Fundamentos Filosoficos e Sociologicos Dos Diretios Humanos

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Filosofia

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  • Braslia-DF.

    Fundamentos FilosFicos e sociolgicos dos direitos Humanos

  • Elaborao

    Aline Sabbi EssenburgRogrio de Moraes Silva

    Produo

    Equipe Tcnica de Avaliao, Reviso Lingustica e Editorao

  • Sumrio

    APrESEntAo .................................................................................................................................. 4

    orgAnizAo do CAdErno dE EStudoS E PESquiSA ..................................................................... 5

    introduo ..................................................................................................................................... 7

    unidAdE niCA

    FUNDAMENTOS FilOSFicOS E SOciOlGicOS DOS DiREiTOS HUMANOS ............................................ 9

    CAPtulo 1

    A FilOSOFiA E A HiSTRiA DOS DiREiTOS HUMANOS ................................................................. 9

    CAPtulo 2

    TicA ENqUANTO pRESSUpOSTO DOS DiREiTOS HUMANOS ..................................................... 39

    PArA (no) finAlizAr ...................................................................................................................... 50

    rEfErnCiAS .................................................................................................................................... 51

  • 4Apresentao

    Caro aluno

    A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa rene elementos que se entendem necessrios para o desenvolvimento do estudo com segurana e qualidade. Caracteriza-se pela atualidade, dinmica e pertinncia de seu contedo, bem como pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas metodologia da Educao a Distncia EaD.

    Pretende-se, com este material, lev-lo reflexo e compreenso da pluralidade dos conhecimentos

    a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos especficos da rea e atuar de forma

    competente e conscienciosa, como convm ao profissional que busca a formao continuada para

    vencer os desafios que a evoluo cientfico-tecnolgica impe ao mundo contemporneo.

    Elaborou-se a presente publicao com a inteno de torn-la subsdio valioso, de modo a facilitar sua caminhada na trajetria a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a

    como instrumento para seu sucesso na carreira.

    Conselho Editorial

  • 5organizao do Caderno de Estudos e Pesquisa

    Para facilitar seu estudo, os contedos so organizados em unidades, subdivididas em captulos, de forma didtica, objetiva e coerente. Eles sero abordados por meio de textos bsicos, com questes

    para reflexo, entre outros recursos editoriais que visam a tornar sua leitura mais agradvel. Ao

    final, sero indicadas, tambm, fontes de consulta, para aprofundar os estudos com leituras e pesquisas complementares.

    A seguir, uma breve descrio dos cones utilizados na organizao dos Cadernos de Estudos e Pesquisa.

    Provocao

    Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes

    mesmo de iniciar sua leitura ou aps algum trecho pertinente para o autor

    conteudista.

    Para refletir

    Questes inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faa uma pausa e reflita

    sobre o contedo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocnio. importante

    que ele verifique seus conhecimentos, suas experincias e seus sentimentos. As

    reflexes so o ponto de partida para a construo de suas concluses.

    Sugesto de estudo complementar

    Sugestes de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo,

    discusses em fruns ou encontros presenciais quando for o caso.

    Praticando

    Sugesto de atividades, no decorrer das leituras, com o objetivo didtico de fortalecer

    o processo de aprendizagem do aluno.

    Ateno

    Chamadas para alertar detalhes/tpicos importantes que contribuam para a

    sntese/concluso do assunto abordado.

  • 6Saiba mais

    Informaes complementares para elucidar a construo das snteses/concluses

    sobre o assunto abordado.

    Sintetizando

    Trecho que busca resumir informaes relevantes do contedo, facilitando o

    entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos.

    Exerccio de fixao

    Atividades que buscam reforar a assimilao e fixao dos perodos que o autor/

    conteudista achar mais relevante em relao a aprendizagem de seu mdulo (no

    h registro de meno).

    Avaliao Final

    Questionrio com 10 questes objetivas, baseadas nos objetivos do curso,

    que visam verificar a aprendizagem do curso (h registro de meno). a nica

    atividade do curso que vale nota, ou seja, a atividade que o aluno far para saber

    se pode ou no receber a certificao.

    Para (no) finalizar

    Texto integrador, ao final do mdulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem

    ou estimula ponderaes complementares sobre o mdulo estudado.

  • 7introduo

    Os fundamentos filosficos e sociolgicos dos Direitos Humanos tm recebido significados e

    interpretaes diferenciadas ao longo da Histria, mas em todos se percebe a importncia para o ser

    humano da defesa de seus direitos como valor e como garantia, seja na sua intrnseca constituio,

    seja contra a violao por uma ordem poltica ou doutrinria.

    preciso, ainda, pensar no s polticas pblicas que garantam o acesso de todos aos direitos

    assegurados pela Constituio Federal, como tambm uma cidadania eticamente comprometida com a realidade e a transformao social. Uma poltica de Direitos Humanos, com base na tica e na

    participao cidad, que garanta aos indivduos a condio de ser, no plano econmico, um cidado sadio, no plano poltico, um cidado participante, no plano intelectual, um cidado consciente das relaes de poder, e, no plano da tica, um cidado comprometido com a realidade social.

    Este Caderno, portanto, tem por objetivos proporcionar informaes acerca dos fundamentos

    filosficos e sociolgicos dos Direitos Humanos e orientar os profissionais da rea de Filosofia, para

    que possam desempenhar suas atividades com eficincia e eficcia.

    objetivos

    Conhecer aspectos relevantes da Filosofia e da histria dos Direitos Humanos.

    Reconhecer a tica enquanto pressuposto dos Direitos Humanos.

  • 9unidAdE

    niCA

    fundAMEntoS filoSfiCoS E

    SoCiolgiCoS doS dirEitoS HuMAnoS

    CAPtulo 1A filosofia e a Histria dos direitos Humanos

    Os sujeitos so influenciados pelo modo de vida da sociedade, pelas suas crenas e pelo

    comportamento de seus habitantes. E o grupo o qual esto inseridos, normalmente, no permite

    que atuem de maneira diferenciada e instituda por ele.

    Felix Keesing1, Hoebel e Frost2 dizem que a aprendizagem e a educao desde a infncia, incluindo os sujeitos na esfera social, caracteriza a endocultura. Herskovits3 ainda coloca que endoculturao tambm cabe a estruturao do condicionamento da conduta do sujeito, o que proporciona

    estabilidade cultura.

    O processo endocultural pode ocorrer de maneira formal ou informal. No primeiro caso, o processo contnuo ao longo da vida, e, no segundo, se d de maneira imitativa, nos primeiros anos de vida.

    Herskovits salienta que a endoculturao do individuo nos primeiros anos de vida o mecanismo

    dominante para a formao de sua estabilidade cultural, ao passo que o processo tal como se opera em gente mais madura muito importante na produo da mudana.4

    A criana endocultura-se quando internaliza os princpios das normas que regem a sociedade em que vive, quando passa a pensar e a agir da mesma maneira que os demais. Assim, ela vai se ajustando aos costumes tradicionais da comunidade, integrando-se vida social, tornando-se o

    modelo de sujeito para aquela localidade em especial. O processo se d no mbito coletivo, de

    maneira normativa.

    1 KEESING, Felix M. Antropologia cultural: a cincia dos costumes. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.2 HOEBEL, E. Adamson;FROST, Everett L. Antropologia cultural e social. So Paulo: Cultrix, 1981.3 HERSKOVITS, Melville J. Antropologia cultural: man and his works. So Paulo: Mestre Jou, 1963.4 Idem, p. 56.

  • 10

    UNIDADE NICA FUNDAMENTOS filosficos E SOCIOLGICOS DOS DIREITOS HUMANOS

    Com a endoculturao, os participantes de uma comunidade conscientizam-se e tornam-se coparticipantes da sua cultura, de modo a assimilarem valores, cdigos, hbitos, bem como a

    maneira de compreender o mundo circundante. Desta maneira, o comportamento humano

    orientado desde o nascimento segundo preceitos de uma determinada sociedade.

    Todas as civilizaes esto em constante movimento, a cultura modifica-se lentamente e de maneira

    contnua, e essa mudana de paradigmas ocorre, de acordo com Laraia, de duas maneiras: uma

    que interna, resultante da dinmica do prprio sistema cultural, e uma segunda que o resultado

    do contato de um sistema cultural com um outro. No primeiro caso, a mudana pode ser lenta, quase impercebvel para o observador que no tenha o suporte de bons dados diacrnicos (...).

    O segundo caso, (...) pode ser um processo menos radical, em que a troca de padres ocorre sem

    grandes traumas5. A mudana interna resultante da dinmica interna, lenta, porm alterada por eventos histricos, a externa mais brusca.

    As manifestaes culturais, segundo Bernardi6, ocorre sob a endoculturao (ou enculturao), a

    socializao (ou internalizao) aqui se do os rituais das comunidades e a aculturao aes

    missionrias, revolues, colonizao, um processo em que h a influncia de uma cultura pela

    outra.

    muito difcil que uma cultura fique ilesa outra, principalmente aps o predomnio dos meios de

    comunicao, que facilitam a propagao da informao. O que se deve observar de que maneira se d essa influncia externa, ou melhor, quais os danos causados por ela, isso depende da intensidade

    que o processo ocorre.

    Observamos que a cultura indgena, por exemplo, sofre influncias em um ritmo acelerado,

    acarretando em uma aculturao traumtica. Trauma que se d, inclusive, quando da aplicao das leis, e sabemos que o que afeta a legislao influencia diretamente a vida diria da comunidade.

    A renda indgena a resultante da aplicao de bens e utilidades integrantes do

    patrimnio indgena, sob a responsabilidade do rgo de assistncia ao ndio.

    1o A renda indgena ser preferencialmente reaplicada em atividades rentveis

    ou utilizada em programas de assistncia ao ndio. 2o A reaplicao prevista

    no pargrafo anterior reverter principalmente em beneficio da comunidade

    que produziu os primeiros resultados econmicos.7

    A estrutura econmica indgena , originalmente, outra que a europeia, ou melhor, que a baseada

    em renda monetria, o que demonstra o etnocentrismo das sociedades tidas como brancas. Quanto a este etnocentrismo, Laraia discorre:(...) o fato de que o homem v o mundo por meio de sua

    cultura, tem como consequncia a propenso em considerar o seu modo de vida como o mais correto e natural.8

    Brando conta que os estados da Virgnia e Maryland (EUA) assinaram um tratado de paz com

    os ndios das Seis Naes, e logo depois os americanos enviaram uma carta convidando-os a

    frequentarem a escola, em resposta, est o texto abaixo, divulgado na ocasio.

    5 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropolgico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. p.100.6 MARTINEZ, Francisco Lerma. Antropologia Cultural Guia Para o Estudo. Maputo: Ed. Paulinas, 2003.7 Art. 43o8 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropolgico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. p. 74.

