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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2572. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE BEI DAO um homem é mesmo uma ilha

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 16 de Fevereiro de 2012

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2572. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

BEI DAOum homem é mesmo uma ilha

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I D E I A S F O R T E S

BEI DAO O HOMEM-ILHA

BEI DAO significa “ilha do norte” e é o pseudónimo do poeta chinês Zhao Zenkai. Foram seus amigos que passaram a chamá-lo assim, pois Bei Dao era originário do norte do país e demonstrava ter um comportamento solitário, condizente com as características de uma ilha.Inicialmente um activista político, inclusive exilado após o massacre da praça Tiananmen, Bei Dao acabaria por se desiludir e, desanimado, passaria a escrever suas primeiras poesias como uma alternativa à sua antiga militância.Bei Dao nasceu a 2 de Agosto de 1949, em Pequim. Filho de um administrador e de uma médica, foi aluno privilegiado na chamada Quarta Escola Intermédia. Aos dezassete anos, aderiu à Revolução Cultural, o que o levou a abandonar os estudos. Foi engajado pelos Guardas Vermelhos e “reeducado” no campo.O tipo de vida profissional que levou, trabalhando na construção civil entre 1960 e 1980, não o impediu de se dedicar à poesia. Assim, a partir da década de 70, escreveu inúmeros poemas utilizando variados pseudó-nimos. Em 1976 ganhou uma certa notoriedade, sobretudo nos círculos do Movimento Democrático. Em 1978 participou na fundação de uma revista literária inde-pendente Jintian, que reunia jovens poetas e dissiden-tes. A revista seria publicada até 1980, altura em que seria banida pelas autoridades chinesas. Em1978 publicou Taiyang Cheng Zhaji, que incluía o seu poema mais conhecido Huida, em que exprimia o descontentamento pelo desvanecer do horizonte da esperança na China.Em 1980, obteve reconhecimento internacional com a publicação do poema Resposta no jornal oficial de poe-sia Shi Kan. Nessa altura, passou a trabalhar no Depar-tamento de Imprensa de Línguas Estrangeiras. Embora tivesse sido alvo de perseguições pela Campanha de Combate à Poluição Espiritual do seu país, conseguiu reunir-se secretamente com o poeta ‘Beat’ Allen Gins-berg, chegado à China como membro de uma comitiva de escritores norte-americanos.Em 1983, os seus poemas foram editados pelo Progra-ma da Ásia Oriental da Universidade de Cornell e pela Imprensa Universitária da China. Com a mudança do panorama político no país, Bei Dao foi autorizado a viajar para a Europa e Estados Unidos da América, mui-tas das vezes na companhia da sua família. Ao fim de um ano em Inglaterra e de uma breve estadia nos Esta-dos Unidos, regressou, em 1988, ao seu país natal. Em 1985 estreou-se na ficção, com o pequeno romance Bodong, tornando-se uma das figuras mais proeminen-tes na prosa modernista chinesa. Assinou, em 1989, e em conjunto com trinta e três outros intelectuais, uma petição dirigida ao Comité Central, com o intuito de libertar os prisioneiros políticos da China. Nesse mes-mo ano, foi acusado de ter fomentado o movimento estudantil que resultou no massacre de Tiananmen. Embora se encontrasse em Berlim nessa altura, os seus poemas circulavam entre os estudantes, tendo sido mesmo inscritos nas bandeiras que brandiam. Op-tando por continuar no exílio, restabeleceu a revista Jintian, que se tornou a voz dos escritores chineses expatriados. A sua obra já foi traduzida para trinta idio-mas. Em língua inglesa, são cinco volumes de poesia – Unlock (2000), Landscape over zero (1996), Forms of distance(1994), Old snow (1992), The August sleepwalker (1990) – um de contos – Waves (1990) – e dois de ensaios – Midnight’s Gate (2005) e Blue house (2000). Recebeu vários prêmios, entre eles o prêmio literário Jeanette Schocken (Alemanha, 2005), o Argana de poesia internacional (Marrocos, 2002) e o Tucholsky da pen sueca. É membro honorário da American Academy of Arts and Letters e um candidato natural ao Nobel de literatura.Em 2006, Bei Dao recebeu permissão para voltar a vi-ver na China. Actualmente, reside em Hong Kong.

1. Resposta  A degradação é o passaporte do vilão, A nobreza é epitáfio do nobre. Olhe: como o céu dourado é inundado do reflexo das sombras torcidas dos mortos. Passada a época do gelo, Por que ainda há gelo em toda a parte? Já foi descoberto O Cabo da Boa Esperança, por que mil velas ainda competem no Mar Morto? Eu vim para este mundo trazendo apenas papel, corda e sombra, para anunciar antes do julgamento a voz que tenha sido julgada: Tenho de lhe dizer, mundo, Eu-não-acredito! Mesmo que haja mil desafiantes a seus pés, conte comigo como o milésimo primeiro. Não acredito que o céu seja azul; Não acredito em ecos do trovão; Não acredito que os sonhos sejam irreais; Não acredito que a morte não seja retaliada. Se o mar é destinado a quebrar os diques deixe todas as águas amargas me encherem o co-ração; Se o continente é destinado a crescer deixe a humanidade optar por outro pico da exis-tência. Novas mudanças e estrelas a brilhar estão a adornar o céu sem obstáculos; São pictogramas de cinco mil anos. São os olhos atentos das gerações futuras.

