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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2765. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE GILBERT DURAND (1921-2012) O REAL IMAGINÁRIO

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 4 de Janeiro de 2013

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2765. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

GILBERT DURAND (1921-2012)

O REAL IMAGINÁRIO

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NO passado dia 6 de De-zembro faleceu Gilbert Du-rand (1921-2012). Profesor emérito de la  Universidad

de Grenoble, onde criou o Centre de Recherches sur I´lmaginaire en 1966, discípulo confesso de  Gaston Bache-lard  (1884-1962), elaborou una teo-ria da imaginação simbólica e material centrada nos elementos primordiais da cosmogonia  de  Empédocles, terra, ar, água e fogo, influenciado também pelos trabalhos psicanalíticos de  Carl Gustav Jung  (1875-1961) e a sua teo-ria do Inconsciente colectivo  (reserva de imagens primordiais o  arquétipos). Assim propôs um inovador enfoque mi-tológico e arquetípico da imaginação

  Gilbert Durand recupera no século XX a noção de imaginação, anterior-mente associada ao erro e à fantasia. O Imaginário é, de acordo com o autor, o  “conjunto de imagens e das relações das imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens – aparece--nos como o grande denominador fun-damental onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano”. A Imaginação Simbólica possui uma for-ça dinâmica que reconfigura o real, que possibilita o acesso ao sentido permi-tindo aceder à dimensão profunda da realidade e faz a ligação entre a realida-de e o conjunto das suas significações. Assim, a imaginação nega o nada, a morte e o tempo.

Caravaggio, Deposição (Detalhe)

GILBERT DURANDO LUTO DA IMAGINAÇÃO

EM 6 DE DEZEMBRO DE 2012, UM HOMEM NOTÁVEL PARTIU: GILBERT DURAND (1921-2012). E POU-COS DERAM PELA PARTIDA DE UMA DAS FIGURAS MAIS IMPORTANTES DO PENSAMENTO DO SÉCU-LO XX. RESISTENTE ANTI-NAZI, FILÓSOFO, MITÓLOGO, ANTROPÓLOGO, SENHOR DE UMA VASTÍS-SIMA CULTURA, REFLECTIU IGUALMENTE SOBRE A MITOLOGIA PORTUGUESA, POIS CONSIDERAVA QUE, DO PONTO DE VISTA DO IMAGINÁRIO, PORTUGAL ERA “UM TESOURO OCULTO DA EUROPA”.

criadora, com reconhecidas aplicações no campo da  estética, da  iconologia, da iconografia e da crítica literária. Al-gumas de sus obras são “A imaginação simbólica”;  “Mito e sociedade: a mito-análise e a Sociologia das profundida-des”;  “Imaginário e pedagogia” e a sua grande obra, “As estruturas antropológi-cas do imaginário” (Paris, 1960).Durand utiliza a expressão imaginário ao invés de simbolismo, uma vez que para ele o símbolo seria a maneira de expressar o imaginário. A sua teoria so-bre o imaginário organiza-se sob o mé-todo da convergência, isto é, os símbo-los (re) agrupam-se em torno de núcleos organizadores, as constelações, as quais são estruturadas por isomorfismos, que

dizem respeito à polarização das ima-gens; indica que há estreita relação en-tre os gestos do corpo e as representa-ções simbólicas. Os símbolos constelam porque são desenvolvidos de um mesmo tema arquetípico, porque são variações sobre um arquétipo.O autor utiliza ainda a reflexologia a fim de explicar a sua classificação, ba-seada na noção de gestos dominantes: as dominantes reflexas que se referem aos mais primitivos conjuntos sensório--motores que constituem os sistemas de acomodações mais originários na onto-gênese, os quais, segundo a teoria de Piaget, deveria se referir toda a repre-sentação nos processos de assimilação constitutivos do simbolismo. 

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DE início, devemos chamar a atenção para a predominân-cia do imaginário e da trans-cendentalidade nas teorias

de Durand. Em seus trabalhos há uma constante antropológica que consiste em mostrar que todo pensamento, seja ele justificador de uma posição racional ou de uma posição intuitiva, tem sua matriz nas imagens. Mesmo que haja algum tipo de recalcamento, as imagens constante-mente indicam um sistema simbólico que permite ao pensamento “ser no mundo”.Para Durand, o mito está sempre presen-te na capacidade que o ser humano tem para simbolizar, seja pelas imagens pro-priamente simbólicas ou pelos motivos arquetípicos. Significa que o imaginário é o centro da habilidade do homem para transcender e que, com pouca variância, se realiza na forma de imagens simbóli-cas e de narrativas arquetípicas.O contexto do pensamento de Durand se dá no processo de remitologização que cresceu no século XX. Seguindo elemen-tos norteadores preconizados por Ernst Cassirer, Carl Jung e Gaston Bachelard, e caminhando pelas trilhas deixadas por Giambattista Vico, Immanuel Kant e S. T. Coleridge, tem promovido o imaginá-rio como matriz de uma “mitopoiésis”, ou seja, a habilidade que todo sujeito possui de elaborar o mundo e a si mesmo através do mito. É simbolizando que o ser huma-no ultrapassa o mundo e a morte.Essa postura do antropólogo levou-o a contrapor-se às concepções reducionistas do conhecimento. Alinhando-se a pensa-dores como Edgar Morin, Merleau-Ponty, Mounier e Berdiaev, tem lutado para que o saber seja uma via de mão dupla, ou de “veredas que se bifurcam”. Acusando que na nossa época a imaginação é pouco va-lorizada e recalcada como “louca da casa”, tem lutado para que ela seja ressaltada como forma de “revolução silenciosa”. Ele mesmo afirma que, mesmo que a imagina-ção e o imaginário sejam reprimidos, eles revoltam-se e dão um jeito de se exprimir (DURAND, 2002).Retomando a questão paradigmática, que tem se revelado impulsora de novas abordagens interpretativas, Durand tem feito as suas interpretações a partir dos estudos multirreferenciais como a inter-disciplinaridade, a transdisciplinaridade e a metadisciplinaridade. Ultrapassando o conceito neopositivista de uma lingua-gem pura que, “em última análise, nos li-vraria dela mesma ao nos entregar às coi-sas” (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 24), tais estudos configuram diálogos entre disciplinas e saberes que envolvem uma ontologia pluralista, uma lógica poliva-lente e uma epistemologia sintética e fe-

RogéRio CaRvalho

O IMAGINÁRIO DE GILBERT DURANDnomenológica. Na margem do patrulha-mento inflexível do determinismo causal, dos modelos científicos de simplificação, disjunção, exclusão e redução, para Du-rand, a razão tem ganhado uma confor-mação nova, aberta, e a partir de um pa-radigma da complexidade (MORIN)1.Apesar das diversas contribuições ao pen-samento de Durand, dois eixos apoiam suas investigações. O primeiro baseia-se nos trabalhos de Gaston Bachelard, que transita do ri-gor epistemológico para a ambiguidade e semantismo da imagem poética. O segundo eixo pro-vém da Escola de “Eranos”, iniciada por Rudolf Otto e Karl Jung. Nesta escola, desenvolvi-da em Ascona, Suí-ça, de 1933 a 1988, e discutindo ques-tões relacionadas à mitologia compa-rada, antropologia cultural e herme-nêutica simbólica, participaram estu-diosos como Mir-cea Eliade, Joseph Campbell, James Hillman, G. Scholem, Jean Danielou e Henry Corbin; isso para citar apenas al-guns.Bachelard propõe uma fenomenologia do imaginário e, por meio do devaneio po-ético, ultrapassar as questões genéticas e psicanalíticas do escritor e do leitor. Para ele não interessa a biografia do autor nem as patologias do leitor, mas o símbolo na sua plenitude, que só pode ser colhido numa fenomenologia da imagem, pela qual autor, obra e leitor estejam total-mente comprometidos. No devaneio as imagens não são passivas (tradição que vai até Sartre), mas activas e propulsoras de um dinamismo criador (imaginação activa). Dessa forma, as imagens pos-suem a capacidade de amplificação poé-tica, indo além do dito.O trabalho de Bachelard consolida-se quando a sua ontologia simbólica termi-na em três temas essenciais: eu, o mun-do e Deus. Para Gilbert Durand, bastava apenas generalizar a antropologia de Ba-chelard (Conf. TURCHI, 2003, p. 23). Sintetizando as representações humanas nas imagens (imaginário), Durand refor-ça a sua semanticidade sem, no entanto, predeterminar a sua origem em pontos

1 Não estamos novamente aqui sendo reconduzidos ao “jardim de veredas que se bifurcam”, metáfora que escolhemos no início como exemplo de convergência de caminhos opostos?

fixos: na geografia, na história, na cultu-ra, no inconsciente; “sem por limitações a priori e sem optar por uma ontologia psicológica que não passa de espiritualis-mo camuflado, ou uma ontologia cultu-ralista que, geralmente, não é mais que uma máscara da atitude sociologista (...)” (DURAND, 2002, p. 40). Por isso, para evitar a antiga querela entre culturalis-tas e psicólogos, Durand instaura o que

ele vai chamar de trajecto antropoló-gico: “a incessante troca que existe ao nível do imagi-nário entre as pul-sões subjectivas e assimiladoras e as intimações objec-tivas que emanam do meio cósmico e social” (DURAND, 2002, p. 41). É o imaginário que for-nece a relação entre a subjectividade e objectividade, en-tre as reações assi-miladoras do sujei-to e as emanações do meio objectivo.2 O imaginário é esta encruzilhada antropológica que permite esclarecer

um aspecto de uma determinada ciência humana por um outro aspecto de outra (DURAND, 2002, p. 18).O trajecto antropológico propor uma mitodologia e uma arquetipologia geral não se dá por acaso. Durand busca ins-piração em Jung para as suas intuições sobre os mitos e símbolos. Com a Escola de “Eranos”, Durand vê a necessidade de recuperar a tradição hermético-gnóstica submersa na racionalização ocidental. Sendo o mito e o símbolo possuidores de um caráter ambíguo, totalizam a concep-ção de verdade: bipolaridade é a marca das representações humanas.Tomando como ponto de partida a teo-ria do simbolismo de Jung, Durand, por exemplo, vê que o termo alemão para símbolo (Sinbild) é o melhor termo para definir o equilíbrio entre consciente e inconsciente. “Englobando em sua com-posição etimológica o sentido (Sinn), elemento integrante do consciente reco-nhecedor e formativo, e a imagem (Bild), matéria-prima substancial do criador, localizada no inconsciente coletivo”, o símbolo tem uma função transcendente e é a fórmula básica do processo de indivi-duação (TURCHI, 2003, p. 25).No rasto deixado por Jung, Durand for-