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    FUNDAMENTOS FilOSFicOS E SOciOlGicOS DOS DiREiTOS HUMANOS UNiDADE NicA

    (...) Ns estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem

    para ns e agradecemos de todo o corao. Mas aqueles que so sbios

    reconhecem que diferentes naes tm concepes diferentes das coisas

    e, assim, os senhores no ficaro ofendidos ao saber que a vossa ideia de

    educao no a mesma que a nossa. Muitos dos nossos bravos guerreiros

    foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa cincia.

    Mas, quando eles voltavam para ns, eles eram maus corredores, ignorantes

    da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. No sabiam

    como caar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam

    a nossa lngua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inteis. No

    serviam como guerreiros, como caadores ou como conselheiros. Ficamos

    extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora no a possamos

    aceitar, para mostrar a nossa gratido, oferecemos aos nobres senhores de

    Virgnia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo

    o que sabemos e faremos deles homens.9

    Os sujeitos veem o mundo de acordo com seus preceitos culturais. Este fato acarreta na

    propenso do indivduo em ter como legtima a sua maneira de habitar o mundo, o que faz com

    que, frequentemente, deprecie o comportamento alheio sua comunidade. De fato, no h como

    justificar, cientificamente, a supremacia de uma cultura.

    tempos o homem buscou compreender o comportamento humano, e o fez amparado nas

    diferenas genticas e geogrficas, mas j sabido que as caractersticas biolgicas no determinam

    as diferenas culturais. Uma criana, por exemplo, adquirir hbitos da localidade onde vive, e

    no de onde nasceu. Em determinadas comunidades, as mulheres exercem atividades que so, em

    outros grupos sociais, de responsabilidade dos homens.

    O ambiente fsico tambm no determinante das diferenas culturais. No norte da Europa,

    por exemplo, vivem os lapes e, no norte americano, os esquims. Apesar de habitarem lugares

    muito parecidos, possuem comportamentos e modos de vida diferentes. Os iglus dos esquims so

    construdos em forma de colmeia, dentro so colocadas peles de animais, e o local aquecido pelo

    fogo. Eles se mudam levando consigo apenas seus pertences, e constroem uma nova moradia. As

    tendas dos lapes so feitas de peles de renas, que eles mesmos criam. Em uma mudana, eles levam

    tudo para outro local.

    De fato, no somos frutos de causalidades, afinal, temos nossa liberdade, e esta se d de maneira

    efetiva quando vivenciamos as situaes. Diante disso, Merleau-Ponty apenas descreve o que lhe

    aparece no mundo, no as explica nem realiza anlises, isso seria agir cartesianamente, como se

    estivesse vendo tudo do lado de fora. E o que o filsofo quer justamente viver, vivenciar antes de

    refletir, apenas desta maneira possvel a compreenso do mundo objetivo, este, sim, pode receber

    as categorias lgicas.

    9 BRANDO, Carlos Rodrigues. O que educao. So Paulo: Brasiliense, 1993. pp. 8-9.

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    UNIDADE NICA FUNDAMENTOS filosficos E SOCIOLGICOS DOS DIREITOS HUMANOS

    O comportamento dos sujeitos depende da endocultura, de um processo de socializao, de educao,

    e no da transmisso gentica ou do ambiente em que esto inseridos. a cultura o determinante comportamental dos sujeitos, resultados do meio em que vivem. Quando a cultura transformada,

    com a criao de novos significados e novas regras ou novas maneiras de se fazer algo, a vida em

    sociedade modifica-se tambm.

    De fato, o homem um ser cultural, que ultrapassa sua condio orgnica, podendo se adaptar a

    qualquer outro meio. Um sujeito que mora em lugares de climas frios, pode substituir seus casacos

    por roupas mais leves em ambientes mais quentes. O meio de adaptao do homem a cultura, e

    no seu corpo, isso aconteceu com diversos outros animais ao longo da evoluo, acarretando na modificao das espcies.

    Kultur, palavra germnica, referia-se aos aspectos espirituais, civilization, palavra francesa, norteava as realizaes materiais de uma comunidade. Foi com Edward Tylor que a palavra inglesa

    culture ganhou amplitude ao unir as duas perspectivas, etnograficamente. A partir dessa definio, o antroplogo denota o carter de aprendizado cultural, opondo-se ideia de aquisio inata.

    Kluckhohn tambm pensou no conceito de cultura.

    1. O modo de vida global de um povo.

    2. O legado social que o indivduo adquire do seu grupo.

    3. A forma de pensar, sentir e acreditar.

    4. A abstrao do comportamento.

    5. A teoria, elaborada pelo antroplogo, sobre a forma pela qual o grupo de pessoa se comporta realmente.

    6. O celeiro de aprendizagem em comum.

    7. O conjunto de orientaes padronizadas para os problemas recorrentes.

    8. O comportamento aprendido.

    9. O mecanismo para regulamentao normativa do comportamento.

    10. O conjunto de tcnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo quanto em relao aos outros homens.

    11. O precipitado da histria.10

    H uma dimenso simblica na organizao de um grupo, que Geertz demonstra ao conceituar

    a cultura de maneira semitica, como uma teia de significados que o sujeito mesmo tece em

    sua volta.

    10 GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. p. 14.

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    FUNDAMENTOS FilOSFicOS E SOciOlGicOS DOS DiREiTOS HUMANOS UNiDADE NicA

    O conceito de cultura que eu defendo, (...) essencialmente semitico. Acredito,

    como Max Weber, que o homem um animal amarrado a teias de significados

    que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua anlise;

    portanto, no como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma

    cincia interpretativa procura do significado.11

    Tylor12 formulou o conceito de cultura no mbito antropolgico, em que inclui conhecimentos,

    crenas, leis, costumes, alm da moral, da arte, ou seja, hbitos adquiridos enquanto participante

    de uma sociedade. Esta noo de cultura tem razes no Iluminismo, com John Locke, que, em 1690,

    concebeu a mente do homem como uma caixa vazia no seu nascimento que obtinha conhecimento

    de forma ilimitada, por meio da endoculturao. Para Tylor, o maior responsvel pela cultura a

    educao, o aprendizado.

    vlido salientar que a cultura cumulativa, ou seja, repassada por meio de geraes, e inovada

    quando necessrio; uma ao social. Turgot j dizia que os sujeitos tm a capacidade de multiplicar

    signos, de reter seus pensamentos, divulg-los aos demais homens, inclusive para seus descendentes,

    como um legado infinitamente crescente.

    A histria humana comprova-se na cultura, por isso valem algumas palavras a respeito da evoluo

    do homem, cujo entendimento se deu depois das viagens intercontinentais no sculo XVIII, com o

    contato e as trocas simblicas e comerciais.

    A noo de monogenia surge a partir da perfectibilidade rousseauniana, que consistia em estgios

    em que estariam os seres humanos, que iam dos menos avanados, os chamados primitivos, aos

    mais avanados, que seriam as civilizaes. Cada sujeito estaria em um lugar neste processo,

    prova disso so suas dessemelhanas. A teoria poligenista acreditava na diferenciao intensa dos

    homens, tanto fsica quanto moral, que se davam dependendo do centro de criao.

    A Lingustica, a Pedagogia, a Sociologia, a Filosofia, a Poltica, enfim, vrias reas, pautaram-

    se na teoria evolucionista de Darwin13, enquanto Herbert Spencer elaborou um pensamento

    sobre as raas a partir do darwinismo social, em que legitimava a dominao tnica, uma vez que

    condenava a miscigenao.

    Podemos ver as ideias do darwinismo social de Spencer na obra Os sertes (1902), de Euclides

    da Cunha, tambm nos trabalhos de Nina Rodrigues, que influenciou a historiografia brasileira

    na anlise da guerra de Canudos.

    11 Ibidem, p 15.12 TYLOR, Edward Burnett. Primitive culture. London: Jonh Murray, 1967 (1871).13 A teoria darwinista pautada na evoluo das espcies. Aqui, os mais adaptados ao meio sobrevivem e geram descendentes, os

    demais morrem antes mesmo de procriarem. A cada gerao, indivduos so selecionados naturalmente, e suas caractersticas aprimoram-se e evoluem com o passar dos anos. A teoria evolutiva de Charles Darwin coloca, portanto, que os mais adaptados tm mais chances de sobrevivncia e de deixar mais descendentes.

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    UNIDADE NICA FUNDAMENTOS filosficos E SOCIOLGICOS DOS DIREITOS HUMANOS

    Guerra de canudos - artista desconhecido.

    A guerra de Canudos14 demonstrava, na viso de seu autor, o aprimoramento da raa brasileira com a figura do sertanejo, opondo-se ao negro e ao ndio litorneo. A fora da nao estaria na

    miscigenao, por isso as trs primeiras expedies a Canudos teriam fracassado (formadas por

    descendentes de negros e ndios). O Brasil poderia chegar ordem e ao progresso positivista e

    republicano por meio da miscigenao, acreditava Euclides da Cunha.

    Desconsidera a soberania da raa branca como o representante legal dos brasileiros sobretudo em Os Sertes, uma vez que era necessria a miscigenao, pois os brancos no eram numerosos e

    estariam por desaparecer. Mas o literato coloca que a mistura deveria se dar de maneira uniforme, a fim de amenizar os prejuzos causados a tal prtica. Embasado nas ideias de Spencer, o escritor

    defende a inexistncia de um homem positivista, mas, sim, de um sujeito circunstancial.

    Para Euclides da Cunha, as raas eram enfraquecidas pela mestiagem, que tornou os litorneos

    degenerados e os sertanejos retrgrados. Mas admitia que esses ltimos eram fortes e suportavam

    de maneira desigual o ambiente seco e sem gua; eram rudes, porm serenos.

    Gilberto Freyre15, na dcada de 1930, retomou este pensamento com a publicao de Casa Grande e Senzala (1933), quando discorre sobre a formao colonial e patriarcal brasileira, aps a ocupao

    14 A guerra de Canudos ocorreu entre os moradores do Arraial de Canudos os jagunos, as pessoas sem renda, pobres e miserveis e os fanticos religiosos sob o comando de Antnio Conselheiro e as tropas do governo baiano juntamente com militares federais.

    O governo da Bahia e os latifundirios da regio estavam descontentes pelo fato de a comunidade de Canudos viver de acordo com seus preceitos, alm de no contribuir monetariamente com o governo, ou seja, no pagarem impostos. De fato, Antnio Conselheiro defendia a abolio dos tributos e do casamento civil, alm de ser contrrio repblica. Ele se dizia um enviado de Deus no dever de lutar contra as diferenas e injustias sociais.