《回答》卑鄙是卑鄙者的通行证,  高尚是高尚者的墓志铭,  看吧,在那镀金的天空中,  飘满了死者弯曲的倒影。冰川纪过去了,  为什么到处都是冰凌?  

好望角发现了,  为什么死海里千帆相竞?我来到这个世界上,  只带着纸、绳索和身影,  为了在审判之前,  宣读那些被判决的声音。告诉你吧,世界  我--不--相--信!  纵使你脚下有一千名挑战者,  那就把我算作第一千零一名。我不相信天是蓝的,  我不相信雷的回声,  我不相信梦是假的,  我不相信死无报应。如果海洋注定要决堤,  就让所有的苦水都注入我心中,  如果陆地注定要上升,  就让人类重新选择生存的峰顶。新的转机和闪闪星斗,  正在缀满没有遮拦的天空。  那是五千年的象形文字,  那是未来人们凝视的眼睛。

2. Língua

Muitas línguas voam neste mundo e colidem, causando centelhas; às vezes, são ódio, às vezes, são amor. O prédio da razão está a arruinar em silêncio. Cestos tecidos com pensamentos, tão pálidos como feixes de bambu, enchem-se de cogumelos, cegos e venenosos. Na pintura de rocha, os animais correm pisando as flores; um dente-de-leão cresce em segredo em algum canto, e as suas sementes são espalhadas pelo vento. Muitas línguas voam no mundo, mas o que as línguas produzem

POEMASTRADUÇÃO DE YAO FENG

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não aumenta ou reduz o sofrimento calado do Homem.  《语言》   许多语言  在这世界上飞行  碰撞,产生了火星  有时是仇恨  有时是爱情   理性的大厦  正无声地陷落  竹篾般淡薄的思想  编成篮子  盛满盲目的毒蘑   那些岩画上的走兽  踏着花朵驰过  一颗蒲公英秘密地  生长在某个角落  风带走了它的种子许多种语言  在这世界上飞行  语言的产生  并不能增加或减轻  人类沉默的痛苦 3. Vamos

Vamos As folhas caídas são sopradas para os vales pro-fundos mas a canção ainda não retornou a casa.Vamos O luar sobre o gelo tem irrompido o leito do rio.Vamos Nós olhamos para o mesmo céu mesmo os nossos corações batem no tambor do crepús-culo.Vamos Não perdemos as nossas memórias vamos em busca do lago da vida.Vamos O caminho, o caminho está coberto de papoulas vermelhas.

《走吧》走吧,  落叶吹进深谷,  歌声却没有归宿。走吧,  冰上的月光,  已从河床上溢出。走吧,  眼睛望着同一片天空,  心敲击着暮色的鼓。走吧,  我们没有失去记忆,  我们去寻找生命的湖。

走吧,  路呵路,  飘满了红罂粟。 

4. Perdido

Seguindo o som de apito de pombo eu procurava-te mas a alta floresta vedou o céu. Numa vereda um dente-de-leão que se extraviou levou-me a um lago azul-cinzento. No reflexo a ondular suavemente, acabei por achar-te os olhos insondáveis. 《迷途》沿着鸽子的哨音  我寻找着你  高高的森林挡住了天空  小路上  一颗迷途的蒲公英  把我引向蓝灰色的湖泊  在微微摇晃的倒影中  我找到了你  那深不可测的眼睛

5. Declaração

Para Yu Luoke

Talvez seja o momento final mas não deixei nenhum testamento à minha mãe senão uma caneta. Não sou nada herói numa época isenta de heróis só quero ser um homem. O horizonte tranquilo divide a fileiras dos vivos e dos mortos. Prefiro optar pelo céu a me ajoelhar no chão para não aumentar a altura dos executores que vão bloquear o vento de liberdade. Dos buracos de bala, parecidos com estrelas, verterá a aurora cor de sangue.

《宣告》  献给遇罗克也许最后的时刻到了  我没有留下遗嘱  只留下笔,给我的母亲  我并不是英雄  在没有英雄的年代里  我只想做一个人宁静的地平线  分开了生者和死者的行列  我只能选择天空  决不跪在地上  以显出刽子手们的高大  

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好阻挡自由的风从星星的弹空里  将流出血红的黎明 6. Templo antigo

O extinto som do sino tece a teia de aranha, que expande na coluna com fendas, como círculos anuais. Sem memórias, as pedras que espalham os ecos no vazio vale das monta-nhas não têm memórias. Quando o trilho se desvia por aqui, até os dragões e os pássaros esquisitos se sumi-ram, com eles levando a sineta sufocada que pendia do beiral. Todos os anos, as ervas selvagens crescem e mur-cham de forma tão indiferente que nem lhes importa se o dono a quem são subordi-nadas serão os sapatos de pano do monge ou o vento de passagem. Na lápide quebrada, não é identificável a inscrição tão gasta, senão através dum incêndio. Talvez acompanhada pelo olhar dum homem vivo, uma tartaruga tenha renascido na terra atravessando o limiar do templo com o segredo pesado às costas. 《古寺》   消失的钟声  结成蛛网,在裂缝的柱子里  扩散成一圈圈年轮  没有记忆,石头  空蒙的山谷里传播回声的  石头,没有记忆  当小路绕开这里的时候  龙和怪鸟也飞走了  从房檐上带走喑哑的铃铛  荒草一年一度  生长,那么漠然  不在乎它们屈从的主人  是僧侣的布鞋,还是风  石碑残缺,上面的文字已经磨损  仿佛只有在一场大火之中  才能辨认,也许  会随着一道生者的目光  乌龟在泥土中复活  驮着沉重的秘密,爬出门槛

