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ANPPOM – Décimo Quinto Congresso/2005 1423 ASPECTOS INTERCULTURAIS DA TRANSCRIÇÃO MUSICAL Maria Ignez Cruz Mello [email protected] Departamento de Música - UDESC Resumo: Esta comunicação trata do processo de transcrição musical na etnomusicologia partin- do da etnografia do ritual feminino de iamurikuma, realizado pelas mulheres do grupo in- dígena Wauja, que vivem na região dos formadores do rio Xingu, no Mato Grosso. Esta etnografia faz parte de minha recém defendida tese de doutorado em Antropologia Social, cujo foco está centrado na análise de um extenso repertório de cantos femininos. Ao enfati- zar o método da transcrição musical como um processo eminentemente cultural, chamo a atenção para questões ligadas à percepção musical e à importância do discurso nativo na fundamentação da análise. Palavras-chaves: música indígena, transcrição musical, análise musical. Abstract: This paper discusses the process of musical transcription in ethnomusicology depar- ting from the ethnography of the female ritual iamurikuma, performed by women from the Indigenous group Wauja, who inhabit the region of the Xingu River, Mato Grosso State. This ethnography is a part of my recently defended doctoral dissertation in Social Anthro- pology, whose central focus is the analysis of a large repertoire of female songs. When emphasizing the method of musical transcription as an eminently cultural process, I draw the attention of questions related to musical perception and to the importance the of native discourse in the analysis` foundation. Keywords: Indigenous Music; musical transcription; musical analysis Em trabalho anteriormente apresentado neste congresso (Mello, 2003), tratei da músi- ca executada pelos índios Wauja durante os rituais femininos de iamurikuma, e dos rituais masculinos das flautas kawo . Demonstrei, de modo breve, a similaridade entre tais reper-

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ASPECTOS INTERCULTURAIS DA TRANSCRIÇÃO MUSICALMaria Ignez Cruz Mello [email protected] Departamento de Música - UDESC

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    ASPECTOS INTERCULTURAIS DA TRANSCRIO MUSICAL

    Maria Ignez Cruz Mello [email protected]

    Departamento de Msica - UDESC

    Resumo:

    Esta comunicao trata do processo de transcrio musical na etnomusicologia partin-do da etnografia do ritual feminino de iamurikuma, realizado pelas mulheres do grupo in-dgena Wauja, que vivem na regio dos formadores do rio Xingu, no Mato Grosso. Esta etnografia faz parte de minha recm defendida tese de doutorado em Antropologia Social, cujo foco est centrado na anlise de um extenso repertrio de cantos femininos. Ao enfati-zar o mtodo da transcrio musical como um processo eminentemente cultural, chamo a ateno para questes ligadas percepo musical e importncia do discurso nativo na fundamentao da anlise.

    Palavras-chaves: msica indgena, transcrio musical, anlise musical.

    Abstract:

    This paper discusses the process of musical transcription in ethnomusicology depar-ting from the ethnography of the female ritual iamurikuma, performed by women from the Indigenous group Wauja, who inhabit the region of the Xingu River, Mato Grosso State. This ethnography is a part of my recently defended doctoral dissertation in Social Anthro-pology, whose central focus is the analysis of a large repertoire of female songs. When emphasizing the method of musical transcription as an eminently cultural process, I draw the attention of questions related to musical perception and to the importance the of native discourse in the analysis` foundation.

    Keywords: Indigenous Music; musical transcription; musical analysis

    Em trabalho anteriormente apresentado neste congresso (Mello, 2003), tratei da msi-ca executada pelos ndios Wauja durante os rituais femininos de iamurikuma, e dos rituais masculinos das flautas kawok. Demonstrei, de modo breve, a similaridade entre tais reper-

