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isabelpereira2010
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PÚBLICO celebra hoje 25 anos de vida nas bancas; há
poucos meses cumpria eu as minhas bodas de prata
de emigrado em Inglaterra. Tirando esta tangencial
coincidência, há muito pouco em comum entre mim
e este jornal.
Achei pois surpreendente terem-me escolhido —
um mero cientista — para fazer de senhor director
por um dia, especialmente havendo pelo burgo tanta
gente muito mais habilitada do que eu para cagar
postas de pescada. O email de convite prometia
ainda “completa liberdade” para fazer o que me
desse na real gana com o jornal. Um sorriso maroto
deve ter-me aparecido no rosto.
Suponho que se quisesse dar à ciência mais
“protagonismo” (para usar um vocábulo à Luís
Figo) num país com mais orgulho, e com razão,
nas suas proezas futebolísticas e tauromáquicas.
Um país também onde a ciência continua a ser o
parente pobre da produção intelectual, recheada
de ilustres músicos e escritores, poetas e malucos
vários. Só que a ciência que eu faço e amo não são
telemóveis nem foguetões — é poesia. E depois tenho
um segredo vergonhoso: antes de ser cientista, tive
pretensões jornalísticas, num sentido muitíssimo
lato do termo. Ao pedirem-me um editorial acerca
das minhas relações com a imprensa senti pois um
certo déjà vu.
Recordo aqui a minha adolescência lusitana e
um certo pasquim de bênção Louçânica, onde
escrevinhávamos uns quantos sobre coisas como
a legalização do aborto (quando isso ainda era
monopólio de esquerdelhos), num estilo cheio de
parvoíces e bacoradas. Mas esses desbragamentos
foram sol de pouca dura e em breve caí no buraco
negro que é fazer ciência. O universo dá-me uma
enorme trabalheira, é uma estopada, não deixa
grande tempo para fazer outras coisas. Não admira
que tanta gente deixe os mesteres cósmicos para a
religião, Deus que se amanhe enquanto nós mortais
nos dedicamos à comunicação social.
No início dos anos 1990 mudei-me para Inglaterra,
com uma jura a pés juntos de que mulheres
portuguesas nunca mais. Enquanto por lá, perdi
completamente o respeito pela imprensa. A grande
maioria dos media ingleses é uma desgraça, e isto
vai muito para lá dos infames tablóides. A receita
é simples: aferir o que deixa o bife tradicional
indignado e seguro da sua superioridade, inventar
histórias que sirvam o ângulo, procurar factos que as
assistam, inventá-los se não os há, suprimi-los se as
contradizem... e pronto, vendas asseguradas, e tudo
com infi nitas pretensões de objectividade mediática.
A generalização é injusta, claro está, aliás como
em tudo, também no jornalismo os britânicos têm
o pior e o melhor. Mas a única coisa que hoje leio
com regularidade por terras de Sua Majestade é o
Private Eye, uma espécie de Charlie Hebdo mas muito
melhor, mistura de humor cáustico e jornalismo
de investigação do mais fi no. Que haver assunto
há: corrupção é o que não falta em Inglaterra.
Corrupção perfeitamente legalizada, entenda-se,
não é como em Portugal ou Itália, povos muitíssimo
inferiores à Europa Nazi-de-Espírito-do-Norte.
Quis entretanto o acaso trazer-me de regresso à
pena, desta vez em fainas de divulgação científi ca.
Entre coisas menos laudatórias, chamaram a um
dos meus livros uma “biografi a gonzo”, de outro
disse-se que era onde “Medo e Delírio em Las Vegas
se cruza com Uma Breve História do Tempo”. Eu nem
sabia o que queria dizer o termo “gonzo” ou que
tinha a ver com jornalismo, já disse que para cagar
de alto erudição o PÚBLICO podia ter escolhido
melhor. Foi um amigo de Roma, adepto de cocaína
e alucinogénios, que me corrigiu o défi ce cultural,
obrigando-me a ler uma catrefada de livros de Hunter
S. Thompson e Acosta, alguns em tradução italiana.
Fiquei deslumbrado com aquilo. E se em vez de
os jornalistas fi ngirem que são objectivos, coisa que
nem a ciência é, exibissem os seus preconceitos
na montra, polvilhados com drogas duras? E se os
jornais ingleses dissessem abertamente “somos
uma cambada de porcos xenófobos que andam
alegremente a inventar histórias”? Não mereceriam
fi nalmente uma pitada de respeito? O jornalismo
gonzo certamente que me surgiu como um antídoto
a muita hipocrisia. Por isso quando me convidaram
para ser director por um dia do PÚBLICO foi isso
que me ocorreu: fazer uma edição “gonzo” do
jornal. Afi nal tinham-me prometido a mais completa
liberdade no aliciante email de convite. Por um dia.
Mas é claro que isso da “liberdade completa” é
coisa que não existe. Nem em utopias nos despimos
de constrangimentos. Seria porventura razoável
exigir à redacção do PÚBLICO que passasse um
dia a tripar com LSD e a escrever sobre a situação
económica da Grécia em textos onde deveriam
misturar relatos da própria vida sexual? Talvez sim,
talvez não. Afi nal é uma festa de anos.
Há uma fi na linha entre ser-se uma fi gura
decorativa e um tirano. Um jornal bem-sucedido
é um trabalho de grupo, onde o colectivo é mais
importante do que qualquer ronáldico ponta-de-
lança. A redacção do PÚBLICO fugiu com as minhas
sugestões e fez com elas o que quis. Que festejem
bem. Que continuem assim até às bodas de ouro.
Editorial
Por João Magueijo
25 anos sem dormir
TEMPO DE TUDO
Quanto tempo é que o tempo tem? O tempo – e tudo o que existe – tem 13.800 milhões de anos. É a idade do próprio Universo, o tempo desde o Big Bang, a grande “explosão” criadora de tudo. Estes 13.800 milhões de anos resultam dos cálculos mais recentes baseados em observações do telescópio espacial Planck, que afi nou a idade do Universo com um nível de pormenor que permitiu atribuir--lhe mais 100 milhões de anos do que antes. Para nos situarmos, o nosso sistema solar, incluindo a Terra, formou-se há 5000 milhões de anos, tinha então o Universo já 9000 milhões de anos de existência. E, depois, a Terra ainda teria um longo caminho pela frente até ao dia, há uns meros seis milhões de anos, em que surgiram os primeiros hominídeos. Começamos esta edição de aniversário olhando para o tempo a grande escala. É o tempo do espaço, é o tempo do tempo, é o tempo de tudo.
Dar tempo ao tempo
Por João Magueijo
Celebra-se o
centenário da teoria
da relatividade
geral, neste ano
denominado “da
luz”, mas oculta-se
do pudor público
o lado negro dessa
bonita arte mágica.
A relatividade geral
pode ter dado
femininas curvas ao
espaço e ao tempo,
atribuindo-lhes
maleabilidade e vida própria, mas o que raramente
se diz é que essa nobre ciência também retirou ao
tempo o seu predicado mais óbvio: o fl uir.
Ao embrulhar na mesma trouxa o espaço e o
tempo, negando-lhes natureza independente em
favor de um híbrido — o espaço-tempo —, a teoria
da relatividade roubou ao tempo o seu brotar.
Da mesma forma que o eixo do xis (esse terror
que aprendemos na escola) não “fl ui”, o tempo
da relatividade também não escorre. Ao longo de
uma linha espacial há ordem — há o equivalente da
organização de um presente, passado e futuro —, mas
não há nada que se assemelhe a um ponto particular
e único que vai escoando ao longo dessa linha, o
equivalente do presente. Dando direitos e deveres
iguais ao espaço e ao tempo, amalgamando-os num
ser único, a relatividade nega igualmente a existência
de um presente que fl ui activamente do passado para
o futuro. Ordem, sim. Fluir, não. Esse tempo, meus
amigos, morreu.
É pois singular que num ano de efemérides e de luz
nos procuremos encavalitar na teoria da relatividade,
demolidora como ela é do comum tempo. A própria
luz — esse andaime absoluto da teoria da relatividade
— só pode ter um papel orientador porque está fora
do tempo. A luz equilibra-se na fronteira entre o
espaço e o tempo, portanto o tempo está paralisado
ao longo de um raio de luz. E o pior é que analisando
a relatividade geral mais de perto encontramos
horrores ainda piores lá escondidos. Até a ordem
desse tempo que não fl ui pode ser destruída pela
curvatura espaciotemporal e levada a aberrantes
contradições. Maliciosas máquinas do tempo
consentem-nos dar um tiro na avozinha antes de a
nossa mãe ter nascido. Laçadas espaciotemporais
permitem-nos ser pai e mãe de nós próprios, um
exagero de minimalismo familiar e incesto. A ordem
e a lógica são ameaçadas pela curvatura do espaço-
tempo. Proteja-se de contradições: evite espaços-
tempos com um rabo demasiado ondulado.
Claro que nesta pasmaceira em que vivemos, longe
de buracos negros e Big Bangs, ninguém se deve
preocupar indevidamente com tanta patologia. Mas
o mal está feito — a nossa metafísica está minada pela
dúvida. Como funcionaria um jornal, se o tempo
acabasse amanhã? Ou se o tempo começasse a andar
para trás mais logo, quando a lua cheia nascesse
e a maré mudasse? Ou se fôssemos uma linha já
prefi gurada e sem fl uir, sem edições matutinas e
vespertinas? Como seria um jornal, se o tempo fosse
mais como o espaço, algo com recantos e cantinhos
por explorar? Um cataclismo narrativo, por certo. Ou
talvez não. Esta edição o dirá.
Cem anos a deitar a língua de fora
Por João Magueijo
Não há verdades eternas, cada
santo tem seu dia. Se, por um
lado, Einstein nos deitou uma
malcriada língua de fora, por
outro, espera-se de todos os
físicos igual pose fotográfi ca.
Não há teorias fi nais — há, sim,
coisas que vão funcionando até
ver, e nem sempre tão bem como se gostaria, se as
vamos esmiuçar melhor.
O epíteto de “Novo Einstein” (que a imprensa
sensacionalista tanto aprecia) aplicado a quem
propõe uma teoria que pretende suplantar a teoria
da relatividade é claramente ou ridículo ou um
pleonasmo.
Como cientistas somos todos novos Einsteins e
Einsteinas: é uma deformação profi ssional. Somos
pagos deduzidos de impostos para fazer esse papel,
não das nove às cinco em horário continuado
(porque isso não se ajeita ao perfi l profi ssional),
mas de noite e dia, até enquanto estamos a sonhar,
eroticamente quem sabe. Ninguém duvida que a
teoria da relatividade é uma obra de génio, entenda-
-se bem, mas a maior prova de respeito que lhe
podemos oferecer é precisamente pô-la em causa.
O tempo-que-fl ui tem entrado e saído da
ciência, recauchutado ou modifi cado, ao ritmo das
revoluções que vão e vêm. Saliente-se que o tempo
que a teoria da relatividade enxovalhou é o tempo
fundamental, associado aos processos elementares,
às micropartículas puras, limpas de confusões.
Não é o tempo sentido pelos sistemas complicados
(como nós), que pela sua complexidade exigem
outras estruturas, emergentes chamamos-lhes, para
as opor a “fundamentais”. Em sistemas com tantas
partes elementares que a fl oresta é mais importante
do que as árvores, necessitamos de conceitos como
a entropia, esse pesa-balbúrdias tão útil quando
é tudo ao molho e fé em Deus. A entropia, como
medida da confusão que sempre aumenta, dá-nos
um tempo derivado, emergente, que sem dúvida
sentimos à fl or da pele, mas que sabemos resultar
de uma ilusão criada pela multidão, pelo espírito de
rebanho do universo. É um tempo que as partículas
elementares nunca sentirão; se calhar é por isso
que lhes faltam os sentimentos. Não há electrões
apaixonados.
Mas e se esta teoria da relatividade geral
centenária fosse ela própria emergente e não-
fundamental? E se a descrição da gravidade como as
curvas e contracurvas do espaço-tempo fosse apenas
uma média estatística, uma medida aplicada a uma
multidão de entidades mais fundamentais, tal como
a entropia?
Uma das lacunas mais fl agrantes da teoria
da relatividade geral é a sua incapacidade para
namorar com o resto da física. A relatividade geral
é um elemento francamente anti-social dentro da
confraria das nossas outras teorias. Não fala com a
física quântica, esse outro pilar da física do século
XX, e segrega a força da gravidade (que venera)
das outras forças da natureza: a electricidade, o
magnetismo e as forças nucleares. Tanta soberba
agasta os físicos e daí as inúmeras tentativas
de construir uma teoria de gravidade quântica,
combinando a relatividade geral com a teoria
quântica, e unifi cando a gravidade com as outras
forças da natureza.
A haver namoro entre a relatividade geral e a física
quântica, o espaço-tempo deveria não só ser curvo,
como existir na forma de “átomos” (no sentido
grego do termo, de peças indivisíveis ou “quanta”).
Deveria haver incertezas e fl utuações quânticas no
seu tecido. Pavores quânticos, de todas as formas e
feitios, deveriam afl igir os fenómenos gravitacionais,
tal como afectam os outros: deveria haver gatos de
Schrödinger a miarem em buracos negros, Big Bangs
virtuais a saltarem do vácuo, ou maradices ainda
piores. E obviamente o próprio tempo e o espaço
poderiam fi car equiparados a conceitos emergentes,
como a entropia, médias que se tornam relevantes
simplesmente porque não temos “microscópios”
sufi cientemente fi nos para sentir a natureza atómica
da realidade subjacente.
Mas a verdade é que tudo isto são quimeras. Ao
fi m de várias décadas em demanda da teoria da
gravidade quântica, a realidade é que ela continua
a ser uma miragem. Ideias não faltam, mas,
sejamos honestos, cordas ou laçadas são todas uma
bela porcaria. Não há mal nenhum nisso, desde que
a busca seja honesta; censurável é apenas a auto-
importância sentida por alguns físicos: há quem
insista que estamos no caminho certo, é só uma
questão de seguir em frente a fazer contas pela
mesma receita durante 200 anos...
Que estupidez! Que rigidez de espírito! Será que
se acha mesmo que em 200 anos ninguém iria
arranjar nada melhor para fazer do que refi nar as
nossas ideias? É como esperar que o fado daqui a
200 anos seja uma Gisela João de bengalinha. Daqui
a 200 anos muito provavelmente nem haverá fado,
ou se o houver, sê-lo-á insonhavelmente diferente.
Entretanto, e com menos arrogância, a
infrutífera busca continua. No reino do faz-de-
conta em que os físicos vivem tudo é possível. O
Big Bang pode ser um mero biombo que tapa um
além. As constantes universais podem ser fl uidas
e variáveis. O espaço-tempo pode ser uma média
de algo mais fundamental, polvilhado de quanta,
espaço em grão, tempo em colar de pérolas. Tudo
é possível.
Tudo é possível, tudo pode é estar errado. Fica
esta sensação de que andamos a fazer literatura de
cordel ao pé do gadelhudo. Não que a relatividade
geral não tenha defi ciências, mas o que temos feito
para as colmatar é bem pior. Ao longo destes 100
anos deitámos-lhe a língua de fora vezes sem conta,
e no fi m acabámos aos molhadíssimos beijos na
boca ao homem.
AFP
Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.
Mário de Sá-Carneiro
Não percebo porque se perde tanto
tempo a discutir o tempo, que não
é nenhuma entidade metafísica, é
apenas uma empresa de demolições.
António Lobo Antunes
Sabemos hoje que o Universo está em expansão. Que nasceu a partir de um momento zero e, desde aí, tem evoluído. A descoberta desta expansão, do fi nal dos anos 1920, baseou-se em observações de que as galáxias se estavam a afastar umas das outras. Na realidade, é o espaço entre as galáxias que está a aumentar e, em consequência disso, as galáxias estão a afastar-se entre si. Imaginemos um balão em cuja superfície, o tecido do espaço-tempo, pintámos vários pontos: à medida que o enchemos de ar, expandindo-o, o espaço entre os pontos vai aumentado. É isso que está a acontecer ao Universo. Escolhemos aqui alguns momentos da sua longa existência ou, por outras palavras, da história de tudo
A história do Universo em 13 momentos
É o início do Universo, que começa com o Big Bang, uma grande “explosão” que dá origem ao espaço e ao tempo. É o início de tudo o que existe. E que surgiu de uma concentração inimaginável de energia. A física actual é incapaz de descrever as fracções de segundo imediatamente seguintes ao Big Bang, quando o Universo era incrivelmente denso e quente.
Teresa Firmino (texto) Cátia Mendonça (infografi a)
2700º celsius -240º celsius
BIG BANG
Momento 0 10−43 10−36 10−32 10−4 0,01 3 minutos
mil anos milhões de anos milhões de anos milhões de anos
Infla
ção
cósm
ica
Form
ação
de
prot
ões
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utrõ
es
Fusõ
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jar
pelo
cos
mos
Primeiras estrelas Primeiras galáxias O nosso sistema solar e expansão Fim
da
Infla
ção
cósm
ica
ERA TRANSPARENTEERA OPACA
ERA DAS TREVAS
Fonte: PÚBLICO
seg.
