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PÚBLICO celebra hoje 25 anos de vida nas bancas; há poucos meses cumpria eu as minhas bodas de prata de emigrado em Inglaterra. Tirando esta tangencial coincidência, há muito pouco em comum entre mim e este jornal. Achei pois surpreendente terem-me escolhido — um mero cientista — para fazer de senhor director por um dia, especialmente havendo pelo burgo tanta gente muito mais habilitada do que eu para cagar postas de pescada. O email de convite prometia ainda “completa liberdade” para fazer o que me desse na real gana com o jornal. Um sorriso maroto deve ter-me aparecido no rosto. Suponho que se quisesse dar à ciência mais “protagonismo” (para usar um vocábulo à Luís Figo) num país com mais orgulho, e com razão, nas suas proezas futebolísticas e tauromáquicas. Um país também onde a ciência continua a ser o parente pobre da produção intelectual, recheada de ilustres músicos e escritores, poetas e malucos vários. Só que a ciência que eu faço e amo não são telemóveis nem foguetões — é poesia. E depois tenho um segredo vergonhoso: antes de ser cientista, tive pretensões jornalísticas, num sentido muitíssimo lato do termo. Ao pedirem-me um editorial acerca das minhas relações com a imprensa senti pois um certo déjà vu. Recordo aqui a minha adolescência lusitana e um certo pasquim de bênção Louçânica, onde escrevinhávamos uns quantos sobre coisas como a legalização do aborto (quando isso ainda era monopólio de esquerdelhos), num estilo cheio de parvoíces e bacoradas. Mas esses desbragamentos foram sol de pouca dura e em breve caí no buraco negro que é fazer ciência. O universo dá-me uma enorme trabalheira, é uma estopada, não deixa grande tempo para fazer outras coisas. Não admira que tanta gente deixe os mesteres cósmicos para a religião, Deus que se amanhe enquanto nós mortais nos dedicamos à comunicação social. No início dos anos 1990 mudei-me para Inglaterra, com uma jura a pés juntos de que mulheres portuguesas nunca mais. Enquanto por lá, perdi completamente o respeito pela imprensa. A grande maioria dos media ingleses é uma desgraça, e isto vai muito para lá dos infames tablóides. A receita é simples: aferir o que deixa o bife tradicional indignado e seguro da sua superioridade, inventar histórias que sirvam o ângulo, procurar factos que as assistam, inventá-los se não os há, suprimi-los se as contradizem... e pronto, vendas asseguradas, e tudo com infinitas pretensões de objectividade mediática. A generalização é injusta, claro está, aliás como em tudo, também no jornalismo os britânicos têm o pior e o melhor. Mas a única coisa que hoje leio com regularidade por terras de Sua Majestade é o Private Eye, uma espécie de Charlie Hebdo mas muito melhor, mistura de humor cáustico e jornalismo de investigação do mais fino. Que haver assunto há: corrupção é o que não falta em Inglaterra. Corrupção perfeitamente legalizada, entenda-se, não é como em Portugal ou Itália, povos muitíssimo inferiores à Europa Nazi-de-Espírito-do-Norte. Quis entretanto o acaso trazer-me de regresso à pena, desta vez em fainas de divulgação científica. Entre coisas menos laudatórias, chamaram a um dos meus livros uma “biografia gonzo”, de outro disse-se que era onde “Medo e Delírio em Las Vegas se cruza com Uma Breve História do Tempo”. Eu nem sabia o que queria dizer o termo “gonzo” ou que tinha a ver com jornalismo, já disse que para cagar de alto erudição o PÚBLICO podia ter escolhido melhor. Foi um amigo de Roma, adepto de cocaína e alucinogénios, que me corrigiu o défice cultural, obrigando-me a ler uma catrefada de livros de Hunter S. Thompson e Acosta, alguns em tradução italiana. Fiquei deslumbrado com aquilo. E se em vez de os jornalistas fingirem que são objectivos, coisa que nem a ciência é, exibissem os seus preconceitos na montra, polvilhados com drogas duras? E se os jornais ingleses dissessem abertamente “somos uma cambada de porcos xenófobos que andam alegremente a inventar histórias”? Não mereceriam finalmente uma pitada de respeito? O jornalismo gonzo certamente que me surgiu como um antídoto a muita hipocrisia. Por isso quando me convidaram para ser director por um dia do PÚBLICO foi isso que me ocorreu: fazer uma edição “gonzo” do jornal. Afinal tinham-me prometido a mais completa liberdade no aliciante email de convite. Por um dia. Mas é claro que isso da “liberdade completa” é coisa que não existe. Nem em utopias nos despimos de constrangimentos. Seria porventura razoável exigir à redacção do PÚBLICO que passasse um dia a tripar com LSD e a escrever sobre a situação económica da Grécia em textos onde deveriam misturar relatos da própria vida sexual? Talvez sim, talvez não. Afinal é uma festa de anos. Há uma fina linha entre ser-se uma figura decorativa e um tirano. Um jornal bem-sucedido é um trabalho de grupo, onde o colectivo é mais importante do que qualquer ronáldico ponta-de- lança. A redacção do PÚBLICO fugiu com as minhas sugestões e fez com elas o que quis. Que festejem bem. Que continuem assim até às bodas de ouro. Editorial Por João Magueijo 25 anos sem dormir

20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

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Page 1: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

PÚBLICO celebra hoje 25 anos de vida nas bancas; há

poucos meses cumpria eu as minhas bodas de prata

de emigrado em Inglaterra. Tirando esta tangencial

coincidência, há muito pouco em comum entre mim

e este jornal.

Achei pois surpreendente terem-me escolhido —

um mero cientista — para fazer de senhor director

por um dia, especialmente havendo pelo burgo tanta

gente muito mais habilitada do que eu para cagar

postas de pescada. O email de convite prometia

ainda “completa liberdade” para fazer o que me

desse na real gana com o jornal. Um sorriso maroto

deve ter-me aparecido no rosto.

Suponho que se quisesse dar à ciência mais

“protagonismo” (para usar um vocábulo à Luís

Figo) num país com mais orgulho, e com razão,

nas suas proezas futebolísticas e tauromáquicas.

Um país também onde a ciência continua a ser o

parente pobre da produção intelectual, recheada

de ilustres músicos e escritores, poetas e malucos

vários. Só que a ciência que eu faço e amo não são

telemóveis nem foguetões — é poesia. E depois tenho

um segredo vergonhoso: antes de ser cientista, tive

pretensões jornalísticas, num sentido muitíssimo

lato do termo. Ao pedirem-me um editorial acerca

das minhas relações com a imprensa senti pois um

certo déjà vu.

Recordo aqui a minha adolescência lusitana e

um certo pasquim de bênção Louçânica, onde

escrevinhávamos uns quantos sobre coisas como

a legalização do aborto (quando isso ainda era

monopólio de esquerdelhos), num estilo cheio de

parvoíces e bacoradas. Mas esses desbragamentos

foram sol de pouca dura e em breve caí no buraco

negro que é fazer ciência. O universo dá-me uma

enorme trabalheira, é uma estopada, não deixa

grande tempo para fazer outras coisas. Não admira

que tanta gente deixe os mesteres cósmicos para a

religião, Deus que se amanhe enquanto nós mortais

nos dedicamos à comunicação social.

No início dos anos 1990 mudei-me para Inglaterra,

com uma jura a pés juntos de que mulheres

portuguesas nunca mais. Enquanto por lá, perdi

completamente o respeito pela imprensa. A grande

maioria dos media ingleses é uma desgraça, e isto

vai muito para lá dos infames tablóides. A receita

é simples: aferir o que deixa o bife tradicional

indignado e seguro da sua superioridade, inventar

histórias que sirvam o ângulo, procurar factos que as

assistam, inventá-los se não os há, suprimi-los se as

contradizem... e pronto, vendas asseguradas, e tudo

com infi nitas pretensões de objectividade mediática.

A generalização é injusta, claro está, aliás como

em tudo, também no jornalismo os britânicos têm

o pior e o melhor. Mas a única coisa que hoje leio

com regularidade por terras de Sua Majestade é o

Private Eye, uma espécie de Charlie Hebdo mas muito

melhor, mistura de humor cáustico e jornalismo

de investigação do mais fi no. Que haver assunto

há: corrupção é o que não falta em Inglaterra.

Corrupção perfeitamente legalizada, entenda-se,

não é como em Portugal ou Itália, povos muitíssimo

inferiores à Europa Nazi-de-Espírito-do-Norte.

Quis entretanto o acaso trazer-me de regresso à

pena, desta vez em fainas de divulgação científi ca.

Entre coisas menos laudatórias, chamaram a um

dos meus livros uma “biografi a gonzo”, de outro

disse-se que era onde “Medo e Delírio em Las Vegas

se cruza com Uma Breve História do Tempo”. Eu nem

sabia o que queria dizer o termo “gonzo” ou que

tinha a ver com jornalismo, já disse que para cagar

de alto erudição o PÚBLICO podia ter escolhido

melhor. Foi um amigo de Roma, adepto de cocaína

e alucinogénios, que me corrigiu o défi ce cultural,

obrigando-me a ler uma catrefada de livros de Hunter

S. Thompson e Acosta, alguns em tradução italiana.

Fiquei deslumbrado com aquilo. E se em vez de

os jornalistas fi ngirem que são objectivos, coisa que

nem a ciência é, exibissem os seus preconceitos

na montra, polvilhados com drogas duras? E se os

jornais ingleses dissessem abertamente “somos

uma cambada de porcos xenófobos que andam

alegremente a inventar histórias”? Não mereceriam

fi nalmente uma pitada de respeito? O jornalismo

gonzo certamente que me surgiu como um antídoto

a muita hipocrisia. Por isso quando me convidaram

para ser director por um dia do PÚBLICO foi isso

que me ocorreu: fazer uma edição “gonzo” do

jornal. Afi nal tinham-me prometido a mais completa

liberdade no aliciante email de convite. Por um dia.

Mas é claro que isso da “liberdade completa” é

coisa que não existe. Nem em utopias nos despimos

de constrangimentos. Seria porventura razoável

exigir à redacção do PÚBLICO que passasse um

dia a tripar com LSD e a escrever sobre a situação

económica da Grécia em textos onde deveriam

misturar relatos da própria vida sexual? Talvez sim,

talvez não. Afi nal é uma festa de anos.

Há uma fi na linha entre ser-se uma fi gura

decorativa e um tirano. Um jornal bem-sucedido

é um trabalho de grupo, onde o colectivo é mais

importante do que qualquer ronáldico ponta-de-

lança. A redacção do PÚBLICO fugiu com as minhas

sugestões e fez com elas o que quis. Que festejem

bem. Que continuem assim até às bodas de ouro.

Editorial

Por João Magueijo

25 anos sem dormir

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TEMPO DE TUDO

Quanto tempo é que o tempo tem? O tempo – e tudo o que existe – tem 13.800 milhões de anos. É a idade do próprio Universo, o tempo desde o Big Bang, a grande “explosão” criadora de tudo. Estes 13.800 milhões de anos resultam dos cálculos mais recentes baseados em observações do telescópio espacial Planck, que afi nou a idade do Universo com um nível de pormenor que permitiu atribuir--lhe mais 100 milhões de anos do que antes. Para nos situarmos, o nosso sistema solar, incluindo a Terra, formou-se há 5000 milhões de anos, tinha então o Universo já 9000 milhões de anos de existência. E, depois, a Terra ainda teria um longo caminho pela frente até ao dia, há uns meros seis milhões de anos, em que surgiram os primeiros hominídeos. Começamos esta edição de aniversário olhando para o tempo a grande escala. É o tempo do espaço, é o tempo do tempo, é o tempo de tudo.

Page 3: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

Dar tempo ao tempo

Por João Magueijo

Celebra-se o

centenário da teoria

da relatividade

geral, neste ano

denominado “da

luz”, mas oculta-se

do pudor público

o lado negro dessa

bonita arte mágica.

A relatividade geral

pode ter dado

femininas curvas ao

espaço e ao tempo,

atribuindo-lhes

maleabilidade e vida própria, mas o que raramente

se diz é que essa nobre ciência também retirou ao

tempo o seu predicado mais óbvio: o fl uir.

Ao embrulhar na mesma trouxa o espaço e o

tempo, negando-lhes natureza independente em

favor de um híbrido — o espaço-tempo —, a teoria

da relatividade roubou ao tempo o seu brotar.

Da mesma forma que o eixo do xis (esse terror

que aprendemos na escola) não “fl ui”, o tempo

da relatividade também não escorre. Ao longo de

uma linha espacial há ordem — há o equivalente da

organização de um presente, passado e futuro —, mas

não há nada que se assemelhe a um ponto particular

e único que vai escoando ao longo dessa linha, o

equivalente do presente. Dando direitos e deveres

iguais ao espaço e ao tempo, amalgamando-os num

ser único, a relatividade nega igualmente a existência

de um presente que fl ui activamente do passado para

o futuro. Ordem, sim. Fluir, não. Esse tempo, meus

amigos, morreu.

É pois singular que num ano de efemérides e de luz

nos procuremos encavalitar na teoria da relatividade,

demolidora como ela é do comum tempo. A própria

luz — esse andaime absoluto da teoria da relatividade

— só pode ter um papel orientador porque está fora

do tempo. A luz equilibra-se na fronteira entre o

espaço e o tempo, portanto o tempo está paralisado

ao longo de um raio de luz. E o pior é que analisando

a relatividade geral mais de perto encontramos

horrores ainda piores lá escondidos. Até a ordem

desse tempo que não fl ui pode ser destruída pela

curvatura espaciotemporal e levada a aberrantes

contradições. Maliciosas máquinas do tempo

consentem-nos dar um tiro na avozinha antes de a

nossa mãe ter nascido. Laçadas espaciotemporais

permitem-nos ser pai e mãe de nós próprios, um

exagero de minimalismo familiar e incesto. A ordem

e a lógica são ameaçadas pela curvatura do espaço-

tempo. Proteja-se de contradições: evite espaços-

tempos com um rabo demasiado ondulado.

Claro que nesta pasmaceira em que vivemos, longe

de buracos negros e Big Bangs, ninguém se deve

preocupar indevidamente com tanta patologia. Mas

o mal está feito — a nossa metafísica está minada pela

dúvida. Como funcionaria um jornal, se o tempo

acabasse amanhã? Ou se o tempo começasse a andar

para trás mais logo, quando a lua cheia nascesse

e a maré mudasse? Ou se fôssemos uma linha já

prefi gurada e sem fl uir, sem edições matutinas e

vespertinas? Como seria um jornal, se o tempo fosse

mais como o espaço, algo com recantos e cantinhos

por explorar? Um cataclismo narrativo, por certo. Ou

talvez não. Esta edição o dirá.

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Cem anos a deitar a língua de fora

Por João Magueijo

Não há verdades eternas, cada

santo tem seu dia. Se, por um

lado, Einstein nos deitou uma

malcriada língua de fora, por

outro, espera-se de todos os

físicos igual pose fotográfi ca.

Não há teorias fi nais — há, sim,

coisas que vão funcionando até

ver, e nem sempre tão bem como se gostaria, se as

vamos esmiuçar melhor.

O epíteto de “Novo Einstein” (que a imprensa

sensacionalista tanto aprecia) aplicado a quem

propõe uma teoria que pretende suplantar a teoria

da relatividade é claramente ou ridículo ou um

pleonasmo.

Como cientistas somos todos novos Einsteins e

Einsteinas: é uma deformação profi ssional. Somos

pagos deduzidos de impostos para fazer esse papel,

não das nove às cinco em horário continuado

(porque isso não se ajeita ao perfi l profi ssional),

mas de noite e dia, até enquanto estamos a sonhar,

eroticamente quem sabe. Ninguém duvida que a

teoria da relatividade é uma obra de génio, entenda-

-se bem, mas a maior prova de respeito que lhe

podemos oferecer é precisamente pô-la em causa.

O tempo-que-fl ui tem entrado e saído da

ciência, recauchutado ou modifi cado, ao ritmo das

revoluções que vão e vêm. Saliente-se que o tempo

que a teoria da relatividade enxovalhou é o tempo

fundamental, associado aos processos elementares,

às micropartículas puras, limpas de confusões.

Não é o tempo sentido pelos sistemas complicados

(como nós), que pela sua complexidade exigem

outras estruturas, emergentes chamamos-lhes, para

as opor a “fundamentais”. Em sistemas com tantas

partes elementares que a fl oresta é mais importante

do que as árvores, necessitamos de conceitos como

a entropia, esse pesa-balbúrdias tão útil quando

é tudo ao molho e fé em Deus. A entropia, como

medida da confusão que sempre aumenta, dá-nos

um tempo derivado, emergente, que sem dúvida

sentimos à fl or da pele, mas que sabemos resultar

de uma ilusão criada pela multidão, pelo espírito de

rebanho do universo. É um tempo que as partículas

elementares nunca sentirão; se calhar é por isso

que lhes faltam os sentimentos. Não há electrões

apaixonados.

Mas e se esta teoria da relatividade geral

centenária fosse ela própria emergente e não-

fundamental? E se a descrição da gravidade como as

curvas e contracurvas do espaço-tempo fosse apenas

uma média estatística, uma medida aplicada a uma

multidão de entidades mais fundamentais, tal como

a entropia?

Uma das lacunas mais fl agrantes da teoria

da relatividade geral é a sua incapacidade para

namorar com o resto da física. A relatividade geral

é um elemento francamente anti-social dentro da

confraria das nossas outras teorias. Não fala com a

física quântica, esse outro pilar da física do século

XX, e segrega a força da gravidade (que venera)

das outras forças da natureza: a electricidade, o

magnetismo e as forças nucleares. Tanta soberba

agasta os físicos e daí as inúmeras tentativas

de construir uma teoria de gravidade quântica,

combinando a relatividade geral com a teoria

quântica, e unifi cando a gravidade com as outras

forças da natureza.