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    trios atravs do uso de transcries e anlises musicais (Mello, 1999). Em minha tese de doutorado (Mello, 2005) aprofundo o conhecimento sobre este repertrio feminino a partir da anlise de um extenso conjunto de canes do ritual de iamurikuma realizado em 2001, partindo do princpio de que necessrio investigar o material a ser transcrito como produ-o cultural, e que este tem especificidades que esto para alm do texto musical em si. Nesta comunicao, pretendo apresentar alguns dos resultados a que cheguei nestas pes-quisas, enfatizando o mtodo de transcrio musical como um processo eminentemente cultural. Chamo a ateno para o fato de que a percepo musical do pesquisador, elemen-to central no processo de transcrio e anlise, moldada pelos parmetros da msica oci-dental e, desta forma, h que se ter em mente que o pesquisador tem que lidar analitica-mente com uma msica absolutamente estranha a seu sistema matriz. Tais constataes so fundamentais para se atingir um resultado satisfatrio na transcrio musical. Segundo Anthony Seeger, as transcries nunca devem ser um fim em si mesmas, mas sim uma ferramenta para levantar questes (1987:102). Criar partituras para um contexto musical em que os sons no so pensados em termos de grafia nos leva a uma desconstruo da partitura em sua base epistemolgica e cultural. Nesta direo, a reflexo nos conduz a uma interpretao sobre a notabilidade em msica, sobre as conexes entre a grafia musi-cal enquanto instrumento descritivo ou prescritivo (Charles Seeger 1958), sobre as trans-formaes que incidem na msica atravs de uma partitura e sobre como a notao musical pode re-alimentar o prprio objeto que descreve, a saber, as msicas (Zampronha 2000).

    A reflexo sobre a natureza da transcrio musical est presente em diversas obras et-nomusicolgicas, ainda que de forma dispersa (Blacking 1967; Nettl 1964). A importncia da transcrio no estudo e prtica da percepo musical absolutamente central: podemos afirmar, com Gorow (1999), que a transcrio um procedimento-chave para o msico profissional. Mais do que isso, ela um veculo de acesso musicalidade e ao sistema mu-sical nativo, e por isso um procedimento muito empregado na etnomusicologia, tanto em estudos de sociedades tradicionais (Beaudet 1997; Feld 1982; Piedade 1997, 2004; Mello 1999, 2005; Menezes Bastos 1990; Montardo 2002; Coelho 2003) quanto de gneros oci-dentais, como o jazz (Berliner 1994; Monson 1996), ou a msica popular brasileira (Mene-zes Bastos 1996).

    At recentemente, as reflexes sobre a percepo musical geralmente foram marcadas por um reducionismo e universalismo notvel. Ainda nos anos 60, os estudos sobre o tema geralmente tratavam de aspectos fsicos do som e da audio tomando como base o ouvido

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    musical tipicamente ocidental, bem como a msica do Ocidente, e a partir da realizando generalizaes cientficas, em busca de leis para a percepo musical (Winckel 1967; Jeans 1968). Somente nas ltimas dcadas que se deu a constatao de que o ouvido musical muito mais cultural do que biolgico, ou seja, a forma como se ouve msica depende da cultura onde esta msica tem significado.

    Na etnografia do ritual de iamurikuma, atravs de uma descrio densa, busco a apro-ximao do sistema musical Wauja por meio de uma reflexo antropolgica sobre msica. Este estudo est apoiado no paradigma interpretativo que tem suas fundaes filosficas na hermenutica (Oliveira 1988), levando abordagem das dimenses simblicas da ao social. Sob esta perspectiva, a msica um sistema simblico que no apenas codifica a cultura, mas que tambm participa efetivamente na sua transformao. Por isso, a musica-lidade no unicamente uma questo de talento musical, bem como a percepo musical no constitui apenas descries de como fazemos representaes mentais de estruturas so-noras: musicalidade o espao aberto na cultura para a msica, e a percepo musical uma capacidade que se constitui atravs dos significados das formas simblicas de uma cultura. Estes pressupostos conduzem ao tratamento da msica como sistema cultural (Ge-ertz 1998) e da transcrio musical como traduo cultural.

