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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2785. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE COXINGA FILHO DE PAI CATóLICO, DEUS NOS ALTARES DE FUJIAN E MACAU

h - Suplemento do Hoje Macau #73

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 1 de Fevereiro de 2013

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PARTE inTEgRAnTE DO HOJE MACAU nº 2785. nÃO PODE SER VEnDiDO SEPARADAMEnTE

coxinga Filho de Pai católico, deus nos altares de Fujian e Macau

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国姓爷

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Após as hipóteses apresentadas em outros artigos, resta a de Zhu Da Xian estar ligado ao final da dinastia Ming, quan-

do os manchus conseguem entrar para dentro da Grande Muralha e, depois de conquistarem a capital Beijing, darem início à dinastia Qing. Ao analisar o apelido do deus, Zhu, percebe-se ser o mesmo da família dos imperadores que governaram durante a dinastia Ming (que significa brilhante). Mas brilhante não foi o período dos seus últimos imperadores pois estavam tão ocupados com a sua imortalidade e luxos, que nem tempo tinham para os assuntos de Estado. O imperador Wanli (1572-1620), com o nome Zhu Yijun, mandou construir um palácio subterrâneo para ser o seu túmu-lo, cujo valor despendido permitiria ali-mentar dez milhões de pessoas durante um ano. A decadência imperava e a po-pulação vivia na miséria. Era obrigada a pagar altas rendas e taxas, o que levou os camponeses a revoltarem-se e a pegarem em armas para se proteger. Em 1627 começou uma revolta campo-nesa a Norte de Shaanxi, que se esten-deu para Shanxi e Henan. Em 1635, os chefes de grupos armados de campo-neses reuniram-se em Xingyang, pro-víncia de Henan, para planearem uma estratégia. Li Zicheng, um dos líderes, com o seu exército de camponeses ocu-pou Xian, em 1644, e toda a província de Shaanxi, tendo aí formado o estado de Dashun. Depois, partiu para Leste e passando por Shanxi e Hebei, chegou a Beijing, o que levou o último imperador da dinastia Ming, Chongzhen (1628-44), que também se chamava Zhu Yijun, a refugiar-se no monte Wansui (colina da Longa Vida), situado na parte Nor-te do Palácio Imperial. Aí ficou 43 dias, mas todos os esforços falharam e sem uma solução para a complicada situa-ção, o imperador enforcou-se. A China ficou sem governo imperial por alguns meses, período conhecido pelo Inter-regno Shun.As tropas Ming combatiam os revoltosos camponeses em muitas partes da China e uma pequena corte Ming mudou-se para

José Simões Morais

Guo XinG Ye (CoXinGa) é o deus Zhu da Xian

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Nanjing, agora com o nome de Yingtian, criando a dinastia Ming do Sul. Os manchus tinham os seus antepassa-dos na tribo dos Nuzhen, que no período Song formara a dinastia Jin e que viviam no Nordeste há muitos séculos, vindos das montanhas do Altai. Em 1616, uni-ram-se sobre o comando de Nurhachi e em 1636, o seu filho Huangtaiji formou o Estado de Qing. Com um corpo mili-tar cada vez mais forte, foi-se preparan-do para invadir a China. Durante muito tempo, as tropas manchus foram sendo estacionadas ao longo das fronteiras com o território da dinastia Ming.O general Ming, Wu Sangui, que gover-nava a Passagem de Shanhaiguan, ren-deu-se aos manchus e deixou-os passar pela Grande Muralha para que, as tropas Ming, em conjunto com as manchus, combatessem os revoltosos camponeses. Li Zicheng teve que partir de Beijing e, seguindo para Oeste, até Shanxi, foi perseguido pelas tropas manchus e Ming que se tinham unido. Foi morto em Hu-bei, com a idade de 39 anos.Depois das tropas manchus terem atra-vessado a Grande Muralha com a ajuda de Wu Sangui, encontraram a China sem dinastia no Trono do Dragão há já alguns meses. Em 1644, os manchus ocuparam Beijing e para aí passaram a sua capital, que até então se situava em Shenyang. Muitos oficiais Ming, que até então coo-peravam com os manchus contra os cam-