A haver namoro entre a relatividade geral e a física

quântica, o espaço-tempo deveria não só ser curvo,

como existir na forma de “átomos” (no sentido

grego do termo, de peças indivisíveis ou “quanta”).

Deveria haver incertezas e fl utuações quânticas no

seu tecido. Pavores quânticos, de todas as formas e

feitios, deveriam afl igir os fenómenos gravitacionais,

tal como afectam os outros: deveria haver gatos de

Schrödinger a miarem em buracos negros, Big Bangs

virtuais a saltarem do vácuo, ou maradices ainda

piores. E obviamente o próprio tempo e o espaço

poderiam fi car equiparados a conceitos emergentes,

como a entropia, médias que se tornam relevantes

simplesmente porque não temos “microscópios”

sufi cientemente fi nos para sentir a natureza atómica

da realidade subjacente.

Mas a verdade é que tudo isto são quimeras. Ao

fi m de várias décadas em demanda da teoria da

gravidade quântica, a realidade é que ela continua

a ser uma miragem. Ideias não faltam, mas,

sejamos honestos, cordas ou laçadas são todas uma

bela porcaria. Não há mal nenhum nisso, desde que

a busca seja honesta; censurável é apenas a auto-

importância sentida por alguns físicos: há quem

insista que estamos no caminho certo, é só uma

questão de seguir em frente a fazer contas pela

mesma receita durante 200 anos...

Que estupidez! Que rigidez de espírito! Será que

se acha mesmo que em 200 anos ninguém iria

arranjar nada melhor para fazer do que refi nar as

nossas ideias? É como esperar que o fado daqui a

200 anos seja uma Gisela João de bengalinha. Daqui

a 200 anos muito provavelmente nem haverá fado,

ou se o houver, sê-lo-á insonhavelmente diferente.

Entretanto, e com menos arrogância, a

infrutífera busca continua. No reino do faz-de-

conta em que os físicos vivem tudo é possível. O

Big Bang pode ser um mero biombo que tapa um

além. As constantes universais podem ser fl uidas

e variáveis. O espaço-tempo pode ser uma média

de algo mais fundamental, polvilhado de quanta,

espaço em grão, tempo em colar de pérolas. Tudo

é possível.

Tudo é possível, tudo pode é estar errado. Fica

esta sensação de que andamos a fazer literatura de

cordel ao pé do gadelhudo. Não que a relatividade

geral não tenha defi ciências, mas o que temos feito

para as colmatar é bem pior. Ao longo destes 100

anos deitámos-lhe a língua de fora vezes sem conta,

e no fi m acabámos aos molhadíssimos beijos na

boca ao homem.

AFP

Ao ver escoar-se a vida humanamente

Em suas águas certas, eu hesito,

E detenho-me às vezes na torrente

Das coisas geniais em que medito.

Mário de Sá-Carneiro

Não percebo porque se perde tanto

tempo a discutir o tempo, que não

é nenhuma entidade metafísica, é

apenas uma empresa de demolições.

António Lobo Antunes

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Sabemos hoje que o Universo está em expansão. Que nasceu a partir de um momento zero e, desde aí, tem evoluído. A descoberta desta expansão, do fi nal dos anos 1920, baseou-se em observações de que as galáxias se estavam a afastar umas das outras. Na realidade, é o espaço entre as galáxias que está a aumentar e, em consequência disso, as galáxias estão a afastar-se entre si. Imaginemos um balão em cuja superfície, o tecido do espaço-tempo, pintámos vários pontos: à medida que o enchemos de ar, expandindo-o, o espaço entre os pontos vai aumentado. É isso que está a acontecer ao Universo. Escolhemos aqui alguns momentos da sua longa existência ou, por outras palavras, da história de tudo

A história do Universo em 13 momentos

É o início do Universo, que começa com o Big Bang, uma grande “explosão” que dá origem ao espaço e ao tempo. É o início de tudo o que existe. E que surgiu de uma concentração inimaginável de energia. A física actual é incapaz de descrever as fracções de segundo imediatamente seguintes ao Big Bang, quando o Universo era incrivelmente denso e quente.

Teresa Firmino (texto) Cátia Mendonça (infografi a)

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2700º celsius -240º celsius

BIG BANG

Momento 0 10−43 10−36 10−32 10−4 0,01 3 minutos

mil anos milhões de anos milhões de anos milhões de anos

Infla

ção

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jar

pelo

cos

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Primeiras estrelas Primeiras galáxias O nosso sistema solar e expansão Fim

da

Infla

ção

cósm

ica

ERA TRANSPARENTEERA OPACA

ERA DAS TREVAS

Fonte: PÚBLICO

seg.

10-43 segundoEste tempo é considerado a fronteira a partir da qual a noção de tempo (e o espaço) tem sentido. O tempo não tem provavelmente porções mais pequenas do que esta. Entre o Big Bang e os 10-43 segundo de existência do Universo é a chamada época de Planck, indescritível pelas teorias científicas actuais: a temperatura era tão elevada que as quatro forças fundamentais da natureza (gravidade, electromagnetismo, força nuclear forte e força nuclear fraca) estavam todas juntas numa só força. A partir dos 10-43 segundo, o Universo já se tinha expandido e arrefecido o suficiente – uma “bola de fogo” com uns incríveis 1032 graus Celsius – para que a gravidade se separasse das outras três forças. Criadas, e destruídas ao mesmo tempo, surgem as primeiras partículas e antipartículas elementares, como quarks e electrões ou positrões. A luz já existia como fotões.

10-36 segundoÉ o início do que se pensa ter sido a inflação, um crescimento brutal do Universo, que numa fracção de segundo cresceu enormemente. Esta expansão exponencial permite explicar por que é que o Universo que vemos hoje tem um padrão global homogéneo: há galáxias e espaços vazios, galáxias, espaços vazios... de uma maneira quase uniforme por todo o lado para onde quer que olhemos. Nesta altura do Universo, já um pouco menos quente, também a força nuclear forte pôde separar--se da força nuclear fraca e do electromagnetismo.

10-32 segundoA inflação cósmica terá terminado. Acabado um crescimento brutal durante uma fracção de segundo, o Universo volta a expandir-se mais lentamente. A inflação cósmica terá gerado ondas gravitacionais, perturbações no próprio tecido do Universo, o espaço-tempo, que podemos imaginar como uma folha de borracha elástica onde uma pedra que alguém atirasse para lá provocaria oscilações. Até agora, ninguém conseguiu detectar essas ondas. O Universo ficou nesta altura povoado por uma sopa de quarks e gluões, que colam os quarks entre si. Estes constituintes primordiais da matéria vagueiam livremente num estado desordenado (o plasma de quarks e gluões).

10-4 segundoPor esta altura, formam-se os protões e os neutrões, os constituintes dos futuros núcleos dos átomos. Com a continuação do arrefecimento do Universo, os quarks, unidos pela força nuclear forte, puderam começar a ligar--se, formando os protões e os neutrões. Cada neutrão e protão tem três quarks. É a altura do chamado confinamento dos quarks. A criação dos protões significa também a criação do núcleo do hidrogénio, que é composto por um único protão.

0,01 segundoIniciam-se as fusões de protões e neutrões, que vão depois dar origem aos núcleos de outros átomos.

3 minutosCriados os núcleos atómicos de deutério (um protão e um neutrão), de trítio (um protão e dois neutrões) e de hélio (dois protões e dois neutrões).

380.000 anosFormação de átomos leves – hidrogénio, deutério, trítio e hélio. A temperatura do Universo baixa ainda mais – ronda agora os 2700 graus Celsius –, o que permite que os núcleos atómicos e os electrões, até aí separados, se juntem, formando os átomos. Antes disso, os fotões (a luz) chocavam com frequência com os núcleos atómicos e os electrões, o que impedia a luz de viajar. Por essa razão, entre o Big Bang e os 380.000 anos, o Universo é opaco, sendo impossível vê-lo directamente. A junção dos electrões à volta do núcleo dos átomos deixa o caminho livre para a passagem dos fotões e o Universo fica transparente à luz. A matéria e a radiação separam-se ou, como dizem os físicos, desacoplam-se. A luz desses tempos, a mais antiga que vemos e que se chama radiação cósmica de fundo, banha todo o Universo. Hoje na forma de microondas, permite inferir algo que se passou nos primórdios do Universo. É, pois, uma radiação “fóssil”, um eco do Big Bang.

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milhões de anosmilhões de anos

Universo actual acelerada do Universo Aparecimento da vida na Terra (as primeiras células)

550 milhões de anosNascem as primeiras estrelas, iluminando o Universo. Este, em média, já arrefeceu bastante e está muito abaixo do zero usual: tem à volta de 240 graus Celsius negativos. Para trás ficou a “era das trevas”, a altura em que o Universo não tinha estrelas. Análises às observações do telescópio espacial Planck, divulgadas em Fevereiro de 2015, revelaram que as primeiras estrelas surgiram cerca de 100 milhões de anos mais tarde do que se supunha, portanto 550 milhões de anos após o Big Bang. As estrelas são essenciais à química da vida: é no seu interior, nas reacções de fusão nuclear, que se formam átomos mais pesados como o carbono ou o ferro. Ao morrerem, há estrelas que atiram para o espaço as suas camadas exteriores, incluindo átomos que fabricaram e que entrarão em novas estrelas e os seus planetas. Nós e a Terra temos pó de estrelas, como o ferro que transporta o oxigénio no nosso sangue.

700 milhões de anosSão formadas as primeiras galáxias do Universo – incluindo a nossa Via Láctea, que tem pelo menos 100.000 milhões de estrelas, uma delas o Sol, que fica num dos braços da espiral. No centro da Via Láctea existe um buraco negro monstruoso (como, aliás, em muitas outras galáxias), com quatro milhões de vezes a massa do Sol. A nossa galáxia é tão grande que a luz demora 100 mil anos a atravessá--la de uma ponta à outra.

9000 milhões de anosForma-se o Sol a partir de uma nuvem de gás e poeiras, composta sobretudo por hidrogénio e hélio, mas com alguma contaminação por elementos pesados criados por gerações de estrelas anteriores. No disco de gás e poeiras que restou da formação do Sol ir-se-ão formar os planetas, incluindo a Terra, há cerca de 4500 milhões de anos, quando o Universo tinha 9300 milhões de anos. É também por essa altura que no Universo em expansão desde o Big Bang se manifesta uma força antigravítica. Não se sabe que força é essa – os físicos chamam-lhe energia escura –, mas sabe-se que contraria a gravidade exercida pela matéria e que provoca a expansão acelerada do Universo.

10.200 milhões de anosSurge a vida na Terra, mais exactamente as primeiras células. Ainda não têm núcleo, tal como, aliás, as bactérias actuais, mas a vida seguirá o seu curso até chegar a nós. Os primeiros humanos – ou seja, os primeiros membros do género Homo – apareceram há cerca de dois milhões de anos apenas, quando o Universo tinha 13.798 milhões de anos. Se pensarmos na nossa espécie, o Homo sapiens, só aparecemos há cerca de 200 mil anos.

13.800 milhões de anosÉ o Universo actual. A sua temperatura, de 270 graus Celsius negativos, está perto do zero absoluto (menos 273,15 graus). E aqui estamos nós, a olhar para trás no tempo, através da luz (em todo o seu espectro, desde os raios gama às ondas de rádio, passando pela luz visível aos nossos olhos) que nos chega dos mais variados fenómenos e objectos que povoam o cosmos. Desde galáxias, enxames de galáxias, supernovas, estrelas de neutrões, buracos negros, anãs castanhas, matéria escura, energia escura – e planetas em redor de outras estrelas que não o Sol, onde talvez alguém esteja também a perscrutar o cosmos como nós. O futuro do Universo parece ser o de expansão eterna: as galáxias ficarão tão dispersas que nem se veriam, uma paisagem triste e fria. Mas o nosso destino na Terra depende do destino do Sol, que ainda vai durar cerca de 5000 milhões de anos.

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TEMPO DE AGORA

Chegados aos actuais 13.800 milhões de anos da história de tudo, aqui estamos agora às voltas com o tempo, humanos de uma espécie surgida há singelos 200 mil anos. Neste tempo de agora, que o nosso calendário assinala como 2015 d.C., refl ectimos, vivemos e sentimos o tempo de muitas formas. Podemos analisá-lo de um ponto de vista físico, lembrando Einstein, do ponto de vista da história da ciência ou da experiência pessoal de uma cosmóloga pára-quedista a braços com a gravidade. Fomos ainda ver como o contamos com relógios atómicos e na bolsa, em que um milissegundo vale milhões. Visitámos uma loja em Lisboa que arranja relógios antigos, onde se conserta o tempo dos outros. Ouvimos quatro centenários, que desafi am o tempo e, ainda, quem dá o seu tempo aos outros. Continuamos esta edição olhando agora para o tempo a uma escala mais humana.

2015

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Um minuto sob a gravidade

de Einstein

Abstracções de uma física pára-quedista a estudar

gravidade e o tempo em queda livre

Crónica Marina Cortês

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Os acontecimentos que

se seguem decorreram

no espaço de 3 minutos

apenas.

Na porta do avião

mesmo antes de saltar,

fazemos os exercícios

de check up. Estou em

instrução e tenho dois

instrutores comigo,

durante a primeira parte do salto. Tudo a postos:

arqueia o corpo ao máximo contra a força do ar

e... saltar! Estou no ar! Ajusta o equilíbrio, estamos

a cair a 190km/h, não balances mais, estabiliza o

corpo. Parece tudo bem. Agora os exercícios. Um dos

instrutores solta-me como previsto. Lá vai ele. Agora

o outro também me solta. Ai-ai, agora estou mesmo

por minha conta, cruzes. A voar sozinha! Argh, o

que é que é suposto fazer agora? Não há problema,

procura um ponto no horizonte para fi xar direcção.

Aquelas montanhas parecem boas, vão servir. Hmm..

as montanhas estão a girar para a esquerda, acho que

vou fazer aqui uma pequena volta. Inclino o braço

na direcção oposta... Muito ligeiramente. O quê?!? O

que foi isto? Que aconteceu? Estou de pernas para o

ar, a olhar para o céu! Perdi a estabilidade. Altitude:

3,6 quilómetros. Bonito serviço. Agora estou a olhar

para o céu azul acima. Terra à vista: nada. Vejo os dois

instrutores lá no alto, altíssimos, a olhar para mim.

Credo, estão a diminuir tão depressa, quer dizer que

estou a cair muito mais rapidamente. Como perdi a

estabilidade vou a muito maior velocidade que eles.

Estou totalmente sozinha, por minha conta, a cair para

o planeta a toda a força, e a girar numa espiral. Como

estou a girar sem parar, não consigo puxar o pára-

quedas. Cada vez perco mais altitude, a velocidade

agora são 260 km/h. Cada segundo que passa menos 70

metros e começo a ver tudo lá em baixo as casinhas e as

estradas cada vez mais perto... Isto está bonito, está...

Entretanto no gabinete: quando estou a estudar

relatividade geral pergunto-me sempre se o Einstein

Sendo a física a disciplina mais ambiciosa da

descrição da Natureza, não é peculiar a falta de

explicação para a uni-direccionalidade do tempo?

Voltando à queda livre.

Continuo em espiral no ar e o planeta a aproximar-

se cada vez mais. Por um momento consigo virar-me

de costas, e tento alcançar o pára-quedas, mas perco

logo o equilíbrio. Meu Deus, estou mesmo, “mesmo”

em sarilhos. O que é que se está a passar, como é que

eu páro isto? Um dos instrutores desce disparado

para me alcançar e tenta voltar-me para baixo. Não

funciona, agora estamos os dois de barriga para o ar!

E depois eu viro-me, e agora volta-se ele. Estamos

numa dança no ar, como uma máquina de lavar,

como o “vira”. Ele perde-me de novo e lá vou eu às

cambalhotas mais uma vez. O chão a aproximar-se. Ele

consegue alcançar-me. Porque é que ele não me puxa

o pára-quedas? Por que diabo é que ele não me puxa

o pára-quedas?! “Desisto”, penso para mim, ele não

consegue, vamos morrer os dois. Estou feita, é o fi m.

Adeus mundo. Olha ali o chão, já tão perto.

1500 metros. Sinto um forte puxão para cima,

as pernas para o ar, cabeça voltada para baixo. As

correias de suporte no peito a esmagar as costelas. Ele

puxou o pára-quedas! ELE PUXOU O PÁRA-QUEDAS!

Olho para cima e vejo um pára-quedas perfeito,

quadrado, abertura sem problemas! O silêncio total é

o paraíso, em contraste com o barulho ensurdecedor

da queda livre. Só oiço o bater leve da borda do pára-

quedas. Pára-quedas saudável, vou viver. Sobrevivi!

Já passou. Respira, respira. Respira, rapariga. O que é

que acabou de acontecer!?!

Bem, olha para baixo, descobre onde é que vieste

parar, ainda tens de aterrar isto. Onde está a dropzone,

onde está a pista do avião, onde é que eu estou? Lá

estão o semi-círculo da aldeia de Empuria Brava e a

praia, mesmo ao pé de Barcelona. A dropzone está

por ali algures, ao lado. 1200 metros, está tudo fi xe,

respira fundo, relax, estás viva! Sobreviveste!

Excepto que...

Ao descer sinto os ventos a levantar. Meu Deus,

alguma vez terá pensado em estudar a gravidade ao

vivo! Parece-me que estudar a gravidade no gabinete

é muito diferente de estudá-la a saltar de um avião,

em queda livre! Não só isto, mas nada melhor que um

salto de pára-quedas para vivenciar a relatividade do

tempo que ele advogava. Um segundo em queda livre

parece-nos horas. O planeta lá em baixo a aproximar-

se a viva força. Nunca o tempo nos parece mais real, e

mais inevitável do que quando estamos numa situação

de vida ou morte. E no entanto, em física, a disciplina

que ambiciona descrever a natureza na sua totalidade,

não estamos muito habituados a levar o tempo a sério.