    O ritual de iamurikuma que presenciei teve durao de 80 dias (de 14 de agosto a 1 de novembro de 2001), ao longo dos quais foram registrados cerca de 200 cantos diferentes. Selecionei para transcrever e analisar ao longo da tese 51 cantos femininos, considerados como parte significativa deste repertrio, no sentido de apontar para o sistema musical em funcionamento no ritual. Neste conjunto de cantos, 10 foram classificados como iamuri-kuma, por estarem ligados temtica do mito de origem do ritual, e 41 cantos chamados de kawokakuma, repertrio que guarda semelhanas estruturais com as msicas das flautas kawok. Dentre os cantos de kawokakuma, 22 foram executadas durante um final de tarde tpico, e outros 19 foram cantados durante uma das madrugadas. Tem-se aqui, portanto, no mnimo, dois repertrios distintos (cada qual podendo ser tambm subdividido), tanto no que diz respeito forma quanto ao contedo. As mito-msicas1 iamurikuma so executa-das em momentos solenes do ritual, rememoram passagens pontuais do mito e contam sempre com a participao do chefe ritual para conduzir seu desenrolar, tanto musical quanto coreogrfico. O repertrio de iamurikuma, apesar da austeridade, tambm compor-

    1 Assim como as mito-msicas Marubo, cf. descritas por Werlang (2002), a relao ente o mito e a msica no caso do

    repertrio iamurikuma se d em termos ontolgicos, muitas vezes sendo difcil dividir o conceito.

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    ta, em algumas poucas situaes, brincadeiras e provocaes, como as msicas do morce-go e da perereca. J no repertrio de kawokakuma o norte no o mito mas as paixes Wauja, especialmente o cime-inveja, uki. A estabilidade destes cantos est relacionada quela das msicas das flautas kawok, cuja coerncia temtica constitui unidades nomea-das, como por exemplo, kisoagakipitsana, mepiyawakapotowo, sapal, uialalaka, mututu-te, maiyuwatapi, entre outras, as quais Piedade identifica como sutes nos repertrios das flautas (cf. Menezes Bastos, 1990). Muitas das peas que compe estas sutes fazem parte tambm do repertrio feminino de kawokakuma, mantendo caractersticas similares em termos musicais entre aquelas executadas pelas flautas e as vocais. Portanto, o fato das mulheres afirmarem que seus cantos so msica de flauta2, e nomearem conjuntos tem-ticos de cantos da mesma forma que so nomeadas as sutes instrumentais, esclarece o grau de conscincia que as mulheres tm sobre as sutilezas e especificidades deste repertrio, que, apesar de todos estes cantos serem considerados kawokakuma, so subdivididos de acordo com uma tipologia que mantm relao com aquela das flautas. Estes diferentes tipos de cantos seguem prescries em relao topologia e cronologia, o que significa que determinados cantos s podero ser executados em determinados espaos (centro da aldeia, dentro das casas, etc.) e em partes especficas do dia. Por exemplo: os cantos consi-derados kisoagakipitsana, s sero cantados de madrugada, ou os chamados iapojenejune-lele no podem ser cantados depois que o sol se pe.

    O papel da transcrio musical neste trabalho o de colocar em dilogo algumas uni-dades mnimas das peas musicais, que neste caso so motivos e frases musicais, de modo a compreender o que est envolvido no processo da criao e reproduo musical. Tais unidades so detectadas pelos nativos como fundamentais na constituio e elaborao do repertrio musical. Como pude observar durante os ensinamentos de Kaomo, o mestre flautista, e Kalupuku, a principal cantora da aldeia, so estes motivos que merecem ateno especial durante os ensinamentos, tanto para os demais flautistas (Piedade, 2004:149), quanto para as cantoras de kawokakuma. Assim, v-se que a importncia do uso da trans-crio musical para a anlise deste material recai sobre suas especificidades, visto que o nvel motvico bem observvel atravs das ferramentas de anlise fornecidas pela trans-

    2 Esta afirmao surpreende no apenas por se tratar de uma transposio vocal de um repertrio instrumental, mas prin-

    cipalmente pelo fato das mulheres serem proibidas de ver as tais flautas kawok, sob pena de sofrerem um estupro coleti-vo.

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    crio, o mesmo no poderia ser dito sobre um repertrio cuja caracterstica dominante fosse, por exemplo, a timbrstica3.