    Aps derrotar trs expedies militares em Monte Santo, no conseguiu vencer a batalha em abril de 1897, quando lutaram 17 estados brasileiros com cerca de 3400 homens, matando 25 mil de seus seguidores no ms de agosto. Esta se deu com armas pesadas, massacrando de maneira brutal os moradores de Canudos, incluindo crianas, mulheres e idosos. Conselheiro foi assassinado em setembro do mesmo ano.

    A guerra de Canudos tida como a luta e resistncia dos marginalizados sociais no serto nordestino, em favor de uma justia que deveria se fazer presente em uma sociedade.

    15 Sobrados e Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1957), tambm de Gilberto Freyre, contriburam de maneira exmia para a Histria do Brasil.

  • 15

    FUNDAMENTOS FilOSFicOS E SOciOlGicOS DOS DiREiTOS HUMANOS UNiDADE NicA

    portuguesa no litoral nordestino, dando nfase aos primeiros duzentos anos da explorao da

    cana-de-acar como projeto mercantilista.

    O primeiro captulo trata da formao escravocrata e hbrida no Brasil; o segundo fala do ndio

    como contribuinte para a formao da famlia; o terceiro discorre acerca do colonizador portugus

    como quem gerencia a colonizao. No quarto e quinto captulos, o escritor vem tratar do negro, sobretudo o africano. De fato, o negro e o mestio so colocados em evidncia por Gilberto Freyre,

    embora este coloque o primeiro com o dever de obedincia perante os colonizadores.

    O negro , tambm, responsvel pelo trao dionisaco do carter brasileiro; ele que ameniza o

    apolneo presente no amerndio, marca to patente em seus rituais. A dana, por exemplo, nos

    primeiros tem carter sensual, enquanto nos segundos puramente dramtica. A alegria do africano contrabalanou o carter melanclico do portugus e a tristeza do indgena. A alegria e a bondade

    do africano so em grande parte responsveis pela doura que marca as relaes senhor/escravo no

    Brasil.16

    O autor coloca que o processo da cultura escravagista no nordeste se deu de maneira dcil, pois

    as trs etnias portuguesa, indgena e negra se complementavam. Os portugueses nostlgicos precisavam da alegria dos negros e da tristeza dos indgenas, a originou a verdadeira populao tropical.

    Vista do Recife antigo, por J. Moritz Rugendas.

    16 BASTOS,Elide Rugai. Casa-grande & senzala. In: Introduo ao Brasil. Um banquete no trpico.Loureno Dantas Mota (Org.). So Paulo: Senac, 2004. p.231.

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    UNIDADE NICA FUNDAMENTOS filosficos E SOCIOLGICOS DOS DIREITOS HUMANOS

    Moinho de cana-de-acar em Minas Gerais, por J. Moritz Rugendas.

    A crtica histrica sociocultural tambm est em Cndido Portinari, que coloca o negro como

    responsvel primordial pelo desenvolvimento da sociedade brasileira, pela formao da nao. A fim de representar o homem do Brasil, o artista realiza a obra Mestio, em que denuncia o trabalho escravo, encontrado, ainda, em muitas regies brasileiras. No podemos deixar de observar as

    unhas escuras do personagem, em detrimento de lavrar a terra poca colonial, imperial ou em

    tempos atuais. De fato, muitos trabalhadores so leigos aos meios de produo e sequer chegam s

    suas mos os mritos de seu trabalho.

    Mestio (1934).

  • 17

    FUNDAMENTOS FilOSFicOS E SOciOlGicOS DOS DiREiTOS HUMANOS UNiDADE NicA

    Nina Rodrigues, responsvel por Mestiagem, desgenescncia e crime e analista do crnio de Antnio Conselheiro no divide do mesmo pensamento. Ele acreditava que os negros e mestios

    atrasavam o desenvolvimento brasileiro, uma vez que a elite se constitua pelos brancos de origem ariana. A populao brasileira (mestia), ento, precisava ser guiada por outros pases, o que de fato

    acontecia, pois a populao no tinha coeso enquanto comunidade.

    Nina Rodrigues apoiou-se no cientificismo ao vincular o darwinismo social ao conceito de raa,

    acarretando em uma teoria racista que, no final do sculo XIX, fez nascer a ideia de branqueamento

    da populao e a marginalizao dos demais grupos, embora, na concepo de Spencer, a coeso do grupo estava vinculada aos aspectos culturais, no raciais.

    Alm de Nina Rodrigues, Slvio Romero e Oliveira Vianna concebiam que os problemas sociais eram

    decorridos da gentica de partes da populao, no caso, a herana cultural africana. A mestiagem,

    segundo as ideias destes autores, era danosa ao pas, pelo fato de gerar sujeitos defeituosos fisicamente

    e de carter duvidoso. Manoel Bomfim17, em A Amrica Latina, Males de Origem (1905), denuncia que a verdadeira barreira estava mesmo na herana escravista portuguesa.

    A respeito do processo evolutivo humano, Morgan18 procura classificar os perodos histricos de

    maneira mais expandida possvel. A filosofia da histria tida como devir, em suas palavras, A

    histria da raa humana uma s na fonte, na experincia, no progresso.19 Morgan encontrou-a na unilinearidade de trs estgios evolucionistas da humanidade: a selvageria, a barbrie e a civilizao.

    vlido ressaltar que o autor coloca ser possvel haver diferentes graus de desenvolvimento em um

    mesmo estgio.

    De fato, a teoria evolucionista orientou a Antropologia, porm foi abandonada ao se analisar civilizaes no europeias.O homem caracteriza-se por sua cultura, uma vez que transcende e

    transforma a natureza, recriando de maneira constante o mundo, deixando nele suas impresses,

    suas marcas. dessa maneira que ele se humaniza.

    Quando o homem intervm no mundo, seja de maneira artstica, social, lingustica ou por meio

    de seu comportamento, est produzindo cultura. Esta seria o conjunto de significados circundante

    ao sujeito. Merleau-Ponty20 coloca que o mundo retomado em nossa vida simblica, por isso

    possvel entendermos quando um sentido expresso ao nos depararmos com uma pintura ou um

    livro, por exemplo.

    H um aspecto corporal da fabricao de significados e da instaurao da atuao intersubjetiva;

    por um vis, uma obra artstica se d enquanto expresso da natureza criativa, em forma de pintura,

    msica, poema; por outro, a manifestao do artista, ele e sua histria e cultura.

    Dessa maneira, segundo Merleau-Ponty, d-se o ineditismo da expresso, enquanto uma ao

    criadora, que reclama por sua continuidade e por sua retomada. Essa fala do filsofo no deixa de se

    17 BOMFIM, Manoel. A Amrica Latina: males de origem. Parasitismo social e evoluo. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993.18 MORGAN, Lewis Henry. A sociedade antiga ou investigaes sobre as linhas do progresso humano desde a selvageria, atravs

    da barbrie, at a civilizao. In: EVOLUCIONISMO CULTURAL. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.19 CASTRO, Celso. Apresentao, in: MORGAN, Lewis Henry. Evolucionismo cultural. Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de

    Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 44. 20 MERLEAU-PONTY, Maurice. Le visible et linvisible: suivi de notes de travail. Paris: Gallimar, 1986. p. 175.

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    UNIDADE NICA FUNDAMENTOS filosficos E SOCIOLGICOS DOS DIREITOS HUMANOS

    configurar em uma teoria esttica, quando denuncia o prprio sentido de uma pintura, por exemplo,

    como expresso que est nela prpria.

    Porm, devemos observar que no h uma irracionalidade, mas uma razo operante e criadora,

    sempre inacabada, que solicita que o outro dela participe. Por isso o mundo deve ser habitado,

    vivido, pois ele no nos exterior, um est imbricado no outro, o mesmo estofo constitui a ambos.

    Assim, Merleau-Ponty est procura da universalidade caracterstica dos artistas, produzida com

    entrelaos, dirigindo-nos para as aes operantes no mundo. neste sentido que prope uma

    verticalidade que desconstri o espao representativo. Verticalidade esta que permite uma ontologia

    do ser da no diviso.

    A linguagem, o trabalho e os valores ajudam a padronizar o comportamento de uma sociedade.

    Enquanto os sujeitos geram significados, agem e valorizam, constroem o mundo e fazem-se presentes

    na natureza, e, assim, podem pensar e organizar o social, produzindo humanidade.

    O homem enche de cultura os espaos geogrficos e histricos. Cultura tudo

    o que criado pelo homem. Tanto uma poesia quanto uma frase de saudao.

    A cultura consiste em recriar e no repartir. O homem pode faz-lo porque

    tem uma conscincia capaz de captar o mundo e transform-lo. (...) O homem

    no , pois, um homem para a adaptao. A educao no um processo de

    adaptao do individuo sociedade.21

    O fator cultural o que imprime a maneira do sujeito de estar no mundo, e esta maneira adquirida

    na convivncia social, quando se efetuam trocas simblicas. Karl Jaspers diz que o homem no

    assim um ser fechado em si mesmo. A autorrealizao da existncia humana se processa, portanto,

    na comunicao e no encontro com o outro atravs do dilogo.22 Gabriel Marcel aponta que o encontro com a vida se d quando o homem encontra-se consigo mesmo. Mas esse encontro s

    possvel por meio do dilogo, isto , por meio do outro que o homem se descobre ou se afirma

    plenamente como pessoa.23

    Criamos e recriamos o mundo por meio de prticas socioculturais. A educao acontece quando h

    relaes entre as pessoas, independente do ambiente fsico em que se encontram. Em qualquer local

    pode ocorrer o aprendizado, acontecendo a endoculturao.

    A educao tida como endoculturao promove a convivncia social, com discusses sobre valores,

    crenas, smbolos. Assim, o sujeito educa-se com os outros acontecimento pessoal e pelos outros

    acontecimento social. A cultura em que aprendemos a viver foi criada pelas geraes anteriores

    nossa, por isso os sujeitos se fazem humanos e educadores.

    Com isso, podemos pensar que homens e mulheres se tornam humanos

    quando podem experimentar em suas vidas a possibilidade de falar e de

    escutar os outros, de expressar-se e perceber os outros, de sentir-se e de sentir

    os outros integralmente: como seres simblicos, produtivos, sensveis, morais

    21 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 30.22 OLIVEIRA, Admardo Serafim. Introduo ao pensamento filosfico. So Paulo: Loyola, 1983. 23 Idem.

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    FUNDAMENTOS FilOSFicOS E SOciOlGicOS DOS DiREiTOS HUMANOS UNiDADE NicA

    e polticos. Podemos pensar, tambm, que homens e mulheres vm a ser o que

    so pela educao de que participam com outros homens e mulheres.24

    No h sociedade sem os indivduos, e no se faz cultura sozinho. O homem precisa do outro, s

    assim pode construir uma sociedade. A cultura a personalidade social e a endocultura seria a personalidade individual, uma totalidade interna do sujeito.