de Fujian, onde se fala o dialecto min e o kejia do povo Hakka, que lhe chamavam Kok Sèng Iâ. A essa história voltaremos mais à frente, pois esta personagem é, segundo cremos, quem ficou escondido por detrás do deus Zhu Da Xian.Coxinga, cujo nome à nascença era Zheng Sen e depois passou para Zheng Fu Song e só em 1645 mudou para Zheng Chenggong, era filho de um an-tigo habitante de Macau, com o nome cristão de Nicolau Gaspar. Pai de Co-xinga, Zheng Zhilong (1604-61), na-tural de Fujian, tinha passado algum tempo enquanto jovem em Macau, onde foi convertido e baptizado. Após reconhecer o bom dinheiro que se fazia no comerciar, Nicolau Gaspar de novo como Zhilong, juntou-se a um grupo de piratas, que atacavam sobretudo holan-deses, sediados em Taiwan e mercadores chineses, fazendo ainda comércio com o Japão. E é no Japão, de mãe japonesa, que em 1624 nasceu Zheng Sen (1624-83), conhecido por Zheng Fu Song. O pai, Zheng Zhilong em 1628 dedicava--se ao ataque de navios chineses Qing, combatendo pelos Ming. Já o seu filho, que passara os primeiros sete anos de vida no Japão, depois vai buscá-lo para ficar com ele a viver em Fujian. Aos 15 anos, Zheng Fu Song estudou em Nan-jing Guo Zhi Jian e em 1645, com 21 anos, acabou os estudos na Beijing Guo Zhi Jian.

Depois das tropas manchus terem atravessado a Grande Muralha com a ajuda de Wu Sangui, encontraram a China sem dinastia no Trono do Dragão há já alguns meses. Em 1644, os manchus ocuparam Beijing e para aí passaram a sua capital, que até então se situava em Shenyang. Muitos oficiais Ming, que até então cooperavam com os manchus contra os camponeses, mudaram para o lado destes, combatendo os invasores.

poneses, mudaram para o lado destes, combatendo os invasores manchus. Com o último imperador da dinastia Ming morto em 1644, a pequena corte Ming estabeleceu-se em Nanjing e aí for-mou a dinastia Ming do Sul (1644-1662). Zhu Yousong, príncipe de Fu, torna-se o imperador Hong Guang (1644-1645) e liberta da prisão Zhu Yujian, condenado desde 1636, quando lhe fora retirado o título de príncipe de Tang. Yingtian (Nanjing) foi capturada em Ju-nho de 1645 pelas forças Qing e a corte dos Ming voltou a fugir. Dividida a di-nastia Ming do Sul, parte vai para Sha-oxing (Zheijiang) e outra refugia-se em Fuzhou, onde sobe ao trono o imperador Long Wu (1645 -1646), cujo nome era também Zhu Yujian, príncipe de Tang. Pertencia à oitava geração descendente do terceiro filho do primeiro imperador da dinastia Ming e tinha a esperança de conseguir derrotar os manchus, que for-mavam já a dinastia Qing.

Macau e a resistência MingCom os antecedentes explicados, chega-mos ao período da História que nos inte-ressa estudar para reconhecer a persona-gem ligada aos Ming que se esconde por trás do deus Zhu Da Xian, cuja crença da sua protecção tem grande poder.Até 1660 houve pelo país uma resistência dos chineses han aos manchus, onde Ma-cau se colocou, enviando por várias vezes

destacamentos militares, com canhões, para ajudar a dinastia Ming, que lhe tinha aberto as portas do País do Meio, China. Em 1630, pagos pela corte Ming, parti-ram de Macau quatrocentos portugue-ses em direcção à Grande Muralha, mas quando se encontravam em Jiangxi foram interrompidos na sua marcha, devido às intrigas dos comerciantes de Cantão jun-to aos mandarins provinciais. Em 1643, um canhão e quatro artilheiros são enviados de Macau para Guangzhou e Nanjing, que entre 1644 e 1645, recebe a corte que para aí foge após a invasão manchu. Depois da conquista de Beijing pelos manchus, as forças leais à dinastia Ming voltam a pedir ajuda aos portugueses e por isso, em 1646, Nicolau Ferreira jun-ta-se ao último imperador Ming do Sul, Yang Li. Este reinou por um período de quinze anos, sendo capturado no início de 1662, quando o segundo imperador Qing, Kang Xi, já estava no poder há um ano.Macau manteve-se fiel aos Ming e de boas relações com as forças de resistência, li-deradas desde 1644 por Zheng Chen-ggong. Se este nome pouco ou nada nos diz, já o de Coxinga é mais reconhecido por quem usa estudar História, apesar de ambos representarem a mesma pessoa.O nome de Coxinga foi dado a Zheng Chenggong pelos holandeses, que o ou-viram em Taiwan da boca dos habitantes