Para a generalidade das teorias em física o tempo

tanto pode avançar como recuar: a direccionalidade

do tempo é um acidente que não é explicado de

forma clara. As soluções nas quais o tempo recua são

descartadas à mão sem explicação.

Ou seja, as nossas teorias mais fundamentais da

natureza ignoram o facto de que o tempo anda sempre

para a frente! Isto é contra tudo o que observamos no

dia a dia. É como os físicos estarem de costas voltadas

para a natureza, ignorando o facto mais fundamental

do mundo que nos rodeia: o tempo nunca anda para

trás. Porque é que somos nós, os físicos, os únicos

cientistas que não incorporamos a irreversibilidade do

tempo nas nossas teorias?

A química, biologia, antropologia, climatologia,

etc., são todas ciências nas quais o tempo tem uma

direccionalidade bem defi nida. As reacções químicas

só ocorrem num sentido, nunca “desocorrem”

(química); os organismos só fi cam mais velhos, nunca

mais novos (biologia); em antropologia estudamos

os fósseis do passado (nunca os do futuro); os

climatólogos também têm bem presente que o

tempo só tem uma direcção, eles podem olhar para o

passado mas não sabem (ou é muito difícil) prever o

futuro, por causa da teoria do caos.

Porque é que nós os físicos continuamos absorvidos

na procura de equações “congeladas” no tempo, nas

quais todo o passado e o futuro existem no mesmo

instante e a passagem do tempo é uma mera ilusão?

Page 11: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

não estava tanto vento quando levantámos no avião.

O pára-quedas começa a abanar desenfreadamente e

a fazer o que bem lhe dá na cabeça. Agora está-me a

arrastar de lado. Vira à esquerda, depressa! Oh meu

Deus, agora estou na zona dos aviões!! Põe-te a andar

daqui! Olha à volta, há aviões a vir? Põe-te mas é a

andar! Pára-quedas dum raio vais fazer o que eu te

mando. Agora, ouviste? 500 metros. Bonito, devia

estar a começar a descida fi nal, neste momento!

Onde é que suposto eu estar? Ah, lá está o campo

de aterragem, “só” a dois quilómetros distância. Ok,

esquece isso, improvisa, improvisa. Aquele espaço

ali terá de servir. Começo a descer tenho de ir na

direcção do vento. Mas não há direcção do vento. Só

a vento a abanar, vento a chocalhar, vento para cima,

vento para baixo, vento de lado. Devia chamar isto de

trajectória perturbativa. O meu trajecto tem incerteza

quântica! Ok, ok, vai com calma, vê o altímetro. 250

metros, estou muito alta, já devia estar a 150! Vou

chocar contra aquelas casas! Depressa, faz uma volta

360º, perde altitude. Oh que coisa, também não

funcionou, agora estou em cima da auto-estrada!! Vejo

os carros a acelerar nas duas vias. Dá outra volta, pira-

te mas é daqui. Começo a descida fi nal, aqui mesmo

vai ter de servir. Tento domar o pára-quedas, navegar

em linha recta mas não há de quê. Esticão para a

esquerda, esticão para a direita, O pára-quedas não

reage, avança ao acaso, num caos os ventos mudam a

cada segundo. Olho para baixo, o chão a aproximar-se

vertiginosamente. Consigo ver as pedras de cascalho a

passar aceleradas, como se estivesse num carro. Meu

Deus que velocidade, tenho de abrandar, e rápido. Isto

vai doer!!! Quando é que travo? A altura de puxar os

travões é ainda mais crucial neste salto mirabolesco

com ventos descontrolados. Quando é que suposto

travar?!?! Agora? Não tenho a certeza. Será agora,

NUNO FERREIRA SANTOSespero mais? É uma questão de segundos. Agora!!

Puxa os cabos, com toda a força, puxa, puxa! Mais

força! Tenho de puxar os cabos até às ancas e ainda

estão à altura nos ombros. Com mais força! Tenho a

cara azul do esforço, as veias a pulsar. Os ventos não

me deixam puxar os cabos. Oh meu Deus, ainda estou

demasiado alto, travei muito cedo. O que vai acontecer

agora? O impacte está perto, prepara-te rapariga isto

vai ser uma aterragem dos diabos! Crash!!!

Ligeiramente nos joelhos, caio para a frente, para

cima do pára-quedas. Estabiliza, pára. Wow! Nada mau,

que fi xe. Que fi xe! Cheguei ao chão. Estou no chão!

De volta ao planeta! Estou a salvo! Apetece-me beijar

a terra e saltar. Mas como os ventos estão muito fortes

tenho de puxar o pára-quedas para baixo de mim,

porque esta a infl acionar e pode levar-me no ar de

novo. Como se tivesse adivinhado, num instante o pára-

quedas infl aciona como um balão. Sinto um esticão

forte a puxar-me para trás e para cima, a arrastar pelo

chão. Está bonito, afi nal ainda não é desta. Não tenho

tempo para cortar os cabos. Para onde é que isto

me está a levar? Olho à minha frente, o pára-quedas

está-me a arrastar para a pista dos aviões!! Tenho de

puxar um dos cabos para o colapso. Não funciona,

os ventos estão demasiados fortes, o resto do pára-

quedas é como um balão, a puxar-me com a força de

um gigante. Levanto-me e atiro-me para o ar, para cima

do pára-quedas. Consigo enfi ar um pouco mais debaixo

de mim mas a parte infl ada ainda é forte e continua a

arrastar-me. E agora reparo que estou mesmo à beira

da pista de aviões com o pára-quedas a puxar-me para

o meio. Olho para a direita horrorizada e... claro, com

a minha sorte de hoje, vem um avião no ar prestes

a aterrar, talvez a 500 metros de distância. Dentro

de segundos vai passar no centro da pista em frente

de mim, o local exacto para onde o pára-quedas me

está a arrastar. Nem consigo acreditar no que se esta

a passar?!? Isto é algum fi lme do Bruce Willis?! Estou a

segundos de ser atropelada por um avião, arrastada por

um pára-quedas! Muito bem, vou-te puxar para baixo

de mim, e agora!! Estou de rastos na berma da pista a

puxar o pára-quedas freneticamente e a olhar para o

avião a aproximar-se cada vez mais nítido. Puxo o mais

depressa que consigo, agora com o avião no canto do

olho. Está quase, ainda falta um bocado. VEM CÁ

PÁRA-QUEDAS DUM RAIO! Queres-me matar!

Consegui. Estou estendida sob o pára-quedas com

a cabeça enterrada no tecido. Oiço o avião disparado

passar à minha frente. O avião não me atropelou.

Estou colapsada, nem consigo pensar, totalmente

exausta. Sem energia. Oiço os ventos, assim que ouvir

um abrandar salto num ápice, agarro tanto quanto

posso, diminuo o volume e atiro-me de novo para

cima do pára-quedas. Funcionou. Algumas partes

ainda estão a voar ao vento mas nada de grave.

Apanhei-te, meu pára-quedas idiota. Pego em todo o

tecido agora entrelaçado, atiro para cima do ombro

e começo a regressar ao hangar. Olha para isto, onde

aterrei quase a 3 quilómetros de distância!

Começo o caminho de volta com passos longos

e espaçados. Respira fundo. As pernas a tremer e

os joelhos a ceder. Estou estupefacta. Não consigo

acreditar em tudo o que acabou de acontecer. Olho

para baixo e fi co surpreendida por os pés acharem o

caminho de volta, um após o outro, devagar. O que é

que aconteceu?! Ando e ando, com as duas toneladas

de pára-quedas às costas, e fi nalmente chego à

dropzone. Há uma multidão de pessoas estupefactas,

a olhar para mim, com a boca aberta. Respiro fundo

e volto para o outro lado. Vou para o hangar, enfi ar a

cabeça entre os joelhos!

Volto para a física. Equações são muito mais fáceis

de escrever do que lutar com um pára-quedas. Uma

das grandes motivações para transformar o papel do

tempo irreversível na física fundamental vem destas

experiências tão vivas. Nas quais segundos parecem

horas, e a realidade do tempo, e como avança só

numa direcção é mais berrante que nunca. Nós os

físicos que escrevemos equações em que o tempo não

é real e tanto avança como recua devíamos deixar a

secretária e vir olhar para o mundo cá fora. Pode ser

que fi cássemos convencidos do contrário.

Cosmóloga, Observatório Real de Edimburgo

Hubble A 24 de Abril de 1990, a bordo do vaivém Discovery, a NASA lança o telescópio espacial Hubble. Foi o primeiro telescópio espacial que permitiu observar o Universo tanto na mesma luz que os nossos olhos captam, como na radiação infravermelha. Com um limite de vida temporal por volta de 2020, o Hubble tem cumprido aquilo que se lhe pede: permitir que a relação da humanidade com o Universo desse um salto, já que, pela primeira vez, foi possível ver o cosmos com uma nitidez sem precedentes. S.J.A.

>>>>>>>>>>>>1990

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Em 2015, Ano Internacional da Luz, celebra-se o centená-

rio de uma das teorias físicas mais formidáveis e também

um dos picos mais altos do intelecto humano: a teoria de

relatividade geral de Albert Einstein. A 25 de Novembro

de 1915 o sábio suíço nascido na Alemanha escrevia a

equação fundamental que junta matéria, energia, espaço

e tempo para explicar a gravitação, descrevendo não só a

queda de uma maçã e a órbita da Lua mas também os bu-

racos negros e o Big Bang. Se a sua teoria da relatividade

restrita de 1905 tinha juntado a matéria à energia (falamos

de matéria-energia) e o espaço ao tempo (falamos de

espaço-tempo), a teoria da relatividade geral reúne todos

esses conceitos ao afi rmar que a matéria-energia deforma

o espaço-tempo. À volta de um astro o espaço e o tempo

são distorcidos, deixando de valer a geometria euclidiana

e a mecânica newtoniana a que estamos habituados. E

os corpos caem porque o espaço é curvo.

O espaço-tempo pode acabar ou começar. Os buracos

negros são estrelas que, após violenta implosão, fi caram

reduzidas ao seu caroço extremamente duro. O espaço-

tempo à volta é tão deformado que o nosso mundo aca-

ba aí, isto é, terminam aí as nossas possibilidades de

conhecer. Tudo cai para um buraco negro, incluindo a

luz. Segundo Einstein, a luz pesa! Podemos imaginar o

inverso de um buraco negro? Sim, se um buraco negro

é o sítio para onde tudo vai, o buraco branco é o sítio

de onde tudo vem (há quem especule que, associado a

cada buraco negro, há um buraco branco, com a matéria

a ser sorvida por um lado, no nosso mundo, e a jorrar

do outro, sabe-se lá onde).

O físico Stephen Hawking, cuja biografi a é o argumento

do fi lme A Teoria de Tudo, apostou um dia com um cole-

ga uma assinatura da Penthouse que não havia buracos

negros e perdeu (é irónico um especialista em buracos

negros ter apostado na não existência do seu objecto de

estudo.) Existirão buracos brancos? Vivemos no interior

de um: o Universo, provavelmente é infi nito, o qual, de

acordo com a teoria da relatividade geral, teve o seu início

no Big Bang, há 13.800 milhões de anos. Esta grande ex-

plosão inicial pode ser imaginada como o evento em que

tudo apareceu, o espaço e o tempo, a matéria e a energia,

tendo começado tudo com a luz, que é energia.

Einstein teve que porfi ar antes de chegar à fórmula

que encerra os segredos da gravitação. Cedo percebeu

que a teoria da relatividade restrita, segundo a qual as

leis da física são as mesmas para todos os observadores

em repouso ou em movimento com velocidade cons-

tante, devia também ser aplicada a observadores com

velocidade variável, isto é, acelerados. É esse o salto da

relatividade restrita para a relatividade geral. Se Newton

imaginou uma maçã a cair, Einstein imaginou-se a si pró-

prio a cair. A epifania ocorreu em 1907 quando Einstein

teve o que chamou o “pensamento mais feliz da sua vi-

da”, quando, sentado numa repartição de patentes na

Suíça, se apercebeu de que, se estivesse em queda livre,

um movimento acelerado, “não sentiria o seu próprio

peso”, uma vez que a cadeira cairia com ele. Embora a

cair, o sábio estaria parado relativamente à cadeira. O

princípio que afi rma a queda idêntica de todos os corpos

tinha sido descoberto por Galileu.

A luz de EinsteinSe a teoria da relatividade restrita de 1905 tinha juntado a matéria à energia (falamos de matéria-energia) e o espaço ao tempo (falamos de espaço-tempo), a teoria da relatividade geral reúne todos esses conceitos ao afi rmar que a matéria-energia deforma o espaço-tempo. À volta de um astro o espaço e o tempo são distorcidos

Por Carlos Fiolhais

Page 13: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

Em 1971, um astronauta deixou cair na Lua um mar-

telo e uma pena para mostrar que os dois objectos che-

gavam ao solo ao mesmo tempo. Se tudo cai do mesmo

modo, podemos intuir que a força gravitacional é uma

propriedade do espaço: nas vizinhanças de um astro, o

espaço possui certas propriedades. Só faltava saber que

propriedades são essas. Uma consequência imediata da

generalização do princípio da relatividade era que um

raio de luz vindo do espaço longínquo encurvaria ao

passar perto do Sol. O efeito era minúsculo e não pôde

ser logo confi rmado. E ainda bem, pois o primeiro valor

calculado por Einstein para o encurvamento dos raios

de luz estava errado. Não admira que a matemática da

relatividade geral seja incompreensível para um leigo,

pois o próprio autor demorou uma década a lá chegar.

Precisou de uma geometria curva em vez da geometria

plana de Euclides. Geometrias ditas não euclidianas já

existiam nos livros de matemática, dando razão a Galileu,

que tinha dito que “o Livro da Natureza está escrito em

caracteres matemáticos”. No longo caminho para a equa-

ção que descreve a gravitação, Einstein, melhorando a

matemática, chegou fi nalmente a um valor para o ângulo

de defl exão da luz que era o dobro do anterior. A equação

era bela, mas faltava saber se era verdadeira.

A Primeira Grande Guerra impediu a realização de ex-

pedições de observação de eclipses, ocasiões favoráveis

para medir defl exões de raios de estrelas por trás do Sol.

Uma observação de um eclipse total do Sol só pôde ser

realizada no pós-guerra. Foi em 29 de Maio de 1919 que

uma expedição inglesa, dirigida por Arthur Eddington,

se deslocou à ilha do Príncipe para fotografar um desses

eclipses. Os astrónomos obtiveram algumas imagens do

Sol, numa aberta de um aguaceiro tropical. Einstein em

breve recebeu um telegrama de um colega, felicitando-o

pela previsão certeira. Nunca temeu estar errado. Chegou

até a dizer que teria pena de Deus se a realidade fosse

diferente do previsto (Deus para ele, esclareça-se, era a

harmonia universal e não o autor do Fiat Lux). Nenhum

cientista português participou na expedição a um terri-

tório sob administração lusa. Os portugueses estavam

tão afastados da ciência que, em 1925, Einstein, já nobe-

lizado, passou por Lisboa sem ser reconhecido.

A 6 de Novembro de 1919, numa sessão da Royal Socie-

ty e da Royal Astronomical Society em Londres, com a

presença das maiores sumidades da ciência (na parede

Newton assistiu impávido, pois só estava em retrato), os

resultados da observação solar foram anunciados e Eins-

tein foi aclamado. O Times de Londres titulou Revolução

na Ciência. Newton tinha dito: “Se consegui ver mais lon-

ge foi porque estava aos ombros de gigantes.” A revolução

signifi cava que Einstein tinha subido para os ombros de

Newton, conseguindo ver ainda mais longe.

A fama mundial obtida num ápice facilitaria a sua

mudança para Princeton, nos EUA. Em 1932, Einstein,

pressionado pela perseguição nazi aos judeus, disse em

Berlim à sua mulher: “Olha bem para a tua casa. Não

mais a voltarás a ver.” E assim foi. Transposto o Atlân-

tico, nunca mais voltaria à Europa. Foi simbolicamente

a passagem da ciência do Velho para o Novo Mundo.

Os génios também têm vida privada. No início de 1915

Einstein deixou Zurique para ocupar uma cátedra em

Berlim. Nessa altura deixou também a primeira mulher,

Mileva (ela ainda fez o gesto de se mudar para Berlim,

mas já não havia força de atracção entre eles). Einstein

logo encontrou afecto numa prima berlinense, Elsa, com

quem se viria a casar pouco depois do eclipse de 1919.

Foi Elsa que o acompanhou para Princeton.

O Nobel da Física Richard Feynman afi rmou um dia

que a descoberta, há 150 anos, das equações de Maxwell,

que unifi cam a electricidade e o magnetismo, esclare-

cendo que a luz é uma onda electromagnética, serão

lembradas daqui a dez mil anos como o acontecimento

mais relevante do século XIX. Na mesma linha, atrevo-me

a conjecturar que, daqui a dez mil anos (uma insignifi -

cância quando comparada com a idade do Universo),

a descoberta da equação da relatividade geral feita por

Einstein há cem anos será um dos marcos mais notáveis

do século XX. E só não a singularizo mais porque, uma

década volvida, fi cou pronta a teoria quântica, a espan-

tosa teoria dos átomos e partículas atómicas. As duas são

expressões máximas do pensamento humano. Arrisco

esta profecia apesar de recear que pouca gente a entenda.

Atrevo-me a conjecturar que, daqui a dez mil anos, a descoberta da equação da relatividade geral feita por Einstein há cem anos será um dos marcos mais notáveis do século XX

Page 14: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

Pode ser que mais gente a procure entender.

