Não somos assim tão inconstantes nem tão sórdidos . Construímos quadros e colocamo­-los sobre retângulos . É este o nosso triunfo, a nossa consolação.

A transbordante doçura desta descoberta desce pelas paredes da minha consciência e liberta a minha compreensão . «Não procures mais» , digo . «Isto é o fim.» O quadrado foi colocado sobre o retân­gulo; a espiral em cima. Fomos arrastados para o mar através das rochas . Os músicos voltam, mas agora estão a enxugar os rostos . Já não parecem elegantes nem afáveis . Vou sair. Esta tarde será uma tarde à parte . Vou fazer uma peregrinação . Irei a Greenwich . Vou viajar corajosamente em elétricos e autocarros . Ao longo de Regent Street as sacudidelas do veículo lançam-me contra outros passagei­ros , mas não fico ofendida nem indignada com os encontrões . Um quadrado sobre um retângulo . Aqui há ruas sórdidas com mercados de rua onde se regateiam os preços das barras de ferro , cavilhas e parafusos e pessoas que se acotovelam nos passeios , segurando pe­daços de carne crua com os dedos gordos . A estrutura do edifício é visível . Tomamos o mundo habitável .

Estas são as flores que crescem entre as ásperas ervas do campo pisadas pelas vacas , batidas pelo vento , quase deformadas , infecun­das . São essas as flores que trago , arrancadas pelas raízes do pavi­mento de Oxford Street, o meu ramo de um pence , o meu ramo de violetas que me custou um pence . Agora da janela do elétrico avisto mastros de navios entre as chaminés e os telhados . Há um rio . Há navios que partem para a Índia . Passarei pela margem do rio . Vou andar de um lado para o outro ao longo do cais onde um velho lê o seu jornal num abrigo envidraçado . Vou caminhar ao longo do para­peito e olhar os navios a subir com a maré que está a encher. Uma mulher passeia pelo convés de um navio , um cão ladra à sua volta. O vento agita-lhe as saias e os cabelos . Fazem-se ao mar. Deixam­-nos . Desvanecem-se neste entardecer de verão . Agora posso aban­donar-me à minha dor, entregar-me completamente ao desejo de ser consumida. Galoparemos juntos pelas colinas desertas onde a ando­rinha molha as asas em obscuros lagos e as eretas colunas se mantêm intactas . Na onda que se desfaz no areal , na onda que espalha a sua branca espuma até aos mais longínquos confins da Terra, lanço as minhas violetas , a minha oferenda a Percival .

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O Sol já não ocupava o meio do céu . Agora a sua luz suavizada caía

obliquamente . Aqui e ali capturava o rebordo de uma nuvem e incen­

diava-a, transformando-a numa ilha ardente em que ninguém_ poderia

desembarcar. Depois, numa rápida sucessão, a chama alcançava ou­

tras nuvens, de tal modo que lá em baixo as ondas eram trespassadas

por dardos com plumas de fogo que atravessavam ao acaso as fremen­

tes águas azuis . As copas das árvores estavam encarquilhadas pelo

sol, e, ao passar, a brisa fazia um rumor seco na rigidez das folhas. Os

pássaros estavam quietos, contentando-se em mover rapidamente a

cabeça de um lado para o outro . Faziam uma pausa no seu cantar

como se estivessem saturados do som, e a plenitude do meio-dia os

saciasse . A imóvel libelinha levantou voo do junco e lançou para lon­

ge a sua agulha azul; um vago e longínquo murmúrio surgiu, feito

pelo trémulo e irregular bater das suas finíssimas asas dançando no

horizonte . Agora a água do rio mantinha os juncos muito direitos,

como se uma fina camada de vidro se tivesse formado à sua volta;

depois o vidro ondulou e os juncos balouçaram. Nos campos, as vacas

de cabeça baixa avançavam pesadamente um passo de cada vez . Jun­

to da casa a torneira deixou de gotejar, como se o balde já estivesse

cheio . Depois uma, duas, três gotas isoladas caíram uma após outra.

As janelas refletiam ao acaso manchas de sol, a sombra curva de

um ramo e depois um tranquilo espaço de pura claridade . Num dos

lados da janela avistava-se uma cortina vermelha e no interior da

casa adagas de luz caíam sobre as cadeiras e as mesas fazendo es­

talar o verniz e as lacas . A imagem deformada de uma janela branca

refletia-se no flanco verde do vaso . A luz, escorraçando as sombras

diante de si, derramava-se profusamente nos menores recantos, dei­

xando contudo, aqui e ali, informes montes de trevas .

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As ondas erguiam-se, curvavam-se e desfaziam-se fazendo saltar

areia e pedras . Rodeavam as rochas e os fragmentos de espuma

saltavam, salpicando as paredes de uma caverna que até aí se man­

tivera seca . Ao retirarem-se, deixavam atrás de si poças de água

onde às vezes um peixe se debatia, abandonado .

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- Já assinei o meu nome, disse Louis , umas vinte vezes . Eu , eu , outra vez eu . Claro , firme e inequívoco , aqui está o meu nome . Tam­bém eu sou claro e sem equívocos . E , no entanto , acumulei i.númeras experiências . Já vivi mil anos . Sou como um verme que abriu cami­nho roendo a madeira de uma antiquíssima trave de carvalho . Agora, nesta bela manhã, sinto-me compacto e inteiro .

O Sol brilha num céu sem nuvens . Mas o meio-dia não me traz nem chuva nem sol . É a hora em que Miss Johnson me traz cartas para assinar numa bandeja metálica . Gravo o meu nome nesses pa­péis brancos . O murmúrio das folhas é semelhante ao das águas correndo nas goteiras , a profundidades manchadas de dálias ou zí­nias . E eu tanto sou um duque como Platão , o discípulo de Sócrates; a marcha de homens de pele escura, ou de homens de pele amarela emigrando para Este , Oeste , Norte e Sul; a procissão eterna; as mu­lheres que caminham com pastas de documentos pela Strand como outrora iam com cântaros ao Nilo . E todas as folhas amalgamadas da minha vida estão agora resumidas no meu nome e clara e sobriamen­te escritas nesta página. Sou agora um adulto na sua plenitude , de pé , ao sol ou à chuva. Preciso de cair com a força de um machado sobre o tronco de carvalho , porque se me desvio para um ou outro lado cairei como neve que depressa se derrete .

Estou quase apaixonado pela máquina de escrever e o telefone . As minhas cartas e telegramas , as minhas ordens telefónicas breves mas corteses , para Paris , Berlim ou Nova Iorque permitiram-me fundir numa só vida as minhas múltiplas vidas . Com a minha perseverança e decisão ajudei a traçar sobre o mapa as linhas que reúnem entre si os diversos continentes . Gosto de chegar às dez em ponto ao meu escri­tório; gosto do brilho roxo do mogno sombrio; gosto da mesa com os

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seus cantos afilados , e também das gavetas que se abrem suavemente . Gosto do telefone que oferece os seus lábios à minha voz e do calen­dário na parede; e da agenda onde tenho marcados os encontros: Mr. Prentice às quatro horas ; Mr. Eyres às quatro e meia em ponto .

Gosto de ser chamado ao gabinete de Mr. Burchard para lhe apre­sentar o relatório sobre a nossa situação na China. Espero vir a ter uma poltrona e um tapete turco . O meu ombro empurra a roda e abro cami­nho nas trevas que se estendem diante de mim, espalhando comércio no caos das mais remotas partes do mundo. Se prosseguir nesta via, se a ordem continuar a emergir do caos , acabarei por chegar ao lugar onde estiveram Chatham, Pitt, Burke , e Sir Robert Peel , os grandes ministros da Inglaterra. Assim resgato velhas culpas e apago certas manchas : a mulher que me deu a bandeira que estava em cima da ár­vore de Natal , a minha pronúncia, a marca das pancadas e outras tor­turas sofridas na infância, os meninos convencidos e o meu pai que foi banqueiro em Brisbane . Li o meu poeta numa taberna e, mexendo o café , ouvi os empregados de escritório fazendo apostas nas mesinhas e observei mulheres hesitando ao balcão . Disse a mim mesmo que nada pode deixar de ter importância, até um papel pardo acidentalmen­te caído no chão . Disse que cada dia vivido por essa gente deveria ter um objetivo; que o seu salário deveria ser ganho ao serviço de um augusto chefe e que ao anoitecer deveríamos ser esperados por uma mão e pela prega de um vestido . Quando tiver reduzido estas fraturas do mundo e compreendido essas monstruosidades de modo que não exijam desculpas nem justificações (que são coisas que desperdiçam energia) , devolverei à rua e ao restaurante o que perderam nestes anos difíceis , o que se quebrou contra estas praias pedregosas . Reunirei al­gumas palavras , para forjar à nossa volta um claro anel de aço.

Mas agora não tenho um minuto a perder. Aqui não há repouso , nem a sombra de trémulas folhas , nem um tranquilo recanto onde me possa abrigar do sol ou sentar-me junto do ser amado, na frescura da noite . O peso do mundo recai sobre os nossos ombros; o mundo vê através dos nossos olhos e se os fechamos, olhamos para o lado, ou nos voltamos para colher o que Platão disse ou recordar Napoleão e as suas conquistas , infligimos ao mundo a injúria de um instante de distração e de erro . A vida é assim. Mr. Prentice às quatro; Mr. Eyres às quatro e meia. Gosto de ouvir o suave deslizar do elevador, o baque

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surdo com que se detém no meu andar e caminhar viril de pés respon­sáveis no meu corredor. E, deste modo, reunindo as nossas forças enviamos navios às mais remotas regiões da Terra, luxuosos navios repletos de WC e de salas de ginástica. O peso do mundo recai sobre os nossos ombros . E vida é assim. Se persistir, possuirei uma poltrona e um tapete no conselho de administração e uma propriedade no Sur­rey com estufas de plantas e algumas coníferas raras , melões e árvo­res floridas que farão a inveja de outros comerciantes .

Enquanto espero , mantenho ainda o meu quarto no sótão . Ali abro o livro familiar e contemplo a chuva que resvala pelas telhas que brilham como um impermeável de polícia; dali vejo as telhas parti­das das casas dos pobres; os gatos magros; e alguma mulher dando uma olhadela no espelho rachado e pintando o rosto para continuar o seu trabalho nas esquinas das ruas . Às vezes Rhoda vem ver-me . Somos amantes .

Percival morreu (morreu no Egito , morreu na Grécia, todas as mortes são a mesma morte) . Susan tem filhos . Neville ascende rapi­damente a posições elevadas . A vida passa e as nuvens que passam sobre as nossas casas mudam constantemente de forma. Faço isto , depois novamente aquilo . Quando nos reunimos e separamos , assu­mimos aspetos variados e construímos diferentes estruturas . Mas se não fixo essas impressões num quadro e não faço um único ser dos múltiplos seres que em mim coexistem; se não existir aqui e agora em vez de me fundir em pedaços como a neve na encosta das mon­tanhas longínquas ; se não perguntar a Mrs . Johnson se gostou de ir ao cinema quando passo pela seu escritório e me esquecer de tomar a minha chávena de chá e os meus biscoitos favoritos ; se não fizer tudo isso , cairei como a neve que em breve se derrete .

E, no entanto, quando chegam as seis horas e saio levando a mão ao chapéu para saudar o porteiro (continuei demasiado delicado porque desejo ser aceite pelos outros) e avanço com dificuldade, inclinado para a frente de modo a vencer a ventania, abotoado até ao pescoço, com o maxilar azulado e os olhos lacrimejantes , tenho o desejo secreto que uma pequena datilógrafa se aninhe nos meus joelhos . Penso que o meu prato favorito é fígado com bacon e tenho tendência a orientar os meus passos até ao rio, até às ruas estreitas onde abundam as tabernas , sombras de navios que passam entre as casas e mulheres que se insul-

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tam. Mas , recobrando a sensatez, recordo-me: Mr. Prentice às quatro; Mrs . Eyres às quatro e meia. O machado tem de cair sobre o tronco, o carvalho tem de ser abatido. O peso do mundo recai sobre os meus ombros . Aqui estão a caneta e o papel . Assino o meu nome nas cartas que me trazem na bandeja metálica. Louis . Louis, sempre Louis .

- Vem o verão , disse Susan , e depois o inverno. As estações pas­sam. A pera arredonda-se e cai da árvore . A folha morta descansa na beirada. Mas o vapor embaciou os vidros . Sentada junto do fogo, vigio a chaleira que ferve . Através dos vidros embaciados , onde as gotas deslizam formando riscos , avisto a pereira no jardim.

Dorme , filhinho , dorme, canto baixinho , tanto no verão como no inverno, seja maio ou novembro . Dorme, canto , eu que nunca tive ouvido para a música e que só conheço as melodias campestres do cão que ladra, do sino que toca, ou das rodas que rangem ao passar no saibro . Sentada ao lume , canto a minha canção de embalar como uma velha concha murmurando na praia. Dorme , dorme, canto afas­tando do berço , onde um doce corpo está envolto num cobertor cor­-de-rosa, as pessoas que fazem ruídos com as bilhas de leite , dispa­ram contra as gralhas e os coelhos ou de algum modo trazem consigo o sobressalto e a destruição .

Perdi a minha indiferença, o meu olhar inexpressivo , os meus olhos em forma de pera que procuravam as raízes . Já não sou janeiro , maio ou qualquer estação do ano , mas uma fina rede tecida em redor deste berço , envolvendo num casulo feito com o meu próprio sangue o delicado corpo do meu filho . Dorme, canto , sentindo crescer den­tro de mim uma violência selvagem e sombria que me permitiria abater de um só golpe qualquer intruso , qualquer assaltante que en­trasse e despertasse o pequeno ser adormecido .

Vagueio pela casa o dia inteiro , de avental e chinelos , tal como mi­nha mãe, que morreu com um cancro. Já não distingo o verão do in­verno pela erva dos campos ou a flor do espinheiro, mas pelos vidros embaciados ou cobertos de geada. Quando a cotovia lança nos ares o seu canto , que depois cai como uma maçã que se desprende do seu ramo, eu debruço-me, alimento o meu filho . Eu que costumava pas­sear pelo bosque de faias , admirando a pena do gaio que se toma azul ao cair, que encontrava no meu caminho o vagabundo e o pastor, que via na berma da estrada uma mulher agachada junto de uma carreta

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tombada, ando agora de quarto em quarto com um espanador na mão. Dorme, digo, desejando que o sono desça como um colchão de penas sobre os seus frágeis membros; exigindo que a vida recolha as suas garras , retenha os seus raios e passe ao largo e fazendo com o meu próprio corpo uma cavidade, um tépido abrigo onde o meu filho possa dormir. Dorme, digo, dorme, meu filhinho . Ou então vou até à janela e contemplo a pereira e o ninho que as gralhas fizeram no ramo mais alto de uma árvore . «Os seus olhos hão de ver quando os meus já es­tiverem fechados» , penso . Com eles sairei do meu corpo e irei ver a Índia. Ele regressará carregado de troféus que virá depor a meus pés . Aumentará as minhas riquezas . Mas agora já não me levanto ao ama­nhecer para ver as gotas roxas que tremulam nas folhas das couves ou as rubras gotas pousadas nas rosas . Já não observo o meu súter a fa­rejar em círculo; e à noite , quando estou deitada, já não ergo os olhos para as árvores que escondem as estrelas , até as estrelas se moverem e reaparecerem ao lado das folhas imóveis . O homem do talho vem trazer a carne. O leite tem de ser posto à sombra para não azedar.

Dorme , meu filhinho , enquanto a água ferve na chaleira e um jato de vapor cada vez mais espesso sai do seu bico . É assim que a vida enche as minhas veias e se espalha por todo o corpo . Assim vou avançando, arrastada pela vida, embora às vezes sinta desejo de gri­tar, enquanto ando de um lado para o outro , entre a madrugada e a noite . «Basta . Estou farta de tanta felicidade natural .» E, no entanto , sei que outros filhos virão , mais berços , outros cestos na cozinha e mais presuntos curados ao fumo. E cebolas brilhando . E mais cantei­ros de alfaces e batatas . Sinto-me uma folha levada pelo vento , umas vezes roçando a erva húmida, outras elevando-se nas alturas . Estou farta de felicidade natural e às vezes desejo que esta plenitude me abandone , desejo não sentir mais sobre mim o peso da casa adorme­cida, quando estamos sentados a ler ou enfio a linha no buraco da agulha. Um reflexo da lâmpada arde num vidro escuro da janela. Uma chama brilha entre as folhas da hera. Vejo uma rua iluminada entre as corriolas . Ouço o trânsito no rumor que o vento faz na relva e fragmentos de vozes e risos e Jinny gritando quando a porta se abre: «Vem! vem!»

Mas nada interrompe o silêncio da nossa casa à volta da qual os campos suspiram. O vento desliza entre os olmos , uma mariposa em-

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bate na lâmpada, uma vaca muge, uma viga range . E enquanto passo a linha pela agulha, murmuro: «Dorme, meu filhinho.»

- Agora que nos reunimos, disse Jinny, conversemos e contemos histórias uns aos outros . Quem é ele? Quem é ela? Sinto-me infini­tamente curiosa e não sei o que vai acontecer. Se tu , a quem acabo de conhecer, me dissesses: «a carruagem parte de Piccadilly às qua­tro horas» , não perderia sequer tempo a fazer a mala, iria imediata­mente contigo .

Sentemo-nos neste sofá, perto do quadro , sob as flores . Adorne­mos com factos a nossa árvore de Natal . As pessoas partem tão de­pressa; temos de as agarrar sem perda de tempo . Aquele homem que está ali , ao lado do armário , vive rodeado de faianças chinesas . Se quebrarmos uma, lá se vão mil libras . Amava uma jovem romana que o traiu . É isso que explica esses vasos , essas velharias encontradas em antigas mansões ou desenterradas nas areias do deserto. Mas a beleza deve quebrar-se todos os dias para permanecer bela e a vida deste homem é estática, estagnou num mar de porcelana chinesa. Mas tudo isso é estranho , porque ele também foi jovem um dia e sentado no chão húmido bebeu rum com os soldados .

Neste mundo precisamos de ser rápidos , prender habilmente factos e mais factos , como brinquedos que suspendemos na árvore de Natal com uma simples pressão dos dedos . O homem inclina-se , como se inclinaria até sobre uma azálea. Inclina-se mesmo para aquela velha só porque os seus brincos são de diamante e percorre os seus domínios numa carruagem puxada por póneis, decidindo quem deve ser ajuda­do, que árvore será derrubada e quem vai ser despedido no dia seguin­te (devo dizer que vivi durante estes anos , e já tenho mais de trinta, perigosamente, como uma cabra-montês saltando de penhasco em penhasco; permaneço pouco tempo no mesmo sítio; a ninguém me ligo em particular; mas podem comprovar facilmente que se erguer o braço alguém se aproxima imediatamente) . E este homem é juiz; e aquele é milionário; e o homem que tem um olho de vidro varou com uma seta o coração da criada quando tinha apenas dez anos de idade . Depois atravessou o deserto levando mensagens , participou em revo­luções e agora reúne documentos para escrever a história da fanu1ia da sua mãe, há muito estabelecida no Norfolk. O homenzinho de queixo azulado tem a mão direita paralisada. Mas porquê? Ninguém sabe .

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Murmura-se discretamente que aquela mulher, com brincos de pérola, foi a pura chama que incendiou a vida de um dos nossos grandes esta­distas . Desde que morreu esse homem de Estado, ela vê fantasmas , adivinha o futuro e adotou um jovem com pele cor de café a quem chama Messias . Aquele homem de bigodes caídos como um oficial de cavalaria levou uma vida depravada (tudo isso vem contado numa biografia) até que um dia, num comboio, encontrou um estranho que o converteu lendo-lhe a Bíblia entre Edimburgo e Carlisle .

Assim, em poucos segundos , deciframos habilmente os hierógli­fos inscritos no rosto dos outros . Esta sala é como uma praia repleta de conchas gastas e rejeitadas pelas ondas . A porta abre-se sem ces­sar. A sala enche-se de sabedoria, angústia, de todas as variedades da ambição , muita indiferença e algum desespero . Entre nós , dizes , podíamos construir catedrais , dirigir a vida política, condenar à mor­te e administrar as instituições públicas . É muito grande a nossa re­serva de experiências comuns . Entre nós contam-se muitas crianças de ambos os sexos , que educamos , vamos visitar ao colégio quando têm sarampo e preparamos para herdarem as nossas casas . De um modo ou outro concedemos importância a este dia , a esta sexta-feira. Uns vão aos tribunais, outros tratar dos seus negócios na City. Outros ainda a um infantário . Alguns participam em manobras militares . Um milhão de mãos estão ocupadas a coser ou a levantar caixotes de tijolos . A atividade é infinita. E amanhã tudo recomeça, amanhã con­cedemos importância ao sábado . Alguns partirão para França, outros embarcarão para a Índia . Há também aqueles que nunca mais volta­rão a esta sala. Um de nós morrerá esta noite . Outro gerará um filho . De nós brotam todas as espécies de construções , a aventura e a polí­tica, quadros , poemas , filhos e fábricas . A vida vem. A vida vai-se embora. Fazemos a vida. É pelo menos o que dizem.

Mas os que como eu têm uma vida carnal veem com a imaginação do corpo o perfil das coisas . Vejo rochas , rochas resplandecendo ao sol . Mas não posso levar estes factos para o interior de uma caverna onde, abrigando os olhos com a palma da mão , fundisse gradualmen­te os seus tons amarelos , azuis e cinzentos numa substância única. Sou incapaz de estar sentada por muito tempo . Preciso de me erguer e partir. A carruagem pode sair de Piccadilly a todo o momento . Lar­go todas estas histórias de diamantes , mãos paralisadas , vasos de

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porcelana e o resto, como um macaco solta as nozes das suas mãos nuas . Não sei se a vida é isto ou outra coisa. Vou misturar-me com a multidão heterogénea. Quero ser empurrada, agitada pela multidão como um navio no alto-mar.

Faço-o porque o meu corpo, o meu cúmplice sempre pronto a enviar apelos , o sombrio e áspero «não» , o dourado «vem» , as rápidas flechas da sensação , recomeça a fazer sinais. Alguém se aproxima. Terei er­guido o meu braço? Olhei-o? Terá a minha echarpe amarela, com manchas cor de morango , flutuado, emitido um sinal? O homem destacou-se da parede em que se apoiava. Vem atrás de mim. Persegue­-me através da floresta. Tudo é noturno, tudo é êxtase e os papagaios gritam nos ramos das árvores . Todos os meus sentidos estão despertos . Sinto o tecido áspero da cortina que afasto com a mão, a fria balaus­trada de ferro e a sua pintura estaladiça sob as minhas mãos . Agora a fresca maré noturna envolve-me nas suas águas . Já estamos ao ar livre . Diante de nós abre-se a noite atravessada por mariposas errantes ; a noite que oculta os amantes caminhando ao encontro da aventura. Sinto o odor das rosas e das violetas . Vejo na noite o vermelho e o azul das cores ocultas . Umas vezes sinto o saibro sob os meus sapatos , outras a erva. As silhuetas sombrias das casas elevam-se diante de mim, atravessadas de luzes , como uma consciência perturbada. A noi­te de Londres é inquietada por cintilações de luz . Posso finalmente entoar o meu canto de amor. Vem, vem, vem. A minha echarpe doura­da palpita como as asas de uma libelinha. Canto como um rouxinol cuja garganta fina estrangula a melodia. Ouço o ruído dos ramos que­brados e o embate das armações dos veados , como se todos os animais da floresta estivessem a caçar, saltando e correndo entre moitas de espinhos . Um desses espinhos trespassou-me . Um desses espinhos cravou-se profundamente em mim.

Flores aveludadas e folhas com a frescura da água envolvem-me , abrigam-me , rodeiam-me com o seu aroma.

- De que serve , disse Neville , olhar o relógio sobre a lareira? Sim, o tempo passa. E envelhecemos . Mas estar sentado junto de ti , sozinho contigo , em pleno coração de Londres , neste quarto iluminado pelo fogo, é tudo o que posso desejar. O mundo não nos pode dar mais que isto, o mundo saqueado até às mais remotas regiões e onde todas as montanhas foram despojadas de flores . Olha o fogo subindo e descen-

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do pelo dourado fio da cortina. A fruta que ele alcança murcha rapida­mente . Faz brilhar a ponta dos teus sapatos e rodeia o teu rosto com um halo de luz, de tal modo que parece o fogo e não o teu rosto . Penso que isto são livros dispostos ao longo das paredes , que isto é uma cortina e que aquilo talvez seja uma poltrona. Mas quando chegas , tudo se trans­forma. Quando chegaste esta manhã, as chávenas e os pires mudaram de aspeto. Pousei o jornal na mesa e comentei para mim próprio que as nossas medíocres vidas sem beleza só se revestem de esplendor e ad­quirem significado quando as vemos com os olhos do amor.

Levantei-me . Tinha acabado de tomar o pequeno-almoço . Tínha­mos um dia inteiro à nossa frente e como era um belo dia, temo e sem compromissos , passeámos pelo parque até à margem do rio e depois seguimos ao longo do Strand até St. Paul , onde entrámos numa loja para eu comprar um guarda-chuva, falando sempre e às vezes parando para olhar em volta. Mas a felicidade poderá durar? Perguntei a mim próprio em Trafalgar Square , diante da estátua do leão de ar eterno . Revivi a minha vida passada, cena por cena. Revi a silhueta de um grande olmo e a morte de Percival . Jurei que a mi­nha felicidade haveria de durar para sempre . Mas depois , como de costume , fui assaltado pelas dúvidas . Segurei-te na mão . Em seguida partiste . A descida para a estação do metro foi como uma descida aos infernos . Estávamos separados , afastados por todos estes rostos e o som vazio do vento que soprava nos grandes rochedos desertos . Sentei-me no meu quarto , olhando fixamente em frente . Às cinco da tarde soube que me eras infiel . Peguei no telefone e o ressoar da sua estúpida campainha no teu quarto vazio dilacerou-me o coração . Foi então que a porta se abriu e tu entraste . De todos os nossos encontros foi esse o mais perfeito . Mas estes encontros e separações vão acabar por destruir-nos .

Agora este quarto parece-me o centro do mundo , qualquer coisa arrancada à luz eterna. Lá fora, as linhas curvam-se e intersetam-se , mas aqui dentro envolvem-nos . Estamos no centro . Aqui podemos estar calados ou falar sem erguer a voz . Reparaste nisto e naquilo? , perguntamos . Ele disse aquilo dando a entender. . . Ela hesitava. Creio que começou a suspeitar. De qualquer modo, ouvi vozes e um soluço na escada ontem à noite . Era a rutura, o fim das suas relações . Deste modo tecíamos à nossa volta filamentos infinitamente finos ,

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construindo um sistema. Dele fazem parte Platão e Shakespeare , mas também gente obscura, sem a menor importância. Odeio os homens que trazem crucifixos do lado esquerdo do colete . Odeio as cerimó­nias do culto , as lamentações e a dolorosa imagem de Cristo oscilan­do ao lado de outra imagem dolorosa e oscilante . Odeio também a pompa, a indiferença e a ênfase sempre deslocada das pessoas que falam à luz dos candelabros , em trajes de cerimónia com estrelas e condecorações . Uma flor numa sebe , um pôr do sol invernal na ex­tensão dos campos , o modo como uma mulher está sentada no auto­carro , com as mãos nas ancas e um cesto ao colo - são coisas como essas que gostamos de mostrar um ao outro . É um grande alívio ter alguém a quem podemos chamar a atenção para qualquer coisa . Ou então com que se possa estar em silêncio . Ou com ele seguir as obs­curas veredas da mente e penetrar no passado, visitar livros, afastar os seus ramos e colher os frutos . E tu pegas nesses frutos e acha-los belos . E eu acho-te belo a ti , maravilham-me os movimentos descui­dados do teu corpo , a tua naturalidade , a energia com que abres as janelas e a habilidade das tuas mãos . Porque , ai de mim, o meu espí­rito está enfermo, depressa se cansa. Caio como um corredor ao pé da meta, repleto de suor, talvez repelente .