2 Além de Bachelard, a noção de trajeto antropológico é fundamentada nas concepções de Roger Bastide sobre as relações da sociologia com a psicanálise.

mula a sua teoria geral do imaginário que ele denomina de “estruturalismo figura-tivo”, exposto de forma consistente em sua obra “As estruturas antropológicas do imaginário”.Porém, o estruturalismo do antropólogo não segue os padrões tradicionais. “Du-rand tenta conciliar a disputa entre o es-truturalismo formal de Lévi-Strauss e a hermenêutica existencializante e histori-cizante de Ricoeur, não rebatendo nem a sincronicidade estrutural, nem a compre-ensão (gnosis) hermenêutica” (TURCHI, 2003, p. 25). Expondo de outro modo, ele entende a estrutura como um espaço dinâmico, intuitivo e organizador, e não como uma forma estática e esvaziada de sentido.3

O estruturalismo do antropólogo exige que ele delimite os trajectos antropoló-gicos que os símbolos constituem. Para isso, vale-se de um método de conver-gência que mostra as constelações de imagens constantes estruturadas por um isomorfismo dos símbolos convergentes. O processo de convergência é feito por homologia e não por analogia, pelo se-mantismo dos símbolos e não pela sinta-xe. Isso significa que os símbolos seguem a sua natureza arquetipal, impedindo que fiquem perdidos e espalhados nas suas funções e discursos culturais, sociais etc, ou, ao contrário, que fiquem presos numa estrutura rígida e portadora de significa-dos sedimentados.Como as imagens convergem e se estru-turam em torno de núcleos organizado-res, como um iman que “puxa” as ima-gens e seus respectivos símbolos para o seu pólo, Durand procura classificar esses núcleos. Para tal, relaciona a sua antro-pologia à reflexologia da Escola de Le-ningrado, que estabeleceu a concepção de gestos ou reflexos dominantes. Assim, a partir dos estudos anatomofisiológicos e etológicos, mais especificamente pelas observações de W. Betcherev, Durant propõe três gestos dominantes: o postu-ral, o digestivo e o copulativo. Estas três dominantes reflexas vão formar as matri-zes nas quais as representações humanas naturalmente convergem e se integram.Além da tripartição, o antropólogo classi-fica as imagens numa bipartição: o regime diurno e o regime nocturno, baseando-se nas obras de Georges Dumézil e André Piganiol. Na verdade, a dominante pos-tural é ligada ao regime diurno, e as do-minantes digestiva e copulativa, são agru-padas em conexão com o regime noctur-no. A dominante postural, na busca pela verticalização, é norteadora das imagens diurnas que se desdobram na tecnologia das armas, dos magos e dos guerreiros; no ceptro do soberano e nos rituais de ele-vação e purificação. A dominante diges-

3 Durand encontra respaldo no sistema lógico do físico S. Lupasco, conforme afirma no final de seu livro.

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tiva ou de nutrição, na busca pela acção de descida, do calor e do engolimento, é norteadora das imagens nocturnas que se desdobram nas técnicas do recipiente e da casa; nas acções alimentares, digestivas e nos esquemas matriarcais. A dominante copulativa ou sexual, na busca pelas ac-ções rítmicas, é norteadora das imagens nocturnas que se desdobram nas técnicas do ciclo e do calendário agrícola; no dra-ma do retorno e na concepção histórica; nos mitos e dramas astrobiológicos.Retomando a concepção de trajecto an-tropológico, a ponte que liga nesse tra-jecto o sujeito ao mundo e o mundo ao sujeito, é feita pelos esquemas, arquétipos e símbolos. O esquema, diferente da con-cepção kantiana (não esboço, mas mo-vimento interior e dinâmico), significa a junção entre os gestos dominantes da sensório-motricidade e as suas respectivas representações. “À dominante postural, por exemplo, correspondem os esquemas de queda” (TURCHI, 2003, p. 28). Os arquétipos, por seu lado, são media-dores entre os esquemas (subjectivos) e as imagens percebidas no ambiente. Os gestos dominantes, manifestos em es-quemas e em contacto com o ambiente, originam os arquétipos. Constituindo a ponte entre o imaginário e os processos racionais, mostram-se universais e, por-tanto, adequados ao esquema. “Por exem-plo, aos esquemas de ascensão correspon-dem os arquétipos de ‘cume’, ‘céu’, ‘torre’, ‘herói’ (...)” (TURCHI, 2003, p. 28).Enquanto os arquétipos são universais, os símbolos são polivalentes. Os arquétipos possuem uma constante, mas os símbolos, manifestações desses arquétipos na cultura, são resignificados de acordo com o meio social. Por exemplo, “o esquema ascencio-nal e o arquétipo do céu permanecem imu-táveis, porém, o símbolo que os demarca transforma-se de escada em flecha voadora, em avião supersónico ou em campeão de salto” (TURCHI, 2003, p. 28).Essas definições para o trajecto antropo-lógico são importantes, pois para Durand, os esquemas, arquétipos e símbolos defi-nem o sentido da palavra mito: “sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esque-mas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a compor-se em narrativa” (DURAND, 2002, p. 62-63). Se o arquétipo ressaltava a ideia e o sím-bolo promovia o nome, o mito ressalta os dogmas religiosos, o sistema filosófico ou a narrativa histórica e lendária. O mito faz isso submetendo os símbolos (palavras) e os arquétipos (ideias) a um efeito de racio-nalização pelo fio do discurso.Podemos resumir assim o trajeto antro-pológico:Gestos dominantes - Esquemas - Arqué-tipos - Símbolos - MitosPara o antropólogo, o imaginário possui forças equilibrantes, isto é, o trajecto an-tropológico segue uma lógica semelhante àquela proposta por Hegel: tese, antítese e síntese. Entretanto, diferente do filóso-fo alemão, Durand não vê a síntese como nova tese, mas a integração de elemen-tos da tese e da antítese, preservando as suas características originais. Assim, ora

o trajeto antropológico segue a lógica do regime diurno das imagens, ora segue o regime nocturno, e ora segue uma síntese que se encontra também na lógica do re-gime nocturno. Ressalta, no entanto, que nem sempre conseguimos distinguir tão nitidamente esta lógica, pois a função da imaginação não é um “a priori” universal, como acontece, por exemplo, com os tipos psicológicos. As imagens podem ser avalia-das positiva ou negativamente e, por isso, a consciência pode converter-se de um regi-me para o outro.Mas o que primordialmente orienta as imagens a serem classificadas em regimes e seus respectivos trajetos? Para responder a essa pergunta, Durand esboça no final de seu livro, “As estruturas antropológicas do imaginário”, uma filosofia do imaginá-rio que ele denomina de “fantástica trans-cendental”. Seguindo o projeto de Kant para uma filosofia transcendental, postu-

la a existência de uma realidade idêntica e universal do imaginário, que promove o “espaço fantástico” (Conf. TURCHI, 2003, p. 31). Nesse caso, a atitude de ima-ginação ou de representação no homem nada mais é do que a atitude predomi-nante contra as forças da morte. Apesar de não citar, Durant segue os vestígios da filosofia de Heidegger, para quem o nada (“morte”) nos remete para o ser (“ser-aí” - Dasein) e, por conseguinte, o “ser-aí” para os “modos de ser”. O imaginário é então uma eufemização da morte, um modo de suavizar o espectro ameaçador do “não--ser”, espectro representado principal-mente pela noção de tempo.4

Aliás, ao longo de sua obra, Heidegger desenvolve uma constante reflexão sobre as relações da metafísica com a teologia