10-43 segundoEste tempo é considerado a fronteira a partir da qual a noção de tempo (e o espaço) tem sentido. O tempo não tem provavelmente porções mais pequenas do que esta. Entre o Big Bang e os 10-43 segundo de existência do Universo é a chamada época de Planck, indescritível pelas teorias científicas actuais: a temperatura era tão elevada que as quatro forças fundamentais da natureza (gravidade, electromagnetismo, força nuclear forte e força nuclear fraca) estavam todas juntas numa só força. A partir dos 10-43 segundo, o Universo já se tinha expandido e arrefecido o suficiente – uma “bola de fogo” com uns incríveis 1032 graus Celsius – para que a gravidade se separasse das outras três forças. Criadas, e destruídas ao mesmo tempo, surgem as primeiras partículas e antipartículas elementares, como quarks e electrões ou positrões. A luz já existia como fotões.
10-36 segundoÉ o início do que se pensa ter sido a inflação, um crescimento brutal do Universo, que numa fracção de segundo cresceu enormemente. Esta expansão exponencial permite explicar por que é que o Universo que vemos hoje tem um padrão global homogéneo: há galáxias e espaços vazios, galáxias, espaços vazios... de uma maneira quase uniforme por todo o lado para onde quer que olhemos. Nesta altura do Universo, já um pouco menos quente, também a força nuclear forte pôde separar--se da força nuclear fraca e do electromagnetismo.
10-32 segundoA inflação cósmica terá terminado. Acabado um crescimento brutal durante uma fracção de segundo, o Universo volta a expandir-se mais lentamente. A inflação cósmica terá gerado ondas gravitacionais, perturbações no próprio tecido do Universo, o espaço-tempo, que podemos imaginar como uma folha de borracha elástica onde uma pedra que alguém atirasse para lá provocaria oscilações. Até agora, ninguém conseguiu detectar essas ondas. O Universo ficou nesta altura povoado por uma sopa de quarks e gluões, que colam os quarks entre si. Estes constituintes primordiais da matéria vagueiam livremente num estado desordenado (o plasma de quarks e gluões).
10-4 segundoPor esta altura, formam-se os protões e os neutrões, os constituintes dos futuros núcleos dos átomos. Com a continuação do arrefecimento do Universo, os quarks, unidos pela força nuclear forte, puderam começar a ligar--se, formando os protões e os neutrões. Cada neutrão e protão tem três quarks. É a altura do chamado confinamento dos quarks. A criação dos protões significa também a criação do núcleo do hidrogénio, que é composto por um único protão.
0,01 segundoIniciam-se as fusões de protões e neutrões, que vão depois dar origem aos núcleos de outros átomos.
3 minutosCriados os núcleos atómicos de deutério (um protão e um neutrão), de trítio (um protão e dois neutrões) e de hélio (dois protões e dois neutrões).
380.000 anosFormação de átomos leves – hidrogénio, deutério, trítio e hélio. A temperatura do Universo baixa ainda mais – ronda agora os 2700 graus Celsius –, o que permite que os núcleos atómicos e os electrões, até aí separados, se juntem, formando os átomos. Antes disso, os fotões (a luz) chocavam com frequência com os núcleos atómicos e os electrões, o que impedia a luz de viajar. Por essa razão, entre o Big Bang e os 380.000 anos, o Universo é opaco, sendo impossível vê-lo directamente. A junção dos electrões à volta do núcleo dos átomos deixa o caminho livre para a passagem dos fotões e o Universo fica transparente à luz. A matéria e a radiação separam-se ou, como dizem os físicos, desacoplam-se. A luz desses tempos, a mais antiga que vemos e que se chama radiação cósmica de fundo, banha todo o Universo. Hoje na forma de microondas, permite inferir algo que se passou nos primórdios do Universo. É, pois, uma radiação “fóssil”, um eco do Big Bang.
milhões de anosmilhões de anos
Universo actual acelerada do Universo Aparecimento da vida na Terra (as primeiras células)
550 milhões de anosNascem as primeiras estrelas, iluminando o Universo. Este, em média, já arrefeceu bastante e está muito abaixo do zero usual: tem à volta de 240 graus Celsius negativos. Para trás ficou a “era das trevas”, a altura em que o Universo não tinha estrelas. Análises às observações do telescópio espacial Planck, divulgadas em Fevereiro de 2015, revelaram que as primeiras estrelas surgiram cerca de 100 milhões de anos mais tarde do que se supunha, portanto 550 milhões de anos após o Big Bang. As estrelas são essenciais à química da vida: é no seu interior, nas reacções de fusão nuclear, que se formam átomos mais pesados como o carbono ou o ferro. Ao morrerem, há estrelas que atiram para o espaço as suas camadas exteriores, incluindo átomos que fabricaram e que entrarão em novas estrelas e os seus planetas. Nós e a Terra temos pó de estrelas, como o ferro que transporta o oxigénio no nosso sangue.
700 milhões de anosSão formadas as primeiras galáxias do Universo – incluindo a nossa Via Láctea, que tem pelo menos 100.000 milhões de estrelas, uma delas o Sol, que fica num dos braços da espiral. No centro da Via Láctea existe um buraco negro monstruoso (como, aliás, em muitas outras galáxias), com quatro milhões de vezes a massa do Sol. A nossa galáxia é tão grande que a luz demora 100 mil anos a atravessá--la de uma ponta à outra.
9000 milhões de anosForma-se o Sol a partir de uma nuvem de gás e poeiras, composta sobretudo por hidrogénio e hélio, mas com alguma contaminação por elementos pesados criados por gerações de estrelas anteriores. No disco de gás e poeiras que restou da formação do Sol ir-se-ão formar os planetas, incluindo a Terra, há cerca de 4500 milhões de anos, quando o Universo tinha 9300 milhões de anos. É também por essa altura que no Universo em expansão desde o Big Bang se manifesta uma força antigravítica. Não se sabe que força é essa – os físicos chamam-lhe energia escura –, mas sabe-se que contraria a gravidade exercida pela matéria e que provoca a expansão acelerada do Universo.
10.200 milhões de anosSurge a vida na Terra, mais exactamente as primeiras células. Ainda não têm núcleo, tal como, aliás, as bactérias actuais, mas a vida seguirá o seu curso até chegar a nós. Os primeiros humanos – ou seja, os primeiros membros do género Homo – apareceram há cerca de dois milhões de anos apenas, quando o Universo tinha 13.798 milhões de anos. Se pensarmos na nossa espécie, o Homo sapiens, só aparecemos há cerca de 200 mil anos.
13.800 milhões de anosÉ o Universo actual. A sua temperatura, de 270 graus Celsius negativos, está perto do zero absoluto (menos 273,15 graus). E aqui estamos nós, a olhar para trás no tempo, através da luz (em todo o seu espectro, desde os raios gama às ondas de rádio, passando pela luz visível aos nossos olhos) que nos chega dos mais variados fenómenos e objectos que povoam o cosmos. Desde galáxias, enxames de galáxias, supernovas, estrelas de neutrões, buracos negros, anãs castanhas, matéria escura, energia escura – e planetas em redor de outras estrelas que não o Sol, onde talvez alguém esteja também a perscrutar o cosmos como nós. O futuro do Universo parece ser o de expansão eterna: as galáxias ficarão tão dispersas que nem se veriam, uma paisagem triste e fria. Mas o nosso destino na Terra depende do destino do Sol, que ainda vai durar cerca de 5000 milhões de anos.
TEMPO DE AGORA
Chegados aos actuais 13.800 milhões de anos da história de tudo, aqui estamos agora às voltas com o tempo, humanos de uma espécie surgida há singelos 200 mil anos. Neste tempo de agora, que o nosso calendário assinala como 2015 d.C., refl ectimos, vivemos e sentimos o tempo de muitas formas. Podemos analisá-lo de um ponto de vista físico, lembrando Einstein, do ponto de vista da história da ciência ou da experiência pessoal de uma cosmóloga pára-quedista a braços com a gravidade. Fomos ainda ver como o contamos com relógios atómicos e na bolsa, em que um milissegundo vale milhões. Visitámos uma loja em Lisboa que arranja relógios antigos, onde se conserta o tempo dos outros. Ouvimos quatro centenários, que desafi am o tempo e, ainda, quem dá o seu tempo aos outros. Continuamos esta edição olhando agora para o tempo a uma escala mais humana.
2015
Um minuto sob a gravidade
de Einstein
Abstracções de uma física pára-quedista a estudar
gravidade e o tempo em queda livre
Crónica Marina Cortês
Os acontecimentos que
se seguem decorreram
no espaço de 3 minutos
apenas.
Na porta do avião
mesmo antes de saltar,
fazemos os exercícios
de check up. Estou em
instrução e tenho dois
instrutores comigo,
durante a primeira parte do salto. Tudo a postos:
arqueia o corpo ao máximo contra a força do ar
e... saltar! Estou no ar! Ajusta o equilíbrio, estamos
a cair a 190km/h, não balances mais, estabiliza o
corpo. Parece tudo bem. Agora os exercícios. Um dos
instrutores solta-me como previsto. Lá vai ele. Agora
o outro também me solta. Ai-ai, agora estou mesmo
por minha conta, cruzes. A voar sozinha! Argh, o
que é que é suposto fazer agora? Não há problema,
procura um ponto no horizonte para fi xar direcção.
Aquelas montanhas parecem boas, vão servir. Hmm..
as montanhas estão a girar para a esquerda, acho que
vou fazer aqui uma pequena volta. Inclino o braço
na direcção oposta... Muito ligeiramente. O quê?!? O
que foi isto? Que aconteceu? Estou de pernas para o
ar, a olhar para o céu! Perdi a estabilidade. Altitude:
3,6 quilómetros. Bonito serviço. Agora estou a olhar
para o céu azul acima. Terra à vista: nada. Vejo os dois
instrutores lá no alto, altíssimos, a olhar para mim.
Credo, estão a diminuir tão depressa, quer dizer que
estou a cair muito mais rapidamente. Como perdi a
estabilidade vou a muito maior velocidade que eles.
Estou totalmente sozinha, por minha conta, a cair para
o planeta a toda a força, e a girar numa espiral. Como
estou a girar sem parar, não consigo puxar o pára-
quedas. Cada vez perco mais altitude, a velocidade
agora são 260 km/h. Cada segundo que passa menos 70
metros e começo a ver tudo lá em baixo as casinhas e as
estradas cada vez mais perto... Isto está bonito, está...
Entretanto no gabinete: quando estou a estudar
relatividade geral pergunto-me sempre se o Einstein
Sendo a física a disciplina mais ambiciosa da
descrição da Natureza, não é peculiar a falta de
explicação para a uni-direccionalidade do tempo?
Voltando à queda livre.
Continuo em espiral no ar e o planeta a aproximar-
se cada vez mais. Por um momento consigo virar-me
de costas, e tento alcançar o pára-quedas, mas perco
logo o equilíbrio. Meu Deus, estou mesmo, “mesmo”
em sarilhos. O que é que se está a passar, como é que
eu páro isto? Um dos instrutores desce disparado
para me alcançar e tenta voltar-me para baixo. Não
funciona, agora estamos os dois de barriga para o ar!
E depois eu viro-me, e agora volta-se ele. Estamos
numa dança no ar, como uma máquina de lavar,
como o “vira”. Ele perde-me de novo e lá vou eu às
cambalhotas mais uma vez. O chão a aproximar-se. Ele
consegue alcançar-me. Porque é que ele não me puxa
o pára-quedas? Por que diabo é que ele não me puxa
o pára-quedas?! “Desisto”, penso para mim, ele não
consegue, vamos morrer os dois. Estou feita, é o fi m.
Adeus mundo. Olha ali o chão, já tão perto.
1500 metros. Sinto um forte puxão para cima,
as pernas para o ar, cabeça voltada para baixo. As
correias de suporte no peito a esmagar as costelas. Ele
puxou o pára-quedas! ELE PUXOU O PÁRA-QUEDAS!
Olho para cima e vejo um pára-quedas perfeito,
quadrado, abertura sem problemas! O silêncio total é
o paraíso, em contraste com o barulho ensurdecedor
da queda livre. Só oiço o bater leve da borda do pára-
quedas. Pára-quedas saudável, vou viver. Sobrevivi!
Já passou. Respira, respira. Respira, rapariga. O que é
que acabou de acontecer!?!
Bem, olha para baixo, descobre onde é que vieste
parar, ainda tens de aterrar isto. Onde está a dropzone,
onde está a pista do avião, onde é que eu estou? Lá
estão o semi-círculo da aldeia de Empuria Brava e a
praia, mesmo ao pé de Barcelona. A dropzone está
por ali algures, ao lado. 1200 metros, está tudo fi xe,
respira fundo, relax, estás viva! Sobreviveste!
Excepto que...
Ao descer sinto os ventos a levantar. Meu Deus,
alguma vez terá pensado em estudar a gravidade ao
vivo! Parece-me que estudar a gravidade no gabinete
é muito diferente de estudá-la a saltar de um avião,
em queda livre! Não só isto, mas nada melhor que um
salto de pára-quedas para vivenciar a relatividade do
tempo que ele advogava. Um segundo em queda livre
parece-nos horas. O planeta lá em baixo a aproximar-
se a viva força. Nunca o tempo nos parece mais real, e
mais inevitável do que quando estamos numa situação
de vida ou morte. E no entanto, em física, a disciplina
que ambiciona descrever a natureza na sua totalidade,
não estamos muito habituados a levar o tempo a sério.
Para a generalidade das teorias em física o tempo
tanto pode avançar como recuar: a direccionalidade
do tempo é um acidente que não é explicado de
forma clara. As soluções nas quais o tempo recua são
descartadas à mão sem explicação.
Ou seja, as nossas teorias mais fundamentais da
natureza ignoram o facto de que o tempo anda sempre
para a frente! Isto é contra tudo o que observamos no
dia a dia. É como os físicos estarem de costas voltadas
para a natureza, ignorando o facto mais fundamental
do mundo que nos rodeia: o tempo nunca anda para
trás. Porque é que somos nós, os físicos, os únicos
cientistas que não incorporamos a irreversibilidade do
tempo nas nossas teorias?
A química, biologia, antropologia, climatologia,
etc., são todas ciências nas quais o tempo tem uma
direccionalidade bem defi nida. As reacções químicas
só ocorrem num sentido, nunca “desocorrem”
(química); os organismos só fi cam mais velhos, nunca
mais novos (biologia); em antropologia estudamos
os fósseis do passado (nunca os do futuro); os
climatólogos também têm bem presente que o
tempo só tem uma direcção, eles podem olhar para o
passado mas não sabem (ou é muito difícil) prever o
futuro, por causa da teoria do caos.
Porque é que nós os físicos continuamos absorvidos
na procura de equações “congeladas” no tempo, nas
quais todo o passado e o futuro existem no mesmo
instante e a passagem do tempo é uma mera ilusão?
não estava tanto vento quando levantámos no avião.
O pára-quedas começa a abanar desenfreadamente e
a fazer o que bem lhe dá na cabeça. Agora está-me a
arrastar de lado. Vira à esquerda, depressa! Oh meu
Deus, agora estou na zona dos aviões!! Põe-te a andar
daqui! Olha à volta, há aviões a vir? Põe-te mas é a
andar! Pára-quedas dum raio vais fazer o que eu te
mando. Agora, ouviste? 500 metros. Bonito, devia
estar a começar a descida fi nal, neste momento!
Onde é que suposto eu estar? Ah, lá está o campo
de aterragem, “só” a dois quilómetros distância. Ok,
esquece isso, improvisa, improvisa. Aquele espaço
ali terá de servir. Começo a descer tenho de ir na
direcção do vento. Mas não há direcção do vento. Só
a vento a abanar, vento a chocalhar, vento para cima,
vento para baixo, vento de lado. Devia chamar isto de
trajectória perturbativa. O meu trajecto tem incerteza
quântica! Ok, ok, vai com calma, vê o altímetro. 250
metros, estou muito alta, já devia estar a 150! Vou
chocar contra aquelas casas! Depressa, faz uma volta
360º, perde altitude. Oh que coisa, também não
funcionou, agora estou em cima da auto-estrada!! Vejo
os carros a acelerar nas duas vias. Dá outra volta, pira-
te mas é daqui. Começo a descida fi nal, aqui mesmo
vai ter de servir. Tento domar o pára-quedas, navegar
em linha recta mas não há de quê. Esticão para a
esquerda, esticão para a direita, O pára-quedas não
reage, avança ao acaso, num caos os ventos mudam a
cada segundo. Olho para baixo, o chão a aproximar-se
vertiginosamente. Consigo ver as pedras de cascalho a
passar aceleradas, como se estivesse num carro. Meu
Deus que velocidade, tenho de abrandar, e rápido. Isto
vai doer!!! Quando é que travo? A altura de puxar os
travões é ainda mais crucial neste salto mirabolesco
com ventos descontrolados. Quando é que suposto
travar?!?! Agora? Não tenho a certeza. Será agora,
NUNO FERREIRA SANTOSespero mais? É uma questão de segundos. Agora!!