É triste reconhecê-lo , mas eu seria incapaz de cavalgar na Índia, com a cabeça coberta por um capacete , ou de regressar à noite a um bungalow. Não sou capaz de dar, como tu , cambalhotas na ponte de um navio , nem fazer como os rapazes seminus que brincam molhan­do-se com as mangueiras . Tenho necessidade deste fogo , desta larei­ra . Tenho necessidade de alguém que se sente junto de mim depois de um longo dia repleto de angústias , atenções , esperas e dúvidas . Depois de tantas zangas e reconciliações , preciso de intimidade , de poder ficar a sós contigo para introduzir ordem nesta confusão. Sim, porque nos meus hábitos sou polido como um gato . Precisamos de nos opor ao desperdício e à fealdade do mundo, às multidões que circulam em torrentes que se espezinham. Devemos deslizar, com precisão e suavidade , colocar estiletes no meio dos romances e atar cuidadosamente maços de cartas com uma fita de seda verde e varrer com uma escova as cinzas da lareira . Nenhum esforço deve ser pou­pado para afastar de nós o horror da fealdade . Precisamos de ler es­critores de virtude e severidade romanas ; procuremos a perfeição nas

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areias do deserto . Sim, mas gosto de deixar escapar a virtude e a severidade dos nobres romanos sob a luz cinzenta dos teus olhos , tal como a erva ondulante , as brisas do verão , os risos e os gritos dos rapazes brincando nus no convés do navio , molhando-se uns aos outros com a água das mangueiras . Ao contrário de Louis, não pro­curo desinteressadamente a perfeição nas areias do deserto . Há sem­pre uma mancha de cor para macular uma página. As sombras das nuvens passam sobre ela. E percebo que o poema é feito do som da tua voz . Alcibíades , Ájax , Heitor e Percival também se confundem contigo . Todos gostavam de longas cavalgadas , arriscavam destemi­damente as vidas e nenhum deles possuía uma grande cultura . Mas tu não és nem Ájax nem Percival . Eles não franziam o nariz nem esfregavam a testa com esse gesto que só a ti pertence . Tu és tu . É

isso que me consola da falta de muitas coisas (sou feio e frágil) da depravação do mundo , da juventude que me foge , da morte de Per­cival , da amargura, dos rancores e das incontáveis invejas .

Mas se um dia não vieres depois do pequeno-almoço , se algum dia te vir num espelho a olhar outro homem, se o telefone tocar inutil­mente no teu quarto vazio , então , depois de angústias indizíveis -pois não tem limites a loucura do coração humano - procurarei e encontrarei outro ser que sejas tu . Entretanto , vamos abolir com um simples gesto o tiquetaque do relógio do tempo. Chega-te para mais perto de mim.

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O Sol declinara no horizante . As ilhas de nuvens haviam-se feito

mais densas e deslizavam diante do sol. Os rochedos tornavam-se

subitamente sombrios . O trémulo cardo marinho passava de azul a

prateado e sombras impelidas pelo vento deslizavam sobre o mar

como pedaços de tecido cinzento . As ondas já não atingiam as poças

mais distantes, nem alcançavam a linha negra que estendia o seu

traçado irregular sobre a praia . A areia tinha uma cor de pérola,

suave e brilhante .

Os pássaros volteavam em pleno céu . Alguns deslizavam veloz­

mente nos corredores de vento, giravam e separavam-se como se

fossem mil fragmentos de um mesmo corpo. Tombavam do cimo das

grandes árvores como uma rede . Um deles voou solitariamente em

direção aos campos e pousou numa estaca branca, abrindo e fe­

chando as asas .

No jardim, algumas pétalas tinham caído . Repousavam sobre a

terra como conchas . A folha morta já não jazia na beirada; o vento

apoderara-se dela, elevando-a e deixando-a cair e tinha-a largado

junto de um silvado . Em todas as flores passava a mesma onda de

luz, num repentino frémito e esplendor, como se uma barbatana fen­

desse o verde cristal de um lago . Às vezes uma forte rajada de vento

fazia balouçar simultaneamente as inumeráveis folhas; depois,

quando o vento passava, cadafolha recuperava a sua identidade . Os

claros discos das flores brilhavam ao sol; afastavam-se da luz ao

serem agitadas pelo vento e algumas cabeças demasiado pesadas

para voltarem a erguer-se ficavam ligeiramente inclinadas .

O sol da tarde aquecia os campos, azulava as sombras, averme­

lhava o trigo . Os campos brilhavam ao sol como se tivessem sido

envernizados . Uma carroça, um cavalo, um bando de gralhas, tudo

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o que se movia sob a luz do sol parecia banhado em ouro . A o mo­

verem as patas, as vacas provocavam ondulações de ouro averme­

lhado e os seus chifres pareciam revestidos de luz . Feixes de trigo

louro jaziam nas sebes, perdidos pelos carros baixos e primitivos

que chegavam dos campos . As nuvens arredondadas rolavam no

céu sem perderem sequer um átomo da sua forma . Ao passarem

numa aldeia, colhiam-na por inteiro na sua rede de sombras e ao

afastarem-se deixavam-na de novo livre . Longe, muito longe no

horizonte , entre milhões de grãos de poeira de um azul-cinza, via­

-se arder um vidro ou destacar-se a silhueta solitária de um cam­

panário ou de uma árvore .

As cortinas vermelhas e as persianas brancas agitavam-se emba­

tendo no rebordo da janela e a luz que entrava em convulsões irre­

gulares tinha um tom acastanhado e um certo ar de abandono ao

passar pelas cortinas atormentadas pelo vento . Dava um tom acas­

tanhado a um armário, avermelhava uma cadeira e fazia a janela

ondular no flanco do jarro verde .

Por um instante tudo vacilou, tudo mergulhou numa atmosfera de

ambígua incérteza, como se uma grande mariposa flutuando no

quarto tivesse ensombrecido com as suas asas trementes a imensa

solidez das cadeiras e das mesas .

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- E o tempo , disse Bernard , esgota-se . A gota forma-se no te­lhado da nossa alma e depois cai . É o tempo que a faz cair. Na se­mana passada, quando me barbeava, a gota caiu . Estava de pé com a navalha de barbear na mão e de repente tomei consciência da natureza habitual desse meu gesto (a gota formando-se) e felicitei ironicamente as minhas mãos por se submeterem a esta rotina . «Barbeiem, barbeiem» , disse . Continuem a barbear. A gota caiu . Durante o dia , enquanto trabalhava, o meu pensamento escapou constantemente dirigindo-se a um lugar vazio em busca de qual­quer coisa perdida, de qualquer coisa que acabara . «Morto e enter­rado» , murmurei , consolando-me com as palavras . As pessoas re­pararam no meu ar ausente e na inconsequência das minhas frases . E enquanto abotoava o sobretudo para regressar a casa disse mais tragicamente : «Perdi a minha juventude .»

É estranho verificar que em cada crise que atravesso , aparece sem­pre uma frase incongruente que insiste em vir em meu socorro (é o castigo por se viver numa velha civilização e possuir um caderno onde anoto frases) . Esta gota que está a cair nada tem a ver com a minha juventude perdida. A queda desta gota é o tempo adelgaçando-se até formar um ponto . O tempo, esse prado ensolarado em que dança uma luz, o tempo, essa extensão plana como um campo ao meio-dia, come­ça a inclinar-se . Adelgaça-se até formar um único ponto . O tempo escoa-se , como se escoa o líquido para fora do vaso, deixando ficar um depósito . Estes são os verdadeiros ciclos , os verdadeiros acontecimen­tos da minha vida. Pois , como se toda a luminosidade da atmosfera refluísse subitamente como uma vaga, vejo o fundo das coisas tal co­mo ele é. Vejo tudo aquilo que os hábitos recobrem. Preguiçosamente , deixo-me ficar na cama dias inteiros . Janto fora e fico com a boca

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aberta como um bacalhau. Não me dou ao trabalho de terminar as frases , e os meus atos , em geral muito imprecisos, adquirem uma pre­cisão mecânica. Desta vez , ao passar por uma agência de viagens , entrei e , com gestos de autómato , comprei um bilhete para Roma.

Agora estou sentado neste banco de pedra, nestes jardins , contem­plando a cidade eterna. O homenzinho que fazia a barba em Londres há cinco dias já tem a aparência de velhas roupas abandonadas . A própria Londres se afundou. Londres é um amontoado de fábricas arruinadas e de gasómetros . E, no entanto , não me sinto envolvido por este cenário . Vejo os padres com as suas faixas cor de violeta e as amas de roupas pitorescas . Só sou sensível ao lado exterior das coi­sas . Estou sentado neste banco como um convalescente , como um homem muito simples que só conhece palavras de uma sílaba. «Ü sol está quente» , digo . «Ü vento está frio .» Sinto-me arrastado como um inseto pelo movimento da terra e , aqui sentado , ia jurar que sinto o seu movimento de rotação e a sua dureza. Não tenho o menor desejo de seguir uma trajetória contrária à da Terra. Se pudesse prolongar esta sensação por mais seis polegadas , pressinto que poderia alcançar algum estranho território . Mas pareço-me com um elefante cuja trom­ba fosse demasiado curta . Nunca desejei prolongar estes estados de desprendimento . Não gosto deles; desprezo-os . Não quero ser como o homem que passa cinquenta anos sentado no mesmo sítio olhando o umbigo . Prefiro ser atrelado a uma carroça de legumes que chocalha nas pedras irregulares da calçada.

A verdade é que não sou uma dessas pessoas que encontram satis­fação na posse de um único ser ou no infinito . O meu quarto aborrece­-me , mas o céu também. O meu ser só cintila quando as suas diversas facetas estão expostas a numerosos olhares . Se eles me faltam, fico cheio de buracos como um papel queimado . «Ah, Mrs . Moffat, Mrs . Moffat, venha limpar isto . Muitas coisas se desprenderam de mim. Superei alguns desejos . Perdi amigos - alguns por morte como Per­cival , outros por simples incapacidade para atravessar a rua. Não sou tão dotado como outrora parecia. Algumas coisas estão fora do meu alcance . Nunca conseguirei compreender os árduos problemas da fi­losofia. Roma é o limite das minhas viagens . Às vezes , de noite , antes de adormecer, penso dolorosamente que nunca verei os indígenas do Taiti pescar com uma lança à luz da tocha, nem um leão saltar na

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selva, ou um homem nu a comer carne crua. Nunca aprenderei russo nem lerei os Vedas . Nem voltarei a bater com a cabeça num candeei­ro (mas algumas estrelas projetadas pela violência desse choque bri­lham ainda na noite) . Creio , porém, ter-me aproximado um pouco mais da verdade . Durante anos repeti com complacência: «OS meus filhos . . . a minha mulher. . . a minha casa . . . o meu cão» . Ao meter a chave na fechadura, deixava-me levar por essa familiar liturgia e en­volvia-me nela como num cobertor quente . Agora esse doce véu caiu . Agora nada quero possuir. (Nota: uma lavadeira italiana iguala em elegância a filha de um duque inglês .)

Mas consideremos as coisas mais de perto . A gota cai . Uma nova etapa foi franqueada. Uma etapa vem a seguir a outra. E por que razão haveriam as etapas de terminar? Aonde conduzem? A que conclusão levam? A verdade é que esses momentos da nossa vida surgem envol­tos em vestes solenes . Confrontados com estes dilemas , os devotos consultam estes cavalheiros de faixas roxas e aparência sensual que passam em rebanho diante de mim. Mas eu desconfio dos mestres . Se um homem se ergue e diz: «Aqui está a verdade !» , imediatamente vejo um gato de pelo cor de areia roubando um peixe. E digo: «Ouça, o senhor esqueceu-se do gato .» Era por causa disso que Neville , na obs­cura capela do colégio, ficava furioso com o crucifixo do reitor. Mas a mim um gato basta para me distrair, ou a abelha que zumbe em volta do ramo de flores que Lady Hapton mantém apertado contra o nariz . Imediatamente imagino uma história para arredondar as arestas do crucifixo . Inventei milhares de histórias ; enchi inumeráveis cadernos com frases que utilizarei quando encontrar a verdadeira história, a his­tória em que todas essas frases estão contidas . Mas ainda não a encon­trei . E começo a interrogar-me se realmente as histórias existem.

Do alto deste terraço contemplo o formigueiro humano , a ativi­dade , o clamor. Aquele homem não consegue fazer andar a sua mula. Meia dúzia de ociosos cheios de boa vontade oferecem-lhe os seus serviços . Outros passam sem olhar. A vida tem tantos inte­resses como cabelos existem numa madeixa . Vejamos a extensão do céu onde rolam pequenas nuvens brancas e redondas . Imagine­mos as léguas de terra plana, os aquedutos , as calçadas romanas de lajes quebradas e as pedras tumulares da Campagna e mais além o mar e depois mais terra e outra vez o mar. Poderia destacar um

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pormenor desta paisagem - o carro arrastado pela mula , por exemplo - e descrevê-lo com a maior facilidade . Mas de que vale descrever um homem que tem problemas com a mula? E também podia inventar histórias sobre a rapariga que sobe as escadas . «Ela encontrou-o sob a arcada sombria.» «Tudo está terminado , disse ele , afastando-se da gaiola onde estava o papagaio de porcelana.» Ou apenas : «É tudo .» Mas porque impor o meu arbitrário desígnio? Porque salientar isto , moldar aquilo e construir figurinhas seme­lhantes aos brinquedos que certos homens vendem nas ruas? Por­que escolher, no meio de tudo , um pormenor?

Aqui estou a arrancar uma das minhas peles , uma das minhas vi­das , e tudo o que os meus amigos dizem é: «Ü Bernard está a passar dez dias em Roma.» Aqui estou a passear por este terraço , sozinho e desorientado . Mas reparem como, à medida que caminho , os pontos e os traços se fundem em linhas contínuas , como as coisas vão per­dendo o aspeto nu e desgarrado que tinham quando subi estas esca­das . O grande vaso vermelho é agora uma mancha avermelhada nu­ma onda de verde e amarelo . O mundo começa, recomeça a fugir diante de mim como as sebes quando o comboio se põe em marcha, ou as ondas do mar quando o navio avança. Também eu me movo e começo a interessar-me pela geral sequência das coisas e parece-me inevitável que depois de uma árvore surja um poste de telégrafo e depois uma abertura na sebe . E, enquanto avanço, rodeado , incluído e participante , as frases habituais começam a brotar e sinto desejos de abrir a escotilha no alto da minha cabeça para que essas bolhas sejam libertadas e de dirigir-me àquele homem cujas costas me são familiares . Estivemos juntos no colégio . Não tenho dúvidas de que nos reconheceremos , almoçaremos juntos e conversaremos . Mas é melhor esperar, é melhor esperar um momento .

Estes momentos de fuga não devem ser desprezados . São dema­siado raros . O próprio Taiti parece possível . Debruçado neste para­peito avisto uma grande extensão de água. Uma barbatana surge . Esta simples impressão visual não está ligada a nenhum raciocínio , surge por si , como quando alguém avista a barbatana de golfinho no horizonte . Muitas vezes as impressões visuais transmitem breves manifestações que no futuro seremos capazes de desvendar e de for-

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mular em palavras . Por isso anoto na página do B : «Barbatana numa extensão de água.»

Eu , que passo a vida a cobrir de notas a margem da minha memó­ria, com a intenção de as utilizar numa comovente descoberta final , escrevi estas palavras a pensar numa noite de inverno.

Agora vou-me embora e almoçarei em qualquer sítio. Vou erguer o copo e olhar através do vinho, com um alheamento maior do que me é habitual e se uma mulher bela entrar no restaurante e avançar entre as mesas vou dizer para mim mesmo: «Olha como ela chega atravessando a extensão das águas .» Uma tal observação não tem qualquer sentido , mas para mim é solene , cinzenta, como o ruído fatal dos mundos que se desmoronam e das águas precipitando-se para a sua destruição .

Por isso , Bernard (invoco-te , companheiro habitual dos meus em­preendimentos) , comecemos este novo capítulo e observemos a for­mação de uma nova gota, experiência desconhecida, estranha, total­mente inclassificável e aterrorizadora. Sim, aquele homem chama-se Larpent.

- Nesta tarde quente , disse Susan , no meio deste jardim, onde caminho com meu filho , atingi o ponto culminante dos meus desejos . Os gonzos da porta estão enferrujados: rangem quando o meu filho os empurra. As violentas paixões da minha infância, as lágrimas no jardim quando Jinny beijou Louis , as raivas na sala de aula que chei­rava a pinho , a solidão em estranhos países - onde as mulas se aproximavam fazendo ressoar os cascos pontiagudos e as mulheres italianas , com xailes e um cravo no cabelo , conversavam junto das fontes - foram compensados por esta sensação de segurança, posse e vida familiar. Atravessei anos de paz e fecundidade . Possuo tudo o que vejo. Das sementes que lancei à terra vi crescer árvores . Construí tanques em que os peixes dourados se ocultam sob as grandes folhas dos nenúfares. Tratei dos canteiros de morangos e alfaces e cobri com pequenos sacos brancos as peras e as ameixas , para as proteger das abelhas . Vi os meus filhos e as minhas filhas , outrora deitados no seu berço como frutos , romper os invólucros e caminhar a meu lado , mais altos que eu , projetando sombras na relva.

Estou enraizada aqui , plantada como uma das minhas árvores . Digo «meu filho» , digo «minha filha>> , e até o dono da loja das ferragens , erguendo o olhar do balcão repleto de pregos , tinta e arame para cer-

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cas , respeita o nosso velho carro parado à sua porta, com as redes para caçar borboletas , almofadas e cortiços . Pelo Natal pomos azevinho por cima do relógio , pesamos amoras e cogumelos e contamos as nossas tigelas de geleia. E todos os anos nos colocamos junto do postigo da janela da sala para medirmos a nossa altura. Também preparei , para os enterros , coroas de flores brancas entrançadas com plantas de folhas prateadas , juntando-lhes um cartão em que exprimo a minha dor pelo desaparecimento do pastor, ou a simpatia pela viúva do cocheiro; e sentei-me à cabeceira de mulheres moribundas que me seguravam na mão confessando os últimos terrores ; frequentei quartos cuja atmosfe­ra seria irrespirável para quem não tivesse nascido onde eu nasci e desde muito nova não tivesse sido habituada aos currais , aos �ontões de estrume, às galinhas entrando e saindo e a ver uma mãe com dois quartos e os filhos a crescer. Vi janelas cobertas de vapor quente e conheço o cheiro das bancas da cozinha.

E agora, de pé entre as minhas flores , com uma tesoura na mão , pergunto-me por que fenda poderia a sombra entrar na minha vida, que choque poderia abalar esta obra construída com o meu pacien­te labor. E, no entanto , às vezes sinto-me farta de tanta felicidade natural , dos frutos que amadurecem, das crianças que enchem a casa de remos , armas , caveiras e livros que receberam como pré­mios . Estou cansada do meu corpo , cansada do meu trabalho , da minha energia e das minhas artimanhas , da minha maternal falta de escrúpulos quando se trata de proteger os meus filhos , de ser a mãe que reúne sob o olhar ciumento , em volta de uma grande mesa, os seus filhos , sempre seus .

Quando chega a primavera, fresca, chuvosa e com inesperadas flores amarelas , acontece lembrar-me do passado, enquanto verifico se a carne foi arrumada e manejo os sacos prateados de chá e uvas passas . Lembro-me de como nascia o Sol , do voo das andorinhas ra­sando a erva e recordo as frases que Bernard construía quando éramos crianças e as folhas inumeráveis e leves se agitavam sobre as nossas cabeças fragmentando o azul do céu e espalhando sombras e luzes errantes nas raízes das faias onde eu me sentava soluçando . A pomba levantava voo . E eu saltava e corria atrás das palavras que escapavam, deslizando de ramo em ramo como o fio de um balão . Depois , como um vidro que se estilhaçasse , a imobilidade da manhã quebrava-se e ,

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pousando os sacos de farinha, eu pensava. «A vida está à minha volta como o vidro em tomo dos juncos aprisionados .»

Com a tesoura corto malvas-rosa, eu , que fui a Elverdon, pisei bolotas apodrecidas e vi a senhora sentada a escrever e os jardineiros com enormes vassouras . Salvámo-nos , ofegantes , com medo que disparassem sobre nós e nos pregassem nas portas como arminhos . Agora meço e guardo . À noite , sento-me na minha poltrona e esten­do a mão para a costura; ouço o meu marido roncar; ergo a cabeça quando as luzes de um carro iluminam as vidraças e sinto que as ondas da vida se erguem e quebram à minha volta como no tronco de uma árvore; ouço gritos e vejo outras vidas flutuarem como peda­ços de palha à volta de pilar de uma ponte , enquanto eu empurro a agulha para dentro e para fora, costurando o tecido .

Às vezes penso em Percival , que me amou. Caiu do cavalo na Índia. Às vezes penso em Rhoda. Inquietantes gritos despertam-me no mais fundo da noite . Mas , em geral , passeio alegremente com os meus filhos . Corto as folhas mortas das malvas-rosa. Um pouco gor­da, de cabelos prematuramente grisalhos , mas com os olhos claros , olhos em forma de pera, atravesso os meus campos .

- Aqui estou , disse Jinny, nesta estação de metro em que conflui tudo o que é desejável: Piccadilly South Side, Piccadilly North Side, Regent Street e Haymarket. Por um instante , mantenho-me imóvel , sob a terra, no coração de Londres . Inúmeros automóveis passam e inúme­ros passos deslizam por cima da minha cabeça. As grandes avenidas da civilização cruzam-se aqui , antes de prosseguirem o seu caminho . Es­tou no coração da vida. Mas ali está o meu corpo refletido num espe­lho ! Como está solitário, encolhido , velho ! Já não sou jovem. Já não participo na procissão . Milhões de seres humanos descem todos os dias estas escadas numa fila interminável . Grandes rodas empurram-nos inexoravelmente para baixo . Milhões de seres humanos morreram. Percival morreu. Eu ainda estou viva. Mas quem virá, se fizer sinal?

Sou um pequeno animal com os flancos agitados pelo medo, aqui de pé , trémulo e palpitante . Mas não cederei ao medo . Fustigarei os meus próprios flancos . Não sou um animalzinho que, a gemer, procu­ra o abrigo de uma sombra. Só fraquejei um instante, porque me vi ao

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espelho sem ter tempo de me preparar, como sempre faço quando me submeto ao exame do meu olhar. É verdade; já não sou jovem. Não tardará o momento em que levantarei o braço em vão e a minha echar­pe cairá sem ter flutuado . Não ouvirei inesperados suspiros na noite , nem adivinharei na obscuridade alguém que se aproxima. A minha imagem já não se refletirá nos vidros das janelas ao atravessar túneis sombrios . Olharei rostos e verei que eles procuram outros rostos . Devo confessar que , por um instante , o silencioso voo dos corpos d�scendo pela escada-rolante , semelhante à descida compacta e terrível dos mortos para as profundezas da terra, e o ruído das grandes máquinas empurrando-nos implacavelmente para a frente, me atemorizou e me fez sentir desejos de fugir em busca de um abrigo.

Mas agora, efetuando deliberadamente diante do espelho os leves preparativos de que preciso , sei que não vou ter medo . Penso nos magníficos autocarros vermelhos e amarelos , que param e se põem em marcha, pontualmente , em perfeita ordem. Penso nos poderosos e belos automóveis que podem ir a passo ou voar como flechas . Pen­so nos homens e nas mulheres equipados , preparados e seguindo em frente . É uma procissão triunfal , o exército vitorioso, com bandeiras e águias de bronze e cabeças com coroas de louro ganhas em bata­lhas . São melhores que os selvagens com um tecido em volta da cintura e as mulheres desgrenhadas de grandes peitos oscilantes a que as crianças se agarram. Estas largas avenidas - Piccadilly Sou­th , Piccadilly North , Regent Street e Haymarket - são os arenosos caminhos da vitória abertos através da selva. Também eu , com os meus sapatos de verniz, o meu lenço de gaze , os lábios vermelhos e as sobrancelhas finamente traçadas , avanço para a vitória.

Mesmo aqui , debaixo da terra, existem roupas perpetuamente ilu­minadas . Não permitem que a terra se mantenha húmida e cheia de vermes . Há gazes e sedas nas montras iluminadas e roupa interior adornada com milhões de pontos de fino bordado . Estão tingidas de vermelho, de verde , violeta, de mil cores . Penso nos trabalhos dos homens , no modo como organizam, aplanam, pintam e abrem túneis fazendo saltar as rochas . Os ascensores sobem e descem, os com­boios param e voltam a partir com a regularidade das ondas do mar. Aprovo esta ordem. Pertenço a este mundo , sigo sob a sua bandeira . Como posso fugir em procura de um abrigo se esta gente é tão ma-

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ravilhosamente aventureira, audaciosa, curiosa também, e tem até a força suficiente para parar e gravar na parede , com mão despreocu­pada, uma frase cheia de humor? É por isso que vou passar pó de arroz na cara, pintar de vermelho os lábios e traçar para as sobrance­lhas um ângulo mais agudo do que é normal . Vou subir à superfície e ficar muito direita e imóvel , ao lado dos outros , em Piccadilly Circus . Chamarei um táxi com um gesto rápido e a vivacidade do motorista vai mostrar-me que entendeu o meu sinal . Porque ainda sou capaz de excitar o zelo . Ainda sinto na rua o frémito dos homens , semelhante à silenciosa inclinação dos campos de trigo quando uma brisa ligeira os percorre em ondulações douradas .

Irei para casa de táxi . Encherei as jarras com abundantes , luxuosas e estranhas flores , de grandes caules inclinados . Vou mudar a dispo­sição das cadeiras . Vou colocar ao alcance da mão cigarros , copos e um livro novo , ainda por ler, com uma capa de cores vivas , para o caso de chegar Bernard, Neville ou Louis . Mas talvez quem chegue não seja Bernard, Louis ou Neville , mas um desconhecido , alguém com quem me cruzei nas escadas e a quem murmurei voltando ligei­ramente a cabeça: «Vem.» Esta tarde virá alguém que não conheço . Que o silencioso exército dos mortos desça às profundezas da terra. Eu marcho em frente .

- Agora já não preciso de me refugiar no quarto, diante do fogo , entre quatro paredes , disse Neville . Já não sou jovem. É sem qual­quer emoção que passo diante da casa de Jinny e sorrio para o jovem um tanto nervoso que , à porta, ajeita o nó da gravata. Deixemos que este elegante jovem toque a campainha e se encontre com Jinny. Estarei com ela se desejar; caso contrário , seguirei adiante . O antigo ácido perdeu a sua força; a inveja, a amargura e a intriga abandonaram­-me . Perdi também o esplendor. Quando éramos jovens , sentávamo--nos em qualquer sítio , em bancos de madeira de vestíbulos atraves-sados de correntes de ar e com portas sempre a bater. Perseguíamo-nos de mangueiras na mão , seminus , na coberta dos navios . Agora, sou capaz de jurar que prefiro esta gente , unânime, inúmera e indiscrimi­nada, jorrando do metro ao fim de um dia de trabalho . Já fiz a minha colheita. Olho o mundo sem paixão .

Afinal de contas , não somos responsáveis . Não somos juízes . Não somos chamados a torturar o próximo com ferros incandescentes e

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tomiquetes. Não somos obrigados a subir a púlpitos e fazer sermões nas pálidas tardes de domingo. É preferível olhar uma rosa ou ler Shakespeare tal como eu o estou a ler, aqui em Shaftesbury. Aqui está o bobo, ali o vilão e mais além vejo o carro em que vem Cleópatra e mais parece um barco magnífico. Vejo também as figuras dos conde­nados , aos homens sem nariz encostados ao posto da polícia, gritando, num inferno de chamas . Toda a poesia está aqui , embora não esteja escrita. Todas as personagens interpretam os seus papéis sem se enga­narem uma única vez. E mesmo antes de moverem os lábios sei o que vão dizer e espero o momento sublime em que pronunciarão a palavra que deve ser escrita. Se as coisas dependessem apenas deste espetácu-lo, percorreria eternamente a avenida Shaftesbury. .