7. Fim ou começo

Em homenagem Yu Luoke Aqui estou eu para substituir o outro, já assassinado. Cada vez que o sol nasce a sombra pesada, como uma estrada, atravessa toda a terra.

A névoa triste cobre os telhados desiguais e retalhados. Entre uma casa e outra as chaminés jorram as multidões de cinza e o calor efunde-se das árvores iluminadas pelo sol. Das mãos cansadas que seguram as pontas [dos cigarros da miséria sobem as nuvens sombrias. Em nome do sol a escuridão saqueia abertamente enquanto o silêncio continua a contar a história do Oriente. Nos frescos antigos o povo vive em silêncio o povo morre em silêncio. Ah, minha amada terra, por que deixas de cantar? Será que mesmo os cabos dos Burlaks no Rio Amarelo foram cortados como cordas de alaúde e deixaram de ressoar? Será que o tempo, este espelho escuro, também te virou as costas para sempre, deixando-te apenas estrelas e nuvens flutuantes? Vou à procura de ti em numerosos sonhos ou de noite de nevoeiro ou de manhã. Eu procuro a primavera e as macieiras com abelhas a agitarem a brisa. Eu procuro a maré a descer e subir e sobre as ondas os raios solares viram-se gaivotas. Eu procuro as estórias embutidas nas paredes e os nomes, meu e teu, já esquecidos. Se o sangue puder tornar-te fértil, os frutos pousados nos ramos de amanhã ficarão com a minha cor. Devo reconhecer que eu tremo, à luz branca e fria da morte. Quem quer ser um meteorito ou uma estátua de mártir gelada Olhando a chama da juventude inextinguível a passar pelas mãos alheias? Mesmo que os pombos pousem no teu ombro, não sentes o calor do corpo e a respiração. Eles alisam as suas asas e rapidamente voam para longe. Eu sou homem e preciso do amor. Queria passar tranquilo cada anoitecer nos olhos da namorada. Espero pelo primeiro choro do filho desde o berço a balançar. No relvado, nas folhas caídas e em cada olhar sincero eu escrevo poemas de vida. Este desejo tão simples tornou-se hoje todo o custo para ser homem.

Na minha vida tenho mentido muitas vezes, mas sempre cumpro honestamente a promessa que fiz quando era criança. Por isso, o mundo intolerável ao coração de uma criança nunca me deixa de perdoar. Aqui estou para substituir o outro, já assassinado. Não tenho outra opção. E onde eu caio morto um outro levantar-se-á do chão. Sobre os meus ombros sopra o vento no qual brilha a constelação. Talvez um dia o sol, tornado numa coroa de flores murchas, seja posto nas lápides crescentes como floresta, em homenagem aos combatentes indobráveis. Os corvos voam e pairam como farrapos da noite.

Nota: Yu Luoke (1942-1970): nasceu em Pequim, sen-do jovem crítico contra o movimento da Gran-de Revolução Cultural. Recusado a estudar em universidade por os seus pais serem acusados de capitalistas, ele entrou numa fábrica para tra-balhar como operário. Ficou conhecido com a publicação clandestina de uma série de artigos “antirrevolucionários”, sobretudo Sobre a origem, no qual defende que a origem duma pessoa não deve ser o fator determinante do seu destino. Em 1970, foi executado sob a acusação de crime con-tra a revolução. Ele era amigo de Bei Dao.

《结局或开始:献给遇罗克》我,站在这里  代替另一个被杀害的人  为了每当太阳升起  让沉重的影子象道路  穿过整个国土悲哀的雾  覆盖着补丁般错落的屋顶  在房子与房子之间  烟囱喷吐着灰烬般的人群  温暖从明亮的树梢吹散  逗留在贫困的烟头上  一只只疲倦的手中  升起低沉的乌云以太阳的名义  黑暗公开地掠夺  沉默依然是东方的故事  人民在古老的壁画上  默默地永生  默默地死去呵,我的土地  你为什么不再歌唱  难道连黄河纤夫的绳索  