    A endoculturao de uma pessoa coloca-a em uma cultura, com regras de conduta, mas no aniquila a sua individualidade. Comportamentos grupais no impedem que o indivduo se comporte de maneira singular. Na verdade, os padres de uma cultura podem enriquecer a endocultura. Cultura

    e endocultura inter-relacionam-se. O homem torna-se singular por um processo consciente, como

    aponta Jung25, e, assim, torna-se um agente efetivo do desenvolvimento.

    O homem no est no mundo apenas para contemplar o real e receber informaes, mas um

    agente ativo. S com sua relao efetiva com o circundante pode haver a endoculturao, que se d

    em um processo dinmico. Vygotsky falava que o processo de apropriao do conhecimento se d

    nas relaes reais do sujeito com o mundo e que essas relaes no dependem da conscincia do

    sujeito individual, mas so determinadas pelas condies histrico-sociais concretas nas quais ele

    est inserido e tambm pelo modo como sua vida se forma nessas condies.26

    O sujeito individualiza-se ao socializar-se, pois quando age que passa a existir culturalmente,

    quando se inter- relaciona que pode se expressar, tornando-se singular.

    A aprendizagem tem por objetivo socializar o sujeito, por meio de hbitos, costumes e valores

    convencionados pelo coletivo. Pela educao so repassados os saberes que constituem e legitimam o homem como ser social.

    A finalidade da educao favorecer, a partir das mudanas que causa, o desenvolvimento dos

    sujeitos e, consequentemente, da comunidade em que vivem. Ressaltamos que ela procura atingir

    todos os aspectos da vida humana, bem como tornar o homem mais participativo socialmente.

    por meio da educao que h a transmisso e a conservao da cultura, podendo ser tambm

    transformada. De fato, a cultura transforma o homem e vice-versa, e ambos se modificam por meio

    da educao.

    vlido notar que Paulo Freire valoriza a cultura popular no meio escolar27, como luta contra a discriminao, dando a devida importncia aos grupos sociais menos favorecidos em detrimento da cultura erudita. Mas essa prtica est longe de acontecer de maneira satisfatria, a populao

    marginal ainda obedece as leis das elites.

    24 BESSA, Dante Diniz. Homem, pensamento e cultura: abordagem filosfica e antropolgica. Braslia, 2005. p. 77.25 JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrpolis: Vozes, 1995.26 VYGOTSKY, L. S. A formao social da mente. So Paulo: Martins Fontes, 1999.27 A escola relaciona-se com a comunidade, construindo identidades pessoais, sociais e culturais. A escola transmite os saberes,

    os elementos culturais, que so necessrios para participar da vida em sociedade, conforme divises de trabalho, poder e saber. Na escola, vivemos nosso mundo, o mundo dos outros e compartilhamos, pensamos, imaginamos, planejamos, projetamos, criamos outros mundos juntos. Na escola, produz-se, transmite-se e cria-se cultura, aqui ocorre a incluso cultural. Ela possibilita condies para que o sujeito possa ver o mundo, alm de desconstru-lo e reconstru-lo. Um indivduo educado pode obedecer aos costumes, como adotar um posicionamento crtico e autnomo em relao ao j dado. BESSA, Dante Diniz. Homem, pensamento e cultura: abordagem filosfica e antropolgica. Braslia, 2005.

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    De fato, programas governamentais no atendem s necessidades nem oferecem condies para

    a melhoria da educao. O Estado parece contrrio aos interesses populares, uma vez que est

    comprometido com as classes mais abastadas. H tambm o trabalho infantil, a violncia urbana,

    os baixos salrios que prejudicam a educao eficiente.

    No h como negar que o fator socioeconmico e poltico interferem na educao, que tem uma

    responsabilidade importante no desenvolvimento da sociedade; ela , de fato, uma prtica social.

    O papel da educao cresce cada vez mais no mundo multicultural globalizado, informatizado, com discusses acirradas sobre gnero e raa, que configuram um cenrio poltico, cultural e social

    inusitado.

    Quando se fala em educao, os antroplogos nem sempre esto se referindo aos processos

    formadores de ensino, mas a processos sociais de aprendizagem. Nas aldeias indgenas, por exemplo, o saber passa da confeco de utenslio para a pesca e caa aos rituais sagrados e toda

    relao com a natureza tida como de aprendizagem. Os adultos guiam as crianas e assim as ensinam a executarem suas tarefas no cotidiano.

    Cada tipo de grupo humano cria e desenvolve situaes, recursos e mtodos

    empregados para ensinar s crianas, aos adolescentes, e tambm aos jovens e

    mesmo aos adultos, o saber, a crena e os gestos que o tornaro um dia o modelo

    de homem ou mulher que o imaginrio de cada sociedade ou mesmo de cada

    grupo mais especfico, dentro dela idealiza, projeta e procura realizar.28

    A socializao realiza em cada sujeito o que precisam para serem reconhecidos como integrante de

    uma comunidade, isto , para existirem perante ela. Em outras palavras,a educao um processo

    endocultural, que acontece nas trocas simblicas, de intenes, de relaes de poder, auxiliando o

    homem em seu desenvolvimento.

    A natureza do homem, na sua dupla estrutura corprea e espiritual, cria

    condies especiais para a manuteno e transmisso da sua forma particular

    e exige organizaes fsicas e espirituais, ao conjunto das quais damos o nome

    de educao. Na educao, como o homem a pratica, atua a mesma fora vital,

    criadora e plstica, que espontaneamente impele todas as espcies vivas

    conservao e propagao de seu tipo. nela, porm, que essa fora atinge

    o seu mais alto grau de intensidade, pelo esforo consciente do conhecimento

    e da vontade dirigida para a consecuo de um fim (...). Quando um povo

    alcana um estgio complexo de organizao da sua cultura; quando ele

    enfrenta, por exemplo, a questo da diviso do trabalho e, portanto, do poder,

    que ele comea a viver e a pensar como problema as formas e os processos de

    transmisso do saber.29

    28 BRANDO, Carlos Rodrigues. O que educao. So Paulo: Brasiliense, 1993. p. 22.29 Idem, pp. 14-16.

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    Brando coloca a cultura como sendo a natureza transformada pelo trabalho do homem, um saber

    que se acumula e repassado. A endoculturao a socializao cultural dos integrantes de um determinado grupo, o conhecimento que se d pela experincia com o mundo e com o outro. A

    educao seria a conduo do sujeito.

    O mundo e o homem no significam nada isoladamente, necessrio que haja o relacionamento

    entre eles, e a educao fomenta a instaurao de significados. O sujeito no possui significado por

    si s, os objetos tambm no; no h objeto em si, conforme ideias merleau-pontyanas, o significado

    est na relao, no momento em que coexistem o mundo, as coisas e os sujeitos, ento ocorre o

    engajamento.30

    Ele ainda coloca que uma cor no existe em si mesma, mas sempre atrelada a um objeto. No

    conseguimos pensar somente no vermelho, mas no vermelho de uma cadeira ou de uma roupa.

    Uma obra de arte possui um sentido, que nada mais que uma fenda da vida do sujeito criador

    em direo ao outro, em uma intersubjetividade. Ao olhar os objetos, damos sentido a eles como

    coisas vistas. Mas quando nos deparamos com um sujeito e tentamos dar o mesmo sentido, ele se

    esquiva e no se deixa apreender como tal, pelo fato de no ser algo simplesmente dado, uma vez

    que ele tambm olha o mundo, seu participador. Est em nosso campo de viso, fazendo-se sujeito

    para ns, assim como nos tornamos para ele. Notamos seus movimentos e percebemos que so

    gestos de algum semelhante. Isso acontece porque ele, sua gestualidade e seu corpo no so objetos

    simplesmente, mas pertencem viso, ao nosso mundo, que tambm dele.

    Para que haja um relacionamento com o outro, o homem criou a linguagem, ou seja, smbolos para

    a efetivao de um dilogo. No momento em que houve a expresso da primeira significao do

    indivduo, apareceu a contingncia da lngua ser criada, afinal, aqui se d a comunicao, quando

    h comuns significaes. Somos atuantes quando nos comunicamos, e o outro se une a ns nessa

    empreitada. Porm, a comunicao no se d a olhos vistos, mesmo que no meio de ns.

    O fato de podermos atingir o outro e de tambm ele poder fazer o mesmo chamamos de dilogo, e

    a linguagem a ligao da intercomunicao. A fala no se d somente como uma funcionalidade, como se fosse regida por uma lei externa a ela. H inmeros codados para cada vocbulo, e, em uma

    intencionalidade, reavemos o passado, uma vez que o termo abre-se para o outro, e a sua palavra retoma a nossa. E sabemos que ele nos compreende simultaneamente com o entendimento que dele temos. Mas isso no quer dizer que samos de nosso corpo e entramos em outro, como em uma

    nova casca, isso s faria aparecer um segundo sujeito, idntico ao primeiro. Assim como podemos

    toc-lo por nossas palavras, as manifestaes corporais dele tambm nos penetram, como se o

    30 Ainsi la chose est le corrlatif de mon corps et plus gnralement de mon existence dont mon corps nest que la structure stabilise, elle se constitue dans la prise de mon corps sur elle, elle nest pas dabord une signification pour lentendement, mais une structure accessible linspection du corps, (...) La chose ne peut jamais tre separe de quelquun qui la peroive, elle ne peut jamais tre effectivement en soi parce que ses articulations sont celles mmes de notre existence et quelle se pose au bout dun regard ou au terme dune exploration sensorielle qui linvestit dhumanit.

    Assim, a coisa o correlativo de meu corpo e, mais geralmente, de minha existncia, da qual meu corpo apenas a estrutura estabilizada; ela se constitui no poder de meu corpo sobre ela, ela no em primeiro lugar uma significao para o entendimento, mas uma estrutura acessvel inspeo do corpo (...) A coisa nunca pode ser separada de algum que a perceba, nunca pode ser efetivamente em si, porque suas articulaes so as mesmas de nossa existncia, e porque ela se pe na extremidade de um olhar ou ao termo de uma investigao sensorial que a investe de humanidade. MERLEAU-PONTY, Maurice. Phnomnologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945. pp. 369-370. As tradues desta obra foram utilizadas da edio em portugus, feitas por Carlos Alberto Ribeiro de Moura.

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    outro fosse um desdobramento de ns porque somos o mesmo, no sendo exatamente iguais; ocorre

    aqui certa diferenciao31.

    H um pequeno descentramento entre o mundo e ns, ns e o outro, e o que descobrimos acerca do

    sujeito que vemos no so seno nossos segredos tambm, pois, apesar de cada um ter sua experincia

    do mundo, estamos ligados. O que visvel para um, tambm o para o outro, faz parte do seu mundo, que o mesmo do nosso.

    possvel afirmarmos que existe um intermundo, segundo Merleau-Ponty, uma vez que, se um

    indivduo se levanta para pegar um chapu debaixo do sol quente porque ele tambm est com a

    mesma sensao que ns, ou seja, sentindo o calor na pele, que nos toca da mesma maneira.