Depois deixo a rua, entro numa sala e encontro pessoas que falam ou que nem sequer se dão ao trabalho de falar. Os homens e as mulheres serviram-se tantas vezes da linguagem para exprimir coisas , que cada palavra se transformou numa alavanca capaz de erguer o mundo. As discussões , os risos , os velhos agravos flutuam no ar tomando-o mais denso . Seguro num livro e leio meia página ao acaso. Ainda não con­sertaram o bule . A rapariguinha dança vestida com as roupas da mãe .

É então que um espírito austero e atormentado , Rhoda ou talvez Louis, entra e volta a sair. No espetáculo procuram o enredo, a expli­cação lógica. Não lhes basta esta cena normal e corrente . Não lhes basta esperar o momento em que alguém pronuncie a palavra que deveria estar escrita. Não lhes basta ver uma imagem tomar forma através da argila da palavra; nem reparar, de súbito , num grupo re­cortado contra o céu . Mas se é a violência que procuram, devo dizer­-lhes que sei que uma simples sala pode conter a morte , o crime e o suicídio . As pessoas entram e saem. Alguém soluça na escada. Vi os nós formarem-se e ouvi os fios romperem-se e o silencioso bordar da cambraia no colo de uma mulher. Porque procurar uma explicação, como Louis , ou , como Rhoda, fugir para alguma floresta distante e afastar as folhas do loureiro em busca de estátuas? Dizem-nos que é preciso voar com força, desafiando a tempestade e acreditar que o Sol brilha para lá das nuvens sombrias : mas o Sol reflete-se também nos tanques rodeados de salgueiros (estamos em novembro e os po­bres seguram caixas de fósforos nos dedos repletos de frieiras) . Dizem-nos que lá se pode encontrar a verdade em toda a sua pleni-

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tude e que a virtude que aqui se arrasta por sórdidas ruelas pode ser lá vista em toda a perfeição . Rhoda foge para longe de nós , de pes­coço estendido e olhar alucinado . Louis , agora tão opulento , debru­ça-se da janela do sótão e olha o local onde Rhoda desapareceu sobre os telhados arruinados . Mas depois tem de sentar-se , entre máquinas de escrever e telefones e trabalhar no meio disso tudo para nos ins­truir, regenerar e reformar o mundo que há de vir.

Mas agora, nesta sala onde entrei sem bater, as palavras fazem parte de um poema que poderia ter sido escrito . Aproximo-me da estante dos livros . Posso , se o desejar, ler meia página de qualquer coisa. Não sinto necessidade de falar. Mas escuto . Estou maravilho­samente atento . É verdade que este poeta não é fácil de ler. Às vezes a página está suja de lama, rasgada e colada com ajuda de folhas secas e fragmentos de verbena e gerânio . Para ler este poeta é preci­so possuir miríades de olhos , como os faróis que à noite giram na agitada extensão dos mares , quando apenas um rasto de algas flutua à superfície e subitamente as ondas se abrem para deixar emergir o monstro . Para ler este poeta é necessário pôr de lado ódios e ciúmes e, sobretudo , não o interromper. É preciso ter paciência e infinitas cautelas e deixar que se difundam os sons mais leves , as patas da aranha delicadamente pousadas numa folha, ou a água que gorgoleja na mais insignificante das torneiras . Nada devemos rejeitar por hor­ror ou medo . O poeta que escreveu esta página (a que leio enquanto as outras pessoas falam) não é perfeito . Não sabe usar a vírgula, nem o ponto e vírgula. Alguns versos são excessivamente longos, outros completamente absurdos . Devemos ser céticos , mas também saber prescindir de todas as cautelas e aceitar o que surge quando a porta se abre . Às vezes é preciso chorar; outras afastar implacavelmente a fuligem e todo o género de excrescências . E é assim (enquanto eles continuam a conversar) que deixo a rede baixar cada vez mais , para em seguida a puxar cautelosamente e trazer à superfície o que estes homens e estas mulheres disseram, e com isso fazer um poema.

Ouvi as suas conversas . Já partiram e agora estou só . A simples contemplação do fogo seria suficiente para me fazer eternamente feliz . Umas vezes tem a aparência de uma cúpula, noutras a de um forno. Agora uma acha de lenha assume a forma de um cadafalso , de

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um poço, ou de um alegre vale . Agora é uma serpente escarlate en­rolada em escamas de prata . O fruto bordado na cortina amadurece no bico do papagaio . O crepitar do fogo é como o ruído dos insetos na floresta. Lá fora os ramos fustigam o ar e , de súbito , como uma salva de tiros , uma árvore tomba. São estes os ruídos de uma noite em Londres . Ouço depois o único som de que estou à espera. É o som de passos que sobem, se aproximam e hesitam diante da minha porta: «Entra. Senta-te a meu lado . Senta-te na beira da poltrona.» E depois , arrastado por uma alucinação antiga, grito: «Vem . . . Chega-te para mais perto de mim.»

- Regresso do escritório , disse Louis . Penduro o casaco e_ pouso a bengala - gosto de imaginar que Richelieu usava uma igual . Assim me despojo das insígnias da minha autoridade . Sentei-me à direita de um diretor, numa mesa envernizada. As paredes estavam decoradas de mapas que têm assinalados numerosos e bem-sucedidos empreen­dimentos. Com os nossos barcos enlaçamos o mundo . O globo terres­tre foi unido pelas nossas linhas de navegação . Sou um homem extre­mamente considerado . Quando entro no escritório, todos os jovens empregados reparam em mim. Agora posso jantar onde quiser e , sem vaidade, dizer que em breve poderei comprar uma casa no Surrey, dois automóveis , uma estufa de plantas e algumas espécies raras de melões . Mas ainda regresso às vezes ao meu quarto do sótão . Pendu­ro o chapéu e retomo solitariamente a tentativa que faço desde que bati com o punho na porta de carvalho do meu professor. Abro um pequeno livro . Leio um poema. Um poema basta.

Oh vento oeste . . .

Oh vento oeste , és o inimigo mortal da minha mesa de mogno , das minhas polainas e também, ai de mim, da vulgaridade da pequena atriz minha amante , que nunca conseguiu pronunciar corretamente o inglês .

Oh vento oeste, quando virás . . . .

Nem Rhoda, com a sua intensa abstração , com os seus distraídos olhos cor de caracol , te poderá destruir, vento oeste , quando chegas à luz das estrelas ou à hora mais prosaica do meio-dia. Fico de pé junto da janela, contemplando as chaminés e os vidros quebrados das janelas pobres .

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Oh vento oeste, quando virás . . .

A minha tarefa, o meu fardo, foram sempre maiores que o dos outros . Carrego uma pirâmide sobre os ombros . Tenho-me entregue a um trabalho colossal , dirigido uma equipa violenta, indisciplinada e corrupta. Com o meu sotaque australiano , frequentei restaurantes e procurei conquistar a simpatia dos empregados de escritório , sem esquecer as minhas severas convicções e as contradições e incoerên­cias que é preciso resolver. Criança, sonhei com o Nilo; recusei-me a despertar; e, no entanto , fui capaz de bater com o punho na porta de carvalho . Teria sido mais feliz se tivesse nascido sem destino , como Susan, ou como Percival , a quem admirava tanto .

Oh vento de oeste, quando virás

fazer a chuva miúda cair sobre a cidade?

Viver tem sido terrível para mim. Sou como uma ventosa, uma grande boca insaciável . Tentei arrancar a pedra alojada na carne viva. Quase não conheci a felicidade das coisas simples , apesar de ter es­colhido para amante uma pequena atriz que me deixa sentir à vonta­de com o seu sotaque suburbano . Mas a única coisa que esta amante me deixa é a sua roupa interior espalhada pelo quarto; e a mulher da limpeza e os miúdos que me batem constantemente à porta riem-se da minha aparência afetada e desdenhosa.

Oh vento de oeste, quando virás

fazer a chuva miúda cair sobre a cidade?

Como definir o meu destino , a pirâmide que durante anos pesou sobre os meus ombros? O meu destino é feito das recordações do Nilo e de mulheres transportando ânforas na cabeça; do sentimento de ser envolvido em longos verões que amadurecem o trigo e em invernos que gelam os ribeiros . Não sou um ser isolado e efémero . A minha vida não é a centelha de um momento , a luz que brilha na superfície de um diamante . Desço por tortuosos caminhos no interior da terra, como um carcereiro caminhando de cela em cela, com uma lamparina na mão . O meu destino consistiu em recordar, em procurar reunir os fios frágeis , espessos , quebrados , os resistentes fios da longa história humana, dos nossos dias tumultuosos e variados . Há sempre qualquer coisa de novo para compreender, uma dissonância para resolver, um erro para corrigir. Os telhados estão quebrados e cheios de fuligem, com as suas chaminés , as telhas soltas , os gatos furtivos e as claraboias

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dos sótãos. Caminho entre vidros estilhaçados e pedaços de telhas e só vejo em volta rostos vis e esfomeados .

Suponhamos que conseguia extrair um sentido de tudo isto , que era capaz de escrever um poema de uma só página e que morria logo a seguir. Posso garantir-vos que morreria sem me lamentar. Percival morreu. Rhoda deixou-me. Mas continuarei a viver para me converter num ser ressequido, rodeado do respeito de todos e atravessando a cidade com uma bengala de punho dourado . Mas talvez nunca morra e não alcance sequer essa continuidade e permanência que a morte dá.

Oh vento de oeste, quando virás

fazer a chuva miúda cair sobre a cidade

Percival era uma árvore de ramos floridos e foi colocado sob a terra com .os ramos murmurando ainda ao vento estival . Rhoda, com quem partilhava o silêncio no meio das palavras dos outros , Rhoda que se afastava quando o rebanho se reunia e galopava os dorsos lustrosos pelos campos , Rhoda afastou-se como o vento escaldante do deserto . Quando o sol faz estalar os telhados da cidade , penso em Rhoda. Penso nela também quando as folhas mortas rangem no chão; quando os velhos chegam com bengalas e trespassam pedaços de papel como nós trespassávamos os sentimentos de Rhoda.

Oh vento de oeste, quando virás

fazer a chuva miúda cair sobre a cidade?

Oh meu Deus! Se eu estivesse de novo deitado

segurando nos braços a minha amada!

Regresso ao meu livro . Faço uma nova tentativa. - Oh, vida como te receei , disse Rhoda, e como odiei os seres

humanos ! Como sofri com os vossos acenos e as vossas palavras que interrompiam os meus pensamentos , como me pareceram horríveis em Oxford Street e ignóbeis quando se sentavam no metro uns dian­te dos outros , olhando-se ! Agora, enquanto escalo esta montanha no cimo da qual verei a África, ainda guardo na memória os vossos rostos e a recordação de pacotes embrulhados em papel pardo . Cor­romperam-me e mancharam-me . E como cheiravam mal quando fa­ziam filas na rua para comprar bilhetes ! Todos estavam vestidos com indefinidos tons de cinza e castanho , sem uma só pluma azul no chapéu . Ninguém tinha a coragem de ser qualquer coisa de definido . E todos os dias a vida nos exigia a corrupção mais completa da alma,

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mil mentiras , mil reverências , disputas e o mais completo servilis­mo ! Prenderam-me a um ponto do espaço , a uma hora, a uma cadei­ra e sentaram-se diante de mim. Arrancaram os espaços brancos que estavam entre as horas , fizeram delas migalhas e lançaram-nos com as mãos sujas para o caixote do lixo . E, no entanto , esses espaços eram a minha vida. E apesar disso cedi , colocando a mão diante da boca para esconder os risos de troça e os bocejos . Recusei-me a sair para a rua e quebrei uma garrafa no chão para manifestar a minha fúria. Tremendo de ardor, fiz o possível por não mostrar a minha surpresa. Fazia o que os outros faziam. Se Susan e Jinny usavam as meias de um determinado modo, eu também usava. A vida era tão terrível que entrepunha entre mim e ela mil biombos . Olhei a vida através das pétalas das rosas e das folhas de videira. Olhei Oxford Street , Piccadilly e todas as ruas de Londres , com as cintilações do meu espírito , através das pétalas das rosas e as folhas de videira . Havia malas nos corredores quando as aulas terminavam. Aproxima­va-me delas furtivamente para ler as etiquetas e imaginar nomes e rostos . Harrogate ou talvez Edimburgo resplandeciam por uma rapa­riga, cujo nome esqueci , ter pisado as suas ruas . Mas só o nome das coisas me atraía . Deixei Louis . Tenho medo dos abraços . Tentei dis­simular o aço da lâmina com peles e lãs . Implorei ao dia que se transformasse em noite . Desejei ver o armário vacilar, sentir a cama amaciar-se sob o meu peso e flutuar, ver as árvores e os rostos alte­rados pela distância e uma mancha verde nas terras pantanosas onde duas pessoas desesperadas se dissessem adeus . Semeei palavras co­mo o camponês semeia o grão no campo lavrado . Desejei dilatar a noite para a encher de sonhos .

Foi então que, numa sala de concertos, afastei os ramos da música e olhei a casa que tínhamos construído; o quadrado estava colocado so­bre o retângulo . «A casa que tem todas as coisas» , disse , lutando com os ombros dos outros passageiros do autocarro no dia em que soube que Percival morreu. Mas , apesar disso , fui a Greenwich. Caminhei ao longo do cais , sonhando galopar eternamente nos limites do mundo, onde a vegetação não existe e apenas se avistam colunas de mármore . Lancei o meu ramo de flores na onda que se desfazia na praia. «Con­some-me, pedi , leva-me ao mais longínquo de todos os limites.» A onda refluiu . O ramo murchou . Só raramente penso em Percival .

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Agora escalo esta montanha em terras de Espanha. Vou imaginar que o dorso desta mula é o meu leito e que nele me deito , agonizan­te . Só um ténue farrapo me separa das profundezas sem fim. Sob a pressão do meu corpo desaparecem as saliências do colchão . Avan­çamos aos tropeções . O meu caminho foi sempre a subir em direção a alguma árvore solitária erguida junto de um tanque , bem no cimo de tudo . Naveguei nas águas da beleza à hora do crepúsculo , quando as colinas se fecham como asas dobradas de pássaros . Às vezes co­lho um cravo vermelho ou um punhado de feno perdido . Deitei-me sozinha sobre a erva, revolvi entre os dedos um velho osso abando­nado e pensei : - quando o vento soprar sobre estas colinas , talvez só encontre um punhado de pó .

A mula tropeça avançando sempre . O cimo da colina ergue-se , diante de mim, envolto em neblina; mas quando lá chegar verei a África. Agora a cama cede sob o meu corpo . Atravesso os lençóis queimados , repletos de orifícios amarelos . A bondosa mulher com rosto de cavalo branco que está junto da cama faz um gesto de des­pedida e volta-se disposta a partir. Quem me acompanhará? Flores , apenas flores , os bons-dias e os espinheiros da cor do luar. Com elas farei um ramo e uma grinalda. . . mas a quem a oferecer? Agora aventuramo-nos sobre os precipícios . Lá em baixo brilham as luzes dos barcos de pesca. Os rochedos desapareceram. Inumeráveis ondas cinzentas desdobram-se aos nossos pés . Em nada toco . Não vejo nada. Podemos cair e pousar sobre as ondas . O mar ressoará como um tambor nos meus ouvidos . As pétalas brancas ficarão obscureci­das pelas águas do mar. Flutuarão um instante antes de se afundarem. Uma onda há de arrastar-me; outra vai erguer-me no seu agitado dorso . Depois tudo desabará como uma gigantesca catarata em que me dissolvo .

E , no entanto , esta árvore tem ramos espinhosos e o telhado de uma cabana desenha uma linha nítida contra o céu . Estas coisas re­dondas pintadas de vermelho e amarelo são rostos . Pouso um pé no chão , dou um passo cauteloso e com a palma da mão bato na dura porta de uma pousada espanhola.

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O Sol baixava no horizonte . O dia estilhaçara-se como uma pedra

dura e a luz derramava-se pelas suas fendas . Como rápidas flechas

emplumadas de trevas, os raios vermelhos e dourados trespassavam

as ondas . Cintilações luminosas erravam no espaço como sinais de

ilhas que se afundavam ou dardos lançados através das folhas de um

loureiro por rapazes sorridentes e desavergonhados . Mas as ondas

revestiam-se de claridade quando se aproximavam da praia e desfa­

ziam-se com um ruído prolongado e surdo, como o de um muro de­

sabando, um muro de pedras cinzentas que nenhuma luz poderia

atravessar.

Uma brisa ergueu-se; um frémito percorreu as folhas que perde­

ram a sua compacta cor castanha, tornando-se cinzentas ou bran­

cas, quando a árvore se moveu, perdendo a forma de cúpula . O

falcão pousado no ramo mais alto bateu as pálpebras, elevou-se nos

ares e ficou a planar ao longe . A tarambola silvestre gemeu nas ter­

ras pantanosas, fugindo, traçando círculos e gritando cada vez mais

longe, na solidão . O fumo dos comboios e das chaminés subia no ar

e desfazia-se, convertendo-se em parte do dossel que parecia pairar

sobre o mar e os campos .

O trigo já fora ceifado . Agora, das suas ondulações, só restava aqui

e ali o restolho cintilante . Lentamente, uma enorme coruja pousada no

olmo balouçou-se e elevou-se numa sucessão de curvas até ao cimo

do cedro . Sombras lentas alargavam-se ou estreitavam-se ao passar

sobre as colinas . O charco no meio das terras pantanosas repousava

sem vida. Nenhum rosto hirsuto fitava a sua imagem, nenhum casco

chapinhava nele, nenhum focinho quente agitava as suas águas. Um

pássaro pousado num ramo cinzento bebeu um sorvo de água fria.

Não havia sons de colheitas, nem ruídos de rodas, mas apenas o ela-

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mor do vento enchendo as velas e varrendo as ervas . Um osso jazia

no solo, gasto pela chuva e esbranquiçado pelo sol, brilhando como

um ramo polido pelo mar. A árvore que na primavera se recobrira de

reflexos vermelhos e no verão deixava as folhas ondularem ao vento

sul estava agora negra e nua como o ferro .

O horizonte estava tão distante que já se não podiam ver os telha­

dos brilhantes e as janelas cintilantes . A terrível densidade da terra

envolta em sombras tinha absorvido esses frágeis grilhões, esses

obstáculos tão frágeis como as conchas dos caracóis . Subsistia ape­

nas a sombra líquida de uma nuvem, o ruído da chuva, um isolado

raio de sol ou a brusca aparição da tempestade . Nas colinas distan­

tes, as árvores erguiam-se como obeliscos .

O sol do entardecer, difuso e sem calor, dava suavidade às cadei­

ras e às mesas e marcava-as com losangos castanhos e amarelos .

Duplicados pelas próprias sombras os objetos pareciam mais pesa­

dos, como se a cor tivesse escorrido obliquamente para um dos la­

dos . As facas, os copos e os garfos davam a ilusão de ser mais lon­

gos, mais maciços, adquirindo um aspeto majestoso . Debruado no

seu círculo dourado, o espelho parecia olhar a cena como se a qui­

sesse fixar para a eternidade .

Entretanto, as sombras alongavam-se sobre a praia e a escuridão

aumentava . O velho sapato, de um negro cor de ferro, era agora

uma sombria mancha de azul. As rochas perdiam a sua dureza . A

água em volta do velho barco era negra, como se estivesse repleta

de mexilhões . A espuma tornara-se lívida e, aqui e ali, deixava bran­

cas cintilações de pérola na praia envolta em bruma .

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- Hampton Court, disse Bernard, Hampton Court. É este o local do nosso encontro. Aqui estão as chaminés em tijolo vermelho e os edifí­cios quadrados de Hampton Court. O modo como digo «Hampton Court» mostra que já sou um homem de meia-idade . Há dez ou quinze anos teria dito Hampton Court em tom interrogativo . Como será? Terá lagos e labirintos? Ou então em tom de expectativa: «Que me irá acon­tecer? Quem irei encontrar?» Agora digo «Hampton Court, Hampton Court» e as palavras ressoam como um gongo no espaço que com tanto trabalho abri com a ajuda de telefonemas e postais , ressoam so­noras e graves e as recordações surgem, entardeceres de verão , barcos , velhas senhoras segurando as saias , uma uma no inverno, narcisos silvestres em março, o passado . Tudo isso flutua à superfície das águas onde o passado está agora profundamente imerso .

Eles já ali estão - Susan, Louis , Rhoda, Jinny e Neville - parados à porta da pousada que é o nosso local de encontro . Já se encontraram. Dentro de um instante , logo que me reúna a eles , vai surgir uma nova ordem, uma outra configuração das coisas . O que agora cresce a esmo, a confusa abundância de recordações, em breve será comparado e fi­xado . Essa perspetiva desagrada-me. Ainda estou a cinquenta jardas de distância e já começo a sentir que a estrutura do meu ser se modifica. Sou arrastado para a frente pela atração de íman que o grupo exerce sobre mim. Aproximo-me. Ainda não me viram. Agora Rhoda avista­-me mas , tal é o seu medo da emoção provocada pelos encontros, que não me reconhece . De súbito Neville volta-se na minha direção . Aceno-lhe e penso: «também eu sequei flores entre as páginas dos sonetos de Shakespeare» . E sinto-me invadido por uma grande agita­ção . O meu frágil barco balança inseguro nas ondas encapeladas . Nada pode evitar (preciso tomar nota disso) a emoção dos encontros .

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E é também incómodo juntar arestas desiguais e sensíveis ; só pou­co a pouco , à medida que entramos na pousada arrastando os pés e retiramos os chapéus e os casacos , é que o encontro se vai tomando agradável . Estamos agora na enorme sala de jantar de paredes nuas , de cujas janelas se avista um parque , uma extensão verde onde per­siste a luminosidade fantástica do pôr do sol e as árvores parecem separadas por faixas douradas . Sentamo-nos em volta da mesa.

- Agora, aqui sentados uns ao lado dos outros , disse Neville , em tomo desta mesa estreita, o que é que sentimos? O que sentimos antes da primeira emoção do nosso encontro se desvanecer? Sinceramente , sem quaisquer rodeios , como convém a velhos amigos que tiveram imenso trabalho para se reunirem, que sentimos? Tristeza. A porta não se abrirá; Percival nunca mais estará connosco . E todos carregamos os nossos fardos . Atingimos o meio da vida e o seu peso depositou-se sobre os nossos ombros . Alijemos essa carga ! Perguntamos uns aos outros o que fizemos com as nossas vidas . Bernard? Susan? Rhoda? E Louis? As listas foram afixadas na porta. Antes de partirmos os pãezinhos e nos servirmos de peixe e salada, tateio nos bolsos em busca das credenciais que trago sempre comigo para provar a minha superioridade . Fui aprovado . Tenho nos meus bolsos papéis que o demonstram. Mas os teus olhos , Susan , repletos de campos de trigo , perturbam-me. E estes papéis que trago nos bolsos , o demonstrativo clamor de que fui aprovado, emitem agora apenas um fraco murmú­rio , semelhante ao que um homem faz num campo vazio , batendo as palmas para afastar as gralhas . Mas até esse frágil som desapareceu sob o olhar de Susan , e ouço apenas o vento correndo as terras lavra­das e um canto de ave , talvez o de uma cotovia embriagada. O em­pregado já terá ouvido falar de mim? Conhecer-me-ão esses eternos e furtivos amantes que olham as árvores dos jardins , ainda não sufi­cientemente sombrias para servir de abrigo aos corpos abraçados? Não, o som das palmas não os alcançou .

Mas que resta então , se não posso tirar as minhas credenciais e lê-las em voz alta para vos provar que fui aceite? A única coisa que permanece é o que Susan revela com o ácido dos seus olhos verdes , os seus cristalinos olhos em forma de pera. Quando nos reunimos e são ainda visíveis os nossos desencontros , há sempre alguém que se recusa a ser submergido; alguém cuja identidade sentimos desejo de

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esmagar. Neste momento , para mim, é esse o caso de Susan. Falo para impressionar Susan . Ouve-me Susan .

Quando alguém que amo chega a minha casa à hora do pequeno­-almoço, até a fruta bordada nas cortinas parece amadurecer para que os papagaios a possam debicar: podemos arrancá-la com uma sim­ples pressão dos dedos . O fino e desnatado leite da manhã toma-se azul , rosa e opalino . A essa hora, o teu marido - o homem que bate nas polainas com o chicote com que aponta uma vaca estéril - gru­nhe . Tu nada dizes ou vês . O hábito cega-te . A essa hora a tua relação com os outros é muda, silenciosa e cinzenta. As minhas são variadas e ardentes . Desconheço a rotina. Cada dia encerra os seus perigos . Suaves à superfície , estamos por dentro repletos de vértebras , como as serpentes enroscadas . Lemos o Times; ou discutimos sobre uma coisa qualquer. É uma experiência nova. Se é inverno, a neve cai em flocos sobre o telhado e ficamos encerrados numa caverna vermelha. O gelo faz rebentar os canos . Colocamos uma banheira esmaltada a meio do quarto . Corremos atabalhoadamente em busca de mais reci­pientes . Repara ! O cano rebentou outra vez mesmo por cima da es­tante dos livros. Gritamos e rimos às gargalhadas diante do desastre . Que nos importa que a solidez seja destruída? Não sentimos o dese­jo de posse . Se é verão , passeamos na margem de um lago contem­plando os gansos que se bamboleiam nas patas espalmadas ao apro­ximarem-se da água. Ou então contemplamos a silhueta esquelética de uma igreja através de uma fila de jovens árvores . (Elejo ao acaso as coisas mais banais .) Cada visão é um arabesco traçado de impro­viso para ilustrar as surpresas e maravilhas da intimidade . A neve , os tubos rebentados , a banheira esmaltada, os gansos são sinais suspen­sos no espaço e quando os recordo, quando me volto para trás , leio neles as particularidades de cada amor, todos diferentes entre si .

Entretanto tu - quero vencer a tua hostilidade , os teus olhos ver­des fixados em mim, o teu vestido desbotado, as mãos ásperas e outros atributos do teu esplendor maternal - estiveste presa como uma lapa à mesma rocha. Mas não quero ferir-te . Só pretendo restau­rar a confiança em mim, que vacilou quando surgiste . Já não é pos­sível mudar. Estamos comprometidos . Outrora, quando nos reuni­mos com Percival num restaurante de Londres , tudo se perturbava e agitava; podíamos ter sido qualquer coisa. Agora escolhemos - em-

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hora às vezes pareça que foram outros que escolheram por nós ; um par de pinças segurou-nos pelo pescoço . Eu escolhi . Colhi a vida não pelo exterior mas pelo interior, nas minhas fibras nuas , brancas e desprotegidas . Estou perturbado e ferido pela marca dos rostos , dos espíritos e das coisas , e tudo isso é tão subtil que possui aroma, cor, textura e substância, mas não tem nome . Para vocês , que veem os estreitos limites da minha vida e a linha que ela não pode ultrapassar, sou apenas «Neville» . Mas para mim próprio sou incomensurável , uma rede de fios que secretamente envolvem o mundo . E é quase impossível distinguir essa rede daquilo que ela envolve . É capaz de levantar monstros e alvas medusas , tudo o que é amorfo e errante . É

isso que vejo e compreendo . Diante dos meus olhos abre-se �m livro . Vejo o fundo, o coração , os abismos . Sei como o amor se transforma em chamas e que o ciúme lança, aqui e ali , os seus raios verdes . Co­nheço os caminhos tortuosos ern que o amor contraria o amor. Sei como o amor tece os seus fios; e a brutalidade com que em seguida os rompe . Tenho sido tecido . Tenho sido dilacerado .

Mas num certo momento conhecemos o êxtase , quando olháva­mos a porta à espera que se abrisse para dar entrada a Percival . Ou quando corríamos para um banco de madeira, numa sala do colégio .