Por ter alcançado uma fórmula “mágica” com o poder

de explicar os mistérios do cosmos, o cérebro de Einstein

tornou-se um mito para o homem comum, que sem con-

seguir ver a beleza das equações não poderá mais do que

vislumbrar esses mistérios. Roland Barthes no seu livro

Mitologias escreveu sobre esse cérebro: “Quanto mais o

génio do homem era materializado sob a espécie do seu

cérebro tanto mais o produto da sua invenção assumia

uma condição mágica, reincarnava a velha imagem eso-

térica de uma ciência inteiramente encerrada nalgumas

letras. Há um único segredo no mundo, e esse segredo

condensa-se numa palavra, o Universo é um cofre-forte

de que a humanidade procura a cifra.” E acrescenta:

“É esse o mito de Einstein; aí se nos deparam de novo

todos os temas gnósticos: a unidade da Natureza, a pos-

sibilidade de uma redução fundamental do mundo, o

poder de abertura da palavra, a luta ancestral entre um

segredo e uma linguagem, a ideia de que o saber total

não pode descobrir-se senão de um só golpe, como uma

fechadura que cede bruscamente depois de mil tactea-

mentos infrutuosos.”

O cérebro de Einstein simboliza a capacidade humana

de compreender a natureza. Todas as observações e ex-

periências realizadas nos últimos cem anos confi rmaram

a teoria da gravitação einsteiniana, que concorda com

a teoria de Newton no limite de forças gravitacionais

pequenas. Até há aplicações tecnológicas, como o GPS.

Resta um problema, cuja solução espera por um novo

gigante. A teoria da gravitação ainda não foi satisfato-

riamente unida à teoria quântica, a outra grande teoria

física do século XX (uma teoria em relação à qual Eins-

tein sentiu algumas difi culdades). Passaram 228 anos de

Newton a Einstein e não sabemos quanto vai demorar até

surgir um génio comparável. Se Einstein fez luz sobre as

questões da gravidade, incluindo o magno problema do

início do mundo, um novo Einstein acabará, mais cedo

ou mais tarde, por fazer mais luz sobre o Universo.

Professor de Física da Universidade de Coimbra ([email protected])

WWWSão três letras cuja real importância ninguém podia perceber de início, mas representam uma das maiores revoluções no que é a dimensão de espaço e de tempo: WWW. As três letras significam World Wide Web e foram e são a chave para abrir o que se convencionou chamar “auto-estradas da comunicação” — ou seja, são o suporte tecnológico que, com a sua linguagem informática própria, constrói uma rede ou uma teia (web) que permite “navegar na Net” e chegar aqui e agora a todo o lado, quebrando as barreiras do espaço e do tempo. S.J.A.

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DR

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Vítor CardosoHouve um dia em que não houve ontemDesafi ámos o físico português a fazer um passeio pelo Universo e pela forma como a nossa visão sobre ele se alterou ao longo do último século. “Passámos de um Universo parado para um Universo em ebulição, elástico e humano: nasce, cresce e, quem sabe, morre”

Entrevista Teresa Firmino Fotos Miguel Manso

Fim da URSSA 19 de Agosto de 1991, a tentativa de golpe de Estado na URSS ameaça fazer regredir o tempo e anular a acção libertadora que levara à Perestroika de Mikhail Gorbatchov. O presidente é preso na sua datcha de Verão na Crimeia. A reacção nas ruas, liderada em Moscovo por Boris Ieltsin, faz falhar a tentativa de regressão à ditadura comunista. Daí ao fim da URSS foi um instante. A 25 de Dezembro, Gorbatchov assinava a dissolução da União Soviética e demitia-se, pondo fim a 70 anos do mais emblemático regime comunista. S.J.A.

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Polar está onde sempre esteve desde que nascemos.

O que quero dizer com isto é que as observações

de Hubble, que são sofi sticadas e precisam de

telescópios poderosos, nos dizem algo que é difícil

de “ver” e representam um choque com aquilo em

que acreditávamos há milénios. Ora, quando Einstein

soube disto, percebeu logo a asneira que fez, e

percebeu que a realidade o veio desmascarar. Nessa

altura afi rmou que o maior erro da sua vida foi tentar

mudar as equações para se adaptarem ao que ele

pensava... E, realmente, é um erro histórico!

As implicações da expansão do Universo são muitas.

Não só destroem por completo a ideia de que está

tudo parado, mas também nos permitem fazer um

jogo interessante: se o Universo está em expansão,

signifi ca que à medida que fi ca mais velho é também

maior. O que signifi ca que o Universo jovem é cada vez

mais pequeno, e portanto o Universo teve uma data de

nascimento. Depois de Hubble, estas e outras coisas

fantásticas puseram todos a mexer e a querer saber ao

certo de que forma é que o Universo se expande. Um

dos melhores instrumentos que orbitam a Terra desde

1990 é o telescópio Hubble. Graças a essas e outras

observações, sabemos que o Universo nasceu há quase

14.000 milhões de anos. Em menos de 100 anos,

passámos de um Universo parado para um Universo

em ebulição, onde estrelas nascem, morrem, chocam

umas com outras e onde o próprio Universo é elástico

e humano: nasce, cresce e, quem sabe, morre.

A partir do momento em que se percebeu que o

Universo se expandia, então, se andássemos para

trás no tempo, houve uma altura em que tudo

esteve junto. Não havia estrelas ou galáxias...

... Não havia nada, o Universo era um ponto. Nessa

altura, a matéria como a conhecemos hoje não

existia. Não existiam átomos nem sequer protões ou

electrões, que estavam completamente desintegrados.

Claro que isto é extremamente difícil de comunicar

ou compreender, já que foge à experiência do dia-

a-dia. Na realidade, nem sequer temos uma teoria

sufi cientemente forte para compreender o nascimento

do Universo. A teoria da relatividade geral falha e não

temos forma de pensar nesse “Universo-embrião”.

Ainda antes das observações de Edwin Hubble, já

tinha havido teorias que sugeriam a existência de

um início do Universo, não é?

Desde há muito tempo que um Universo estático

causava incómodos. Não havia teoria nenhuma,

propriamente dita, que sugerisse o nascimento do

Universo. Contudo, um meteorologista e matemático

russo, Alexander Friedmann, tinha descoberto em

1922 uma solução da teoria de Einstein que descrevia

um Universo em expansão. Em 1927, o padre e

astrofísico belga Georges Lemaître chegou também a

um modelo de um Universo em expansão. Lemaître

compreendeu até as implicações dessa descoberta,

quando afi rmou que “houve um dia em que não houve

ontem”, isto é, que o Universo teve um início.

E, contudo, o trabalho de ambos foi praticamente

ignorado na altura: não eram cientistas de renome no

local certo, e em ciência, por vezes, isto é importante:

há que lutar pelas ideias persistentemente, até serem

aceites pela comunidade. Até os resultados de Hubble

encontraram resistência e durante décadas muitos

não acreditaram neles. A primeira reacção de um

cientista a uma descoberta é tentar mostrar que está

errada. Talvez seja por isso que a ciência funciona tão

bem: duas partes disputam com argumentos lógicos

e lutam pela verdade até o assunto fi car esclarecido.

Infelizmente, Friedmann não pôde lutar pela sua

ideia, já que morreu pouco depois, aos 37 anos.

A grande descoberta de Einstein foi que o espaço

e o tempo são uma entidade única — o espaço-

tempo —, que é deformada pela presença da

matéria e da energia. Como é que isso mudou a

nossa visão do tempo?

Em 1905, Einstein entendeu que o tempo não é

absoluto, e que relógios iguais podem ter tiquetaques

diferentes conforme a velocidade a que eles se

movam: não é problema nenhum com o relógio, é o

próprio tempo que fl ui de forma diferente... Isto vai

até à raiz da nossa existência: afi nal de contas, o que é

o tempo?! O tempo é relativo, pode “mover-se” mais

ou menos rapidamente. Todos os dias no CERN

A“Cientificamente, ter havido um ponto de partida é libertador. Não nascemos escravos de um Universo que já cá estava. Pelo contrário, evoluímos com ele”

os 40 anos, Vítor Cardoso é professor e investigador

do Centro Multidisciplinar de Astrofísica e Gravitação

(Centra) do Instituto Superior Técnico, em Lisboa.

Também é professor na Universidade do Mississípi,

nos Estados Unidos, e investigador do Instituto

Perimeter, no Canadá. Nos últimos cinco anos, ganhou

duas superbolsas no valor total de 2,5 milhões de

euros, que tem utilizado na investigação das equações

de Einstein, com a ajuda de um supercomputador

chamado Baltasar Sete Sóis. Dedica-se à física teórica,

nomeadamente à compreensão dos buracos negros,

da matéria escura e das ondas gravitacionais.

Toda a gente aceita hoje a ideia de que o Universo

teve um início — o Big Bang — e que, desde então,

o Universo está em expansão. Por que é que

Einstein se recusou a aceitar esta realidade, que,

aliás, uma das suas próprias equações da teoria

da relatividade geral lhe indicava?

Temos de tentar perceber o que ele fez com as

mesmas barreiras psicológicas que imagino que

existissem na altura: o Universo era simplesmente

pensado como algo imutável, que sempre foi e sempre

será. Einstein acreditava, portanto, num Universo

estático. Ora, a física tem esta coisa extraordinária de

prever coisas que nunca tínhamos imaginado quando

a construímos, isto é, quando a passamos para a

linguagem matemática. E os resultados de Einstein

diziam-lhe que o Universo não devia ser estático. Mas

até Einstein, que já tinha derrubado a barreira do

tempo imutável, sucumbiu e se recusou a deixar isto

acontecer: mudou um pouquinho a matemática para

que as equações se adaptassem à sua interpretação da

realidade. Fez batota para satisfazer o seu preconceito.

Este tipo de actos, o de tentar subjugar a realidade aos

nossos preconceitos, acontece não só em ciência, mas

na política, na economia e no dia-a-dia. Na ciência, a

realidade fala sempre mais alto e acaba por ganhar.

Quando se fala de um Universo estacionário, isso

quer dizer que se pensava que as estrelas não

morriam? Que o nosso Sol se mantinha igual?

As estrelas não nasciam nem morriam e não evoluíam.

De alguma forma, isso dava-nos uma certa paz de

espírito: o Universo era assim no tempo dos nossos

avós e vai continuar assim no tempo dos nossos netos.

Mas, por outro lado, o que aceitamos hoje é ainda

mais bonito: as estrelas nascem, morrem e algumas

explodem. O resto de algumas destas explosões de

estrelas mortas forma planetas, alguns dos quais vão

ter vida, como a Terra. Portanto, a vida resulta da

morte, e é muito mais interessante pensarmos que já

fomos estrelas e que provavelmente vamos voltar a ser

daqui a muitos milhões de anos...

O momento-chave da mudança na nossa visão do

Universo foi quando o astrónomo Edwin Hubble

descobriu, em 1929, que as galáxias se estavam a

afastar umas das outras?

Edwin Hubble descobriu que, em geral, todas as

galáxias se estão a afastar de nós e que quanto mais

longe de nós está uma galáxia, mais rapidamente

ela se afasta. Portanto, o Universo está em expansão

no verdadeiro sentido da palavra. Hoje é tão normal

ouvirmos estas palavras que até parecem dizer algo

fácil de entender. Mas não é. Quando olhamos para

os céus, vemos sempre a mesma coisa, a Estrela

Page 17: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

Do momento zero do Universo até aos 10-43

segundo, podemos dizer que há tempo?

Do zero até aos 10-43 segundo não se pode dizer que

não haja tempo. Há tempo, mas talvez seja de natureza

diferente. Não se pode dizer mais nada. É um tempo

diferente. Há efeitos de mecânica quântica que não

conhecemos. Talvez o tempo fl utue e dê saltos, talvez

não ande sempre para a frente... Julga-se que nestas

alturas o espaço-tempo é como espuma, tudo se

mistura. É a partir de 10-43 segundo que a teoria de

Einstein é aplicável.

E antes do Big Bang?

É o campo da especulação e da metafísica. A ciência

pára aí.

Em 1999, João Magueijo propôs uma alternativa

ao modelo da infl ação cósmica para explicar a

homogeneidade do Universo a grandes escalas.

Teriam sido os fotões (a luz) que puseram todo o

Universo primordial em contacto e o tornaram

uniforme. Para isso a luz teria de ter sido mais

rápida no passado, o que questionava a constância

da sua velocidade. Há hoje alguma observação

astronómica que fundamente esta proposta?

Ele tentou mudar as regras do jogo, para encontrar

uma alternativa ao processo de infl ação, que, como

já disse, sugere que o Universo passou por uma fase

de crescimento muito rápido, quando era criança.

Em vez de ser a velocidade de expansão do Universo

que mudava, era a própria velocidade intrínseca das

coisas, neste caso da luz, que mudava ao longo da

história do Universo. A luz punha tudo em contacto

e a homogeneidade fi cava mais ou menos explicada.

Do ponto de vista teórico, nada proíbe que isso tenha

acontecido. Mas Einstein acreditava que a velocidade

da luz era constante, é um postulado da teoria dele. É

assim que a física funciona: propõem-se alternativas

para resolver problemas e fazem-se observações para

ver qual é a que o Universo escolheu. Parece hoje que

o Universo escolheu a infl ação e que a velocidade da

luz é mais ou menos constante ao longo da sua história.

Portanto, a proposta de João Magueijo é interessante,

mas a natureza não optou por ela. Contudo, ao

explorar essa possibilidade, fi camos a saber algo mais

sobre o Universo. Fazer ciência é testar hipóteses.

A descoberta das ondas gravitacionais dos

primórdios do Universo, anunciada em 2014,

teria sido a prova fi nal de que o modelo da

infl ação cósmica estava certo. Mas esse anúncio

foi desmentido este ano por análises posteriores

das observações, nomeadamente do telescópio

espacial europeu Planck. Ficou muito desiludido?

As ondas gravitacionais são distorções do espaço-

tempo que transportam informação sobre a gravidade.

Viajam à velocidade da luz e foram previstas por

Einstein há 100 anos, mas nunca foram detectadas

directamente na Terra. O anúncio da descoberta

matava dois ou três coelhos de uma cajadada: se estas

ondas tivessem mesmo sido vistas, signifi cava que

a gravidade também tem natureza quântica, já que

estas ondas seriam geradas por efeitos quânticos no

início do Universo; signifi cava também a verifi cação

do mecanismo que mencionei, a infl ação, já que só

através da infl ação é que as ondas gravitacionais são

sufi cientemente fortes. Finalmente, a detecção das

ondas signifi ca que elas existem.

Quanto ao episódio do anúncio da (falsa)

descoberta em si, é uma ilustração perfeita de como

a ciência (e o ser humano) funciona. Um grupo, da

experiência BICEP2 no Pólo Sul, afi rmou [em 2014] ter

descoberto as ondas gravitacionais, talvez um pouco

precipitadamente, para fi car com a fama e o proveito

que adviriam se estivessem correctos. A reacção da

maior parte de nós ao anúncio de qualquer descoberta

é tentar provar que está errada. E, realmente, há cerca

de um mês, a equipa do Planck, em colaboração com

o BICEP2, mostrou que o anúncio foi precipitado.

Mas repare: há agora um consenso entre os cientistas,

portanto o método científi co está a funcionar bem.

Pode explicar um pouco mais o que são as ondas

gravitacionais? E acha que vamos detectá-las?

A teoria da relatividade de Einstein diz que espaço

e tempo são um único tecido, e que as ondas

gravitacionais são fl utuações desta entidade à medida

que o tempo passa. As ondas na superfície de

[Laboratório Europeu de Física de Partículas, em

Genebra] se verifi cam estas previsões, é algo já aceite

por todos nós e que até passou para a cultura popular,

mas era uma barreira imensa.

Em 1916, Einstein percebeu que o tempo e o espaço

são elásticos e duas faces de uma mesma entidade: o

espaço-tempo. Pela primeira vez, o tempo não é uma

entidade imóvel, é algo que pode ser distorcido. Isto

permitiu-nos trabalhar a noção de tempo: o tempo

pode fl uir mais devagar ou mais depressa. A teoria da

relatividade foi importante para termos até uma noção

do início do tempo, tínhamos de quebrar primeiro a

noção de que o tempo é uma coisa estática e imóvel

e eterna. Creio que a noção do Big Bang só é possível

depois de termos quebrado a barreira do tempo e de

sabermos que podemos mexer no tempo.

Que implicações fi losófi cas e religiosas teve o

facto de sabermos da existência do Big Bang?

Imagino que deve ter sido um grande choque saber

que o Universo está a evoluir e que nós, enquanto

parte do Universo, estamos a caminhar para algum

ponto enquanto espécie e enquanto ser vivo no

cosmos. Qual o nosso papel no Universo? Há algum

propósito na nossa existência? Qual o futuro da

humanidade? Quem criou o Universo? Estas perguntas

devem ter ganho nova relevância.

Mas, cientifi camente, ter havido um ponto de

partida é libertador. Não nascemos escravos de um

Universo que já cá estava. Pelo contrário, evoluímos

com ele. Se o Universo não é estático e está a mudar,

então talvez possamos compreender as estrelas,

como deitam tanta luz cá para fora, o que acontece

no interior delas... Como é que se formaram, como

morrem, como é que a vida nasceu... tudo isto! Tem

de ter sido uma coisa bonita saber que, afi nal, há

alguma dinâmica no sítio onde vivemos.

Em 1965, descobriu-se uma radiação “fóssil”,

que é a luz mais antiga que conseguimos ver dos

primórdios do Universo, quando tinha só 380 mil

anos, e que se chama radiação cósmica de fundo.

Esta foi a derradeira prova do Big Bang?