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a Zheng Chenggong o título de Yan Ping Wang.Já tinham acabado as tentativas para rea-bilitar a dinastia Ming, estando os man-chus consolidados no poder na China, quando os descendentes de Zheng Guo-xing escreveram ao segundo imperador da dinastia Qing, Kangxi (1661-1722), a pedir a transladação do mausoléu de Zhu Chenggong, que se encontrava em Taiwan, para a província de Fujian. O imperador Kangxi escreveu-lhes a di-zer que, apesar de Zhu Chenggong não pertencer aos seus apoiantes, permitia que o corpo viesse para Nan An, em Fu-jian, terra natal do pai, Zheng Zhilong (1604-1661).Como Zhu Chenggong era contra a rei-nante dinastia Qing, só apareceu narrado no livro Fujian Tong Zhi em 1737, no pe-ríodo do reinado de Qianlong.Por último, a nossa hipótese de Zhu Da Xian ser Zhu Chenggong parece-nos po-der ser entendida em 1875. O imperador Guangxu da dinastia Qing, a partir do título de Rei Yan Ping atribuído a Zhu Chenggong pela dinastia Ming, passou--o a deus, Yan Ping Jun Wang. Mas como não pertencia aos apoiantes dessa dinas-tia, ficou chamado Zhu Da Xian, escon-dendo assim o nome de Guo Xing Ye, o que tinha grande poder. No mesmo ano, o imperador ofereceu a renovação do templo Kai Shan Wang, que passou a ter o deus Yan Ping Jun Wang.Assim cremos, com estas pequenas expli-cações, poder pôr a hipótese de ser este deus, Zhu Da Xian, a deidade a Coxinga. Encontramos em Macau a estátua de Zhu Da Xian no templo de Pau Kong, na Rua da Figueira.

derrotado em 1659, no estuário do rio Yangtzé. Após esta batalha, Coxinga volta a Fujian e daí parte à frente de 25 mil pessoas para Taiwan, onde após um cerco de nove meses tomam em Abril de 1661 a ilha aos holandeses. Assim mui-tos habitantes de Fujian foram viver em Taiwan. Em 1662, Zheng Chenggong morreu de doença aos 38 anos, mas Taiwan só passa para o domínio dos Qing em 1683, quan-do é conquistada ao seu neto.

coxinga por detrás de Zhu da xianA História desse período, aqui resumi-damente apresentada, transporta-nos até Coxinga, nome dado pelos holandeses a partir do que ouviam dos chineses de Fu-jian chamar a Kok Sèng Iâ. Analisando o nome Coxinga, que em mandarim é Guo Xing Ye e em canto-nense, Kok Sèng Iâ, temos para Guo (国) o significado de país, para Xing (姓) o nome de família e para Ye (爷), forma respeitosa de chamar um ancião, um ofi-cial, o pai ou avô, os pais ou avós, ligada por isso à representação do poder. Isto quer dizer que, Kok Xing representa o

apelido do Imperador da China que era Zhu, na dinastia Ming. Em 1645, o imperador Long Wu dá a Zheng Fu Song o nome de Zhu e por isso passa a ter o nome oficial de Zhu Chenggong, que queria significar “Bem--sucedida dinastia Ming”. Era apenas usado nos documentos oficiais e só o im-perador lhe poderia chamar assim, pois Zhu era o apelido de quem governava na dinastia Ming. Chamado normalmente por Zheng Guoxing e com maior res-peito Guo Xing Ye, ficava desta maneira escondida a referência Zhu, desta grande personagem para a dinastia Ming, sobre-tudo quando era a manchu dinastia Qing que governava.O deus Zhu Da Xian, que significa Gran-de Imortal Zhu, está também conectado com Fujian e ambos ligados ao apelido Zhu, o nome de família dos imperadores Ming. Por isso, pareceu-nos haver algo a uni-los, mas por não poder ser revelado, devido ao domínio manchu então inimi-go dos han, teve que se esconder Coxin-ga na capa de um deus, para o venerar.Ainda na dinastia Ming do Sul, o impera-dor Yong Li (24/12/1646-20/1/1647) deu