- Havia um bosque de faias , disse Susan , Elvedon e o rosto dou­rado do relógio cintilando entre as árvores . As pombas deslizavam através das folhas . As luzes , variáveis e errantes , percorriam-me o corpo e fugiam. E, no entanto , Neville , embora não te conceda im­portância para poder ser eu própria, quero que olhes a minha mão pousada na mesa. Repara na cor saudável que tenho nas juntas da palma da mão . O meu corpo foi utilizado todos os dias , corretamen­te , como um instrumento nas mãos de um bom operário . A lâmina está limpa, afiada, apenas um pouco gasta ao meio (neste momento lutamos como os animais nos campos , como cervos entrechocando as armações) . Vistas através da tua carne pálida e flácida, até as ma­çãs e os montes de fruta possuem o aspeto turvo das coisas encerra­das numa redoma de vidro . Quando estás afundado na poltrona, em companhia de uma só pessoa, mas de uma pessoa que vai mudando , não vês mais que uma polegada de carne, os nervos e as fibras , o fluxo lento ou rápido do seu sangue , mas nada de inteiro ou comple­to . Não vês uma casa num jardim, um cavalo no campo , uma cidade

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que se alonga na distância, porque estás curvado como uma velha que força a vista a fazer bordado . Mas eu observo a vida em blocos , de um modo substancial e sólido; as suas torres e ameias , fábricas e gasómetros . Vivo num lugar construído desde tempos imemoriais segundo um modelo hereditário . As coisas permanecem quadradas , proeminentes e firmes na minha memória. Não sou suave nem sinuo­sa; estou sentada no meio de vocês , a vossa brandura faz atrito nas minhas rugosidades e o jato verde dos meus olhos límpidos quebra o trémulo voo das palavras , asas de mariposa de um cinzento prateado .

Agora, tal como os cervos , já entrechocamos as armações . É um prelúdio indispensável , a saudação de velhos amigos .

- Já desapareceu o fundo dourado atrás das árvores , disse Rhoda. Agora vê-se uma extensão verde , longa como a lâmina de uma faca vista em sonhos , ou como uma ilha adelgaçada onde nunca ninguém desembarcou . Os automóveis começam a acender os faróis na aveni­da e os amantes já podem deslizar para a escuridão . Os troncos das árvores tomam-se mais largos e obscenos quando os amantes os procuram.

- Outrora era diferente , disse Bernard . Podíamos interromper fa­cilmente a corrente . Quantos telefonemas e postais não foram neces­sários para abrir este espaço em que nos encontramos em Hampton Court ! Com que rapidez se escoa a vida entre janeiro e dezembro ! Todos somos arrastados pela corrente das coisas que se tomaram, po­rém, tão familiares que já não projetam quaisquer sombras . Já não fazemos comparações . Poucas vezes penso em mim ou em vocês e é essa inconsciência que me permite escapar aos atritos da vida e afastar as ervas más que crescem à entrada dos canais submersos . Temos de saltar como peixes , muito acima da superfície das águas , para apanhar o comboio que sai de Waterloo. Mas por mais alto que saltemos aca­bamos sempre por cair na corrente . Sei agora que não embarcarei para as ilhas dos mares do Sul . Roma é o limite das minhas viagens . Tenho filhos . Estou prisioneiro do lugar que ocupa neste puu}e .

Mas gosto de acreditar que só o meu corpo - o corpo deste ho­mem entrado nos anos a quem chamam Bernard - tem o destino irremediavelmente traçado . Penso de modo mais desinteressado do que quando era jovem e precisava de escavar furiosamente , como as crianças que procuram presentes num embrulho , para me descobrir a

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mim próprio . «Olha, repara nisto ! » «E isso o que é? Será um bom presente? É só isto?» E assim por diante . . . Mas agora já sei o que está dentro dos embrulhos e não lhe concedo muita importância . Lanço os meus pensamentos pelo ar, do mesmo modo que um cam­ponês semeia punhados de grão , que se dispersam em leque contra o fundo vermelho do ocaso , na terra lavrada, densa, nua e reluzente .

Uma frase . Uma frase imperfeita. Mas que são afinal as frases? Deixaram-me muito poucas coisas para colocar na mesa ao lado das mãos de Susan , ou para tirar do meu bolso como as credenciais de Neville . Não sou uma autoridade em matéria de leis , medicina ou fi­nanças . As frases envolvem-me como palha húmida; brilho , sinto-me recoberto de uma estranha fosforescência. E quando falo, cada um de vocês pensa: «estou iluminado, resplandeço» . No colégio os rapazi­nhos costumavam dizer «essa é boa, essa é boa» , enquanto as frases borbulhavam nos meus lábios e estávamos sentados , sob os olmos junto do campo de jogos . Também eles se evadiam com as minhas frases . Mas agora elanguesço na solidão. A solidão destrói-me .

Vou de casa em casa como os monges da Idade Média que distraíam viúvas e donzelas com rosários e baladas . Sou um peregrino , um ven­dedor ambulante pagando a hospedagem com uma canção, um convi­dado pouco exigente que facilmente se contenta. Muitas vezes , aceito o melhor quarto e durmo sob um dossel , outras durmo num palheiro . As pulgas não me incomodam e também não me queixo das sedas . Sou muito tolerante . Nada tenho de moralista. Sou demasiado cons­ciente da brevidade da vida e da sua complexidade , para me dedicar a traçar linhas de demarcação a tinta vermelha. E, no entanto , não sou tão desprovido de rigor como vocês pensam, ao julgarem-me pela fa­cilidade com que falo . Escondo na manga um pequeno punhal de desprezo e severidade . Mas é fácil desviarem o golpe . Invento histó­rias . De qualquer coisa faço brincadeiras . Uma rapariga está sentada à entrada de uma cabana. A rapariga espera. Quem espera ela? Terá sido seduzida? O reitor vê um buraco no tapete . Suspira. A sua mulher passando os dedos pelas ondas da cabeleira ainda abundante , reflete, etc . Mãos que acenam, pessoas que hesitam nas esquinas das ruas , alguém que lança um cigarro na valeta, outras tantas histórias . Mas qual é a verdadeira? Não sei . É por isso que as minhas frases se man­têm suspensas , como as roupas num armário , aguardando que alguém

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as vista. Ocupado nessa espera, nas minhas meditações, e no meu ca­derno de notas , vivo desligado da vida. Serei afastado, como se afasta uma abelha do girassol . A minha filosofia acumula-se e espalha-se em todas as direções como o mercúrio . Mas Louis , o severo Louis de olhos loucos , chegou no seu sótão e no seu escritório a conclusões definitivas sobre a verdadeira natureza do conhecimento.

- O fio que me esforço por tecer, disse Louis , rompe-se . O vosso riso , a vossa indiferença e também a vossa beleza rompem-no . Jinny rompeu-o há muitos anos quando me beijou no jardim. Os meninos convencidos riam-se de mim no colégio , por causa do meu sotaque australiano e rompiam o fio . «Encontrei o significado das coisas» , dizia para mim mesmo . Mas imediatamente o significado se desva­necia numa sensação de angústia. «Ouçam» digo , o canto do rouxi­nol que se eleva no meio do tropel das multidões em marcha, das migrações e das conquistas ; acreditem . . . e nesse instante alguém me puxava para o lado . Caminho entre telhas quebradas e estilhaços de vidro . As luzes múltiplas dão às coisas mais banais o estranho aspe­to das peles de leopardo . Este momento de reconciliação em que nos encontramos reunidos , este momento do crepúsculo , com o seu vi­nho, as folhas trémulas e os jovens em flanela branca que chegam do rio com almofadas debaixo dos braços , está para mim ensombrecido pela existência das masmorras , das torturas e das infâmias que ho­mens infligem a outros homens . Os meus sentidos são tão imperfei­tos que não conseguem iludir sob nenhum esplendor as graves acu­sações que a minha razão acumula contra nós , mesmo agora que estamos aqui sentados . Qual é a solução? Onde está a ponte? Como será possível unir estas deslumbrantes aparições que dançam diante dos meus olhos? É nisso que reflito , enquanto vocês observam mali­ciosamente os meus lábios cerrados , as minhas faces encovadas e o meu cenho invariavelmente carregado . Mas peço-lhes que observem também a minha bengala e o meu colete . Herdei uma escrivaninha de mogno maciço numa sala de paredes decoradas com mapas . Os nossos navios adquiriram uma invejável reputação devido ao luxo das suas cabines . Têm piscinas e ginásios . Agora uso um colete bran­co e consulto a minha agenda antes de marcar um encontro .

É este o modo astuto e distante com que espero desviar a vossa atenção da minha alma tema, trémula e infinitamente jovem e des-

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protegida. Sim, porque continuo a ser o mais jovem, o que mais in­genuamente se surpreende , o que caminha à frente cheio de confian­te expectativa, o que acolhe todos os contratempos e ridículos , quer se trate de um nariz com fuligem ou de um botão desapertado . Sofro com todas as humilhações . E , contudo , possuo a impassibilidade do mármore . Não compreendo como podem dizer que foi uma sorte termos nascido . As vossas pequenas emoções , os vossos infantis entusiasmos quando uma chaleira ferve ou a brisa suave agita a echarpe de Jinny como uma teia de aranha, parecem-me semelhantes às fitas de seda com que se provoca a carga do touro . Condeno-vos . Mas o meu coração anseia pela vossa presença. Convosco atravessa­ria as fogueiras da morte . Mas também é verdade que sou m�is feliz na solidão . Regozijo-me com o luxo das minhas roupas de ouro e púrpura, mas prefiro a paisagem sobre os telhados , com gatos que roçam as costas magras pelas chaminés decrépitas , vidros quebrados e o dolente tocar dos sinos no campanário de uma pobre igreja.

- Vejo o que está diante de mim, disse Susan . Esta echarpe, estas manchas cor de vinho; este copo; este frasco com mostarda; esta flor. Gosto daquilo que se pode tocar e saborear. Gosto da chuva quando se converte em neve . E como sou destemida e mais corajosa que qualquer um de vocês , não mitigo a minha beleza com toda a espécie de precauções mesquinhas com receio que ela me queime . Devoro-a por inteiro . A minha beleza é feita de substância, de carne . A minha imaginação é corporal . As suas visões não são finamente tecidas nem têm a alva pureza das de Louis . Não gosto dos seus gatos magros nem das suas chaminés decrépitas . A beleza triste dos seus telhados causa-me repulsa. O que me agrada são os homens e as mulheres em uniforme, de peruca e túnica, chapéus de coco e camisas de ténis elegantemente abertas no pescoço , a infinita variedade das roupas femininas (costumo observá-las todas) . Acompanho-os por todo o lado, entrando e saindo, nas salas , nos vestíbulos, nas ruas , por toda a parte . Este homem examina o casco de um cavalo . Aquele mostra­-nos a sua coleção de desenhos . Não estou só . Sou acompanhada por um regimento de homens e mulheres semelhantes a mim. A minha mãe deve ter seguido o som dos tambores ; o meu pai percorreu cer­tamente o mar. Sou como o cachorro que corre pela estrada atrás do regimento , mas que para a cheirar um tronco de uma árvore ou fare-

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jar uma mancha castanha e de repente atravessa a rua para ir ao en­contro de algum rafeiro , ou levanta a pata ao mesmo tempo que fa­reja o perturbador aroma que sai de um talho . As minhas ocupações conduziram-me a estranhos lugares . Homens , numerosos homens destacaram-se da multidão para virem ao meu encontro . Basta-me fazer um sinal com a mão . Rápidos como flechas , dirigiram-se ao local onde marcamos encontro , uma cadeira num terraço , ou uma loja na esquina. Os tormentos e as divisões da vossa vida foram por mim resolvidos , noite após noite , às vezes apenas com um toque dos dedos sob a toalha ao jantar e o meu corpo tomou-se tão fluido que o simples aflorar de um dedo chega para lhe dar a forma de uma gota que cresce , treme , brilha e cai em êxtase .

Passei diante do espelho as horas que vocês consagraram a escre­ver, ou fazer contas na secretária. Em frente do espelho , no santuário do meu quarto , avaliei o nariz e o queixo , assim como a boca que se abre demasiado mostrando as gengivas . Olhei-me . Julguei-me . Esco­lhi o amarelo e o branco, o brilho ou a sombra, a curva ou a linha direita que melhor me ficam. Para uns sou leve , para outros rígida, angulosa como a estalactite prateada, ou voluptuosa como a dourada chama de uma vela. Com violência, corri até atingir os limites da corrente que me prende . O peitilho da camisa dos homens com quem estive no recanto de uma sala umas vezes foi branca outras púrpura. As chamas e o fumo envolveram-nos . Falávamos baixo , mal elevan­do a voz , sentados diante do fogo, enquanto murmurávamos os se­gredos do coração como se o vertêssemos em conchas para que ninguém nos ouvisse na casa adormecida. Mas uma vez ouvi o cozi­nheiro agitar-se e noutra ocasião pensámos que o bater do relógio eram passos . Depois de uma violenta conflagração deixamo-nos re­duzir completamente a cinzas . As minhas paixões não deixam rastos , ossos não calcinados pelo fogo , ou mechas de cabelos para colocar em medalhões . Envelheci . Tomei-me descamada, e ao meio-dia con­templo o meu rosto sentada diante do espelho , à plena luz do sol , e vejo com precisão o meu nariz, a minha boca, que se abre demasiado e mostra as gengivas . Mas não tenho medo .

- Junto da estação havia candeeiros , disse Rhoda, e árvores que ainda não se despojaram das suas folhas . Teria podido ocultar-me entre as folhas . Mas não o fiz. Caminhei diretamente ao vosso encontro em

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vez de fazer rodeios como outrora para evitar a emoção do encontro. Mas isso é apenas o resultado da disciplina que impus ao meu corpo . Interiormente não me modifiquei . Tenho medo. Odeio , amo, invejo­-vos e desprezo-vos e nunca me senti feliz quando nos reunimos . Ao vir da estação e enquanto recusava a sombra protetora dos candeeiros e das árvores , dei-me conta, ao olhar os vossos casacos e guarda­-chuvas , de que vocês estão profundamente impregnados da substân­cia constituída pela reunião de vários momentos . Dei-me conta que estão comprometidos , prisioneiros de uma atitude , que têm filhos , autoridade, glória, amor e relações sociais. Eu nada possuo . Sou um ser sem rosto .

Nesta sala de jantar, veem-se armações de veados suspensas nas paredes , copos sobre a mesa, os saleiros e as manchas amarelas da toalha. «Rapaz ! » , chamou Bernard . «Pão ! » , disse Susan . E o empre­gado veio e trouxe pão . Mas a mim, o rebordo de um dos copos parece-me uma montanha, só distingo um fragmento da armação dos veados e a cintilação no flanco da jarra parece-me uma luz maravi­lhosa e inquietante brilhando nas trevas . As vossas vozes parecem­-me o rumor de · árvores na floresta . E o mesmo se passa com os rostos , com seus relevos e cavidades . Como é belo estar-se parado e imóvel e distante à meia-noite , encostado ao gradeamento de um jardim ! Por detrás de nós surge uma lua crescente feita de espuma e nos confins do mundo os pescadores lançam as redes ao mar. O ven­to agita as folhas mais altas das árvores primitivas (e , no entanto , estamos sentados aqui no Hampton Court) . Os gritos dos papagaios rasgam o intenso silêncio das florestas . (É daqui que o comboio par­te .) A andorinha molha as asas em lagos noturnos . (Estamos a con­versar.) É este o mundo que procuro compreender enquanto estou aqui sentada a vosso lado . Mas tenho de aceitar a penitência de estar em Hampton Court exatamente às sete e meia.

Mas já que estes pãezinhos e estas garrafas de vinho me são ne­cessárias e os vossos rostos são belos , com os seus relevos e cavida­des , tal como a toalha com as manchas amarelas , em vez de me di­latar em círculos cada vez mais amplos de compreensão , capazes de abarcar o universo inteiro (é com isso que sonho à noite quando a minha cama flutua, e se precipita nos abismos que ficam além do mundo) , sou obrigada a executar os grotescos gestos da vida indivi-

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dual . Sinto vontade de partir quando me atiram à cara com os vossos filhos , os vossos poemas , as frieiras , tudo o que fazem e vos faz so­frer. Mas não tenho ilusões . Depois de todas estas invocações e procuras , cairei sozinha através de um fino lençol em abismos de chamas . E vocês não me ajudarão . Mais cruéis que os antigos verdu­gos , vão deixar-me cair e depois despedaçar-me . E, no entanto , há momentos em que as paredes do espírito se tomam quase transparen­tes , em que tudo é absorvido e eu quase acredito que poderíamos ser capazes de soprar uma bola tão grande que nela poderia haver o nascer e o pôr do Sol , que o azul do meio-dia e o negro da meia-noite nela encontrariam lugar e nos perderíamos nela, para sempre liberta­dos deste espaço e deste tempo.

- Gota a gota, disse Bernard, cai o silêncio . Forma-se sobre o te­lhado da alma e cai em charcos . Só, só para sempre , ouço o silêncio cair e alargar-se em círculos concêntricos até aos confins do mundo. Saciado e completo , satisfeito com a minha solidez de homem madu­ro , eu , a quem a solidão esmaga, deixo que o silêncio caia gota a gota.

Mas agora, as gotas de silêncio deslizam-me pelo rosto e o meu nariz funde-se tal como o . boneco de neve que a chuva dissolve no jardim. À medida que o silêncio cai eu dissolvo-me, os meus traços apagam-se e torna-se impossível distinguir-me de qualquer outro ho­mem. Pouco importa. E, de resto , o que é que importa? Jantamos bem. O peixe, os escalopes , o vinho embotaram os afiados dentes do egoís­mo. A ansiedade repousa. Louis , o mais vaidoso de todos , já não se preocupa com o que os outros possam pensar dele . Os tormentos de Neville cessaram. «Aceito o êxito dos outros» , diz para si mesmo. Su­san ouve a tranquila respiração dos filhos. Durmam, durmam, murmu­ra ela. Os barcos de Rhoda chegaram à costa. Pouco lhe importa agora que tenham naufragado ou lançado âncora. Somos capazes de conside­rar com imparcialidade qualquer sugestão que o mundo tenha para nos oferecer. Acabo de pensar que a terra é apenas uma pedra acidental­mente separada do sol e que os abismos do espaço são sem vida.

- Neste silêncio , disse Susan , parece que nunca mais uma folha poderá cair ou um pássaro voar.

- Como se um milagre tivesse acontecido , disse Jinny, e as nos­sas vidas se tivessem imobilizado aqui e agora.

- E, disse Rhoda, não tivéssemos mais de viver.

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- Mas , disse Louis , ouçam o formidável ruído do mundo moven­do-se nos abismos do espaço infinito . Este fragmento iluminado da história desaparece com os nossos reis e as nossas rainhas; passa­mos , e connosco passa a nossa civilização , o Nilo e a própria vida. As nossas gotas separadas dissolvem-se e nós extinguimo-nos , per­didos nos abismos do tempo e das trevas .

- O silêncio cai , o silêncio cai gota a gota, disse Bernard . Mas agora ouçam o tiquetaque do relógio e os ruídos dos automóveis que passam. O mundo chama-nos de novo . Por momentos , ouvi o rugido do vento das trevas como se tivéssemos passado além da vida. De­pois ouvi o som familiar do relógio e dos automóveis . Voltamos a pisar terra firme; estamos na praia; os seis sentados numa mesa. Foi a recordação do meu nariz que me chamou à vida. Levantei-me sol­tando um grito , quando me lembrei da forma do meu nariz e bati furiosamente na mesa com esta colher.

- É preciso lutar contra este caos ilimitado , disse Neville , contra este informe absurdo . Aquele soldado que faz amor com uma criada atrás da árvore é mais admirável que as estrelas . E, no entanto , quan­do uma trémula estrela surge no céu claro , penso que só o universo é belo e que nós não passamos de vermes que com a sua luxúria são capazes de sujar até as próprias árvores .

- Apesar disso Louis , disse Rhoda, o silêncio dura apenas um instante . Já começam a dobrar os guardanapos ao lado dos pratos . «Quem foi que entrou?» , pergunta Jinny, e Neville suspira ao lem­brar-se que Percival nunca mais voltará . Jinny pegou no seu espe­lho de bolso . Examinando o rosto como um artista passa um pouco de pó de arroz pelo nariz e depois de um momento de reflexão , dá aos lábios um exato tom de vermelho . Susan , que contempla com desprezo e terror estes preparativos , abotoa e desabotoa o casaco. Para que se estará a arranjar? Certamente para qualquer coisa de diferente .

- Pensam que é tempo de partir, disse Louis . E dizem para si mes­mos . «Ainda me sinto com vigor. O meu rosto vai destacar-se outra vez no negro espaço infinito .» Já não terminam as frases . «Chegou a hora de partir>> , repetem a todo o momento . «Vão fechar os portões do jardim.» E nós vamos com eles , Rhoda, arrastados na corrente, mas mesmo assim ficamos um pouco para trás .

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Como conspiradores que têm qualquer coisa para segredar, disse Rhoda.

- Tenho a certeza absoluta, disse Bernard, que um rei que cavalga­va por esta avenida caiu porque o seu cavalo tropeçou num formiguei­ro . Mas como é estranho recortar contra o turbilhão do espaço infinito este pequeno personagem coroado com uma espécie de bule dourado ! Recuperamos depressa a fé nos personagens , mas não naquilo que eles colocam na cabeça . . . O passado de Inglaterra - este fragmento ilu­minado da história. Depois as pessoas colocam uma espécie de bule dourado na cabeça e gritam: «Sou um rei .» Enquanto caminho procu­ro reapossar-me da minha noção de tempo, mas as trevas que me afluem aos olhos impedem-me de a encontrar. Este palácio parece tão leve como uma nuvem que passa no céu . É um artifício mental colocar reis em tronos , uns a seguir aos outros , com as cabeças coroadas . E nós que caminhamos os seis , lado a lado, que podemos fazer para nos opormos ao fluxo das coisas com apenas esta incerta luz a que chama­mos sentimento e reflexão? Haverá qualquer coisa de permanente em que possamos apoiar-nos? Também as nossas vidas se escoam ao longo das avenidas sem luz , subtraídas ao tempo e anónimas . Uma vez Neville atirou-me com um poema à cabeça. Assaltado por uma ines­perada fé na imortalidade , disse: «Também eu sei o que Shakespeare sabia .» Mas tudo isso faz parte do passado .

- Enquanto caminhamos , disse Neville , o tempo reconquista-nos de um modo insensato e ridículo . Basta um cão saltando à nossa frente . A máquina funciona. A passagem dos anos tomou aquele portão venerável . Trezentos anos parecem outra vez mais considerá­veis que o tempo que se leva a enxotar este cão . O rei Guilherme usa peruca quando monta a cavalo e as damas da corte roçam o chão com a cauda bordada dos seus vestidos . Ao mesmo tempo que continuo a caminhar, começo a convencer-me que os destinos da Europa são de enorme importância e que , por ridículo que isso possa parecer, tudo foi consequência da batalha de Blenheim. E declaro , no momento em que atravessamos o portão , que o presente recomeça para mim e que volto a ser súbdito do rei Jorge .

- Enquanto avançamos por esta avenida, disse Louis , eu leve­mente recostado em Jinny, Bernard de braço dado com Neville e Susan segurando-me numa das mãos , é difícil não chocarmos , não

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falarmos de nós como crianças que pedem a Deus que as proteja enquanto dormem. É doce cantarmos juntos , de mãos dadas e com medo da escuridão, enquanto Mrs . Curry toca harmónio .

- Os portões de ferro fecharam-se , disse Jinny. As maxilas do tem­po deixaram de mastigar. Triunfámos dos abismos do tempo, com rouge, pós de arroz e lenços de tecido fino .

- Seguro esta mão, disse Susan , seguro firmemente esta mão, não importa de quem seja, com ódio e amor. Pouco importa se é ódio ou amor . . .

- Experimentamos uma sensação de serenidade quase imaterial , disse Rhoda. Desfrutamos esta felicidade passageira (são raros os momentos sem angústia) quando as paredes do espírito se . tornam quase transparentes . O palácio de Wren forma um retângulo , tal co­mo o quarteto tocado para um público frio e refastelado nas cadeiras de orquestra. Um quadrado é colocado sobre o retângulo . Dizemos: «Esta é a nossa casa.» Agora a estrutura é visível . Quase não fica nada de fora.

- A flor, disse Bernard, o cravo vermelho que estava numa jarra sobre a mesa do restaurante na noite em que jantámos com Percival , tornou-se uma flor hexagonal , uma flor composta de seis vidas .

- É feita de muitas cores e numerosos esforços , disse Jinny. - Casamento , morte , viagens , amizade , disse Bernard, a cidade e

o campo , os filhos e tudo o resto . É uma substância de múltiplas fa­cetas recortada contra as trevas . Uma flor de mil pétalas . Paremos um instante . Contemplemos a nossa obra. Deixemos que resplandeça contra os teixos . Uma vida. Ali está . Passou . Extinguiu-se .

- Agora, disse Louis, Susan e Bernard desapareceram. Neville par­tiu com Jinny. Paremos um instante , Rhoda, junto desta urna de pedra. Que canção escutaremos agora que os casais desapareceram no bos­que e que Jinny aponta com a mão enluvada e finge interessar-se pelos nenúfares , e Susan, que sempre amou Bernard, lhe diz: «a minha vida arruinada, a minha vida desperdiçada» . E Neville pegando na frágil mão de Jinny de unhas cor de cereja, na margem do lago , junto das águas iluminadas de luar, grita «amor, amor» . E Jinny responde imi­tando os pássaros: «amor? amor?» Sim, que canção escutaremos?

- Afastaram-se em direção ao lago , disse Rhoda. Deslizam sobre a erva, furtivamente e contudo seguros de si , como se solicitassem da

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nossa benevolência o imemorial privilégio de nunca serem incomoda­dos . A maré da alma reflui naquela direção; não podem deixar de abandonar-nos . As trevas fecharam-se sobre os seus corpos . Que can­ção escutaremos? A da coruja, a do rouxinol ou a da carriça? Ouve-se a sirene de um vapor, um clarão luminoso corre pelos carris dos elétri­cos e as árvores curvam-se , inclinam-se com gravidade . Um luar difu­so paira sobre Londres . Uma velha regressa em silêncio; um pescador tardio desce para a praia com a sua cana. Nenhum som, nenhum mo­vimento deve escapar à nossa atenção .

- Um pássaro regressa ao seu ninho , murmura Louis . A noite lança uma rápida olhadela pelos bosques antes de adormecer. Como será possível reunir as confusas e complicadas mensagens que estas pessoas nos enviam e não apenas elas , mas também numerosos mor­tos , homens e mulheres , que vaguearam por aqui nos reinados de outros reis?

- Um peso caiu na balança da noite , disse Rhoda, arrastando-a para ao fundo. Cada árvore foi ampliada por uma sombra que não é a sombra de uma árvore próxima. Ouvimos o rufar dos tambores numa cidade em tempo de Ramadão , quando os turcos estão esfo­meados e o seu humor é incerto . Ouço os seus gritos agudos que se assemelham a latidos : «abram, abram» . Ouço o gemido dos elétricos e vejo as cintilações dos carris . Ouço as faias e os vidoeiros afasta­rem os ramos como se a noiva tivesse deixado cair a camisa de seda e se tivesse aproximado da porta, gritando: «abram, abram!»

- Tudo parece com vida, disse Louis . Em nenhum lugar desta noi­te ouço a morte . A estupidez estampada no rosto deste homem e o envelhecimento no daquela mulher deveriam ser suficientes para des­truir o sortilégio e fazer regressar a morte . Mas onde está a morte esta noite? Tudo o que é cruel , insignificante e inútil foi lançado, como estilhaços de vidro , na maré azul , debruada de púrpura que invade a praia e nos lança aos pés a fertilidade de inumeráveis peixes .

- Se pudéssemos subir juntos , disse Rhoda, suficientemente alto para podermos contemplar o universo , se pudéssemos permanecer intactos e sem nenhum apoio . . . Mas a ti perturba-te o leve rumor das palmas , das carícias e dos risos , e eu sou ferida por todos os juízos dos homens e apenas confio na solidão e na violência da morte . Por isso estamos separados .

