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ARTES, LETRAS E IDEIAS h PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2695. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE A AMEAÇA

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 14 de Setembro de 2012

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hPARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2695. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

A AMEAÇA

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A AMEAÇA DEMOCRÁTICA

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Ezra Pound poeta e fascista americano, esteve encerrado durante 13 anos numa

instituição psiquiátrica. Um jornalista perguntou-lhe quando tinha saído do

manicómio, ele respondeu:

“Nunca! Saí do hospital, mas continuei nos Estados Unidos, e toda a América

é um asilo de loucos.”

A PALAVRA FASCISMO, antes de chegar ao que hoje representa, foi um conceito positivo e revolucionário. Há 100 anos, alguns dos nossos melhores cidadãos, foram fascistas, modernistas e futuristas ao mesmo tempo. Hoje é ape-nas sinónimo de obscurantismo violento. Depois que os americanos vulgarizaram a tortura e os fins ilícitos e brutais em seu nome, é provavél que a palavra democra-cia pelas suas ligações à violência e ma-nipulação da informação, siga o mesmo caminho. Hoje a ameaça democrática está em ac-ção na Síria e paira perigosamente sobre o Irão. Um processo democratizador que tem sido alimentado a cadáveres e usa sempre o mesmo roteiro.

SINOPSEA violência que satisfaz a avidez dos representantes económicos do império anglo-saxónico, é fruto natural da fal-ta de imaginação. Desde Waterloo que as famílias transnacionais com base em Londres e Nova Iorque, donas de metade da riqueza do mundo, não sabendo o que fazer com ela, usam-na para abocanhar a parte que ainda lhes falta.Quando um cidadão, um tirano prote-gido pelo populismo ou simplesmente um nacionalista teimoso os rejeita como parceiros, lhes obstrui a passagem ou os expõe, caçam-no, invadem países. Para obter o apoio passivo da opinião públi-ca mundial usam velhos scripts –bebés maltratados nas incubadoras do Kuwait ao sexo brutal de Kadhafi ou de Assan-ge– cidadãos sem posição defenida e por vezes com um certo júbilo, vêm serem extirpados cidadãos malignos em países distantes.

ACTO UMPara que a ameaça do ditador seja real ele deve ter algum poder. Preparando a inva-são, o “império do dinheiro” estabelece sanções sobre os países com regimes não colaborativos. Fortalece assim o ditador,

10%, em menos de meio século che-gou aos 90%. Poucos países combate-ram a ignorância a este ritmo. Não me surpreenderia ver escrito, na imprensa internacional, que o regime de Kadhafi promoveu um tipo de alfabetização que não leva à liberdade. Foi pela educação, seja ela incentivada ou simplesmente to-lerada pelos governos, que as sociedades mais livres, se desfizeram gradualmente dos seus dirigentes mais autoritários. O que se desenrola hoje silenciosamente na Líbia, apenas fortalece os dogmas nacio-nalistas e religiosos, atrasando ou sim-plesmente anulando o desenvolvimento. À sombra do esquecimento internacional foram demolidos esta semana em Tripoli símbolos da diversidade e da tolerância. Que se saiba, uma biblioteca foi queima-da e várias outras estão em perigo.

EPÍLOGOBasta ler Eça de Queirós para perceber que há povos que teimam em não co-laborar com os imperialismos. Há cem anos enfrentavam os ingleses, hoje con-tinuam a resistir os seus sucessores. Os mesmos povos tentando, sem sucesso, defender os mesmos produtos.Nos países democráticos, até hoje a amea-ça e o trabalho de bastidores têm sido sufi-cientes para a tomada de poder. Veja-se o caso da Grécia e da Itália onde os funcio-nários da Goldman Sachs, consórcio que os empurrou para a ruína, logo depois de terem sequestrado os bancos, foram con-vidados a assumir o poder político. Ou ainda os Estados Unidos onde, de forma cinematográfica, Obama, através de uma monumental campanha de marketing usou a vontade de mudança e as lágrimas de ale-gria dos seus eleitores (e do mundo) para colocar à disposição dos ratos de porão de Wallstreet o imobiliário e a mão de obra do sul da Europa, deixando como estavam as conquistas do seu sinistro predeces-sor. Bush era bom!... porque os inimigos fortalecem-nos enquanto os falsos amigos abalam as nossas convicções.Nós cá estamos, antes como agora, quie-tos e calados, mais ou menos convenci-dos que existe a ameaça: da outra reli-gião, do outro país, da falta de dinheiro. Acreditamos que alguém nos defende e pagamos o benigno vigilante com o nos-so silêncio colaborador.Que tudo isto continue a funcionar para a opinião pública americana estereoti-pada e entorpecida, parece-me cada vez mais normal. Que (já) funcione com a mesma eficiência no resto do mundo, é que é espantoso.Agora que parámos de pensar, já nada nos incomoda e... se for pela Democra-cia, vale tudo!

Mica costa-grande através de uma solidariedade nacional que, noutro contexto, seria talvez usada para o depôr. São treinados e armados grupos de cidadãos para desestabilizar e se necessário assassinar criando ao mes-mo tempo uma sensação de luta pela li-berdade e caos social e económico. Em poucos meses um país pacífico aparece na comunicação social internacional como uma terra sem lei.

ACTO DOIS Concretiza-se a invasão, veremos apare-cer as vítimas das inomináveis preversões e os seus vívidos testemunhos, que serão em tudo iguais aos que caracterizaram outros países-ditaduras desmantelados. Substituem-se os símbolos. Saqueiam-se os museus nacionais, Depois de alguns ataques fracticidas e supostos ajustes de contas étnico-religiosos o país envolto na poeira da destruição sai de cena. A máquina de informação global passa a ser lubrificada, menos a sémen de perversos ditadores e mais a sangue vermelho das veias da população e preto das profunde-zas da terra.

ACTO TRÊSFinalizada a primeira parte da sinistra encenação e como se a pretexto de uma operação ao pâncreas se retirasse tam-bém o figado, os históricos e legítimos opositores do velho regime são desa-creditados ou eliminados, sendo subs-tituídos por funcionários dos invasores. O petróleo ou gás que continuaremos a consumir (sempre mais caro) paga, já não as sumptuosas residências e extra-vagâncias dos autocratas, mas as armas que destroem, dividem e traumatizam a população. De seguida financiará tam-bém a suposta reconstrução do país pe-las centenas de corporações do invasor. Que funcionarão como cobradores de tributos do conquistador. Montam-se as barracas da junk food , privatiza-se tudo, vende-se tudo. Os cidadãos inva-didos (que podem) passam a pagar um alto preço pela saúde, pela educação e pela segurança.

CASE STUDYTomemos o caso da Líbia. Kadhafi foi sis-tematicamente descrito como um excên-trico sanguinário e um predador sexual, com a população mergulhada na pobreza e no obscurantismo. Obviamente algu-mas destas afirmações são verdadeiras, no entanto...A independência da Líbia foi em 1951, o Reino Unido colocou no poder o rei Idris, que foi derrubado pelo jovem Ka-dhafi em 69. O país era um dos mais atrasados com uma literacia abaixo dos

Sigmund Freud sobre os EUA depois da sua primeira e única visita:

“É um erro gigantesco”

QUANDO OLHAMOS para o mun-do hoje salta à vista que apenas um país mantém tropas espalhadas pelas suas sete partidas: os Estados Unidos da América. Com o fim da Guerra Fria e o desinteresse russo numa presença global, ao contrário do que aconte-cia com a União Soviética, os ame-ricanos não retiraram as armas que argumentavam proteger da ameaça soviética. Pelo contrário, têm sido o motor das guerras, que mantêm viva e de excelente saúde a sua indústria militar. Para além dos conflitos, ideo-logicamente impossíveis de defender, como é o caso do Iraque, os EUA são um permanente factor de desestabi-lização em todos os continentes, de África ao Médio Oriente, da Ásia à Oceania. Em toda a parte instalam bases, colo-cam milhares de soldados e, sobretudo, trabalham para que uma paz duradoura e o respeito mútuo entre nações não aconteça. Dividem para reinar, fo-mentam discórdias internas, sobretu-do onde existem equilíbrios precários como é, actualmente, o caso da Síria, motivados aliás pelas divisões operadas no Médio Oriente pelos seus eternos aliados britânicos, como muito bem o sublinhou T.E. Lawrence, mais conhe-cido por Lawrence da Arábia.