Puxa os cabos, com toda a força, puxa, puxa! Mais
força! Tenho de puxar os cabos até às ancas e ainda
estão à altura nos ombros. Com mais força! Tenho a
cara azul do esforço, as veias a pulsar. Os ventos não
me deixam puxar os cabos. Oh meu Deus, ainda estou
demasiado alto, travei muito cedo. O que vai acontecer
agora? O impacte está perto, prepara-te rapariga isto
vai ser uma aterragem dos diabos! Crash!!!
Ligeiramente nos joelhos, caio para a frente, para
cima do pára-quedas. Estabiliza, pára. Wow! Nada mau,
que fi xe. Que fi xe! Cheguei ao chão. Estou no chão!
De volta ao planeta! Estou a salvo! Apetece-me beijar
a terra e saltar. Mas como os ventos estão muito fortes
tenho de puxar o pára-quedas para baixo de mim,
porque esta a infl acionar e pode levar-me no ar de
novo. Como se tivesse adivinhado, num instante o pára-
quedas infl aciona como um balão. Sinto um esticão
forte a puxar-me para trás e para cima, a arrastar pelo
chão. Está bonito, afi nal ainda não é desta. Não tenho
tempo para cortar os cabos. Para onde é que isto
me está a levar? Olho à minha frente, o pára-quedas
está-me a arrastar para a pista dos aviões!! Tenho de
puxar um dos cabos para o colapso. Não funciona,
os ventos estão demasiados fortes, o resto do pára-
quedas é como um balão, a puxar-me com a força de
um gigante. Levanto-me e atiro-me para o ar, para cima
do pára-quedas. Consigo enfi ar um pouco mais debaixo
de mim mas a parte infl ada ainda é forte e continua a
arrastar-me. E agora reparo que estou mesmo à beira
da pista de aviões com o pára-quedas a puxar-me para
o meio. Olho para a direita horrorizada e... claro, com
a minha sorte de hoje, vem um avião no ar prestes
a aterrar, talvez a 500 metros de distância. Dentro
de segundos vai passar no centro da pista em frente
de mim, o local exacto para onde o pára-quedas me
está a arrastar. Nem consigo acreditar no que se esta
a passar?!? Isto é algum fi lme do Bruce Willis?! Estou a
segundos de ser atropelada por um avião, arrastada por
um pára-quedas! Muito bem, vou-te puxar para baixo
de mim, e agora!! Estou de rastos na berma da pista a
puxar o pára-quedas freneticamente e a olhar para o
avião a aproximar-se cada vez mais nítido. Puxo o mais
depressa que consigo, agora com o avião no canto do
olho. Está quase, ainda falta um bocado. VEM CÁ
PÁRA-QUEDAS DUM RAIO! Queres-me matar!
Consegui. Estou estendida sob o pára-quedas com
a cabeça enterrada no tecido. Oiço o avião disparado
passar à minha frente. O avião não me atropelou.
Estou colapsada, nem consigo pensar, totalmente
exausta. Sem energia. Oiço os ventos, assim que ouvir
um abrandar salto num ápice, agarro tanto quanto
posso, diminuo o volume e atiro-me de novo para
cima do pára-quedas. Funcionou. Algumas partes
ainda estão a voar ao vento mas nada de grave.
Apanhei-te, meu pára-quedas idiota. Pego em todo o
tecido agora entrelaçado, atiro para cima do ombro
e começo a regressar ao hangar. Olha para isto, onde
aterrei quase a 3 quilómetros de distância!
Começo o caminho de volta com passos longos
e espaçados. Respira fundo. As pernas a tremer e
os joelhos a ceder. Estou estupefacta. Não consigo
acreditar em tudo o que acabou de acontecer. Olho
para baixo e fi co surpreendida por os pés acharem o
caminho de volta, um após o outro, devagar. O que é
que aconteceu?! Ando e ando, com as duas toneladas
de pára-quedas às costas, e fi nalmente chego à
dropzone. Há uma multidão de pessoas estupefactas,
a olhar para mim, com a boca aberta. Respiro fundo
e volto para o outro lado. Vou para o hangar, enfi ar a
cabeça entre os joelhos!
Volto para a física. Equações são muito mais fáceis
de escrever do que lutar com um pára-quedas. Uma
das grandes motivações para transformar o papel do
tempo irreversível na física fundamental vem destas
experiências tão vivas. Nas quais segundos parecem
horas, e a realidade do tempo, e como avança só
numa direcção é mais berrante que nunca. Nós os
físicos que escrevemos equações em que o tempo não
é real e tanto avança como recua devíamos deixar a
secretária e vir olhar para o mundo cá fora. Pode ser
que fi cássemos convencidos do contrário.
Cosmóloga, Observatório Real de Edimburgo
Hubble A 24 de Abril de 1990, a bordo do vaivém Discovery, a NASA lança o telescópio espacial Hubble. Foi o primeiro telescópio espacial que permitiu observar o Universo tanto na mesma luz que os nossos olhos captam, como na radiação infravermelha. Com um limite de vida temporal por volta de 2020, o Hubble tem cumprido aquilo que se lhe pede: permitir que a relação da humanidade com o Universo desse um salto, já que, pela primeira vez, foi possível ver o cosmos com uma nitidez sem precedentes. S.J.A.
>>>>>>>>>>>>1990
Em 2015, Ano Internacional da Luz, celebra-se o centená-
rio de uma das teorias físicas mais formidáveis e também
um dos picos mais altos do intelecto humano: a teoria de
relatividade geral de Albert Einstein. A 25 de Novembro
de 1915 o sábio suíço nascido na Alemanha escrevia a
equação fundamental que junta matéria, energia, espaço
e tempo para explicar a gravitação, descrevendo não só a
queda de uma maçã e a órbita da Lua mas também os bu-
racos negros e o Big Bang. Se a sua teoria da relatividade
restrita de 1905 tinha juntado a matéria à energia (falamos
de matéria-energia) e o espaço ao tempo (falamos de
espaço-tempo), a teoria da relatividade geral reúne todos
esses conceitos ao afi rmar que a matéria-energia deforma
o espaço-tempo. À volta de um astro o espaço e o tempo
são distorcidos, deixando de valer a geometria euclidiana
e a mecânica newtoniana a que estamos habituados. E
os corpos caem porque o espaço é curvo.
O espaço-tempo pode acabar ou começar. Os buracos
negros são estrelas que, após violenta implosão, fi caram
reduzidas ao seu caroço extremamente duro. O espaço-
tempo à volta é tão deformado que o nosso mundo aca-
ba aí, isto é, terminam aí as nossas possibilidades de
conhecer. Tudo cai para um buraco negro, incluindo a
luz. Segundo Einstein, a luz pesa! Podemos imaginar o
inverso de um buraco negro? Sim, se um buraco negro
é o sítio para onde tudo vai, o buraco branco é o sítio
de onde tudo vem (há quem especule que, associado a
cada buraco negro, há um buraco branco, com a matéria
a ser sorvida por um lado, no nosso mundo, e a jorrar
do outro, sabe-se lá onde).
O físico Stephen Hawking, cuja biografi a é o argumento
do fi lme A Teoria de Tudo, apostou um dia com um cole-
ga uma assinatura da Penthouse que não havia buracos
negros e perdeu (é irónico um especialista em buracos
negros ter apostado na não existência do seu objecto de
estudo.) Existirão buracos brancos? Vivemos no interior
de um: o Universo, provavelmente é infi nito, o qual, de
acordo com a teoria da relatividade geral, teve o seu início
no Big Bang, há 13.800 milhões de anos. Esta grande ex-
plosão inicial pode ser imaginada como o evento em que
tudo apareceu, o espaço e o tempo, a matéria e a energia,
tendo começado tudo com a luz, que é energia.
Einstein teve que porfi ar antes de chegar à fórmula
que encerra os segredos da gravitação. Cedo percebeu
que a teoria da relatividade restrita, segundo a qual as
leis da física são as mesmas para todos os observadores
em repouso ou em movimento com velocidade cons-
tante, devia também ser aplicada a observadores com
velocidade variável, isto é, acelerados. É esse o salto da
relatividade restrita para a relatividade geral. Se Newton
imaginou uma maçã a cair, Einstein imaginou-se a si pró-
prio a cair. A epifania ocorreu em 1907 quando Einstein
teve o que chamou o “pensamento mais feliz da sua vi-
da”, quando, sentado numa repartição de patentes na
Suíça, se apercebeu de que, se estivesse em queda livre,
um movimento acelerado, “não sentiria o seu próprio
peso”, uma vez que a cadeira cairia com ele. Embora a
cair, o sábio estaria parado relativamente à cadeira. O
princípio que afi rma a queda idêntica de todos os corpos
tinha sido descoberto por Galileu.
A luz de EinsteinSe a teoria da relatividade restrita de 1905 tinha juntado a matéria à energia (falamos de matéria-energia) e o espaço ao tempo (falamos de espaço-tempo), a teoria da relatividade geral reúne todos esses conceitos ao afi rmar que a matéria-energia deforma o espaço-tempo. À volta de um astro o espaço e o tempo são distorcidos
Por Carlos Fiolhais
Em 1971, um astronauta deixou cair na Lua um mar-
telo e uma pena para mostrar que os dois objectos che-
gavam ao solo ao mesmo tempo. Se tudo cai do mesmo
modo, podemos intuir que a força gravitacional é uma
propriedade do espaço: nas vizinhanças de um astro, o
espaço possui certas propriedades. Só faltava saber que
propriedades são essas. Uma consequência imediata da
generalização do princípio da relatividade era que um
raio de luz vindo do espaço longínquo encurvaria ao
passar perto do Sol. O efeito era minúsculo e não pôde
ser logo confi rmado. E ainda bem, pois o primeiro valor
calculado por Einstein para o encurvamento dos raios
de luz estava errado. Não admira que a matemática da
relatividade geral seja incompreensível para um leigo,
pois o próprio autor demorou uma década a lá chegar.
Precisou de uma geometria curva em vez da geometria
plana de Euclides. Geometrias ditas não euclidianas já
existiam nos livros de matemática, dando razão a Galileu,
que tinha dito que “o Livro da Natureza está escrito em
caracteres matemáticos”. No longo caminho para a equa-
ção que descreve a gravitação, Einstein, melhorando a
matemática, chegou fi nalmente a um valor para o ângulo
de defl exão da luz que era o dobro do anterior. A equação
era bela, mas faltava saber se era verdadeira.
A Primeira Grande Guerra impediu a realização de ex-
pedições de observação de eclipses, ocasiões favoráveis
para medir defl exões de raios de estrelas por trás do Sol.
Uma observação de um eclipse total do Sol só pôde ser
realizada no pós-guerra. Foi em 29 de Maio de 1919 que
uma expedição inglesa, dirigida por Arthur Eddington,
se deslocou à ilha do Príncipe para fotografar um desses
eclipses. Os astrónomos obtiveram algumas imagens do
Sol, numa aberta de um aguaceiro tropical. Einstein em
breve recebeu um telegrama de um colega, felicitando-o
pela previsão certeira. Nunca temeu estar errado. Chegou
até a dizer que teria pena de Deus se a realidade fosse
diferente do previsto (Deus para ele, esclareça-se, era a
harmonia universal e não o autor do Fiat Lux). Nenhum
cientista português participou na expedição a um terri-
tório sob administração lusa. Os portugueses estavam
tão afastados da ciência que, em 1925, Einstein, já nobe-
lizado, passou por Lisboa sem ser reconhecido.
A 6 de Novembro de 1919, numa sessão da Royal Socie-
ty e da Royal Astronomical Society em Londres, com a
presença das maiores sumidades da ciência (na parede
Newton assistiu impávido, pois só estava em retrato), os
resultados da observação solar foram anunciados e Eins-
tein foi aclamado. O Times de Londres titulou Revolução
na Ciência. Newton tinha dito: “Se consegui ver mais lon-
ge foi porque estava aos ombros de gigantes.” A revolução
signifi cava que Einstein tinha subido para os ombros de
Newton, conseguindo ver ainda mais longe.
A fama mundial obtida num ápice facilitaria a sua
mudança para Princeton, nos EUA. Em 1932, Einstein,
pressionado pela perseguição nazi aos judeus, disse em
Berlim à sua mulher: “Olha bem para a tua casa. Não
mais a voltarás a ver.” E assim foi. Transposto o Atlân-
tico, nunca mais voltaria à Europa. Foi simbolicamente
a passagem da ciência do Velho para o Novo Mundo.
Os génios também têm vida privada. No início de 1915
Einstein deixou Zurique para ocupar uma cátedra em
Berlim. Nessa altura deixou também a primeira mulher,
Mileva (ela ainda fez o gesto de se mudar para Berlim,
mas já não havia força de atracção entre eles). Einstein
logo encontrou afecto numa prima berlinense, Elsa, com
quem se viria a casar pouco depois do eclipse de 1919.
Foi Elsa que o acompanhou para Princeton.
O Nobel da Física Richard Feynman afi rmou um dia
que a descoberta, há 150 anos, das equações de Maxwell,
que unifi cam a electricidade e o magnetismo, esclare-
cendo que a luz é uma onda electromagnética, serão
lembradas daqui a dez mil anos como o acontecimento
mais relevante do século XIX. Na mesma linha, atrevo-me
a conjecturar que, daqui a dez mil anos (uma insignifi -
cância quando comparada com a idade do Universo),
a descoberta da equação da relatividade geral feita por
Einstein há cem anos será um dos marcos mais notáveis
do século XX. E só não a singularizo mais porque, uma
década volvida, fi cou pronta a teoria quântica, a espan-
tosa teoria dos átomos e partículas atómicas. As duas são
expressões máximas do pensamento humano. Arrisco
esta profecia apesar de recear que pouca gente a entenda.
Atrevo-me a conjecturar que, daqui a dez mil anos, a descoberta da equação da relatividade geral feita por Einstein há cem anos será um dos marcos mais notáveis do século XX
Pode ser que mais gente a procure entender.
Por ter alcançado uma fórmula “mágica” com o poder
de explicar os mistérios do cosmos, o cérebro de Einstein
tornou-se um mito para o homem comum, que sem con-
seguir ver a beleza das equações não poderá mais do que
vislumbrar esses mistérios. Roland Barthes no seu livro
Mitologias escreveu sobre esse cérebro: “Quanto mais o
génio do homem era materializado sob a espécie do seu
cérebro tanto mais o produto da sua invenção assumia
uma condição mágica, reincarnava a velha imagem eso-
térica de uma ciência inteiramente encerrada nalgumas
letras. Há um único segredo no mundo, e esse segredo
condensa-se numa palavra, o Universo é um cofre-forte
de que a humanidade procura a cifra.” E acrescenta:
“É esse o mito de Einstein; aí se nos deparam de novo
todos os temas gnósticos: a unidade da Natureza, a pos-
sibilidade de uma redução fundamental do mundo, o
poder de abertura da palavra, a luta ancestral entre um
segredo e uma linguagem, a ideia de que o saber total
não pode descobrir-se senão de um só golpe, como uma
fechadura que cede bruscamente depois de mil tactea-
mentos infrutuosos.”
O cérebro de Einstein simboliza a capacidade humana
de compreender a natureza. Todas as observações e ex-
periências realizadas nos últimos cem anos confi rmaram
a teoria da gravitação einsteiniana, que concorda com
a teoria de Newton no limite de forças gravitacionais
pequenas. Até há aplicações tecnológicas, como o GPS.
Resta um problema, cuja solução espera por um novo
gigante. A teoria da gravitação ainda não foi satisfato-
riamente unida à teoria quântica, a outra grande teoria
física do século XX (uma teoria em relação à qual Eins-
tein sentiu algumas difi culdades). Passaram 228 anos de
Newton a Einstein e não sabemos quanto vai demorar até
surgir um génio comparável. Se Einstein fez luz sobre as
questões da gravidade, incluindo o magno problema do
início do mundo, um novo Einstein acabará, mais cedo
ou mais tarde, por fazer mais luz sobre o Universo.
Professor de Física da Universidade de Coimbra ([email protected])
WWWSão três letras cuja real importância ninguém podia perceber de início, mas representam uma das maiores revoluções no que é a dimensão de espaço e de tempo: WWW. As três letras significam World Wide Web e foram e são a chave para abrir o que se convencionou chamar “auto-estradas da comunicação” — ou seja, são o suporte tecnológico que, com a sua linguagem informática própria, constrói uma rede ou uma teia (web) que permite “navegar na Net” e chegar aqui e agora a todo o lado, quebrando as barreiras do espaço e do tempo. S.J.A.
>>>>>>>>>>>>1990
DR
Vítor CardosoHouve um dia em que não houve ontemDesafi ámos o físico português a fazer um passeio pelo Universo e pela forma como a nossa visão sobre ele se alterou ao longo do último século. “Passámos de um Universo parado para um Universo em ebulição, elástico e humano: nasce, cresce e, quem sabe, morre”
Entrevista Teresa Firmino Fotos Miguel Manso
Fim da URSSA 19 de Agosto de 1991, a tentativa de golpe de Estado na URSS ameaça fazer regredir o tempo e anular a acção libertadora que levara à Perestroika de Mikhail Gorbatchov. O presidente é preso na sua datcha de Verão na Crimeia. A reacção nas ruas, liderada em Moscovo por Boris Ieltsin, faz falhar a tentativa de regressão à ditadura comunista. Daí ao fim da URSS foi um instante. A 25 de Dezembro, Gorbatchov assinava a dissolução da União Soviética e demitia-se, pondo fim a 70 anos do mais emblemático regime comunista. S.J.A.