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- Separados para sempre , disse Louis . Sacrificamos os abraços entre os fetos e o amor na margem do lago . Estamos parados junto de uma urna como conspiradores que se afastaram para sussurrar algum segredo . Más neste momento uma onda surge no horizonte . A rede é puxada até à superfície das águas , agitada pelo frémito de mil peixes prateados . Saltando e batendo com a cauda, são deposi­tados na praia. A vida derrama o conteúdo da sua rede na erva. Há vultos que se aproximam. Serão homens ou mulheres? Vestem ainda as roupas ambíguas da ondulante maré em que estiveram submersos .

- Agora, disse Rhoda, ao passarem pelas árvores , readquirem o seu tamanho natural . São apenas homens e mulheres. Deixam de inspirar admiração e temor à medida que se despojam das vestes da ondulante maré . A compaixão regressa, quando avançam à claridade da Lua, como destroços de um exército , eles que são os nossos representantes e que todas as noites , aqui ou na Grécia, partem para o combate e re­gressam com o corpo ferido e os seus rostos devastados . A luz volta a incidir sobre eles . Têm rosto . Transformam-se em Susan e Bernard, Jinny e Neville , os nossos amigos . Como diminuíram! Que engelha­mento e que humilhação ! Sou mais uma vez atravessada por um fré­mito de ódio e de terror ao mesmo tempo que me sinto imobilizada pelos ganchos que nos lançam saudações , cumprimentos , apertos de mão e olhares perscrutadores . E, no entanto , para me enternecer basta que falem, que pronunciem palavras de tom familiar e sentido sempre imprevisto, basta-me olhar os movimentos das suas mãos que fazem surgir das trevas milhares de dias passados .

- Alguma coisa cintila e dança, disse Louis . À medida que se aproximam pela avenida a ilusão regressa e com ela a perpétua on­dulação das perguntas . Que penso de vocês? Que pensam de mim? Quem são vocês? Quem sou eu? E esta melodia faz de novo estre­mecer de inquietação o ar à nossa volta, acelerar as nossas pulsações e brilhar os olhos . Toda a loucura da existência individual , sem a qual a vida se tomaria insípida e morta, recomeça. Já estão muito perto de nós . Um sol meridional arranca cintilações à urna. Somos arrastados pelas ondas de um mar violento e cruel . Meu Deus ajuda­-nos a interpretar os nossos papéis no momento em que vamos sau­dar o regresso de Susan e Bernard, de Neville e Jinny.

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- Destruímos qualquer coisa com a nossa presença, disse Bernard, talvez um mundo.

- Estamos tão cansados, disse Neville , que mal conseguimos res­pirar. Encontramo-nos nesse estado mental , exausto e passivo , em que desejamos voltar ao corpo da nossa mãe de que fomos separados pela vida. O resto é desagradável , forçado e cansativo . A echarpe amarela de Jinny tem a cor das mariposas ; os olhos de Susan estão saciados . Os nossos vultos mal se distinguem do rio . A brasa de um cigarro é a única luz que brilha entre nós . A nossa alegria é matizada pela tristeza. Devíamos tê-los deixado sós , permitido que se dilacerassem, devía­mos ter cedido ao desejo de espremer na solidão o sumo sombrio , o sumo amargo do fruto repleto de doçura. Mas agora estamos cansados .

- O fogo que nos consumiu , disse Jinny, nada deixou que possa ser guardado em relicários .

- E eu , disse Susan , como um jovem pássaro insatisfeito grito ainda por qualquer coisa que me escapou .

- Fiquemos aqui um momento antes de partir, disse Bernard. Pas­seemos pela margem do rio numa solidão quase completa. As pessoas já regressaram a casa. É tranquilizante ver como se acendem as luzes dos quartos de dormir nas casas dos pequenos comerciantes , do outro lado do rio . Acendem-se umas a seguir às outras . Quanto terão ganho hoje? O suficiente para pagarem a renda, a eletricidade, a comida e as roupas para as crianças . Apenas o suficiente . Como a vida parece su­portável ao vermos as luzes que se acendem nos quartos dos pequenos comerciantes ! No sábado terão apenas o suficiente para os bilhetes do cinema. Talvez antes de se deitarem desçam até ao minúsculo jardim e olhem o enorme coelho deitado na sua casota de madeira. É o coelho que vão comer no jantar de domingo . Depois apagam as luzes. E dor­mem. E, para milhares de indivíduos o sono é apenas calor e silêncio e o momentâneo abandono à fantasia de um sonho. «Enviei a minha carta para o jornal de domingo» , pensa o vendedor de legumes . «E se ganhar quinhentas libras nas apostas de futebol? Além disso vamos matar o coelho . A vida é agradável . A vida é boa. Mandei a carta. Va­mos matar o coelho.» E adormece .

- E isto continua. Ouçam. Ouço um ruído que parece o choque de vagões que estão a ser atrelados numa estação de caminho de ferro. É

assim o feliz encadeamento dos acontecimentos na nossa vida. Devo,

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devo, devo. Devo partir, devo deitar-me, devo acordar, devo levantar­-me - palavra piedosa e solene que pretendemos desprezar, mas que apertamos contra o coração , já que sem ela seríamos incompletos . Como respeitamos este som, semelhante ao choque dos vagões que estão a ser atrelados numa estação de caminho de ferro !

Agora ouço um coro ao longe , vindo do lado do rio . São as can­ções dos meninos convencidos que em grandes carros regressam de um dia passado na ponte de um vapor repleto de gente . Cantam, como cantavam outrora no pátio , em noites de inverno, ou com as janelas abertas no verão , bebendo , quebrando os móveis , com peque­nos barretes às riscas e voltando todos a cabeça ao mesmo tempo quando a carruagem dobrava a esquina. E eu desejava ser como eles .

Estes cantos , os remoinhos da água e o murmúrio quase imperce­tível da brisa, arrastam-nos suavemente . Pedaços do nosso ser des­prendem-se de nós . Atenção ! Qualquer coisa de muito importante caiu . Estou a perder o domínio do meu corpo . Vou adormecer. Mas devemos partir, devemos apanhar o comboio , devemos ir para a es­tação , devemos , devemos , devemos . Somos apenas corpos correndo uns ao lado dos outros . Só existo nas plantas dos pés e nos fatigados músculos das coxas . Tenho a impressão de caminhar há horas . Mas onde? Não consigo lembrar-me . Sou como um tronco deslizando suavemente por uma catarata . Não sou juiz . Não tenho a obrigação de dar opiniões . Sob a luz cinzenta, as casas e as árvores tomam-se semelhantes . Aquilo é um poste? E isto , é uma mulher caminhando? Eis a estação . Se o comboio me despedaçasse , o meu corpo juntar­-se-ia de novo do outro lado dos carris , porque sou uno e indivisível . Mas o mais curioso é que ainda seguro na mão metade do meu bilhe­te , a metade de regresso a Waterloo , mesmo agora, mesmo quando estou a dormir.

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O Sol descera finalmente no horizonte, e era agora impossível

distinguir o céu do mar. Ao desfazerem-se, as ondas espalhavam na

praia os seus grandes leques, enviavam sombras brancas para as

profundezas das cavernas e refluíam suspirando sobre os seixos .

A árvore sacudiu os ramos, espargindo folhas pelo chão. As folhas

pousaram com perfeito rigor no local onde vão esperar a sua de­

composição . O vaso quebrado, que antes contivera a luz vermelha,

derramava agora no jardim tons cinzentos e negros . Escuras som­

bras enegreciam ainda mais os túneis abertos entre os caules das

plantas . O tordo estava agora silencioso e o verme encolhido no seu

pequeno buraco . Às vezes, uma palha esbranquiçada, arrancada a

algum ninho abandonado, caía na erva escura onde as maçãs apo­

dreciam. A luz desaparecera da casa das ferramentas e a pele de

víbora pendia de um prego . Todas as cores do quarto tinham trans­

bordado os seus limites . As pinceladas do artista tinham-se tornado

demasiado cheias e oblíquas: os armários e as cadeiras misturavam

as massas castanhas numa vasta obscuridade . Do soalho ao teto,

pendiam grandes cortinados de trémula escuridão . O espelho estava

pálido como a entrada de uma caverna sombreada por trepadeiras .

As sólidas colinas pareciam ter perdido substância . Luzes erran­

tes arrastavam os seus penachos por invisíveis estradas submersas .

Mas nem uma só luz surgia por entre as asas dobradas das colinas

e nenhum som se ouvia além do grito do pássaro procurando uma

árvore solitária . Na borda da falésia, o murmúrio do vento que atra­

vessara as florestas encontrava-se com o da água arrefecida nas

inumeráveis e vítreas profundidades do oceano .

Como se existissem ondas de escuridão, a noite avançava cobrin­

do as casas, as colinas e as árvores, como as ondas do mar varrem

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os flancos de um navio naufragado . A escuridão cobria as ruas, ro­

deava os seres isolados e submergia-os . Envolvia também os aman­

tes abraçados à sombra da folhagem densa dos olmos de verão . As

ondas de escuridão avançavam pelos caminhos cobertos de erva e

pela terra ressequida, envolvendo o espinheiro solitário e as cascas

vazias dos caracóis . Depois a escuridão subiu, soprando pelos flan­

cos nus das colinas e atingindo os erodidos cumes das montanhas

onde a neve se aloja na dura rocha, mesma quando os vales estão

repletos de arroias e de folhas amarelas das videiras e as raparigas

sentadas nas varandas olham a neve e protegem o rosto com os le­

ques . Depois a escuridão cobriu também as raparigas .

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- Chegou o momento de fazer um balanço, disse Bernard, de lhe explicar o sentido da minha vida. Como não nos conhecemos (em­bora me pareça que nos encontrámos uma vez a bordo de um navio para África) , podemos falar com toda a liberdade . Tenho a ilusão que neste instante qualquer coisa aderiu ao meu corpo , qualquer coisa dotada de forma, peso , profundidade e plenitude . Neste instante , essa coisa parece ser a minha vida. Se fosse possível , gostaria de a colher e de lha oferecer por inteiro . Havia de a colher como se colhe um cacho de uvas . E dizer: «tome-a, é a minha vida» .

Mas infelizmente não pode ver o que eu vejo (este globo repleto de personagens) . Vê-me apenas a mim, sentado nesta mesa, à sua frente, um homem já entrado nos anos , um tanto pesado, de têmporas grisa­lhas . Vê como pego no guardanapo e o desdobro . Vê-me encher um copo de vinho . E atrás de mim, vê a porta que se abre e pessoas que entram. Mas para lhe fazer compreender a minha vida, para que possa oferecer-lha, preciso de lhe contar a minha história - e há tantas his­tórias , histórias de infância, histórias de colégio , histórias de amor, de casamento , de morte e tantas outras . Mas nenhuma delas é verdadeira. E, no entanto, tal como as crianças , contamos histórias e para as ador­nar inventamos frases ridículas , brilhantes e belas . Mas como estou cansado das histórias , cansado das frases que pousam elegantemente no chão e caminham! E como desconfio dos esquemas de vida cuida­dosamente traçados sobre uma folha de papel ! Começo a ansiar por uma linguagem ingénua, como a que os namorados usam entre si , pa­lavras sem sequência, inarticuladas , semelhantes ao ruído de passos na calçada. Procuro um esquema mais adequado aos momentos de humi­lhação e de triunfo que inevitavelmente surgem na nossa vida. Deitado numa vala num dia de tempestade , depois da chuva passar, vejo as

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enormes nuvens marcharem no céu , nuvens em farrapos e feixes de nuvens . O que me encanta é a confusão, a distância, a indiferença e a fúria. Eterna mudança, eterno movimento das grandes nuvens . Qual­quer coisa de sulfuroso, de sinistro, de desordenado; qualquer coisa de ameaçador, que se arrasta, rasga e perde - e eu ali , minúsculo e esque­cido. Em tal situação não vejo rasto de história ou de esquema.

Mas agora, enquanto comemos , lancemos uma olhadela a estas cenas da nossa vida, tal como as crianças folheiam as páginas de um livro ilustrado e a criada lhes diz apontando qualquer coisa com o dedo: «isto é uma vaca; aquilo é um barco» . Voltemos as páginas . Para nossa diversão , acrescentarei um comentário .

No começo havia um quarto de crianças , com janelas abertas para um jardim e mais ao longe o mar. Via qualquer coisa brilhar, prova­velmente o puxador de cobre de um gavetão da cómoda. Depois Mrs . Constable ergueu a esponja sobre a minha cabeça, espremeu-a e flechas de sensações correram ao longo das minhas costas . E acon­tece sempre assim pois durante toda a vida somos trespassados pelas flechas das sensações , quando embatemos numa cadeira, numa mesa ou numa mulher, quando passeamos num jardim ou quando bebo este copo de vinho. E às vezes , quando passo diante da janela ilumi­nada de uma casa em que nasceu uma criança, pouco me falta para rogar aos moradores que não espremam uma esponja sobre o corpo acabado de nascer. Depois havia um jardim e o dossel formado pelas folhas da groselheira que pareciam cobrir tudo; flores , cintilações na profundidade verde; um rato morto devorado pelos vermes debaixo de uma folha de ruibarbo; e a mosca que zumbia no teto do quarto e inúmeros pratos de inocente pão com manteiga. Todas essas coisas acontecem num instante e duram para sempre .

E há os rostos que surgem numa esquina. «Olha, aqui está a Jinny. Este é o Neville . E aquele é Louis , com

calções de flanela cinzenta e a fivela do cinto em forma de serpente . Aquela é a Rhoda.» Tinha uma bacia de cobre onde punha a flutuar pétalas brancas . Susan foi quem chorou no dia em que estava na casa das ferramentas com Neville e senti que a minha indiferença se des­vanecia. Com Neville isso não aconteceu . «Ü que significa, disse para mim próprio, que eu não sou Neville .» Foi uma descoberta maravilho­sa. Susan chorava e eu seguia-a. Estava perturbado pelo seu lenço

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encharcado de lágrimas e as suas pequenas costas subindo e descendo como se fossem a alavanca de uma bomba de água. Chorava porque qualquer coisa lhe fora negada. «Não posso suportar isto» , disse para mim, sentando-me junto dela nas raízes duras como esqueletos . Foi essa a primeira vez que dei pela presença desses inimigos que mudam, mas nunca desaparecem; forças contra as quais lutamos. Deixarmo­-nos arrastar passivamente é contrário à própria natureza do nosso pensamento . «Esta é certamente a lei do universo , dizemos , mas eu tenho a minha própria lei individual .» Foi por isso que propus a Susan explorar as imediações . Levantei-me de um salto e descemos a correr a encosta da colina e vi o moço das cavalariças caminhando ruidosa­mente no pátio com as suas enormes botas . Um pouco mais abaixo , entre a profundidade das folhas , viam-se os jardineiros a varrer os relvados com grandes vassouras . Uma dama estava sentada à mesa a escrever. Trespassado , imobilizado e morto , pensei: «em nada posso alterar o movimento daquelas vassouras . Os jardineiros continuarão a varrer. Também nada posso contra a imobilidade da mulher que escre­ve» . É estranho que não se possa fazer parar os jardineiros , ou mover uma mulher. Ficarão assim durante toda a minha vida. É como se ti­vesse despertado em Stonehenge rodeado por um círculo de grandes pedras . Depois um pombo-bravo esvoaçou por entre a folhagem. E, como pela primeira vez na vida estava apaixonado, fiz uma frase, um poema sobre o pombo-bravo, uma única frase , pois a um meu espírito fora trespassado, nele aparecendo uma dessas bruscas transparências através da qual vemos o universo inteiro . Depois houve mais pão com manteiga, e mais moscas zumbindo no teto do quarto das crianças onde tremulavam ilhas de luz, agitadas e opalinas , enquanto os pon­tiagudos dedos do lustre gotejavam poças azuis na cornija da lareira. Dia após dia, sentados a tomar chá, observávamos tudo isso .

Mas éramos diferentes . A cera, a virginal cera que recobre a espinha dorsal , derretia-se de forma diversa em cada um de nós . Os grunhidos do criado fazendo amor com a empregada entre as groselheiras; as roupas penduradas numa corda e adejando ao vento; o homem que apareceu na vala com a garganta cortada; a macieira de folhas rígidas à luz do luar; o rato morto repleto de vermes; o gotejar azul do lustre. Cada um destes acontecimentos estriou e marcou de modo diferente a nossa branca cera original . Louis sentia repulsa pela natureza da carne

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humana; a nossa crueldade indignava Rhoda; Susan não conseguia partilhar coisa alguma; Neville queria ordem; Jinny o amor. E assim sucessivamente . Sofremos terrivelmente quando nos convertemos em indivíduos .

E, no entanto , eu soube evitar os sentimentos excessivos e sobre­vivi a muitos dos meus amigos , apesar de estar um pouco gordo agora e ter os cabelos grisalhos e o tórax dilatado . Já não contemplo a paisagem da vida de um telhado , mas de uma janela do terceiro andar. E o que me interessa é esse panorama sobre a vida e não o que uma mulher diz a um homem, mesmo que esse homem seja eu . As­sim sendo , como conseguiriam assustar-me no colégio? Como me poderiam criar dificuldades? O reitor entrava na capela, oscilando como se andasse na coberta de um navio de guerra em plena tempes­tade , gritando ordens com um megafone , pois as pessoas que têm autoridade assumem sempre atitudes melodramáticas . Mas eu não o odiava como acontecia com Neville , nem o admirava como Louis . Sentado ao lado deles na capela, tomava notas . Havia colunas e re­cantos sombrios , lápides comemorativas , rapazes que lutavam ou trocavam selos por detrás do livro das orações . Havia o som de uma enferrujada bomba de água e o reitor que travejava acerca da imora­lidade e da necessidade de nos tomarmos homens . E Percival , que levava a mão a uma das coxas . Tomava notas que me deveriam servir para compor histórias ; esboçava retratos nas margens do meu cader­no e desse modo me isolava ainda mais dos outros .

Naquele dia, na capela, Percival olhava fixamente em frente . E le­vava a mão à nuca de uma maneira que lhe era própria. Os seus gestos eram sempre notáveis . Todos nós levávamos a mão à nuca, mas sem o mesmo efeito . Percival tinha o género de beleza que se preserva de todas as carícias . Como nada tinha de precoce , lia, sem comentários irónicos , tudo o que era escrito para nossa edificação e pensava, com magnificente equanimidade (as palavras grandiosas ocorrem-me natu­ralmente) , que as tranças cor de linho e as faces rosadas de Lucy eram o expoente máximo da beleza feminina. Mas , preservado de vulgari­dades e humilhações , o seu gosto acabou por se tornar refinado . Aqui deveria escutar-se uma música, uma canção repleta de alegria selva­gem. Uma canção de caça entrando pela janela aberta, expressão de uma vida rápida e inapreensível , um som que ecoa nas montanhas e

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morre na distância. Tudo o que é surpreendente e imprevisto , tudo o que não podemos explicar, tudo o que converte a simetria em absurdo, me acorre ao espírito quando penso nele . O pequeno aparelho que utilizo nas minhas observações fica desarticulado . As colunas desmo­ronam-se , o reitor afasta-se, flutuando, e uma exaltação súbita apode­ra-se de mim. Caiu quando participava numa corrida de cavalos; e , naquela noite , ao descer a avenida Shaftesbury, esses rostos insignifi­cantes e apenas entrevistos que saem do metro e os inumeráveis india­nos obscuros e a gente que morre de fome e doença e as mulheres que foram enganadas e os cães espancados e as crianças em pranto, todos me pareciam ter perdido qualquer coisa de essencial . Teria feito justi­ça. Teria protegido . Aos quarenta anos teria conseguido sacudir os poderes estabelecidos . Nunca me ocorreu uma canção de embalar ca­paz de o adormecer.

Mas vou mergulhar uma vez mais a colher e trazer à superfície outro desses minúsculos objetos a que , com otimismo, chamamos o «caráter dos nossos amigos» . Louis , sentado, olhava fixamente o orador. Os seus lábios estavam cerrados e todo o seu ser parecia concentrado nos olhos imóveis onde às vezes brilhava um clarão de alegria. Sofria de frieiras , o que mostra que tinha uma circulação deficiente . Infeliz , sem amigos , exilado, acontecia-lhe às vezes, em momentos de confiança, descrever o modo como as ondas se desfaziam nas praias do seu país . O olhar implacável dos seus colegas fixava-se nas suas mãos inchadas . Sim, mas também nos demos imediatamente conta de como o seu es­pírito era agudo, claro e severo e, deitados sob os olmos , fingindo acompanhar a partida de críquete, esperávamos naturalmente a sua aprovação raramente concedida. A sua influência era recebida com irritação, a de Percival com amor. Era afetado e orgulhoso e o seu modo de andar fazia lembrar o de uma cegonha; mas acompanhava-o a lenda de um dia ter derrubado uma porta com os punhos . No entanto , Louis era demasiado semelhante ao cume de uma montanha despida e pedregosa para que a neblina o pudesse envolver. Era incapaz dos sentimentos simples que unem os homens . Tinha uma vida isolada e enigmática. Como estudante , era capaz dessa inspirada exatidão que causa espanto . A minha descrição da Lua não suscitava, porém, o seu assentimento. Por outro lado, invejava-me desesperadamente a facili­dade com que tratava os criados . Não que lhe faltasse consciência dos

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seus méritos . Tinha-a, mas num grau compatível com o seu respeito pela disciplina. Daí o seu êxito final . E, no entanto , não era feliz . Mas , quando o examino na palma da mão , desaparece . A consciência que temos dos nossos amigos é intermitente . Volto a mergulhar Louis nas profundezas do tanque , onde poderá readquirir vida.

Depois vem Neville . Neville , deitado de costas a contemplar o céu de verão . Flutuava entre nós como o pólen das flores , vagueando com indolência num recanto soalheiro do campo de jogos , sem pres­tar atenção ao que dizíamos , mas apesar disso próximo de nós . Foi graças a ele que pude aspirar o odor dos clássicos latinos sem real­mente os conhecer profundamente . Foi ele também que me deu esses persistentes hábitos intelectuais que nos transformam em seres irre­mediavelmente marginais , por exemplo , o de pensar no crucifixo como um sinal do Diabo . As nossas ambiguidades em questões como essa, as hesitações entre o amor e o ódio , pareciam-lhe irremediáveis traições . O reitor, esse personagem oscilante e barulhento , a quem um dia sentei no cadeirão a balançar distraidamente os suspensórios diante de um aquecedor, era para Neville apenas um instrumento da Inquisição . Por isso se entregou com uma paixão que venceu a sua habitual indolência, à leitura de Catulo , Horácio e Lucrécio . Indolen­temente deitado, sonolento mas atento , contemplava extasiado os jogadores de críquete, enquanto o seu espírito , rápido , hábil e voraz como a língua de um camaleão , percorria todos os contornos das frases latinas , sem por isso deixar de desejar que a pessoa amada, a única pessoa amada, viesse sentar-se a seu lado .

As longas saias das mulheres dos professores avançavam sibilan­tes , como grandes montanhas ameaçadoras , e as nossas mãos voavam para os bonés . E a sensação de um imenso, monótono e contínuo aborrecimento baixava sobre nós . Nada, nada, nada vinha agitar com a sua barbatana a plúmbea extensão das águas . Nada vinha aliviar o peso do intolerável embrutecimento. Os períodos escolares sucediam­-se uns aos outros . Nós crescíamos e mudávamos como todos os animais . De modo nenhum se pode dizer que estamos sempre cons­cientes . Respiramos , comemos e dormimos com a exatidão de uma máquina. Não existimos apenas como indivíduos , mas também como indiferenciados grupos de matéria. É num impulso único que um grupo de rapazes vai jogar críquete ou futebol ou um exército atraves-

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sa a Europa. Reunidos nos parques ou em salas de concertos , conde­namos todos os renegados (Neville , Louis e Rhoda) que levam uma vida independente e separada. Sou feito de tal maneira que , se escuto uma das melodias solitárias , como as de Louis ou Neville , sinto-me irresistivelmente atraído pelas vozes cantando em coro , na noite , as velhas canções quase absurdas , quase desprovídas de sentido que atravessam os pátios , essas canções que ouvimos à nossa volta, atra­vés dos ruídos dos automóveis e dos autocarros repletos de gente que vai ao teatro (escuta; os carros passam velozmente diante deste res­taurante e às vezes , ao longe , no rio , ouve-se a sirene de um navio que se faz ao mar) . Se no comboio alguém me oferece um cigarro eu aceito . Gosto de ver as coisas sob o seu aspeto abundante , informe e superficial , não muito inteligente , mas extremamente fácil e um tanto áspero. Gosto de ouvir as conversas dos homens reunidos nos clubes e nos bares; das palavras trocadas por mineiros seminus; gosto da gente completamente isenta de pretensões , sem outra finalidade na vida além do jantar, do amor, do dinheiro e de uma existência tolerá­vel , gente que não tem grandes esperanças , ideais ou qualquer coisa do género e cuja única ambição é desembaraçar-se sem grandes abor­recimentos . Por isso me reunia a ela quando Neville amuava ou Lou­is voltava as costas e se afastava com inegável dignidade .

Foi assim que as minhas vestes de cera se derreteram ao acaso , irregularmente , em grandes estrias que escorriam em gotas dispersas . E através dessa transparência avistei a admirável paisagem dos pra­dos virgens , brancos e radiantes como a Lua, campos de rosas e de açafrão, com rochas e serpentes também; coisas obscuras e mancha­das ; os obstáculos , os vínculos e os passos em falso . Saltamos da cama, abrimos a janela; que clamor, o canto dos pássaros ! Reconhe­cemos o súbito frémito das asas , a confusão de gritos e melodias ; o balbuciante tumulto de vozes; e as inúmeras gotículas resplandecen­tes que estremecem como se o jardim fosse um mosaico estilhaçado , evanescente e cintilante , ainda não conformado como uma unidade , enquanto um pássaro solitário canta junto da janela. Ouvi esses can­tos . Persegui esses fantasmas . Vi Joans , Dorothys e Miriams (esque­ci os seus apelidos) descendo as avenidas e detendo-se a meio da ponte para olharem o rio . E de entre elas destacam-se duas ou três imagens nítidas , duas ou três aves que cantavam junto da janela com

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o extasiado egoísmo da juventude , quebravam a concha dos caracóis contra as pedras e mergulhavam avidamente os bicos na matéria viscosa e peganhenta. Duras , ávidas e implacáveis : Jinny, Susan e Rhoda. Tinham sido educadas em colégios da costa este e da costa sul de Inglaterra. Deixaram crescer longas tranças e adquiriram esse ar de potros assustadiços que é a marca da adolescência.

Jinny foi a primeira a aproximar-se do portão para comer pedaços de açúcar. Retirava-os habilmente das palmas das mãos , quando lhos estendiam, mas mantinha as orelhas voltadas para trás , o que mostra­va que era capaz de morder. Rhoda era a mais selvagem, era impos­sível segurá-la. Era ao mesmo tempo assustada e desajeitada. Susan foi a primeira a tomar-se mulher, um ser puramente feminino . Foi ela quem deixou escorrer para o meu rosto as lágrimas escaldantes que eram ao mesmo tempo admiráveis e terríveis ou então não eram na­da, nem admiráveis nem terríveis . Susan nasceu para ser admirada pelos poetas , pois os poetas necessitam da segurança; de uma mulher que permaneça sentada a costurar, que ame e odeie apaixonadamen­te , não seja particularmente rica ou confortável e se harmonize pelas suas qualidades com a simples e elevada beleza, o estilo que os poe­tas tanto admiram. O seu pai arrastava-se de quarto em quarto , ao longo de corredores cobertos de grandes lajes , de chinelas e roupão esvoaçante . Nas noites tranquilas ouvia-se o rumor de uma cascata que ficava a uma légua de distância . O velho cão quase não conse­guia subir para a sua cadeira. E do sótão chegava o riso estúpido de uma criada que fazia girar a máquina de costura.

Mesmo no meio da minha angústia, no momento em que Susan chorava amarfanhando o lenço, e gritava «amo e odeio» , eu ouvi o riso estúpido de uma criada no sótão e este pequeno exemplo de estru­turação dramática mostra que é sempre incompleta a nossa dissolução nas experiências que vivemos . Nas margens de qualquer angústia existe um observador que aponta com o dedo, que murmura, como murmurou ao meu ouvido naquela manhã estival , na casa, enquanto as espigas de trigo ondulavam sob as janelas: «os salgueiros crescem nos campos junto do rio; os jardineiros varrem com grandes vassouras e há uma senhora sentada a escrever>> . Era desse modo que ele me levava para lá da minha condição, da minha angústia, em direção ao que é simbólico e por isso talvez permanente - se é que se pode falar de

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permanência nas nossas vidas tumultuosas , em dormir, comer e respi­rar, no nosso tempo partilhado entre o espírito e a carne.