    Identificamo-nos, o mundo toma conta de ns e do outro, em uma carnalidade, em uma comum

    condio. Assim, possvel falar da existncia da transferncia de significaes, afinal, quando

    falamos algo, nossas palavras so compreendidas, por isso recebemos uma resposta. Se algum nos olha, temos uma reao, esse algum nos toca de alguma forma.

    H, tambm, a possibilidade de nos colocarmos no lugar do outro, quando conseguimos sentir do que

    ele precisa, do que anseia, o que tem como dever e direito. E o inverso acontece; temos a percepo de

    sermos ocupados por outro olhar, e sabemos se estamos sendo aprovados ou no. Isso ocorre devido

    existncia de uma linguagem comum, da qual h a participao de todos os seres humanos.

    Porm, o sentido e as significaes no so palpveis, elas esto apenas mencionadas, no so como

    objetos que podemos tocar. Apenas se do a ver quando houver uma relao, na medida em que o

    outro aparecer como sujeito, e ns para ele enquanto tal.

    Aqui lembramos dos aspectos primordiais de uma obra de arte, transparentes nos neoconcretos brasileiros Lygia Clark e Hlio Oiticica, referncias artsticas do pas, uma vez que debatem acerca da

    relao dos artistas com os espectadores e com seus trabalhos, ou melhor, falam da comunho e da

    comunicao entre os sujeitos, de quem produz e de quem recebe, de quem v e de quem visto.

    Baba Antropofgica (1973).

    31 Merleau-Ponty constata que a percepo e a linguagem possuem o mesmo princpio de diferenciao, e, por isso os dois se exprimem de modo indireto. Notamos aqui o esforo do filsofo para ultrapassar a ideia de sujeito e objeto.

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    Lygia prope exerccios vivenciais, que lembram aos indivduos a sua existncia e atuao no mundo,

    por isso procura por uma libertao do dia a dia, fazendo-os perceber o real pelo sensvel. aqui que ela cria objetos e mecanismos, colocando-se no entremeio da arte e da vida, e inserindo o espectador

    na condio de coautor de suas propostas.

    No h como definir seus trabalhos como objetos que possuem valor enquanto tais, uma vez que

    s quando manipulados que ganham sentido, e a se instaura uma liberdade, tanto da obra quanto

    de quem se prope a participar de seus alvitres.

    Se antes os indivduos eram apenas espectadores, agora so participantes, interagindo tanto com os objetos quanto em experincias coletivas. De todo modo, o dualismo sujeito-objeto dissolvido, bem

    como os polos interiores e exteriores, corpo e pensamento. Tudo parece estar ligado, fato facilmente

    aceito quando nos damos conta de que nosso corpo o meio pelo qual interagimos no real, este que, nos trabalhos neoconcretos, aparece em uma liberdade, sempre indito.

    Srie Bichos (1960 1964).

    Cada ao gestual, sobretudo em trabalhos relacionais, tem grande relevncia, pois nesse momento

    que se efetua o dilogo entre o artista, a obra e o outro que se d conta de sua existencialidade

    mundana enquanto vivencia as propostas.

    O tempo presente torna-se protagonista. Assim, o artista decomposto no mundo, aniquilando com a noo de um heri ou gnio que cria. Os demais indivduos passam para a condio de artistas,

    que a todo tempo escolhe o que quer fazer com seu trabalho, o que quer ver e sentir a partir dele. De

    fato, os sujeitos retomam a sua individualidade, esta que tanto foi esquecida na modernidade em

    detrimento da cultura de massa.

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    Os trabalhos neoconcretos pretendem uma comunicao no estanque, no estabelecida de

    antemo, uma conversa de ineditismos, de novidades, de surpresas. E aqui to importante Hlio Oiticica, que desintegra termos categricos e duras definies. A fim de compreendermos

    suas propostas, necessrio que entremos nelas, que vistamos suas roupas, que vivenciemos seus Parangols da nossa maneira, nunca igual ao do outro; por isso h inmeras aparies de uma s obra, transformada a cada vivncia.

    parangols.

    Como no objetos com sentidos internos, seus trabalhos no se perdem com o tempo, eles

    permanecem e nos fazem viver o cotidiano a partir de um novo olhar, a fim de compreend-lo sob

    outro vis. Assim, ocorre o conhecimento de si mesmo, enquanto ser atuante no mundo e dos outros

    na medida em que se d a conversa e a troca vivencial. E as significaes surgem nesse campo do

    entremeio, como algo silencioso e com vigor.

    Por isso Merleau-Ponty afirma que no necessrio que falemos a todo instante o que sentimos ou

    como vivemos. A expressividade aparece do fundo silencioso de nossas emoes, e surge em nossa

    face, em nossas mos, em nossa pele.32 Ao relatar uma histria, no precisamos saber de todas as aes dos personagens, algo se coloca no ar, invisivelmente; est presente no espao entre as

    palavras.

    32 Ibid, p.95. Mais ce qui compte, ce nest pas tant que Julien Sorel, apprenant quil est trahi par Mme de Rnal, aille Verrires et essaie de la tuer, - cest aprs la nouvelle, ce silence, ce voyage de rve, cette certitude sans penses, cette rsolution ternelle. Or cella nest dit nulle part. Il nest pas besoin de Julien pensait, Julien voulait.

    O que importa, contudo, no tanto que Julien Sorel, ao saber que Mme. de Renal o trai, v a Verrives e tente mat-la, mas depois da notcia, este silncio, esta viagem-devaneio, esta certeza irrefletida, esta resoluo eterna. Ora, em parte alguma isso fica dito. So indispensveis o Julien pensava, Julien desejava.

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    A linguagem, portanto, no se de maneira estanque e terminada, no apenas um meio, porm, um

    ente33, que faz com que sentimos a presena fsica daquele com quem falamos ao telefone, mesmo

    estando muito distante de ns.34

    Os segredos da linguagem so por ela desvelados, que carrega junto de si um sentido, que se

    expressa a sua maneira, que parece conter as coisas. Afinal, por meio de smbolos que interagimos

    uns com os outros, tornando-nos indivduos falantes, fazendo nosso pensamento se corporificar

    enquanto os termos so formulados. Esta ao se d em um processo simultneo que faz surgir a

    expresso. Porm, no devemos tomar a linguagem como possuidora do mundo como se fizesse dele

    uma representao.

    Ela figura os seus significados, no imita um pensamento, mas levada por ele concomitantemente.

    O sentido carregado pela linguagem, por isso podemos dizer que ela viva, transversa e autnoma.

    Merleau-Ponty afirma que ela parte intrnseca do nosso corpo, portanto, participante de nossas

    experincias; o que pensamos e a formulao de locues se do ao mesmo tempo, ambos so

    interpermutveis. por isso que no ocorre uma traduo para a lngua daquilo que nos visvel;

    nossa visualidade e corporeidade no so cumulativas como um agregado de partes; nosso corpo

    engloba todas as esferas, sem leis determinantes. Quando vemos algo, parece que tambm o estamos

    tocando.

    No possvel haver a repetio de nossos gestos, de nossas sensaes, de nossos olhares; existe um

    ineditismo em ns, uma autenticidade, espontaneidade e criatividade. Fatos que se do porque tudo

    em ns est conectado, sem a atuao de um agenciador.

    Ocorre um vnculo de fundao35 entre os segmentos no todo autntico. Afinal, ao agir somos

    indissociveis de nosso corpo, porm temos a capacidade de gerar significados acerca do que est

    oblquo, para alm das limitaes dadas e estabelecidas.

    Merleau-Ponty chama de significaes existenciais aquelas perdurveis aos gestos, que possuem um

    estreito vnculo com nossas investidas corporais. Deparamo-nos com os objetos por meio de nossos

    movimentos, porm no somos totalmente conscientes deles. Se nos levantamos em direo ao

    interruptor para apagar a luz, no pensamos a todo instante quais os msculos que estamos usando

    para executar tal ao, apenas a fazemos.

    33 MERLEAU-PONTY, Maurice. Le langage indirecte et les voix du silence. p.54.34 Jsus Martinez-Velasco coloca que Le langage, dans un sens large, nest pas seulement un systme cognitif spcial, il est aussi

    une forme hautement complexe de conduite qui se rpercute sur la personnalit, ltat motionnel, linteraction personnelle, le dveloppement culturel et la structure sociale. A linguagem, em um sentido maior, no somente um sistema cognitivo especial, tambm uma forma altamente complexa de conduzir que se repercute na personalidade, no estado emocional, no desenvolvimento cultural e na estrutura social. MARTINEZ-VELASCO, Jsus. Langage et signification. In: MERLEAU-PONTY: Le philosophe et son langage. Grenoble: Groupe de Recherches sur la philosophie et la langage, 1993. p.207.

    35 No so dados isolados, mas h uma implicao entre as partes, que revela uma totalidade, e isso se d de forma espontnea. H uma transcendncia nos nossos atos corporais, em que se d a totalidade, e isso o que Merleau-Ponty chama de expresso. H uma relao de noindependncia entre as partes, onde agem mutuamente, em que estabelecem uma unidade espontnea e necessria, no dependendo de algo exterior. A expresso uma fundao, pois quando acontece a totalidade, indispensvel s partes envolvidas, por isso as significaes so imanentes aos nossos gestos, mas tambm transcendem as partes envolvidas.

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    No sabemos de ns mesmos previamente, apenas nas experincias, afinal, o eu sujeito aparece com

    a fundao de todas as partes em um processo equivalente. E no sabemos de antemo qual nossa reao diante de um fato, s iremos ter esse conhecimento no momento em que tal acontecimento

    se der.

    Ao falarmos em equivalncia, estamos afirmando que cada movimento implica outro, cada seco de

    ns s subsiste com as demais, uma configura-se como continuidade da outra. Por isso ratificamos

    que temos espontaneidade, expressividade e imanamos sentidos.

    No necessrio que cada fala, cada gesto sejam ensaiados. Nossas aes se realizam sem um saber

    prvio, que aparece no ato. Prova disso que somente compreendemos as regras de um jogo no

    momento em que nos colocamos como jogadores, no instante em que estamos jogando, assim, existe

    um cogito tcito. No preciso treinar os movimentos dos braos na beira da piscina, somente o faremos e o aprenderemos em contato com a gua.