>>>>>>>>>>>>1991
Polar está onde sempre esteve desde que nascemos.
O que quero dizer com isto é que as observações
de Hubble, que são sofi sticadas e precisam de
telescópios poderosos, nos dizem algo que é difícil
de “ver” e representam um choque com aquilo em
que acreditávamos há milénios. Ora, quando Einstein
soube disto, percebeu logo a asneira que fez, e
percebeu que a realidade o veio desmascarar. Nessa
altura afi rmou que o maior erro da sua vida foi tentar
mudar as equações para se adaptarem ao que ele
pensava... E, realmente, é um erro histórico!
As implicações da expansão do Universo são muitas.
Não só destroem por completo a ideia de que está
tudo parado, mas também nos permitem fazer um
jogo interessante: se o Universo está em expansão,
signifi ca que à medida que fi ca mais velho é também
maior. O que signifi ca que o Universo jovem é cada vez
mais pequeno, e portanto o Universo teve uma data de
nascimento. Depois de Hubble, estas e outras coisas
fantásticas puseram todos a mexer e a querer saber ao
certo de que forma é que o Universo se expande. Um
dos melhores instrumentos que orbitam a Terra desde
1990 é o telescópio Hubble. Graças a essas e outras
observações, sabemos que o Universo nasceu há quase
14.000 milhões de anos. Em menos de 100 anos,
passámos de um Universo parado para um Universo
em ebulição, onde estrelas nascem, morrem, chocam
umas com outras e onde o próprio Universo é elástico
e humano: nasce, cresce e, quem sabe, morre.
A partir do momento em que se percebeu que o
Universo se expandia, então, se andássemos para
trás no tempo, houve uma altura em que tudo
esteve junto. Não havia estrelas ou galáxias...
... Não havia nada, o Universo era um ponto. Nessa
altura, a matéria como a conhecemos hoje não
existia. Não existiam átomos nem sequer protões ou
electrões, que estavam completamente desintegrados.
Claro que isto é extremamente difícil de comunicar
ou compreender, já que foge à experiência do dia-
a-dia. Na realidade, nem sequer temos uma teoria
sufi cientemente forte para compreender o nascimento
do Universo. A teoria da relatividade geral falha e não
temos forma de pensar nesse “Universo-embrião”.
Ainda antes das observações de Edwin Hubble, já
tinha havido teorias que sugeriam a existência de
um início do Universo, não é?
Desde há muito tempo que um Universo estático
causava incómodos. Não havia teoria nenhuma,
propriamente dita, que sugerisse o nascimento do
Universo. Contudo, um meteorologista e matemático
russo, Alexander Friedmann, tinha descoberto em
1922 uma solução da teoria de Einstein que descrevia
um Universo em expansão. Em 1927, o padre e
astrofísico belga Georges Lemaître chegou também a
um modelo de um Universo em expansão. Lemaître
compreendeu até as implicações dessa descoberta,
quando afi rmou que “houve um dia em que não houve
ontem”, isto é, que o Universo teve um início.
E, contudo, o trabalho de ambos foi praticamente
ignorado na altura: não eram cientistas de renome no
local certo, e em ciência, por vezes, isto é importante:
há que lutar pelas ideias persistentemente, até serem
aceites pela comunidade. Até os resultados de Hubble
encontraram resistência e durante décadas muitos
não acreditaram neles. A primeira reacção de um
cientista a uma descoberta é tentar mostrar que está
errada. Talvez seja por isso que a ciência funciona tão
bem: duas partes disputam com argumentos lógicos
e lutam pela verdade até o assunto fi car esclarecido.
Infelizmente, Friedmann não pôde lutar pela sua
ideia, já que morreu pouco depois, aos 37 anos.
A grande descoberta de Einstein foi que o espaço
e o tempo são uma entidade única — o espaço-
tempo —, que é deformada pela presença da
matéria e da energia. Como é que isso mudou a
nossa visão do tempo?
Em 1905, Einstein entendeu que o tempo não é
absoluto, e que relógios iguais podem ter tiquetaques
diferentes conforme a velocidade a que eles se
movam: não é problema nenhum com o relógio, é o
próprio tempo que fl ui de forma diferente... Isto vai
até à raiz da nossa existência: afi nal de contas, o que é
o tempo?! O tempo é relativo, pode “mover-se” mais
ou menos rapidamente. Todos os dias no CERN
A“Cientificamente, ter havido um ponto de partida é libertador. Não nascemos escravos de um Universo que já cá estava. Pelo contrário, evoluímos com ele”
os 40 anos, Vítor Cardoso é professor e investigador
do Centro Multidisciplinar de Astrofísica e Gravitação
(Centra) do Instituto Superior Técnico, em Lisboa.
Também é professor na Universidade do Mississípi,
nos Estados Unidos, e investigador do Instituto
Perimeter, no Canadá. Nos últimos cinco anos, ganhou
duas superbolsas no valor total de 2,5 milhões de
euros, que tem utilizado na investigação das equações
de Einstein, com a ajuda de um supercomputador
chamado Baltasar Sete Sóis. Dedica-se à física teórica,
nomeadamente à compreensão dos buracos negros,
da matéria escura e das ondas gravitacionais.
Toda a gente aceita hoje a ideia de que o Universo
teve um início — o Big Bang — e que, desde então,
o Universo está em expansão. Por que é que
Einstein se recusou a aceitar esta realidade, que,
aliás, uma das suas próprias equações da teoria
da relatividade geral lhe indicava?
Temos de tentar perceber o que ele fez com as
mesmas barreiras psicológicas que imagino que
existissem na altura: o Universo era simplesmente
pensado como algo imutável, que sempre foi e sempre
será. Einstein acreditava, portanto, num Universo
estático. Ora, a física tem esta coisa extraordinária de
prever coisas que nunca tínhamos imaginado quando
a construímos, isto é, quando a passamos para a
linguagem matemática. E os resultados de Einstein
diziam-lhe que o Universo não devia ser estático. Mas
até Einstein, que já tinha derrubado a barreira do
tempo imutável, sucumbiu e se recusou a deixar isto
acontecer: mudou um pouquinho a matemática para
que as equações se adaptassem à sua interpretação da
realidade. Fez batota para satisfazer o seu preconceito.
Este tipo de actos, o de tentar subjugar a realidade aos
nossos preconceitos, acontece não só em ciência, mas
na política, na economia e no dia-a-dia. Na ciência, a
realidade fala sempre mais alto e acaba por ganhar.
Quando se fala de um Universo estacionário, isso
quer dizer que se pensava que as estrelas não
morriam? Que o nosso Sol se mantinha igual?
As estrelas não nasciam nem morriam e não evoluíam.
De alguma forma, isso dava-nos uma certa paz de
espírito: o Universo era assim no tempo dos nossos
avós e vai continuar assim no tempo dos nossos netos.
Mas, por outro lado, o que aceitamos hoje é ainda
mais bonito: as estrelas nascem, morrem e algumas
explodem. O resto de algumas destas explosões de
estrelas mortas forma planetas, alguns dos quais vão
ter vida, como a Terra. Portanto, a vida resulta da
morte, e é muito mais interessante pensarmos que já
fomos estrelas e que provavelmente vamos voltar a ser
daqui a muitos milhões de anos...
O momento-chave da mudança na nossa visão do
Universo foi quando o astrónomo Edwin Hubble
descobriu, em 1929, que as galáxias se estavam a
afastar umas das outras?
Edwin Hubble descobriu que, em geral, todas as
galáxias se estão a afastar de nós e que quanto mais
longe de nós está uma galáxia, mais rapidamente
ela se afasta. Portanto, o Universo está em expansão
no verdadeiro sentido da palavra. Hoje é tão normal
ouvirmos estas palavras que até parecem dizer algo
fácil de entender. Mas não é. Quando olhamos para
os céus, vemos sempre a mesma coisa, a Estrela
Do momento zero do Universo até aos 10-43
segundo, podemos dizer que há tempo?
Do zero até aos 10-43 segundo não se pode dizer que
não haja tempo. Há tempo, mas talvez seja de natureza
diferente. Não se pode dizer mais nada. É um tempo
diferente. Há efeitos de mecânica quântica que não
conhecemos. Talvez o tempo fl utue e dê saltos, talvez
não ande sempre para a frente... Julga-se que nestas
alturas o espaço-tempo é como espuma, tudo se
mistura. É a partir de 10-43 segundo que a teoria de
Einstein é aplicável.
E antes do Big Bang?
É o campo da especulação e da metafísica. A ciência
pára aí.
Em 1999, João Magueijo propôs uma alternativa
ao modelo da infl ação cósmica para explicar a
homogeneidade do Universo a grandes escalas.
Teriam sido os fotões (a luz) que puseram todo o
Universo primordial em contacto e o tornaram
uniforme. Para isso a luz teria de ter sido mais
rápida no passado, o que questionava a constância
da sua velocidade. Há hoje alguma observação
astronómica que fundamente esta proposta?
Ele tentou mudar as regras do jogo, para encontrar
uma alternativa ao processo de infl ação, que, como
já disse, sugere que o Universo passou por uma fase
de crescimento muito rápido, quando era criança.
Em vez de ser a velocidade de expansão do Universo
que mudava, era a própria velocidade intrínseca das
coisas, neste caso da luz, que mudava ao longo da
história do Universo. A luz punha tudo em contacto
e a homogeneidade fi cava mais ou menos explicada.
Do ponto de vista teórico, nada proíbe que isso tenha
acontecido. Mas Einstein acreditava que a velocidade
da luz era constante, é um postulado da teoria dele. É
assim que a física funciona: propõem-se alternativas
para resolver problemas e fazem-se observações para
ver qual é a que o Universo escolheu. Parece hoje que
o Universo escolheu a infl ação e que a velocidade da
luz é mais ou menos constante ao longo da sua história.
Portanto, a proposta de João Magueijo é interessante,
mas a natureza não optou por ela. Contudo, ao
explorar essa possibilidade, fi camos a saber algo mais
sobre o Universo. Fazer ciência é testar hipóteses.
A descoberta das ondas gravitacionais dos
primórdios do Universo, anunciada em 2014,
teria sido a prova fi nal de que o modelo da
infl ação cósmica estava certo. Mas esse anúncio
foi desmentido este ano por análises posteriores
das observações, nomeadamente do telescópio
espacial europeu Planck. Ficou muito desiludido?
As ondas gravitacionais são distorções do espaço-
tempo que transportam informação sobre a gravidade.
Viajam à velocidade da luz e foram previstas por
Einstein há 100 anos, mas nunca foram detectadas
directamente na Terra. O anúncio da descoberta
matava dois ou três coelhos de uma cajadada: se estas
ondas tivessem mesmo sido vistas, signifi cava que
a gravidade também tem natureza quântica, já que
estas ondas seriam geradas por efeitos quânticos no
início do Universo; signifi cava também a verifi cação
do mecanismo que mencionei, a infl ação, já que só
através da infl ação é que as ondas gravitacionais são
sufi cientemente fortes. Finalmente, a detecção das
ondas signifi ca que elas existem.
Quanto ao episódio do anúncio da (falsa)
descoberta em si, é uma ilustração perfeita de como
a ciência (e o ser humano) funciona. Um grupo, da
experiência BICEP2 no Pólo Sul, afi rmou [em 2014] ter
descoberto as ondas gravitacionais, talvez um pouco
precipitadamente, para fi car com a fama e o proveito
que adviriam se estivessem correctos. A reacção da
maior parte de nós ao anúncio de qualquer descoberta
é tentar provar que está errada. E, realmente, há cerca
de um mês, a equipa do Planck, em colaboração com
o BICEP2, mostrou que o anúncio foi precipitado.
Mas repare: há agora um consenso entre os cientistas,
portanto o método científi co está a funcionar bem.
Pode explicar um pouco mais o que são as ondas
gravitacionais? E acha que vamos detectá-las?
A teoria da relatividade de Einstein diz que espaço
e tempo são um único tecido, e que as ondas
gravitacionais são fl utuações desta entidade à medida
que o tempo passa. As ondas na superfície de
[Laboratório Europeu de Física de Partículas, em
Genebra] se verifi cam estas previsões, é algo já aceite
por todos nós e que até passou para a cultura popular,
mas era uma barreira imensa.
Em 1916, Einstein percebeu que o tempo e o espaço
são elásticos e duas faces de uma mesma entidade: o
espaço-tempo. Pela primeira vez, o tempo não é uma
entidade imóvel, é algo que pode ser distorcido. Isto
permitiu-nos trabalhar a noção de tempo: o tempo
pode fl uir mais devagar ou mais depressa. A teoria da
relatividade foi importante para termos até uma noção
do início do tempo, tínhamos de quebrar primeiro a
noção de que o tempo é uma coisa estática e imóvel
e eterna. Creio que a noção do Big Bang só é possível
depois de termos quebrado a barreira do tempo e de
sabermos que podemos mexer no tempo.
Que implicações fi losófi cas e religiosas teve o
facto de sabermos da existência do Big Bang?
Imagino que deve ter sido um grande choque saber
que o Universo está a evoluir e que nós, enquanto
parte do Universo, estamos a caminhar para algum
ponto enquanto espécie e enquanto ser vivo no
cosmos. Qual o nosso papel no Universo? Há algum
propósito na nossa existência? Qual o futuro da
humanidade? Quem criou o Universo? Estas perguntas
devem ter ganho nova relevância.
Mas, cientifi camente, ter havido um ponto de
partida é libertador. Não nascemos escravos de um
Universo que já cá estava. Pelo contrário, evoluímos
com ele. Se o Universo não é estático e está a mudar,
então talvez possamos compreender as estrelas,
como deitam tanta luz cá para fora, o que acontece
no interior delas... Como é que se formaram, como
morrem, como é que a vida nasceu... tudo isto! Tem
de ter sido uma coisa bonita saber que, afi nal, há
alguma dinâmica no sítio onde vivemos.
Em 1965, descobriu-se uma radiação “fóssil”,
que é a luz mais antiga que conseguimos ver dos
primórdios do Universo, quando tinha só 380 mil
anos, e que se chama radiação cósmica de fundo.
Esta foi a derradeira prova do Big Bang?
A teoria de um Universo estático ou estacionário
prevê que o Universo é hoje como foi há milhões de
anos. Por outro lado, a teoria de que o Universo teve
um início prevê muitas outras coisas: toda a matéria
estava concentrada inicialmente num único ponto e
toda a matéria estava esmagada porque a temperatura
era enorme. Mas, à medida que o Universo expande,
arrefece e permite a criação de estrutura. Quando
o Universo celebrou um segundo de vida, estava
sufi cientemente frio para núcleos de átomos. E aos
380 mil anos a luz conseguiu fi nalmente “libertar-se”
da matéria: é esta luz a que chamamos a radiação
cósmica de fundo, um eco do Big Bang. Mas é um
eco que tem toda esta evolução subjacente. É uma
fotografi a lindíssima do Universo jovem-adulto, só
possível num cenário em que existe Big Bang.
E um pormenor interessante é que esta “fotografi a”
foi descoberta por acaso por Penzias e Wilson em
1964. Enquanto instalavam antenas muito sensíveis,
detectaram um ruído que atribuíram a... cocó de
pombos. E que se verifi cou ser radiação cósmica de
fundo existente em todo o lado e em todas as antenas.
Hoje vemos galáxias pelo Universo todo. O que
mais nos disse a radiação cósmica de fundo sobre
o Universo que vemos hoje? O que permite saber
sobre os primeiros 380 mil anos do Universo, que
não vemos directamente?
A radiação cósmica de fundo é quase isotrópica, isto
é, a mesma em todas as direcções para onde olhemos.
Isto faz sentido, dado que o Universo era o mesmo
em todas as direcções quando esta luz foi libertada.
Mas esta luz é antiga, está a viajar há muitos milhões
de anos e já viu muita coisa. Desde os quase 14.000
milhões de anos que passaram desde que a radiação
cósmica de fundo foi criada, muita coisa aconteceu:
a gravidade atrai tudo o que pode, e a tendência é
começar a formar “coágulos” de matéria, que são
as sementes das futuras galáxias, estrelas ou mesmo
buracos negros. Ora como esta luz viaja há tanto
tempo, foi afectada por todos estes acontecimentos.
Por isso, quando olhamos para a radiação cósmica
de fundo, vamos ver todo este passado da luz como
pequenos desvios em diferentes direcções.
Outro marco da nossa compreensão do Universo
foi o modelo da infl ação cósmica. Por que foi
preciso introduzir na teoria do Big Bang uma
expansão vertiginosa do Universo nas primeiras
fracções de segundo da sua existência?