4 Durand encontra ressonâncias nas obras de Henri Bérgson, André Malraux e M. Griaule.

que, no fundo, nos lança novamente para o nosso problema central, ou seja, o da linguagem. Tanto para Durand como para Heidegger a linguagem é o fundamento representacional do ser e, por consequên-cia, contraponto do não-ser. Isso significa que a linguagem, que é representação do pensamento, pode ser do tipo metafísico como do tipo estético. Mesmo reconhe-cendo que “somos irremediavelmente me-tafísicos, (...) as nossas perguntas perten-cem, de certa maneira, ao nosso próprio ser”, logo, as nossas respostas também (MARASCHIN, 2004, p. 8). Ora, se a lin-guagem é a representação do pensamen-to, então ela também pode ser estética. Como afirma Heidegger: “a linguagem é em si mesma poesia em sentido essencial” (Apud MARASCHIN, p. 10). Diante das faces da morte e de suas carac-terísticas de temporalidade e destino, o re-gime diurno assume esquemas verbais de distinção, ou seja, “narrativas” de negação do tempo e das trevas. Com uma atitude diairética (em direção à luz), projecta-se para cima e para além, no atemporal. A instância negativa, ou seja, a angústia da morte, e que obviamente deve ser repeli-da, é representada por símbolos teriomór-ficos (animais), nictomórficos (trevas) e catamorfos (queda e abismo).A imaginação diurna adopta uma atitude heróica que reforça o aspecto tenebroso e maléfico de “Cronos”. Numa antítese da morte, antepõe a figura do herói com suas armas, que geralmente termina com uma teleologia ascencional e luminosa (o herói vence a morte, ressurge e sobe para o céu luminoso). Os símbolos básicos dessa atitude é o ceptro e o gládio.Posteriormente Durand apresenta quatro atitudes básicas derivadas da ideia de se-paração. Essas atitudes são divididas em quatro estruturas. A primeira estrutura é a esquizomorfa ou heróica e consiste num processo autístico típico do “herói”. Há perda de contato com a realidade, subs-tituída pelo poder de autonomia e idealis-mo. A segunda estrutura é a Spaltung que, pelo poder da abstração e de uma atitude autística, se manifesta num furor analítico semelhante àquele encontrado no esqui-zofrénico.5 A terceira estrutura é derivada pela preocupação obsessiva de distinção e expressa-se no geometrismo. Valoriza-se a simetria, a planificação e a lógica formal. A quarta estrutura apresenta o pensamen-to tão somente por antíteses: imagens com simetrias invertidas.O regime diurno, de certa forma, prepara o regime nocturno, pois este é ao mes-mo tempo a oposição do regime diurno e seus símbolos (estrutura mística), e a sua adaptação (estrutura sintética). Por um lado, o regime nocturno transmu-ta o aspecto negativo da morte capturan-do as forças vitais e benéficas do devir. Numa atitude de assimilação, converte a morte e as trevas em imagens e símbo-los aceitáveis. Assim, o regime nocturno é dividido numa estrutura mística, que

5 Apesar de Durand tomar como exemplo as características patológicas da esquizofrenia, o regime diurno nada tem de patológico.

Durand entende o mito no seu sentido mais geral sendo que engloba “o mito

propriamente dito, ou seja, a narrativa que legitima esta ou aquela fé religiosa ou mágica, a lenda e suas intimações explicativas, o conto

popular ou a narrativa romanesca”

Caravaggio, Maria Madalena

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converte e eufemiza a morte, e uma es-trutura sintética, que concilia o desejo de devir com o eterno retorno. Na estrutura mística, a subida e a luz con-vertem-se em descida e trevas para pene-trar nas profundidades. Num gosto pela secreta intimidade, busca a cavidade, o retorno ao seio materno e transforma-se em símbolo de repouso primordial. As suas estruturas são divididas em quatro outras estruturas. A primeira é o redobra-mento dos símbolos que se apresentam na forma de continente e conteúdo, na persistência e repetição, o que conduz à “viscosidade do tema”. A segunda es-trutura, originada da primeira, ressalta a viscosidade estabelecendo conexões en-tre figuras logicamente separadas. A sua vocação verbal fixa-se em palavras como reunir, prender, atar, soldar, aproximar, abraçar, etc. A terceira estrutura reside num realismo sensorial das representa-ções, como se as imagens fossem vivas, ou ainda mais, como se as imagens moti-vassem sentimentos concretos. A quarta estrutura é a miniaturização das imagens em que há uma repetição dos detalhes que se tornam representativos do todo.No regime nocturno sintético é evidente a integração da atitude trágica com a atitude triunfante do devir convertendo-as numa concepção dramática. Igualmente existem quatro estruturas sintéticas. A primeira é a harmonização dos contrários que pode ser vista na rítmica da astrobiologia (calendá-rios baseados na relação da lua com a agri-cultura por exemplo), na raiz dos sistemas cosmológicos e no universo musical. A se-gunda, ligada à primeira, é a dialética numa busca por coerência entre contrários. Faz isso preservando as distinções e as oposi-ções. A terceira, a histórica, é a aplicação das duas anteriores nos fenómenos huma-nos e cósmicos. Sem negar o tempo, des-creve o passado e esconde a fatalidade da cronologia. Também pode evitar a fatalida-de do tempo transmutando-o num futuro messiânico. A quarta estrutura é a hipoti-pose futura, ou seja, o futuro é domestica-do por uma atitude progressista (exemplo: judeu-cristianismo, marxismo etc).Estabelecidas as estruturas antropológicas do imaginário, Durand conclui com a im-portância central do mito, pois, no fundo, toda representação do homem, seja ela positivista ou não, é baseada no discur-so, num impulso narrativo que envolve a compreensão do sujeito e do mundo. Se-ria um determinismo às avessas?Durand entende o mito no seu sentido mais geral sendo que engloba “o mito propriamente dito, ou seja, a narrativa que legitima esta ou aquela fé religio-sa ou mágica, a lenda e suas intimações explicativas, o conto popular ou a nar-rativa romanesca” (DURAND, 2002, p. 356). Portanto, o mito não é só feito de relações diacrónicas e sincrónicas, mas também de significações abrangentes, de um semantismo que aponta para além do seu encadeamento narrativo: o sentido simbólico. “É que o mito é um ser híbri-do tendo simultaneamente a ver com o discurso e com o símbolo. Ele é a intro-dução da linearidade da narrativa do uni-

verso não linear e pluridimensional do semantismo” (DURAND, 2002, p. 371).O mito já é uma eufemização da reali-dade, do facto em discurso, mas nunca se trai ao traduzir-se, pois minimiza o seu suporte linguístico. Para Bachelard, a quem Durand segue, a palavra está na raiz da imaginação. “Quando essa pala-vra toma consciência de si, então a ac-tividade humana deseja escrever, isto é, organizar os sonhos e os pensamentos” (FELICIO, 1994, p. 70 - 71). Não seria então a literatura uma emergência da imaginação, uma extensão do desejo?Mesmo não traindo o seu semantismo, o mito pode “deslizar” para o discurso, onde

Diante das faces da morte e de suas características de temporalidade e destino,

o regime diurno assume esquemas verbais de distinção, ou seja, “narrativas” de negação do tempo e das trevas.Com uma atitude diairética (em direção à luz), projecta-se

para cima e para além, no atemporal.

Caravaggio, Narciso

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o pensamento se formaliza. “Por outras pa-lavras, é a retórica que assegura a passagem entre o semantismo dos símbolos e o for-malismo da lógica (...)” (DURAND, 2002, p. 415). A retórica e o discurso são inter-mediários entre a imaginação e a razão.6

De modo idêntico às conclusões de Du-rand, Ernesto Grassi (1978) aponta que a arte tem uma concepção retórica que, ao representar as experiências humanas, conduz o homem a fugir do tédio e, em certo sentido, a “capturar o tempo”. Semelhantemente, Hayden White (1994), preocupado com a relação da imaginação com o discurso das ciências, entende que todas as ciências humanas, por exemplo, convergem para o discurso (que ele clas-sifica em tropos). O autor mostra como o discurso repete as fases da consciência no processo de apreensão e organização da realidade concreta. Citando Jakobson, propõe que qualquer escrita pretensamen-te científica (dá como exemplo a Histó-ria), deve ser analisada como um discurso em prosa e, logo, deve ser submetida a uma análise retórica de forma a revelar a sua subestrutura poética. Também Northrop Frye aborda este pon-to na sua teoria das ficções. Ele alega que às estruturas realistas de prosa discursiva se antepõe as visões míticas do mundo que não foram deslocadas. Significa en-tão que o discurso, mas principalmente a ficção, ocupa um plano médio entre a realidade e os mitos. Na verdade, mesmo por trás das estruturas realistas, as visões míticas e a ficção (eufemização dessas vi-sões) podem ser encontradas.Desse modo, Durand entende que a re-tórica, o discurso e toda forma de ver-balização da religião, das ciências ou da literatura, possuem um parentesco com o mito, pois o mito é a emanação narrativa do símbolo. O sentido supremo da fantás-tica, transcendental por natureza e baluar-te contra o destino mortal, é o eufemismo

6 Ernesto Grassi (1978) aponta que a arte tem uma concepção retórica que, ao representar as experiências humanas, conduz o homem a fugir do tédio e, em certo sentido, “capturar o tempo”. Hayden White (1994), também preocupado com a relação da imaginação com o discurso das ciências, entende que todas as ciências humanas, por exemplo, convergem para o discurso (que ele classifica em tropos). O autor mostra como o discurso repete as fases da consciência no processo de apreensão e organização da realidade concreta. Citando Jakobson, propõe que qualquer escrita pretensamente científica (a histórica, por exemplo), deve ser analisada como um discurso em prosa.

que, por sua vez, mantém o mito como narrativa por excelência. É o mito que dá forma às experiências religiosas e estrutu-ra o conhecimento religioso, deslizando em seguida, isto é, eufemizando-se ainda mais em lendas, contos e fábulas. Nesse sentido, a religião e a literatura, compar-tilhando de uma natureza mítica e numa tentativa de eufemizar a morte, criam um discurso do antidestino, onde o mito do-mestica o tempo e marca um espaço de revalorização da esperança. O mito teria então uma função “terapêutica”.Ao reconhecer a centralidade do mito na sua teoria, Durand constrói o seu concei-to de mitodologia. Ele fundamenta-se no dinamismo das imagens que invariavel-mente se organizam em narrativa, texto literário oral e escrito, e que, portanto, possuem fortes relações com os mitos. Impossível, desse modo, não ver o mito latente ou manifesto em toda narrativa, seja ela da religião ou das artes.Mito e literatura relacionam-se como cria-ções da humanidade que actualizam, atra-vés de imagens, os arquétipos presentes no inconsciente colectivo. O mito exprime a condição humana e as relações sociais no grupo onde ele surge e configura-se em formas narrativas. As narrativas míticas, por sua vez, veiculam imagens simbólicas, calcadas em arquétipos universais, que re-aparecem, periodicamente, nas criações artísticas individuais, entre elas, a literária (TURCHI, 2003, p. 39).A mitodologia de Durand é dividida numa mitocrítica e numa mitanálise. A mitocrítica é inspirada no modelo de psi-cocrítica de Charles Mauron, que punha em relevo os temas “obsessivos” das obras para descobrir o mito pessoal do autor. Porém, para Durand, não importa tanto, como para Mauron, o que a obra revela sobre o homem e sua vida, mas sobre o homem na sua universalidade. Metodologicamente, a crítica de uma obra literária pode se dar em três tempos. No primeiro, o crítico deve procurar os mitemas: menor unidade do discurso miticamente significativo. Geralmente articulam-se por temas e motivos redun-dantes. No segundo tempo o crítico exa-mina as combinatórias de situações que envolvem as personagens e os cenários. Por fim, num terceiro tempo, o crítico lo-caliza as diferentes lições do mito e suas correlações com os mitos de uma outra época e cultura.