O salgueiro erguia-se junto do rio . Eu estava sentado na erva macia com Neville , Larpent, Baker, Hughes , Percival e Jinny. Através dos esguios ramos do salgueiro, salpicados de minúsculas orelhas , verdes na primavera e fulvas no outono, avistava os navios , as casas e velhas mulheres apressadas . Enterrei metodicamente fósforos na erva para assinalar esta ou aquela etapa do meu processo de compreensão (na filosofia, nas ciências ou no conhecimento de mim próprio) , mas a franja do meu espírito flutuava livremente e captava as sensações lon­gínquas que acabamos sempre por atrair e nas quais o nosso espírito penetra: o tocar dos sinos, murmúrios indistintos , figuras evanescen­tes , uma rapariga de bicicleta que ao passar parecia erguer uma ponta da cortina que ocultava o caos populoso e indiferenciado da vida que se estendia para lá dos meus amigos e do salgueiro .

Só a árvore resistia ao nosso eterno fluir. Porque eu mudava cons­tantemente . Era Hamlet, era Shelley, era o personagem de Dostoievski cujo nome esqueci . Durante um trimestre inteiro fui Napoleão. Mas acima de tudo era Byron. Durante muitas semanas o meu papel limi­tou-se a entrar em quartos e lançar as luvas e o casaco nas costas das cadeiras franzindo levemente as sobrancelhas . E dirigia-me constan­temente à estante para beber um gole do divino elixir. Acabei por lan­çar o meu terrível arsenal de frases sobre um alvo totalmente inadequa­do - uma jovem que depois se casou e morreu. Todos os livros e rebordos de janela estavam cobertos com as folhas das minhas cartas inacabadas à mulher que me convertia em Byron. Sim, porque é muito difícil acabar uma carta escrita no estilo de outra pessoa. Chegava a casa dela convertido em espuma. Trocámos pequenos presentes . Mas não casei com ela, sem dúvida porque não estava preparado ainda para uma tal intensidade.

Aqui , de novo, a música deveria surgir. Não a de Percival , a sel­vagem canção de caça, mas uma música dolorosa, gutural , visceral e sublime como o canto da cotovia; essa melodia deveria substituir estas frases desgastadas e estúpidas - demasiado deliberadas , de­masiado razoáveis - que tentam descrever o passageiro instante do primeiro amor. Um cristal de púrpura desliza sobre esse dia. Depois da sua partida um quarto é diferente do que era antes da sua chegada.

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Lá fora, seres indiferentes prosseguem o seu caminho; nada veem nem ouvem; continuam a andar. Quando nos movemos nessa atmos­fera ao mesmo tempo radiante e brumosa, tomamo-nos estranha­mente conscientes dos menores gestos; qualquer coisa adere , qual­quer coisa se nos cola às mãos , mesmo quando pegamos num jornal . Em seguida temos a sensação de um supliciado a quem arrancaram as vísceras , para as enrolar como uma teia de aranha em volta de uma sebe de espinhos . Depois o estrondo de uma total indiferença; a luz que se extingue; o regresso de uma luz infinita e inconsciente; cam­pos que resplandecem no seu verde eterno e paisagens inocentes que parecem banhadas pela luz da primeira aurora, um recanto de verdu­ra, por exemplo , em Hampstead . E todos os rostos parecem ilumina­dos , cúmplices de uma tema alegria; em seguida a sensação mítica da plenitude e do êxtase , áspera como a pele de um tubarão , e as negras flechas de uma trémula sensação quando ela não escreve , quando ela não vem. As suspeitas irrompem e com elas o horror da dúvida. Mas de que serve elaborar penosamente estas frases que se encadeiam, quando aquilo de que se necessita não é coerente , mas um uivo ou um gemido? E anos depois vemos uma mulher de meia­-idade tirar a capa num restaurante . . .

Mas regressemos um pouco atrás , façamos outra vez de conta que a vida é uma substância sólida, em forma de globo , que podemos girar entre os dedos . Façamos de conta que é possível elaborar uma história lógica e simples de tal modo que se pode acabar um assunto - por exemplo , o amor - e prosseguir ordenadamente para o tema seguinte . Falava de um salgueiro . A sua chuva de ramos pendentes e a casca áspera e rugosa, tinham a aparência do que permanece fora das nossas ilusões mas é incapaz de as conter; do que é por um ins­tante transformado pelas ilusões , mas , apesar disso , se mantém está­vel , calmo e com uma consistência que as nossas vidas não têm. Daí o comentário que faz, parecendo avaliar as razões das nossas flutua­ções e mudanças . Por exemplo , Neville sentava-se a meu lado na erva. Seguindo o seu olhar através dos ramos , via com incomparável clareza um barco onde um jovem comia as bananas que retirava de um saco de papel . A cena destacava-se com uma tal intensidade e estava de tal modo impregnada do que havia de particular no olhar de Neville , que durante um momento eu vi do mesmo modo que ele

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este fragmento do rio , o barco , as bananas e o jovem, através dos ramos do salgueiro . Depois tudo se desvaneceu .

Rhoda aproximava-se com o seu andar vago . Para se ocultar apro­veitava a passagem dos professores de togas agitadas ao vento , ou os jumentos que balançando o corpo avançavam sem ruído pela erva. Que terror era esse que tremulava oculto e se transformava em cha­mas na profundeza dos seus olhos cinzentos, assustados e sonhado­res? Por mais cruéis e vingativos que fôssemos , isso não bastava para justificar um tal terror. Temos uma bondade fundamental sem a qual nos seria impossível falar livremente com alguém que mal co­nhecemos , pois de outro modo a conversa depressa seria interrompi­da. Aos olhos de Rhoda, o salgueiro erguia-se junto de um deserto cinzento onde nenhum pássaro cantava. As folhas encolhiam-se sob o olhar de Rhoda e estremeciam de angústia quando ela passava. Os autocarros e os elétricos ressoavam surdamente na rua, acima das rochas e da espuma que se depositava nas margens do rio . Talvez apenas uma coluna iluminada pelo sol se erguesse no seu deserto , junto de um lago onde os animais selvagens furtivamente iam beber.

Depois veio Jinny. As suas chamas ergueram-se acima das árvo­res . Era semelhante a uma ondulante papoila, febril , sedenta e dese­josa de beber o pó seco . Dardejante , angulosa mas não impulsiva, chegou preparada para tudo . Pequenas chamas ziguezaguearam nas fendas abertas na terra ressequida. A sua presença fazia dançar os ramos do salgueiro , mas não se tratava de uma ilusão ou de um so­nho , pois Jinny nada fazia que não tivesse realidade . Havia uma ár­vore , um rio , era de tarde , estávamos ali , eu com o meu fato de sarja, ela com um vestido verde . O passado não existia, nem o futuro , mas apenas o presente envolto num anel de luz; e os nossos corpos; e a inevitável exaltação , o êxtase .

Antes de se sentar na erva Louis estendia cuidadosamente um tecido impermeável (não exagero) e imediatamente nos apercebíamos da sua presença. Era quase formidável . Eu tinha a inteligência suficiente para respeitar a sua integridade; sabia que os seus dedos ossudos , envoltos em trapos por causa das frieiras , buscavam o diamante de uma indis­solúvel verdade . Enterrei a seus pés caixas de fósforos já queimados . As suas palavras , severas e cáusticas , reprovavam a minha indolência. A sua imaginação sórdida fascinava-me. Os seus heróis usavam cha-

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péus de coco e vendiam pianos por dez libras . Pelas suas paisagens os comboios apitavam e as fábricas expeliam um fumo acre . Frequentava as ruas sórdidas das cidades onde mulheres completamente bêbadas jaziam nuas sobre as colchas das camas no dia de Natal . As suas pala­vras caíam do alto de uma torre e mergulhavam na água que se agita­va. Para descrever a Lua bastava-lhe uma palavra. Depois levantava-se e partia. E nós erguíamo-nos e partíamos também. Mas eu detive-me e olhei a árvore. E uma vez, no outono, quando olhava os ramos ama­relos e rubros , um sedimento formou-se, uma gota caiu e senti que acabava de completar uma das experiências da minha vida.

Ergui-me e parti . Eu, eu , eu e não Byron, Shelley ou Dostoievski; eu , Bernard. Aconteceu-me mesmo repetir o meu nome duas ou três vezes . Balouçando a bengala entrei numa loja e comprei um retrato de Beethoven com uma moldura de prata. Fi-lo , não por amar a mú­sica, mas porque toda a vida humana, com os seus homens de génio e os seus aventureiros , me surgiu então na forma de longas filas de magníficos seres humanos marchando atrás de mim. Eu era o herdei­ro, o continuador, a pessoa milagrosamente designada para prosseguir a sua obra. Foi neste estado de espírito que continuei o meu caminho balouçando a bengala e relançando à volta um olhar mais carregado de humildade que de orgulho . Tinha-se desvanecido o bater das asas , o som da canções de caça, as exclamações . Entrei em casa, na casa clara e intransigente habitada pelos meus , lugar repleto de tradições e objetos, com a sua acumulação de coisas inúteis e de tesouros colo­cados sobre as mesas . Fui visitar o velho alfaiate que se recordava ainda do meu tio . Na minha vida entrou uma multidão de pessoas ; os seus rostos não eram tão claramente recortados como o foram no meu tempo de juventude os de Neville , Louis , Jinny, Susan e Rhoda; eram rostos confusos , sem feições, ou com feições que mudavam tão rapi­damente que pareciam não existir. E, ao mesmo tempo envergonhado e desdenhoso , na mais estranha amálgama de ceticismo e de entusias­mo, recebi os golpes da vida, a mistura de perturbantes sensações imprevistas , que tombavam sobre mim a todo o instante vindas de todo o lado . Como é humilhante nunca saber o que é preciso dizer em seguida, ter de suportar os silêncios penosos , deslumbrantes como desertos ressequidos , em que cada uma das pedras se vê claramente ! E dizer aquilo que não se deveria ter dito, e ter consciência de que se

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possui uma sinceridade incorruptível que se trocaria de boa vontade por uma chuva de moedas reluzentes - o que , contudo, não é possí­vel ali no salão em que Jinny está sentada, muito calma e à vontade , radiosa na sua cadeira dourada !

Então uma dama disse com um gesto solene - «venha comigo» . E conduziu-me a um recanto resguardado do salão;admitiu-me na honra da sua intimidade . Os nomes substituem os apelidos; os diminutivos os nomes . O que se deve fazer em relação à Índia, Irlanda e Marrocos? Cavalheiros idosos ostentando as suas condecorações à luz dos cande­labros respondem a estas perguntas . Ficamos imediatamente informa­dos sobre todos os assuntos internacionais . Lá fora rugem as forças indiferenciadas; aqui estamos na intimidade e as nossas palavras são claras e precisas ; e o dia somos nós que o fazemos , sexta-feira ou sá­bado . Sobre a alma suave , nacarada e brilhante forma-se uma concha que as sensações em vão procuram quebrar. A minha concha formou­-se antes da maior parte das outras . Cedo aprendi a cortar a minha pera quando os outros já tinham terminado a sobremesa e a acabar as minhas frases no meio do mais completo silêncio . É esta a época em que a perfeição nos atrai . Pensamos que para aprender castelhano bas­ta madrugar. Cobrimos a nossa agenda com jantares às oito e almoços à uma e meia. Temos sempre camisas , meias e gravatas preparadas sobre a cama.

Mas é um erro esta precisão, este avanço ordenado e militar; uma mentira, uma convenção que nos parece útil . No mais fundo de nós , mesmo quando chegamos pontualmente à hora marcada, com os nos­sos coletes brancos e as formas corteses , surge uma caudalosa corrente de sonhos fragmentários, canções infantis , gritos de rua, frases inaca­badas e imagens - olmos , salgueiros , jardineiros que varrem, senho­ras sentadas a escrever - que aparece e desaparece, mesmo quando saímos com uma mulher para jantar. Enquanto colocamos o garfo na sua exata posição sobre a toalha invocamos milhares de rostos . Nada existe que possa ser captado com uma colher; nada que possa ser con­siderado um acontecimento . E, no entanto, essa corrente profunda está repleta de vida. Mergulhado na corrente, detenho-me entre dois peda­ços de comida, olho atentamente um vaso, um vaso que talvez conte­nha uma flor vermelha, enquanto um pensamento se forma ou me ilu­mina uma súbita revelação. Ou então , caminhando ao longo do Strand,

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dizia «esta é a frase de que preciso» , enquanto um belo e fantasmal pássaro fabuloso, um peixe ou uma nuvem de contornos luminosos se erguia num instante e para sempre e uma imprecisa ideia me assediava. E depois continuava o meu passeio, contemplando com renovado pra­zer as gravatas e outras coisas expostas nas montras .

Este cristal , a que chamamos a esfera da vida, longe de ser frio e duro ao tato é feito de uma frágil bolha de ar. Se a comprimir, rebenta. Qualquer frase que extraia, inteira e intacta dessa esfera, é apenas uma enfiada de seis peixes que se deixaram apanhar enquanto milhões de outros peixes se me escapam entre os dedos e enchem a esfera com os seus frémitos de prata. Inúmeros rostos comprimem a sua beleza con­tra a bolha de ar - Neville , Susan , Louis , Jinny, Rhoda e mi�ares de outros. É impossível introduzir ordem nesta multidão de seres , des­tacá-los um a um, ou formar uma ideia de conjunto. Aqui de novo a música deveria intervir. Uma sinfonia, com os seus acordes e disso­nâncias , e melodias de acompanhamento complicado . . . Cada um to­cava a sua melodia, violino , flauta, trompete, tambor ou qualquer ou­tro instrumento . Com Neville era o «falemos de Hamlet» . Com Louis, a ciência. Com Jinny, o amor. Depois , num súbito momento de exas­peração, parti para Cumberlant, com um amigo tranquilo , para passar uma semana numa pousada, enquanto a chuva deslizava pelos vidros da janela e para jantar havia apenas carneiro , carneiro e mais carneiro. Mas esta semana no campo permanece na minha memória como uma rocha sólida no caudal das sensações esquecidas . Foi então que jogá­mos ao dominó e discutimos por o carneiro ser demasiado duro . De­pois passeámos pela colina rochosa. Uma rapariga, assomando a cabe­ça através da porta entreaberta, entregou-me uma carta escrita em papel azul anunciando-me que a jovem que fizera de mim um Byron ia casar com um membro da pequena nobreza rural . Um homem de polainas e chicote nas mãos , que ao jantar falaria longamente do me­lhor método para engordar bois , exclamei com ironia, olhando as nu­vens que desfilavam no céu e sentindo toda a extensão do meu fracas­so e o desejo de ser livre, de escapar, de ser amarrado, de acabar com tudo e de continuar a viver, de ser Louis e de ser eu. E, vestindo a gabardina, saí sozinho de casa e diante das montanhas eternas senti-me aborrecido e de modo algum sublime. Regressei . Protestei contra a carne, fiz as malas e assim regressei ao tumulto e à tortura.

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E, no entanto , a vida é agradável , amena. Terça-feira vem depois de segunda. A seguir é quarta-feira. O nosso espírito desenvolve-se por anéis , a identidade fortalece-se e a própria dor é absorvida nesta sensação de contínuo crescimento . As válvulas de segurança do es­pírito abrem-se e fecham-se com intensidade crescente; a pressa e as febris sensações de juventude encontram a sua aplicação e tudo pa­rece funcionar com a perfeição de um mecanismo de relógio . Com que rapidez a corrente da vida nos transporta de janeiro a dezembro ! Somos arrastados pela corrente das coisas , que se tomaram tão fami­liares que já nos não apercebemos da sua sombra. Flutuamos . Flutua­mos , na superfície da corrente .

Mas já que é preciso saltar para a margem, mais não fosse para con­tar esta história, salto aqui , neste local , e pouso o meu olhar sobre o mais trivial dos objetos , por exemplo , o atiçador do fogo, tal como o vi pouco tempo depois , quando a mulher que me convertera em Byron já se casara. Vi-o à luz daquela que designarei como a terceira Mrs . Jones . É uma dessas jovens que põe um certo vestido quando vai jantar con­nosco , que colhe uma rosa e que nos faz pensar enquanto nos arranja­mos para sair. «Cuidado, cuidado, é um assunto de certa importância ! Como se dará com crianças?» Observamos que é um tanto desajeitada a segurar o guarda-chuva mas que se compadece com a toupeira apa­nhada numa armadilha e que, afinal de contas , talvez seja capaz de impedir que as torradas do pequeno-almoço se transformem numa coisa completamente prosaica (enquanto me barbeava pensava nos intermináveis pequenos-almoços da vida de casado) . Quem se sentas­se, de manhã, diante desta jovem mulher não ficaria surpreendido ao ver uma libelinha pousada no seu pão . Além disso, a sua presença es­timulou o meu desejo de triunfar na vida e fez-me olhar com alguma curiosidade os rostos até aí repugnantes dos recém-nascidos . E o frágil e veemente bater do meu coração adquiriu um ritmo majestoso. Cami­nhei ao acaso por Oxford Street. Somos os continuadores , os herdeiros , disse pensando nos meus filhos e nas minhas filhas . É uma impressão tão grandiosa que chega a ser absurda e temos necessidade de a ocultar saltando para um autocarro ou comprando um jornal da tarde . Mas nem por isso o fervor deixa de persistir, até no modo como atamos os sapa­tos ou nos dirigimos aos amigos de infância que seguiram caminhos muito diferentes dos nossos . Louis , o habitante do sótão; Rhoda, a nin-

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fa da fonte sempre à beira das lágrimas . Ambos escolheram o contrário do que era então para mim uma evidência (o casamento, a vida fami­liar) e essa diferença fez-me amá-los , ter pena deles e também olhá-los com inveja.

Tive um biógrafo, que já morreu há muito . Mas se vivesse e con­tinuasse a seguir os meus passos com a lisonjeira intensidade com que o fazia, resumiria assim o que se passou: «Nessa época, Bernard casou e comprou uma casa. Os seus amigos observaram nele um crescente gosto pela vida doméstica. O nascimento dos filhos fez-lhe desejar um aumento dos rendimentos .» É este o estilo do biógrafo, o seu modo de unir os fragmentos irregulares de uma mesma substân­cia. Afinal de contas seria injusto desprezar o estilo biográfic.o já que começamos as nossas cartas com um «caro senhor» e as acabamos com «os melhores cumprimentos» . Não podemos desprezar estas frases que atravessam as nossas vidas tumultuosas como se fossem estradas romanas , pois são elas que nos obrigam a andar a passo , como pessoas civilizadas , no modo lento e medido dos polícias , o que nos não impede de ir murmurando qualquer coisa de insensato: «ão , ão , ão , ladra o cão ! » «Vai-te embora, morte , vai-te embora !» «Alcançou certo êxito na sua profissão . . . Herdou algum dinheiro do seu tio» , prossegue o biógrafo e, se usamos suspensórios nas calças , ele precisa de o escrever, mesmo quando lhe apetece divagar e jogar à cabra-cega com as frases .

Com isto quero dizer que acabei por fazer parte de um certo géne­ro de homens e que abri um caminho na vida do mesmo modo que se abre uma vereda nos campos à força de lá passar. As minhas botas gastaram-se um pouco mais do lado esquerdo . Quando entrava numa sala, produziam-se imediatamente algumas alterações . «Olhem, o Bernard chegou .» Quantas vezes estas palavras foram pronunciadas e com que variedade de tons ! Existiram na minha vida muitas salas e muitos Bernards . Existiu alternadamente o homem encantador e frágil ; o homem enérgico mas orgulhoso; o espírito brilhante e cíni­co; o bom companheiro mas , sem dúvida, terrivelmente maçador; o homem amável mas frio; o homem de aspeto desarranjado mas tam­bém (passemos para a sala ao lado) o dandy pretensioso e demasiado bem vestido . Porém, a meus próprios olhos eu era diferente de tudo isso e nenhum desses Bernards me dizia respeito . É por isso que me

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sinto cada vez mais disposto a instalar-me diante das torradas do pequeno-almoço, diante da mulher, que sendo agora inteiramente minha esposa - e não a jovem que se enfeitava com uma rosa quan­do me esperava - me dá a sensação de existir em plena inconsciên­cia , tal como a rã sentada à sombra de uma folha verde . «Passa-me .. » E ela completa: « . . . o leite» . Ou: «Mary vem hoje .» E estas palavras simples para os que herdaram os tesouros dos séculos carregam-se de sentido para nós , que todos os dias as pronunciamos , em plena vida, ao pequeno-almoço , quando nos sentimos densos e completos . A língua, mas também os músculos, nervos , intestinos , veias , tudo o que constitui as molas e as engrenagens do nosso ser, o inconsciente murmúrio da máquina, funciona perfeitamente . Abrir, fechar, abrir, fechar, comer, beber, falar às vezes . . . Todo o mecanismo se dilata e contrai como o de um relógio . Torradas com manteiga. Café com bacon . O Times e o correio no final . E, de repente , soou insistente a campainha do telefone . Ergui-me e com um passo decidido aproximei­-me do aparelho . Encostei o disco negro ao meu ouvido . Reparei na facilidade com que o meu espírito se preparava para assimilar a mensagem, talvez um pedido (essa fantasia ocorre-me às vezes) para assumir o governo do Império Britânico . Observei a minha compos­tura e como os átomos da minha atenção se dispersavam e depois envolviam a interrupção , assimilavam a mensagem, se adaptavam a um novo estado de coisas e criavam, no próprio instante em que pousava o telefone , um mundo mais rico , poderoso e complexo, em que tinha de interpretar o meu papel , um papel que me sentia capaz de desempenhar. Depois de colocar o chapéu na cabeça, saí para um mundo percorrido por uma multidão de homens que também tinham colocado os chapéus na cabeça e , enquanto nos acotovelávamos e empurrávamos nos elétricos e no metro , íamos trocando a familiar piscadela de olhos dos rivais e camaradas obrigados a mil artimanhas para alcançar um mesmo objetivo: ganhar a vida.

A vida é agradável . A vida é boa. O próprio facto de se existir contém uma certa voluptuosidade . Consideremos um homem normal e que goze de boa saúde . Gosta certamente de comer e de dormir. De respirar o ar fresco e de fazer um rápido passeio ao longo do Strand . Ou então , se vive no campo , olha um galo que canta empoleirado num portão ou um potro galopando num prado . Há sempre qualquer

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coisa para fazer. Depois de segunda-feira vem terça e a seguir quarta. E cada dia emite as mesmas ondas de bem-estar, obedece ao mesmo ritmo, cobre a areia fresca ou retira-se lentamente , com uma certa preguiça. Crescemos pela acumulação de sucessivas camadas até nos tomarmos robustos . O que era ardente e furtivo como um punhado de grãos lançados no ar e dispersos em todas as direções pelos desor­denados ventos da vida, é agora metódico e ordenado, semeado com um objetivo . Ou pelo menos assim parece .

Meu Deus ! Como a vida é agradável ! Como é boa a vida ! Como parece suportável a vida dos pequenos comerciantes quando o com­boio atravessa os subúrbios e avisto as janelas iluminadas dos quar­tos . Admiro estes operários ativos e enérgicos como uma n:mltidão de formigas , que se dirigem para a cidade com a sua saca de ferra­mentas . Que dureza, energia e violência existem nestes corpos, pensava ao ver os homens de calções brancos correndo atrás da bola, sobre a neve de janeiro . Maldisposto por qualquer razão insig­nificante (talvez a carne mal cozinhada) , sentia volúpia em pertur­bar com uma ligeira onda a imensa estabilidade da nossa vida con­jugal , tomada ainda mais feliz pelo nascimento próximo de um filho . À hora do jantar estava de mau humor. Fiz críticas injustas , tal como um milionário que pudesse lançar cinco xelins pela janela, ou um clown que propositadamente tropeçasse num banco . Antes de nos deitarmos fizemos as pazes no patamar das escadas em frente da janela aberta para um céu tão claro como o interior de uma safi­ra. «Graças a Deus» , disse , não somos obrigados a transformar esta prosa em poesia . Esta linguagem simples é suficiente . Pois o claro espaço aberto diante de nós , absolutamente desprovido de obstácu­los , permitia às nossas vidas entenderem-se até ao infinito , para lá da paisagem atormentada das chaminés e dos telhados , até ao hori­zonte sem mácula.

E foi contra isto que embateu com estrépito a morte de Percival . O que é a felicidade , o que é a dor? , interroguei-me descendo as es­cadas no dia do nascimento do nosso filho , como se esses dois esta­dos dividissem o meu corpo a meio . . . Ao mesmo tempo observava o que se passava em casa; o vento movia uma cortina, a cozinheira cantava e avistava-se um armário pela porta entreaberta. Disse para

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mim próprio , falando de mim como se de outra pessoa se tratasse : «Concedamos uma pausa a esse infeliz . Mal entre na sala vai sofrer. Não há processo de escapar.» Mas não existem palavras para expri­mir a dor. Seriam necessários gritos , estalidos , fendas , reflexos bran­cos atravessando cobertas de algodão , uma nova perceção do tempo e do espaço; seria necessária também a impressãO da extrema fixidez das coisas que passam; ruídos longínquos e subitamente próximos , carne rasgada de onde o sangue jorra; uma articulação bruscamente retorcida; e sobre isso qualquer coisa de muito importante e remoto que só na solidão pode ser captado . Saí. Vi a primeira manhã que Percival não veria. Os pardais pareciam brinquedos que uma criança puxasse por um fio . Como era estranho ver as coisas por fora, sem aderir a elas , e admirar a beleza que têm em si ! E depois tive a sen­sação de que me tinha livrado de um peso . As ficções , as falsas crenças e a irrealidade desapareceram. A leveza chegou e com ela uma transparência que deva a estranha sensação de se ser invisível e de ver através das coisas . «Qual seria a próxima descoberta?» , per­guntei a mim mesmo e , para não perturbar este estado de espírito , ignorei os jornais e fui ver quadros numa galeria de arte . Virgens e colunas , arcadas e laranjeiras , silenciosas como no primeiro dia da criação , mas já habituadas à dor, estavam penduradas das paredes e eu olhava-as . «Aqui» , disse , «podemos estar juntos sem que nada nos perturbe .» E essa liberdade , essa imunidade , pareceu-me uma conquista , mergulhou-me numa exaltação tal que ainda me acontece voltar lá agora, tantos anos passados , para reencontrar essa sensação e com ela Percival . Mas uma tal impressão durou pouco tempo. O pior dos tormentos é a terrível atividade da imaginação; como terá caído , com que aspeto ficou e para onde o levaram, homens com um trapo atado à cintura puxando cordas , ligaduras , lama. Depois veio um terrível golpe de memória que não pôde ser previsto nem evitado . Não fora com ele a Hampton Court . As suas garras rasgavam-me; os dentes dilaceravam-me . Não fora a Hampton Court. Apesar de ele me assegurar com impaciência que isso não tinha qualquer importân­cia . Porque interrompera, porque estragara, esse momento de perfei­ta comunhão? Continuei a repetir melancolicamente que não tinha ido a Hampton Court e assim expulso do santuário pelos demónios da vingança, procurei Jinny, que tinha em sua casa um quarto com

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bibelôs espalhados pelas mesinhas . Ali confessei chorando que não tinha ido a Hampton Court com Percival . Ela lembrava-se de ter cometido faltas do mesmo género - que a meus olhos pareciam li­geiras mas que a torturavam - mostrando-me assim como a vida se toma sombria por haver coisas que é impossível partilhar. Mas nessa altura entrou uma criada com um bilhete e quando Jinny se sentou para lhe responder tive curiosidade em saber a quem escrevia . Foi como se visse a primeira folha cair sobre o túmulo de Percival . Vi como passávamos por aquele momento e definitivamente o deixáva­mos para trás . Depois , sentados no sofá, recordámos o que os outros já tinham dito: «O lírio é muito mais belo em maio» . Comparámos Percival a um lírio, o Percival que eu desejaria que vivesse tempo suficiente para perder os cabelos , abalar as autoridades e envelhecer comigo . Os lírios das nossas frases cresciam já sobre o seu túmulo.