ACIMA DA JUSTIÇA E DA LEIA hipocrisia, a duplicidade de crité-rios e a violência assente na mentira tornaram-se na prática comum da po-lítica externa norte-americana, sobre-tudo desde a guerra do Iraque, levada a cabo sob a bandeira das inexisten-tes armas de destruição massiva que por lá nunca existiram. O resultado está ainda hoje à vista num país que continua sobre a constante ameaça da violência sectária, se exceptuarmos os campos petrolíferos, sob controlo de companhias americanas e com a segurança garantida pela sinistra Bla-ckwater, do ex-vice-presidente Dick Cheney.Por outro lado, apesar de nos discursos constantemente se referirem os direitos humanos, a liberdade e o primado da lei, os Estados Unidos não reconhecem o poder do Tribunal Penal Internacio-nal, onde George W. Bush, o referido Cheney e Donald Rumsfeldt deveriam estar a ser julgados pelos variados cri-

Pesadelo global

Nós cá estamos, antes como agora, quietos e calados, mais ou menos convencidos que existe a ameaça: da outra religião, do outro país, da falta de dinheiro. Acreditamos que alguém nos defende e pagamos o benigno vigilante com o nosso silêncio colaborador.

carlos Morais José

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mes. Só o saque do museu de Bagdad daria para começar.A verdade é que as actuais administra-ções americanas, subordinadas aos in-teresses dos senhores da guerra, pouco se têm preocupado em conhecer pro-fundamente a realidade dos países que ocupam ou desestabilizam.

DO SONHO AO PESADELOAo contrário do que fizeram no Japão depois da II Guerra Mundial, os EUA desprezam a cultura dos povos e pro-põem-se a exportação da sua própria cultural, quer em termos políticos, quer em termos estritamente culturais. Con-tudo, bastaria um olhar rápido para a própria América para se compreender que estão a exportar um pesadelo e um mundo monótono sem traços de diver-sidade estética ou cultural. Se o mundo adoptasse a cultura norte-americana es-taria a transformar-se, por todo o lado, num espaço onde predominaria o ódio, a desconfiança, a impossibilidade de acreditar e confiar no olhar de um ou-tro ser humano, ou seja, num verdadeiro império do Mal.Pergunta-se com que direito se arrogam do poder de estarem ameaçadoramente contra a existência de uma bomba nucle-ar no Irão (isto apesar de repetidamen-te os líderes iranianos dizerem que são contra esse tipo de armas) e ameaçarem bombardear um país que, até hoje, se li-mitou em termos miliatres a defender-se das agressões do então amigo americano Saddam Hussein.

A BOMBA IRANIANAA própria revista conservadora Foreign Affairs, num número recente, defende a nuclearização do Irão como factor de equílibrio numa região onde o verda-deiro perigo vem dos radicais paquis-taneses que têm feito explodir bombas atómicas nos desertos do Baluchistão e com isso causado inúmeros tremores de terra em território iraniano, para não fa-lar de radioactividade. Bastará ler o livro de Bernard Henry-Levy “Quem matou Daniel Pearl?” para ter uma ideia do que é o Paquistão e de onde se escondem os terroristas jihadistas (mais uma criação norte-americana), tão convenientes aos EUA para a continuação da sua política de expansão militar e controlo financei-ro do mundo.Segundo a argumentação da Foreign Affairs, que segue a lógica dissausora que tem evitado as guerras mundiais desde o aparecimento e disseminação dos arsenais atómicos, o facto de o Irão ter a bomba contribuiria para o equilí-brio regional e não o contrário.Apesar da histeria mediática sobre esta eventualidade, os EUA são o único país que detonou sobre outro povo duas bombas nucleares e possui um arsenal tão vasto que permitira a destruição de vários planetas. É também de sublinhar o silêncio sobre as bombas atómicas israelitas e, sobretudo, a não exigência de clarificação e transparência desta questão. A duplicidade de critérios é

por demais evidente e retiram toda a credibilidade à política externa norte--americana.

BLOQUEIO MEDIÁTICOOs media internacionais sofrem de um verdadeiro bloqueio informativo. Re-centemente, realizou-se no Irão uma conferência do Movimento do Não--Alinhados, que reuniu em Teerão mais de cento e tal Chefes de Estado e/ou Primeiros-Ministros. No encontro foi sublinhado que o mundo não quer e não suportará mais a actual ordem mundial e as constantes intervenções dos EUA em várias zonas do globo. Claro que a

imprensa internacional, apesar da gran-diosidade do evento, pouco ou nenhum destaque lhe deu. O resultado da política externa norte--americana tem sido dramático para os cidadão estado-unidenses, quantas ve-zes inocentes em relação às políticas da suas sucessivas administrações. Hoje são basicamente odiados em toda a par-te, sobretudo nos lugares onde existe a presença de tropas e bases militares. O desrespeito pelas culturas locais, pe-los seus hábitos e costumes, a arrogân-cia ignorante de um povo sem História nem memória, etnicamente dividido, a predominância do ódio nos quotidianos

têm sido fatais para a apreciação que deles é feita pelos outros povos. Quem viaja tem conhecimento destes factos em primeira mão: são dados inegáveis e verificáveis por toda a parte. Com o espalhar do império norte--americano, o mundo tem-se tornado progressivamente feio, desinteressante, monótono, revestido pelas mesmas lo-jas, os mesmos produtos e, sobretudo, as mesmas iniquidades, atentados éticos e estéticos, numa dimensão somente pre-vista por visionários do século XX como Sigmund Freud, por exemplo. O sonho americano está progressivamente a tor-nar-se num pesadelo global.

O sonho americano está progressivamente a tornar-se num pesadelo global.

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NA CAPA da revista Life nº 97, de 29 de Maio de 1944, aparece uma imagem que sempre me perturbou. Refiro-me a cena frequente na Segunda Guerra Mundial: dois oficiais, um deles cabis-baixo, talvez sorridente, junto a uma pilha de folhas em chamas e o outro, tomando o desinteresse pelo dever, a deitar os olhos à correspondência. Am-bos calcinam informação secreta num pequeno forno e a legenda da ima-gem estabelece de forma expressiva: “Oficiais da Base de Espionagem, que vigiam a espionagem do inimigo, quei-mam papéis confidenciais”.Falo de 1944, um ano de acções ter-ríveis que provavelmente obrigaram a apagar dados de operações cruéis contra os nazis; o incrível é que se pas-saram quase sete décadas e os gover-nos dos EUA continuam em guerra e a ocultar dados, sem se importar com a Lei da Liberdade de informação, de 1966, nem com a Freedom of Informa-tion Clearing House, organismo que protege cidadãos em busca de informa-ção pública que seja recusada. Lugares como a prisão de Guantánamo são abó-bodas sobre verdades ocultas, embora os cidadãos entusiastas e activos con-fiem que o fenómeno Wikileaks volte a pegar nos antecedentes dela e que der-rube as aspirações dos manipuladores do mundo.O primeiro golpe duro contra os agen-tes da desinformação ocorreu em 1971 quando o jornalista Neil Sheeban, do New York Times, teve acesso a 7000 páginas, classificadas como segredo máximo de estado sobre a guerra do Vietname, e começou uma sucessão de reportagens sobre os custos duma tragédia nacional. Isso provocou de-missões e reações violentas sobre os Dossiês do Pentágono e, apesar da oposição política, o Supremo Tribunal sentenciou que a segurança nacional não estava acima do direito à informa-ção em todas as ocasiões, dado isso po-der ser mais uma desculpa do que uma realidade.Nesse momento, o autor intelectual da fuga de documentos foi o analista militar Daniel Ellsberg, o qual des-truiu a sua carreira por uma questão de consciência ao entregar o relatório Relações Estados-Unidos/Vietname, 1945-1967: um estudo preparado pelo Departamento de Defesa a 18 jornais diários, entre os quais o poderoso The Washington Post. O oficial que traba-lhava na Rand Corporation foi espiado, difamado, inventaram-lhe mesmo car-gos de espionagem para os soviéticos e uma mulher até advertiu que ele a violara. Um consumado e impune as-sassino como Henry Kissinger advertiu que Ellsberg “é o homem mais perigoso dos Estados-Unidos e deve ser detido a qualquer custo”. O mundo era na época tão absurdo como o actual e Kissinger,