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也象崩断的琴弦  不再发出鸣响  难道时间这面晦暗的镜子  也永远背对着你  只留下星星和浮云我寻找着你  在一次次梦中  一个个多雾的夜里或早晨  我寻找春天和苹果树  蜜蜂牵动的一缕缕微风我寻找海岸的潮汐  浪峰上的阳光变成的鸥群  我寻找砌在墙里的传说  你和我被遗忘的姓名如果鲜血会使你肥沃  明天的枝头上  成熟的果实  会留下我的颜色必须承认  在死亡白色的寒光中  我,战栗了  谁愿意做陨石  或受难者冰冷的塑像  看着不熄的青春之火  在别人的手中传递  即使鸽子落到肩上  也感不到体温和呼吸  它们梳理一番羽毛  又匆匆飞去我是人  我需要爱  我渴望在情人的眼睛里  度过每个宁静的黄昏  在摇篮的晃动中  等待着儿子第一声呼唤  在草地和落叶上  在每一道真挚的目光上  我写下生活的诗  这普普通通的愿望  如今成了做人的全部代价一生中  我多次撒谎  却始终诚实地遵守着  一个儿时的诺言  因此,那与孩子的心  不能相容的世界  再也没有饶恕过我我,站在这里  代替另一个被杀害的人  没有别的选择  在我倒下的地方  将会有另一个人站起  我的肩上是风  风上是闪烁的星群也许有一天  太阳变成了萎缩的花环  垂放在  每一个不朽的战士  森林般生长的墓碑前  乌鸦,这夜的碎片  纷纷扬扬

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EUAntónio GrAçA de Abreu

GOSTO MUITO de Nanquim ou Nanjing. Aqui arribei pela primeira vez em 1980 e de-pois vieram os regressos em 1999, 2001 e 2011.Gosto também do nome, Nanquim. Foi um dos primeiros topónimos chineses que aprendi. Ti-nha dez anos quando, no 1º.ano (hoje 5º.) do Liceu Alexandre Herculano, no meu Porto, nas aulas de Desenho todos usávamos um “tubo de Nanquim”, da Pelikan, tinta preta da China. Esta tinta, forte, negra, carregada é exactamen-te originária da região de Nanquim e da vizi-nha província de Anhui.A cidade, na margem sul do rio Yangtsé, é boni-ta, rodeada de montes e bosques, coisa rara na China. Cresceu anichada no sopé da montanha Zijinshan, ou Púrpura, no alto da qual funciona um antigo observatório meteorológico onde ainda se guardam alguns instrumentos fabrica-dos e utilizados pelos astrónomos dos séculos XVII e XVIII, alguns deles jesuítas europeus. O italiano Matteo Ricci, o introdutor do cristia-nismo na China -- que passou pelo grande bur-go em 1599, ido de Lisboa e Macau a caminho de Pequim --, apercebeu-se da importância de Nanquim e considerou-a a cidade mais valiosa do Império do Meio. E o nosso Fernão Mendes Pinto, que aqui terá passado uns meses na pri-são no ano de 1541 quase sem roupa para vestir e “coberto de piolhos”, diz no capítulo 88 da Peregrinação:“Esta cidade de Nanquim é a segunda do reino da China (…) Todas estas ruas nobres têm ar-cos nas entradas com suas portas que se fecham de noite, e as mais delas têm chafarizes de água muito boa e são em si muito ricas e de muito trato, têm, todas as luas novas e cheias, feiras gerais onde concorre infinidade de gente de di-versas partes e há nelas grandíssima abundân-cia de mantimentos quanto se pode imaginar, tanto de frutas como de carnes e peixes.”Namquim sempre pareceu reunir todas as con-dições e qualidades para ser capital imperial, no entanto, durante séculos e séculos, só por períodos muitos curtos conseguiu ascender à solene posição de capital da China. Foi tudo célere e breve, os poderes de imperadores e usurpadores do trono cedo se desfizeram em nada. Por muitas, surpreendentes e desvairadas razões.Já Li Bai (701-762), o genial poeta da dinastia Tang, há treze séculos atrás referia-se a Nan-quim nos seguintes termos:

À tua sombra, seis dinastias prosperaram e findaram,hoje bebo três taças e dedico-te estes versos.Teus jardins mais pequenos que os das terras de Qinmas tuas colinas luminosas e belas como as Luoyang.Onde o palácio dos Jinoutrora tão soberbos e temidos?Tudo foi, não é, tudo chega ao fim,coisas e homens viajando até à morte.Assim também as águas do Yangtsé,correndo, perdendo-se no mar.1

O nome 南京Nanquim ou Nanjing signifi-ca “capital do sul” e só lhe foi dado por Zhu Yuanzhang, o primeiro imperador da dinastia Ming (1368-1644) que decidiu transferir a ca-pital de Pequim -- ou 北 京 Beijing, a “capital do norte” --, para esta cidade que beneficiava de uma muito melhor localização. Mas Yongle, terceiro imperador Ming, em 1406 reinstalou a capital do império em Pequim, por razões de estragégia militar, para uma mais efectiva defe-sa das fronteiras norte.O imperador Zhu Yuanzhang aqui faleceu em 1398 e foi enterrado no sopé sul da montanha Púrpura. O túmulo é um dos lugares turísticos de Nanquim com o “Caminho Sagrado”, a es-tradinha que conduz à tumba, ladeado por es-tátuas em pedra, aos pares, de camelos, elefan-tes, leões, animais mitológicos, mandarins civis e militares, tal e qual como nos arredores de Pequim, no caminho que conduz às Shisanling, as Treze Tumbas dos restantes imperadores da dinastia Ming. Só que na actual capital o con-junto é mais grandioso.Subindo a montanha, encontramos no alto de uma escadaria com 392 degraus, o túmulo de Sun Yat-sen, o primeiro presidente e pai da re-pública chinesa aqui proclamada no dia 1 de Janeiro de 1912. Sun Yat-sen faleceu com um cancro em 1925 e o seu corpo foi depositado neste lugar em 1929, num enorme mausoléu com telhados azuis, a cor do Guomindang, o partido nacionalista.Chiang Kai-shek, o generalíssimo que sucedeu a Sun Yat-sen, fez de Nanquim a capital da China em 1928 mas nove anos depois, devido à invasão japonesa, a cidade foi ocupada pe-las tropas nipónicas. O governo da república chinesa foi obrigado a fugir dos japoneses e a instalar-se bem no interior, em Chongqing, na província de Sichuan.A proximidade do rio e do mar contribuiram também para que, no passado, aqui fossem le-vantados enormes estaleiros navais onde foram construídos, por exemplo, os grandes juncos de alto mar utilizados nas navegações de Zheng He (1371-1433), o Vasco da Gama chinês que navegou até Ormuz e Mombaça.