O Universo nasceu homogéneo e isotrópico, o mesmo
em todo o lado e direcção e continua mais ou menos
assim ainda hoje. No cômputo geral, é mais ou menos
homogéneo. Se olharmos para o céu, há sempre uma
estrela algures no caminho do nosso telescópio. Isto
signifi ca que a direcção do Pólo Sul no céu parece-
se, com uma precisão de uma parte em 10.000,
com a direcção do Pólo Norte. Mas quando olhamos
nestas diferentes direcções, estamos a ver luz que
veio de partes completamente diferentes e que nem
sequer deveriam saber da existência uma da outra.
Então, como é possível que sejam tão semelhantes?
Bem, uma explicação é que seja uma coincidência,
mas tem de ser uma coincidência tão grande que é
como ganhar a lotaria várias vezes seguidas... Parece
batota! Pensamos que isto aconteceu porque houve
uma infl ação, isto é, um crescimento muito rápido,
que dissolveu qualquer “coágulo” e imperfeição
que existisse, um alisamento muito rápido do tecido
onde estavam estes coágulos, e tudo fi cou muito
uniformemente distribuído. A infl ação procura
explicar por que é que o Universo é assim.
Ainda antes da infl ação, houve o Big Bang, o
momento zero. Depois, houve a primeira fracção
de segundo a partir da qual o conceito de tempo
tem sentido: 10-43 segundo. Mas entre o Big Bang e
os 10-43 segundo, o que é o tempo?
Não sabemos. O 10-43 segundo é o que chamamos a
escala de Planck (em homenagem a Max Planck, o
físico que iniciou o estudo da mecânica quântica). Que
é a escala da nossa ignorância. Diz-nos que daí para
trás a mecânica quântica (que explica a existência de
átomos, moléculas, etc.) é tão ou mais importante do
que a gravidade. Quando o campo gravítico é muito
forte — e era no início do Universo, porque estava
tudo junto e era extremamente denso —, há efeitos de
mecânica quântica que não podemos prever. Sabemos
que têm de estar lá, mas não os sabemos calcular.
Como não conseguimos casar a teoria quântica e a da
relatividade geral, não sabemos o que acontece.
“[Antes do Big Bang] é o campo da especulação e da metafísica. A ciência pára aí.”
um lago são uma boa analogia. Outra boa analogia
é imaginarmos que o Universo em que vivemos é o
tecido de uma camisola. E que nós e tudo o que existe
no Universo somos os desenhos pintados na camisola.
Se eu tocar com o dedo na camisola, ela vai oscilar. E
se eu puxar o tecido da camisola, os desenhos fi cam
mais ou menos esticados. Puxões que viajam no tecido
são as ondas gravitacionais. Esta analogia mostra-nos
o efeito de uma onda gravitacional sobre nós. Se uma
onda gravitacional estiver a passar aqui entre nós, é
o mesmo que eu puxar o tecido de uma camisola e o
que veria é que fi caríamos sucessivamente esticados e
comprimidos. A minha altura iria variar muito pouco,
mas iria variar. O problema é que varia muito pouco, o
que é bastante complicado de detectar.
Estas ondas têm uma história interessante. Einstein
previu a sua existência em 1916, mas 20 anos depois
negou-a num artigo com [Nathan] Rosen. Einstein
também errava, e bastante, e isto foi mostrado por
[Howard] Robertson, que se apercebeu de que ele
interpretou mal a solução. Mas Einstein era Einstein
e o que perdurou foi a sua opinião... até 1955, quando
[Richard] Feynman, [Hermann] Bondi e outros
mostraram que as ondas têm de existir e transportar
energia. A partir de 1960, começa-se a tentar detectar
estas ondas na Terra, com barras de alumínio. Joseph
Weber foi um pioneiro, construindo os detectores
mais avançados. Infelizmente, alegou ter detectado
dezenas de acontecimentos, mas mostrou-se mais
tarde que resultaram de erros de software e hardware.
Resumindo, a história da detecção destas ondas,
chamadas “mensageiros de Einstein”, não começou
muito bem, e havia algum receio de investir uma
carreira no assunto. Nos anos 1980, o famoso físico Kip
Thorne decidiu recomeçar todo o esforço com o LIGO,
um observatório norte-americano. Acreditamos que a
primeira detecção directa destas ondas vai acontecer
daqui a um ou dois anos. Se não detectarmos nada em
2017... mau... Então, ou o Universo é completamente
diferente da forma como hoje o entendemos, ou a
teoria de Einstein está seriamente errada.
Pensa-se que os buracos negros também geram
ondas gravitacionais, duas coisas estudadas por
si. Que mistérios procura desvendar?
Bom, dado que vamos todos acabar dentro de um
grupo de grande qualidade sem preocupações quanto
aos cortes ou à política de contratações, durante os
próximos cinco anos. E vai permitir-me actualizar o
nosso supercomputador, que usamos intensamente
para resolver as equações de Einstein.
Esse supercomputador chama-se Baltasar Sete Sóis, nome inspirado em Baltasar Mateus, o Sete-
Sóis, personagem de José Saramago em Memorial do Convento. Por que deu esse nome à máquina?
O nome foi discutido com a minha mulher, queria
que fosse algo com signifi cado. Ora o Baltasar Sete
Sóis é um personagem que ajuda o padre Bartolomeu
Lourenço a construir o seu sonho, que é a Passarola,
uma máquina voadora. Gostámos desta ideia, de o
Baltasar ajudar a construir um sonho, especialmente
da forma apaixonada com que as personagens do
livro o faziam. Posso dizer, ao fi m de cinco anos, que o
Baltasar já construiu muitos sonhos!
Neste passeio que estamos a fazer, houve mais
um abalo, em 1998, na nossa visão do Universo.
Não só o Universo se está a expandir como o está
a fazer cada vez mais depressa. Por que é que isto
surpreendeu tanto os cientistas?
Bom, por várias razões, a começar pelo facto de que a
expansão acelerada não estava no “menu”. E porque
a descrição mais simples desta aceleração é uma
energia escura, ou constante cosmológica (a mesma
que o Einstein tinha introduzido por preconceito), que
ainda hoje não sabemos bem explicar. Já agora, esta
“reciclagem” da constante cosmológica não signifi ca
que Einstein estava, afi nal de contas, certo. Isso é
apenas uma coincidência, mas mostra que o homem
tinha uma intuição danada para resolver problemas.
O cenário mais consensual é o da expansão
eterna do Universo. Como será o Universo com
26.600 milhões de anos, ou seja, com o dobro da
sua idade actual? Esse futuro é negro?
O futuro é escuro e frio! Essa pergunta é tramada,
porque exige fazer alguns cálculos complicados.
Mas deixe-me descrever o que vai acontecer, e como
vamos fi car cada vez mais sós.
Daqui a cerca de 500 milhões de anos, o Sol estará
tão luminoso que a temperatura na Terra vai subir
cerca de dez graus. O homem vai provavelmente
começar a pensar, a sério, em mudar-se para outros
planetas no sistema solar ou na galáxia antes disto.
De qualquer forma, daqui a cerca de 4000 milhões
de anos a nossa galáxia, a Via Láctea, vai colidir com
outra, a de Andrómeda. Durante este processo, que
levará muito tempo, algumas simulações mostram que
a Terra vai passar muito perto do centro desta galáxia
combinada, antes de ser ejectada para fora. Vamos
perder a nossa querida galáxia, mas por essa altura a
Terra já não terá humanidade [o Sol estará a morrer
daqui a 5000 milhões de anos].
Daqui a 100.000 milhões de anos, todo o Grupo
Local [umas 40 galáxias, incluindo a nossa] será
uma única galáxia e o Universo já terá arrefecido e
expandido de tal forma que esta única galáxia estará
isolada do resto do Universo. Lentamente, estrelas
deixarão de se formar. Algum tempo depois, os
protões e neutrões desintegrar-se-ão. Qualquer vida
que pudesse existir morre. Como puro exercício
especulativo, podemos continuar: a matéria que existe
vai cair para dentro dos buracos negros, e o Universo
vai ter apenas buracos negros gigantes. Finalmente,
estes vão-se evaporando lentamente. Não faço ideia
do que acontece a seguir neste Universo. Dito assim,
parece um cenário desolador. Poderemos pensar em
nós como aquela luzinha trémula que surgiu no meio
da noite e se apagou, mas foi bonito enquanto durou.
Esta altura onde estamos agora é a melhor para
estudar o Universo, agora já evoluiu bastante?
É. Se fosse mais cedo, era impossível, porque não teria
o tipo de estrutura que tem. Não haveria planetas do
tipo da Terra a orbitar estrelas. Nem nós estaríamos
cá nem alguma forma de vida vagamente semelhante
à nossa. A questão é: há mais alguém a observá-lo e há
ligeiramente mais tempo?
Acha que há?
Acho que sim. A probabilidade de haver vida nalguma
ponta do Universo é imensa. O que não quer dizer que
esses seres vivos sejam necessariamente parecidos
connosco, física ou intelectualmente.
buraco negro, é bom sabermos como estas bestas
nasceram e cresceram. Buracos negros nascem
quando uma estrela muito grande morre, e cai sobre
si mesma, pois já não consegue suportar a atracção
gravítica. Para um buraco negro, crescer é a única
opção: eles comem tudo o que puderem. Os buracos
negros são muito comuns em todas as galáxias: a
nossa tem milhões de buracos negros “pequenos”,
isto é, com cerca de 15 quilómetros de raio, mas
um milhão de vezes mais pesados do que a Terra.
Além disso, descobrimos nas últimas décadas que
quase todas as galáxias têm no centro um buraco
negro supergigante. No caso da Via Láctea, o centro
é ocupado por um monstro gigante quatro milhões
de vezes mais pesado do que o nosso Sol. Estes
gigantes, apesar de muito mais pequenos do que a
galáxia, controlam toda a sua actividade, incluindo
o nascimento de novas estrelas. Estes gigantes nos
centros das galáxias estão sempre acompanhados
por outro gigante invisível, a que chamamos matéria
escura. E que forma a maior parte da matéria do
Universo e não fazemos ideia do que seja (por isso
lhe chamamos “escura”, quando soubermos o
que é, talvez mudemos o nome!). Ora, os buracos
negros emitem quantidades prodigiosas de ondas
gravitacionais. Procuro perceber esta emissão e a sua
importância. Será que através das ondas gravitacionais
podemos saber algo sobre a matéria escura?
Como é que o acelerador LHC — onde se detectou
o bosão de Higgs em 2012 e vai agora reabrir
quase com a sua potência máxima — pode ajudar
a descobrir o que é a matéria escura?
O LHC tem tentado procurar também matéria
escura, mas estamos sempre limitados pela energia
necessária. No estado actual da física, a parte mais
excitante está no Universo para lá do nosso sistema
solar. Há pouco tempo, o CERN deu-nos provas mais
ou menos conclusivas da existência do bosão de
Higgs. Mas receio que daqui para a frente a física de
partículas vá passar um mau bocado. Sempre precisou
de mais e mais energia [para se colidirem partículas
nos aceleradores], mas haverá uma altura em que, no
planeta, é impossível dar essa energia toda. Teremos
de olhar lá para fora e dar atenção a outro tipo de
“aceleradores”. Creio que a física deste século está nos
astros e na física gravitacional. Há muito por entender
e muitas fontes de energia onde procurar informação.
Precisamos de telescópios bons e mentes brilhantes.
Os buracos negros estão entre os objectos
mais exóticos do Universo? Ou nem por isso, e
despertam é curiosidade nas pessoas?...
São, sem dúvida, exóticos para a nossa experiência
do dia-a-dia. São um “nada” que consegue curvar de
tal forma o tiquetaque dos relógios que nada sai de
dentro deles. Creio que o que desperta a curiosidade
é o facto de desafi arem os nossos conceitos de
tempo e espaço, e o facto de representarem um fi m
quase defi nitivo para tudo que engolem. E é preciso
relembrar que eles existem.
Teve duas superbolsas do Conselho Europeu de
Investigação (ERC), em 2010 e 2015, para estudar
as equações na teoria da relatividade geral. O que
quer dizer estudar as equações de Einstein?
O meu trabalho é pensar sobre o que nos rodeia,
para percebermos, todos nós, o nosso Universo um
pouco melhor. A minha investigação consiste em
perceber a teoria de Einstein e o que ela prevê. É fácil
de enunciar, é difícil de fazer, porque as equações
de Einstein descrevem muita coisa: buracos negros,
ondas gravitacionais, estrelas de neutrões, etc.
As equações da relatividade são tremendamente
complicadas de resolver e têm muitas soluções — tal
como a “fórmula” da biologia dá origem a muitos seres
vivos diferentes. Tome-se o exemplo do buraco negro
no centro da nossa galáxia, que é fundamental para a
vida da galáxia, para a formação de estrelas e até para
o futuro longínquo da galáxia. Dedico-me a tentar
perceber estes buracos negros, como crescem e como
nos podem ensinar algo acerca da sua vizinhança.
E estas superbolsas são fulcrais. A importância e
a qualidade da ciência em Portugal tem crescido,
muito rapidamente, nas duas últimas décadas. Os
cortes orçamentais fi zeram regredir a situação. A
última bolsa do ERC vai permitir-me manter um
“Daqui a cerca de 4000 milhões de anos a Via Láctea vai colidir com Andrómeda. Vamos perder a nossa querida galáxia, mas por essa altura a Terra já não terá humanidade”
ste ano, no último dia de Junho ou no primeiro de Julho
(dependendo do fuso horário do local), os relógios do
mundo inteiro — e em particular os dos computadores —
vão ter de parar durante um segundo. Tal foi a decisão,
tornada pública há dias, dos “guardiões da hora” a nível
mundial: o Gabinete Internacional de Pesos e Medidas,
com sede em Sèvres, nos arredores de Paris.
Porquê? Porque a hora é hoje dada por relógios muito
precisos e estáveis, ao passo que a rotação da Terra é
irregular e está a fi car cada vez mais lenta. Isso obriga,
de vez em quando, a fazer acertos.
No início, havia a noite e o dia, a meia-noite e o meio-
dia. E as horas contavam-se partindo esse ciclo natural
em intervalos regulares: horas, minutos e segundos.
A partir de observações astronómicas, os astróno-
mos árabes tinham subdividido, já na Idade Média, o
dia solar em 24 horas, as horas em 60 minutos e os
minutos em 60 segundos. E, com base nisso, em 1874,
o segundo fora cientifi camente defi nido como um se-
xagésimo de sexagésimo de vigésimo quarto da dura-
ção média do dia solar. Um dia “civil” durava portanto
86.400 segundos.
Só que, pouco depois, descobriu-se que o período de
rotação da Terra não é assim tão regular: varia de forma
imprevisível sob o efeito das marés, dos ventos, dos
terramotos. Seguiram-se então defi nições do segundo
com base no ano solar, que também não se adequaram
à crescente necessidade de medir o tempo de forma
cada vez mais precisa.
Em 1955, foram inventados os relógios atómicos e,
uns anos mais tarde, redefi niu-se o segundo com base
na frequência da radiação electromagnética emitida por
certos átomos. Este segundo “atómico” tinha a vanta-
gem de ser bastante próximo do segundo ofi cial “natu-
ral” (baseado no dia solar) defi nido em 1874.
Hoje em dia, os segundos atómicos servem para de-
terminar a “hora atómica internacional” (TAI) graças a
uma rede de centenas de relógios atómicos, espalhados
pelo mundo — e entre os quais o Gabinete Internacional
de Pesos e Medidas calcula uma hora média.
Graças a diversos avanços técnicos, as “batidas” des-
tes relógios atómicos têm-se tornado cada vez mais re-
gulares, com os de última geração a demorarem milhões
de anos a derivar alguns segundos. E o aperfeiçoamento
não pára aí: em Fevereiro, cientistas japoneses anun-
ciaram na revista Nature Photonics ter obtido relógios
atómicos que teriam derivado menos de um segundo
desde o Big Bang, há 13.800 milhões de anos.
Em 1972, como os relógios atómicos respondiam de
facto à necessidade de precisão no cálculo da hora glo-
bal (nomeadamente nas redes de telecomunicações), a
hora ofi cial na Terra, que até lá tinha sido medida em
segundos “solares”, passou a ser medida em segundos
“atómicos”. Entrou assim em vigor a escala horária UTC
(Tempo Universal Coordenado).
Mas surgiu então um outro problema: é que a rotação
da Terra não tem parado de abrandar — em cerca de 1,7
milissegundos por século nos últimos séculos — e, se
nada fosse feito, a hora UTC, agora medida em segundos
atómicos, iria afastar-se cada vez mais da hora solar “re-
al”. Na altura, ninguém desejava, por assim dizer, que
acabasse um dia por “estar sol em plena noite” (mesmo
que isso acontecesse daqui a milhares de anos).
A hora UTC, que é de facto a norma através da qual o
mundo acerta hoje os relógios e a hora civil, encontra-se
sob a alçada da União Internacional de Telecomunica-
ções. E, face ao problema do abrandamento da rotação
E
Por Ana Gerschenfeld
Este ano, o últimodia de Junho vai ter mais um segundo
A1Em 1991, Portugal fica mais pequeno e mais rapidamente transitável: é finalmente concluída a construção da Auto-estrada entre Lisboa e o Porto, que tinha sido iniciada ainda em 1961 com o troço Lisboa Vila Franca — ou seja, 30 anos para acelerar o percurso de 330 quilómetros. Onze anos depois (2002), o país tornou-se ainda mais pequeno com a inauguração dos 240 quilómetros da A2 entre Lisboa e Albufeira, iniciada em 1996. S.J.A.