ASSANGE, WIKILEAKSe a censura no século XXI

em vez de pagar pelos seus delitos, foi premiado com o Nobel da Paz.No segundo caso, foi Watergate a ex-por as mentiras do Presidente Richard Nixon e a obrigá-lo a sair a 8 de agos-to de 1974: a história pode ler-se em “Todos os Homens do Presidente”, um memorável relato de Bob Woodward e Carl Bernstein em que fonte identifi-cada como Garganta Funda, que hoje sabemos chamar-se W. Mark Felt, um diretor-adjunto do FBI, expôs a verdade sobre escutas ilegais e pagamentos de suborno por parte da equipa mais pró-xima do primeiro mandatário. Como pôde manter-se à margem da polémica, é difícil de imaginar, não fosse o exce-lente trabalho dos repórteres.Em anos recentes formou-se novo al-voroço conhecido como questão Wi-kileaks, cuja liderança o misterioso e polémico australiano Julian Assange detém, zangado hoje com os seus anti-gos companheiros de estrada. A hiper--inflação de arquivos que a era digital acelerou pode explicar que tenham sido difundidas 251.287 transmissões de do-cumentos, entre novembro e dezembro de 2010, uns menos importantes que outros, contudo fundamentais para co-nhecer a atividade de 274 embaixadas dos EUA no mundo.Alguns documentos são entediantes, ultra-conhecidos; apenas 15.000 docu-mentos têm relevância e justifica-se que as cadeias de média globais se interes-sassem repentinamente por divulgar o seu conteúdo no meio duma crise, como a fracassada ocupação do Iraque, o de-sastre do Afeganistão e a hecatombe económica, enfrentada por um Presi-dente Barak Hussein Obama, de origem tão havaiana como o próprio vocábulo Wiki.Em geral, as publicações da organização Wikileaks apareceram e continuam a aparecer, não sem conflitos crescentes, em prestigiosos meios internacionais como El País, Le Monde, Der Spiegel, The Guardian e The New York Times. Entre a difusão de material mais contro-verso está, talvez, um vídeo de 12 de Ju-lho de 2007 onde se consegue discernir como tropas dos EUA asassinaram com desprezo o repórter da Reuters Namir Noor-Eldeen e, para não deixar teste-munhas, mataram outras dez pessoas. Conspiração de silêncio que acompa-nhou também o crime contra o jornalis-ta José Couso, condenado a ser símbolo sem significado pelos grandes grupos de média.“Assange é um terrorista da alta tecnolo-gia”, assinalou o obscuro vice-presiden-te Joseph Biden, burocrata ao serviço de clubes e associações favoráveis às indús-trias militares. O bloqueio à WikiLeaks, com certeza, passou por uma ciber-censura violenta: a bondosa Biblioteca do Congreso, bastião conservador nas mãos de James Billington - especialista da era Reagan que continua no ativo - nega a qualquer utilizador acesso aos documentos transmitidos, situação que causou problemas dado que a consulta

Fernando Baez

Entre a difusão de material mais controverso está, talvez, um vídeo de 12 de Julho de 2007 onde se consegue discernir como tropas dos EUA asassinaram com desprezo o repórter da Reuters Namir Noor-Eldeen e, para não deixar testemunhas, mataram outras dez pessoas.

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da base-de-dados do próprio Congresso não se podia processar.O ceticismo e a surpresa não devem impedir que a leitora e o leitor tenham presente que dentro dos EUA há um pequeno grupo de poder cujos privilé-gios são intocáveis, como em qualquer outro lugar do mundo, seja a China, a Rússia ou a Suíça. Não há média, não há instituição ou espaço que não este-ja sob o seu controlo, sobretudo desde o fortalecimento dos grupos de poder, pós-guerra fria e posterior colapso da União Soviética. O Pentágono possui uma Unidade para a ciberguerra capaz de assediar e reter informação sobre dados de segurança nacional, mas estra-nhamente não pôde impedir o fluxo de dados da Wikileaks.Não faz sentido não perder de vista onde começa a história. A fonte prin-cipal da fuga de informação foi Bradley E. Manning, jovem defensor dos direi-tos de homossexuais nascido em 1987, criado em Oklahoma, cidade onde o veterano Timothy McVeigh causou o enorme atentado terrorista de 1995. De Manning, treinado em Fort Huachuca, centro militar no Arizona, sabemos que tinha acesso à rede secreta de documen-tos e que era especializado em determi-nar as vulnerabilidades do adversário, analisar e preparar emboscadas. No Ira-que, esteve em Contingency Operating Station Hammer, do qual, para além do amor pelo golfe dos seus oficiais, se co-nhecem as operações de guerra suja que levaram a cabo.Um belo dia, a repulsa reprimida ou a sensação de poder que a informação dá, ou ambas as coisas, levaram a que Man-ning preparasse um CD, que etiquetou com o nome da extravagante cantora Lady Gaga, e que descarregasse os da-dos que tinha à mão, ponta do iceber-gue do que poderia ser a Antártida dos segredos. Posteriormente contactou a organização Wikileaks e a sua acção custou-lhe prisão, isolamento e tortura, sem contar com o misterioso manto de negligência mal-agradecida que cobriu as suas ações, numa era de banalidade e farândola viciante.Tudo se encaminhava para passar a ser notícia sem público, entre 2010 e 2012, até o Equador conceder asilo diplomáti-co a Julian Assange, que estava na Em-baixada do Reino Unido, para logo se saber que a policía já contava com um Plano para violar qualquer acordo inter-nacional e extraditar Assange para a Su-écia, onde mulheres o acusam de fazer amor sem preservativo, desculpa perfei-ta para a Suécia poder cumprir com o pacto ignorado para entregar o jorna-lista aos EUA. EUA onde seria preso e onde eventualmente desapareceria em poucos anos quando os cidadãos esti-vessem distraídos por qualquer episódio duma das suas séries de televisão favori-tas sobre a fama, a sobrevivência, ou o humor inócuo.Assim funciona o mundo de hoje, igual ou pior desde o instante em que a se-

gurança nacional serviu para aniquilar os direitos humanos. Na versão de O Leopardo 2.0, tudo foi clonado para preservar a essência das mentiras: Guan-tánamo continua; o Iraque está à beira duma guerra civil; a Al Qaeda fortalece--se na África subsaariana; Bin Laden foi assassinado e atirado ao mar, e essa ver-são deve aceitar-se, sem provas, como única; o Afeganistão é um desastre; os banqueiros corruptos de Wall Street, criadores duma crise mundial, estão mais protegidos que nunca; e para man-ter tranquilos os média, que se queixam dos seus mortos – nunca dos mortos dos outros — desenvolveram-se veícu-los aéreos não tripulados (drones) que aniquilam silenciosamente centenas de pessoas no Paquistão e no Iémen – mui-tas delas inocentes. Não fora a Wikile-aks, e o caminho que abriu, as falsidades teriam alibis perfeitos e por isso milhões de nós decidiram apoiar o labor de As-sange e de quem, como ele, nos ajude a desmascarar os responsáveis pela cri-se global de que padecemos nestes iní-cios do século XXI. Aconteça-nos o que acontecer, prisão ou desaparecimento, os nossos filhos e filhas merecem um mundo melhor, mais transparente.

Não fora a Wikileaks, e o caminho que abriu, as falsidades teriam alibis perfeitos e por isso milhões de nós decidiram apoiar o labor de Assange e de quem, como ele, nos ajude a desmascarar os responsáveis pela crise global de que padecemos nestes inícios do século XXI. Aconteça-nos o que acontecer, prisão ou desaparecimento, os nossos filhos e filhas merecem um mundo melhor, mais transparente.

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O CASO DO BANCO Delta Ásia foi exemplar. E Macau teve o azar de se ver envolvido numa exemplaridade de onde não sai bem, nem na fotografia nem na sua própria consciência. Com efeito, foi aqui, neste caso, que os Estados Unidos melhor demonstraram a sua pretensão/vocação para polícias do mundo. Muito melhor do que nas intervenções bélicas efectivadas na Sérvia, Bósnia, Afega-nistão ou Iraque. É que, enquanto nos casos citados os EUA foram obrigados a uma intervenção militar, a deslocar forças, pôr em risco as vidas dos seus soldados, largar bombas, etc., no caso do BDA bastou a emissão de um do-cumento, a denúncia de uma situação alegadamente ilegal à luz da lei inter-nacional (?), para que o governo de Ma-cau tivesse imediatamente suspendido a actividade do banco. Na altura dizia-se, à boca cheia, que existiriam mais dois bancos envolvi-dos nas operações financeiras com a Coreia do Norte, mas o tal documento dos EUA não os referia e caíram no es-quecimento.Resumindo, uma acusação americana foi o bastante para desencadear uma acção de um outro governo contra uma instituição bancária, pondo em causa os depósitos e a vida económica de milhares de pessoas que nada tinham a ver com os negócios de Pyongyang, isto par além de ter lançado uma som-bra de permeabilidade e desconfiança sobre o sistema bancário de Macau, até aí inexistente sobretudo do ponto de vista do utilizador. Até que ponto isto é útil à RAEM ain-da estão para me explicar, no meio do vasto manto de hipocrisia que cobre as operações financeiras internacionais, de Macau às Caimão, do Luxemburgo à Madeira, passando por Las Vegas, Monaco e Atlantic City.Na verdade, ainda estão hoje por provar as ligações do BDA à Coreia do Norte. No entanto, o caos instalou-se e não fos-se o governo da RAEM possuir os fundos suficientes para cobrir a corrida ao banco e muita gente teria sofrido as consequên-cias das acções. Recentemente, o ataque ao HSBC e ao Standart Chartered vêm provar que o sistema financeiro mundial deverá aos poucos subtrair-se à influên-cia americana e criar canais paralelos ao dólar. Os americanos, na última década, têm sido os causadores das grandes cri-ses mundiais, provocando fome, miséria e desgraca em numerosos países. É tem-po do mundo encontrar uma alternativa e dar uma firme resposta.