A cidade tem assim muita História e encon-tramo-la a cada passo no deambular por ruas, avenidas, ruelas e jardins. Logo no início da dinastia Ming (1368-1644) levantou-se uma compacta muralha com muitos quilómetros em redor do velho casario, com as suas monumen-tais portas e fortalezas parcialmente conserva-das até hoje. Fernão Mendes Pinto, no capítulo da Peregrinação atrás referido, diz que “a ci-dade em si é cercada de muro forte e de boa cantaria onde tem cento e trinta portas para a serventia da gente.”O burgo antigo, objecto de sucessivos arranjos e restauros, cresceu também em volta do tem-plo de Confúcio que data de 1034, e espraia-se pelas margens do rio Qinhuai que desagua no Yangtsé, uns três quilómetros adiante. Este quar-teirão da cidade é o lugar onde melhor se sente a magia do velho império e onde se respiram aro-mas do longo perpassar do tempo. As constru-ções actualmente existentes têm muitos séculos e foram alindadas não há muitos anos, algumas delas hoje transformadas em lojas e restaurantes onde se vende e come de tudo. No ano 2001, aí comprei três jarras, reinados de Qianlong e de Guangxu (sec. XVIII e XIX) que conservo de-liciado entre as mais bonitas porcelanas chine-sas que possuo. Regressei ao lugar em 2011, em busca do mesmo antiquário, mas a lojinha havia sido transformada numa espécie de pastelaria.Quase no centro de Nanquim fica o lago Xu-anwu, vasto repositório de água doce utilizada outrora no abastecimento urbano. No meio do lago existem cinco ilhas unidas com as margens e entre si por pontes e aterros. A cada uma delas havia-lhe sido atribuído, em meados do século XX, o nome de cada um dos cinco continentes. Foram recentemente rebaptizadas com desig-nações bem mais poéticas do que “Oceania” ou “África”. Hoje são as ilhas dos “Salgueiros na Névoa”, dos “Crisântemos no Outono”, das “Árvores e Nuvens”, das “Brumas na Colina”, do “Mar das Flores”. O parque, que envolve o lago e os espaços nas próprias ilhas, conta com alguns dos mais bonitos e bem tratados jardins da China. Encontramos aqui flores de todos os perfumes, tamanhos e cores. Os chineses, ain-da um povo de agricultores, quando querem, são os melhores jardineiros do mundo.Tudo se faz, tudo se cria e recria nesta cidade de Nanquim habitada por sete milhões de pes-soas, gente que não esquece um passado tam-bém de inenarráveis sofrimentos, e continua hoje a sinuosa luta por quotidianos mais felizes.

1- Poemas de Li Bai, Macau, ICMacau, 1990, pag. 99, tradução António Graça de Abreu

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NO BAR LAN

Pedro Lystmanna revolta do emir

A cada homema sua bola de futebol

(Jeder Mensch sein eigener Fussball)

Estou no Lan, o bar do lobby do Hotel Crown Towers. É difícil olhar estes lu-gares, os bares de Macau, mesmo este decentíssimo Lan, sem os julgar imedia-tamente demasiado limpos, demasiado certos e arrumados - expressões poli-ticamente correctas de uma época de prosperidade recente e aparentemente limpinha, devidamente regulamentada. Uma prosperidade plana a que faltará, certamente, a vertigem própria aos tem-pos em que o medo obrigava à bebida e a outras formas de dissolução. Lembrarão alguns que durante a guerra fria a constante ameaça da aniquilação total, que parecia mais do que inevitável, impu-

sera aos tempos uma leviandade ao mesmo tempo serena e vertiginosa.Aqui, os gins nunca se bebem como se pudes-sem ser os últimos, o seu sabor inevitavelmen-te afectado por uma benevolente abundância e uma paz para lá da podridão.Estes poderão ser tempos de decisão entre duas vias: a da indiferença ou a da revolta. Aqui, no Lan, a excelência da oferta poderá funcionar como promoção de um impulso ir-recusável em direcção a uma destas duas vias.Não há nestas linhas nostalgias, exercício que o seu autor repudia com violência, ape-nas a constatação de um estado de coisas motivada pela leitura do livro de Rainer Metzer, Berlin in the 20’s – Art and Culture 1918-1933. Se esta cidade, hoje de novo cheia de vibração (entenda-se Berlim, não Macau), viveu 15 anos de loucura durante o início do século XX, foi porque sobre ela paira-