>>>>>>>>>>>>1991
terrestre, aquela entidade recomendou então que a hora
“ofi cial” dada pelos relógios — a hora UTC —, nunca se
poderia afastar em mais de 0,9 segundos da hora dada
pelo “relógio” natural da rotação da Terra.
Foi justamente por essa razão que começou a ser pre-
ciso acrescentar segundos adicionais de vez em quando
à hora UTC. Desde 1972, 25 destes “segundos intercala-
res” foram assim acrescentados. E este ano, mais uma
vez, vai ser preciso fazer o acerto dos relógios. Diga-se,
já agora, que a hora atómica internacional TAI está actu-
almente 35 segundos adiantada em relação à hora solar,
uma vez que este tipo de acertos entre a hora atómica
e a hora solar já tinha começado a ser feito nos anos
1960, antes da instituição da actual hora UTC.
Parar um segundoComo é que o salto de um segundo se vai processar? A
30 de Junho, quando forem 00:59:59 horas (hora UTC),
todos os relógios do mundo que usam o sistema UTC
terão de parar por um segundo — ou de marcar um se-
gundo a mais (um sexagésimo primeiro segundo, com
os relógios a dar 00:59:60 horas) — antes de passar para
a hora seguinte. Isto acontecerá antes da meia-noite
nas Américas, após a meia-noite na Europa — e mesmo
depois do nascer do sol de 1 de Julho em países como o
Japão ou a Austrália.
Simples? Nem por isso. Acontece que os grandes
sistemas informáticos — como os serviços de reservas
das companhias aéreas ou os servidores das grandes
empresas da Internet — vão ter de marcar o passo. Ora,
em 2012, quando da introdução do último segundo in-
tercalar, vários destes sistemas tiveram problemas para
“digerir” o segundo e acabaram por ir abaixo, alguns
durante várias horas.
“Vamos ter de obrigar os nossos relógios a aceitar
um segundo a mais num dado minuto”, explicava em
fi nais de 2011 à revista New Scientist Felicitas Arias, as-
trónoma argentina e directora do Departamento do
Tempo no Gabinete Internacional de Pesos e Medidas.
E acrescentava: “Estamos a usar um sistema [horário]
que interrompe o tempo, quando a característica do
tempo é, pelo contrário, a continuidade.”
A seguir ao segundo intercalar de 2012, servidores da
companhia aérea australiana Qantas ou de sites como
Linkedin, Mozilla, FourSquare ou Reddit foram atin-
gidos por um bug de programação, que até lá tinha
permanecido latente (e que portanto ninguém tinha
detectado), no sistema operativo Linux utilizado por
aqueles computadores. Outros servidores, que utiliza-
vam Java (o célebre software da Oracle), também foram
afectados.
Pode isto tornar a acontecer? Ninguém sabe ao certo.
Mas na sequência dos problemas com que se defrontou
por ocasião do segundo intercalar introduzido em 2005,
o gigante online Google divulgou uma forma de contor-
nar o problema, como explicava há dias a CNN online.
Trata-se de ir acrescentando alguns milissegundos aos
relógios dos seus servidores ao longo do dia fatídico —
“o sufi ciente para evitar o desastre no fi m do dia, mas
que [por serem apenas uns milissegundos] não fazem
disparar os alarmes.” Porém, isso também não evita
todos os incidentes.
Há anos que a União Internacional de Telecomuni-
cações está a considerar a hipótese de acabar, pura e
simplesmente, com os segundos intercalares, deixando
a hora UTC afastar-se da hora solar. Em Novembro des-
te ano, a questão tornará a ser abordada no congresso
desta organização em Genebra. Mas o facto é que não há
consenso entre os especialistas. Por um lado, há quem
argumente que, com o passar dos séculos, a frequência
de introdução de segundos intercalares vai aumentar
até se tornar incomportável. Por outro, há quem alerte
para o facto que abolir os segundos intercalares fará
com que a hora civil acabe por perder a sua ligação
com o tempo solar.
Ainda segundo a New Scientist, este último argumento
apresenta uma visão exagerada das coisas, uma vez que
a hora legal em vigor nos diversos países já se encontra
desfasada, por vezes de várias horas, em relação à hora
solar — o que signifi ca que o Sol não está nem perto do
zénite quando os relógios assinalam o meio-dia. Por
comparação, a abolição do segundo intercalar levaria,
daqui por cem anos, a uma diferença de apenas um
minuto entre a hora atómica e a hora solar.
YULIA DARASHKEVICH/REUTERS
Salvar a TerraEm 1992, o Rio de Janeiro é o palco da Cimeira da Terra, a segunda conferência mundial sobre meio ambiente. A primeira realizara-se em Estocolmo em 1972. No Rio, 108 países comprometeram-se em travar a degradação do planeta e o consumo de recursos naturais, assim como encontrar modelos de desenvolvimento sustentável, ecologicamente equilibrados. Do Rio saíram convenções sobre biodiversidade, desertificação e clima. Esta última conduziu, em 1997, ao Protocolo de Quioto, no Japão, em que os países concordam em reduzir as emissões de gases com efeito estufa, evitando o aquecimento global. S.J.A.
>>>>>>>>>>>>1992
Ao contrário dos humanos, os computa-
dores não têm esperança, aquela dispo-
sição de espírito que leva a crer que algo
acontecerá (ou deixará de acontecer),
mesmo quando a informação dispo-
nível aponta em sentido contrário. Os
algoritmos desenvolvidos para analisar uma imensa
quantidade de dados e tomar uma decisão de compra
ou venda de um produto fi nanceiro não foram progra-
mados para cruzar os dedos e esperar que o pior passe.
Os computadores seguem à risca as instruções com
que foram programados e fazem-no em minúsculas
fracções de segundo. Por vezes, isto leva a situações
inesperadas.
Um mini-crash dos mercados em 2010 fi cou na histó-
ria como um exemplo dos riscos colocados pelas tran-
sacções feitas por algoritmos, em particular por aquilo
a que se chama high frequency trading (transacções de
elevada frequência). É uma prática que envolve gran-
des quantidades de transacções automatizadas, feitas
em curtíssimos períodos de tempo e onde a estratégia
é normalmente ter um pequeno ganho em cada uma
das múltiplas compras e vendas.
A 6 de Maio daquele ano, o Dow Jones (o índice bolsis-
ta que agrega as cotações de grandes empresas como a
Microsoft, a Coca-cola e a IBM) estava às 14h47 minutos
de Nova Iorque a perder mais de 9%. A maior parte desta
queda, invulgarmente grande, acontecera nos minutos
anteriores. Ainda antes das 15h, as cotações já tinham
recuperado boa parte das perdas.
Foram precisos meses para que as autoridades regu-
latórias conseguissem explicar o que se passara: o crash
tinha sido causado por computadores a comprarem e
venderem uns aos outros, numa sucessão imprevisível
de eventos. A bola de neve começou com uma empresa
que usou um programa de computador para vender
4,1 mil milhões de dólares de contratos de futuros, in-
dependentemente do preço de venda. A maior parte
foi rapidamente comprada por computadores de hi-
gh frequency trading. Quando os algoritmos daqueles
computadores consideraram que já tinham comprado
demasiado, começaram a vender muito rapidamente.
Em escassos 14 segundos, os contratos trocaram de
mãos 27 mil vezes.
Com uma venda maciça a decorrer, outros investido-
res começaram a comprar os contratos a preços redu-
zidos, mas a vender acções que tinham em mercados
como a Bolsa de Nova Iorque. Por seu turno, alguns
algoritmos detectaram a rápida sucessão de compras
e vendas e pararam de transaccionar. O resultado foi
um crash de alguns minutos, que terminou quando um
algoritmo, desta vez do mercado onde eram trocados
os contratos de futuros, interveio e suspendeu as ne-
gociações durante cinco segundos.
Ser o primeiroNas rapidíssimas transacções algorítmicas de alta fre-
quência, ser o primeiro a ter acesso a informação re-
levante é uma vantagem que se mede em milésimos
de segundo (ou, às vezes, até menos). A proximidade
física às fontes de informação e aos mercados onde as
acções e demais instrumentos são transaccionados é
um bem cobiçado, já que permite encurtar o tempo
que os dados e as ordens de compra e venda demoram
a percorrer (normalmente através de cabos de fi bra
óptica) a distância entre computadores.
“Cada microssegundo de vantagem conta. Ligações
mais rápidas de dados entre bolsas minimizam o tem-
po que se demora a fazer uma transacção; as empre-
sas lutam para ver qual é o computador que pode ser
colocado mais próximo”, explica, num artigo recente
para a revista Nature, o físico Mark Buchanan, autor do
livro Forecast: What Physics, Meteorology and the Natural
Sciences Can Teach Us About Economics.
Buchanan argumenta que as transacções ultra-rápidas
tem algumas vantagens. Por um lado, diz, tornou-se
mais barato investir, já que as comissões cobradas aos
investidores caíram com esta prática. Por outro, os pre-
ços dos diferentes instrumentos fi nanceiros ajustam-
se mais rapidamente. “Em 2000, eram precisos, em
média, minutos para que a mudança de preço num
instrumento se repercutisse nos outros. Agora, demora
menos de dez segundos. Nem toda a gente gosta disto:
uma sincronização rápida elimina as oportunidades de
lucro das empresas que fazem dinheiro por conhecerem
os desequilíbrios momentâneos de preços”.
Associada às transacções de alta frequência está tam-
bém a prática de colocar no mercado sucessivas ordens
de venda, a preços progressivamente mais altos, com o
objectivo de descobrir que ordens são aceites e assim
saber o preço máximo que alguém está disposto a pa-
gar — estas ordens são dadas e canceladas em fracções
de segundo.
O prémio Nobel da Economia Joseph Stiglitz está no
campo dos detractores deste tipo de práticas. Num dis-
curso no ano passado, apelou a um maior escrutínio,
disse ser céptico quanto ao “valor social” das transac-
ções de elevada frequência e classifi cou-as como um
jogo de soma negativa. “Porque o retorno privado pode
exceder o retorno social, haverá um excessivo inves-
timento na velocidade de aquisição de informação”,
observou o economista.
Em 2013, foi tornado público que a agência Reuters
vendia, a um grupo restrito de investidores, um indi-
cador sobre o consumo nos EUA dois segundos antes
de o divulgar à generalidade dos seus clientes (que, por
sua vez, o recebiam cinco minutos antes do público em
geral). A vantagem podia chegar a dois segundos e meio,
já que o contrato previa uma margem de erro de meio
segundo. Aquele indicador, que infl uencia mercados,
é elaborado pela Universidade do Michigan. Para ter
acesso antecipado à informação e a poder revender,
a Reuters pagava então à universidade um milhão de
dólares por ano, mais comissões.
Milissegundos que valem milhões
No mundo de alta velocidade dos algoritmos fi nanceiros, pouco tempo signifi ca muito dinheiro
Por João Pedro Pereira
Professora de
sociologia na
London School of
Economics, Judy
Wajcman publicou
recentemente
um livro onde
analisa a relação
das tecnologias
e a forma como
sentimos o tempo.
Em Pressed for Time
— The acceleration
of life in digital
capitalism, sublinha que as pessoas não são reféns
das tecnologias; logo, que não são estas as culpadas
de sentirmos que andamos sempre a correr. A obra,
que evita o facilitismo das ideias a “preto e branco”,
evidencia factos, como estarmos a viver uma cultura
que valoriza o estar atarefado e a hiperprodutividade.
Muitas vezes, com o devido contexto, levanta mais
questões do que dá respostas. Resumindo: faz pensar,
algo que requer tempo.
No seu livro refere que há uma espécie de
paradoxo, com as pessoas a culparem os produtos
tecnológicos pela pressão, pela noção de falta de
tempo, mas, ao mesmo tempo, é a esses mesmos
produtos que se recorre para tentar aliviar essa
pressão. A tecnologia está, de facto, a acelerar as
nossas vidas?
A tecnologia que temos refl ecte a sociedade, não a
molda. E isso é argumento contra a ideia de que somos
vítimas da tecnologia. A hiperactividade não existe por
causa dela. A tecnologia só existe a partir do momento
em que é fabricada, e lhe damos um sentido.
Mas acha que não estamos a usar tecnologia da
forma mais correcta?
Uma questão passa pelo facto de a tecnologia estar
a ser concebida, de uma forma geral, em Sillicon
Valley, por empresas cujo objectivo é o lucro.
Mesmo que digam que estão a querer transformar
o mundo num sítio melhor e que estão a construir
estas tecnologias a pensar em nós, o seu objectivo é
conceber produtos que dêem dinheiro. Os cidadãos
deviam estar mais envolvidos em todo esse processo
de criação e concepção. Isto para termos diferentes
produtos tecnológicos, mais afastados da noção de
que mais velocidade é igual a progresso, que melhores
vidas dependem da banda larga mais rápida, de que
é isso que queremos, em vez de se pensar, de facto,
em ajudar a termos melhores vidas e que problemas
sociais é que queremos resolver.
Como é que os cidadãos podem estar mais
envolvidos nesse processo?
Primeiro, há um problema no facto de os engenheiros
que estão em Sillicon Valley serem, de uma forma
geral, muito jovens, predominantemente brancos,
embora haja alguns indianos, e do sexo masculino. Se
houvesse mais diversidade, é provável que tivéssemos
tecnologias diferentes. Depois, os governos devem ter
um papel mais activo. Devem estar mais envolvidos
na concepção dos produtos tecnológicos e facilitar
o tal envolvimento dos cidadãos, nomeadamente
através da educação ligada à área de ciência e
tecnologia. Devia haver mais organismos onde
se discutisse, de forma colectiva, os caminhos da
investigação e desenvolvimento dos produtos.
É sabido que muita da investigação e muito do
desenvolvimento usados em Sillicon Valley têm por
base tecnologia militar, como os drones, que podem
entregar pizzas. E podia-se estar a pensar em áreas
como a energia, problemas sociais, em vez de pensar:
“Há esta tecnologia dos drones, vamos usar de forma
comercial.”
Considera que é errada a ideia de ligar a
tecnologia a algo que tem de ser mais rápido?
Sim, quando se pensa que o melhor motor de
pesquisa é o que dá resultados de forma mais veloz,
mas um outro motor de pesquisa, menos rápido,
com diferentes algoritmos, pode dar outro tipo
de respostas ligadas à informação que se procura,
com outro tipo de conhecimento. As pessoas não se
questionam sobre porque é que um determinado
algoritmo resulta num tipo de informação e não
noutro. E o segredo mais bem guardado do mundo é o
algoritmo do Google.
Falou do papel das empresas. E em relação ao
papel dos consumidores, dos cidadãos? Porque
a forma como utilizamos a tecnologia diz algo
sobre nós. Quando as pessoas incorporam essa
necessidade de velocidade, o que é que diz delas
próprias?
No meu livro tento fugir à polarização, de que
algo é totalmente bom ou totalmente mau. De que
o problema se resolve com uma desintoxicação
tecnológica. Numa sociedade que valoriza a
velocidade, as pessoas tendem a usar a tecnologia
nesse sentido. Quando se olha para os telemóveis,
para smartphones, por exemplo, as pessoas querem
estar em estrito contacto com a família e com os
seus amigos. Quando os telemóveis surgiram, pensei
que era mais uma ferramenta de trabalho. Como
antiga marxista que sou, imaginei logo que seria
uma forma de intensifi car o trabalho. Mas todas as
pessoas compraram telemóveis, de uma forma tão
rápida, e verifi cou-se que querem estar em contacto
com a família e amigos quando estão à espera do
autocarro, por exemplo, para saber se é preciso ir ao
supermercado ou se as crianças estão bem.
Mas os telemóveis vieram intensifi car o trabalho,
certo?
Sim, é verdade. Mas não se pode pensar no problema
do tempo e das pessoas como uma questão individual.
É um problema colectivo, ligado à forma como a
sociedade está organizada: espera-se uma resposta
rápida, que a pessoa está disponível, etc. Tem de se
lidar com essas questões de forma colectiva, alterando
as práticas do local de trabalho. Em termos históricos,
os telemóveis são algo muito recente, tal como o
email, e já usamos o email de forma diferente da
que fazíamos há dez anos. Com o tempo, as pessoas
vão alterar a forma como utilizam as diferentes
tecnologias.
E essa alteração virá no sentido de abrandar
o ritmo na forma como se usa os telemóveis,
desligando mais vezes ou não atendendo todas as
chamadas?
Não sei se é uma questão de mais ou menos
velocidade, mas antes de usar as tecnologias para ter
tempo para as coisas que queremos fazer. Em muitas
famílias, os dois membros do casal trabalham. Face
ao passado, a articulação entre os membros da família
é mais complicada. E o telemóvel funciona para
organizar e proporcionar tempo para estar com o seu
parceiro ou com os seus fi lhos. Pode-se chamar tempo
de qualidade, o tempo que se pretende ter.