Recentemente, o ataque ao HSBC e ao Standart Chartered vêm provar que o sistema financeiro mundial deverá aos poucos subtrair-se à influência americana e criar canais paralelos ao dólar. Os americanos, na última década, têm sido os causadores das grandes crises mundiais, provocando fome, miséria e desgraca em numerosos países. É tempo do mundo encontrar uma alternativa e dar uma firme resposta.

A questão financeiraCarlos Morais José

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ELE NÃO há como as teorias da História. Como os relatos que nos dão conta do que vai acontecer e porquê. Uma delas — qui-çá a mais famosa e actuante — vem-nos do século XIX e propõe um mundo ordenado, seja pelas leis do espírito (Hegel) ou pelas leis da matéria (Marx), e com uma finali-dade. Agora fixou-se nas ideias de Francis Fukyama a respeito do fim da História. É como se as sociedades, tal como o resto do universo, fossem ordenadas segundo leis, passíveis de ser descobertas, e estivessem sujeitas a uma evolução, algo semelhante às espécies animais, a quem Darwin acabava de traçar o destino. Seja como for, estas te-orias acreditam que a História tem um fim, que as leis naturais ou sociais acabam, de um modo ou de outro, por ditar o nosso futuro. É possível à razão, portanto, compreender a finalidade da História e trabalhar nesse sentido. Para Hegel, o supra-sumo da bar-batana do tubarão era o Estado prussiano, a síntese política última e perto da perfei-ção. Para Marx, o socialismo a haver. Para Fukyama, a democracia americana.Ora para compreender e explicar essa evo-lução das sociedades nada melhor do que a economia, pensavam os nossos oitocen-tistas. E porquê? Porque a economia é, no conjunto das chamadas ciências sociais e humanas, a que aparenta maior rigor e dotou mesmo de inúmeras leis. A econo-mia, também porque regula as actividades básicas, foi então considerada como a ac-tividade humana na qual todas as outras se enraízam e da qual dependem, bastando considerar a sua evolução para saber como se desenvolverão os outros aspectos sociais e culturais. A sua proximidade à matemática permitia-lhe assegurar a máscara da cienti-ficidade e do rigor, por oposição a outros saberes humanistas que não têm acesso, nem pretendem, quantificar o Homem por entenderem não ser por aí que o querem perceber.É foi nisto que se desenvolveram as teorias liberais e marxistas, que dominaram todo o século XX e que demoram a finar-se no século XXI. Os marxistas espantaram-se porque do novo sistema económico não surgiu o homem novo (a começar pelos que se sentavam nas cadeiras do Kremlim) e os capitalistas compreenderam que a socieda-de da abundância para alguns insiste em ser a da escassez para outros, a grande e triste maioria. O regime nos países ditos comu-nistas raramente foi muito além de uma pa-ródia do que Marx definiu como modo de produção asiático. O desenvolvimento ca-pitalista acentua a exclusão social e eterniza intoleráveis bolsas de miséria e pobreza. A racionalidade económica revela-se fruste

UMA DEMONOLOGIApara entender e muito mais para prever uma imprevista realidade e a sua fenomenologia.A moral da História parece portanto dar razão aos que não a encaram de um pon-to de vista tão abrangente e, por exemplo como Maquiavel, dão à política, ou seja, às emoções e aos desejos, um papel primordial no desenrolar dos acontecimentos. É como se um lado irracional insistisse sempre em emergir no fluxo dos eventos e a transtornar os que pensam reger um mundo obediente a leis e relações constantes entre variáveis. Chamar-lhe irracional é pouco correcto, na medida em que a razão lhe serve igualmen-te de arma. É este uma espécie de daimon da política, o demónio travesso que estimu-la as lutas pelo poder, baseadas nos interes-ses individuais ou de grupos. Estamos pois perante uma demonologia, recuperando o termo de Leo Strauss.Tomemos, então, o que nos leva a reflectir neste artigo: o actual estado das relações China-Japão. Como todos sabem, os dois países atravessam um momento de relações difíceis como já não há memória, segundo a imprensa, desde 1972. E logo num momen-to em que a conjuntura económica a tal não aconselharia. Até porque não se trata de uma guerra económica subterrânea, a ditar o confronto politico, na medida em que os dois países se encontram em estádios bem distintos do seu crescimento, especialização e capacidade de produção de riqueza.Não. Trata-se mesmo de uma questão mui-to pouco relacionada com os interesses concretos quer da China quer do Japão, a nível de política internacional ou interna, nas quais lhes conviria ser cada vez mais complementares. Vale a pena por isso pen-sar um pouco no assunto, um pouco à luz do que acima referi.Tudo começa com as visitas sazonais de ministros japoneses ao templo onde jazem os restos mortais dos criminosos de guerra nipónicos, com o intuito de lhes prestar homenagem. Este turismo patriótico des-pertou protestos em todos os países que sofreram com as acções japonesas na II Guerra Mundial. Excepção: Estados Uni-dos. Como despertou protestos no próprio Japão, na medida em que muitos homens de negócios japoneses não compreendem por-que é que o passado lhes há-de tornar a vida mais difícil no presente em países como a China, a Coreia ou as Filipinas. Estes ac-tos encontram-se revestido de simbolismo, sobretudo dirigido ao presente, e por isso enerva tanto os outros países. À partida, em nada afectaria as relações económicas, mas os japoneses sabem que estão a jogar com emoções e pensarão eventualmente que as conseguem manipular sem fazer o vaso transbordar. Assim, piscam um olho à direita patriótica japonesa, a nível interno, e marcam uma posição no tabuleiro interna-

cional, num momento em que o Japão está cada vez mais em operações militares in-ternacionais e existe um vivo debate sobre a militarização do país face ao desenvolvi-mento bélico da China. Depois surgiu a questão do manual escolar que apresenta, entre outras enormidades, o massacre de Nanjing como um “incidente”. (Imagine-se o que seria a chanceler Merkel vir dizer que o Holocausto foi um “dano co-lateral”). Aqui reside a diferença entre uma Alemanha que, a nível de Estado, não de-fende o seu passado hitleriano e um Japão que insiste em desculpabilizar-se dos seus erros no século XX, no apogeu do seu ex-pansionismo militarista.Como explicar esta atitude nipónica? Difi-cilmente encontraremos a explicação numa racionalidade económica quando a China é já o principal parceiro. Aliás, a actual ten-são entre os dois países, por causa das ilhas Dyaoyu está a deixar em pânico quem in-vestiu na certeza de uma evolução benigna das relações. De que serve ao Japão, assu-mir e permitir estas atitudes que, sabem-no bem, não deixarão de ter consequências en-tre todos os que sofreram a ambição nipó-nica? Excepção: os Estados Unidos. Surpre-endente ou talvez não, como o governo de Obama, tão lesto a defender os americanos interesses e valores, nada diga quando os ja-poneses desvalorizam as atrocidades come-tidas na II Guerra Mundial. E como explicar a dimensão da reacção chinesa? As relações entre a China e o Japão sempre se pautaram pelo amor-ódio, sendo o sen-timento negro o mais visível historicamen-te. Contudo, não podemos esquecer que a cultura japonesa é, na sua origem chinesa, que tal facto não é jamais esquecido pelos intelectuais nipónicos, que a China é consi-derada por muitos japoneses como o berço da civilização extremo-oriental e ainda hoje o lugar onde reside o mais profundo da sua cultura. Por seu lado, os chineses reconhecem e admiram a capacidade japonesa de organi-zação e apreciam muitas das soluções en-contradas, sobretudo a nível económico e talvez até político. Numa entrevista conce-dida nos anos 80, Deng Xiaoping referiu-se ao modelo de desenvolvimento nipónico, pré e pós II Guerra Mundial, de forma bas-tante positiva. E compreende-se. Se nos fi-nais do século XIX, um espírito nacionalista e militarista impulsionou um extraordinário crescimento industrial, que permitiu ao Ja-pão competir com as principais potências da época e derrotar a gigantesca Rússia; na segunda metade do século XX o país conseguiu desenvolver um regime semi--autoritário, baseado numa peculiar e bem sucedida economia de mercado, no qual o Partido Liberal Democrata se eternizou du-rante mais de 40 anos no poder, ganhando