A teoria de um Universo estático ou estacionário

prevê que o Universo é hoje como foi há milhões de

anos. Por outro lado, a teoria de que o Universo teve

um início prevê muitas outras coisas: toda a matéria

estava concentrada inicialmente num único ponto e

toda a matéria estava esmagada porque a temperatura

era enorme. Mas, à medida que o Universo expande,

arrefece e permite a criação de estrutura. Quando

o Universo celebrou um segundo de vida, estava

sufi cientemente frio para núcleos de átomos. E aos

380 mil anos a luz conseguiu fi nalmente “libertar-se”

da matéria: é esta luz a que chamamos a radiação

cósmica de fundo, um eco do Big Bang. Mas é um

eco que tem toda esta evolução subjacente. É uma

fotografi a lindíssima do Universo jovem-adulto, só

possível num cenário em que existe Big Bang.

E um pormenor interessante é que esta “fotografi a”

foi descoberta por acaso por Penzias e Wilson em

1964. Enquanto instalavam antenas muito sensíveis,

detectaram um ruído que atribuíram a... cocó de

pombos. E que se verifi cou ser radiação cósmica de

fundo existente em todo o lado e em todas as antenas.

Hoje vemos galáxias pelo Universo todo. O que

mais nos disse a radiação cósmica de fundo sobre

o Universo que vemos hoje? O que permite saber

sobre os primeiros 380 mil anos do Universo, que

não vemos directamente?

A radiação cósmica de fundo é quase isotrópica, isto

é, a mesma em todas as direcções para onde olhemos.

Isto faz sentido, dado que o Universo era o mesmo

em todas as direcções quando esta luz foi libertada.

Mas esta luz é antiga, está a viajar há muitos milhões

de anos e já viu muita coisa. Desde os quase 14.000

milhões de anos que passaram desde que a radiação

cósmica de fundo foi criada, muita coisa aconteceu:

a gravidade atrai tudo o que pode, e a tendência é

começar a formar “coágulos” de matéria, que são

as sementes das futuras galáxias, estrelas ou mesmo

buracos negros. Ora como esta luz viaja há tanto

tempo, foi afectada por todos estes acontecimentos.

Por isso, quando olhamos para a radiação cósmica

de fundo, vamos ver todo este passado da luz como

pequenos desvios em diferentes direcções.

Outro marco da nossa compreensão do Universo

foi o modelo da infl ação cósmica. Por que foi

preciso introduzir na teoria do Big Bang uma

expansão vertiginosa do Universo nas primeiras

fracções de segundo da sua existência?

O Universo nasceu homogéneo e isotrópico, o mesmo

em todo o lado e direcção e continua mais ou menos

assim ainda hoje. No cômputo geral, é mais ou menos

homogéneo. Se olharmos para o céu, há sempre uma

estrela algures no caminho do nosso telescópio. Isto

signifi ca que a direcção do Pólo Sul no céu parece-

se, com uma precisão de uma parte em 10.000,

com a direcção do Pólo Norte. Mas quando olhamos

nestas diferentes direcções, estamos a ver luz que

veio de partes completamente diferentes e que nem

sequer deveriam saber da existência uma da outra.

Então, como é possível que sejam tão semelhantes?

Bem, uma explicação é que seja uma coincidência,

mas tem de ser uma coincidência tão grande que é

como ganhar a lotaria várias vezes seguidas... Parece

batota! Pensamos que isto aconteceu porque houve

uma infl ação, isto é, um crescimento muito rápido,

que dissolveu qualquer “coágulo” e imperfeição

que existisse, um alisamento muito rápido do tecido

onde estavam estes coágulos, e tudo fi cou muito

uniformemente distribuído. A infl ação procura

explicar por que é que o Universo é assim.

Ainda antes da infl ação, houve o Big Bang, o

momento zero. Depois, houve a primeira fracção

de segundo a partir da qual o conceito de tempo

tem sentido: 10-43 segundo. Mas entre o Big Bang e

os 10-43 segundo, o que é o tempo?

Não sabemos. O 10-43 segundo é o que chamamos a

escala de Planck (em homenagem a Max Planck, o

físico que iniciou o estudo da mecânica quântica). Que

é a escala da nossa ignorância. Diz-nos que daí para

trás a mecânica quântica (que explica a existência de

átomos, moléculas, etc.) é tão ou mais importante do

que a gravidade. Quando o campo gravítico é muito

forte — e era no início do Universo, porque estava

tudo junto e era extremamente denso —, há efeitos de

mecânica quântica que não podemos prever. Sabemos

que têm de estar lá, mas não os sabemos calcular.

Como não conseguimos casar a teoria quântica e a da

relatividade geral, não sabemos o que acontece.

“[Antes do Big Bang] é o campo da especulação e da metafísica. A ciência pára aí.”

Page 18: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

um lago são uma boa analogia. Outra boa analogia

é imaginarmos que o Universo em que vivemos é o

tecido de uma camisola. E que nós e tudo o que existe

no Universo somos os desenhos pintados na camisola.

Se eu tocar com o dedo na camisola, ela vai oscilar. E

se eu puxar o tecido da camisola, os desenhos fi cam

mais ou menos esticados. Puxões que viajam no tecido

são as ondas gravitacionais. Esta analogia mostra-nos

o efeito de uma onda gravitacional sobre nós. Se uma

onda gravitacional estiver a passar aqui entre nós, é

o mesmo que eu puxar o tecido de uma camisola e o

que veria é que fi caríamos sucessivamente esticados e

comprimidos. A minha altura iria variar muito pouco,

mas iria variar. O problema é que varia muito pouco, o

que é bastante complicado de detectar.

Estas ondas têm uma história interessante. Einstein

previu a sua existência em 1916, mas 20 anos depois

negou-a num artigo com [Nathan] Rosen. Einstein

também errava, e bastante, e isto foi mostrado por

[Howard] Robertson, que se apercebeu de que ele

interpretou mal a solução. Mas Einstein era Einstein

e o que perdurou foi a sua opinião... até 1955, quando

[Richard] Feynman, [Hermann] Bondi e outros

mostraram que as ondas têm de existir e transportar

energia. A partir de 1960, começa-se a tentar detectar

estas ondas na Terra, com barras de alumínio. Joseph

Weber foi um pioneiro, construindo os detectores

mais avançados. Infelizmente, alegou ter detectado

dezenas de acontecimentos, mas mostrou-se mais

tarde que resultaram de erros de software e hardware.

Resumindo, a história da detecção destas ondas,

chamadas “mensageiros de Einstein”, não começou

muito bem, e havia algum receio de investir uma

carreira no assunto. Nos anos 1980, o famoso físico Kip

Thorne decidiu recomeçar todo o esforço com o LIGO,

um observatório norte-americano. Acreditamos que a

primeira detecção directa destas ondas vai acontecer

daqui a um ou dois anos. Se não detectarmos nada em

2017... mau... Então, ou o Universo é completamente

diferente da forma como hoje o entendemos, ou a

teoria de Einstein está seriamente errada.

Pensa-se que os buracos negros também geram

ondas gravitacionais, duas coisas estudadas por

si. Que mistérios procura desvendar?

Bom, dado que vamos todos acabar dentro de um

grupo de grande qualidade sem preocupações quanto

aos cortes ou à política de contratações, durante os

próximos cinco anos. E vai permitir-me actualizar o

nosso supercomputador, que usamos intensamente

para resolver as equações de Einstein.

Esse supercomputador chama-se Baltasar Sete Sóis, nome inspirado em Baltasar Mateus, o Sete-

Sóis, personagem de José Saramago em Memorial do Convento. Por que deu esse nome à máquina?

O nome foi discutido com a minha mulher, queria

que fosse algo com signifi cado. Ora o Baltasar Sete

Sóis é um personagem que ajuda o padre Bartolomeu

Lourenço a construir o seu sonho, que é a Passarola,

uma máquina voadora. Gostámos desta ideia, de o

Baltasar ajudar a construir um sonho, especialmente

da forma apaixonada com que as personagens do

livro o faziam. Posso dizer, ao fi m de cinco anos, que o

Baltasar já construiu muitos sonhos!

Neste passeio que estamos a fazer, houve mais

um abalo, em 1998, na nossa visão do Universo.

Não só o Universo se está a expandir como o está

a fazer cada vez mais depressa. Por que é que isto

surpreendeu tanto os cientistas?

Bom, por várias razões, a começar pelo facto de que a

expansão acelerada não estava no “menu”. E porque

a descrição mais simples desta aceleração é uma

energia escura, ou constante cosmológica (a mesma

que o Einstein tinha introduzido por preconceito), que

ainda hoje não sabemos bem explicar. Já agora, esta

“reciclagem” da constante cosmológica não signifi ca

que Einstein estava, afi nal de contas, certo. Isso é

apenas uma coincidência, mas mostra que o homem

tinha uma intuição danada para resolver problemas.

O cenário mais consensual é o da expansão

eterna do Universo. Como será o Universo com

26.600 milhões de anos, ou seja, com o dobro da

sua idade actual? Esse futuro é negro?

O futuro é escuro e frio! Essa pergunta é tramada,

porque exige fazer alguns cálculos complicados.

Mas deixe-me descrever o que vai acontecer, e como

vamos fi car cada vez mais sós.

Daqui a cerca de 500 milhões de anos, o Sol estará

tão luminoso que a temperatura na Terra vai subir

cerca de dez graus. O homem vai provavelmente

começar a pensar, a sério, em mudar-se para outros

planetas no sistema solar ou na galáxia antes disto.

De qualquer forma, daqui a cerca de 4000 milhões

de anos a nossa galáxia, a Via Láctea, vai colidir com

outra, a de Andrómeda. Durante este processo, que

levará muito tempo, algumas simulações mostram que

a Terra vai passar muito perto do centro desta galáxia

combinada, antes de ser ejectada para fora. Vamos

perder a nossa querida galáxia, mas por essa altura a

Terra já não terá humanidade [o Sol estará a morrer

daqui a 5000 milhões de anos].

Daqui a 100.000 milhões de anos, todo o Grupo

Local [umas 40 galáxias, incluindo a nossa] será

uma única galáxia e o Universo já terá arrefecido e

expandido de tal forma que esta única galáxia estará

isolada do resto do Universo. Lentamente, estrelas

deixarão de se formar. Algum tempo depois, os

protões e neutrões desintegrar-se-ão. Qualquer vida

que pudesse existir morre. Como puro exercício

especulativo, podemos continuar: a matéria que existe

vai cair para dentro dos buracos negros, e o Universo

vai ter apenas buracos negros gigantes. Finalmente,

estes vão-se evaporando lentamente. Não faço ideia

do que acontece a seguir neste Universo. Dito assim,

parece um cenário desolador. Poderemos pensar em

nós como aquela luzinha trémula que surgiu no meio

da noite e se apagou, mas foi bonito enquanto durou.

Esta altura onde estamos agora é a melhor para

estudar o Universo, agora já evoluiu bastante?

É. Se fosse mais cedo, era impossível, porque não teria

o tipo de estrutura que tem. Não haveria planetas do

tipo da Terra a orbitar estrelas. Nem nós estaríamos

cá nem alguma forma de vida vagamente semelhante

à nossa. A questão é: há mais alguém a observá-lo e há

ligeiramente mais tempo?

Acha que há?

Acho que sim. A probabilidade de haver vida nalguma

ponta do Universo é imensa. O que não quer dizer que

esses seres vivos sejam necessariamente parecidos

connosco, física ou intelectualmente.

buraco negro, é bom sabermos como estas bestas

nasceram e cresceram. Buracos negros nascem

quando uma estrela muito grande morre, e cai sobre

si mesma, pois já não consegue suportar a atracção

gravítica. Para um buraco negro, crescer é a única

opção: eles comem tudo o que puderem. Os buracos

negros são muito comuns em todas as galáxias: a

nossa tem milhões de buracos negros “pequenos”,

isto é, com cerca de 15 quilómetros de raio, mas

um milhão de vezes mais pesados do que a Terra.

Além disso, descobrimos nas últimas décadas que

quase todas as galáxias têm no centro um buraco

negro supergigante. No caso da Via Láctea, o centro

é ocupado por um monstro gigante quatro milhões

de vezes mais pesado do que o nosso Sol. Estes

gigantes, apesar de muito mais pequenos do que a

galáxia, controlam toda a sua actividade, incluindo

o nascimento de novas estrelas. Estes gigantes nos

centros das galáxias estão sempre acompanhados

por outro gigante invisível, a que chamamos matéria

escura. E que forma a maior parte da matéria do

Universo e não fazemos ideia do que seja (por isso

lhe chamamos “escura”, quando soubermos o

que é, talvez mudemos o nome!). Ora, os buracos

negros emitem quantidades prodigiosas de ondas

gravitacionais. Procuro perceber esta emissão e a sua

importância. Será que através das ondas gravitacionais

podemos saber algo sobre a matéria escura?

Como é que o acelerador LHC — onde se detectou

o bosão de Higgs em 2012 e vai agora reabrir

quase com a sua potência máxima — pode ajudar

a descobrir o que é a matéria escura?

O LHC tem tentado procurar também matéria

escura, mas estamos sempre limitados pela energia

necessária. No estado actual da física, a parte mais

excitante está no Universo para lá do nosso sistema

solar. Há pouco tempo, o CERN deu-nos provas mais

ou menos conclusivas da existência do bosão de

Higgs. Mas receio que daqui para a frente a física de

partículas vá passar um mau bocado. Sempre precisou

de mais e mais energia [para se colidirem partículas

nos aceleradores], mas haverá uma altura em que, no

planeta, é impossível dar essa energia toda. Teremos

de olhar lá para fora e dar atenção a outro tipo de

“aceleradores”. Creio que a física deste século está nos

astros e na física gravitacional. Há muito por entender

e muitas fontes de energia onde procurar informação.

Precisamos de telescópios bons e mentes brilhantes.

Os buracos negros estão entre os objectos

mais exóticos do Universo? Ou nem por isso, e

despertam é curiosidade nas pessoas?...

São, sem dúvida, exóticos para a nossa experiência

do dia-a-dia. São um “nada” que consegue curvar de

tal forma o tiquetaque dos relógios que nada sai de

dentro deles. Creio que o que desperta a curiosidade

é o facto de desafi arem os nossos conceitos de

tempo e espaço, e o facto de representarem um fi m

quase defi nitivo para tudo que engolem. E é preciso

relembrar que eles existem.

Teve duas superbolsas do Conselho Europeu de

Investigação (ERC), em 2010 e 2015, para estudar

as equações na teoria da relatividade geral. O que

quer dizer estudar as equações de Einstein?

O meu trabalho é pensar sobre o que nos rodeia,

para percebermos, todos nós, o nosso Universo um

pouco melhor. A minha investigação consiste em

perceber a teoria de Einstein e o que ela prevê. É fácil

de enunciar, é difícil de fazer, porque as equações

de Einstein descrevem muita coisa: buracos negros,

ondas gravitacionais, estrelas de neutrões, etc.

As equações da relatividade são tremendamente

complicadas de resolver e têm muitas soluções — tal

como a “fórmula” da biologia dá origem a muitos seres

vivos diferentes. Tome-se o exemplo do buraco negro

no centro da nossa galáxia, que é fundamental para a

vida da galáxia, para a formação de estrelas e até para

o futuro longínquo da galáxia. Dedico-me a tentar

perceber estes buracos negros, como crescem e como

nos podem ensinar algo acerca da sua vizinhança.

E estas superbolsas são fulcrais. A importância e

a qualidade da ciência em Portugal tem crescido,

muito rapidamente, nas duas últimas décadas. Os

cortes orçamentais fi zeram regredir a situação. A

última bolsa do ERC vai permitir-me manter um

“Daqui a cerca de 4000 milhões de anos a Via Láctea vai colidir com Andrómeda. Vamos perder a nossa querida galáxia, mas por essa altura a Terra já não terá humanidade”

Page 19: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

ste ano, no último dia de Junho ou no primeiro de Julho

(dependendo do fuso horário do local), os relógios do

mundo inteiro — e em particular os dos computadores —

vão ter de parar durante um segundo. Tal foi a decisão,

tornada pública há dias, dos “guardiões da hora” a nível

mundial: o Gabinete Internacional de Pesos e Medidas,

com sede em Sèvres, nos arredores de Paris.

Porquê? Porque a hora é hoje dada por relógios muito

precisos e estáveis, ao passo que a rotação da Terra é

irregular e está a fi car cada vez mais lenta. Isso obriga,

de vez em quando, a fazer acertos.

No início, havia a noite e o dia, a meia-noite e o meio-

dia. E as horas contavam-se partindo esse ciclo natural

em intervalos regulares: horas, minutos e segundos.

A partir de observações astronómicas, os astróno-

mos árabes tinham subdividido, já na Idade Média, o

dia solar em 24 horas, as horas em 60 minutos e os

minutos em 60 segundos. E, com base nisso, em 1874,

o segundo fora cientifi camente defi nido como um se-

xagésimo de sexagésimo de vigésimo quarto da dura-

ção média do dia solar. Um dia “civil” durava portanto

86.400 segundos.

Só que, pouco depois, descobriu-se que o período de

rotação da Terra não é assim tão regular: varia de forma

imprevisível sob o efeito das marés, dos ventos, dos

terramotos. Seguiram-se então defi nições do segundo

com base no ano solar, que também não se adequaram

à crescente necessidade de medir o tempo de forma

cada vez mais precisa.

Em 1955, foram inventados os relógios atómicos e,

uns anos mais tarde, redefi niu-se o segundo com base

na frequência da radiação electromagnética emitida por

certos átomos. Este segundo “atómico” tinha a vanta-

gem de ser bastante próximo do segundo ofi cial “natu-

ral” (baseado no dia solar) defi nido em 1874.