Diz que não podemos olhar para o tempo apenas
como as 24 horas do relógio, mas também como
espaço, e que há uma dessincronização entre as
pessoas. Por exemplo, entre o pai e a mãe, que
estão cada um no seu trabalho, e o fi lho, que
está na escola. Isto contribui para a sensação de
estarmos sempre com pressa?
Uma das coisas de que se fala muito é de as fronteiras
entre lazer e trabalho estarem a mudar, e julgo que
isso é verdade. A discussão tem sido sobre como a
tecnologia levou o tempo de trabalho a colonizar o
tempo em casa e o tempo de lazer. Mas, por outro
lado, a tecnologia permite que as pessoas, quando
estão no trabalho, estejam em contacto com a família
e os amigos. É um resultado do capitalismo industrial
termos uma separação rigorosa entre trabalho e
lazer. Mas talvez dentro de cinquenta anos seja mais
normal não haver esta separação, poder passar algum
tempo no trabalho a fazer compras ou outras coisas
na Internet, e compensar isso com trabalho à noite.
Há um conceito de fl exibilidade — que é a fl exibilidade
dos empregadores — que é estarmos sempre
disponíveis para trabalhar. E há a fl exibilidade que nós
queremos, que é termos mais controlo para organizar
os diferentes aspectos das nossas vidas.
A tecnologia pode tornar esse tipo de
fl exibilidade possível na generalidade dos países?
Depende do que forem as condições de trabalho e
essas não são resultado de smartphones e gadgets. A
questão tem muito mais que ver com a desregulação
dos mercados de trabalho.
A grande intensidade do multitasking no
Judy Wajcman“Temos mais tempo mas não sentimos que o temos”
Entrevista João Pedro Pereira e Luís Villalobos
Para Judy Wajcman, professora de sociologia na London School of Economics e autora de Pressed for Time, está a criar-se uma cultura na qual o tempo de lazer é desvalorizado
local de trabalho ajuda à sensação de estarmos
pressionados pelo tempo?
O multitasking é um mito. Os estudos mostram que
as pessoas fazem as coisas numa sequência rápida,
em vez de estarem literalmente a fazer várias coisas
ao mesmo tempo. É mais fácil queixarmo-nos de que
temos a caixa de correio cheia do que falar dos outros
problemas de trabalho. Sou céptica em relação à
justifi cação das interrupções causadas pela tecnologia.
No livro diz que é possível comprar tempo. A que
ponto há uma desigualdade de tempo provocada
por uma desigualdade de riqueza?
Há uma grande desigualdade. E, mais uma vez, não
poria a tecnologia no centro disso.
Sim, é possível comprar serviços, comprar o trabalho
de outros.
Em termos de poupar tempo, o que as pessoas ricas
fazem é comprar muito trabalho dos outros. Uma
das coisas de que vale a pena falar é de como o
futuro com que Silicon Valley sonha para todos nós
é um mundo com muitos assistentes pessoais nos
telemóveis, como se todos vivêssemos em classes
altas com escravos, mas com os escravos a serem
máquinas. É uma fantasia antiga. Mas a maioria
dos robôs está em fábricas de carros, está a pintar
a spray, o que está a ser automatizado não são os
serviços prestados por humanos. A promessa antiga
da inteligência artifi cial e da robótica é que haverá
mais inteligência e não teremos de fazer várias coisas,
como cuidar dos mais velhos. Mas a inteligência
artifi cial não está sequer perto disso. Que tipo de
fantasia é esta de querer ter escravos automáticos?
Não é um desejo que eu tenha.
Estamos hoje a trabalhar mais horas, apesar
de haver muitas tarefas automatizadas. Mas
houve coisas, como a máquina de lavar, que nos
trouxeram mais tempo. Temos mais tempo de
lazer do que há cem anos. Do que precisamos é de
um equilíbrio?
Com tecnologias como a máquina de lavar, o que
acontece é que os padrões se alteram quando elas
aparecem. Hoje lavamos mais vezes a roupa. Temos
mais tempo, mas não sentimos que o temos. Acho
que esse é o paradoxo. Em parte, tem que ver com
uma cultura que valoriza o estar atarefado e a
hiperprodutividade. Os heróis de hoje são o Steve
Jobs, o Ted Turner [magnata dos media americano], os
heróis empreendedores... Li o perfi l do Jony Ive [vice-
presidente da Apple] na New Yorker. Falam sempre de
ser obsessivos, maníacos, de trabalhar 24 horas por
dia.
Há cem ou 200 anos, ter tempo para lazer era ter
estatuto. Esse estatuto foi substituído por estar
atarefado?
Penso cada vez mais nisso, e julgo que sim. Um
colega disse-me: “Imagina que eu digo que não tenho
assim tanto email e que não tenho assim tanto para
fazer. Toda a gente dirá que sou um falhado.” É uma
americanização do estilo de vida. Está a criar-se uma
cultura em que isso é valorizado e em que o tempo de
lazer é desvalorizado.
Consegue determinar o ponto em que começámos
a desvalorizar o lazer e talvez a sobrevalorizar o
trabalho?
Um colega escreveu um trabalho sobre a antiga
aristocracia, que se orgulhava de ter uma vida de
lazer, dedicando-se à música, à caça. Tem que ver com
o capitalismo industrial. As pessoas interiorizaram
que o trabalho é uma coisa boa em si. O Ive, o tipo da
Apple, disse que, mesmo quando era novo, estava
sempre a trabalhar! Os desempregados hoje são vistos
apenas como indolentes, preguiçosos.
Na sua opinião, o trabalho é uma coisa boa em si
mesma?
Tenho de dizer que estou a repensar isso. Como uma
marxista, sempre alinhei com a ideia de que não havia
nada mais criativo e mais defi nidor de identidade.
Talvez nos estejamos a focar demasiado no trabalho e
haja mais coisas para fazer com o nosso tempo. Saber
se podemos trabalhar menos, consumir menos e ter
uma vida diferente é uma discussão que ainda não
estamos a ter. A chave para isso é a redistribuição do
trabalho, de forma a não haver uma sociedade em que
há profi ssionais a trabalharem imensas horas, e muitas
pessoas desempregadas e sem trabalho que chegue.
Escreveu que pode ser que muitos de nós
tenhamos mais tempo, mas não o tipo certo de
tempo. O que quer dizer com isto?
Estou a referir-me a tempo com outras pessoas. Há um
estudo interessante que diz que tanto desempregados
como empregados se sentem melhor quando o fi m-
de-semana está a chegar, e que se sentem pior na
segunda-feira de manhã. Isto acontece porque o
tempo de socialização é aos fi ns-de-semana. Mesmo os
desempregados sentem isto, porque o fi m-de-semana
é a altura em que têm tempo livre ao mesmo tempo
que os outros. É uma questão de ter tempo social, não
apenas tempo em abstracto.
Mandela PresidenteA 27 de Abril de 1994, o icónico líder de etnia xhosa e do clã Madiba, Nelson Mandela, (18/07/1918-05/12/2013), é eleito Presidente da África do Sul, a cuja democratização dedicou a vida. Foi um momento marcante na história do mundo, o da eleição do primeiro Presidente negro da África do Sul, Estado que fora o expoente do apartheid, regime segregacionista, que o antigo líder do ANC, depois de 27 anos de prisão (1962-1990), ajudou a desmantelar em conjunto com o então Presidente branco, Frederick de Klerk. Ambos receberam em conjunto o Prémio Nobel da Paz, em 1993. S.J.A.
Outro planetaA ficção tinha sempre projectado este desejo da humanidade: o de não estarmos sós no Universo. Em Julho de 1995, foi dado um salto em que a realidade se aproximou desse patamar, quando os cientistas Michel Mayor e Didier Queloz, do Observatório Astronómico de Genebra, descobriram pela primeira vez que na nossa galáxia existia um planeta fora do sistema solar — ou seja, que a 50 anos-luz da Terra, na órbita de outra estrela, Pégaso 51, um planeta gravitava. Desde então, já vai em 1885 o número de planetas descobertos. S.J.A.
>>>>>>>>>>>>1994
>>>>>>>>>>>>1995
RUI GAUDÊNCIO
A tecnologia que temos refl ecte a sociedade, não a molda. E isso é argumento contra a ideia de que somos vítimas da tecnologia
Como se moveramos ponteiros
O Relógio do Apocalipse é uma formade ilustrar o quão perto estamos de
uma catástrofe nuclear
Fonte: Bulletin of the Atomic Scientists, Universidade de Chicago PÚBLICO
24h00
5 min.
10 min.
15 min.
20 min.
Modernização dosarsenais nuclearese alteraçõesclimáticassem controlo
20102015
200019901980197019601950
23h57
Faltam 3 min.para as 24h00
Primeirapublicaçãodo Relógiodo Apocalipse
EUA e Rússiainiciamnegociaçõespara controlo de armamento
França e Chinadesenvolvem armas nucleares
EUA e Rússiatestam bombasde hidrogénio
Fim da Guerra fria 1991
1947 19841953 1968 2007
Coreia do Nortefaz teste nuclear
O Relógio do Apocalipse quer voltar a fazer medo
altam três minutos para a meia-noite no Relógio do Apo-
calipse dos Cientistas Atómicos. Só estivemos tão perto
da catástrofe em 1984, quando o confronto nuclear entre
os Estados Unidos e a Rússia parecia tão provável que
Sting compôs uma música com a letra “I hope the rus-
sians love their children too” e nos anos de 1953 e 1949:
foi nessa altura que os EUA decidiram construir a bomba
de hidrogénio, mil vezes mais poderosa do que as que
foram lançadas sobre as cidades japonesas de Hiroxima
e Nagasáqui, no fi m da II Guerra Mundial.
“Alterações climáticas sem controlo, modernização
global das armas nucleares e arsenais grandes de mais
representam ameaças extraordinárias e inegáveis à exis-
tência continuada da humanidade, e os líderes mundiais
não têm agido com a velocidade ou na escala que se exi-
gia para proteger os cidadãos da catástrofe potencial”,
disseram em Janeiro os cientistas herdeiros da organi-
zação fundada pelos que construíram a primeira bomba
nuclear, o projecto Manhattan.
E, no entanto, esta avaliação drástica, feita depois
do ano mais quente desde que começaram a ser feitos
registos meteorológicos — segundo a agência espacial
NASA e a Agência para os Oceanos e a Atmosfera norte-
americana (NOAA) —, foi noticiada amplamente, mas
sem criar grandes sobressaltos.
“Recebemos muito mais atenção do que nos últimos
anos e fi cámos muito satisfeitos”, disse ao PÚBLICO Ra-
chel Bronson, directora da revista Bulletin of the Atomic
Scientists, criada em 1947, por cientistas ligados ao projec-
to Manhattan, e que é responsável por publicar e divulgar
o Relógio do Apocalipse. “Ficámos com a sensação de
que há um aumento do interesse nestes assuntos. Talvez
pelo agudizar das relações entre os Estados Unidos e a
Rússia, talvez por causa das negociações com o Irão, ou
por causa da Coreia do Norte.”
E, no entanto, é difícil tornar urgente o risco de uma
catástrofe, mas que não se sabe quando acontecerá. Cria
fadiga se nos estão sempre a recordar de um perigo que
nunca mais se torna realidade. Como escreveu no Guar-
dian Julian Baggini, escritor e fundador da revista The
Philosopher’s Magazine, a propósito do último acerto do
Relógio do Apocalipse, “esteja ou não correcta a nossa
avaliação dos riscos actuais do mundo, não são os peri-
gos que os cientistas consideram os maiores os que nos
preocupam mais.”
“Sim, esse sempre foi o desafi o de comunicar o risco
de um confronto ou de um acidente nuclear: a proba-
bilidade é reduzida, mas o impacto é muito elevado. E
as alterações climáticas são efeitos poderosos que só
sentiremos a longo prazo. É mais difícil de responder
a isto do que a algo que aconteceu ontem”, reconhece
Rachel Bronson. “É difícil alguém acordar e sentir-se
assustado com estas coisas. Mas acho que a divulgação
do relógio cria um momento em que as pessoas podem
pensar e falar disto.”
A 22 de Janeiro, quando o Bulletin of the Atomic Scien-
tists divulgou o último acerto do Relógio do Apocalipse,
400 mil pessoas acederam ao site (www.thebulletin.org)
da organização quase imediatamente, contou Rachel
Bronson. “Foi muito mais do que nos últimos anos. A
questão nuclear está a tornar-se algo mais próximo. Sen-
timos que há mais interesse do que há dez anos.”
O Relógio do Apocalipse estava na capa do primeiro
número do Bulletin, em 1947, dois anos depois de os EUA
terem bombardeado Hiroxima e Nagasáqui e o mundo
ter visto os efeitos da nova arma que usava a energia
explosiva da cisão dos átomos. O avanço ou recuo dos
ponteiros do relógio é decidido por um painel de cien-
tistas, especialistas em nuclear, desarmamento, armas,
alterações climáticas, que analisam a situação mundial
e fazem uma avaliação de quão perto a humanidade está
de poder aniquilar-se a si própria.
Einstein na origemNesse primeiro ano, faltavam sete minutos para a meia-
noite; 1991, após a queda do Muro de Berlim, e de os
EUA e a ainda União Soviética assinarem o Tratado para
a Redução de Armas Estratégicas (nucleares), foi o ano
em que os cientistas, e o mundo, estiveram mais opti-
mistas: o ponteiro dos minutos recuou até às 23h43. Há
um claro desejo de intervenção política dos cientistas.
“A mudança dos ponteiros do Relógio do Apocalipse é
uma forma de concentrar a atenção das pessoas”, explica
Bronson. “É um mecanismo grosseiro, algo discutível,
que gera discussão: ‘Porque é que acelerámos o relógio?’,
‘Devíamos ou não ter movimentado os ponteiros?’. São
cientistas que acertam o relógio e, no fundo, lançam uma
conversa com o público sobre aquilo que nos ameaça a
todos”, defende.
A intervenção política dos cientistas teve origem nas
cartas escritas por Albert Einstein e pelo físico húnga-
ro Leo Szilard ao Presidente norte-americano Franklyn
Delano Roosevelt, a partir de 1939, alertando para os
esforços do regime nazi para construir uma bomba ató-
mica, e incentivando os EUA a construí-la primeiro. E,
depois da guerra, no que fi cou conhecido como o Mani-
festo Russell-Einstein, em 1955: um apelo aos políticos
a “compreender, e a reconhecer publicamente, que os
seus objectivos não podem ser satisfeitos por uma guerra
mundial”.
O fi lósofo Bertrand Russell foi o impulsionador deste
manifesto, que acabou por ser divulgado já depois da
morte de Einstein, mas num momento em que a ameaça
das bombas de Hiroxima e Nagasáqui se tinha agigantado:
depois de se saber que os soviéticos tinham testado as
suas primeiras bombas atómicas, o Presidente dos EUA
Harry Truman deu luz verde para a construção de bom-
bas termonucleares, mil vezes mais poderosas do que a
bomba atómica. Em vez de usar a energia desencadeada
pela separação dos átomos, a também conhecida como
bomba H baseia-se em reacções tão poderosas como as
que acontecem nas estrelas, onde os átomos de hidro-
génio se fundem, numa reacção em cadeia que liberta
uma energia monstruosa. É verdade que a reacção, hoje,
aos acertos do Relógio do Apocalipse não é tão signifi -
cativa como foi nesse ano. “Mas é até injusto fazer essa
comparação”, defendeu Rachel Bronson. “O mundo está
diferente e o espaço dos media é diferente, mas é claro
que gostamos sempre de ter mais atenção.”
Por Clara Barata
FFim do IRAA 10 de Abril de 1998, o acordo de paz de Sexta-Feira Santa entre a Irlanda do Norte protestante e a República da Irlanda católica acelera o fim das acções terroristas de exércitos independentistas na Europa. É o primeiro passo para o fim do IRA (Exército Republicano Irlandês), católico, que em 2005 entrega as armas, depois de três décadas de acções terroristas. Em 2011, é a vez da ETA (Pátria Basca Liberta), ao fim de meio século de existência, pôr fim às suas acções armadas e declarar um cessar-fogo permanente. S.J.A.
>>>>>>>>>>>>1998
ntes de 1968, nunca os Jogos Olímpicos de Verão se ti-
nham realizado a mais de 200 metros acima do nível
no mar, mas esses Jogos da Cidade do México foram a
2244m de altitude. A menor concentração de oxigénio
em altitude teve efeitos diversos no programa atlético.
Nas provas de meio-fundo e fundo, as marcas foram de
nível baixo, mas em salto em comprimento, triplo salto
e velocidade bateram-se recordes do mundo. Nenhum
durou tanto como o de Bob Beamon no comprimento
(até 1991), mas falemos apenas dos casos de provas que
são medidas em segundos e não em centímetros.
Só na estafeta masculina de 4x100m, por exemplo,
bateu-se o recorde do mundo por três vezes em três dias,
desde a primeira eliminatória até à fi nal. Como este, há
vários casos de recordes do mundo que duraram apenas
dias ou algumas horas, há outros que parecem eternos.