Zheng Zhilong era o mais poderoso alia-do do imperador Long Wu (1645-1646) com quem tinha uma grande amizade, já que fora ele que o ajudara a chegar a im-perador. Pela fidelidade tanto de Zheng Zhilong, como do filho, o imperador, em Fuzhou, no ano de 1645, atribui o seu nome de família, Zhu, a Zheng Fu Song, que assim passa a ter o nome oficial de Zhu Chenggong. Apesar deste nome sig-nificar “Sucesso dos Zhu”, em 1646, com as vitórias do exército Qing no centro da China e Fujian, o imperador Long Wu a 6 de Outubro foi capturado e executado. Os manchus compraram Zheng Zhilong para ficar ao seu serviço e este aceita. Já o seu filho, zangado pelo progenitor ter passado para as hostes dos manchus, recu-sa abandonar os Ming e com outros pro-venientes do grupo do pai, que o seguem, governou as costas de Fujian desde 1646. O irmão mais novo do imperador Lon-gwu, Zhu Yuyue, escapando de barco de Fuzhou chega a Guangzhou onde funda um estado Ming, tendo em 11 de De-zembro de 1646 ficado com o título de reinado Shao Wu. Mas passado um mês, Li Chengdong, um ex-comandante da dinastia Ming do Sul, que liderava um pequeno grupo de tropas Qing, aí captu-rou e matou Shao Wu. A pouco e pouco, a dinastia Qing vai ocupando todo o ter-ritório Chinês.O cerco pelos manchus a Guangzhou (Cantão), que durou dez meses e termi-nou em 25 de Novembro de 1650, pro-vocou 70 mil mortos. Foi uma grande machadada à resistência Ming que, na parte Oriental da China, ficou confina-da apenas ao mar. Aí, o general coman-dante da armada, Zheng Chenggong, é

O deus Zhu Da Xian, que significa Grande Imortal Zhu, está conectado com Fujian e ambos ligados ao apelido Zhu, o nome de família dos imperadores Ming. Por isso, pareceu-nos haver algo a uni-los, mas por não poder ser revelado teve que se esconder Coxinga na capa de um deus, para o venerar.

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Se, como diz Nietzsche, só escreve quem escrever com sangue, esta asserção é du-plamente verdadeira quando considera-mos a escrita do exilado. Podemos admi-tir uma confusão primordial entre escrita e escritor, entre o distanciamento radical do escritor sobre a página (ou o ecrã) e a sua perda no labirinto do mundo. E é esta confusão que hoje aqui procurarei complexificar porque nada há mais de-sinteressante que o discurso explicativo da escrita. Escrita de exílio ou simplesmente escrita, na medida em que o acto de escrever re-presenta em si mesmo a aquisição de uma distância, de um estranho e provocado autismo esclarecedor dos ritmos internos e, sobretudo, dessas vozes insuportáveis que nos habitam.Posso querer inventar mundos mas são esses mundos que me inventam à medida que se espraiam por si mesmos, vindos de um lugar revolucionário que existe den-tro de mim mas que de modo de nenhum sou eu. E é essa busca que instituti o exí-lio e a partida. E isso mesmo: a escrita é a partida e num certo sentido uma deman-da interminável de um lugar cuja virtu-alidade ultrapassa, de longe, as barreiras frágeis da consciência.Escrita vermelha, espojando-se cruel so-bre o nada, rebolando-se como um cava-valo nas ervas das falésias, e ao nada re-tornando, ao longo desse esquecimento contínuo, ineficaz, ao longo do fluir ine-xorável de cada pequeno acontecimento, como se o destino realmente existisse. Confessemos: o destino é a criacão de um escritor amedontrado por uma visão de radical solidão.

Desenganem-se os que atendem a descri-ção pitoresca ou a intimidade confessada. Aos poucos fui interiorizando a necessi-dade de experimentar menos e somente disfrutar o mundo que oferece sem ser precisa a conquista. Por isso aproveitarei sedento as oportunidades, regressando sempre que puder, por exemplo, a um local de prazer certo, em círculos pouco perfeitos, voltando depois a casa, alaga-do, na paz do peregrino que se acomoda para passar a noite na laje de um cruzeiro.A este movimento, dou o nome de via-gem. A viagem é uma anestesia em que os sentidos se purificam e resumem uma morte. Os viajantes, porque comunicam

esCrita de eXílio

em linguagens estrangeiras, conhecem a sua própria voz e o silêncio. O inglês teve por destino transformar-se na mais estranha de todas as línguas.