sempre as eleições, mas com tiques claros de autoritarismo, um pouco como acon-tecia em Taiwan com o Kuomitang. Este modelo, que não desagradava totalmente a Deng Xiaoping, por motivos que se com-preendem (economia bem sucedida num regime politico de, praticamente , partido único), só parcialmente se viria a desfazer nos anos 90 do século passado. O problema actual centra-se, contudo, no que distancia os dois povos e não no que os aproxima. E o que os distancia, muito clara-mente, são as feridas abertas pela História. Mas não só. O maior problema é que em ambos os países existe um fervor naciona-lista crescente. Não acreditamos que seja do mesmo tipo do passado, muito menos que tenha tendências expansionistas. No entan-to, o crescimento da China não pode deixar de assustar os seus vizinhos, como começa a preocupar o mundo. “Quando a China despertar...”, esta famosa frase corre o risco de se actualizar. Cada vez mais a China es-tará presente nos quotidianos de todos e em todo o mundo, como acontece hoje com os Estados Unidos, através das suas marcas e outros negócios. Também é isto que signifi-ca ser a maior potência económica mundial, estatuto para o qual a China caminha a pas-sos largos. O crescimento da ideologia nacionalista, que no lugar do socialismo sustenta hoje o povo chinês, justifica a autorização de ma-nifestações que tanto “surpreenderam” os japoneses. À China não basta ser o palco de eventos mundiais, como a exploração do espaço, os Jogos Olímpicos ou a Fórmula 1. Tem Taiwan cravado num pé e um século de humilhações para engolir. O país não está em condições psicológicas de sofrer afron-tas internacionais. E os líderes japoneses deviam saber disto. Se calhar, sabem. Basta ver como o nacionalismo (ou patriotismo, se quiserem) é disseminado na China, não de forma sempre directa mas como algo omnipresente a todas as acções e algo que imbui, cimenta e justifica todas as medidas.Os nacionalismos têm riscos porque quan-do se joga com as emoções dos povos a vasilha torna-se difícil de controlar e por vezes transborda. Tanto chineses como ja-poneses estão convencidos que se trata de algo ainda passível de ser manejado, quer na política quer como escape social. Curio-samente ou talvez não, os Estados Unidos estão sentados a olhar. De facto, excelentes relações entre a China e o Japão alterariam para sempre os eixos dos interesses mun-diais... Mais do que a razão, mais do que no fim da História, continuamos num mundo em que a demonologia continua a ser mui-to necessária para entender a política, essa mesmo que nos tira e põe o pão na mesa, e com o fumo das suas fábricas nos apaga e liga a luz do Sol.

Carlos Morais José

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António GrAçA de Abreu

BEIDAIHE, com muita História à mistura, é uma estância balnear famosa (em termos de China!), duzentos quilómetros a nor-deste de Pequim. A vila desdobra-se numa sucessão de pequenas baías no mar de Bo-hai -- águas interiores do grande Oceano Pacífico --, aconchegadas pela natureza, protegidas de ventos agrestes e inoportu-nos, as areias ao sabor de marés docemente recatadas. No Verão de 1978 viajei pela primeira vez para Beidaihe. Na ida e no regresso, desde Pequim, o comboio atravessou a cidade de Tan-gshan arrasada por um tremendo tremor de terra em Julho de 1976. Nesse inol-vidável ano do Dragão, a China Comu-nista foi abalalada pela morte dos seus três maiores governantes, os rostos, as inteligências sinuosas, os homens que encabeçaram o longo processo revolu-cionário que, em 1949, culminou com a fundação da República Popular da Chi-na. Em Janeiro de 1976 faleceu o primei-ro-ministro Zhou Enlai, o homem que assessoriou Mao e pôs em execução qua-se todas as medidas políticas que, para o bem e para o mal, modelaram a Nova China. Em Junho, chegou a hora final do marechal Zhu De (Chu Teh), o supremo comandante militar e estratega da revo-lução chinesa. Em Setembro, desapare-ceu para sempre Mao Zedong, o revo-lucionário determinado e implacável que levou a nau da revolução comunista a bom porto e depois, como timoneiro, foi protagonista de devastadores naufrágios.O terramoto de Tangshan, a seten-ta quilómetros das praias de Beidaihe, provocou 260.000 mortos numa cidade habitada então por um milhão de pes-soas. 1976, Ano do Dragão, convulsões na terra, centenas de milhares de mor-tos, o desaparecimento dos três maiores dirigentes do Partido e do Estado, tudo sinais dolorosos da chegada ao fim de uma época. A China ia mudar de modo quase radical, Deng Xiaoping preparava o regresso triunfante aos lemes do poder e, com a sua equipa, engendrava as no-vas políticas “capitalistas” que alterariam a face da China.Em 1978, Tangshan mostrava-se ainda como um gigantesco amontoado de ruí-nas. Jamais esquecerei o lento caminhar do comboio ao longo de três ou quatro quiló-metros, a linha ao lado do que haviam sido ruas, casas, armazéns e complexos indus-trais. Tudo devastado, destruído, paredes solitárias, escombros, estruturas retorcidas,

北戴河BEIDAIHE, TERRAMOTOS, PRAIA E TRAGÉDIAS MAOISTAS

pedras e mais pedras amontoadas no sopé das habitações de um outrora recente, um horizonte diante dos olhos de catástrofe e de morte.Tangshan renasceu para a vida, foi recons-truída com edifícios anti-sísmicos e hoje, com três milhões de habitantes, volta a ser

um importante pólo industrial no norte da China.Chego a Beidaihe. Viajo com a minha danwei, a entidade de trabalho, as Edi-ções de Pequim em Línguas Estrangei-ras. Trago a minha bicicleta que viajou no furgão do comboio e me foi entregue

impecavelmente protegida por tiras de cartão canelado. Sou alojado num com-plexo turístico destinado a quadros do Partido Comunista, coisa que me acon-teceu várias vezes em jornadas pela Chi-na quando a viagem era a expensas dos meus patrões, a danwei, as Edições de

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BEIDAIHE, TERRAMOTOS, PRAIA E TRAGÉDIAS MAOISTAS

Pequim. Deu para comprovar -- para o meu cada vez menos ingénuo espanto --, as mordomias e privilégios de que se ro-deavam os homens importantes, ou tidos como tal, dentro do aparelho de Estado. Diante do espaçoso quarto, espartano mas confortável e funcional, tinha um jardin-

zinho, logo depois a praia de areia fina e tépida, e o mar.

QUINZE DIAS EM BEIDAIHE

Mergulhos nas águas tépidas do Oceano Pacífico, caminhar ao longo do recorte das

baías, das bermas do mar, entreter-me a ou-vir a conversa – horrível dialecto do norte de Hebei, não entendia uma palavra! --, dos pescadores locais que ao entardecer saíam para o mar nos seus pequenos barcos de madeira e depois, já de noite, pintalgavam a superfície do oceano com as luzes fortes suspensas dos lampiões dos barcos descen-do sobre a água, para chamar o peixe.Tenho bicicleta e rodas para andar. Qui-lómetros e quilómetros a pedalar pelas estradinhas em volta de Beidaihe, para en-trar por dentro de aldeias pobres de cam-poneses, por milheirais, campos de sorgo e milhete, para beber uma chávena de chá com a gente da terra, fotografar velhos e crianças, e continuar viagem. Subo ao pa-vilhão da Pomba Branca. Do alto, debruça-do sobre o oceano, o sucessivo estriar das ondas, as águas avançando num rendilhado suave sobre as areias da praia, a imensidão do oceano e um poema que Mao Zedong escreveu exactamente aqui, neste torreão sobre o mar, no Verão de 1954. Traduzo:

BeidaiheCascatas de chuva nas terras do norte,ondas brancas sobem até ao céu.Os barcos de pesca, para além de Qinghuandao,desapareceram no imenso oceano.Navegaram para qual lugar?Há mil anos, Wu, o imperador de Weibrandiu o chicote, viajou para Jieshi, a leste.Da sua viagem permanecem apenas os poemas.Hoje, o vento de Outono ainda me entristece,mas como o mundo mudou…