O terceiro momento da mitocrítica abre ca-minho para a mitanálise, porque acaba por ampliar os limites do estritamente literário para questões sócio-histórico-culturais. Em cada época, há um mito dominante que tende a se institucionalizar e servir de modelo para a totalidade. Abandonando o espaço seguro do texto literário, lança-se pelo campo perigoso do contexto, onde encontramos a manifestação do mito de um grupo, de um povo, tribo ou naciona-lidade.Esse caminho apresentado por Durand é partilhado por outros pensadores como Toynbee e Spengler, numa concepção de história, e White, numa concepção de crítica literária. Ainda na literatura, lem-bremos as motivações identitárias pre-sentes nos ensaístas e literatos hispano--americanos. Para eles, o arquétipo pre-valente da cultura latino-americana era o Barroco na forma de um neo-barroco. José Lezama Lima, escritor e poeta cuba-no, objecto de nossa pesquisa anterior, é um exemplo de pensador que identificou o Barroco como “era imaginária” que do-minou todas as representações míticas dos americanos.7

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7 Para Lezama Lima, o termo americano significa a totalidade das américas, espaço onde se convergem os mitos dessa totalidade, isto é, os mitos dos indígenas, negros e brancos.

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Caravaggio, S. Jerónimo

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1. Mitema da “realeza perdida”: elemento fundador e central ao tema da Saudade, que atravessa toda a História e Cultura (no sentido mais lato) e que radica nas origens gregas da civilização europeia, nomeadamente no mito de Cronos, de-posto por Júpiter e pela sua descendên-cia e reeditado no mito graálico do “rei doente”. As imagens do “país decadente” regido pelo rei doente do mito medieval está também ligado ao mito alquímico da “árvore doente” que o Salvador, o rei perdido e reencontrado irá resgatar. Es-pecialmente forte em momentos de crise nacional, com sob a ocupação filipina ou em momentos de crise económica e so-cial prolongada, como actualmente, este mito do “rei perdido” está sempre latente na cultura portuguesa de uma forma ex-tremamente energética e potencialmente muito poderosa.

2. Mitema do “rei escondido”: Porque só pode haver retorno à “realeza perdida” do primeiro mitema, se houver um ca-talisador humano – interpretado aqui na figura de um “rei” – então esse catalisador tem que sobreviver, transcender ao pró-prio tempo, porque sendo um “rei perdi-do” tem que ser capaz de transcender os limites do espaço e do tempo, vivendo na transcendência imanente sem-tempo e circular do tempo mítico de Eliade. Ora este mitema pressupõe uma intervenção no tempo real e imediato, algo que é incompatível com o tempo mítico onde existe o “rei escondido”, uma contradi-ção que o mitema resolve introduzindo o conceito de “lugar atópico e atemporal”, um sítio do Mundo onde o tempo não passa ou percorre um caminho diverso daquele que corre no resto do mundo e um local utópico (no sentido etimológi-co do termo). Este local é a cova da mon-tanha onde se esconde Frederico II ou a Avalon de Artur ou as Ilhas Afortunadas onde espera Dom Sebastião o momento do retorno.

3. O mitema dos “reinos de Luz”: os lo-cais utópicos onde se conservam estes “reis escondidos” aguardando o momento do seu reingresso no mundo são cidades perfeitas, ideias, de “luz”, porque “cidades divinas”, onde Deus caminha lado a lado com o Homem, prefigurando os tempos pós-apocalípticos. Esta figuração é aquela que perseguiram os portugueses de Qui-nhentos nas ilhas míticas do Atlântico, como na Ilha das Sete Cidades e na de-

OS CINCO MITEMAS DE PORTUGAL SEGUNDO DURAND

In QuIntus - http://movv.org

GILBERT DURAND IDENTIFICA CINCO MITEMAS PORTUGUESES ESSENCIAIS DENTRO DO GRUPO MÍTICO DEFINIDO COMO “IDADE DE OURO”:

manda do reino do Preste João. Só após o regresso do “rei perdido” é que estes locais atópicos se poderiam religar ao mundo e tempo concretos, restabelecendo um laço quebrado no passado por um “pecado ori-ginal”, por exemplo o Orgulho sebastiâni-co ou a cupidez esclavagista da Expansão portuguesa, que levou a uma caminhada no Limbo histórico – onde hoje estamos – aguardando o regresso do rei e a fusão desse local mítico com a realidade concre-ta em que roda o Mundo.

4. O mitema do “Regresso”: não pode haver Idade do Ouro, sem Regresso a ela. Não pode haver retorno do “rei es-condido”, sem Regresso. Imbuído no seio do pensamento mítico está a noção de regresso. O Tempo Mítico é circular e o fechamento deste circuito tem que ser cumprido pelo Regresso. Momento atómico, porque único e indivisível, e que explode após momentos especiais do curso da História, em momentos de grandes crises históricas. O próprio con-ceito de “regresso” é anti-histórico e de-corre portanto no tempo mítico a que o Homem tem que regressar para satisfazer o seu Destino na Terra. Entende-se que o momento do regresso é executado pelo catalisador humano que é o “rei perdido” conjuntamente com um objecto simulta-neamente físico e espiritual, o Graal, o objecto ou vaso capaz de curar as feridas do rei doente (figuração do estado deca-dente da nação) e de resgatar o tempo perdido, fazendo regressar o Rei e a Ida-de de Ouro.

5. Mitema da “pergunta oculta”: essencial ao mito do Santo Graal é a pergunta que o herói do mito arturiano deve fazer para que consiga transmutar alquimicamente a doença em que vegeta o reino e salvar o rei. Essa é, neste contexto dos cinco mite-mas fundadores da portugalidade, a trans-mutação de uma realidade deturpada e incompleta porque “de círculo aberto” em que vivemos e que urge fechar para encer-rar o ciclo mítico e cumprir o destino fra-terno e universalista de Portugal. O círcu-lo foi quebrado, nos idos de Quinhentos pela importação de conceitos alienígenas como o Mercantilismo, o Esclavagismo, a Intolerância religiosa e o Maquiavelismo e o centralismo político. Foram estes fac-tores exógenos, introduzidos na ideia de Portugal por “estrangeirados” que rompe-ram o círculo português. A sua reparação só pode ser cumprida pela instauração do Quinto Império, pela realização do sebas-tianismo e pelo retorno do “rei perdido” e da reinstauração da “Idade de Ouro”.

O círculo foi quebrado, nos idos de Quinhentos pela importação de conceitos alienígenas como o Mercantilismo, o Esclavagismo, a Intolerância

religiosa e o Maquiavelismo e o centralismo político.

Anónimo (Escola Portuguesa), Ecce Homo

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António GrAçA de Abreu

VIAJEI PELA primeira vez para Taoyuan, capital da província de 山西Shanxi, em Maio de 1981, numa jornada de quatro dias organizada pelas Edições de Pequim desti-nada aos seus waiguode zhongjia, ou seja, os “especialistas estrangeiros” que ajudavam a alinhar, corrigir e dar qualidade às publica-ções então editadas em Pequim nas princi-pais línguas do mundo. Saímos da capital chinesa às dez da noite, no luxo das couchettes “ruan wo che” ou seja a “carruagem cama fofa”. Diante de nós, a noite a dormir nos itinerários profundos, ferroviários entre as províncias de Hebei e Shanxi, com a travesia curvilínea pelos vales e montanhas Taihang “ mais sinuosas do que intestinos de carneiro”, no dizer do grande poeta Bai Juyi (774-846).Chego a Taiyuan. Depositam-me num ho-tel tipo armazém mas por dentro confor-tável e funcional, destinado a quadros do Partido, na grande avenida central. Nestas viagens, da responsabilidade do chamado “bureau de especialistas” e da nossa danwei -- a entidade de trabalho que nos paga o encolhido salário mensal e, de algum modo pretende controlar as nossas vidas --, bene-ficiamos de alguns dos privilégios dos fun-cionários superiores do Partido Comunista da China. Temos o usufruto temporário de privilegiados em espaços normalmente concedidos apenas às hierarquias superio-res do Partido. Em diferentes viagens pela China com as Edições de Pequim haveria de constatar as imensas mordomias dos gangbu, os quadros do Partido alojados em hotéis e residências que lhes eram, e são ainda hoje, especialmente destinadas. En-fim, sob o comunismo chinês todos os ho-mens são iguais, mas alguns, porque qua-dros da vasta e hierarquizada nomenclatura partidária, passeiam-se com cabazes reple-tos de benesses e regalias, são gente menos igual do que toda a outra.Regressei a Taiyuan na Primavera de 2001 e no Verão de 2011, com mais novidades e espantos como adiante veremos.Situada no centro da província de Shanxi, não longe da Muralha da China e das ve-lhas fronteiras norte do império, Taiyuan é talvez a cidade chinesa que, ao longo de vinte e cinco séculos de História, mais as-