    Diante disso, inferimos que uma obra de arte, por exemplo, no est previamente pronta, bastando

    apenas o artista copiar a imagem pensada ou vista. Ela surge no processo, pois h questes que s

    aparecem durante sua fabricao e, portanto, precisam de resoluo naquele momento. Assim, uma obra aparece enquanto o artista vai sanando as problemticas e realizando suas escolhas. Nesse

    caminho, atuar na sociedade tambm seria uma significao existencial, respondendo s ocorrncias

    que se apresentam.

    por isso que Merleau-Ponty defende que devemos habitar o real, question-lo com nossa

    viso: o sentido do nosso corpo s existe com as coisas, e o destas no sabemos sem nossas aes

    intencionais. O filsofo coloca que os objetos percebidos no se do de maneira separada de quem

    os olha, no h a possibilidade de eles se darem em si, uma vez que suas pronunciaes so

    iguais s de nossa existncia.36

    importante salientar que existem as significaes conceituais, quando as palavras servem

    como pano de apoio para as novas, isso seria o pensamento. Tudo que j foi falado agora est

    disponvel para a retomada, e, assim, a construo de novas relaes e, consequentemente, novos

    significados. Porm, se locues j articuladas forem somente repetidas, como as tpicas frases em

    datas comemorativas, nada de indito aparecer.

    O que j foi pronunciado, por sua vez, j teve a sua criatividade, a sua originalidade, e agora

    retomada para outros sentidos emanarem. Por isso ratificamos a necessidade de estar em contato com o mundo, e no apenas sobrevo-lo. Se percebermos o mundo, ele tambm sabe de nossa existncia, afinal todos participam de um mesmo ambiente, como inferimos na figura

    de Escher.

    36 La chose ne peut jamais tre spare de quelquun qui la peroive, elle ne peut jamais tre effectivement en soi parce que ses articulations sont celles mmes de notre existence et quelle se pose au bout dun regard ou au terme dune exploration sensorielle qui linvestit dhumanit.

    A coisa nunca pode ser separada de algum que a perceba, nunca pode ser efetivamente em si, porque suas articulaes so as mesmas de nossa existncia, e porque ela se pe na extremidade de um olhar ou ao termo de uma investigao sensorial que a investe de humanidade. MERLEAU-PONTY, Maurice. Phnomnologie de la Perception, p. 370.

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    FUNDAMENTOS FilOSFicOS E SOciOlGicOS DOS DiREiTOS HUMANOS UNiDADE NicA

    M. c. Escher (1948).

    Ao mesmo tempo em que uma mo toca a outra, ela se sente tocada. No h um estranhamento, mas

    uma imbricao37, participam da mesma carnalidade, usando uma expresso merleau-pontyana. Aqui se delineia a importncia da intercorporeidade tratada por Merleau-Ponty, esta que fez com que

    ele propusesse justamente a noo de carnalidade que culmina no quiasma. Este nada mais que a

    prpria reversibilidade carnal, uma relao cambial entre ns e o mundo, gerando desdobramentos,

    uma vez que todos participam de um mesmo ambiente. Todos so um s, o direito e o outro lado,

    efetuando permutas, aderindo-se mutuamente.

    Dessa maneira podemos inferir que nada esttico, tudo est em movimento e em constantes mudanas, afinal, s aparece um objeto quando repousamos nossa ateno a ele. No podemos

    deixar de lembrar da Gestalt, que recusa associaes metdicas e concebe o ato perceptivo como

    se fosse uma juno de dados sensoriais. Ela defende que se vemos um objeto, ele no como uma

    fatia do visvel, porm, aparece a partir do vnculo com o que est sua volta, como uma figura em

    cima de um fundo.

    37 O fenomenlogo quer restabelecer a unidade substancial de Descartes, na qual corpo e alma se misturam. No podemos aplicar percepo a distino clssica de matria e forma, nem conceber o sujeito como algum que interpreta e ordena a matria sensvel, pois a matria, ela prpria est grvida de forma, diz Merleau-Ponty. A conscincia no se resume em construir o mundo real em um mundo de reflexo, isso seria negar nossa abertura essencial a ele, como Descartes fizera ao afirmar a supremacia da conscincia sobre o objeto. Se eliminarmos a conscincia, as coisas no so nada, pois ela quem as percebe. E se eliminarmos as coisas, tambm no resta nada, pois no podemos viver sem o mundo e nem fora dele. Somos seus habitantes e damos sentido a ele, no somos uma conscincia reflexiva pura, mas uma conscincia encarnada num em um corpo, o que percebemos no se d em si mesmo, mas em um contexto relacional, pois nossa conscincia j est operando no mundo, estamos presos carne da linguagem. No caso da obra de arte, ela prpria matria e esprito, matria e pensamento, e no existe sem a ao do homem. No h separao entre ns e o mundo, assim como no anexamos sentido s coisas, mas ele penetra um todo fsico, aparece simultaneamente.

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    Uma obra artstica delineia-se como a transposio do mundo perceptivo para o cultural, alm de

    trazer consigo a intercorporeidade de um real que vivenciado anterior sua explicao ou anlise.

    Aqui se esboa uma ontologia, que d a compreender a formao de um sentido.

    Toda a vivncia experimentada, todo o comportamento dos sujeitos so direcionados pela cultura,

    que fundamenta sua maneira de atuar. Os indivduos seguem regras culturais, e a cultura o produto do legado de nossos antepassados, que se desenhou historicamente.

    No de se espantar que, diante da genealogia cultural e da experincia vivencial que experimentam

    todos os sujeitos, muito se fala em Direitos Humanos38 no sculo XX.

    O pensamento moderno concebe que o fundamento de validade dos Direitos Humanos no est na

    esfera religiosa nem na natureza (como essncia imutvel), mas no prprio homem, pois os direitos

    so sua criao. E eles cabem a todos os sujeitos enquanto homens, sem ater-se s diferenas

    individuais ou sociais, inerentes a cada um. J os demais se do de acordo com as particularidades de cada cidado.

    Entende-se, por Direitos Humanos, princpios ou valores que do condies a um homem poder

    afirmar seu estado de ser humano, e, assim, fazer parte e ser participativo da vida biolgica,

    psicolgica, econmica, social, cultural e poltica. Os Direitos Humanos asseguram o exerccio de

    liberdade e dignidade, sendo possvel a propagao de sua existncia. Eles garantem que todos

    sejam iguais, independente de qualquer condio:sexual, nacionalidade, etnia, classe, profisso,

    poltica, crenas.

    Eles se do de maneira universal e no localizada, e garantem a proteo contra qualquer situao que possa negar a condio humana, ou seja, qualquer espcie de violncia. Teria a funo de zelar

    pelo aspecto humano que h em cada indivduo. Supe-se que so reconhecidos e respeitados por

    todos, independentes de seu tempo ou grupo social.

    Barreto39 coloca ser demasiado abrangente e impreciso o conceito de direitos humanos,

    pois, segundo ele, os homens pautam-se demasiadamente nas emoes perante todas as

    situaes, sejam elas sociais, polticas ou culturais, deixando que o sentimentalismo interceda

    em ocorrncias injustas. Por isso no pode haver um fundamento geral que possibilite a

    universalizao da acepo do termo, e, assim, a sua compreenso, na prtica, no pode se dar de modo igual por todos.

    Importante notar que, s vezes, os Direitos Humanos so tomados como direitos naturais, em

    outras ocasies como aqueles que esto contidos nos textos legais, outras vezes como aqueles

    relativos prtica jurdica. De todo modo, h a tentativa de identific-los como a regra, por menor

    e mais simples que seja, de instituies polticas que possam ser utilizadas, na prtica, pelos

    Estados.

    38 Os franceses, em 1789, falavam de direitos perante as organizaes estatais, embora a sua supresso com o aparecimento dos Estados totalitrios. O ideal socialista estava por se concretizar no Estado ps- Segunda Guerra, mas o neoliberalismo do final do sculo deixou transparecer a precariedade da solidariedade social e a asceno dos ideais individualistas.

    39 BARRETTO, Vicente de Paulo. Universalismo, multiculturalismo e Direitos Humanos. In: Direitos Humanos no Sculo XXI Parte I. Rio de Janeiro: IPRI, Fundao Alexandre Gusmo, 1998.

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    Bobbio ressalta que os Direitos Humanos so histricos, criados em detrimento de lutas contra

    poderes antigos, de maneira gradual. certo que os direitos nem sempre esto enraizados em todos os sujeitos, que, por vezes, no sabem que os possuem nem que devem ser respeitados. Diante disso,

    vlida a questo de Bobbio, para quem a problemtica contempornea permeia a proteo dos

    Direitos Humanos, no mais a sua fundamentao.40

    Mas como podemos efetuar a proteo aos Direitos Humanos, para que no sejam alvos de ignorncia

    ou violaes? De todo modo, se h tal preocupao, isso se justifica pelo seu carter capital para

    uma vida com qualidade, por terem um motivo e uma justificativa para existirem. Porm, a sua

    efetivao ocorre somente quando so vividos de fato, o que nem sempre se d.

    Cndido Portinari, em Retirantes, denuncia a misria, a fome, a opresso nas relaes de trabalho, alm da hostilidade da natureza. Tudo o que possuem est em trouxas de pano.

    Os retirantes (1944).

    40 BOBBIO, Norberto. O conceito de sociedade civil. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1982. p. 25.

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    A questo dos Direitos Humanos j foi muito discutida, na tentativa de uma justificao para a

    sua existncia, bem como de fundament-la. Em meio a uma poca em que eles nem sempre so

    seguidos, em favorecimento de capitais e produo, alm da segurana jurdica, d-se uma crise

    frente sua legitimao e sua fundamentao.41

    Mas como possvel haver algo nico que d conta das diversidades culturais, incluindo a os

    diferentes hbitos e costumes inerentes a cada grupo social? Apenas um fundamento no bastaria

    para pensar sobre o que vem a tornar um ser, humano, o que seria sua natureza e em que seria

    constitudo. No seria melhor cada comunidade determinar o que melhor deveria ser, de acordo

    com seus valores e hbitos, a essncia humana? Seria mais prudente que cada cultura estabelecesse

    quais seriam os seus direitos primordiais?

    Na histria do pensamento, muitos foram os autores que pensaram sobre os Direitos Humanos.

    Locke42 j dizia, no sculo XVII, que o homem, naturalmente, tem direito vida e igualdade de

    oportunidades. Rousseau43 tambm colocava que todos os homens nascem livres e iguais. Os direitos

    seriam, ento, inatos aos sujeitos, como responsveis para a propagao da existncia humana e

    inerentes a pessoa, seriam inalienveis e inviolveis.

    Essa questo dos direitos serem naturais ao homem d-se pelo fato de ele ter razo e sensibilidade,

    por efetivar relaes com o outro, alm dele prprio constituir meios para seu viver, ou seja, o

    homem um ser social, dotado de intenes e vontades e capaz de seguir normas definidas e

    condutas morais estabelecidas. Essas caractersticas, de fato, denotam sua dignidade, a essncia

    fundamental do ser humano, ou seja, o que d humanidade ao indivduo.