As praias de Beidaihe estão ligadas à his-tória recente da China. Lembram-se do marechal Lin Biao (1907-1971), um dos mais destacados comandantes militares e dirigentes da revolução chinesa? Foi no-meado sucessor de Mao Zedong no Con-gresso do Partido em Abril de 1969, mas rapidamente azedaram as relações com Mao e hoje não restam dúvidas (o tema tem sido alvo de muita controvérsia!) de que Lin Biao, com o seu filho Lin Liguo e a esposa Ye Qu, mais umas centenas de mili-tares de sua confiança preparavam em Se-tembro de 1971 um golpe de Estado que passaria pelo assassínio de Mao. Lin Biao e a família encontravam-se exactamente em Baidaihe, fruindo as delícias do afamado lugar e elaborando planos inconsequentes para aniquilar Mao e mudar a história da China. O complot contra Mao foi desco-berto graças à ingenuidade de Duoduo, a filha de Lin Biao que resolveu transmitir aos guardas pessoais de seu pai as activi-dades do progenitor, pedindo-lhes mais

proteçcão para o velho marechal. Perse-guidos pelas tropas fiéis a Mao, na noite de 13 de Setembro de 1971, Lin Biao, com o filho e a esposa fugiram para Shanhai-guan, o aeroporto que servia Beidaihe. Aí, um avião Trident, de fabrico inglês, igual aos que então equipavam quase todas as linhas aéreas civis chinesas, voou com Li Biao e os seus em direcção à União Sovi-ética. Em Beidaihe, na urgência da fuga, não houve tempo de reabastecer conve-nientemente o avião que largou com os depósitos de gasolina com menos de me-tade da sua capacidade. A tripulação de recurso era tambem reduzidíssima, apenas o piloto e três mecânicos. Após hora e meio de voo desde Beidaihe, o piloto do Trident com Lin Biao, a esposa e o filho a bordo, comprova que não tem gasolina suficiente para chegar à União Soviética. Tenta uma aterragem de emergência numa pradaria da Mongólia. O avião desfaz-se, incendeia-se e morrem os nove tripulantes e passageiros.Sem Lin Biao, a China iria mudar. Mao Ze-dong e sobretudo Zhu Enlai, o primeiro--ministro, põem em prática uma política bem menos radical, recuperam os quadros perseguidos durante a Revolução Cultural, reaparece Deng Xiaoping, concretizam--se as relações com os Estados Unidos da América (Nixon visita a China em 1972), no velho império respiram-se as primeiras brisas dos tempos diferentes que se avizi-nham.A estância de Beidaihe, as enseadas, as areias, as águas límpidas do mar, natural-mente insensíveis às maquinações e mil desvairos dos homens, continuaram, ano após ano, a abrir-se para receber as gentes da China e dos quatro cantos do mundo, inclusive a comunidade de diplomatas es-trangeiros em Pequim que aproveitam férias, ou fins de semana, para o veraneio agradabilíssimo junto ao Oceano Pacífico.Beidaihe cresceu nos últimos trinta anos. Felizmente não enxamearam as praias com hotéis de quinze ou vinte andares, tipo Be-nidorm no Mediterrâneo espanhol mas, inevitavelmente, como símbolo de moder-nidade, levantaram-se três ou quatro torres a destoar na paisagem. As pessoas na China não costumam ter vontade de se bronzear ao sol de Verão. O ideal de beleza na mulher é um corpo alvo, de pele fina, imaculado e claro como jade. Mas os chineses gostam de praia, de mergulhar nas águas tépidas do Pacífico, e esquecem ou ignoram facilmente a Histó-ria. Vale o simples prazer de viver.Calcula-se hoje que quatro milhões de chi-neses passam todos os anos pelas praias de Beidaihe.

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O BAR OZONE

Pedro Lystmanna revolta do emir

É difícil de olhar para o Bar Ozone como se apenas de um bar se tratasse. Fica incompleta, hoje em dia, uma visita a Hong Kong que não inclua o desejo vertiginoso de subir ao centé-simo décimo oitavo do Hotel Ritz-Carlton, em Kowloon, para ver a vista que este oferece. Subir ao Ozone permite, de modo fácil e ágil, um exercício que de outro modo dificilmen-te se cumpre: perceber a geografia da Ilha de Hong Kong e da zona de Kowloon. Percebê-la equivale a ficar detentor de um pequeno poder sobre esta cidade financeira e enigmática, ainda adolescente e errática nos seus desígnios.

O modo como a construção se ergueu ao longo da ilha, em destaque ao seu desenho natural e primitivo, parte de um conjunto vul-cânico, é o maior elogio que se pode fazer ao poder magnífico da cidade e ao esplendor da construção. Não é preciso pedir nenhuma be-bida (mas é aconselhável fazê-lo) para que nos deixemos invadir por um petulante orgulho de pertencer a esta utópica construção, recente, arrogante e operática, cidade bandeira extrema e invencível da superioridade da vida urbana, insubstituível, sobre a vida rural.

Numa altura da história em que, pela pri-meira vez, mais de metade da população mun-dial vive em cidades, este é o quadro perfeito do triunfo móvel e mecânico sobre o imobilis-mo rural. Como se lê em O Homem sem qualidades,

de Musil, “Perdemos em sonho o que ganhá-mos em realidade. Já não nos deixamos ficar deitados debaixo de uma árvore a olhar o céu por entre os dedos dos pés, mas produzimos...”.

Ao entender-se o espectáculo urbano, ao invés, como uma florescência efémera e por-ventura inútil, esta impressão terá de ser, ac-tualmente, vivida na sua mais brutal existência antes que os séculos transformem esta cidade noutra Samarcanda ou Bagdade. Hong Kong é, hoje, um fenómeno brutal, como Nova Iorque, Tóquio ou Londres, diverso de gentes e rico de expressão artística. Ao topo do Ritz Carlton chega o odor fragrante deste extraordinário porto e desta extraordinária aventura.

Por inícios do século XX desenvolveu-se uma ideia, que o futuro gloriosamente desmen-tiu, que punha em causa a capacidade regene-rativa da cidade. Acreditava-se que as condi-ções miseráveis em que vivia grande parte da população das cidades (o operariado) criariam uma população masculina debilitada fisicamen-te. Esta debilidade causaria uma incapacidade de reprodução que ditaria, mais tarde ou mais cedo, o autoengolimento da própria cidade. Esta crença partiu da constatação de que ha-via na cidade uma percentagem muito mais reduzida de homens aptos a cumprir o serviço militar que entre as comunidades rurais. Como exemplo, apenas 1000 homens aptos para o seu

cumprimento entre 11.000 na cidade industrial de Manchester. (ver Peter Hall, Cities of Tomor-row, Cap. 2).

O espectáculo que se desenvolve em frente do olhar inspira uma recusa eufórica e metáli-ca da tentação nostálgica que percorre, infec-ciosa e fedorenta, grande parte do jornalismo ocidental de hoje, viscosamente apegado ao tradicional e ao saudosismo. Promova-se esta impertinência humana de subir aos céus, tão alto, um transporte quase satânico na sua ousa-dia ascensional.

Este ímpeto vertical não pode, no entanto, gerar desdém pelos que estão em baixo, mas, ao invés, um impulso democrático e generoso de elevar a população às alturas do desejo e da imaginação que permitiram esta obra.

No interior do bar existem outros deleites. Pela sua geografia extensa e diversificada, mais tendente à exibição de um desenho ousado que à criação de um conforto tradicional, se pode apreciar a excelência da escolha de bebidas. Que outra coisa seria de esperar num sítio des-tes, que só uma megalopolis pode produzir? Neste momento o Ozone disponibiliza um grupo de 6 gins com água tónica que poderão ser objecto de um outro texto que acompanhará a descrição do bar no seu usufruto mais feliz, o nocturno.

(continua ? talvez)

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T E R C E I R O O U V I D O

CONVITE À EVASÃO

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Foi uma coincidência feliz, que também as há. Quando a ideia de fazer um programa de rá-dio dedicado à nova música alternativa feita na Ásia começava a germinar na minha cabeça, veio parar-me às mãos um CD. “Evade”, lia-se em le-tras brancas sob uma árvore azul como o céu noc-turno e limpo desse mês de Setembro de 2009, quando o trio de Macau (Sonia Ka Ian Lao, na voz, Brandon L, na guitarra, e Faye Choi, nas pro-gramações) editou o seu primeiro disco.

Tratava-se de um EP com sete músicas feitas de melodias inseguras que ganhavam compostura entre vocalizações intimistas, arritmias, guitarras planantes e um ocasional manto de electricidade estática, elementos que juntos conspiraram uma bela surpresa musical que tanto devia à Dream Pop como ao Shoegaze, ao Dubstep e à música orien-tal. “This Day”, o segundo tema do EP, foi a primeira música a ouvir-se no programa “Pró-ximo Oriente”, e deu o mote para a longa via-gem “à procura de novos sons, novas inspira-ções, de um novo oriente... De um próximo oriente.”

Em muitos aspectos, viria a aperceber-me

próximo oriente Hugo Pinto

mais tarde, os Evade definiam o espírito das bandas que passaram pelas 37 edições do programa: a vontade de fazer, de sonhar, de experimentar, a reverência pelas influências, o amor à música. Coisas simples.

Três anos depois, tudo mudou e tudo está na mesma. Partindo de uma posição de “out-siders” originários de Macau, os Evade con-quistaram o seu espaço na fervilhante cena electrónica do Extremo Oriente, preservando intacta a aura com que se lançaram ao mundo. “Destroy & Dream”, o primeiro disco de lon-ga-duração da banda, editado este ano, tem o selo de uma das novas e conceituadas editoras asiáticas, a Kitchen, de Singapura.