solada foi pelas tempestades da guerra, da destruição e da morte. Situa-se num vale verdejante irrigado pelas águas do rio Fen, afluente do rio Amarelo, rodeada de terras férteis, de campos ondulados a perder de vista, com trigo, milho, milhete e sorgo, com pequenas e grandes indústrias, com templos e parques que resistiram ao im-piedoso e dilacerante avançar dos séculos. Ocupada a partir do século X pelos povos Liao e Jin, depois pelos mongóis, recon-quistada por chineses entre mil banhos de sangue, a posse de Taiyuan passou por incontáveis concluios, aniquilamentos, in-findáveis sofrimentos para populações os-cilantes, migrantes e inseguras.A cidade chegou a ter vários templos de-dicados a Guangdi, o deus da Guerra, mas desde 1949 a paz prevalece no império. O templo de Confúcio foi restaurado há vinte anos atrás, tal como o seu excelente museu provincial em anexo. Mais além, na encos-ta, com uma vista soberba sobre Taiyuan, levantam-se desde o início do século XVII os dois pagodes gémeos de Shuangta com treze andares e cinquenta metros de altura, únicos em toda a China, um dos ex-libris do lugar.Hoje Taiyuan conta com mais de 4 milhões de habitantes e, com as suas indústrias, do carvão e do ferro, dos têxteis e da maqui-naria, é a cabeça que orienta e governa os destinos da província de Shanxi, um dos berços culturais do mundo chinês. Creio que a Air Macau tem actualmente três voos semanais para Taiyuan, a cidade está apenas a três horas de avião, desde Macau, e, em sentido contrário, os casi-nos macaenses continuam a ser um íman distante, mas uma espantosa tentação para centenas de milhões de chineses que habi-tam a mainland, o vasto Continente.As minhas três estadias em Taiyuan, bem espaçadas nos anos, dão para entender o quê? Em 1981 diluí-me pelas avenidas recente-mente abertas, pelas margens do rio Fen, então objecto de consolidação e jardina-gem, pelas ruas de casas térreas e pobres de adobe e telha, pela praça central com bancadas e tribunas que tinham acabado de assistir aos gigantescos desfiles do 1º. de Maio. Havia ainda bandeiras vermelhas a flutuar ao sabor de tudo quanto era brisa e vento, mais uns tantos retratos de Mao Ze-

dong a olhar sinicamente para todos nós. Em 1981, deparei-me com um grupo de jo-vens no parque de Yingze junto ao rio Fen, em animado bailarico com música chinesa que saía de um pequeno gravador de casse-tes pendurado numa árvore. Convidaram--me para dançar. Eu, na altura um rapaz de trinta anos, simpático e bem apessoado, entrei na roda com todo o prazer e tenho ainda comigo as fotografias históricas de

um português de então, a sentir-se no meio do povo chinês -- e das beldades acabadas de encontrar --, como peixe na água. Em 2001, foi altura de tentar reconhecer avenidas e parques, agora juncados, ro-deados dos inevitáveis prédios e arranha--céus de muito mau gosto e de me perder em compras pela Jiefang lu, de descobrir a velha igreja católica, ali, quase em frente do jardim zoológico e de recordar em fi-

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nais do século XVIII o labor missionário de baptistas e franciscanos italianos nesta pro-víncia, com o bispo português de Pequim, o alentejano D. Frei Alexandre de Gouveia (1751-1808) a destinar parte dos fundos da sua diocese pequinense para o difícil traba-lho de evangelização em Shanxi.1

Em 2001, foi também altura de visitar o velhísimo templo de Chongsan, construí-do no início do século VIII, com notável

arquitectura três grandes estátuas de budas com mil braços. Em frente, uma loja quase tão velha como o templo budista, vendia porcelana antiga. O médico português que me fazia companhia nessa viagem descobri-ra finalmente uma loja a sério para comprar umas tantas peças de valor. Face ao nosso interesse, o chinês dono do negócio deci-diu fechar as portas da rua e levar-nos para o interior do seu estabelecimento, para os

fundos, onde encontrámos prateleiras com jsingulares arrões e mais porcelana antiga coberta pelo pó dos séculos. Olhar, esco-lher, discutir preços, comprar. Os difíceis negócios da China. Mais difícil, depois, transportar as peças para Portugal. Mas, bem embaladas – os chineses são mestres em empacotar o que quer que seja --, aca-bam por chegar inteiras à pátria lusitana e brilhar nos nossos lares.Em 2011, foi tempo de reciclar os conhe-cimentos da cidade, agora com pontes e açudes sobre o rio Fen, mais pagodes e

jardins, e mais uma multidão de inestéticos arranha-céus. A propósito, Taiyuan é famo-sa pelo fabrico do Fenjiu, uma aguardente fortíssima obtida a partir da destilação do sorgo a que se mistura um pouco de água do rio Fen para manter gloriosamente os seus 63 graus de álcool (leram bem, sessen-ta e três graus!). Este licor deixa o comum dos mortais, santo ou pecador, ao terceiro cálice, a combalear e a ver o faiscar de dez mil estrelas no céu, mesmo em noites de muitas nuvens e nevoeiro cerrado. Sei do que falo. Na última noite, na despedida de Taiyuan, um opíparo jantar, bem regado a Fenjiu no restautaurante do Hotel Pin-gzhou, e depois o caminho vacilante, com malas e bagagens (poucas felizmente!) para a estação dos caminhos de ferro onde o comboio da noite me lavaria na viagem de quatrocentos quilómetros até Xi’an, capital da província irmã de Shaanxi.Nas três estadas em Taiyuan, a visita ao complexo de Jin Ci, trinta quilómetros a

sudoeste da cidade. Poupada pelas guerras, Jin Ci é um dos espaços antigos melhor conservados de toda a China, com raríssi-mas estátuas em ferro do século XIII, com pavilhões em madeira construídos na di-nastia Song do Norte (960-1127), um dos quais abriga quarenta e três fabulosas figu-ras femininas budistas, pintadas em barro, todas diferentes datadas já do século X. Jin Ci é atravessada por um pequeno rio de águas límpidas que corre todo o ano e tem origem em três nascentes situadas entre, e acima, do complexo dos templos. O con-

junto monumental e clássico, polvilhado de pagodes, varan-dins, pontes, pequenos lagos, árvores antigas, jardins está as-sociado a uma velhíssima len-da que passo a resumir:Uma sogra feroz tratatava impiedosamente a sua nora e obrigava-a, todos os dias, a longas jornadas com o cântaro à cabeça a fim de ir buscar água a um poço distante. Exausta, no pino do Verão, no regres-so de mais uma caminhada, a jovem nora encontrou um velho cavaleiro que lhe pediu um pouco de água para dar de beber ao cavalo. Solícita, a moça aquiesceu. Em troca, o

homem ofereceu-lhe um chicote e disse-lhe que quando precisasse de água brandisse o chicote e onde quer que tocassse, nasceria água. A jovem assim passou a fazer, batia no cântaro que de imediato se enchia. A sogra descobriu as capacidades mágicas do chico-te, pegou nele e resolveu bater na terra, em três lugares diferentes em redor do povoa-do em que viviam, ali ao lado de Taiyuan. A água brotou em borbotões, as nascentes deram rapidamente origem a um pequeno rio. A sogra foi pedir ajuda à nora para ela estancar as águas. Em vão, sem qualquer re-sultado. Ainda hoje as águas continuam a correr e formam o rio Jin. As três grandes fontes são actualmente conhecidas como a Nascente dos Imortais, da Deusa da Prima-vera e do Lago dos Peixes.Podemos lá lavar o nosso rosto, as mãos e até os nossos pés.

1 - Ver António Graça de Abreu, D. Frei Alexandre de Gouveia, Bispo de Pequim, Lisboa, Universidade Católica, 2004, pag. 186.

A CIDADE, PORCELANAS E BRISAS

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Não será fácil a um povo libertar-se de alguns dos seus hábitos mais prejudiciais. E não é minha intenção primeira tentar defender que no caso do povo português este se tenha libertado de uma sombra que durante tantos anos promoveu uma espécie de snobismo da tristeza. Este tipo de snobismo, como todos os outros, in-ventam um orgulho superior, um sentido de pertença que exclui automaticamente os não iniciados. Mostrar a tristeza foi um modo de elevação. Há outros povos que o fizeram e ainda o fazem.Filmes portugueses recentes, como Tabu, de Miguel Gomes, Juventude em Marcha, de Pedro Costa, ou O Estranho Caso de An-gélica, de Manoel de Oliveira (e assim se cobre um período de cerca de 6 anos), podem ser vistos como emblemas de que algo pode ter mudado. Esta mudança ter--se-á dado não a nível do sentimento ge-ral das classes mais populares mas certa-mente na amostra intelectualizada de que estes filmes constituem prova.Um remorso mórbido leva-me contudo a voltar, deliberadamente, contra a cor-rente, teimosamente, arrogantemente, a um filme onde há aquela tristeza e aquela resignação dos destituídos que vemos em O Gebo e a Sombra - peça de Raul Brandão,

não o filme de Oliveira (e por essa razão a curiosidade é tanta em ver este seu último filme-peça). Uma curiosidade que é tam-bém a de ver como é que Manoel de Oli-veira filmou o Gebo ... sem o filmar como em 1974 filmara Benilde, ou a Virgem Mãe. Não sei que sentido mórbido me terá le-vado de novo a ver Uma Abelha na Chuva. Posso apenas com certeza adiantar que não foi pela razão que este filme sempre me atraiu, o desvio de atenção que este pratica ao sair tantas vezes da trama para se fixar num pormenor a ela excêntrica, a um quadro de pedra, a um pormenor de um quadro pendurado numa parede ou a um pedaço de vento (que é um vento pa-recido com o frio do Gebo ... e o vento de Benilde ...).Ou será este, afinal, um filme que se apro-xima, 40 anos antes, destes outros agora contemporâneos, nostálgicos mas não passadistas, melancólicos mas não doen-tios, poéticos mas nunca sentimentalói-des. Poderá este filme pequeno e frágil, de um cheiro líquido, podre e mau, ser um filme do futuro? Pode naquele plano em que D.Maria dos Prazeres e o eunuco marido Álvaro Silvestre regressam a casa e a câmara só os apanha a meio da estra-da flagelada por um vento e uma chuva

impiedosos mas de modo nenhum supli-cantes. Afinal, este pode não ser um filme daquela tristeza antiga.De 1971 é também outro filme de uma particularidade tonal que só alguns auto-res conseguem atingir: O Passado e o Pre-sente, de Manoel de Oliveira, o primeiro que afecta sem constrangimentos traços de estilo que o iriam mais tarde distin-guir. Algumas dessas linhas de estilo são linhas que se prendem com uma delibera-da inabilidade fílmica (como diz Eduardo Prado Coelho em Vinte Anos de Cinema Por-tuguês 1962-1982), ou desorganização na direcção de actores.Uma Abelha na Chuva é um filme que exi-be igualmente traços estilísticos próprios a Fernando Lopes mas que, no entanto, começariam, a partir daí, não a polir-se mas a embrutecer-se. Ao contrário de Oliveira, Fernando Lopes não conseguiu nunca aprimorar o tom que atingira nes-te filme de 1971. Nele há também uma brutalidade própria, que é a do impiedoso romance de Carlos de Oliveira, mas que é também do autor do filme (continuo a tentar perceber o que é que Manoel de Oliveira terá feito à brutalidade hoje um pouco óbvia e pouco convincente da peça de Raul Brandão).