    Para economizar espao, utilizei transcries reduzidas seguindo o modelo criado por Piedade em sua anlise da msica das flautas kawok (op.cit.), que pretendem portar as informaes principais, essencialidade que s pode ser encontrada atravs das pistas aber-tas pelo discurso musical nativo.

    Cada pea constituda por um conjunto de temas e motivos. Dependendo da pea, um motivo pode ter poucas ou muitas notas, quando pode ser entendido como uma frase. Os motivos aparecem escritos integralmente somente uma vez na transcrio, nas demais repeties, aparecem apenas as letras correspondentes a eles (a), (b), (c), etc., grafadas so-bre uma linha, e no sobre o pentagrama. Dependendo da pea, cada motivo pode ser, as-sim, curto, com poucas notas, ou no to curto, quase uma frase, sendo designados por letras (a), (b), (c), etc., e podendo ter uma ou mais variaes cada um, designadas por (a), (a), etc. As variaes so entendidas como aplicaes de princpios fundamentais de dife-renciao no interior dos motivos, operaes tais como transposio, pequena alterao intervalar ou rtmica no incio ou no final do motivo, adio ou excluso de uma nota, entre outras. Variaes em conjuntos de motivos, entendidos como frases que constituem os te-mas, so chamadas de transformaes, ocorrendo por mecanismos de incluso e excluso de motivos, ou atravs de variaes nos seus motivos constituintes. importante ressaltar que o que diferencia uma variao de um novo motivo a resposta estrutural desta seqn-cia de notas no interior da pea. Os motivos, portanto, so as partes constitutivas dos temas a que chamei de e . H ainda a frase , que surge geralmente no incio das peas, co-mo separao dos temas e , e ainda no final, correspondendo sempre ao centro tonal das canes. Muitas vezes esta frase aparece duplicada, indicado por .

    O modelo de anlise que adoto inspira-se em Menezes Bastos (1990) e Piedade (2004). Assim como estes autores, tomo o motivo como unidade mnima do estrato sintti-co (cf. Lidov, 1975). Segundo a anlise de Piedade, a idia de motivo, na sua minimalida-de, no pressupe uma economia de movimentao meldica, como o caso na teoria tra-dicional (Schoenberg, 1993 [1967]), mas dada pela sua colocao na estrutura da msica e pelo seu desenvolvimento no interior da pea e, em termos comparativos, nas outras pe-as congneres. Das anlises musicais, destacaram-se vrias operaes fundamentais no mbito motvico da msica de kawokakuma: variao ttica, variao sufixal, fuso, tipo

    3 Este o caso da msica das flautas Jurupari presente entre diferentes grupos do Alto Rio Negro (Piedade, 1997).

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    bordadura, jogo alternante 3M/3m, motivo justaposto de citao, adio, excluso, prolon-gamento rtmico, motivo de dissoluo e motivo de retomada Nota-se em todo o repertrio uma grande importncia dada s terminaes de motivos, frases e temas, bem como ao englobamento do tema pelo tema . No mbito das letras, encontraram-se nexos entre a cano, o mito as paixes, aparecendo algumas temticas recorrentes, como o mote do defeito fsico. Na relao letra-msica, notou-se fatores importantes como a inverso de texto e a flexibilizao rtmica.

    Apresento a seguir, um exemplo de transcrio e anlise de um dos cantos de kawoka-kuma presentes em minha tese.

    Canto para Matsirap Aitsa tsama piykuwehene nuya Matsirap Aitsa tsama piykuwehene nuya Matsirap nelele neputahatayai Piulaga waakunapu Matsirap Aitsa tsama piykuwehene nuya Matsirap nelele neputahatayai Piulaga iyakunapu Matsirap

    Voc no despediu de mim Matsirap Voc no despediu de mim Matsirap Estou chorando no caminho No caminho para o rio Matsirap Voc no despediu de mim Matsirap Estou chorando no caminho No caminho da estrada Matsirap

    Segundo as palavras da cantora Kalupuku, um homem chamado Matsirap foi embora da aldeia, e as mulheres que ele havia namorado ficaram com saudade dele e fizeram esta msica dizendo: "Matsirap, por que voc foi embora sem avisar, sem despedir da gente? Estou triste, chorando. Quando vou pro rio eu choro, quando vou pra roa eu choro, quan-do vou para o Iyakunapu [caminho para o posto de vigilncia] eu choro. Por que voc no avisou?"