Entre os recordes do atletismo de pista ao ar livre, mais
maratona, o mais antigo é o de Jarmila Kratochvilova, nos
800m femininos, o mais recente é o de Dennis Kimetto,
na maratona masculina. Um já dura desde 1983 (11.546
dias), o outro foi estabelecido no ano passado (159 dias).
Se em homens e mulheres há recordes de longa duração,
os números mostram que os recordes femininos têm
uma longevidade média de quase o dobro (7007 dias)
em relação aos recordes masculinos (3546 dias).
Se o de Kratochvilova, obtido em 1983 nos Mundiais
de Helsínquia, é o mais antigo, aquele que é considerado
como o mais difícil de ultrapassar é o de Marita Koch nos
400m planos (1985). A atleta da República Democráti-
ca Alemã fi xou a marca da volta à pista em 47,60s em
Camberra, sendo que só mais uma atleta conseguiu uma
marca dentro dos 47 segundos, precisamente Jarmila
Kratochvilova (47,99s). Só para se ter uma ideia de como
as atletas contemporâneas estão longe desta marca, o
melhor registo de 2014, por exemplo, foi da norte-ameri-
cana Francena McCory, quase dois segundos mais lenta
(49,48s) que o recorde de Koch. A marca que deu para a
britânica Christine Ohuruogo conquistar o título mundial
em Moscovo 2013, por exemplo, foi de 48,91s.
Durante a sua carreira, Koch estabeleceu dezenas de
recordes, mas nunca se livrou da suspeita de doping, tal
como os seus colegas da RDA. A velocista nunca teve um
controlo positivo, mas antigos atletas do país já deram os
seus testemunhos quanto à prática sistemática de doping.
“A principal arma eram aqueles comprimidos azuis [o
Turibanol] da Jenapharm, a companhia farmacêutica
estatal”, escreveu nas suas memórias Arne Ljungqvist,
presidente da Comissão Médica do Comité Olímpico
Internacional. Tal como Koch, a checa Kratochvilova
também levantou suspeitas, por só ter aparecido na alta-
roda do atletismo depois dos 30 anos, mas também pelo
seu físico musculado e pouco feminino, o que sugeria o
uso de esteróides.
As mesmas suspeitas rodeiam a norte-americana Flo-
rence Griffi th-Joyner e os seus recordes de 100m e 200m,
estabelecidos em 1988, tal como as marcas das chinesas
Wang Junxia (10.000m) e Qu Yunxia (1500m), ambas
de 1993. A longevidade das marcas e as suspeitas que as
rodeiam já motivaram várias propostas de que todos os
recordes estabelecidos antes de 2000 fossem eliminados
das listas e, embora as evidências do uso de substâncias
dopantes sejam numerosas, fazê-lo seria admitir que
alguns dos grandes nomes da história do atletismo não
passavam de batoteiros.
O mais antigo dos recordes masculinos pertence a Ke-
vin Young, nos 400m barreiras, alcançado nos Jogos de
Barcelona em 1992 e batendo na fi nal o anterior recor-
dista, o lendário Edwin Moses. Apenas mais três foram
alcançados antes de 2000, nos 4x400m (estafeta dos
EUA, em 1993), nos 1500m (Hicham El Guerrouj, 1998) e
nos 400m (Michael Johnson, 1999). Mas há um nome que
aparece três vezes nesta lista, Usain Bolt, detentor das
marcas 100m (9,58s) e 200m (19,19s) planos desde 2009,
e membro integrante do quarteto jamaicano recordista
dos 4x100m em 2012. Há quem dê “Lightning” Bolt como
candidato ao recorde de Johnson para deter o pleno da
velocidade, já que os seus recordes das duas distâncias
mais curtas parecem inatacáveis a curto e médio prazo, a
não ser por ele próprio. Com melhor tempo de reacção e
vento favorável no limite do permitido, ou mesmo bene-
fi ciando da altitude, Bolt poderá, dizem alguns estudos,
fi xar a marca do hectómetro abaixo dos 9,5. Para isso,
talvez baste não abrandar para saudar o público quando
está a cortar a meta muito à frente dos outros.
A
Por Marco Vaza
Os recordesem que o tempoparou
14 recordes mundiais dos 100m na mesma pistaSegundo as listas da Federação Internacional de Atletismo (IAAF), o recorde mundial dos 100m planos no sector masculino foi batido por 62 vezes, a última das quais em 2009 por Usain Bolt. Já o recorde feminino dura desde 1988, estabelecido por Florence Griffith-Joyner, e é o último dos 43 recordes ratificados pela IAAF.
Masculino Feminino
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FONTE: IAAF J.A.
O norte-americano Michael Phelps, actual detentor de sete recordes mundiais
O tempo na natação é relativo. Olhe-se para o caso de
Johnny Weissmuller, agora provavelmente mais conhe-
cido por ser o Tarzan mais emblemático do cinema, mas
que durante muito tempo foi considerado o melhor na-
dador de sempre. Bateu mais de 50 recordes mundiais
e ganhou todas as 12 corridas em que participou nos
Jogos Olímpicos, conquistando cinco medalhas de ouro.
Tornar-se o primeiro a baixar da barreira do minuto nos
100 metros livres, a prova-rainha da modalidade, foi um
dos pontos altos da carreira do norte-americano. O seu
melhor registo (57,4s) sobreviveu dez anos como recorde
mundial, de 1924 a 1934, e no entanto, para os padrões
actuais, apesar de obtido numa distância de sprint, seria
considerado um tempo lento.
Na natação, os recordes foram mesmo feitos para se-
rem quebrados. O húngaro Zoltán Halmay foi o primeiro
recordista dos 100m livres reconhecido ofi cialmente,
depois de gastar 1m05,8s, em Viena, Áustria, em 1905.
Mais de um século depois, a melhor marca (46,91s) per-
tence a César Cielo, 19 segundos abaixo da de Halmay e
10 abaixo da de Weissmuller. Ou, visto por outro prisma:
se os três competissem simultaneamente, o húngaro e o
norte-americano estariam 28 e 18 metros atrás do brasi-
leiro, respectivamente, quando este atingisse a centena
de metros. Por curiosidade, note-se que o actual recorde
português (49,50s), de Alexandre Agostinho, só não daria
para ganhar a prova nos últimos sete Jogos Olímpicos.
Para um efeito dramático maior, considere-se os 1500m
livres, a maior distância da natação competitiva, na ver-
são piscina longa e no sector feminino. Em 1922, a norte-
americana Helen Wainwright percorreu-a em 25m06,6s.
No ano passado, Katie Ledecky, a rainha da média e longa
distância da actualidade, gastou cerca de menos 10 mi-
nutos (9m38s) do que a sua compatriota. Aos 15m28,36s
da sua performance — tempo que o cronómetro regis-
tou para Ledecky —, Wainwright estava a 576 metros de
completar os 1500m.
Claro que são comparações de coisas pouco compará-
veis. Não se pode fazer paralelismo entre eras. “É tudo
muito diferente e assim será daqui a uns anos”, afi rma
João Paulo Vilas Boas, treinador de natação e professor
de Biomecânica da Faculdade de Desporto do Porto.
A evolução é a norma, não apenas na natação. Há re-
cordes mundiais que foram melhorados mais de 40, 50
ou 60 vezes desde que o primeiro foi registado. Os tem-
pos progrediram radicalmente por várias razões. Somos
mais altos, mais fortes e a era do amadorismo, especial-
mente nas grandes nações da modalidade, fi cou há muito
para trás. Há mais e melhores treinos e as carreiras duram
mais. As alterações de estilo e das regras (a separação
dos bruços e da mariposa nos anos 50, por exemplo)
também infl uenciaram decisivamente o desporto. Assim
como o desenvolvimento tecnológico dos materiais. Até
as piscinas se “tornaram” mais rápidas. Tudo conta para
ganhar um centésimo de segundo — ainda que o “desa-
conselhável” bigode de Mark Spitz, em Munique 1972,
não o tenha impedido de conquistar sete títulos (e todos
acompanhados por recorde do mundo).
Há pouco tempo, assistiu-se ao maior “boom” de re-
cordes da história da natação. Eles sempre caíram com
alguma regularidade, mas muitas marcas tinham con-
seguido sobreviver ao teste do tempo. Os máximos de
Janet Evans nos 400, 800 e 1500m livres e os últimos
de Mary T. Meagher nos 100 e 200m mariposa duraram
todos entre 18 e 19 anos e a holandesa Willy den Ouden
teve o recorde nos 100m livres por 20 anos (1936 a 1956),
entre outros exemplos. Mas nunca num período de dois
anos como entre 2008 e 2009 houve tantos recordes a
caírem. Ajudados pelos fatos de banho compostos de
materiais não-têxteis, como o poliuretano, os atletas na-
daram como nunca. Somente três recordes — todos nos
1500m livres — entre as mais de 80 provas da natação
resistiram à era do vestuário de alta tecnologia.
Entretanto, apesar do regresso a fatos mais convencio-
nais, os nadadores parecem, aos poucos, ter encontrado
maneira de voltarem a superar barreiras. Em Dezembro,
no Mundial de Piscina Curta, no Qatar, foram registados
23 recordes mundiais.
Vivemos para nos ultrapassarmos. Mas há quem de-
fenda que estamos a chegar aos limites da velocidade
que um humano pode atingir na água e que isso, num
futuro próximo, obrigará a uma estagnação das marcas.
João Paulo Vilas Boas, contudo, acredita que os recor-
des continuarão a ser renovados. “Não tenho dúvida.
Estamos na pré-história do conhecimento em todos os
domínios. E no desporto ainda mais. Daqui a 100 anos,
os recordes de hoje já terão desaparecido há muito”.
Só o tempo dirá.Por Manuel Assunção
O Homem continua a quebrar barreiras dentro de água
TIMOTHY CLARY/AFP
Dentro de um tubo em Sacavém vai simular-se a chegada a outros mundos
DR
Desenho do Tubo de Choque e,
em baixo, esta máquina durante a
construção
Um pequeno meteoro em colisão
contra a Terra não sobrevive à re-
sistência da atmosfera. O atrito de-
sintegra-o. Tudo o que fi ca no céu
é um breve risco de luz. Uma nave
que faça a mesma viagem a altas
velocidades pode ter igual destino.
A Agência Espacial Europeia (ESA)
debate-se com este problema: não
tem, para já, tecnologia para missões
de naves a outros planetas e luas ou
que tragam para a Terra amostras de
asteróides ou até astronautas. Mas,
ontem, foi inaugurado um laborató-
rio português pedido pela ESA para
ajudar a obter esta tecnologia.
A nova instalação, em Sacavém,
é agora a maior do país em investi-
gação espacial. Este Laboratório de
Plasmas Hipersónicos pertence ao
Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear
do Instituto Superior Técnico (IST),
em Lisboa.
Aí, vão simular-se as condições
de chegada de objectos à Terra e a
outros planetas e luas. “Uma nave
espacial atinge a velocidade de dez
quilómetros por segundo quando
entra na atmosfera de um planeta”,
diz o responsável pelo laboratório, o
físico Mário Lino da Silva, que usou a
imagem da estrela cadente para ex-
plicar os riscos dessa operação.
Em Sacavém, está agora a ser ins-
talado o Tubo de Choque Europeu
para a Investigação de Alta Entalpia
(ESTHER, sigla em inglês). Neste tu-
bo vai dar-se a colisão entre uma on-
da de choque e uma mistura gasosa
que imita a atmosfera de um planeta.
Pode-se simular ali a atmosfera da
Terra, de Marte ou de Titã, lua de
Saturno, tendo em conta a sua com-
posição e a densidade atmosférica.
Tudo depende das missões da ESA.
No tubo, a energia da onda que se
perde na velocidade é transformada
em calor. A temperatura sobe até mi-
lhares de graus junto da onda de cho-
que e produz plasma, o quarto esta-
do da matéria, em que os electrões
que normalmente andam à volta dos
átomos (que compõem a atmosfera)
libertam-se e passam a andar livre-
mente. Parte da energia do plasma é
libertada em forma de radiação: des-
de radiação ultravioleta, passando
pela luz visível aos olhos humanos,
até aos infravermelhos.
Esta radiação é analisada em se-
guida por uma série de aparelhos no
fi nal do tubo, o que permite ter um
perfi l deste plasma e dar informação
preciosa à ESA, já que pode ajudar a
defi nir o material do casco de uma
nave para entrar numa atmosfera.
“As naves usam materiais ablati-
vos, que ardem devagarinho duran-
te a reentrada”, explica o cientista,
dando como exemplo os já reforma-
dos vaivéns da NASA. Mas o cientis-
ta explica que existe uma diferença
grande entre missões espaciais perto
da Terra, como eram as dos vaivéns
da NASA — que reentravam a cerca
de seis quilómetros por segundo na
atmosfera terrestre —, e uma missão
que traga amostras geológicas de um
asteróide fora da órbita da Terra.
“Se a nave vier de outro planeta e
entrar na Terra, pelas leis da física
essa entrada ocorre a dez ou 12 quiló-
metros por segundo”, diz. Apenas os
EUA fi zeram reentradas a velocida-
des superiores, quando trouxeram
astronautas da Lua, nas várias mis-
sões Apolo, entre 1968 e 1972.
“A Europa ainda não tem essa ca-
pacidade. Com o Tubo de Choque,
é isso que vai ter”, prevê o cientista.
No Laboratório de Plasmas Hipersó-
nicos, o novo tubo permitirá jogar
com a velocidade tanto da onda de
propagação como da composição da
atmosfera e a sua pressão. “É tudo o
que precisamos para simular qual-
quer entrada na atmosfera.”
O tempo de vida do laboratório
será de 20 a 30 anos. E vai responder
a qualquer pedido da ESA. Para já,
estão encomendados testes de “ce-
nários da reentrada terrestre de mis-
sões que vão buscar amostras de solo
a Marte, cometas e asteróides”.
Mas as experiências só se vão ini-
ciar no Verão. Por agora, apenas está
instalada a câmara de alta pressão.
Depois, o tubo de ferro será instala-
do. Devido aos perigos inerentes ao
uso de gases muito explosivos, a sala
do tubo vai fi car separada da de con-
trolo. Tudo num edifício que parece
um bunker, desenhado e construído
para minimizar acidentes.
Segundo Mário Lino da Silva, o
laboratório também servirá para
“aumentar o conhecimento físi-
co dos plasmas”. E pode ser ainda
importante para compreender as
consequências de corpos maiores
que possam atingir a Terra, como o
asteróide que caiu em Cheliabinsk,
na Rússia, em 2013.
O asteróide não matou ninguém,
mas a onda de impacto partiu vidros
e a luz cegou momentaneamente e
queimou (pelos raios ultravioletas
produzidos) várias pessoas. “Esta
instalação está preparada [para estu-
dar] impactos de meteoros”, frisa o
investigador. “Para estudar os danos
que podemos esperar devido à sua
radiação e onda de choque.”
Exploração espacial Inaugurado ontem o Laboratório de Plasmas Hipersónicos, onde está o Tubo de Choque, que servirá para preparar missões da Agência Espacial Europeia a planetas e luas do sistema solar. As primeiras experiências começam no Verão. Por Nicolau Ferreira
Ao todo, o projecto custou dois
milhões de euros: 250.000 euros
do IST destinados à construção de
raiz do edifício e o resto, pago pela
ESA, foi para o Tubo de Choque. O
projecto foi iniciado em 2010, depois
de o consórcio liderado pelo IST ter
ganho o concurso da ESA para a
construção do laboratório. No con-
sórcio “académico-industrial”, como
diz Mário Lino da Silva, participam
parceiros internacionais, assim co-
mo empresas portuguesas como a
ISQ ou a Setofresa e Associados, es-
tando a última a fabricar o Tubo de
Choque.
No laboratório, vão ser observados
fenómenos que duram cerca de 30
milionésimos de segundo. O tubo, de
20 metros de comprimento e 40 to-
neladas, é constituído por duas par-
tes importantes. Por um lado, tem
uma câmara de alta pressão peque-
na, onde ocorrerá a combustão de
hidrogénio, oxigénio e hélio, permi-
tindo a estes gases atingir pressões
de 600 atmosferas terrestres e 2500
graus Celsius. Por outro lado, há o tu-
bo onde se vão injectar os gases que
imitam a composição da atmosfera
de um planeta (a da Terra teria 78%
de azoto, 21% de oxigénio e menos
de 1% de dióxido de carbono). A se-
parar a câmara de compressão e o
tubo há uma membrana fi na.
Depois, esta membrana será rom-
pida e a mistura de gases na câmara
de alta pressão entra no tubo a ve-
locidades que podem atingir os 12
quilómetros por segundo (ou 43.200
quilómetros por hora). É aqui que se
vai dar a onda de choque: ao entra-
rem no tubo, os gases vão sendo tra-
vados pelo atrito criado pela “atmos-
fera” ali recriada, tal como acontece
quando um meteoro ou uma nave
atravessam a nossa atmosfera.
O laboratório custou dois milhões de euros, fi nanciados em grande parte pela Agência Espacial Europeia