Não havendo “inabilidades deliberadas” há, na sua urgência experimentalista, mo-mentos de queda e dúvida sempre supera-dos, sisudos. Há cenas que são repetidas sem som, há cenas em que a imagem se imobiliza repentinamente, há cenas que são repetidas numa insistência de sentido.Mas deste filme, como do recentíssimo Tabu, sai-se com a sensação de se ter vivi-do uma ficção intensa mas inconsequente a um nível que não seja puramente esté-tico. Nos dois se cumpre perfeitamente este transporte. Nos dois somos obri-gados a penetrar num bloco estanque e próprio que não tem outros semelhantes. Talvez essa exclusividade seja mais difícil de atingir hoje, num tempo em que se se-dimentaram despoticamente formatações narrativas a que cada vez parece ser mais difícil de escapar (Tabu consegue fazê-lo) que em 1971, uma altura (mesmo que o cinema português andasse, necessaria-mente, um pouco atrasado) em que quase todas as experiências pareciam, mais do que possíveis, obrigatórias. Ambos con-seguem, nos seus tempos respectivos, um discurso próprio e o de Uma Abelha na Chuva não é o da tristeza oficial daqueles tempos cinzentos, autoritários e provin-cianos. Ficaram as pedras.

luz de inverno Boi Luxo

UMA ABELHA NA CHUVA, FERNANDO LOPES, 1971.

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T E R C E I R O O U V I D O

No seu último discurso como secretário--geral do Partido Comunista Chinês, na abertura do 18º Congresso, realizado em Novembro, Hu Jintao disse a certa altura que a “cultura é a alma de uma nação”. Tal como inúmeras outras frases ditas ao longo daqueles 100 minutos, esta em particular também primou por querer dizer tudo e, ao mesmo tempo, nada. No entanto, face à impossibilidade de interpelar directamente o líder chinês, a ambiguidade e amplitude expressiva das suas palavras – objecto de um esmiuçar atento em todo o mundo – con-ferem à linguagem usada uma aura de gra-vidade invulgar, ainda que só percebamos verdadeiramente a sua intenção uns tempos mais tarde, quando a realidade traduzir o discurso na acção. Foi isso que aconteceu agora quando o Governo Central anun-ciou o plano de, ao longo dos próximos dez anos, investir 14 mil milhões de renminbis na construção do “Vale da Música”, numa área rural próxima de Pequim.

De acordo com o jornal The Guardian, está previsto nascer no vale de Pinggu um comple-xo de estúdios de gravação, fábricas de instru-mentos, escolas de música, hotéis de cinco es-trelas e uma sala de espectáculos com a forma

próximo oriente Hugo Pinto

de uma flor de pêssego (um dos símbolos de Pinggu, que já tem tradição também no fabri-co de violinos).

Na China, a aposta do Estado nas artes e na cultura não é novidade. Desde 2003, a pro-dução da indústria do cinema, por exemplo, quadruplicou. Contudo, a indústria da música tem tido sorte diferente, o que os especialistas explicam, em parte, devido à pirataria – a Fe-deração Internacional da Indústria Fonográfi-ca afirma que a taxa de pirataria na China é de “virtualmente 100 por cento” – e ao próprio controlo governamental (leia-se “censura”).

As questões económicas que derivam da elevada incidência da pirataria serão deter-minantes, certamente, para justificar que a indústria musical seja, ainda, incipiente, mas a interferência estatal através da regulação ex-cessiva dos conteúdos aprovados para as tele-visões, rádios e Internet são entendidos como a origem dos maiores problemas.

Mas o dinheiro, que poderia trazer liber-dade aos artistas, caso vissem a sua cor, tam-bém tem limitado a criatividade.

Scarlett Li, fundadora de uma empresa que organiza festivais de música, disse ao jornal inglês que, em vez de investir em talento, os governos locais têm seguido uma política de

investimento dos apoios estatais em infra--estruturas – projectos (normalmente mega-lómanos) de edifícios, sem que os subsídios cheguem directamente aos artistas.

Do outro lado da questão, claro, estão os músicos (cada vez mais, aparentemente), que olham com toda a desconfiança para qualquer iniciativa do Governo Central no âmbito das artes e da cultura. São os artistas que têm con-seguido viver do seu ofício, sem, todavia, al-mejarem grandes voos pelos passeios da fama. A banda de Pequim P.K.14 é um desses exem-plos.

Ao Guardian, o vocalista Yan Haisong confessava que ninguém do seu círculo de amigos e colegas está minimamente interes-sado em projectos como o “Vale da Música”. Por quê? “Misturar música e política é estra-nho, porque a música que daí resultar não vai, simplesmente, ser de qualidade. Se realmente querem melhorar a cultura, têm de abrir-se um pouco mais.”

Dir-se-ia que até nem é preciso abrir de-masiado os horizontes. Bastaria, por exemplo, olhar para o lado, para a vizinha Coreia do Sul, afinal o melhor exemplo (porque actual) de uma indústria musical planificada e pujan-te. É pedir muito?

MÚSICA INDUSTRIALSAI MAIS UM PLANO QUINQUENAL

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perspectivas Jorge rodrigues simão

C I D A D E S I N V I S Í V E I S

metrópolis

O POKER ORÇAMENTAL AMERICANO

OS ESTADOS Unidos considerados respon-sáveis pelo desencadear da maior crise sistémi-ca Ocidental de 2007-2008 e do capitalismo, inicia o ano na perspectiva de um agravamento da recessão, se a partida de “poker” orçamental não for favorável ao presidente americano nas batalhas que se avizinham, pela aprovação da proposta de lei orçamental. O Senado, após longas e agónicas negociações entre demo-cratas e republicanos aprovou por maioria um acordo orçamental, quando tecnicamente está em vigor desde 1 de Janeiro, de forma automá-tica, o denominado “fiscal cliff” ou “precipício orçamental”.

O acordo orçamental consiste num pacote de medidas fiscais, que aumentam os impostos de 35 por cento para 39,6 por cento relativa-mente aos rendimentos das pessoas singulares acima dos 400 mil dólares anuais, abrangendo os casais com rendimentos superiores a 450 mil dólares anuais. São aumentados igualmente, os impostos sobre os ganhos de capital e di-videndos para as mesmas famílias, passando de 15 por cento para 20 por cento. É também aumentado, o imposto sobre o património das fortunas superiores a 5,12 milhões de dólares que era de 35 por cento, passado para 40 por cento sobre as fortunas superiores a 5 milhões de dólares.

É limitado o valor das isenções pessoais e o de deduções que estão descriminadas, duas res-trições, que se aplicariam a pessoas singulares com rendimento anual de 250 mil dólares e ca-sais com rendimento anual de 300 mil dólares. Tais limites não existiam desde 2010. É adiado pelo período de sessenta dias, parte dos 110 mil milhões de dólares em cortes de despesas que tecnicamente entraram em vigor a 1 de Janeiro e que seriam substituídos por aumentos de im-postos e cortes em outros programas.

O acordo orçamental congela os salários existentes dos membros do Congresso durante o ano fiscal em curso, não abrangendo os sa-lários dos trabalhadores do governo federal. Inclui ainda uma disposição que impede um grande aumento no preço do leite que era te-mido no início do ano, e estende alguns outros programas agrícolas até Setembro.Aos rendi-mentos inferiores continuam a ser aplicadas as taxas vigentes. É contemplado um aumento da taxa que incide sobre os salários que passará de 4,2 por cento para 6,2 por cento. Esta taxa é fixa, e aplicada a salários até ao montante de cerca de 114 mil dólares anuais que é suportada pela entidade patronal, mas que se reflecte no montante líquido dos vencimentos auferidos pelo trabalhador.

“Two days earlier, on November 17, 2010, Congressman-elect Jeff Duncan sat in the Capitol with the entire House Republican conference for the first time. Before the election fifteen days prior, there had been 198 of them. Now there were - or would be, after all the recounts were completed-242. They were the majority. They were the one sector of the federal government that the Republicans controlled outright, making the House their spear point against the Obama White House.”