Hoje em dia, os segundos atómicos servem para de-

terminar a “hora atómica internacional” (TAI) graças a

uma rede de centenas de relógios atómicos, espalhados

pelo mundo — e entre os quais o Gabinete Internacional

de Pesos e Medidas calcula uma hora média.

Graças a diversos avanços técnicos, as “batidas” des-

tes relógios atómicos têm-se tornado cada vez mais re-

gulares, com os de última geração a demorarem milhões

de anos a derivar alguns segundos. E o aperfeiçoamento

não pára aí: em Fevereiro, cientistas japoneses anun-

ciaram na revista Nature Photonics ter obtido relógios

atómicos que teriam derivado menos de um segundo

desde o Big Bang, há 13.800 milhões de anos.

Em 1972, como os relógios atómicos respondiam de

facto à necessidade de precisão no cálculo da hora glo-

bal (nomeadamente nas redes de telecomunicações), a

hora ofi cial na Terra, que até lá tinha sido medida em

segundos “solares”, passou a ser medida em segundos

“atómicos”. Entrou assim em vigor a escala horária UTC

(Tempo Universal Coordenado).

Mas surgiu então um outro problema: é que a rotação

da Terra não tem parado de abrandar — em cerca de 1,7

milissegundos por século nos últimos séculos — e, se

nada fosse feito, a hora UTC, agora medida em segundos

atómicos, iria afastar-se cada vez mais da hora solar “re-

al”. Na altura, ninguém desejava, por assim dizer, que

acabasse um dia por “estar sol em plena noite” (mesmo

que isso acontecesse daqui a milhares de anos).

A hora UTC, que é de facto a norma através da qual o

mundo acerta hoje os relógios e a hora civil, encontra-se

sob a alçada da União Internacional de Telecomunica-

ções. E, face ao problema do abrandamento da rotação

E

Por Ana Gerschenfeld

Este ano, o últimodia de Junho vai ter mais um segundo

A1Em 1991, Portugal fica mais pequeno e mais rapidamente transitável: é finalmente concluída a construção da Auto-estrada entre Lisboa e o Porto, que tinha sido iniciada ainda em 1961 com o troço Lisboa Vila Franca — ou seja, 30 anos para acelerar o percurso de 330 quilómetros. Onze anos depois (2002), o país tornou-se ainda mais pequeno com a inauguração dos 240 quilómetros da A2 entre Lisboa e Albufeira, iniciada em 1996. S.J.A.

>>>>>>>>>>>>1991

Page 20: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

terrestre, aquela entidade recomendou então que a hora

“ofi cial” dada pelos relógios — a hora UTC —, nunca se

poderia afastar em mais de 0,9 segundos da hora dada

pelo “relógio” natural da rotação da Terra.

Foi justamente por essa razão que começou a ser pre-

ciso acrescentar segundos adicionais de vez em quando

à hora UTC. Desde 1972, 25 destes “segundos intercala-

res” foram assim acrescentados. E este ano, mais uma

vez, vai ser preciso fazer o acerto dos relógios. Diga-se,

já agora, que a hora atómica internacional TAI está actu-

almente 35 segundos adiantada em relação à hora solar,

uma vez que este tipo de acertos entre a hora atómica

e a hora solar já tinha começado a ser feito nos anos

1960, antes da instituição da actual hora UTC.

Parar um segundoComo é que o salto de um segundo se vai processar? A

30 de Junho, quando forem 00:59:59 horas (hora UTC),

todos os relógios do mundo que usam o sistema UTC

terão de parar por um segundo — ou de marcar um se-

gundo a mais (um sexagésimo primeiro segundo, com

os relógios a dar 00:59:60 horas) — antes de passar para

a hora seguinte. Isto acontecerá antes da meia-noite

nas Américas, após a meia-noite na Europa — e mesmo

depois do nascer do sol de 1 de Julho em países como o

Japão ou a Austrália.

Simples? Nem por isso. Acontece que os grandes

sistemas informáticos — como os serviços de reservas

das companhias aéreas ou os servidores das grandes

empresas da Internet — vão ter de marcar o passo. Ora,

em 2012, quando da introdução do último segundo in-

tercalar, vários destes sistemas tiveram problemas para

“digerir” o segundo e acabaram por ir abaixo, alguns

durante várias horas.

“Vamos ter de obrigar os nossos relógios a aceitar

um segundo a mais num dado minuto”, explicava em

fi nais de 2011 à revista New Scientist Felicitas Arias, as-

trónoma argentina e directora do Departamento do

Tempo no Gabinete Internacional de Pesos e Medidas.

E acrescentava: “Estamos a usar um sistema [horário]

que interrompe o tempo, quando a característica do

tempo é, pelo contrário, a continuidade.”

A seguir ao segundo intercalar de 2012, servidores da

companhia aérea australiana Qantas ou de sites como

Linkedin, Mozilla, FourSquare ou Reddit foram atin-

gidos por um bug de programação, que até lá tinha

permanecido latente (e que portanto ninguém tinha

detectado), no sistema operativo Linux utilizado por

aqueles computadores. Outros servidores, que utiliza-

vam Java (o célebre software da Oracle), também foram

afectados.

Pode isto tornar a acontecer? Ninguém sabe ao certo.

Mas na sequência dos problemas com que se defrontou

por ocasião do segundo intercalar introduzido em 2005,

o gigante online Google divulgou uma forma de contor-

nar o problema, como explicava há dias a CNN online.

Trata-se de ir acrescentando alguns milissegundos aos

relógios dos seus servidores ao longo do dia fatídico —

“o sufi ciente para evitar o desastre no fi m do dia, mas

que [por serem apenas uns milissegundos] não fazem

disparar os alarmes.” Porém, isso também não evita

todos os incidentes.

Há anos que a União Internacional de Telecomuni-

cações está a considerar a hipótese de acabar, pura e

simplesmente, com os segundos intercalares, deixando

a hora UTC afastar-se da hora solar. Em Novembro des-

te ano, a questão tornará a ser abordada no congresso

desta organização em Genebra. Mas o facto é que não há

consenso entre os especialistas. Por um lado, há quem

argumente que, com o passar dos séculos, a frequência

de introdução de segundos intercalares vai aumentar

até se tornar incomportável. Por outro, há quem alerte

para o facto que abolir os segundos intercalares fará

com que a hora civil acabe por perder a sua ligação

com o tempo solar.

Ainda segundo a New Scientist, este último argumento

apresenta uma visão exagerada das coisas, uma vez que

a hora legal em vigor nos diversos países já se encontra

desfasada, por vezes de várias horas, em relação à hora

solar — o que signifi ca que o Sol não está nem perto do

zénite quando os relógios assinalam o meio-dia. Por

comparação, a abolição do segundo intercalar levaria,

daqui por cem anos, a uma diferença de apenas um

minuto entre a hora atómica e a hora solar.

YULIA DARASHKEVICH/REUTERS

Page 21: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

Salvar a TerraEm 1992, o Rio de Janeiro é o palco da Cimeira da Terra, a segunda conferência mundial sobre meio ambiente. A primeira realizara-se em Estocolmo em 1972. No Rio, 108 países comprometeram-se em travar a degradação do planeta e o consumo de recursos naturais, assim como encontrar modelos de desenvolvimento sustentável, ecologicamente equilibrados. Do Rio saíram convenções sobre biodiversidade, desertificação e clima. Esta última conduziu, em 1997, ao Protocolo de Quioto, no Japão, em que os países concordam em reduzir as emissões de gases com efeito estufa, evitando o aquecimento global. S.J.A.

>>>>>>>>>>>>1992

Ao contrário dos humanos, os computa-

dores não têm esperança, aquela dispo-

sição de espírito que leva a crer que algo

acontecerá (ou deixará de acontecer),

mesmo quando a informação dispo-

nível aponta em sentido contrário. Os

algoritmos desenvolvidos para analisar uma imensa

quantidade de dados e tomar uma decisão de compra

ou venda de um produto fi nanceiro não foram progra-

mados para cruzar os dedos e esperar que o pior passe.

Os computadores seguem à risca as instruções com

que foram programados e fazem-no em minúsculas

fracções de segundo. Por vezes, isto leva a situações

inesperadas.

Um mini-crash dos mercados em 2010 fi cou na histó-

ria como um exemplo dos riscos colocados pelas tran-

sacções feitas por algoritmos, em particular por aquilo

a que se chama high frequency trading (transacções de

elevada frequência). É uma prática que envolve gran-

des quantidades de transacções automatizadas, feitas

em curtíssimos períodos de tempo e onde a estratégia

é normalmente ter um pequeno ganho em cada uma

das múltiplas compras e vendas.

A 6 de Maio daquele ano, o Dow Jones (o índice bolsis-

ta que agrega as cotações de grandes empresas como a

Microsoft, a Coca-cola e a IBM) estava às 14h47 minutos

de Nova Iorque a perder mais de 9%. A maior parte desta

queda, invulgarmente grande, acontecera nos minutos

anteriores. Ainda antes das 15h, as cotações já tinham

recuperado boa parte das perdas.

Foram precisos meses para que as autoridades regu-

latórias conseguissem explicar o que se passara: o crash

tinha sido causado por computadores a comprarem e

venderem uns aos outros, numa sucessão imprevisível

de eventos. A bola de neve começou com uma empresa

que usou um programa de computador para vender

4,1 mil milhões de dólares de contratos de futuros, in-

dependentemente do preço de venda. A maior parte

foi rapidamente comprada por computadores de hi-

gh frequency trading. Quando os algoritmos daqueles

computadores consideraram que já tinham comprado

demasiado, começaram a vender muito rapidamente.

Em escassos 14 segundos, os contratos trocaram de

mãos 27 mil vezes.

Com uma venda maciça a decorrer, outros investido-

res começaram a comprar os contratos a preços redu-

zidos, mas a vender acções que tinham em mercados

como a Bolsa de Nova Iorque. Por seu turno, alguns

algoritmos detectaram a rápida sucessão de compras

e vendas e pararam de transaccionar. O resultado foi

um crash de alguns minutos, que terminou quando um

algoritmo, desta vez do mercado onde eram trocados

os contratos de futuros, interveio e suspendeu as ne-

gociações durante cinco segundos.

Ser o primeiroNas rapidíssimas transacções algorítmicas de alta fre-

quência, ser o primeiro a ter acesso a informação re-

levante é uma vantagem que se mede em milésimos

de segundo (ou, às vezes, até menos). A proximidade

física às fontes de informação e aos mercados onde as

acções e demais instrumentos são transaccionados é

um bem cobiçado, já que permite encurtar o tempo

que os dados e as ordens de compra e venda demoram

a percorrer (normalmente através de cabos de fi bra

óptica) a distância entre computadores.

“Cada microssegundo de vantagem conta. Ligações

mais rápidas de dados entre bolsas minimizam o tem-

po que se demora a fazer uma transacção; as empre-

sas lutam para ver qual é o computador que pode ser

colocado mais próximo”, explica, num artigo recente

para a revista Nature, o físico Mark Buchanan, autor do

livro Forecast: What Physics, Meteorology and the Natural

Sciences Can Teach Us About Economics.

Buchanan argumenta que as transacções ultra-rápidas

tem algumas vantagens. Por um lado, diz, tornou-se

mais barato investir, já que as comissões cobradas aos

investidores caíram com esta prática. Por outro, os pre-

ços dos diferentes instrumentos fi nanceiros ajustam-

se mais rapidamente. “Em 2000, eram precisos, em

média, minutos para que a mudança de preço num

instrumento se repercutisse nos outros. Agora, demora

menos de dez segundos. Nem toda a gente gosta disto:

uma sincronização rápida elimina as oportunidades de

lucro das empresas que fazem dinheiro por conhecerem

os desequilíbrios momentâneos de preços”.

Associada às transacções de alta frequência está tam-

bém a prática de colocar no mercado sucessivas ordens

de venda, a preços progressivamente mais altos, com o

objectivo de descobrir que ordens são aceites e assim

saber o preço máximo que alguém está disposto a pa-

gar — estas ordens são dadas e canceladas em fracções

de segundo.

O prémio Nobel da Economia Joseph Stiglitz está no

campo dos detractores deste tipo de práticas. Num dis-

curso no ano passado, apelou a um maior escrutínio,

disse ser céptico quanto ao “valor social” das transac-

ções de elevada frequência e classifi cou-as como um

jogo de soma negativa. “Porque o retorno privado pode

exceder o retorno social, haverá um excessivo inves-

timento na velocidade de aquisição de informação”,

observou o economista.

Em 2013, foi tornado público que a agência Reuters

vendia, a um grupo restrito de investidores, um indi-

cador sobre o consumo nos EUA dois segundos antes

de o divulgar à generalidade dos seus clientes (que, por

sua vez, o recebiam cinco minutos antes do público em

geral). A vantagem podia chegar a dois segundos e meio,

já que o contrato previa uma margem de erro de meio

segundo. Aquele indicador, que infl uencia mercados,

é elaborado pela Universidade do Michigan. Para ter

acesso antecipado à informação e a poder revender,

a Reuters pagava então à universidade um milhão de

dólares por ano, mais comissões.

Milissegundos que valem milhões

No mundo de alta velocidade dos algoritmos fi nanceiros, pouco tempo signifi ca muito dinheiro

Por João Pedro Pereira

Page 22: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

Professora de

sociologia na

London School of

Economics, Judy

Wajcman publicou

recentemente

um livro onde

analisa a relação

das tecnologias

e a forma como

sentimos o tempo.

Em Pressed for Time

— The acceleration

of life in digital

capitalism, sublinha que as pessoas não são reféns

das tecnologias; logo, que não são estas as culpadas

de sentirmos que andamos sempre a correr. A obra,

que evita o facilitismo das ideias a “preto e branco”,

evidencia factos, como estarmos a viver uma cultura

que valoriza o estar atarefado e a hiperprodutividade.

Muitas vezes, com o devido contexto, levanta mais

questões do que dá respostas. Resumindo: faz pensar,

algo que requer tempo.

No seu livro refere que há uma espécie de

paradoxo, com as pessoas a culparem os produtos

tecnológicos pela pressão, pela noção de falta de

tempo, mas, ao mesmo tempo, é a esses mesmos

produtos que se recorre para tentar aliviar essa

pressão. A tecnologia está, de facto, a acelerar as

nossas vidas?

A tecnologia que temos refl ecte a sociedade, não a

molda. E isso é argumento contra a ideia de que somos

vítimas da tecnologia. A hiperactividade não existe por

causa dela. A tecnologia só existe a partir do momento

em que é fabricada, e lhe damos um sentido.

Mas acha que não estamos a usar tecnologia da

forma mais correcta?

Uma questão passa pelo facto de a tecnologia estar

a ser concebida, de uma forma geral, em Sillicon

Valley, por empresas cujo objectivo é o lucro.

Mesmo que digam que estão a querer transformar

o mundo num sítio melhor e que estão a construir

estas tecnologias a pensar em nós, o seu objectivo é

conceber produtos que dêem dinheiro. Os cidadãos

deviam estar mais envolvidos em todo esse processo

de criação e concepção. Isto para termos diferentes

produtos tecnológicos, mais afastados da noção de

que mais velocidade é igual a progresso, que melhores

vidas dependem da banda larga mais rápida, de que

é isso que queremos, em vez de se pensar, de facto,

em ajudar a termos melhores vidas e que problemas

sociais é que queremos resolver.

Como é que os cidadãos podem estar mais

envolvidos nesse processo?

Primeiro, há um problema no facto de os engenheiros

que estão em Sillicon Valley serem, de uma forma

geral, muito jovens, predominantemente brancos,

embora haja alguns indianos, e do sexo masculino. Se

houvesse mais diversidade, é provável que tivéssemos

tecnologias diferentes. Depois, os governos devem ter

um papel mais activo. Devem estar mais envolvidos

na concepção dos produtos tecnológicos e facilitar

o tal envolvimento dos cidadãos, nomeadamente

através da educação ligada à área de ciência e

tecnologia. Devia haver mais organismos onde

se discutisse, de forma colectiva, os caminhos da

investigação e desenvolvimento dos produtos.

É sabido que muita da investigação e muito do

desenvolvimento usados em Sillicon Valley têm por

base tecnologia militar, como os drones, que podem

entregar pizzas. E podia-se estar a pensar em áreas

como a energia, problemas sociais, em vez de pensar:

“Há esta tecnologia dos drones, vamos usar de forma

comercial.”

Considera que é errada a ideia de ligar a

tecnologia a algo que tem de ser mais rápido?

Sim, quando se pensa que o melhor motor de

pesquisa é o que dá resultados de forma mais veloz,

mas um outro motor de pesquisa, menos rápido,

com diferentes algoritmos, pode dar outro tipo

de respostas ligadas à informação que se procura,

com outro tipo de conhecimento. As pessoas não se

questionam sobre porque é que um determinado

algoritmo resulta num tipo de informação e não

noutro. E o segredo mais bem guardado do mundo é o

algoritmo do Google.

Falou do papel das empresas. E em relação ao

papel dos consumidores, dos cidadãos? Porque

a forma como utilizamos a tecnologia diz algo

sobre nós. Quando as pessoas incorporam essa

necessidade de velocidade, o que é que diz delas

próprias?

No meu livro tento fugir à polarização, de que

algo é totalmente bom ou totalmente mau. De que

o problema se resolve com uma desintoxicação

tecnológica. Numa sociedade que valoriza a

velocidade, as pessoas tendem a usar a tecnologia

nesse sentido. Quando se olha para os telemóveis,

para smartphones, por exemplo, as pessoas querem

estar em estrito contacto com a família e com os

seus amigos. Quando os telemóveis surgiram, pensei

que era mais uma ferramenta de trabalho. Como

antiga marxista que sou, imaginei logo que seria

uma forma de intensifi car o trabalho. Mas todas as

pessoas compraram telemóveis, de uma forma tão

rápida, e verifi cou-se que querem estar em contacto

com a família e amigos quando estão à espera do

autocarro, por exemplo, para saber se é preciso ir ao

supermercado ou se as crianças estão bem.