va constantemente a ameaça de um fim, a consciência generalizada da sua mortalida-de. “Do que eu gosto é deste sabor a tran-sitoriedade na língua – cada ano que passa pode ser o último”, disse Max Reinhardt. Foi nesta atmosfera voraz e perigosa que se desenvolveram o Expressionismo, as provocações do Dadaísmo ou a voracida-de exibicionista de Herwarth Walden - que levou a Berlim os cubistas checos e os cubistas baseados em França, os futuristas italianos e russos, além de Klee, Chagall e Delaunay. Recordar esta torrente criativa berlinen-se faz lembrar parte de um monólogo de Orson Welles naquele que é considerado o filme inglês mais importante de todos os tempos (continuo a tentar perceber por-quê) – The Third Man, de Oliver Reed. Nele, o gordo americano, sempre cheio de si, diz, aproximadamente, que na época dos Bórgias, durante 30 anos, houve guerras e sangue mas esta época produziu Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci e a Renascença. Na Suíça, um amor fraternal e 500 anos de democracia e paz produziram o quê? - O relógio de cuco. Um disparate que ficou fa-moso mas que não deixa de vir a propósito.Pelos bares da cidade, aqui, não existe o espectro do fim, apenas o aborrecimento de uma longa lista de promessas, renovadas com a abertura de cada novo hotel ou bar, raramente cumpridas, uma inevitabilidade podre de mais e mais riqueza. O problema também pode estar nos seus frequentado-res, indecisos ainda sobre o destino a dar ao seu dinheiro e à sua energia.Esta cidade não é Moloch e não há necessida-de de se lhe sacrificarem crianças. Pelos seus lugares mais escuros não está presente nunca o abandono que vemos em Kirchner ou a vio-lência que encontramos em Grosz. Estaremos eternamente condenados à Maldição de Au-den? É também pela ausência da vertigem e do sangue que precisamos de bares, mais, me-lhores e, especialmente, mais bem frequenta-dos, mesmo que estes se vejam enfiados numa arquitectura que prova que também há um kitsch chato. É o que acontece com o Bar Azul e este bar de nome Lan, lugares correctíssimos, pequenos oásis no interior de um mau gosto que não faz prever a sua existência.Tentar-se-á, no próprio texto, já que este tomou um rumo inesperado, trazer aqui a estas linhas algo que celebre este pequeno bar onde se reúnem qualidades suficientes para que sobre ele se estenda uma visita ocasional.

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T E R C E I R O O U V I D O

FIRST, WE TAKE TEXAS

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“Why the Global Music Industry Needs China”. É este o título da conferência marca-da para hoje, dia 16 de Março, em Austin, no Texas, Estados Unidos, no âmbito do festival South by Southwest (SXSW).

O título, sem ponto de interrogação no final, sugere que os oradores convidados vão explicar a necessidade que a moribunda indús-tria musical tem de conquistar os meandros do mercado chinês para conseguir sobreviver, uma evidência que se vai tornando cada vez mais gritante à medida que a China vai conso-lidando o estatuto de potência global.

No entanto, talvez seja mais oportuno e talvez faça mais sentido inverter os termos da proposta e explicar (ou perguntar): por que precisa a China da indústria musical global? Afinal, deve ser a resposta a esta questão que ocupa as mentes dos músicos das bandas chi-nesas convidadas para a edição deste ano do colossal festival que começou no dia 9 de Mar-ço e termina no próximo dia 18, apresentan-do um total de duas mil bandas (sim, leu bem: 2000), espalhadas por 90 palcos dispostos um pouco por toda a cidade, além de inúmeros eventos paralelos, que vão desde mostras de cinema a conferências.

Este ano, a presença chinesa no festi-

val atinge o número recorde de sete bandas: Snapline, Carsick Cars (é a terceira vez que participam no SXSW), Re-TROS, Duck Fight Goose, Rustic, Deadly Cradle Death e Nova Heart. Nunca tantas bandas chinesas estive-ram juntas fora da República Popular como acontece no South by Southwest de 2012.

São indicadores de que a música chinesa alternativa e independente vai ocupando o seu lugar na competitiva (e complicada) indústria musical global, mas estamos ainda longe de po-der afirmar que o espaço tomado actualmente pela “indiechina” granjeou reconhecimento e popularidade suficientes para que as bandas chinesas sejam já parentes com direito a pre-sença assídua em todas as reuniões de família.

Passou o tempo em que as bandas chine-sas usufruíam do “efeito novidade”; já ninguém (ou quase ninguém), em lado algum, se admira com a simples existência de bandas de Rock chinesas. Por outro lado, não se pode dizer que exista familiaridade bastante ao ponto de um qualquer leitor da revista portuguesa “Blitz”, por exemplo, ter na ponta da língua o nome de três bandas chinesas da actualidade.

Para a música independente e alternati-va chinesa, portanto, representada no SXSW pelas “magnificent seven”, no actual momen-

to, o que está em causa consiste na definição e estabelecimento de uma identidade forte e original e, sobretudo, na afirmação do factor que, no final, será o único a valer: a qualidade.