Do Not Ask What Good We Do:Inside the U.S. House of Representatives

Robert Draper

Ainda que não sendo resolvida de forma definitiva a situação, é evitado “in extremis” por ora, um aumento geral dos impostos que atingiriam potencialmente a classe média. O acordo orçamental quanto ao aumento de im-postos foi aprovado dia 2 pela “Câmara de Re-presentantes” com 275 votos a favor e 167 vo-tos contra. O Congresso, nos Estados Unidos, é constituído pelo Senado (Câmara Alta) e pela Câmara de Representante (Câmara Baixa). O Congresso detém o poder legislativo do gover-no federal e têm por atribuições entre outras, a de criar impostos, o de controlar o nível de en-dividamento do Estado. No final de Fevereiro ou início de Março, o governo federal precisará de uma nova autorização quanto ao aumento do limite da dívida.

Todavia, parece que de momento os Esta-dos Unidos conseguem escapar ao “precipício orçamental”, que seria uma redução da despesa pública e uma subida dos impostos. Esta deno-minação foi usada pelo presidente da Reserva Federal, Ben Bernanke, numa sua intervenção no Congresso. O “precipício orçamental” re-sulta do facto do Congresso aprovar um limite máximo de endividamento e quando é atingido aprova um novo limite. O Congresso, aprovou em Agosto de 2011, um aumento do limite da dívida no montante de 2,1 mil milhões dólares, mas os republicanos conseguiram introduzir uma condição no sentido de ser negociado um compromisso para reduzir o deficit. A condi-ção prevê o acordo de ajustamento do deficit de cerca de 800 mil milhões de dólares, que devia ser realizado antes do passado dia 31 de Dezembro de 2012.

Se não fosse possível tal acordo, entrariam em vigor cortes da despesa no valor de cerca de 500 mil milhões de dólares e aumentos nos impostos num total previsto de 85 mil milhões de dólares. Seria muito difícil, senão impossí-vel, os Estados Unidos arrecadar todos esses colossais montantes num ano com o ajuste. O “precipício orçamental” conduziria os Estados Unidos a um aprofundamento grave da reces-são, e daí que a arrecadação dos impostos e os denominados estabilizadores automáticos, como o subsídio de desemprego e a ajuda a pessoas mais carenciadas diminuiria incomen-suravelmente.

Os Estados Unidos atingiram o limite má-ximo de 12,4 mil milhões da dívida autorizada em Agosto de 2011, que quase criou o incum-primento de pagamentos. A entrar de facto no “precipício orçamental”, o Tesouro teria apenas uma capacidade de cerca de 150 mil milhões de dólares para continuar a pagar a dívida, até atingir o limite em algumas semanas. A essa realidade esperam os republicanos consegui-rem cortes na despesa. O deficit dos Estados Unidos no ano fiscal que terminou a 30 de Se-tembro de 2011, foi de 1,089 mil milhões de dólares, representando 7,3 por cento do PIB.

A evolução do deficit tem sido positiva. O desequilíbrio foi reduzido em cerca de 16 por cento, apesar da economia não ter acelerado a sua taxa de crescimento. É de considerar que cerca de 30 por cento do deficit é cíclico, de-vido ao baixo crescimento da economia, que impede a arrecadação de impostos e à alta taxa

de desemprego. Esta situação é de histeria polí-tica, uma vez que cinquenta e cinco republica-nos da “Câmara de Representantes” opõem-se totalmente a qualquer aumento dos impostos e preferem que o país entre no “precipício or-çamental”. É essa última rebelião dos republi-canos e o descontentamento de uma parte dos democratas que faz prever dois meses difíceis e a batalha decisiva em final de Fevereiro ou início de Março.

Se por remota hipótese os Estados Unidos entrassem no “precipício orçamental” seria a falência da primeira economia mundial e o fim do mundo tal é e como o percebemos. As repercussões na “Zona euro” seriam de imedia-to sentidas, com uma redução do crescimento que em termos optimistas, podia ir até 1 por cento no corrente ano. O acordo sobre a lei orçamental celebrado entre democratas e repu-blicanos resume-se a cinco factos políticos; o primeiro de que o presidente americano perdeu estas negociações, pois o programa político da sua reeleição continha a promessa de aumentar os impostos aos que auferiam rendimentos su-periores a 250 mil dólares anuais, e aumentou apenas aos que auferiam rendimentos anuais superiores a 450 mil dólares anuais, o que re-presenta menos de 1 por cento da população activa, bem como adia as ajudas aos desem-pregados, mães solteiras e ao sector da energia renovável.

O segundo facto é que o “precipício orça-mental” tem mais possibilidades de se dar no início de Março, por força do acordo cele-brado, pois as negociações irão ser bem mais duras e certamente os republicanos não irão perder a única oportunidade de conseguir reais e efectivos compromissos quanto à redução da despesa pública. O presidente americano quer aumentar mais os impostos a quem aufere mais rendimentos e ao mesmo tempo limitar a re-forma das pensões públicas e dos sistemas de saúde social aos idosos e às pessoas de meno-res recursos (Medicar – sistema de seguros de saúde social em que os beneficiários são em-pregados idosos de 65 ou mais anos de idade e que tenham baixos rendimentos, e o Medi-caid – sistema de seguros de saúde social em que os beneficiários são aposentados que pro-vem encontrar-se em situação de pobreza e as pessoas mais carenciadas. O sistema beneficia por exemplo, algumas dezenas de milhões de crianças).

As próximas negociações serão decisivas e poderá acontecer uma reclassificação com rebaixamento da qualificação da dívida ameri-cana. O terceiro facto é que o acordo evitou um aumento generalizado dos impostos para a maioria dos americanos, não ajudando a resol-ver a situação do deficit, antes pelo contrário, o vem prejudicar, pois aumentará em cerca de quatro mil milhões de dólares, como conse-quência do adiamento dos cortes das despesas públicas e confirma as taxas de impostos que não irão em nada favorecer a despesa social, nomeadamente as pensões e a previdência social, como política pública componente da segurança social. A dívida pública é de cerca de 74 por cento e na próxima década poderá atingir 90 por cento, se não forem tomadas

medidas acertadas no sentido de inverter a marcha. Existe por parte de democratas e re-publicanos umas inércia ideológica, em que os primeiros se opõem à reforma das pensões e da previdência social, e os segundos opõem-se ao aumento dos impostos e defendem os cortes na despesa pública. Posições muito difíceis, senão impossíveis de conciliar.

O problema do deficit surgiu quando o ex-presidente Ronald Reagan, republicano de antecedência democrata, decidiu diminuir os impostos e aumentar de forma drástica as des-pesas militares. A grande questão no presente não é o rearmamento, mas o aumento da es-perança de vida, sua qualidade e aposentadoria da geração que nasceu após a Segunda Guerra Mundial e conhecida pelos “Baby boomers”. É de realçar que durante os próximos trinta anos, aposentar-se-ão por dia, cerca de dez mil americanos, que levará quiçá à insolvência dos Estados Unidos, se não forem efectuadas urgentemente profundas reformas nos sistemas de pensões e na política de previdência social.

O quarto facto tem a ver com a aprova-ção pelos republicanos do aumento dos im-postos contra as suas convicções ideológicas, pela a primeira vez desde a presidência de George Bush, principalmente os membros do Congresso chegados ao “Tea Party” que tem fomentado uma autêntica revolução con-tra o crescente endividamento dos Estados Unidos, desde que Barack Obama assumiu a presidência. O triunfo dos republicanos e o apogeu do “Tea Party” nas eleições legislati-vas de 2 de Novembro de 2010, fez sentar no Congresso gente nova, idealista, não disposta a acordos, nem mesmo quando o problema é o da falência do Estado, e que criam todo o tipo de problemas que possibilite um acor-do final entre democratas e republicanos nas próximas negociações.

O quinto e último facto refere-se ao siste-ma político americano que não funciona, dado criar muitos freios a quem governa, impedin-do o presidente de tomar decisões se não tiver uma maioria qualificada no Senado ou não tiver o suporte do Congresso, pelo que a minoria re-publicana pode travar qualquer proposta de lei no Senado, se os democratas não tiverem a seu favor sessenta dos seus cem membros. Trata-se de uma situação não prevista na Constituição dos Estados Unidos, mas que limita de forma séria o poder do presidente, ao ponto da sua equipa de colaboradores terem de ser aprova-dos pelo Congresso, tendo-se convertido num instrumento de pressão por parte dos congres-sistas, com o intuito de atingir objectivos parti-dários e de outra natureza.

As propostas como a de reduzir as doações privadas nas campanhas presidenciais que en-fraqueceriam o poder das influências que daí advém, e as de unificar os mandatos do presi-dente e dos congressistas para que o presidente tenha o controlo do Congresso têm sofrido todo o antagonismo. A duração do mandato e o formato dos distritos da “Câmara dos Re-presentantes”, que os políticos aprimoram a seu belo gosto em cada década, e segundo os seus interesses partidários, são as grandes causas da paralisia do sistema político americano.