Como o título do álbum implica, e como os Evade me explicam, as canções deste dis-co “falam de destruição e regeneração”. Afir-mam partir da perspectiva de “um observador distante” que, música após música, questiona (-nos) acerca dos grandes temas existencia-listas, (vida, mundo, universo), mas “com a consolação dos sonhos, do isolamento e do abrigo”. Venha a música, então.

“Forgetting”, o tema de abertura, é súbito

e misterioso. Evoca uns Massive Attack em fase lunar perdidos em 2046 no labirinto de Wong Kar-wai. Aqui, como no resto do dis-co, acumulam-se camadas de sons sustentadas por ritmos quebrados, secos, mas que nunca chegam a incomodar o estado geral de vigília.

“Pavillion” e “Endless” estão entre o lote de temas mais experimentais, algures entre o am-bientalismo abstracto e as bandas sonoras mi-nimais, com texturas repletas de detalhes, mas que descambam por caminhos inconsequentes.

Os melhores momentos são quando os Evade recolhem as peças dispersas e as re-arranjam em torno de uma ideia de canção, como no já mencionado tema de abertura, em “Love” (dub cibernético, feito de colagens, mas inteiriço no “groove” hipnótico), ou em “Seeking For Mr. Freud” (digressão de travo oriental que substitui o divã por uma cama de ópio). Nota positiva também para as vocali-zações de Sonia Ka Ian Lao que, em canto-nense e em inglês, adensam o tom intimista do disco.

Na cuidada edição da Kitchen (um dos traços característicos da editora é o design arrojado e as luxuosas embalagens “digipa-ck”), os nove temas originais dos Evade são complementados com três remisturas, todas de nomes japoneses, para três temas dife-rente do disco: “Seeking for Mr. Freud” na versão “Okamotonoriaki Remix” (tratamen-to “downtempo” com tónica nos elementos orientais do original), “Pavilion” na versão “FJORDNE Remix” (bela reconstrução, a con-ferir uma inesperada nota jazzística ao dis-co), e, finalmente “Love” na versão “Seraph Remix” (um grande salto em frente cósmico). Quando lhes perguntei o que achavam de Macau enquanto ecossistema (dominado pela “cultura karaoke”, ausência de lojas de discos, etc., etc.) para uma banda com as caracterís-ticas dos Evade, a resposta, ainda que breve, não deixa dúvidas de que o trio tem o enguiço bem resolvido: “Abre a mente que terás mais do que esperas”. Mandem pintar as paredes.

“Destroy & Dream”EvadeKitchen Label, 2012

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perspectivas Jorge rodrigues simão

C I D A D E S I N V I S Í V E I S

A OBRA arquitectónica além dos ele-mentos físicos, funcionais e estruturais, considera o processo social e individual incluído no desenho e posterior uso. A amplitude deste quadro implica um con-junto de conhecimentos apropriados, como sejam, a psicologia, sociologia ou semiótica. Trata-se de um sistema mui-to complexo que dificilmente pode ser compreendido na totalidade, tal como sucede com os sistemas estritamente naturais. A constatação de tal facto não deve limitar as tentativas de modelizar o sistema, ainda que de forma parcial, em benefício de um modelo construtivista do conhecimento. Os lucros teóricos de uma teoria da ar-quitectura com suporte numa concepção sistémica da natureza, dão-se pelo facto de a sociedade auto regular os aconte-cimentos e realidades, colocando-os no lugar mais correcto, à semelhança do que sucede e ocorreu em outros campos dis-ciplinares. O aspecto mais problemático em termos de entendimento da obra ar-quitectónica, como sistema relaciona-se com o desenho e a sua avaliação. A pergunta basilar que ocorre, é a de saber se é possível estabelecer ligações entre quantidades estabelecidas em me-didas derivadas de um método científico e as qualidades estéticas da obra, uma vez que estas dependeriam das valorações subjectivas dos indivíduos (sociedade), ou seja, a valoração estética é uma carac-terística idiossincrásica e única de cada indivíduo, ou é um construção cognitiva individual, enquadrada numa formação semiótica da natureza social e histórica. O professor Jay Lemke, da Universida-de de Michigan, tem vindo a desenvol-ver um vasto trabalho que se estende por vários campos do conhecimento, desde a “Educação Urbana”, “Pós-mo-dernismo”, “Semiótica Social” até à “Di-nâmica Eco-social”. O seu livro “Talking Science:Language, Learning, and Va-lues”, revolucionou o método da investi-gação e prática do ensino das ciências. É sobre este excepcional trabalho e outros

SISTEMA ECO-SOCIAL“A community is simultaneously a social system and a dynamic, open biophysical system. We need to build confidence in our ability to articulate viewpoints that have never had the opportunity to speak for themselves effectively. We need to learn that we can cope with far more open conflict of interests and values than we have in the past. We need to see that better decisions are made when all interests are truly represented, and that no single viewpoint can ever be either comprehensive or objective. We need to grow jealous of our right to speak for ourselves.”

Talking Science: Language, Learning, and ValuesJay L Lemke

correlacionados que temos vindo a ima-ginar soluções, enquadrar situações e a elucubrar conclusões. É de recomendar o seu estudo obrigató-rio nos cursos de “Arquitectura e Urba-nismo”, mas também em outros campos disciplinares, com aqueles relacionados, em trabalho interdisciplinar tão neces-sário e pouco considerado. É no âmbito dos sistemas complexos que o professor Jay Lemke propôs o conceito de siste-ma eco-social. Esta perspectiva permite integrar as práticas sociais num contexto ecológico, considerando-as como o re-sultado de uma negociação de significa-dos de natureza semiótica. Propõe ainda, que os sistemas humanos socioculturais são essencialmente sistemas de práticas sociais, unidas a formações semióticas de natureza histórica e cultural e que tomam um significado. Os processos de base material num sis-tema eco-social complexo, estão hierar-quicamente organizados. O desenvolvi-mento dos processos e práticas sociais, fomentam o desenvolvimento e evolução do sistema eco-social. As relações dialéc-ticas que se produzem entre as separa-ções materiais e os conteúdos semióticos das práticas/processos constituem a base

de uma dinâmica eco-social de carácter geral. A definição por extensão, do sistema eco--social, pode entender-se como compreen-dendo a comunidade humana e as suas in-teracções internas, bem como os elementos materiais que de alguma forma estão em re-lação com o homem. O conjunto material está conformado por um amplo agregado de elementos característicos dos ecossiste-mas naturais com os quais o homem está relacionado e tem coevoluído (alimentos, parasitas, organismos que vivem em simbio-se, microrganismos e a rede de organismos interdependentes), bem como, os fluxos de matéria e energia implicados nestas rela-ções. É de considerar como elementos mate-riais do sistema eco-social, os artefactos que o homem produz a partir dos recur-sos naturais e os espaços em que inte-rage através das suas actividades sociais e produtivas, como são os edifícios, as cidades, os instrumentos de trabalho, as infra-estruturas, os campos de cultivo, a flora e a fauna. As interacções derivadas das práticas e processos sociais compre-endem os sistemas terrestres e os impac-tos provocados em larga escala, os fluxos de nutrientes no mar, a circulação atmos-férica ou a radiação solar incidente. É de ponderar que uma das características mais transcendentes do sistema eco-social, é o fluxo de informação, mediatizado por uma dialéctica de significados, que condi-ciona diversas organizações sociais como são a educação, política, conflitos, produ-ção de recursos materiais e culturais, con-sumo ou a produção de resíduos sólidos, lí-quidos e gasosos. É evidente que face a esta descrição tem de se considerar, no entanto, que a organização e dinâmica do sistema eco-social se desenvolve não tanto a partir dos seus elementos, mas através dos seus processos, dependências e inter-relações (processos de produção, comunicação, de-predação, intercâmbio, consumo). O sistema eco-social apresenta uma di-nâmica social não destacável da dinâmica própria do conjunto material descrito, e rege-se inicialmente pelas propriedades que se atribuem ao resto dos sistemas complexos. O comportamento e a evo-lução do ecossistema social vêm modela-dos, por um segundo nível de organiza-ção, pelo modo como os processos mate-riais e as práticas sociais se estabelecem, em função das relações de significado social de natureza semiótica. O sistema eco-social considerado de forma genéri-ca manifesta-se em concreto em sistemas específicos do mesmo tipo e natureza, que se desenvolvem em diferentes luga-res ou momentos históricos.