A partir de agora, desde o momento em que o tal “efeito novidade” se esfumou, será o valor da música a servir para chamar a atenção do mundo para o que se passa na imensa “in-diechina”.

Todavia, para que isso aconteça, há muitas questões, digamos, mais prosaicas, a resolver, e que se prendem, sobretudo, com a distribui-ção e acesso ao que diariamente se produz na China, e também com uma (ainda) maior ex-posição desta música (depois de reportagens no New York Times ou Wall Street Journal, o novo rock chinês chegou à revista de bordo da United Airlines e da Continental Airlines, a Hemispheres Magazine!). É verdade que uma coisa traz a outra e vice-versa, e que será fácil enredarmo-nos como a “pescadinha de rabo na boca”. Ainda assim, deve intrigar-nos o facto de a música alternativa chinesa não ser “novidade” e, ao mesmo tempo, pese embora a “boa imprensa” de que vai gozando, ter tão pouca aceitação e reconhecimento junto de um público mais vasto e além fronteiras.

Comecemos pelo Texas, então.

NO BAR LAN

próximo oriente Hugo Pinto

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gente sagrada José simões morais

C I D A D E S I N V I S Í V E I S

O lendário Senhor tauista que captura os demónios e monstros, Zhong Kui, nas-ceu em Zhongnan, na actual província de Shaanxi, no sétimo dia da sétima Lua do segundo ano do reinado do imperador da dinastia Tang, Xuan Zong, em 713, no seio de uma família pobre. O pai, que sempre tivera pretensões de erudito e apesar de passar muito tempo a estudar nunca fora um académico, passou então a ter como objectivo a educação do seu filho. Dando o melhor, conseguiu fazer de Zhong Kui um bom estudante e este, aos 13 anos, após o sucesso nos anuais exames de Prefeitura, denominados Jieshi, entrou no Colégio Imperial da prefeitura, sendo o mais jovem estudante. Como mostrava grande talento, aos 18 anos foi recomendado para ir es-tudar no Colégio Imperial da capital, que nessa altura se encontrava em Chang’an. Aí se preparou durante dois anos, já que os exames do Ministério (Shengshi) se reali-zavam de três em três anos.

Orgulhoso do prodigioso filho, o pai acompanhou-o nos 150 km até à capital do país, onde se realizava o último exame do sistema Imperial para conseguir o título de Jinshi. Durante os dias que faltavam para os exames, nunca lhe deu descanso, obri-gando-o a continuar a estudar dia e noite. No dia do exame, Zhong Kui completa-mente “estourado, deu-lhe uma branca” e, quando os resultados foram afixados, o seu nome não constava na lista.

Passado alguns dias de terem chegado a casa, o seu pai morreu e Zhong Kui para além de ter que tomar conta da sua mãe e irmã, que era mais nova do que ele, passou a ter que trabalhar no campo para sustento da casa. No resto do tempo que lhe sobra-va, ensinava os jovens vizinhos iniciando--os no estudo.

Num ápice passaram três anos e voltou a ir à capital para repetir o exame. Este cor-reu-lhe bem e como teria de esperar pelos resultados, resolveu passear pela cidade e seus arredores. No caminho, um demónio apanhou-o numa armadilha e após ador-mecê-lo, desfigurou-lhe a cara pintando-a de preto, com uns olhos salientes e uma barba negra. Quando voltou a si, não ti-nha consciência da figura horrível em que o transformaram e sem espelho para se ver, seguiu para saber o resultado do exame.

Ao chegar à cidade, as pessoas olha-vam para ele com pavor. Soube que os re-sultados já tinham sido afixados havia dias e que o seu nome fora substituído pelo de um sobrinho do Comissário Imperial. Voltou para a sua terra com o novo amigo,

鍾馗ZHONG KUI, JUIZ GENERALDO MUNDO DOS DEMÓNIOS

Du Ping, que o ajudara naqueles difíceis momentos e tal como ele tinha sido injus-tiçado nos resultados do exame.

Volvidos outros três anos voltou à capital acompanhado do seu amigo mas, apesar de ter ficado em primeiro lugar nos exames, devido à sua fealdade não foi es-colhido para nenhum cargo oficial e pe-rante tal injustiça, suicidou-se contra uma coluna do palácio.

Quando o imperador, Xuan Zong, ficou a saber do sucedido, consagrou-o a título póstumo Erudito Imperial de Zhongnan, com direito ao robe vermelho destinado ao

Primeiro Classificado dos Exames Imperiais. Du Ping encarregou-se de levar o corpo do seu infeliz amigo para que, com a família lhe fazerem as cerimónias fúnebres na terra na-tal. No caminho, o rodado da carroça que transportava o caixão partiu e mesmo de-pois de arranjado, o caixão voltou a tombar, dando assim sinal ser aquele o lugar onde o espírito de Zhong Kui desejar ficar.

Seis anos antes tinha sido aí que os demónios o atacaram e lhe desfiguraram a face; agora ali ficaria para lhes dar guerra. Após o enterro, Du Ping seguiu viagem para dar conta à família do que se passa-ra e entregar-lhes os haveres e o dinhei-ro que o imperador lhes tinha oferecido. Numa cerimónia fúnebre queimaram o robe vermelho, a espada e os livros para, pelo fumo, os enviar ao espírito do ente querido, combinando apenas visitar o lo-cal onde ele estava sepultado no dia dos mortos, que ocorria na Primavera.