A meio encolheremos os ombros para sacudir as mãos vazias e os olhos emba-ciados da poeira do mundo. O conheci-mento torna-nos descrentes da beleza e da possibilidade de conhecer.Aspiro à dissolução num contínuo, pa-ciente e meticuloso raspar por estradas e costumes bizarros. Mas sei, ao mesmo tempo, que as viagens por territórios que ignoramos são inúteis..

A viagem induz uma qualquer solidão e por isso – todos sabemos – os solitários tomam-se por deuses. A viagem induz à loucura, à esquizofrenia, à invenção de personagens para entreter desconheci-dos. A perseguir caminhos que recusa-ríamos. A literatura de viagens, de im-pressões de explorador, sempre me foi aborrecida, decorada de mentiras e con-fabulações. Talvez por isso a tenha lido na diagonal e com desdém, da prosa pla-na do sueco Sven Hedin aos encontros de Bruce Chatwin ou ao transformismo de Victor Segalen. A qual, aliás, gosto de voltar quando não tenho nada para fazer, somente para a tomar como referência e não repetir. E repetir o quê? Repetir o papel do exila-do europeu que atravessa o mundo com um sorriso de superioridade indisfarçá-vel, exibicionista de uma sexualidade ir-remediavelmente insatisfeita, de uma ra-cionalidade autodestronada e descrente.Poderei falar de mim, da tensão criada em quotidianos bárbaros, do esgaçar dos valores que transporto. E todo o resto se-ria literatura, daquela que o mesmo Niet-zsche previu a morte há cem anos.

Acordarei fora da cama, num quarto desconhecido, como se estivesse morto. Sairei para a rua numa cidade que não conheço, onde ninguém falará a minha língua. Não terei dinheiro nem cartões de crédito no bolso. Procurarei alguma identificação mas certamente perdera a carteira. Não me lembrarei do meu nome. Agradeço que alguém me chame mas, aqui, quem me vai reconhecer?E disse:

— Bom dia — a uma velhota que passa.Com ela posso falar. NInguém me levará a mal.

Carlos Morais José

Edward Munch, Solidão (detalhe)

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Antes guerra que maus negócios

Belmokhtar pode até ser um terrorista mas parece ser um homem sincero. Falando de dinheiro e armas confessou que o AQIM é “dos maiores beneficiários

das revoluções no mundo árabe”. Sem contar, é claro, com o tráfico de droga, outra das suas boas fontes de receitas.

O presidente de França, Fran-çois Hollande, explicou com a solenidade própria dos momentos históricos

dramáticos que o envio de tropas para o Mal era uma espécie de missão de sacri-fício do seu país para ajudar a libertar a humanidade da maldição do terrorismo radical islâmico. Só não entoou “A Mar-selhesa” no final, a exemplo de alguns antecessores, talvez por desafinar ou por se ter esgotado o tempo de antena.Não existem dúvidas de que o radicalis-mo islâmico está presente, e bem presen-te, no Norte do Mali, o que não acontece apenas agora. O que alarmou Paris foi a possibilidade de, perante a incapacidade das autoridades de Bamako para governa-rem o país, os radicais islâmicos assumi-rem o poder em todo o Mali. Uma cómo-da situação neocolonial ficou assim em risco de se transformar em qualquer coisa mais imprevisível se bem que, como ve-remos já adiante, as autoridades francesas e os fundamentalistas tenham razões para se conhecerem mutuamente muito bem.Quem são estes terroristas islâmico con-tra os quais a França montou a sua mais recente cruzada? O nome que usam na circunstância é AQIM (Al-Qaida no Ma-grebe Islâmico), mas ali mesmo ao lado, na Líbia, chamam-se Grupo Combatente Islâmico. A fusão operacional destes dois grupos foi anunciada em 2007 e apadri-nhada por Abdelhakim Belhaj, governa-dor militar de Tripoli desde o derrube de Khaddafi e de momento, ao que pa-rece, em comissão de serviço algures na fronteira entre a Turquia e a Síria para, em colaboração com a NATO, apoiar o Exército Sírio da Liberdade.Perguntarão: o Grupo Combatente Is-lâmico não foi apoiado pela NATO na Líbia, não se diz até que a colaboração entre os seus militantes e a presidência francesa, então de Sarkozy, através dos serviços secretos, foi ao ponto de concre-tizar a execução de Khadaffi?É verdade. Acontece até que duran-te os anos mais recentes a actuação do AQIM no Norte do Mali foi tolerada pelos governos de Bamako, perante a complacência francesa, porque servia para travar o passo aos independentistas do Movimento Nacional de Libertação Azawad, laicos e perseguidos pelos fun-