Assim terminou esse momento de sinceridade em que o real se tomou simbólico , e uma tal mudança foi-me insuportável . Mais vale cometer uma blasfémia contra o morto , através dos risos e das críti­cas à sua memória, que cobri-lo com frases , exsudar esta seiva de lírio pegajosa e doce , gritei . Parti e Jinny, que não se preocupa com o futuro nem com especulações filosóficas , respeitou integralmente aquele momento , estimulou o seu corpo com o chicote , passou pó de arroz pelas faces (amei-a por isso) e disse-me adeus da porta de sua casa, segurando os cabelos com as mãos para evitar que o vento os despenteasse , gesto a que rendi homenagens porque confirmava a nossa determinação em não deixar os lírios crescer sobre os túmulos .

Observei com desencantada lucidez a desprezível insignificância das ruas , os pórticos , as persianas das janelas , as roupas monótonas , a expressão voluptuosa e cúpida das mulheres contemplando as montras , os velhos com cachecóis de lã apanhando ar e a prudência das pessoas ao atravessarem a rua: a universal , insensata e imbecil determinação de continuar a viver quando a todo o momento uma telha pode cair, ou um automóvel derrapar e esmagar quem vai no passeio , porque não se pode responder por nada quando um bêbado tem o direito de circular pela cidade com um volante nas mãos . Eu era como o homem a quem é permitido assistir à representação entre os bastidores , como aquele a quem explicam o modo como são pro­duzidos os efeitos . Mas apesar de tudo regressei à minha acolhedora

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casa e a criada aconselhou-me a tirar os sapatos antes de subir as escadas . A criança dormia. Fui para o meu quarto .

Não haveria uma espada, uma arma capaz de demolir aquelas mu­ralhas , a proteção, o gerar de filhos , a vida atrás das cortinas , onde em cada dia que passa estamos mais enredados entre livros e quadros? É

preferível consumir a vida, como Louis , em busca da perfeição; ou como Rhoda fugir para o deserto; ou como Neville eleger um ser ama­do entre os milhões de seres que existem; ou ser parecido com Susan e maldizer e abençoar alternadamente o sol brilhante ou a erva quei­mada pela geada; ou , como Jinny, ser um honesto animal . Todos têm os seus momentos de êxtase , o seu secreto sentido da morte, qualquer coisa que lhes serve de apoio . Visitei cada um dos meus amigos , ten­tando com dedos inseguros abrir os seus pequenos cofres fechados . Expus-lhes a minha dor - não, não a dor, mas o sentimento do incom­preensível mistério da vida - e pedi-lhes que a examinassem comigo . Alguns procuram os sacerdotes ; outros a poesia. Eu refugio-me junto dos meus amigos , vou procurar o meu próprio coração , busco qualquer coisa intacta entre frases e fragmentos , eu a quem não basta a beleza que existe na Lua e nas árvores e para quem o contacto de uma pessoa com outra é tudo, mas que nem sequer isso consigo estabelecer, per­manentemente imperfeito , frágil e indizivelmente solitário . E por isso , continuo sentado na solidão.

É este o final da história? Uma espécie de suspiro? O último frémi­to de uma onda? O fio de água que se escoa e morre no ribeiro? Vou tocar nesta mesa e regressar à realidade . O galheteiro sobre o aparador; um cesto repleto de pãezinhos; uma fruteira com bananas . São ima­gens que tranquilizam. Mas se não há histórias , que final poderá haver, ou que começo? Talvez a vida não possa ser contada. Sentado à mesa, tarde na noite , sofro com a minha incapacidade de alterar as coisas . As etiquetas de nada servem já. É estranho ver como as ondas de energia se esvaem na terra ressequida. Sentado na solidão , sinto-me esgotado e as minhas águas mal conseguem rodear o cardo marinho e não alcan­çam sequer aquele rochedo mais distante . Tudo acabou, cheguei ao fim. Mas espere um pouco - eu fiquei toda a noite sentado à espera. De novo um impulso me percorre; levanto-me, agitando no ar uma cabeleira de alva espuma; lanço-me ao assalto da praia; e nada é capaz de me deter. Isto quer dizer que fiz a barba e me lavei , evitei acordar

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a minha mulher e tomei o pequeno-almoço . Coloquei o chapéu na cabeça e saí para ganhar a vida. Depois da segunda-feira vem terça.

E, no entanto, uma dúvida permanecia. Ao abrir a porta, fiquei sur­preendido por encontrar pessoas ocupadas; ao tomar uma chávena de chá hesitei em pedir leite ou açúcar. E a luz das estrelas caía sobre as minhas mãos como agora cai , após ter viajado milhões de anos . Essa ideia paralisou-me, mas apenas por um instante , pois a minha imagi­nação depressa se cansa. Mas uma dúvida permanecia. No meu espí­rito esvoaçava uma sombra, semelhante às asas da mariposa que à noite volteia entre as cadeiras e as mesas de uma sala. Por exemplo, quando fui a Lincolnshire, naquele verão, para ver Susan e ela avançou para mim através do jardim com o preguiçoso movimento _de uma vela meio enfunada pelo vento, com o seu balouçar de mulher grávida, pensei: «A vida continua, mas porquê?» Sentámo-nos no jardim. As carroças da quinta passavam transbordantes de feno; ouvia-se o habi­tual murmúrio campestre das gralhas e dos pombos; a fruta estava protegida com sacos; o jardineiro cavava. As abelhas zumbiam nos cálices vermelhos das flores e incrustavam-se nos dourados escudos dos girassóis . O vento arrastava sobre a erva pequenos ramos . O mun­do repleto de uma brumosa consciência de si obedecia vagamente a um ritmo. Mas tudo aquilo me era odioso como uma rede que envol­vesse o meu corpo com as suas malhas , paralisando-o . Ela que tinha recusado Percival deixava-se cobrir por esta capa.

Sentado num banco, na estação em que esperava o comboio , pen­sei na facilidade com que cedemos , nos submetemos à estúpida Na­tureza. Florestas cobertas de uma espessa folhagem verde estendiam­-se à minha frente . E um odor, ou talvez um ruído , atingiu os meus sentidos e despertou recordações antigas , os jardineiros varrendo e a senhora sentada a escrever. Vi os seus vultos sob as faias de Elvedon . Os jardineiros varriam. A senhora sentada à mesa escrevia . Mas ago­ra acrescentava às intuições da infância o contributo da maturidade; a saciedade e o destino; o sentido da inevitável fatalidade , a morte , o conhecimento dos nossos limites e a consciência de que a vida é mais inexorável do que imaginávamos . E subitamente , tal como na minha infância, tomei consciência da presença do inimigo: o instinto da luta despertou em mim. Então erguera-me de um salto propondo a Susan explorar os arredores . E o horror da situação terminara.

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Mas que situação havia agora para terminar? Tudo é aborrecimen­to e ruína. E o que é que falta ainda explorar? O bosque já não oculta nenhum segredo debaixo das folhas . O voo de uma ave já não me inspiraria um poema. Só poderia repetir o que já antes dissera. Se pudesse medir com uma vara graduada as curvas da minha vida, esta seria a mais baixa que havia de assinalar: lama inútil onde a maré não chega, aqui onde me sentei com as costas apoiadas numa sebe e o chapéu descaído para os olhos , enquanto os rebanhos de carneiros avançam implacavelmente , no modo rígido que lhes é próprio , no passo a passo das suas patas firmes e pontiagudas . Mas se esfregar­mos tempo suficiente uma lâmina embotada numa pedra de amolar, alguma coisa salta: um fio dentado de fogo. É assim que quando me apoio contra a massa banal da vulgaridade , do erro e da falta de sen­tido , uma chama de ódio e desprezo sai de mim. Retomei o meu pensamento , o meu ser, esse velho objeto rejeitado , quase inanimado, e servi-me dele para golpear em todos os sentidos a superfície oleosa das águas mortas onde flutuam ao acaso ramos e pedaços de palha, entre os detestados restos do naufrágio . Ergui-me . Lancei o meu grito de luta. Regressei ao mundo do esforço e da luta; retomei a guerra incessante , a destruição e a reconstrução das coisas , absorvente em­penhamento em cada dia, com as suas vitórias e derrotas . As árvores dispersas ordenaram-se; o espesso verde das suas folhas clareou , convertendo-se numa dança de luz . Com uma frase súbita prendi-as na rede . Com uma simples frase arranquei-as ao caos .

O comboio chegou e deteve-se alongando-se pelo cais . Subi para a minha carruagem. E assim regressei a Londres ao anoitecer. Como é agradável esta atmosfera feita de bom senso e odor do tabaco ! Há ve­lhas com grandes cestos que sobem para as carruagens da terceira classe , cachimbos lentamente aspirados e amigos que ao despedirem­-se nas estações dizem «boa-noite , até amanhã» . E depois as luzes de Londres - não já o perturbante êxtase da juventude, as raras bandeiras dilaceradas , mas as calmas luzes de Londres: as duras luzes elétricas dos escritórios no último andar dos edifícios , os candeeiros que se ali­nham nas calçadas e o esplendor dos mercados de rua. Gosto de tudo isto quando, por um momento, consigo desembaraçar-me do inimigo.

Também gosto de ver passar o ruidoso cortejo da existência, num teatro , por exemplo. O animal dos campos , o terrestre e informe animal

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cor da argila, levanta-se e , com infinita ingenuidade e esforço, luta com os bosques e os prados revestidos de verdura e contra os carneiros que ruminando sempre avançam com o seu passo lento . E naturalmente havia janelas iluminadas ao longo das ruas cinzentas; tapetes recorta­dos contra os passeios; quartos varridos e arranjados, fogo, comida, vinho e conversas . Homens de mão frágeis e mulheres com cascatas de pérolas caindo das orelhas , que entravam e saíam. Vi rostos de velhos que os trabalhos da vida tinham sulcado de rugas e sarcasmo; e a bele­za de tal modo cuidada que jorrava com frescura mesmo na velhice; e uma juventude tão voltada para o prazer que nos levava a pensar que o prazer deve existir. Parecia ser para ela que os prados ondulavam e o mar se encapelava em pequenas ondas; e os bosques murmuravam à passagem dos pássaros coloridos apenas por causa da juventude e das suas esperanças . Era aí que podia encontrar Jinny e Hal , Tom e Betty, foi lá que brincámos e partilhámos os segredos , nunca nos separando à porta sem combinarmos novo encontro num local sugerido pela oca­sião e a estação do ano . A vida é agradável; a vida é boa. Depois de segunda-feira vem a terça. A seguir é quarta-feira.

Sim, mas passado algum tempo uma diferença surge . Uma dife­rença que pode ser sugerida uma noite pelo aspeto do quarto ou o arranjo das cadeiras . Temos a sensação de que é agradável afundarmo­-nos no sofá do canto e olhar, escutar. Então , subitamente , dois vul­tos de costas para a janela surgem recortados contra os largos ramos de uma árvore . Com brusca emoção, pensamos: «há figuras sem rosto que estão revestidas de beleza» . E no intervalo de silêncio em que as ondas desta emoção se propagam, a jovem com quem devía­mos ter continuado a conversar diz para si mesma: «envelheceu» .

Engana-se , porém. Não é a velhice mas apenas uma nova gota que cai , uma sacudidela do tempo nas coisas . Rastejando, saíamos da abó­bada formada pelas folhas da groselheira e desembocávamos num universo mais vasto . O mundo revelava-nos finalmente o seu verda­deiro sentido (é essa a nossa perpétua ilusão) . Durante um instante, no recanto de uma sala, a nossa vida harmoniza-se com a majestosa mar­cha do dia através dos céus .

Foi por isso que , em vez de calçar os sapatos envernizados e usar uma gravata decente, fui procurar Neville . Fui procurar o mais antigo dos meus amigos , que me conheceu quando fui Byron, quando fui

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discípulo de Meridith e também a personagem de Dostoievski cujo nome esqueci. Fui encontrá-lo sozinho, a ler. Uma mesa perfeitamente arrumada, uma cortina caindo em pregas verticais , um estilete para cortar papel colocado entre as folhas de um livro francês . Nada, pen­sei , altera a postura ou as roupas que os nossos amigos tinham quando os encontrámos pela primeira vez. Está sentado 11a mesma poltrona e veste as mesmas roupas desde o dia em que o conheci . Havia ali liber­dade e intimidade; o reflexo da lareira destacava na cortina a forma redonda de uma maçã. Conversámos sentados no quarto e depois pas­seámos pela avenida, sombreada pelas árvores de folhagem espessa e rumorejante , árvores carregadas de frutos , pelas quais passamos tantas vezes juntos que a erva está pisada e morta em redor de muitas delas , dos nossos poemas e das peças preferidas . Sim, a erva onde ao acaso caminhamos sem cessar ficará para sempre morta. Quando tenho de esperar, pego num livro . Se desperto de noite , tateio a prateleira em busca de um livro . A acumulação de conhecimentos ignorados aumen­ta constantemente no meu cérebro . De vez em quando destaco um fragmento , que tanto pode ser Shakespeare como uma mulher chama­da Peck e digo para mim mesmo, enquanto fumo um cigarro deitado na cama: «assim é Shakespeare, assim é Peck» , com a certeza de um reconhecimento e a surpresa de um conhecimento que me dá uma alegria infinita embora incomunicável . Foi desse modo que Neville e eu compartilhámos as nossas Pecks e os nossos Shakespeares; compa­rámos as diferentes versões que deles tínhamos e essa troca de pontos de vista permitiu a cada um de nós ver a uma nova luz o seu próprio Shakespeare e a sua própria Peck. Depois deslizamos para um desses silêncios que só raras palavras perturbam, como uma barbatana que fende a vasta extensão silenciosa para logo em seguida voltar a afun­dar-se nas profundezas , deixando atrás de si um leve ondular de satis­fação e contentamento .

Mas subitamente ouvimos o bater do relógio. Readquirimos cons­ciência de um mundo diferente daquele em que havíamos mergulhado . É uma sensação dolorosa. Foi Neville que transformou o tempo em que vivíamos . Ele , que estivera a pensar no tempo infinito em que o inte­lectual se move e onde apenas o clarão de um instante nos separa de Shakespeare, remexeu a lareira e começou a viver no tempo que marca a aproximação de outra pessoa, de um encontro . O vasto e nobre espa-

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ço do seu pensamento retraiu-se . Agora estava alerta. Reparei que es­cutava os sons que vinham da rua e no modo como ajeitava a almofada. De entre as miríades de seres humanos de todos os tempos ele escolhe­ra um ser, um momento particular. Ouvi um ruído no vestíbulo . O que ele estava a dizer tremulou no ar como uma chama insegura. Observei como se esforçava por separar um passo de todos os outros passos , como esperava distinguir um sinal e com que rapidez de serpente lan­çava um olhar à maçaneta da porta (daí a espantosa acuidade das suas perceções; ele sempre foi treinado na atenção à pessoa amada) . Uma paixão de tal modo concentrada rejeita o resto do mundo, do mesmo modo que um fluido imóvel e cintilante expulsa qualquer matéria es­tranha. Dei-me conta de como a minha própria natureza era v_aga, ne­bulosa e repleta de sedimentos , cheia de dúvidas , de frases e de notas para registar em cadernos . As pregas da cortina imobilizaram-se, tor­naram-se esculturas ; o pisa-papéis sobre a mesa tornou-se mais duro, mais pesado; o desenho feito no tecido da cortina começou a brilhar; tudo se tornou definitivo, externo, se converteu numa cena em que eu não podia participar. Por isso me levantei e deixei Neville .

Meu Deus ! Como se cravaram em mim, quando saí do quarto , as garras da antiga dor, o desejo de alguém que não estava ali ! Quem? A princípio não sabia de quem se tratava. Depois lembrei-me de Percival . Há meses que não pensava nele . Agora queria rir com ele , rir com ele de Neville , caminhar com ele , rindo , com as mãos sobre os ombros . Mas ele não estava ali . A rua estava vazia.

É tão estranha a maneira que os mortos têm de se lançarem sobre nós à esquina das ruas e nos sonhos !

Foi essa rajada de vento , inesperada e fria, que me arrastou naquela noite através de Londres em busca de outros amigos , de Louis e Rhoda, impulsionado pelo desejo de obter certezas e o contacto huma­no . Enquanto subia as escadas , perguntava a mim mesmo qual seria a relação que unia Louis e Rhoda e o que diriam quando estavam sós . Imaginei Rhoda, preparando desajeitadamente o chá. Olhava vaga­mente sobre os telhados , ela a ninfa da fonte , sempre em lágrimas , obcecada por visões , mergulhada em sonhos . Afastava a cortina para olhar a noite . «Ah, partir ! A charneca está escura sob o luar.» Toquei . Esperei . Louis estava talvez ocupado a deitar leite num pires para o gato . Louis , cujas mãos ossudas se fechavam como as duas extremida-

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des de um dique sobre o imenso tumulto das águas . Louis que sabia o que disseram os egípcios e os índios , os homens de pómulos salientes e os homens solitários envoltos em roupas feitas de crinas . Chamei . Esperei . Ninguém me respondeu . Desci os degraus de pedra. Os ami­gos . . . Como estão distantes , silenciosos , raramente visitados e como sabemos pouco deles . E também eu para eles sou inisterioso e desco­nhecido, um fantasma que às vezes se avista, mas raramente se vê . Certamente a vida é um sonho. A chama de vontade que arde em al­guns olhos depressa se apaga e tudo se extingue então . Lembrei-me dos meus amigos . Pensei em Susan . Comprara novos campos . Pepinos e tomates amadureciam nas suas estufas . Na videira, queimada pela geada do ano passado, duas folhas recomeçavam a crescer. Caminhava pesadamente através dos campos acompanhada pelos filhos . Andava pelas suas terras seguida por homens com polainas e com a bengala apontava um telhado, uma sebe , um muro que precisavam de ser ar­ranjados . As pombas seguiam-na balouçando sobre as patas , esperan­do os grãos que Susan lhes lançava com os seus dedos terrenos e há­beis . «Mas já não me levanto de madrugada» , dizia Susan . Pensei depois em Jinny recebendo, sem dúvida, em sua casa um jovem con­vidado . A conversa habitual atingira o seu secreto objetivo . Jinny apagava as luzes do quarto e arranjava as cadeiras . Sim, porque ela ainda busca o momento encantado . Sem ilusões , dura e clara como cristal , enfrenta o dia com os seios nus . Deixa que os seus raios a atra­vessem. E quando uma madeixa embranqueceu na sua fronte , entre­laçou-a sem medo entre as outras . Assim, quando forem enterrá-la, tudo estará em ordem. Encontrarão pedaços de fita enrolados . Mas a porta continua a abrir-se . Quem é? Pergunta, ao mesmo tempo que se levanta para ir ao encontro do homem, preparada, como nas primeiras noites de primavera em que a sombra das árvores , sob as grandes casas de Londres onde dormiam respeitáveis cidadãos , mal dava para ocul­tar os seus amores . As noites em que o ranger dos elétricos se mistu­rava aos seus gritos de prazer e a agitação das folhas resguardava o seu langor, a deliciosa lassidão a que se entregava, refrescada por todas as doçuras da natureza satisfeita. Os nossos amigos , como os visitamos pouco, como os conhecemos pouco - é verdade . Mas quando encon­tro um desconhecido e tento expor, aqui , a esta mesa, aquilo a que chamo a «minha vida» , não é apenas para o meu passado que volto o

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olhar; não sou um único ser, mas vários ; não sei bem quem sou -Jinny, Susan, Neville , Rhoda ou Louis - nem como distinguir a mi­nha vida da sua.

Pensei em tudo isto naquela noite de princípio de outono em que mais uma vez nos reunimos em Hampton Court. Começámos por nos sentir muito pouco à vontade , porque cada um de nós se compro­metera numa atitude que parecia contrariada pelos que iam chegando ao ponto de encontro , pelo seu modo de vestir e o facto de trazerem ou não trazerem bengala. Vi que Jinny olhava os dedos terrosos de Susan e depois escondia os seus; ao observar Neville , tão limpo e exato , dei-me conta do caráter vago da minha vida, envolta na nebli­na das palavras . Então Neville começou a vangloriar-se , pois tinha vergonha do seu êxito e da sua vida passada num quarto e dedicada a uma só pessoa. Louis e Rhoda, os conspiradores , os espiões senta­dos à nossa mesa, disseram um para o outro: «Afinal de contas Ber­nard bem pode pedir ao empregado para nos trazer pãezinhos , coisa que nós não conseguimos fazer.» Por um instante vimos entre nós o cadáver do ser completo que não tínhamos conseguido ser, mas que ao mesmo tempo não conseguíamos esquecer. Vimos tudo o que te­ríamos podido ser, tudo o que não tínhamos alcançado e, por um instante , invejámos os amigos que tinham obtido êxito onde nós fa­lháramos , como crianças que quando se parte o bolo veem diminuir a parte de onde sairá a sua fatia.

Apesar disso bebemos a nossa garrafa de vinho e sob o seu sedutor efeito cessaram as críticas e as comparações . E a meio da refeição, sentimos que à nossa volta cresciam as grandes trevas do que nos é exterior, daquilo que não somos . O vento e o ruído das rodas dos au­tomóveis converteu-se no rugido do tempo, e sentimo-nos precipita­dos no desconhecido . Quem éramos? Por um instante desaparecemos , extintos como as centelhas num papel incendiado . As trevas bramiam. Atravessámos o tempo e a história. Em mim, esta sensação durou apenas um segundo . Terminou por um ato da minha vontade. Bati com uma colher na mesa. Se pudesse medir as coisas com um compasso, não deixaria de o fazer; mas como as frases são a minha única medida, alinho frases . Ignoro , porém, qual foi a que fiz nessa ocasião . Naquela mesa de Hampton Court transformámo-nos em seis indivíduos . Erguemo-nos e avançámos juntos pela avenida. À luz subtil e irreal do

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crepúsculo, a alegria e a sensualidade apoderaram-se de mim, por on­das , como o eco de risos que se ouvem numa alameda.

Contra um portão, contra o trono de um cedro, vi resplandecerem como manchas brancas os vultos de Neville , Jinny, Rhoda, Louis , Susan e o meu próprio corpo, a nossa vida e a nossa identidade. O rei Guilherme continuava a parecer-me uma personagem irreal com o ouro da sua coroa. Mas nós , os seis , apoiados ao muro, entre as rama­gens , eleitos entre milhões de seres humanos , por um instante arranca­dos à infinita abundância do tempo passado e futuro , ali estávamos ardentes e triunfantes . O momento presente era tudo, continha tudo. E depois , como uma onda que se desfaz, Neville , Susan e eu separámo­-nos , entregámo-nos à folha mais próxima, a um pássaro determinado, a uma criança que passava com o seu aro , ao cão que saltava de ale­gria, ao calor retido pelos bosques nos dias quentes , às luzes que se entrelaçam como fitas brancas nas águas trémulas . Separámo-nos , perdemo-nos na escuridão das árvores , deixando Rhoda e Louis no terraço, junto da uma.

Quando regressámos à superfície , depois desta imersão suave e profunda, foi com algum constrangimento que verificámos que os dois conspiradores continuavam imóveis no local em que os deixá­ramos . Tínhamos perdido aquilo que eles haviam conservado . Inter­rompêramos qualquer coisa . Mas estávamos cansados e o obscuro véu do ocaso caía sobre os nossos atos , bons ou maus , recobria a nossa satisfação como as nossas frustrações . As luzes iam-se extin­guindo quando parámos um instante no terraço que dá para o rio . Os barcos a vapor esvaziavam-se de turistas ; ao longe ouviam-se vozes e cantares como se as pessoas , agitando os chapéus , tivessem decidi­do partilhar uma última canção . O som do coro chegava-nos através do rio e senti agitar-se em mim o desejo antigo que toda a vida me acompanhou , o desejo de ser arrastado para cima e para baixo no clamor das vozes de muitas vozes desconhecidas cantando a mesma canção , de ser arrastado para cima e para baixo no clamor de uma alegria, de um sentimento , de um triunfo, de um desejo quase sem sentido . Mas não naquele instante . Não podia concentrar-me , pôr-me de lado; não podia evitar que tombassem na água as coisas que um momento antes me tinham excitado a curiosidade , divertido , causado ciúme , despertado a vigilância e muitos outros sentimentos . Não

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conseguia subtrair-me a essa dispersão incessante , a essa silenciosa. fuga sob os arcos da ponte , contornando os grupos de árvores e a ilha, até ao local onde as aves marinhas pousavam nas estacas que se erguiam sobre as águas encrespadas que depois se convertiam em ondas . Não era capaz de me subtrair àquela dispersão . Por isso nos separámos .

Era então uma espécie de morte , esta fuga, este fluir em que esta­va confundido com Susan , Jinny, Neville , Rhoda e Louis? Uma nova conjunção de elementos? Um presságio do que estava para vir? A frase foi escrita e o livro fechado , porque o meu gosto pelo estudo é intermitente . Nunca exponho as minhas lições a uma hora marcada. Mais tarde, ao percorrer Fleet Street, à hora de maior mo.vimento, lembrei-me desse momento; dei-lhe continuidade . «Passarei a vida a bater com a colher na mesa?» , perguntei-me . Não será melhor ceder como os outros? Os autocarros passavam completamente cheios; avançavam uns atrás dos outros e detinham-se com um ruído metá­lico , semelhante ao que fazem os elos de uma cadeia que se agita . Os passeios estavam repletos de gente .

Multidões de homens carregando pastas , esgueirando-se com uma rapidez inacreditável , passavam como um rio durante uma enchente . Passavam com um clamor semelhante ao que um comboio faz ao atra­vessar um túnel . Escolhi o momento para atravessar, mergulhei numa ruela escura e entrei na barbearia onde costumo cortar o cabelo . Recostei-me na cadeira e envolveram-me o pescoço com um pano. Rodeado de espelhos , podia ver o meu corpo manietado e as pessoas que paravam, olhavam e voltavam a partir com indiferença. O barbei­ro começou a mover as tesouras sobre o meu cabelo . Sentia-me impo­tente para deter as frias oscilações do aço . É assim que nos cortam e nos cobrem com sudários , disse para mim, é assim que jazemos lado a lado sobre a erva húmida, ramos em flor, ramos mortos . Já não temos de nos expor ao vento e à neve no alto das sebes nuas ; já não temos de permanecer de pé quando a tempestade sopra, nem de suportar o nos­so fardo; já não precisamos de ficar silenciosos e imóveis nos pálidos meios-dias em que as aves se refugiam nas folhagens e a humidade branqueia as folhas . Fomos cortados ; caímos . Tomamo-nos parte do universo insensível , que dorme quando dentro de nós a vida se agita e arde ao rubro quando dormimos . Renunciamos ao tempo que era nos-

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so , e agora jazemos inertes , emurchecidos , em breve esquecidos . E nesse instante vi no canto do olho do barbeiro um brilho que exprimia o seu interesse por qualquer coisa que se passava na rua.

O que é que despertara o interesse do barbeiro? Que via ele na rua? São coisas como estas que me fazem regressar à vida real . (Pois eu não sou um místico e há sempre qualquer coisa que me puxa pela manga; a curiosidade , a inveja, a admiração , ou o interesse que tenho pela vida dos barbeiros e indivíduos semelhantes , fazem-me voltar à superfície .) Enquanto ele escovava o meu casaco , procurei , não sem esforço, desvendar a sua alma e depois , balançando a bengala, dirigi­-me para o Strand e invoquei , para me servir do contraste , a imagem de Rhoda, sempre tão furtiva, com os olhos cheios de receio , sempre em busca de uma coluna perdida no deserto , em busca da qual ela tinha partido e pela qual fora capaz de morrer. «Espera, dizia eu segurando-lhe o braço em imaginação (pois é assim que tratamos os amigos) . Espera que os autocarros passem. Não atravesses tão im­prudentemente . Estes homens são teus irmãos .» Procurando persuadi­-la, procurava ao mesmo tempo persuadir-me a mim próprio . Sim, porque esta vida não é apenas uma vida, e às vezes ignoro se sou Bernard ou Neville , Louis ou Susan , Jinny ou Rhoda, de tal modo são estranhas as relações que temos uns com os outros .