    A noo de dignidade possibilita a garantia liberdade e autonomia do homem; consiste em cada

    sujeito ter um valor tico, um valor primordial, sem que entremos no mrito de sua vida ntima ou

    social. Kant44 j dizia que o homem deveria ser considerado como um fim em si mesmo, e no como

    um meio ou instrumento para a realizao de algo.

    A dignidade um valor incondicional, incomensurvel, no possvel de substituio por algo

    equivalente, de dimenso qualitativa, ou seja, todos a possuem de maneira igual, no h quem a

    tenha mais ou menos que outro.

    41 Para a realizao dos direitos do homem, so frequentemente necessrias condies objetivas que no dependem da boa vontade dos que os proclamam, nem das boas disposies dos que possuem os meios para proteg-los. Mesmo o mais liberal dos Estados se encontra na necessidade de suspender alguns direitos de liberdade em tempos de guerra; do mesmo modo, o mais socialista dos Estados no ter condies de garantir o direito a uma retribuio justa em pocas de carestia. Sabe-se que o tremendo problema diante do qual esto hoje os pases em desenvolvimento o de se encontrarem em condies econmicas que, apesar dos programas ideais, no permitirem desenvolver a proteo da maioria dos direitos sociais. O direito do trabalho nasceu com a Revoluo Industrial e estreitamente ligado sua consecuo. Quanto a esse direito, no basta fundament-lo ou proclam-lo. Nem tampouco basta proteg-lo. O problema da sua realizao no nem filosfico nem moral. Mas tampouco um problema jurdico. um problema cuja soluo depende de um certo desenvolvimento da sociedade e, como tal, desafia at mesmo a Constituio mais evoluda e pe em crise at o mais perfeito mecanismo de garantia jurdica. A efetivao de uma maior proteo dos direitos humanos est ligada ao desenvolvimento global da civilizao humana. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992. pp. 44-45.

    42 LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento. So Paulo: Abril Cultural, 1978.43 ROUSSEAU, Jean J. Discurso sobre a origem e a desigualdade entre os homens. (1775). Braslia: Universidade de Braslia, 1985.44 KANT, Immanuel. Crtica da razo pura. In: OS PENSADORES (Kant I). So Paulo: Abril Cultural, 1980.

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    A ideia de dignidade baseou-se, por muito tempo, no crdito da criao divina, ou seja, no fato de

    o homem ter sido criado imagem e semelhana de Deus. No demorou para que ela fosse vista

    como baseada na natureza racional humana. A razo, faculdade exclusiva do homem, diferencia-o

    de todos os outros seres, tornando-o nico; por ser portador de racionalidade, o mundo cultural, as

    leis morais e do direito puderam ser criadas.

    O homem atua com autonomia, liberdade e responsabilidade, normalmente em busca de uma

    sociedade harmnica e justa. Ele capaz de escolher, de criar suas leis de conduta, construindo sua

    sociedade de acordo com seus valores. De fato, o homem um ser moral e poltico, e no apenas

    produto das leis da natureza, ele quem constri o seu mundo.

    Seguindo a noo de autonomia, delineia-se outro modo de se compreender nossas aes no

    mundo: no somos totalmente livres, tampouco determinados pelo outro. A liberdade est presente em nossas vidas e continuamos a ser indivduos autnomos. Dessa maneira, achamos no nosso

    passado o desenho do que somos hoje.

    A partir de nossas atuaes, o sentido e o aspecto valorativo das coisas aparecem, e no segundo a

    ao delas sobre ns; as coisas tornam-se significativas a partir de nossa vivncia. O ato valorativo

    d-se espontaneamente, afinal, sem ele no poderamos perceber as coisas, tudo estaria no mesmo

    patamar, como uma massa amorfa. A dor, de acordo com o pensamento merleau-pontyano, no

    chega do exterior, ela tem um motivo que manifesta a nossa maneira de efetuarmos uma relao

    com o mundo.

    Temos liberdade diante de nosso ser, podemos transformar nossa condio de vida diante daquilo que nos dado. H algo que carregamos conosco ao surgir no mundo, mas somos ns que conferimos

    um sentido Histria. Ou melhor, nos posicionamos diante dela de acordo com a nossa vontade:

    podemos ser burgueses ou operrios se perspectivamos a luta de classes. De todo modo, ns nos

    atribumos uma condio.45

    O real no est permanente constitudo, ele nos solicita e o edificamos segundo nossas escolhas. Se

    falarmos isto uma cadeira, isso implica que ela no tem existncia em si, mas subsiste para ns,

    tem um sentido em nosso mundo. Somos ns que o escolhemos e ele nos seleciona, um procura pelo

    outro.

    O trabalho de Czanne, por exemplo, precisava que o artista tivesse aquela vida; seu passado

    constitui-se em um prenncio do estilo de sua pintura, que est edificada a partir do j vivido,

    porm, ultrapassa suas experincias. O pintor utilizou sua histria o fundo para a elaborao de

    seu trabalho a figura.

    45 Nous pouvons comparer cette notion de libert la relation entre la langue et la parole. En utilisant les significations disponibles dans la langue, et en composant librement ces signification, le sujet parlant cre une nouvelle signification, sdimente ces significations et enfin change la langue.

    Ns podemos comparar esta noo de liberdade relao entre lngua e palavra. Utilizando as significaes disponveis na lngua, e compondo livremente suas significaes, o sujeito falante cria uma nova significao, sedimenta essas significaes e muda a lngua. MATSUBA, Shoichi. Lambiguit de la Libert. In: MERLEAU-PONTY: Le fhilosophe et son langage. Grenoble: Groupe de recherches sur la philosophie et la langage, 1993. p.255.

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    UNIDADE NICA FUNDAMENTOS filosficos E SOCIOLGICOS DOS DIREITOS HUMANOS

    Mas necessrio assumirmos nossas escolhas, pois s assim pode se efetivar a liberdade; e

    cada momento envolve os prximos, continuando, no estancando cada instante, gerando uma

    autenticidade. Afinal, as decises de cada sujeito so singulares e leva-o aos seus prximos passos.

    Merleau-Ponty fala que somos aquilo que vemos, somos um plano intersubjetivo, em detrimento de

    nosso corpo, de nossa histria.46

    Precisamos aceitar o presente, dessa maneira o passado pode ser retomado e alteramos seu significado,

    tomamos nossa liberdade e seguimos adiante. Merleau-Ponty afirma que somente podemos entender

    outros tempos se estamos realmente vivendo o nosso, inteiramente, entranhamente.47

    Ser consciente das condies e de nossos atos diante de algo ter liberdade, que se d na medida

    em que interpretamos as contingncias como abertura para uma indita significao a partir do

    dado. Assim, convertemos algo em um novo real, gerado por nossos atos. Aqui aparece um trabalho

    artstico, o possvel torna-se realidade.

    Se h possibilidades, temos liberdade, afinal, s podemos escolher o que j existe; ser livre atuar

    sobre o determinante. Czanne era esquizoide, mas livre, porque usou a doena em seu favor, colocou em suas obras a sua maneira de estar e ver o mundo. Optou por pintar, ao invs de esvanecer.

    Montanha de Santa Vitria (1897).

    46 MERLEAU-PONTY, Maurice. Phnomnologie de la perception, p.515. 47 Ibid, p.520.

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    Seus trabalhos seriam outros se sua situao de vida fosse diferente, talvez nem pintor seria. A

    liberdade um exerccio. Claro, ela no absoluta porque o passado se apresenta como fundo, mas

    a partir dele resolvemos qual caminho seguir. Interessante, neste caso, a psicanlise, uma vez que

    no trabalha com explicaes de sintomas, porm, mostra veredas.

    O analisado, diante do psicanalista, realiza a retomada de sua prpria vida, quando ocorre a

    transcendncia de sua problemtica. O analista ajuda o indivduo a efetuar o encontro com ele

    mesmo, uma vez que s sabemos de nossas vivncias.

    No toa que os artistas esto recomeando constantemente uma obra, como se sempre faltasse algo para falar. E a cada passo efetivado, proporciona outros, abre um novo leque de estradas possveis. O artista pretende ir adiante, em busca de cada expresso que ainda falta experimentar.

    No cabe aqui as anlises cartesianas, mas apenas ser envolvido por significaes.48

    As escolhas e as criaes culturais mostram que o homem no determinado pela sua gentica. No

    h quem nasa justo ou injusto, mas o sujeito assim se torna de acordo com suas escolhas, decises

    e condutas, ou seja, de sua maneira de atuar no mundo. A dignidade justificada pelo fato de o

    homem ser dotado de razo. Mas no apenas a razo que caracteriza o homem, ele tambm possui

    emoes, sendo, portanto, alm de racional, afetivo.

    A partir da Segunda Guerra, as constituies j consagram alguns direitos, entre eles a dignidade,

    como na Declarao Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral das Naes

    Unidas (1948) que afirma, no art. 1o, que todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade

    e direitos. No art. 2o, diz que cada qual pode se prevalecer de todos os direitos e todas as liberdades proclamadas na presente Declarao, sem distino de espcie alguma, notadamente de raa, de cor, de sexo, de lngua, de religio, de opinio pblica ou de qualquer outra opinio, de origem nacional

    ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situao. A Constituio da Repblica Italiana (1947) coloca que todos os cidados tm a mesma dignidade social (art. 3o). A Constituio

    da Repblica Federal Alem (1949) declara, no art. 1o: A dignidade do homem inviolvel. Respeit-

    la e proteg-la dever de todos os Poderes do Estado. A Constituio Portuguesa (1976) proclama que

    Portugal uma Repblica soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular

    e empenhada na construo de uma sociedade livre, justa e solidria. A Constituio Espanhola

    (1978) defende que a dignidade da pessoa, os direitos inviolveis que lhe so inerentes, o livre

    desenvolvimento da personalidade, o respeito lei e aos direitos alheios so o fundamento da ordem

    poltica e da paz social (art. 10). A Constituio Brasileira (1988) tem como um de seus fundamentos

    a dignidade da pessoa humana (art. 1o III).

    48 Il ne sagit jamais que de mener plus loin le trat du mme sillondj ouvert, de reprendre et de gnraliser un accent qui a dj paru dans le coin dun tableau antrieur ou dans quelque instant de son exprience, sans que le peintre lui-mme puisse jamais dire, parce que la distinction na pas de sens, ce qui est de lui et ce qui est des choses, mtamorphose au sens des contes de ce que le nouvel ouvrage ajoute aux anciens, ce quil a pris aux autres et ce qui est sien. Cette triple reprise qui fait de lopration expressive comme une ternit provisoire, elle nest pas seulement fes, -miracle, magie, cration absolue dans une solitude agressive, - elleest aussi rponse ce que le monde, le pass, les oeuvres faitesdemandaient, accomplissement, fraternit.