Por seu lado, no mundo dos espíritos, Zhong Kui preparou-se para dar combate aos malévolos espíritos e monstros que só faziam mal aos mortais e, após receber o seu robe vermelho e a espada, dedicou-se a matar todos os demónios que lhe apare-ceram à frente.

No mundo dos vivos, o imperador du-rante uma viagem adoeceu tendo pesade-los todas as noites, não havendo médico que descobrisse qual a sua maleita. Passa-ra mais de uma semana e não havia meio de melhorar. Numa noite acordou a suar e assistiu paralisado a um diabrete roubar--lhe a flauta de jade branca e a bolsa da sua amada concubina, Yang Guifei. Sem nada poder fazer, viu então uma figura gigante que apanhando o diabrete o es-magou e comeu. O imperador quis saber quem ele era e este respondeu ser Zhong Kui, que lhe agradecia a honra de o ter reconhecido a título póstumo primeiro oficial imperial. Ao acordar, o imperador sentiu-se curado e pouco tempo depois distinguiu o seu protector com o título de Juiz, dando-lhe a liberdade de poder andar por todos os lugares do palácio, fi-cando com a responsabilidade de dar caça aos demónios.

Então, Zhong Kui preparou-se para entrar no Inferno e ir à gruta dos demó-nios e destruir todos os que aí habitavam. Para isso recebeu do vidente pai de Du Ping, via oferenda enviada pelo fogo, um cajado feito de madeira de pessegueiro. Com ele conseguiu aniquilar, reduzindo a cinzas todos os demónios e monstros que encontrou nos diferentes patamares e chegando à sala onde se encontrava o mais terrível de todos, numa última bata-lha acabou com o Senhor dos demónios, o mesmo que o tinha desfigurado. Só de-pois se dirigiu ao Rei dos Infernos para prestar contas dos seus actos. Foi aco-lhido não como um fantasma, mas como uma divindade, pois devido ao seu bom coração fora deificado pelo Imperador do Céu. Então o Rei dos Infernos ordenou--lhe que fosse para junto dos vivos e exor-cizasse os espíritos malignos que viviam neles e antes de se pôr a caminho, recebeu o título de General dos capturadores dos fantasmas e um exército para o ajudar.

Em tempos muito antigos, muito antes de esta história ter ocorrido, Zhong Kui, apesar de kui não ser escrito com o mes-mo caracter, não era uma personagem, mas estava ligado a um objecto usado para exorcismo. Mais tarde passou a ser um som protector contra o mau-olhado e já na dinastia Tang, as pessoas colocavam nas suas casas, no quinto dia do quinto mês lunar, durante a Festividade do Barco Dragão, o retrato de Zhong Kui para afu-gentar os demónios, a exemplo do que o imperador fizera.

Zhong Kui tem em Macau a sua sala no templo de Bao Gong.

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L E T R A S S Í N I C A S

Quando a sociedade é caótica, um só sábio não a conseguirá ordenar.

HUAI NAN ZI 淮南子 O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mes-tres de Huainan foi composto por um con-junto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, es-tes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A ver-são portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico com-pleto pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro gru-pos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guer-ra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção in-titulada “Miscellaneous Schools”.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 1

Quando a sociedade é ordeira, um só tolo não a poderá perturbar; quando a sociedade é caótica, um só sábio não a conseguirá ordenar.

* * *

Culpar o Tao por não funcionar quan-do vivemos num mundo poluído é como amarrar um unicórnio a partir de duas direcções e esperar que este corra mil léguas.Coloca um macaco numa jaula e este será igual a um porco, não porque não seja esperto e veloz, mas porque não tem lugar para exercer livremente as suas capacidades.

* * *

Mesmo os líderes sábios devem aguar-dar por circunstâncias apropriadas. As circunstâncias apropriadas só se po-dem encontrar no tempo certo e não se podem cumprir por uma busca reali-zada através do conhecimento.

* * *

Os sábios abandonam a estrada e se-guem a Via; os tolos apegam-se à Via e perdem a estrada.

* * *

A tarefa básica da governação é asse-gurar a segurança da populaça. A segu-

rança da populaça baseia-se na satisfa-ção de necessidades. A base da satisfa-ção das necessidades consiste em não privar o povo do seu tempo. A base de não privar o povo do seu tempo con-siste em minimizar as taxas e despesas do governo. A base da minimização das taxas e despesas do governo resi-de na moderação do desejo. A base da moderação do desejo reside num re-gresso à natureza essencial. A base do regresso à natureza essencial consiste em remover o jugo das acumulações.Remove o jugo das acumulações e ha-verá abertura. Ser aberto é ser equâni-me. A equanimidade é o elemento bá-sico da Via; a abertura é a casa da Via.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

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Poeta da dinastia Tang. Entre o taoísmo e o zen, Han Shan fala da vacuidade e do silêncio, do interior dos homens e do encontro com a Natureza.Feito monge, ria-se do mundo, da pressa, das ambições humanas e, sobretudo, ria-se de si próprio.Contemporâneo e imperdível.