Mas os telemóveis vieram intensifi car o trabalho,

certo?

Sim, é verdade. Mas não se pode pensar no problema

do tempo e das pessoas como uma questão individual.

É um problema colectivo, ligado à forma como a

sociedade está organizada: espera-se uma resposta

rápida, que a pessoa está disponível, etc. Tem de se

lidar com essas questões de forma colectiva, alterando

as práticas do local de trabalho. Em termos históricos,

os telemóveis são algo muito recente, tal como o

email, e já usamos o email de forma diferente da

que fazíamos há dez anos. Com o tempo, as pessoas

vão alterar a forma como utilizam as diferentes

tecnologias.

E essa alteração virá no sentido de abrandar

o ritmo na forma como se usa os telemóveis,

desligando mais vezes ou não atendendo todas as

chamadas?

Não sei se é uma questão de mais ou menos

velocidade, mas antes de usar as tecnologias para ter

tempo para as coisas que queremos fazer. Em muitas

famílias, os dois membros do casal trabalham. Face

ao passado, a articulação entre os membros da família

é mais complicada. E o telemóvel funciona para

organizar e proporcionar tempo para estar com o seu

parceiro ou com os seus fi lhos. Pode-se chamar tempo

de qualidade, o tempo que se pretende ter.

Diz que não podemos olhar para o tempo apenas

como as 24 horas do relógio, mas também como

espaço, e que há uma dessincronização entre as

pessoas. Por exemplo, entre o pai e a mãe, que

estão cada um no seu trabalho, e o fi lho, que

está na escola. Isto contribui para a sensação de

estarmos sempre com pressa?

Uma das coisas de que se fala muito é de as fronteiras

entre lazer e trabalho estarem a mudar, e julgo que

isso é verdade. A discussão tem sido sobre como a

tecnologia levou o tempo de trabalho a colonizar o

tempo em casa e o tempo de lazer. Mas, por outro

lado, a tecnologia permite que as pessoas, quando

estão no trabalho, estejam em contacto com a família

e os amigos. É um resultado do capitalismo industrial

termos uma separação rigorosa entre trabalho e

lazer. Mas talvez dentro de cinquenta anos seja mais

normal não haver esta separação, poder passar algum

tempo no trabalho a fazer compras ou outras coisas

na Internet, e compensar isso com trabalho à noite.

Há um conceito de fl exibilidade — que é a fl exibilidade

dos empregadores — que é estarmos sempre

disponíveis para trabalhar. E há a fl exibilidade que nós

queremos, que é termos mais controlo para organizar

os diferentes aspectos das nossas vidas.

A tecnologia pode tornar esse tipo de

fl exibilidade possível na generalidade dos países?

Depende do que forem as condições de trabalho e

essas não são resultado de smartphones e gadgets. A

questão tem muito mais que ver com a desregulação

dos mercados de trabalho.

A grande intensidade do multitasking no

Judy Wajcman“Temos mais tempo mas não sentimos que o temos”

Entrevista João Pedro Pereira e Luís Villalobos

Para Judy Wajcman, professora de sociologia na London School of Economics e autora de Pressed for Time, está a criar-se uma cultura na qual o tempo de lazer é desvalorizado

Page 23: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

local de trabalho ajuda à sensação de estarmos

pressionados pelo tempo?

O multitasking é um mito. Os estudos mostram que

as pessoas fazem as coisas numa sequência rápida,

em vez de estarem literalmente a fazer várias coisas

ao mesmo tempo. É mais fácil queixarmo-nos de que

temos a caixa de correio cheia do que falar dos outros

problemas de trabalho. Sou céptica em relação à

justifi cação das interrupções causadas pela tecnologia.

No livro diz que é possível comprar tempo. A que

ponto há uma desigualdade de tempo provocada

por uma desigualdade de riqueza?

Há uma grande desigualdade. E, mais uma vez, não

poria a tecnologia no centro disso.

Sim, é possível comprar serviços, comprar o trabalho

de outros.

Em termos de poupar tempo, o que as pessoas ricas

fazem é comprar muito trabalho dos outros. Uma

das coisas de que vale a pena falar é de como o

futuro com que Silicon Valley sonha para todos nós

é um mundo com muitos assistentes pessoais nos

telemóveis, como se todos vivêssemos em classes

altas com escravos, mas com os escravos a serem

máquinas. É uma fantasia antiga. Mas a maioria

dos robôs está em fábricas de carros, está a pintar

a spray, o que está a ser automatizado não são os

serviços prestados por humanos. A promessa antiga

da inteligência artifi cial e da robótica é que haverá

mais inteligência e não teremos de fazer várias coisas,

como cuidar dos mais velhos. Mas a inteligência

artifi cial não está sequer perto disso. Que tipo de

fantasia é esta de querer ter escravos automáticos?

Não é um desejo que eu tenha.

Estamos hoje a trabalhar mais horas, apesar

de haver muitas tarefas automatizadas. Mas

houve coisas, como a máquina de lavar, que nos

trouxeram mais tempo. Temos mais tempo de

lazer do que há cem anos. Do que precisamos é de

um equilíbrio?

Com tecnologias como a máquina de lavar, o que

acontece é que os padrões se alteram quando elas

aparecem. Hoje lavamos mais vezes a roupa. Temos

mais tempo, mas não sentimos que o temos. Acho

que esse é o paradoxo. Em parte, tem que ver com

uma cultura que valoriza o estar atarefado e a

hiperprodutividade. Os heróis de hoje são o Steve

Jobs, o Ted Turner [magnata dos media americano], os

heróis empreendedores... Li o perfi l do Jony Ive [vice-

presidente da Apple] na New Yorker. Falam sempre de

ser obsessivos, maníacos, de trabalhar 24 horas por

dia.

Há cem ou 200 anos, ter tempo para lazer era ter

estatuto. Esse estatuto foi substituído por estar

atarefado?

Penso cada vez mais nisso, e julgo que sim. Um

colega disse-me: “Imagina que eu digo que não tenho

assim tanto email e que não tenho assim tanto para

fazer. Toda a gente dirá que sou um falhado.” É uma

americanização do estilo de vida. Está a criar-se uma

cultura em que isso é valorizado e em que o tempo de

lazer é desvalorizado.

Consegue determinar o ponto em que começámos

a desvalorizar o lazer e talvez a sobrevalorizar o

trabalho?

Um colega escreveu um trabalho sobre a antiga

aristocracia, que se orgulhava de ter uma vida de

lazer, dedicando-se à música, à caça. Tem que ver com

o capitalismo industrial. As pessoas interiorizaram

que o trabalho é uma coisa boa em si. O Ive, o tipo da

Apple, disse que, mesmo quando era novo, estava

sempre a trabalhar! Os desempregados hoje são vistos

apenas como indolentes, preguiçosos.

Na sua opinião, o trabalho é uma coisa boa em si

mesma?

Tenho de dizer que estou a repensar isso. Como uma

marxista, sempre alinhei com a ideia de que não havia

nada mais criativo e mais defi nidor de identidade.

Talvez nos estejamos a focar demasiado no trabalho e

haja mais coisas para fazer com o nosso tempo. Saber

se podemos trabalhar menos, consumir menos e ter

uma vida diferente é uma discussão que ainda não

estamos a ter. A chave para isso é a redistribuição do

trabalho, de forma a não haver uma sociedade em que

há profi ssionais a trabalharem imensas horas, e muitas

pessoas desempregadas e sem trabalho que chegue.

Escreveu que pode ser que muitos de nós

tenhamos mais tempo, mas não o tipo certo de

tempo. O que quer dizer com isto?

Estou a referir-me a tempo com outras pessoas. Há um

estudo interessante que diz que tanto desempregados

como empregados se sentem melhor quando o fi m-

de-semana está a chegar, e que se sentem pior na

segunda-feira de manhã. Isto acontece porque o

tempo de socialização é aos fi ns-de-semana. Mesmo os

desempregados sentem isto, porque o fi m-de-semana

é a altura em que têm tempo livre ao mesmo tempo

que os outros. É uma questão de ter tempo social, não

apenas tempo em abstracto.

Mandela PresidenteA 27 de Abril de 1994, o icónico líder de etnia xhosa e do clã Madiba, Nelson Mandela, (18/07/1918-05/12/2013), é eleito Presidente da África do Sul, a cuja democratização dedicou a vida. Foi um momento marcante na história do mundo, o da eleição do primeiro Presidente negro da África do Sul, Estado que fora o expoente do apartheid, regime segregacionista, que o antigo líder do ANC, depois de 27 anos de prisão (1962-1990), ajudou a desmantelar em conjunto com o então Presidente branco, Frederick de Klerk. Ambos receberam em conjunto o Prémio Nobel da Paz, em 1993. S.J.A.

Outro planetaA ficção tinha sempre projectado este desejo da humanidade: o de não estarmos sós no Universo. Em Julho de 1995, foi dado um salto em que a realidade se aproximou desse patamar, quando os cientistas Michel Mayor e Didier Queloz, do Observatório Astronómico de Genebra, descobriram pela primeira vez que na nossa galáxia existia um planeta fora do sistema solar — ou seja, que a 50 anos-luz da Terra, na órbita de outra estrela, Pégaso 51, um planeta gravitava. Desde então, já vai em 1885 o número de planetas descobertos. S.J.A.

>>>>>>>>>>>>1994

>>>>>>>>>>>>1995

RUI GAUDÊNCIO

A tecnologia que temos refl ecte a sociedade, não a molda. E isso é argumento contra a ideia de que somos vítimas da tecnologia

Page 24: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

Como se moveramos ponteiros

O Relógio do Apocalipse é uma formade ilustrar o quão perto estamos de

uma catástrofe nuclear

Fonte: Bulletin of the Atomic Scientists, Universidade de Chicago PÚBLICO

24h00

5 min.

10 min.

15 min.

20 min.

Modernização dosarsenais nuclearese alteraçõesclimáticassem controlo

20102015

200019901980197019601950

23h57

Faltam 3 min.para as 24h00

Primeirapublicaçãodo Relógiodo Apocalipse

EUA e Rússiainiciamnegociaçõespara controlo de armamento

França e Chinadesenvolvem armas nucleares

EUA e Rússiatestam bombasde hidrogénio

Fim da Guerra fria 1991

1947 19841953 1968 2007

Coreia do Nortefaz teste nuclear

O Relógio do Apocalipse quer voltar a fazer medo

altam três minutos para a meia-noite no Relógio do Apo-

calipse dos Cientistas Atómicos. Só estivemos tão perto

da catástrofe em 1984, quando o confronto nuclear entre

os Estados Unidos e a Rússia parecia tão provável que

Sting compôs uma música com a letra “I hope the rus-

sians love their children too” e nos anos de 1953 e 1949:

foi nessa altura que os EUA decidiram construir a bomba

de hidrogénio, mil vezes mais poderosa do que as que

foram lançadas sobre as cidades japonesas de Hiroxima

e Nagasáqui, no fi m da II Guerra Mundial.

“Alterações climáticas sem controlo, modernização

global das armas nucleares e arsenais grandes de mais

representam ameaças extraordinárias e inegáveis à exis-

tência continuada da humanidade, e os líderes mundiais

não têm agido com a velocidade ou na escala que se exi-

gia para proteger os cidadãos da catástrofe potencial”,

disseram em Janeiro os cientistas herdeiros da organi-

zação fundada pelos que construíram a primeira bomba

nuclear, o projecto Manhattan.

E, no entanto, esta avaliação drástica, feita depois

do ano mais quente desde que começaram a ser feitos

registos meteorológicos — segundo a agência espacial

NASA e a Agência para os Oceanos e a Atmosfera norte-

americana (NOAA) —, foi noticiada amplamente, mas

sem criar grandes sobressaltos.

“Recebemos muito mais atenção do que nos últimos

anos e fi cámos muito satisfeitos”, disse ao PÚBLICO Ra-

chel Bronson, directora da revista Bulletin of the Atomic

Scientists, criada em 1947, por cientistas ligados ao projec-

to Manhattan, e que é responsável por publicar e divulgar

o Relógio do Apocalipse. “Ficámos com a sensação de

que há um aumento do interesse nestes assuntos. Talvez

pelo agudizar das relações entre os Estados Unidos e a

Rússia, talvez por causa das negociações com o Irão, ou

por causa da Coreia do Norte.”

E, no entanto, é difícil tornar urgente o risco de uma

catástrofe, mas que não se sabe quando acontecerá. Cria

fadiga se nos estão sempre a recordar de um perigo que

nunca mais se torna realidade. Como escreveu no Guar-

dian Julian Baggini, escritor e fundador da revista The

Philosopher’s Magazine, a propósito do último acerto do

Relógio do Apocalipse, “esteja ou não correcta a nossa

avaliação dos riscos actuais do mundo, não são os peri-

gos que os cientistas consideram os maiores os que nos

preocupam mais.”

“Sim, esse sempre foi o desafi o de comunicar o risco

de um confronto ou de um acidente nuclear: a proba-

bilidade é reduzida, mas o impacto é muito elevado. E

as alterações climáticas são efeitos poderosos que só

sentiremos a longo prazo. É mais difícil de responder

a isto do que a algo que aconteceu ontem”, reconhece

Rachel Bronson. “É difícil alguém acordar e sentir-se

assustado com estas coisas. Mas acho que a divulgação

do relógio cria um momento em que as pessoas podem

pensar e falar disto.”

A 22 de Janeiro, quando o Bulletin of the Atomic Scien-

tists divulgou o último acerto do Relógio do Apocalipse,

400 mil pessoas acederam ao site (www.thebulletin.org)

da organização quase imediatamente, contou Rachel

Bronson. “Foi muito mais do que nos últimos anos. A

questão nuclear está a tornar-se algo mais próximo. Sen-

timos que há mais interesse do que há dez anos.”

O Relógio do Apocalipse estava na capa do primeiro

número do Bulletin, em 1947, dois anos depois de os EUA

terem bombardeado Hiroxima e Nagasáqui e o mundo

ter visto os efeitos da nova arma que usava a energia

explosiva da cisão dos átomos. O avanço ou recuo dos

ponteiros do relógio é decidido por um painel de cien-

tistas, especialistas em nuclear, desarmamento, armas,

alterações climáticas, que analisam a situação mundial

e fazem uma avaliação de quão perto a humanidade está

de poder aniquilar-se a si própria.

Einstein na origemNesse primeiro ano, faltavam sete minutos para a meia-

noite; 1991, após a queda do Muro de Berlim, e de os

EUA e a ainda União Soviética assinarem o Tratado para

a Redução de Armas Estratégicas (nucleares), foi o ano

em que os cientistas, e o mundo, estiveram mais opti-

mistas: o ponteiro dos minutos recuou até às 23h43. Há

um claro desejo de intervenção política dos cientistas.

“A mudança dos ponteiros do Relógio do Apocalipse é

uma forma de concentrar a atenção das pessoas”, explica

Bronson. “É um mecanismo grosseiro, algo discutível,

que gera discussão: ‘Porque é que acelerámos o relógio?’,

‘Devíamos ou não ter movimentado os ponteiros?’. São

cientistas que acertam o relógio e, no fundo, lançam uma

conversa com o público sobre aquilo que nos ameaça a

todos”, defende.

A intervenção política dos cientistas teve origem nas

cartas escritas por Albert Einstein e pelo físico húnga-

ro Leo Szilard ao Presidente norte-americano Franklyn

Delano Roosevelt, a partir de 1939, alertando para os

esforços do regime nazi para construir uma bomba ató-

mica, e incentivando os EUA a construí-la primeiro. E,

depois da guerra, no que fi cou conhecido como o Mani-

festo Russell-Einstein, em 1955: um apelo aos políticos

a “compreender, e a reconhecer publicamente, que os

seus objectivos não podem ser satisfeitos por uma guerra

mundial”.

O fi lósofo Bertrand Russell foi o impulsionador deste

manifesto, que acabou por ser divulgado já depois da

morte de Einstein, mas num momento em que a ameaça

das bombas de Hiroxima e Nagasáqui se tinha agigantado:

depois de se saber que os soviéticos tinham testado as

suas primeiras bombas atómicas, o Presidente dos EUA

Harry Truman deu luz verde para a construção de bom-

bas termonucleares, mil vezes mais poderosas do que a

bomba atómica. Em vez de usar a energia desencadeada

pela separação dos átomos, a também conhecida como

bomba H baseia-se em reacções tão poderosas como as

que acontecem nas estrelas, onde os átomos de hidro-

génio se fundem, numa reacção em cadeia que liberta

uma energia monstruosa. É verdade que a reacção, hoje,

aos acertos do Relógio do Apocalipse não é tão signifi -

cativa como foi nesse ano. “Mas é até injusto fazer essa

comparação”, defendeu Rachel Bronson. “O mundo está

diferente e o espaço dos media é diferente, mas é claro

que gostamos sempre de ter mais atenção.”

Por Clara Barata

FFim do IRAA 10 de Abril de 1998, o acordo de paz de Sexta-Feira Santa entre a Irlanda do Norte protestante e a República da Irlanda católica acelera o fim das acções terroristas de exércitos independentistas na Europa. É o primeiro passo para o fim do IRA (Exército Republicano Irlandês), católico, que em 2005 entrega as armas, depois de três décadas de acções terroristas. Em 2011, é a vez da ETA (Pátria Basca Liberta), ao fim de meio século de existência, pôr fim às suas acções armadas e declarar um cessar-fogo permanente. S.J.A.

>>>>>>>>>>>>1998

Page 25: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

ntes de 1968, nunca os Jogos Olímpicos de Verão se ti-

nham realizado a mais de 200 metros acima do nível

no mar, mas esses Jogos da Cidade do México foram a

2244m de altitude. A menor concentração de oxigénio

em altitude teve efeitos diversos no programa atlético.