    Importa-lhe exclusivamente traar adiante o sulco j aberto, retomar e generalizar tal inflexo advinda no canto de um quadro anterior ou em algum instante de sua experincia, sem que possa dizer, no fazendo sentido a distino, o que dele provm e o que emana das coisas, o que a nova lavra acrescenta s antigas, o que absorveu dos outros e o que lhe devido. Esse triplo renovar que faz do ato expressivo como que uma eternidade provisria no somente metamorfose no sentido dos contos de fadas milagre, magia, criao absoluta em uma solitude agressiva , mas tambm resposta ao que o mundo, o passado, as obras feitas pediam, cumprimento, fraternidade. MERLEAU-PONTY, Maurice. Le langage indirecte et les voix du silence, p.73.

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    Vemos, ento, que a dignidade tida como o fundamento de todos os direitos humanos. Para Kant,

    tudo tem um preo ou uma dignidade. Aquilo que tem um preo pode ser muito bem substitudo

    por qualquer outra coisa, a ttulo de equivalente; ao contrrio, aquilo que superior a todo preo,

    aquilo que por conseguinte no admite equivalente, isto que possui uma dignidade.49

    De fato, a humanidade une-se pela dignidade, no importa qual caracterstica individual ou social,

    por isso todos devem ser respeitados da mesma maneira. O primeiro artigo da Declarao Universal

    dos Direitos do Homem consta que Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.

    Vale ressaltar que o fato de a dignidade no constituir-se em uma verdade primeira, pode se

    modificar, ou seja, um valor historicamente mutvel. O que hoje pode no participar dos valores

    dignos, em um prximo momento pode estar contido nele. E cada cultura possui seus valores, sua

    prpria concepo do que seria dignidadeno mbito dos Direitos Humanos.

    Jos Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira bem falam que a noo de dignidade o que unifica

    os direitos fundamentais, respaldada pela sua acepo normativo-constitucional.50

    Apesar de todas as definies, visvel quando ela ainda violada, e os exemplos no esto

    muito longe de ns, basta olhar hospitais pblicos, pessoas em estado de mendicncia nas ruas e

    os marginalizados sociais. Entendemos que todos so dignos, mas isso no exclui a violncia e a

    discriminao no meio social, cultural, poltico e, sobretudo, no meio religioso. Ser que viver, de fato, com dignidade no um fato que ocorre apenas em determinados grupos ou em certas classes sociais? Goya, Picasso e Diego Rivera j tratavam do assunto quando denunciava agresses sociais

    em outros tempos, e constatamos que pouco mudou no decorrer da Histria.

    El 3 de Mayo de 1808 en Madrid, de Goya.

    49 KANT. Fundamentao da metafsica dos costumes. Traduzido por Paulo Quintela. So Paulo: Abril Cultural, 1974.50 (...) concebida como referncia constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais, o conceito de dignidade da

    pessoa humana obriga a uma densificao valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e no uma qualquer ideia apriorstica do homem. CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. Coimbra: Almedina, 2006.

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    FUNDAMENTOS FilOSFicOS E SOciOlGicOS DOS DiREiTOS HUMANOS UNiDADE NicA

    Guernica, de picasso.

    O levante, de Rivera.

    H trs teorias que justificam o respeito aos Direitos Humanos: a religiosa por se tratar de um mandamento divino a jusnaturalista em que o respeito seria um imperativo da razo e a justificao positivista quando predomina a vontade do legislador.

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    UNIDADE NICA FUNDAMENTOS filosficos E SOCIOLGICOS DOS DIREITOS HUMANOS

    O fato de as leis morais serem reveladas por Deus aos profetas e pelas palavras de Cristo entrou em decadncia com a crise hegemnica da Igreja Catlica, no sculo XVII, quando a validade dos

    Direitos Humanos e da moral comeou a ser fundamentada na razo. Kant afirmou que a moral tem

    seu respaldo na liberdade do homem, por isso no necessita da ideia de um ser superior que lhe

    apontasse seus deveres, tampouco de outra causa diversa de suas leis lhe observando.51

    A escola do direito natural52 tinha como crena a possibilidade de colocar como uma cincia

    demonstrativa o direito e a moral. Hobbes dizia que se todos conhecessem bem a natureza dos atos

    humanos, assim como sabem da quantidade em relao geometria, no haveria mais ambies

    ou avarezas, mantidas, sobretudo, por opinies incorretas do que correto ou falso.53 E Locke fazia

    uma relao das cincias matemticas com a moral.54

    Para os jusnaturalistas, o fundamento55 dos Direitos Humanos estaria na natureza das coisas. Eles

    negam a tradio medieval enquanto procuram no permitir que se instale o niilismo de valores diante da crise da Igreja.

    Acreditavam que, seguindo as ideias de Locke, se houvesse o correto emprego de um mtodo,

    aconteceria o estabelecimento lmpido da moral, no havendo mais dvidas em um sujeito prudente,

    assim como se d diante de questes matemticas.56

    Notamos a fora que a razo exerce nos pressupostos desde o Iluminismo. ela que, acreditava o

    novo homem, poderia instaurar a autonomia, que, segundo Kant, era o princpio da moralidade. Os

    iluministas acreditavam que depois de criadas regras morais e jurdicas, a partir dos fundamentos,

    nenhum indivduo poderia neg-las. Vemos em Kant a primeira formulao do que fundamentaria

    os Direitos Humanos.

    A ideia racional de uma comunidade pacfica perptua deemv todos os

    povos da Terra (mesmo quando no sejam amigos), entre os quais podem

    ser estabelecidas relaes, no um princpio filantrpico (moral), mas um

    princpio de direito. A natureza encerrou todos os homens juntos, por meio

    da forma redonda que deu ao seu domiclio comum (globus terraqueus), num

    espao determinado. E, como a posse do solo, sobre o qual o habitante da Terra

    foi chamado a viver, s pode ser concebida como a posse de uma parte de um

    todo determinado,por conseguinte, se uma parte sobre a qual cada um deles

    tem um direito primitivo, todos os povos esto originariamente em comunidade

    do solo; no em comunidade jurdica da posse (communio) e, portanto, de uso

    ou de propriedade desse solo, mas em reciprocidade de ao (commercium)

    fsica possvel, isto , em uma relao universal de apenas um com todos os

    demais (relao que consiste em se prestar a um comrcio recproco), e tm

    51 KANT, Immanuel. A religio nos limites da simples razo. Lisboa: Edies 70, 1793, Prlogo.52 Hobbes, Leibniz, Locke, Kant, Pufendorf.53 HOBBES, Thomas. Do cidado. So Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 05.54 O conhecimento moral to capaz de certeza real como o matemtico. Com efeito, a certeza apenas a percepo de acordo

    ou desacordo de nossas ideias, e a demonstrao nada mais que a percepo de tal acordo, pela interveno de outras ideias ou meios. Por conseguinte, nossas ideias morais, como as matemticas, sendo elas arqutipos, e ideias to adequadas e completas, todo o acordo ou desacordo que descobrirmos nelas produzir conhecimento do real, do mesmo modo que nas figuras matemticas. LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. So Paulo, Nova Cultural, 1997. p. 288.

    55 Aqui fundamento tido como a verdade primeira, o axioma, em que construdo o conhecimento moral.56 LOCKE, John. Ensaio sobre oe humano. So Paulo, Nova Cultural, 1997. p. 318.

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    FUNDAMENTOS FilOSFicOS E SOciOlGicOS DOS DiREiTOS HUMANOS UNiDADE NicA

    o direito de fazer a experincia, sem que por isso possa um estrangeiro trat-

    los como inimigos. Este direito, como a unio possvel de todos os povos, com

    relao a certas leis universais de seu comrcio possvel, pode ser chamado de

    direito cosmopoltico (jus cosmopoliticum).57

    Tericos defenderam que a origem dos Direitos Humanos no estava em uma ordem jurdica

    positiva, e sim no direito natural. Nino coloca duas defesas para a teoria jusnaturalista: existem

    princpios que norteiam categoricamente a justia das fundaes sociais e ditam parmetros de

    faculdades pessoais que tm validade universal, mesmo que no sejam reconhecidas efetivamente

    por algumas instituies ou sujeitos; certas normas, mesmo quando certificados institucionalmente,

    no podem ser concebidos como direitos se no atenderem os princpios anteriores.58

    O jusnaturalismo considera que os Direitos Humanos relacionam-se com o desenvolvimento

    histrico, poltico, econmico e social da humanidade, bem como com a sua existncia em si. So,

    sobretudo, morais, e do-se de maneira universal, so inalienveis e imprescindveis, garantindo a dignidade, a autonomia e a liberdade dos sujeitos em relao aos Estados.

    O direito natural entrou em decadncia no sculo XIX, a partir da sistematizao, positivao

    e historicizao do Direito. Celso Lafer fala que, na perspectiva jusnaturalista, a noo de outro

    Direito alheio ao do Cdigo e da Constituio perdeu sua acepo. Diante disso, os fundamentos

    do Direito no se pautam mais na racionalidade, mas no arbtrio do legislador, independente do parecer a respeito da coerncia deste arbtrio com a razo.59

    No mundo contemporneo, a ideia de um direito natural universal, que classificava as aes em

    prprias e no prprias, ficou cada vez mais difcil de ser praticada, afinal, o fenmeno jurdico

    tornara-se extremamente complexo para tal pensamento.

    Com a positivao do Direito e a constituio de leis mais palpveis, digamos assim, que a natureza ou a razo iluminista as relaes sociais tornaram-se mais seguras. Com isso a sociedade passa a

    ser gerida por condutas, ou seja, por mritos e punies. No positivismo jurdico, o Estado detentor

    dos Direitos Humanos,mas a falta de um fundamento que no fossem os ditos do legislador acarreta

    em uma falta de tica de alguns sujeitos, constituindo um fenmeno totalitrio. Isso no quer dizer

    uma negao da razo pelo positivismo jurdico, o que ocorre sua historicizao e secularizao,

    tornando-a instrumental, ou, como tratou Horkheimer60, subjetiva.

    Diante disso, alguns conceitos, como justia e igualdade, deixam de ser estritamente relacionados

    verdade. Fazem parte de respeitveis documentos histricos e sumas leis, porm, carecem da

    ratificao da razo moderna. De fato, a razo, segundo a filosofia da modernidade, configura-se

    pela cincia, que classifica acontecimentos e calcula probabilidades. Assim, no h como afirmar

    que a liberdade e a justia sejam, nelas prprias, superiores aos seus opostos, uma vez que no

    podem ser verificadas e no tm valia cientfica.61