    A frase a seguinte (sua altura pode variar de uma pea para outra, de acordo com o centro tonal em questo):

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    A seqncia de temas e motivos deste canto a seguinte:

    Nesta pea ocorre uma operao que surpreende por sua consistncia lgica. A pri-meira vez em que o tema aparece, ele composto pelos motivos (a b a c d), e logo em sua primeira repetio o motivo inicial (a) excludo. O tema aparece ento, e tambm nesta pea o tema no cantado sem letra. Neste ocorre o englobamento de (a d a c d), havendo uma transformao de (d) em (x). Neste caso, o motivo (x) uma flexibiliza-o rtmica de (d). Este processo ocorre em muitas peas, especialmente na adaptao de em , ocorrendo uma passagem de uma rtmica de compasso simples para uma de com-passo composto. Para a notao da flexibilizao rtmica, na transcrio foi necessrio o uso de quilteras.

    O tema baseado nos motivos (e f e f) + b + englobado (a babc xxx), no qual h a excluso de (d) e incluso de (xxx). Pelo equilbrio nos motivos (e f e f ), a tendncia entender (b) como parte includa em . O tema reaparece duas vezes, intercalado por

    , mantendo uma excluso do primeiro motivo (a). Seguem duas repeties de e um final. Ocorre que, na segunda apresentao de , h a excluso de seu cerne (e f e f), res-tando ali somente o tema englobado, aps o que o tema final apresentado, s que com uma incluso de (b): assim, percebe-se o tema aparecendo agora em sua forma inte-gral, (b a b a c d), pela primeira vez, ao final da pea.

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    Quadro resumido da anlise motvica:

    O motivo (x) cantado com o nome de Matsirap, objeto da cano. Seu nome pro-nunciado justamente no motivo que intercala as repeties do tema , e que refora a 2a maior abaixo do centro tonal. Conforme a explicao da cantora, este homem deixou a aldeia, causando saudade em suas namoradas. O esprito da cano , portanto, aquele de uma espcie de romantismo, uma saudade amorosa, uma tristeza apaixonada, bem diferen-te da jocosidade explcita e uki (cime-inveja) que h em outras tantas canes. Esta saudade que atormenta a compositora aparece aqui conforme seu significado para a tica e a patologia Wauja: a saudade perigosa, pois expe o saudoso aos apapaatai4, pois, a pes-soa saudosa deseja o que no pode ter mo. Subjacente ao romantismo do canto, percebe-se uma preocupao em levar este desejo no satisfeito para outro plano, o musical, no sentido de exorciz-lo. Atravs da msica, os Wauja podem exteriorizar e tornar pblico sentimentos ao mesmo tempo conflitantes, quando no expressos, e inadequados para se-rem verbalizados.

    Dizendo de forma sinttica: quero chamar a ateno para a transcrio musical enten-dida como ferramenta analtica que, por meio de seu artifcio descritivo, permite o acesso a determinadas estruturas composicionais que apontam para a lgica de um sistema musical, provendo assim ligaes entre a atividade criativa e a experincia esttica. Sob este prisma,

    4 De modo bastante resumido, explico aqui que os apapaatai so espritos que povoam o cosmos Wauja, e a eles so

    atribudas as causas de muitas doenas. So seres que tm a capacidade de penetrar nos pensamentos dos humanos quan-do estes esto a desejar algo que no podem realizar, incio do processo de adoecimento.

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    a atividade principal da anlise baseada na comparao, isto desde o momento em que se constituem as unidades mnimas de anlise at a construo de modelos abstratos, pois a comparao o ato central da anlise (Bent, 1987). Atravs dela, chega-se ao grau de simi-laridade ou diferena entre unidades discretas, tanto aquelas mnimas, como entre os moti-vos dentro de uma pea, quanto entre unidades maiores, como uma pea dentro de um con-junto maior de peas. Com este recurso se poderia chegar, hipoteticamente, a um conjunto virtual de todas as possibilidades do sistema musical analisado.

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