Nas provas de meio-fundo e fundo, as marcas foram de

nível baixo, mas em salto em comprimento, triplo salto

e velocidade bateram-se recordes do mundo. Nenhum

durou tanto como o de Bob Beamon no comprimento

(até 1991), mas falemos apenas dos casos de provas que

são medidas em segundos e não em centímetros.

Só na estafeta masculina de 4x100m, por exemplo,

bateu-se o recorde do mundo por três vezes em três dias,

desde a primeira eliminatória até à fi nal. Como este, há

vários casos de recordes do mundo que duraram apenas

dias ou algumas horas, há outros que parecem eternos.

Entre os recordes do atletismo de pista ao ar livre, mais

maratona, o mais antigo é o de Jarmila Kratochvilova, nos

800m femininos, o mais recente é o de Dennis Kimetto,

na maratona masculina. Um já dura desde 1983 (11.546

dias), o outro foi estabelecido no ano passado (159 dias).

Se em homens e mulheres há recordes de longa duração,

os números mostram que os recordes femininos têm

uma longevidade média de quase o dobro (7007 dias)

em relação aos recordes masculinos (3546 dias).

Se o de Kratochvilova, obtido em 1983 nos Mundiais

de Helsínquia, é o mais antigo, aquele que é considerado

como o mais difícil de ultrapassar é o de Marita Koch nos

400m planos (1985). A atleta da República Democráti-

ca Alemã fi xou a marca da volta à pista em 47,60s em

Camberra, sendo que só mais uma atleta conseguiu uma

marca dentro dos 47 segundos, precisamente Jarmila

Kratochvilova (47,99s). Só para se ter uma ideia de como

as atletas contemporâneas estão longe desta marca, o

melhor registo de 2014, por exemplo, foi da norte-ameri-

cana Francena McCory, quase dois segundos mais lenta

(49,48s) que o recorde de Koch. A marca que deu para a

britânica Christine Ohuruogo conquistar o título mundial

em Moscovo 2013, por exemplo, foi de 48,91s.

Durante a sua carreira, Koch estabeleceu dezenas de

recordes, mas nunca se livrou da suspeita de doping, tal

como os seus colegas da RDA. A velocista nunca teve um

controlo positivo, mas antigos atletas do país já deram os

seus testemunhos quanto à prática sistemática de doping.

“A principal arma eram aqueles comprimidos azuis [o

Turibanol] da Jenapharm, a companhia farmacêutica

estatal”, escreveu nas suas memórias Arne Ljungqvist,

presidente da Comissão Médica do Comité Olímpico

Internacional. Tal como Koch, a checa Kratochvilova

também levantou suspeitas, por só ter aparecido na alta-

roda do atletismo depois dos 30 anos, mas também pelo

seu físico musculado e pouco feminino, o que sugeria o

uso de esteróides.

As mesmas suspeitas rodeiam a norte-americana Flo-

rence Griffi th-Joyner e os seus recordes de 100m e 200m,

estabelecidos em 1988, tal como as marcas das chinesas

Wang Junxia (10.000m) e Qu Yunxia (1500m), ambas

de 1993. A longevidade das marcas e as suspeitas que as

rodeiam já motivaram várias propostas de que todos os

recordes estabelecidos antes de 2000 fossem eliminados

das listas e, embora as evidências do uso de substâncias

dopantes sejam numerosas, fazê-lo seria admitir que

alguns dos grandes nomes da história do atletismo não

passavam de batoteiros.

O mais antigo dos recordes masculinos pertence a Ke-

vin Young, nos 400m barreiras, alcançado nos Jogos de

Barcelona em 1992 e batendo na fi nal o anterior recor-

dista, o lendário Edwin Moses. Apenas mais três foram

alcançados antes de 2000, nos 4x400m (estafeta dos

EUA, em 1993), nos 1500m (Hicham El Guerrouj, 1998) e

nos 400m (Michael Johnson, 1999). Mas há um nome que

aparece três vezes nesta lista, Usain Bolt, detentor das

marcas 100m (9,58s) e 200m (19,19s) planos desde 2009,

e membro integrante do quarteto jamaicano recordista

dos 4x100m em 2012. Há quem dê “Lightning” Bolt como

candidato ao recorde de Johnson para deter o pleno da

velocidade, já que os seus recordes das duas distâncias

mais curtas parecem inatacáveis a curto e médio prazo, a

não ser por ele próprio. Com melhor tempo de reacção e

vento favorável no limite do permitido, ou mesmo bene-

fi ciando da altitude, Bolt poderá, dizem alguns estudos,

fi xar a marca do hectómetro abaixo dos 9,5. Para isso,

talvez baste não abrandar para saudar o público quando

está a cortar a meta muito à frente dos outros.

A

Por Marco Vaza

Os recordesem que o tempoparou

14 recordes mundiais dos 100m na mesma pistaSegundo as listas da Federação Internacional de Atletismo (IAAF), o recorde mundial dos 100m planos no sector masculino foi batido por 62 vezes, a última das quais em 2009 por Usain Bolt. Já o recorde feminino dura desde 1988, estabelecido por Florence Griffith-Joyner, e é o último dos 43 recordes ratificados pela IAAF.

Masculino Feminino

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FONTE: IAAF J.A.

O norte-americano Michael Phelps, actual detentor de sete recordes mundiais

Page 26: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

O tempo na natação é relativo. Olhe-se para o caso de

Johnny Weissmuller, agora provavelmente mais conhe-

cido por ser o Tarzan mais emblemático do cinema, mas

que durante muito tempo foi considerado o melhor na-

dador de sempre. Bateu mais de 50 recordes mundiais

e ganhou todas as 12 corridas em que participou nos

Jogos Olímpicos, conquistando cinco medalhas de ouro.

Tornar-se o primeiro a baixar da barreira do minuto nos

100 metros livres, a prova-rainha da modalidade, foi um

dos pontos altos da carreira do norte-americano. O seu

melhor registo (57,4s) sobreviveu dez anos como recorde

mundial, de 1924 a 1934, e no entanto, para os padrões

actuais, apesar de obtido numa distância de sprint, seria

considerado um tempo lento.

Na natação, os recordes foram mesmo feitos para se-

rem quebrados. O húngaro Zoltán Halmay foi o primeiro

recordista dos 100m livres reconhecido ofi cialmente,

depois de gastar 1m05,8s, em Viena, Áustria, em 1905.

Mais de um século depois, a melhor marca (46,91s) per-

tence a César Cielo, 19 segundos abaixo da de Halmay e

10 abaixo da de Weissmuller. Ou, visto por outro prisma:

se os três competissem simultaneamente, o húngaro e o

norte-americano estariam 28 e 18 metros atrás do brasi-

leiro, respectivamente, quando este atingisse a centena

de metros. Por curiosidade, note-se que o actual recorde

português (49,50s), de Alexandre Agostinho, só não daria

para ganhar a prova nos últimos sete Jogos Olímpicos.

Para um efeito dramático maior, considere-se os 1500m

livres, a maior distância da natação competitiva, na ver-

são piscina longa e no sector feminino. Em 1922, a norte-

americana Helen Wainwright percorreu-a em 25m06,6s.

No ano passado, Katie Ledecky, a rainha da média e longa

distância da actualidade, gastou cerca de menos 10 mi-

nutos (9m38s) do que a sua compatriota. Aos 15m28,36s

da sua performance — tempo que o cronómetro regis-

tou para Ledecky —, Wainwright estava a 576 metros de

completar os 1500m.

Claro que são comparações de coisas pouco compará-

veis. Não se pode fazer paralelismo entre eras. “É tudo

muito diferente e assim será daqui a uns anos”, afi rma

João Paulo Vilas Boas, treinador de natação e professor

de Biomecânica da Faculdade de Desporto do Porto.

A evolução é a norma, não apenas na natação. Há re-

cordes mundiais que foram melhorados mais de 40, 50

ou 60 vezes desde que o primeiro foi registado. Os tem-

pos progrediram radicalmente por várias razões. Somos

mais altos, mais fortes e a era do amadorismo, especial-

mente nas grandes nações da modalidade, fi cou há muito

para trás. Há mais e melhores treinos e as carreiras duram

mais. As alterações de estilo e das regras (a separação

dos bruços e da mariposa nos anos 50, por exemplo)

também infl uenciaram decisivamente o desporto. Assim

como o desenvolvimento tecnológico dos materiais. Até

as piscinas se “tornaram” mais rápidas. Tudo conta para

ganhar um centésimo de segundo — ainda que o “desa-

conselhável” bigode de Mark Spitz, em Munique 1972,

não o tenha impedido de conquistar sete títulos (e todos

acompanhados por recorde do mundo).

Há pouco tempo, assistiu-se ao maior “boom” de re-

cordes da história da natação. Eles sempre caíram com

alguma regularidade, mas muitas marcas tinham con-

seguido sobreviver ao teste do tempo. Os máximos de

Janet Evans nos 400, 800 e 1500m livres e os últimos

de Mary T. Meagher nos 100 e 200m mariposa duraram

todos entre 18 e 19 anos e a holandesa Willy den Ouden

teve o recorde nos 100m livres por 20 anos (1936 a 1956),

entre outros exemplos. Mas nunca num período de dois

anos como entre 2008 e 2009 houve tantos recordes a

caírem. Ajudados pelos fatos de banho compostos de

materiais não-têxteis, como o poliuretano, os atletas na-

daram como nunca. Somente três recordes — todos nos

1500m livres — entre as mais de 80 provas da natação

resistiram à era do vestuário de alta tecnologia.

Entretanto, apesar do regresso a fatos mais convencio-

nais, os nadadores parecem, aos poucos, ter encontrado

maneira de voltarem a superar barreiras. Em Dezembro,

no Mundial de Piscina Curta, no Qatar, foram registados

23 recordes mundiais.

Vivemos para nos ultrapassarmos. Mas há quem de-

fenda que estamos a chegar aos limites da velocidade

que um humano pode atingir na água e que isso, num

futuro próximo, obrigará a uma estagnação das marcas.

João Paulo Vilas Boas, contudo, acredita que os recor-

des continuarão a ser renovados. “Não tenho dúvida.

Estamos na pré-história do conhecimento em todos os

domínios. E no desporto ainda mais. Daqui a 100 anos,

os recordes de hoje já terão desaparecido há muito”.

Só o tempo dirá.Por Manuel Assunção

O Homem continua a quebrar barreiras dentro de água

TIMOTHY CLARY/AFP

Page 27: 20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

Dentro de um tubo em Sacavém vai simular-se a chegada a outros mundos

DR

Desenho do Tubo de Choque e,

em baixo, esta máquina durante a

construção

Um pequeno meteoro em colisão

contra a Terra não sobrevive à re-

sistência da atmosfera. O atrito de-

sintegra-o. Tudo o que fi ca no céu

é um breve risco de luz. Uma nave

que faça a mesma viagem a altas

velocidades pode ter igual destino.

A Agência Espacial Europeia (ESA)

debate-se com este problema: não

tem, para já, tecnologia para missões

de naves a outros planetas e luas ou

que tragam para a Terra amostras de

asteróides ou até astronautas. Mas,

ontem, foi inaugurado um laborató-

rio português pedido pela ESA para

ajudar a obter esta tecnologia.

A nova instalação, em Sacavém,

é agora a maior do país em investi-

gação espacial. Este Laboratório de

Plasmas Hipersónicos pertence ao

Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear

do Instituto Superior Técnico (IST),

em Lisboa.

Aí, vão simular-se as condições

de chegada de objectos à Terra e a

outros planetas e luas. “Uma nave

espacial atinge a velocidade de dez

quilómetros por segundo quando

entra na atmosfera de um planeta”,

diz o responsável pelo laboratório, o

físico Mário Lino da Silva, que usou a

imagem da estrela cadente para ex-

plicar os riscos dessa operação.

Em Sacavém, está agora a ser ins-

talado o Tubo de Choque Europeu

para a Investigação de Alta Entalpia

(ESTHER, sigla em inglês). Neste tu-

bo vai dar-se a colisão entre uma on-

da de choque e uma mistura gasosa

que imita a atmosfera de um planeta.

Pode-se simular ali a atmosfera da

Terra, de Marte ou de Titã, lua de

Saturno, tendo em conta a sua com-

posição e a densidade atmosférica.

Tudo depende das missões da ESA.

No tubo, a energia da onda que se

perde na velocidade é transformada

em calor. A temperatura sobe até mi-

lhares de graus junto da onda de cho-

que e produz plasma, o quarto esta-

do da matéria, em que os electrões

que normalmente andam à volta dos

átomos (que compõem a atmosfera)

libertam-se e passam a andar livre-

mente. Parte da energia do plasma é

libertada em forma de radiação: des-

de radiação ultravioleta, passando

pela luz visível aos olhos humanos,

até aos infravermelhos.

Esta radiação é analisada em se-

guida por uma série de aparelhos no

fi nal do tubo, o que permite ter um

perfi l deste plasma e dar informação

preciosa à ESA, já que pode ajudar a

defi nir o material do casco de uma

nave para entrar numa atmosfera.

“As naves usam materiais ablati-

vos, que ardem devagarinho duran-

te a reentrada”, explica o cientista,

dando como exemplo os já reforma-

dos vaivéns da NASA. Mas o cientis-

ta explica que existe uma diferença

grande entre missões espaciais perto

da Terra, como eram as dos vaivéns

da NASA — que reentravam a cerca

de seis quilómetros por segundo na

atmosfera terrestre —, e uma missão

que traga amostras geológicas de um

asteróide fora da órbita da Terra.

“Se a nave vier de outro planeta e

entrar na Terra, pelas leis da física

essa entrada ocorre a dez ou 12 quiló-

metros por segundo”, diz. Apenas os

EUA fi zeram reentradas a velocida-

des superiores, quando trouxeram

astronautas da Lua, nas várias mis-

sões Apolo, entre 1968 e 1972.

“A Europa ainda não tem essa ca-

pacidade. Com o Tubo de Choque,

é isso que vai ter”, prevê o cientista.

No Laboratório de Plasmas Hipersó-

nicos, o novo tubo permitirá jogar

com a velocidade tanto da onda de

propagação como da composição da

atmosfera e a sua pressão. “É tudo o

que precisamos para simular qual-

quer entrada na atmosfera.”

O tempo de vida do laboratório

será de 20 a 30 anos. E vai responder

a qualquer pedido da ESA. Para já,

estão encomendados testes de “ce-

nários da reentrada terrestre de mis-

sões que vão buscar amostras de solo

a Marte, cometas e asteróides”.

Mas as experiências só se vão ini-

ciar no Verão. Por agora, apenas está

instalada a câmara de alta pressão.

Depois, o tubo de ferro será instala-

do. Devido aos perigos inerentes ao

uso de gases muito explosivos, a sala

do tubo vai fi car separada da de con-

trolo. Tudo num edifício que parece

um bunker, desenhado e construído

para minimizar acidentes.

Segundo Mário Lino da Silva, o

laboratório também servirá para

“aumentar o conhecimento físi-

co dos plasmas”. E pode ser ainda

importante para compreender as

consequências de corpos maiores

que possam atingir a Terra, como o

asteróide que caiu em Cheliabinsk,

na Rússia, em 2013.

O asteróide não matou ninguém,

mas a onda de impacto partiu vidros

e a luz cegou momentaneamente e

queimou (pelos raios ultravioletas

produzidos) várias pessoas. “Esta

instalação está preparada [para estu-

dar] impactos de meteoros”, frisa o

investigador. “Para estudar os danos

que podemos esperar devido à sua

radiação e onda de choque.”

Exploração espacial Inaugurado ontem o Laboratório de Plasmas Hipersónicos, onde está o Tubo de Choque, que servirá para preparar missões da Agência Espacial Europeia a planetas e luas do sistema solar. As primeiras experiências começam no Verão. Por Nicolau Ferreira

Ao todo, o projecto custou dois

milhões de euros: 250.000 euros

do IST destinados à construção de

raiz do edifício e o resto, pago pela

ESA, foi para o Tubo de Choque. O

projecto foi iniciado em 2010, depois

de o consórcio liderado pelo IST ter

ganho o concurso da ESA para a

construção do laboratório. No con-

sórcio “académico-industrial”, como

diz Mário Lino da Silva, participam

parceiros internacionais, assim co-

mo empresas portuguesas como a

ISQ ou a Setofresa e Associados, es-

tando a última a fabricar o Tubo de

Choque.

No laboratório, vão ser observados

fenómenos que duram cerca de 30

milionésimos de segundo. O tubo, de

20 metros de comprimento e 40 to-

neladas, é constituído por duas par-

tes importantes. Por um lado, tem

uma câmara de alta pressão peque-

na, onde ocorrerá a combustão de

hidrogénio, oxigénio e hélio, permi-

tindo a estes gases atingir pressões

de 600 atmosferas terrestres e 2500

graus Celsius. Por outro lado, há o tu-

bo onde se vão injectar os gases que

imitam a composição da atmosfera

de um planeta (a da Terra teria 78%

de azoto, 21% de oxigénio e menos

de 1% de dióxido de carbono). A se-

parar a câmara de compressão e o

tubo há uma membrana fi na.

Depois, esta membrana será rom-

pida e a mistura de gases na câmara

de alta pressão entra no tubo a ve-

locidades que podem atingir os 12

quilómetros por segundo (ou 43.200

quilómetros por hora). É aqui que se

vai dar a onda de choque: ao entra-

rem no tubo, os gases vão sendo tra-

vados pelo atrito criado pela “atmos-

fera” ali recriada, tal como acontece

quando um meteoro ou uma nave

atravessam a nossa atmosfera.

O laboratório custou dois milhões de euros, fi nanciados em grande parte pela Agência Espacial Europeia