Tais sistemas, devem ser considerados como sistemas equivalentes aos ecossis-temas, pois, como estes, são complexos, abertos, dinâmicos, desperdiçam energia e apresentam capacidades de auto-orga-nização, desenvolvimento e evolução. São sistemas epigenéticos, porquanto apresentam um comportamento muito previsível e uma organização hierárquica, sendo regulados pelo seu meio, super sis-tema no qual estão imersos e que é muito estável e adaptável às mudanças que se produzem no subsistema subjacente. Os sistemas eco-sociais, interiormente, não são homogéneos, apresentando uma

Os lucros teóricos de uma teoria da arquitectura com suporte numa concepção sistémica da natureza, dão-se pelo facto de a sociedade auto regular os acontecimentos e realidades, colocando-os no lugar mais correcto, à semelhança do que sucede e ocorreu em outros campos disciplinares

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C I D A D E S I N V I S Í V E I S

estrutura em mosaico, com partes ou sub-sistemas do sistema eco-social que se en-contram em diferentes níveis de desen-volvimento, com composição e padrões de relações diferentes dos característicos destes estados. É por meio da língua (co-municação) que se constroem as relações de significado que enlaçadas entre si, dão sentido às práticas ou processos sociais no modelo de uma formação semiótica. Assim, as formações discursivas constru-ídas com a linguagem guiam as práticas das actividades sociais, da arquitectura, agricultura ou da indústria, entre todas as demais.

A linguagem, dentro do sistema eco-social, tem um papel idêntico ao do código gené-tico, dado que tanto a linguagem, como o ADN, são os instrumentos básicos de expressão da informação. A informação, manifesta-se no sistema eco-social, como processos materiais ou com significados que ao concretizar as práticas sociais, expressam também, processos materiais. A teoria dos discursos culturais, como formações semió-ticas sociais proporciona a base do modelo de uma teoria geral sobre as formações so-ciais. A semiótica social menciona que os sinais, acções e práticas sociais apresentam uma

natureza semiótica. Este conjunto de recur-sos semióticos conforma a cultura de uma comunidade. Neste sentido, as culturas são sistemas sociais semióticos de natureza di-nâmica, onde se manifestam um conjunto de sinais, factos e práticas sociais que se vão alterando no tempo. A partir de cada prática social surgem sinais ou sistemas de sinais (como recursos semióticos), que per-mitem executar uma determinada forma de comportamento, de determinar acções sig-nificativas (abrangidas a palavra e as decla-rações). A forma normal de desenvolver estas acções significativas num contexto ou

numa comunidade de interesse comum é mediante uma formação semiótica ade-quada. Assim, cada formação semiótica reúne os padrões de recursos semióticos, que uma comunidade considera como adequados ou convenientes, segundo a sua tradição histórica e cultural, como por exemplo, um estilo arquitectónico e um tipo de construção associado, que é o resultado da utilização de uma forma-ção semiótica, implicando um sistema de sinais, acções e práticas coerentes com a qual a arquitectura, política e os mem-bros da comunidade envolvidos enten-dem dever ser a arquitectura.

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gente sagrada José simões morais

O L H O S A O A L T O

JIANG TAIGONG OPescador sem anzol

Num dos decisivos períodos para a His-tória chinesa, após os Xia perderem a soberania que em 1600 a.C. passou para os Shang, os governantes desta dinastia foram destronados pela união dos reinos, que fizeram da dinastia Zhou os seus re-presentantes imperiais em 1046 a.C.. A luta contra a autoridade estatutária, pois no final da dinastia Shang, já sem a razão natural, o imperador Zhou só conseguia dominar a sociedade pelo despotismo, usando escravizar os povos conquistados e mesmo os seus. Nos combates dessa guer-ra participaram de ambos os lados guerrei-ros que, apoiados por seres sobrenaturais, conseguiram feitos transcendentes. Assim como Na Cha e o seu pai, que combate-ram pelo lado do reino Zhou, falamos já também do primeiro-ministro Bi Gan e do oficial militar Zhao Gongming, ministros da dinastia Shang.

Hoje cabe a vez a Jiang Tai Gong, o deus encarregado da canonização dos guerrei-ros mortos nessa guerra, distribuindo-lhes títulos e cargos celestes, mas que se esque-ceu de si mesmo e quando reparou não havia mais lugares no Panteão. Já durante a vida, com o nome Jiang Shang, deixou de servir os Shang devido à malvadez do imperador Zhou, passando a ajudar o reino Zhou a conquistar o po-der. Consciente do Dao, pois nele se tinha recolhido após abandonar as fileiras do exército Shang, seguiu os sinais que Lao Zi lhe tinha dado durante o seu isolamen-to e assim aparece a pescar no afluente do rio Wei, território Zhou. O rei Wen, que andava à procura de gente com talento pelos habitantes do seu reino, encontrou-se com Jiang Shang, ou Jiang Ziya como também era chamado, que entregue ao destino dos deuses, pescava sem no fio haver anzol. Consta que foi pe-las carpas que o Dao lhe chegou e com o

lema “quem espera, sempre alcança” Jiang Shang chegou a estratega político e militar do reino Zhou, e pelos seus conselhos de “esperar pelo momento oportuno” levou à excelência dos primeiros imperadores da dinastia Zhou.Personagem idosa, Jiang Shang todos os dias pescava, num afluente do rio Wei, perto da actual Xian, na província de Shaanxi, quando foi ele pescado pelo rei Wen. Após uma abordagem pessoal conseguiu que o ancião servisse na cor-te como conselheiro estratega. Depois continuando nessas funções foi-o para o sucessor do rei Wen, o imperador Wu, que se tornou o primeiro da dinas-tia Zhou, após uma batalha sangrenta a cerca de 35 quilómetros de Yin, capital de Shang (actual Anyang, em Henan), onde Jiang Taigong ia à cabeça das tro-pas.Se era idoso já nos tempos a fio esperados com a convicção de que o “peixe” viria até ele, com 72 anos começa a servir de con-selheiro estratega ao reino Zhou e depois já com 80 anos aos primeiros imperadores da dinastia Zhou, continuando por várias gerações até à morte aos 105 anos.Os seus pensamentos de estratega como: - um estado só pode tornar-se poderoso quando o povo é próspero; - se os dirigentes enriquecerem à custa da pobreza do povo, o governo não dura muito; - amar o povo, significa reduzir os impos-tos e dosear o trabalho, serviram para o rei Wen rapidamente fazer prosperar o estado Zhou. O rei nomeou Jiang Shang duque do Estado de Qi, na actual província de Shandong e é-lhe atri-buída a redacção de um livro de estratégia militar, “As Seis Estratégias”, também co-nhecido por “Seis Capítulos sobre a Arte Militar”.Após a sua morte, o corpo de Jiang de-sapareceu misteriosamente do túmulo, onde apenas ficaram o chapéu, as vestes e o tratado militar Liutao. Ainda na di-nastia Zhou em honra de Jiang Tai Gong foram feitos sacrifícios, sendo na dinastia Tang pela última vez considerado Deus da Guerra. Jiang Tai Gong é festejado no dia 6 da 6ª lua, que no ano de 2012 se celebrou a 24 de Julho e tem em Macau a sua estátua no templo de Shi Gandang, no bairro de San Kio.

姜太公

Se os dirigentes enriquecerem à custada pobreza do povo,o governo não dura muito

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L E T R A S S Í N I C A S

HUAI NAN ZI 淮南子 O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

Aqueles que atingem a benesse do poder pouco têm em jeito de propriedade, mas têm muito em jeito de responsabilidade.

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Pro-víncia de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sá-bios destilaram e refinaram o corpo de ensina-mentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extrac-tos fundamentais, efectuada a partir do texto ca-nónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos en-contram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 15

O inefável calcorreia montanhas e nada o perturba; o inefável entra por oceanos e rios e nada o molha. Num lugar estreito nada o sufoca e, apesar de abranger todo o céu e a terra, nada o preenche.Aqueles que não compreendem isto até podem dispor de recursos materiais e de uma cultura artística repleta de esplêndida actividade intelec-tual e literária, não obstante, tal não os ajudará a governar o mundo [desprovidos desta noção].

* * *

Aqueles que nas coisas não vêem grande sentido desconhecem que a vida não vale ganância. Aqueles que jamais ouviram grandes palavras

não sabem que ter domínio sobre o mundo não vale ser tomado por vantagem. O dever significa fazer o que é apropriado – e de acordo com a razão. A cortesia significa que os sentimentos ganham corpo através de uma elegância controlada.

* * *

Quando a vitalidade e o espírito estão sob pres-são, se desintegram; quando ouvido e olho não têm governo, se exaurem. Como tal, os líderes a quem a Via impregna deixam-se de imaginações e livram-se de voluntarismo, permanecendo num estado de clareza e abertura.

* * *Aqueles que atingem a benesse do poder pouco

têm em jeito de propriedade, mas têm muito em jeito de responsabilidade – aquilo que se encontra ao seu alcance é muito limitado, mas é muito vasto o que sob o seu controlo se encontra.

* * *

Altos terraços e pavilhões de múltiplos andares são deveras esplêndidos, mas um líder iluminado

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

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O SOL, A LUA E A VIA DO FIO DE SEDA

FERNANDA DIASU m a l e i t u r a d o

YI JING

A nova tradução do livro que há milénios ilumina a civilização chinesa