Balançando a bengala, o cabelo acabado de cortar e uma certa co­michão na nuca, passei pelas bandejas com brinquedos baratos im­portados da Alemanha, que os vendedores oferecem na rua St. Paul - St. Paul, a galinha choca de asas abertas , à volta da qual se agitam as correntes da multidão e passam os autocarros na hora de ponta. Imaginei Louis subindo aquelas escadarias , com o seu fato impecá­vel , bengala na mão, o passo anguloso e um tanto altivo e o seu sota­que australiano («o meu pai , banqueiro em Brisbane») . Sem dúvida participaria nas cerimónias religiosas com mais respeito que eu , que ouço as mesmas lengalengas há milhares de anos . Sempre que entro nesta igreja fico impressionado pelos brilhantes tons de rosa, os bron­zes reluzentes e o salmodiar dos cantos onde se destaca a voz de um menino que se lamenta e esvoaça como uma pomba perdida. Fico também impressionado com a paz e a postura dos mortos - guerrei­ros descansando sob os seus antigos pendões . Depois faço troça de um túmulo , absurda e floridamente adornado, e também das trombe-

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tas e das vitórias e dos escudos de armas e da certeza, tão clamorosa­mente afirmada, na ressurreição , na vida eterna. Depois a minha vista inquieta e inquiridora oferece-me a imagem de uma criança atemori­zada, de um velho reformado que avança arrastando os pés e das ge­nuflexões das empregadas das lojas , com os seus pobres seios ma­gros , esgotadas por sabe Deus que combates interiores , que se vêm refugiar aqui à hora da saída dos empregos . Erro ao acaso , olho e admiro e às vezes , furtivamente , tento ascender nas asas de uma ora­ção até à cúpula da igreja e até mais longe , até onde vão todas as orações . Mas depois , tal como a pomba perdida que se lamenta, sinto que as forças me faltam, esvoaço, desço e pouso numa curiosa gárgu­la, o nariz gasto de uma estátua ou qualquer absurda pedra tumular. Divertido , espantado , volto a observar os turistas que passam segu­rando os roteiros , enquanto a voz do menino do coro se alça de novo em direção à cúpula e o órgão se entrega a momentos triunfais que fazem lembrar a marcha dos elefantes na floresta. Como poderia Lou­is combinar tudo isto? Como conseguiria ele delimitar-nos , unir-nos , com ajuda da sua fina pena de tinta vermelha? A voz extinguiu-se na cúpula, tomou-se um lamento .

Estou de novo na rua balançando a minha bengala, olhando os ex­positores metálicos nas montras das papelarias e as cestas de frutas exóticas , trauteando uma canção infantil, Pillicock sentava-se na coli­na de Pillicock, ou ão, ão, ão , ladra o cão , vai-te embora, morte , vai-te embora, misturando o absurdo com a poesia e deixando-me arrastar na corrente . Mas há sempre alguma coisa para fazer em seguida. Terça­-feira vem depois de segunda; quarta-feira depois de terça. Cada dia espalha ondulações à sua volta. O ser cresce em círculos como o tron­co das árvores . E, como uma árvore , vê cair as suas folhas .

Um dia, quando estava apoiado numa cancela que dava para um campo , o ritmo deteve-se , detiveram-se os versos , as canções infan­tis , o absurdo e a poesia. O meu espírito tomou-se vazio . Vi através da espessa folhagem do hábito . Debruçado nessa cancela, lamentei tanta desordem, tantos objetivos irrealizados , tantas separações (por­que temos demasiado que fazer para podermos atravessar Londres para ver um amigo, embarcar para a Índia, ou ver um homem nu pescar com um arpão na água azul) . A minha vida foi imperfeita, uma frase inacabada. Para mim, que não tenho qualquer problema

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em aceitar um cigarro de um desconhecido que encontro no com­boio , foi-me impossível conservar a coerência, o sentido das gera­ções de mulheres carregando cântaros vermelhos até ao Nilo e do rouxinol que canta entre guerras e migrações de povos . Era um em­preendimento demasiado vasto , disse para mim mesmo . E como se­ria possível continuar eternamente a subir os degraus da escada? Falei comigo como o teria feito para um companheiro com quem viajasse para o pólo norte.

Falava com aquele eu que estivera comigo em numerosas e terríveis aventuras , o amigo incondicional que permanece sentado diante do fogo quando já todos se foram deitar, remexendo as cinzas com um atiçador. Falava ao homem que foi construído, misteriosamente cons­truído em sucessivas camadas , num bosque de faias , junto de um sal­gueiro na margem do rio ou debruçado num parapeito de Hampton Court, o homem que se tinha recolhido em si nos momentos críticos e batera com a colher na mesa dizendo: «Não consentirei .»

Este eu não me deu qualquer resposta no momento em que , apoiado na cancela, olhava os campos que desenrolavam diante de mim as suas ondas de cor. Não levantou qualquer objeção. Nem sequer uma frase tentou dizer. E a sua mão não se crispou na forma de um punho. Espe­rei , escutei . Nada aconteceu , nada. Foi então que gritei assaltado pelo sentimento de uma completa solidão . «Agora sei que nada existe . Nenhuma barbatana quebra a solidão deste mar imenso . A vida des­truiu-me. Quando falo , nenhum eco me responde transformando as minhas palavras . Esta morte é ainda pior que a morte dos meus ami­gos , que a morte da minha juventude .»

Murchou a paisagem que me rodeia. Foi como num eclipse , quan­do o Sol desaparece e a terra, apesar de coberta pela sua mais bela folhagem de verão , se toma murcha, frágil e irreal . Vi também os grupos que outrora formávamos , dançarem na poeira de uma estrada sinuosa, reunindo-se , comendo juntos e encontrando-se ora num ora noutro quarto . Vi a minha infatigável atividade , como corria de um para outro lado , como tinha viajado e regressado, me unira a este ou àquele grupo, umas vezes beijado, outras rejeitado, perseguindo sempre algum extraordinário projeto , com o nariz colado ao solo , como um cão seguindo um rasto . Às vezes , erguendo a cabeça, sol­tava um grito de espanto ou desespero , e depois seguia de novo o

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rasto . Que desordem, que confusão . Nascimento e morte , suculência e doçura, esforço e angústia, e eu sempre correndo de um lado para o outro . Mas agora tudo terminara. Já não tinha qualquer apetite para saciar, nem dardos com que atingir os outros , nem dentes afia­dos , nem mãos para agarrar, nem desejo de sentir as peras e as uvas e o sol refletindo-se no muro do pomar.

Os bosques tinham-se desvanecido e a .terra estava reduzida a um deserto de sombras . Nenhum ruído perturbava o silêncio da paisagem invernal . Nenhum galo cantava, nenhum fumo se eleva­va nos ares , nenhum comboio passava. Era apenas um homem sem alma, um corpo pesado apoiado numa cancela. Um homem morto . Com a imparcialidade do desespero , na mais completa ausência de ilusões , olhei o pó que dançava. A minha vida, as vidas dos meus amigos e as presenças fabulosas dos jardineiros com vassouras , de senhoras sentadas a escrever, o salgueiro na margem do rio - nu­vens e fantasmas , também eles feitos de pó , de um pó que mudava de forma, como as nuvens que aumentam e diminuem se revestem de vermelho e ouro e perdem os seus cumes , versáteis e vãos . Eu , segurando o caderno e anotando frases , limitei-me a registar as mudanças . Fui uma sombra ocupada a registar sombras . Mas como prosseguir agora , sem um eu , sem peso e sem ilusões , num mundo sem ilusões e sem peso?

O peso do meu desespero abriu a cancela em que me apoiava e lançou-me, a mim, homem já entrado nos anos , homem de cabelos grisalhos , no campo vazio , no campo sem cor. Já se não ouviam ecos nem viam fantasmas . As lutas tinham terminado . Agora só havia o interminável caminhar sem sombra, que não deixava qualquer marca na terra morta. Se ao menos ali houvesse carneiros mastigando , mo­vendo uma pata após outra, ou uma ave , ou um homem cavando a terra ou uma sarça para me fazer tropeçar, ou uma vala repleta de folhas húmidas onde cair - mas não , a melancólica vereda estendia­-se pela planície , conduzia apenas a novos recantos de inverno e palidez e por todo o lado se avistava a mesma paisagem indiferente e monótona.

Como regressa a luz depois de um eclipse do Sol? Milagrosamente . Com timidez . Em raios ténues . A luz mantém-se suspensa sobre a terra como uma caixa de cristal . E como um frágil anel que o mais

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pequeno choque pode estilhaçar. Uma cintilação surge , depressa subs­tituída por uma corrente de sombra. Depois um vapor desprende-se da terra como se ela tivesse começado a respirar. Em seguida, tem-se a impressão que nesta atmosfera morta alguém caminha segurando uma lanterna verde . Depois surge um clarão fantasmal . Uma pulsação azul e verde atravessa o bosque e os campos impregnam-se lentamente de vermelho , dourado e castanho . Subitamente um rio apodera-se de um reflexo azul . A terra bebe a cor, tal como uma esponja absorve a água. Adquire peso , arredonda-se , pende, recupera o equilíbrio e oscila aos nossos pés .

Foi assim que a paisagem regressou; foi deste modo que vi os campos moverem-se a meus pés em ondas coloridas . Mas agora ha­via uma diferença. Eu via sem ser visto . Caminhava sem sombra; chegava sem ser anunciado . Do meu corpo tombara o velho manto , a resposta, a mão vazia que golpeava para devolver os sons . Subtil como um fantasma, sem deixar quaisquer marcas nos sítios por onde passava, reduzido a um olhar que contempla, caminhei solitário por um mundo novo , nunca antes percorrido , tocando ao de leve em flores novas , semelhante a uma criança que só consegue pronunciar monossílabos; sem a proteção das frases , eu que construí tantas ; sem companhia, eu que sempre tive alguém com quem compartilhar o lar vazio , ou o armário com a sua maçaneta dourada.

Mas como descrever um mundo de que o eu está ausente? As pa­lavras faltam. O azul , o vermelho, até essas palavras desorientam, tornam a atmosfera mais densa, em vez de deixarem que a luz a atravesse . Como dizer qualquer coisa, como descrever qualquer coi­sa com palavras articuladas? Quando muito pode dizer-se que esta paisagem se desvanece , se transforma pouco a pouco, se banaliza até no decurso deste breve passeio . A cegueira regressa quando nos mo­vemos e uma folha repete outra folha. A beleza regressa quando olhamos , arrastando consigo as suas frases fantasmais . Respiramos , inspirando e expirando um sopro substancial ; lá em baixo , no vale , o comboio atravessa os campos com a sua cabeleira de fumo.

Mas durante um instante fiquei sentado na erva acima do mar e do rumor dos bosques; vi a casa, a casa e as ondas que se desfaziam na praia. A velha ama que voltava as páginas de um livro ilustrado de­tivera o seu gesto , dizendo-me: «Olhe , isto é a verdade .»

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Era nisso que pensava nessa noite enquanto descia a avenida Sha­ftesburt. Pensava naquela página do livro ilustrado . E quando o en­contrei a si no vestiário , disse para mim mesmo: «Pouco importa a personalidade das pessoas que encontro . A pequena aventura do ser terminou . Não sei quem ele é , nem me importa sabê-lo . Jantaremos juntos .» Pendurei o casaco , toquei-lhe no ombro e disse: «Sente-se à minha mesa.»

Agora a refeição terminou; estamos rodeados de cascas de frutos e de migalhas de pão . Tentei arrancar este ramo (a minha vida) e oferecer-lho . Mas ignoro se nele existe substância e verdade . Nem sequer sei exatamente onde estamos . Qual é esta cidade sobre a qual se avista um pedaço de céu? Estamos em Paris , em Londr�s , ou nu­ma cidade do Sul , com as suas casas de um cor-de-rosa desbotado , rodeadas de ciprestes , ao pé das altas montanhas onde as águias voam? Neste instante de nada tenho a certeza.

Começo a esquecer, começo a duvidar da consistência das mesas , do aqui e do agora, começo a golpear com os nós dos dedos os ângulos dos objetos aparentemente sólidos e a perguntar: «Vocês são duros?» Vi tantas coisas , pronunciei tantas frases . Nesta cedência à rotina de comer e de beber, à força de passear os meus olhos pela superfície das coisas , perdi a concha delgada e dura que envolve a alma e que na juventude nos encerra - é isso que explica a crueldade dos jovens e as suas bicadas , incessantes e ferozes . Por isso pergunto: «Quem sou eu?» Falei de Bernard, de Neville , de Jinny, de Susan , de Rhoda e Louis . Serei acaso todos eles ao mesmo tempo? Serei um ser distinto e único? Não sei . Sentamo-nos aqui juntos . Mas Percival morreu e Rhoda morreu . Dispersamo-nos . Não estamos aqui . Mas apesar disso , não vejo nada que nos separe. Nenhum obstáculo se ergue entre nós . Enquanto estava a falar ia pensando: «somos a mesma pessoa» . Essas diferenças que nos pareciam tão importantes , essa identidade a que concedíamos tanta importância, foi superada. Sim, desde o instante em que a senhora Constable ergueu a esponja e a água tépida escorreu pelo meu corpo, tomei-me recetivo e sensível . Ainda tenho na fronte o golpe que recebi quando Percival caiu . E na nuca guardo o beijo que Jinny deu em Louis . Os meus olhos enchem-se com as lágrimas de Susan . E ao longe, tremulando como um fio de ouro , vejo a coluna que Rhoda entreviu no deserto e sinto o vento da sua fuga.

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Deste modo, enquanto estou sentado a esta mesa e me esforço por modelar a história da minha vida e colocá-la diante de si como se fos­se uma coisa completa, sou forçado a recordar-me de coisas distantes e profundas , mergulhadas numa dessas inúmeras vidas e nela dissolvi­das ; sonhos , coisas que me cercam e também os hóspedes , esses fan­tasmas semiarticulados que me rondavam noite e dia, se voltavam no sono, soltavam gritos confusos e me agarravam com os seus dedos espetrais quando me procurava escapar, sombras do que eu poderia ter sido, eus que nunca nasceram. E há também a besta antiga, o selva­gem, o homem hirsuto que mergulha as mãos no festim das entranhas , mastiga e arrota, e cuja fala é gutural , visceral . Também ele continua ali , aninhado dentro de mim. Esta noite banqueteou-se com codorni­zes , salada e fígado de vitela. Neste momento segura na pata um cáli­ce de fino conhaque antigo . Enquanto bebo, os seus frémitos de prazer percorrem-me a espinha. É verdade que lava as mãos antes do jantar. Mas nem por isso as mãos deixam de ser peludas . Abotoa as calças e o colete , mas essas roupas recobrem sempre os mesmos órgãos . Co­meça a protestar quando não lhe sirvo as refeições a horas . Grunhe e geme sem cessar, mostrando com gestos idiotas , com ânsia e cobiça, as coisas que deseja. Asseguro-lhe que às vezes me é muito difícil dominá-lo . Este homem coberto de pelos , simiesco, desempenhou um papel na minha vida. Deu um esplendor mais verde às coisas verdes , colocou a sua tocha de chamas rubras , o denso fumo por detrás de cada folha. Iluminou até o fresco jardim. Brandiu a sua tocha nas rue­las sórdidas onde o rosto das raparigas reluziu numa rubra e embria­gadora transparência. Oh, sim, ele ergueu bem alto a sua tocha ! Com ela arrastou-me para as danças selvagens . . .

Mas agora tudo terminou . Nesta noite , o meu corpo eleva-se como as pedras de uma igreja plena de frescura, com o pavimento recober­to de espessos tapetes , onde sobem murmúrios e há altares envoltos em incenso . Aqui acima, à minha serena consciência, só chegam as ondas de perfume e as músicas maravilhosas , enquanto a pomba perdida se lamenta, os pendões tremulam sobre os túmulos e através das janelas abertas se veem as árvores agitarem-se na negra atmos­fera da meia-noite . Vistas de tão alto até as migalhas de pão me pa­recem belas ! E como são simétricas as espirais formadas pelas cas­cas de pera, delicadamente manchadas como os ovos de um pássaro

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marinho ! Até os garfos , colocados uns ao lado dos outros , parecem lúcidos , lógicos e exatos; e as bicas dos pãezinhos que não comemos são vidrados , duros e dourados ! Sinto-me cheio de adoração pelas minhas mãos , por este leque de ossos percorridos por misteriosas veias azuis , pela sua espantosa flexibilidade , eficácia e capacidade de se fecharem suavemente ou de esmagarem de súbito qualquer coisa, pela sua infinita sensibilidade .

Esta noite o meu ser: sente-se capaz de compreender tudo, de tudo abarcar, trémulo de plenitude , mas ao mesmo tempo límpido de con­tido , agora que os desejos já o não incitam a que parta e se afaste , agora que a curiosidade já deixou de o tingir com as suas mil cores . O meu ser é profundo, isento de toda a agitação , imune , ag�)fa que já morreu o homem a quem chamava «Bernard» , o homem que tinha no bolso um caderno onde tomava as suas notas , frases sobre a Lua, esboços de um rosto , a aparência das pessoas , o modo como volta­vam a cabeça ou lançavam fora os cigarros ; na letra B , o pó que se desprende das asas da borboleta, na letra M , as diferentes maneiras de designar a morte . Mas agora gostaria de abrir a porta, a porta envidraçada que constantemente gira nos gonzos . Gostaria de ver entrar uma mulher, ou um jovem em fato de cerimónia e com um pequeno bigode . Gostaria que se sentassem junto de mim. Haverá alguma coisa que possam ensinar-me? Não . Sei tudo o que eles sa­bem. E se de repente a mulher se levantasse , dir-lhe-ia: «Querida, não sinto nenhum desejo de te seguir.» O ruído das ondas que se desfazem, esse ruído que me acompanhou toda a vida, que me des­pertava para ver a maçaneta dourada do armário , já não fez vibrar o que seguro nas mãos .

E assim, carregando aos ombros o mistério das coisas , posso errar pelo mundo como um espião , sem sair deste sítio , sem sequer me levantar desta cadeira. Posso visitar os mais remotos confins das terras desertas onde os selvagens se reúnem em tomo da fogueira. O dia nasce; a jovem divindade faz brilhar com o seu olhar as joias cor de água; o Sol alonga os seus raios sobre a casa adormecida. O ritmo das ondas que se desfazem na praia toma-se mais sombrio . A sua espuma reflui empurrada pelo vento . Deslizando pela praia, as águas rodeiam o barco e o cardo marinho. Os pássaros cantam em coro e entre os caules das flores abrem-se túneis verdes . A casa toma-se

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mais nítida, aqueles que dormem espreguiçam-se e lentamente tudo desperta. A luz inunda o quarto e faz recuar as sombras até um canto onde ficam como pregas imperscrutáveis . O que existirá por detrás das trevas? Alguma coisa? Nada? Não sei .

Ah, mas o seu rosto existe . Vejo a expressão dos seus olhos . Eu , que me julguei tão vasto como um templo , uma igreja, um universo sem limites , capaz de estar em todo o lugar, no rebordo de todas as coisas e também aqui , sou apenas aquilo que se pode ver, um homem já idoso , de corpo pesado e têmporas grisalhas , que (vejo-me ao es­pelho) apoia um cotovelo na mesa e segura na mão esquerda um cálice de conhaque antigo . É este o resultado do golpe que me asses­taram. Choquei com a caixa do correio . Cambaleio sem conseguir recuperar o equilíbrio . Levo as mãos à cabeça. Já não tenho chapéu; deixei cair a bengala. Cobri-me de ridículo e é com inteira razão que os transeuntes se riem de mim.

Meu Deus , como a vida é odiosa ! E que ratoeiras nos prega. Depois de um momento de liberdade ficamos reduzidos a isto . . . Aqui estamos sentados entre migalhas de pão e guardanapos sujos . No gume da faca a gordura começa a ganhar consistência. A desordem, a sordidez e a corrupção rodeiam-nos . Acabamos de comer aves mortas . É com estas migalhas de pão cheias de gordura, com estes guardanapos sujos e estes pequenos cadáveres que temos de construir. É necessário reco­meçar sempre . O inimigo nunca nos abandona. Olhos que fitam os nossos olhos . Dedos que se apoderam dos nossos dedos . O esforço de esperar. É preciso chamar o empregado. Pagar a conta. É preciso levantarmo-nos das cadeiras . É preciso ir buscar os casacos . É preciso ir embora. É preciso , é preciso , é preciso . . . Palavras detestáveis . Uma vez mais, eu que me julgava imune, que tinha dito «agora estou livre de tudo» , vejo que a onda me submerge , dispersa tudo o que possuo e me força de novo a recolher, a reunir todas as minhas forças e a erguer­-me para enfrentar o inimigo .

É estranho que nós , que somos capazes de sofrer tanto , possamos · infligir aos outros tanto sofrimento . É estranho que o rosto de al­guém que mal conheço (creio apenas tê-lo encontrado uma vez , na ponte de um navio que viajava para África) que uma simples con­junção de olhos , faces e narinas , tenha o poder de me infligir este insulto . Você olha , come , tem o ar de estar preocupado , contente ou

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aborrecido . É tudo o que posso saber de si . E, no entanto , esta som­bra que esteve sentada à minha frente durante uma hora ou duas , essa máscara através da qual dois olhos me espiam, tem o poder de me fazer voltar para trás , de me colocar entre todos os outros ros­tos , de me fechar numa câmara-ardente , ou de me fazer esvoaçar de vela em vela, como uma borboleta noturna.

Mas espere. Espere enquanto fazem a conta por detrás do balcão . Agora que o amaldiçoei através deste golpe que me fez cambalear por entre cascas de frutos , migalhas e restos de carne, vou registar em palavras muito simples as descobertas que fiz sob a pressão do seu olhar. Ouço o bater do relógio , a mulher que espirra e vejo o emprega­do que se acerca . . . tenho a sensação de que as coisas se aproximam, se aceleram e de que me confundo com o universo . Ouça: é o som de um apito e ouve-se também o surdo ruído de rodas e o ranger de uma porta. Graças a si recupero o sentido da luta, da realidade e da comple­xidade das coisas . E com alguma compaixão, alguma inveja e a maior boa vontade , estendo-lhe a mão desejando-lhe boa noite .

Deus seja louvado por nos ter dado a solidão . . . Agora estou só . A pessoa quase desconhecida foi-se embora, foi apanhar um com­boio , ou um táxi , para ir não sei onde ver alguém que não conheço . Já não está aqui o rosto que me olhava. Não sinto já a pressão do seu olhar. Ficaram as chávenas de café vazias . Não há ninguém sentado nas cadeiras . E já ninguém virá sentar-se a estas mesas para jantar.

Quero entoar uma canção de agradecimento . Que Deus seja lou­vado pela solidão que nos concede . Quero estar sozinho . Quero lan­çar para longe de mim o véu do ser, esta nuvem que se altera ao menor sopro , de dia e de noite , cada dia e cada noite . Enquanto esti­ve sentado a esta mesa fui mudando . Vi como o céu se modificava. Vi as nuvens cobrir as estrelas , depois libertarem-nas e de novo as cobrirem. Agora ninguém me vê; por isso deixei de mudar. Deus seja louvado por esta solidão que me libertou da pressão do olhar, da solicitação do corpo, da necessidade da palavra e da mentira .

O meu caderno repleto de frases caiu ao chão . Jaz debaixo da me­sa para ser varrido pela mulher da limpeza, que virá amanhã de manhã com o seu passo cansado , para juntar os pedaços de papel , bilhetes de autocarro e papéis com anotações amassados em bolas . Qual é a frase sobre a Lua? E a frase sobre o amor? Que nomes exis-

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tem para designar a morte? Não sei ! Necessito de uma linguagem ingénua como a dos amantes , palavras de uma sílaba apenas como a que as crianças usam quando entram num quarto e encontram a sua mãe a costurar e apanhem um fio de lã colorida, uma pluma ou um pedaço de chita. Preciso de um gemido , de um grito . Não necessito de palavras quando , deitado numa vala, vejo a tempestade que me ignora agitar o céu sobre os campos pantanosos . Não necessito de nada que seja exato . De nada que tenha os pés solidamente assentes na terra. Nem de nenhum desses amáveis ecos que soam e ressoam de nervo em nervo , dentro do nosso peito , insensata música de frases mentirosas . Abandonei as frases .

Como é preferível o silêncio ! A chávena de café , a mesa. Como é preferível estar sentado nesta sala vazia, como a solitária ave mari­nha pousada numa estaca. Deixem-me ficar aqui para sempre , entre estas simples coisas , esta chávena de café , esta faca, este garfo, coi­sas em si , que me deixam ser eu . Não venham perturbar-me com a insinuação de que é tarde e precisam de fechar. Daria de boa vontade tudo quanto possuo para que me não perturbem, para que me deixem ficar para sempre sentado neste lugar, silencioso e solitário .

Mas agora o chefe dos empregados reaparece depois de ter termi­nado a sua refeição; franze as sobrancelhas . Tira do bolso o seu lenço de pescoço e prepara-se ostensivamente para partir. Têm de se ir embora, de correr os estores , dobrar as toalhas e de passar um pano húmido debaixo das mesas .

O diabo os leve . Apesar de ter rompido com tudo e da minha fadi­ga, tenho de me levantar, procurar o casaco que me pertence , enfiar os braços nas mangas , proteger-me contra o frio noturno e sair. Eu , eu , eu , cansado como estou , esgotado como estou , gasto de tanto roçar o nariz pela superfície das coisas , até eu , um homem já idoso e cujo corpo começa a ser demasiado pesado e que não gosta de fazer esforços , sou obrigado a sair para apanhar o último autocarro .

Vejo de novo a rua familiar. As luzes da grande cidade já não ilumi­nam o firmamento . O céu está escuro como o osso de uma baleia po­lido pelo tempo . Mas lá em cima qualquer coisa clareia, uma lâmpada ou talvez a madrugada que chega. Agora há uma certa agitação, par­dais chilreiam nos plátanos . Por todo o lado se espalha o pressentimen­to do dia que nasce . Não, não lhe chamarei aurora. Que é a aurora na

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cidade, para um homem j á idoso que de pé na rua olha o céu com um ligeiro sentimento de vertigem? A aurora é um clarear do céu , uma espécie de renovação . Outro dia, outra sexta-feira, outro vinte de mar­ço, janeiro ou setembro . Uma vez mais o mundo desperta. As estrelas retrocedem e extinguem-se . É mais sombria a separação das ondas . A neblina adensa-se sobre os campos . O vermelho sobe às pétalas das rosas , mesmo à da pálida roseira que se debruça à janela de um quarto . Um pássaro canta. Os camponeses acendem as luzes das casas . Sim, é a eterna renovação, o incessante movimento .

E também dentro de mim a onda se ergue . Cresce , arqueia o dorso . Uma vez mais sinto renascer em mim um desejo, qualquer coisa que vem do mais fundo de mim, como o altivo cavalo que o . cavaleiro esporeia e em seguida refreia. Tu , sobre quem cavalgo , diz-me que inimigo vemos agora avançar contra nós , neste momento em que golpeias a calçada com os teus cascos . É a Morte .

A Morte é o nosso inimigo . É contra a morte que cavalgo de lança em riste e os cabelos flutuando ao vento , como os de um jovem, como os de Percival quando galopava na Índia. Cravo as esporas nos flancos do meu cavalo . Invencível e indómito é contra ti que comba­to , ó Morte !

As ondas desfazem-se na praia .

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ÜBRAS DA AUTORA NESTA EDITORA

A Casa Assombrada

As Ondas

Os Anos

Orlando

Contos

Mrs . Dalloway

Londres

Um Quarto Só para Si

A Viúva e o Papagaio

Rumo ao Farol

Flush - Uma Biografia

Entre os Actos

Noite e Dia

Obras Escolhidas I

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