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C I D A D E S I N V I S Í V E I S

metrópolis Tiago Quadros*

PARA O colectivo FOA (Foreign Office Architects) os edifícios não são planos tra-duzidos em espaço, nem ideias transforma-das em pedra. Não são criações da mente mas antes efeitos do tempo. Ilya Prigogine entre os cientistas, Henri Bergson e Gil-les Deleuze entre os filósofos, abordaram concepções semelhantes sobre o tempo. No entanto, nada mais pode ter sido ouvi-do sobre o tema, entre os arquitetos, sem o contributo de Benoit Mandelbrot. Com efeito, os arquitectos podem não ter lido os seus livros de matemática, como The Fractal Geometry of Nature, mas a geometria que ele inventou e as sensacionais imagens que pro-duziu, forneceram a essencial transmissão, estética e prática, entre a natureza e a arqui-tectura, entre o conhecimento científico e a imaginação espacial.Para Mandelbrot, os desenhos são meios essenciais para o desenvolvimento de uma intuição. Considerando que uma fórmula matemática se refere apenas a um pequeno aspecto da relação entre a realidade e o seu modelo, o olho, segundo Mandelbrot, tem

MÁQUINA DE INTEGRAÇÃO

um enorme poder de integração e discri-minação. Além disso, as reconstruções que realizou, com o recurso a computadores, de formas complexas de nuvens, montanhas, zonas litorais e árvores, elevam a geome-tria: outrora considerada difícil e abstracta, surge-nos agora lúdica e sensual. Para os ar-quitectos que exploraram as possibilidades criativas que os computadores ofereciam na década de 90, esta foi uma revelação. E novas palavras entraram no vocabulário arquitectónico: superfície, encosto, topolo-gia, organização, coerência, desterritoriali-zação, reterritorialização. E novas técnicas foram desenvolvidas. A busca de comple-xidade na arquitectura foi acompanhada por uma linguagem não menos complexa e muitas vezes confusa. Com a conclusão do terminal marítimo de Yokohama, construí-do em 2002, pelo colectivo FOA, o nevo-eiro semântico elevava-se e a teoria podia finalmente ser confrontada com um prédio de tamanho considerável e aparência assus-tadora. Assim que o projecto foi publicado e difundido na imprensa, a superfície da

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cobertura tornou-se num ícone para a nova arquitectura.Desde o início do projecto, o colectivo FOA pretendia reunir os passageiros pro-venientes do ferry, bem como a popu-lação de Yokohama, numa “máquina de integração”. O objectivo era estabelecer uma “conexão directa” com o território da cidade, eliminando qualquer possível se-paração entre o envelope e a estrutura do objecto. Nesse sentido, estamos perante um edifício onde todas as tensões são absorvidas pelas próprias “singularidades subjacentes a um material continuum”. Não falo apenas do facto do edifício não ter colunas – uma característica que causou descrença entre os engenheiros – não só do seu espaço se apresentar es-tranhamente contínuo: mas ele também parecia ser feito de uma única substância, por uma espécie de processo alquímico conhecido apenas por computadores.A visão do colectivo FOA recupera as impressões expressas por Giedion em 1928 em Bauen in Frankreich. Em quatro

magníficas páginas, ousadamente intitu-ladas Arquitectura, Giedion duvida que a arquitectura possa sobreviver sob o peso da sua monumentalidade. A Arquitectu-ra não é mais espacial ou de plástico. Os seus limites tornaram-se indefinidos, os diversos campos sobrepõem-se, elemen-tos móveis como os elevadores fazem agora parte dos edifícios. A arquitec-tura procura agora ser cidade, estar em linha com o processo de vida indivisível do qual a própria arquitectura é apenas uma parte. Agora, a tarefa do arquitecto é transformar a superfície da terra, para vislumbrar novos fundamentos. Segundo Giedion, o arquitecto deve agora imagi-nar formas que não sejam nem abstrac-tas, nem neutras ou homogéneas, como eram as estruturas em aço do século XIX, mas antes concretas e diferenciadas. No entanto, os promotores do concurso para o novo terminal marítimo de Yokohama queriam algo mais. No conceito “ni-wa--minato” (“muito brilhante-com-o-sol”) tinham demonstrado o seu desejo de ver nascer um grande símbolo.O novo terminal marítimo deveria ter sido capaz de conseguir para Yokoha-ma, o que o Aeroporto Internacional de Kansai conseguiu para Osaka, ou talvez até mesmo o que o edifício da Ópera de Utzon fez por Sidney. Os comentários apresentados por Arata Isozaki, que era vice-presidente do júri, são quase exclu-sivamente centrados em questões sim-bólicas. Na última etapa da selecção dos projectos a concurso, a lista apresentava: uma forma semelhante à de uma espada japonesa (esquema Matsumoto + Shi-nohara), um plano racional coroado por uma enorme caixa de vidro reminiscente de um telhado tradicional oriental (Ri-kken Yamamoto), o dorso de uma baleia (Ryoji Suzuki) e a proposta do colecti-vo FOA, que curiosamente não foi alvo das analogias simbólicas de Isozaki: “uma ideia inovadora cortando, escreveu ele, com o pluralismo estilo/anti-estilo”. Na verdade a proposta do colectivo FOA não procurava representar nada por si só. O júri destacou a simplicidade radical da sua aparência.Mais do que uma nova estética, o projec-to de Yokohama aponta para uma outra relação entre a matemática da construção pragmática e os seus efeitos, raramente ideais, mas muitas vezes belos. Enquan-to que as equações são realmente pro-dutivas, a visão permanece central para o processo, pois é o olho que, segundo Mandelbrot, integra e discrimina.

*Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitecturapela Faculdade de Arquitectura da UniversidadeTécnica de Lisboa

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gente sagrada José simões morais

O L H O S A O A L T O

吕洞宾 OS OITO Imortais foram seres humanos que, através da mudança das suas vidas normais, conseguiram tra-balhando os defeitos puri-ficar-se e atingir a Imorta-lidade. Por isso servem de exemplo ao comum dos mortais para conseguirem também realizar-se no Dao.Nas festividades do Ano Novo Chinês, no primeiro dia do ano aparece sempre um grupo de oito pesso-as vestidas e mascaradas, representando os Imortais que desejam a todas as pessoas Felicidade e Lon-ga Vida, tal como confor-me a lenda fizeram na sua passagem pelo Aniversário da Deusa Rainha-Mãe do Oeste.Mencionados pela primei-ra vez durante a dinastia Tang (618-907) e outros na Song (960-1279), os Oito Imortais (八仙) fazem parte do panteão daoista, mas as suas histórias foram tendo diferentes versões e só na dinastia Ming (1368-1644) ficaram mais ou me-nos uniformizadas. Considerado muitas ve-zes como o chefe dos Oito Imortais, o mestre Lü, como é conhecido Lü Dongbin, é um dos cinco veneráveis ancestrais da Escola Daoista do Norte, Quanzhen.Como figura histórica en-contra-se mencionado no livro oficial da História da dinastia Song. O seu nome era Lü Yan, tendo como nome de cortesia Dongbin e viveu nos finais do sécu-lo VIII, durante a dinastia Tang. O seu sonho era ser um Oficial Civil e por isso, candidatou-se aos Exames Imperiais. Se nos exames de Prefeitura (Jieshi) foi aprovado, nos exames do Ministério (Shengshi) por duas vezes não conseguiu passar e por isso, deixou de pensar em se tornar um

Oficial Civil com o título de Jinshi.Por causa disso entregou--se a uma vida errante, sempre em farras e foi as-sim que, certa vez, se en-controu com Han Zhongli numa loja de vinho em Chang’an.Actualmente esse local em Xian é um templo daoista conhecido por Palácio dos Oito Imortais. Han Zhon-gli, que também pertence ao grupo dos Oito Imor-tais, tornou-se o seu mestre no Dao. Abandonando a casa, Lü passou a dedicar--se a tempo inteiro a culti-var o espírito e para isso foi em retiro para a montanha Zhongnan. De salientar que fora nesse local onde na dinastia Zhou do Les-te (771-256 a.n.E.), Yin Xi, chefe da passagem de Hangu, se encontrou com Lao Zi e este o instruiu no Dao, sendo aí escrito o “Dao De Jing”.O mestre Lü viveu para ajudar todos os seres no entendimento do Dao, tendo transmitido essa doutrina a Wang Chon-gyang, o fundador da Es-cola Quanzhen. Por isso, Lü é também denominado o ancestral do Norte.Após passar esta vida, foi elevado ao panteão daois-ta para servir o Imperador de Jade e na dinastia Yuan (1271-1368), o primeiro e sétimo imperadores confe-riram-lhe títulos.É representado vestido como um académico e transportando uma espada que serve para destruir os espíritos malévolos.O seu aniversário é cele-brado no dia 14 da quarta Lua e a sua imagem encon-tra-se em muitos templos de Macau, como o Hong Kung Miu na avenida Co-ronel Mesquita e na Rua da Figueira, no Pau Kong Miu, assim como no Loi Zou sin.

LÜ DONGBILÍDER DOS 8 IMORTAIS

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HUAI NAN ZI 淮南子 O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

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Se apenas usares a tua própria mente, nem a ti mesmo conseguirás preservar.

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan

foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte

de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C.,

no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).

Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios des-

tilaram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já

existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num

só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário

Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que

aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fun-

damentais, efectuada a partir do texto canónico com-

pleto pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida

em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003.

Estes extractos encontram-se organizados em quatro

grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da

Paz” e “Da Sabedoria”.

O texto original chinês pode ser consultado na íntegra

em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous

Schools”.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 30

Se te apoiares no conhecimento da multidão, será fácil ganhar domínio; se apenas usares a tua própria mente, nem a ti mesmo conseguirás preservar.

* * *

Quando existe uma declarada aceitação pública daquilo que é apenas uma ideia na mente da liderança, tal significa que a verdade atingiu o seu alvo.

* * *

Quando as pessoas são adequadamente empregues, são como as patas de uma

centopeia – numerosas, mas nunca se im-pedindo umas às outras. São como lábios e dentes – o macio e o duro tocando-se sem se magoarem.

* * *

Quando os hábitos e costumes mudam sem ordens ou directivas, tal só se pode dever à influência da bondade – leis e castigos são insuficientes para o causar.

* * *

As capacidades de um homem são insu-ficientes para o governo de uma só casa, mas se seguires as medidas da verdadeira

razão, baseadas na natureza do universo, o mundo inteiro será igual.

* * *

Os líderes vêem com os olhos de toda a nação, ouvem com os ouvidos de toda a nação, pensam com o conhecimento de toda a nação e movem-se com a força de toda a nação.Por este motivo, as suas directivas che-gam ao fundo dos níveis mais baixos, ao mesmo tempo que os sentimentos das massas chegam à atenção dos líderes.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

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O SOL, A LUA E A VIA DO FIO DE SEDA

FERNANDA DIASU m a l e i t u r a d o

YI JING

A nova tradução do livro que há milénios ilumina a civilização chinesa