damentalistas. A instabilidade política na capital do Mali alterou a relação de forças e encorajou os radicais islâmicos a estender os tentáculos cada vez mais para Sul.Um dos fundadores do AQIM, Mokhtar Belmokhtar, que esteve recentemente por detrás do sequestro na Argélia que provocou dezenas de mortos, foi um jovem contemporâneo de Bin Laden no Afeganistão na altura em que todos eram treinados e pagos pela CIA e pelos serviços secretos ingleses, sauditas e pa-quistaneses. Os financiamentos do grupo continuam a chegar principalmente do Qatar e da Arábia Saudita, os maiores aliados da NATO, dos Estados Unidos – e de França – na sua estratégia perante a chamada “Primavera árabe”. Belmokhtar pode até ser um terrorista mas parece ser um homem sincero. Falando de dinheiro e armas confessou que o AQIM é “dos maiores beneficiários das revoluções no mundo árabe”. Sem contar, é claro, com o tráfico de droga, outra das suas boas fontes de receitas.Perguntarão agora: o que move então Hollande a montar esta cruzada para combater no Mali grupos que estiveram ao lado da França na Líbia, que estão ao lado de França na Síria e o mais que ainda está para vir?Direitos humanos? Uma incontrolável vocação antiterrorista? Ora, ora…Pensemos antes em ouro, de que o Mali é o terceiro exportador africano; em urâ-nio, estratégico para a maior potência nuclear na União Europeia e cujas reser-vas e explorações, a cargo da empresa francesa Areva, unem vastas áreas dos territórios do Mali e do Níger; pensemos ainda em petróleo e gás natural, em que o território maliano parece ser promissor, segundo estudos técnicos; no potencial de diamantes cuja existência está com-provada.Perguntarão ainda: se existem casos de colaboração entre tais grupos radicais is-lâmicos e a França para quê combatê-los em vez de fazer acordos com eles?Porque trocar o certo pelo duvidoso é mau negócio. O Mali é uma pérola do império neocolonial francês. O mais se-guro para Paris será restaurar a estabilida-de política e militar em Bamako sob o seu controlo porque, quanto mais não seja, os grupos terroristas têm muitos donos, que variam consoantes as circunstâncias e o local, e ter de partilhar o bolo seria igualmente mau negócio.

José Goulão

Edvard Munch, Cruxificação (detalhe)

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A passagem de segundo

Existem vinte e quatro fusos ho-rários. Por isso, durante um dia inteiro, hora a hora, há pessoas a celebrarem o fim/início de ano

velho/novo. O planeta gira à sua velo-cidade pesada, como um daqueles cilin-dros de carne, um espeto de shoarma, e, durante um dia inteiro, hora a hora, é varrido por multidões a contarem em coro, a brindarem, a entusiasmarem-se ou a comoverem-se. Começa numa ilha qualquer do Pacífico. Ainda não esta-mos vestidos para a festa e já vimos no telejornal o fogo de artifício em Sydney. Depois, hora a hora, vai-se aproximan-do. Quando falta pouco, alguém diz: já é ano novo em Espanha.Contar para trás exige um nível apurado de atenção. Talvez possa ser compara-do com o esforço que um destro faz ao assinar o nome com a mão esquerda. O princípio é semelhante. Contraria uma espécie de instinto, algo que se aprendeu há muito tempo.Em casa, as crianças entre os quatro e

Quando a vida retrocede, quando se passa a viver pior, faz sentido afirmar que se avançou um ano?

os dez anos ficam acordadas excepcio-nalmente até à meia-noite. Assistem admiradas às celebrações dos avós. Há festa na televisão ligada. Aquilo que acontece na sala parece uma continu-ação tosca daquilo que acontece na te-levisão. Olhamos para lá e aprendemos como se faz.Este ano ainda não espirrei, este ano ainda não fui à casa de banho, este ano ainda não bebi um copo de água; não te via desde o ano passado, não almoçava desde o ano passado, não pensava no mi-nistro das Finanças desde o ano passado, felizmente.Quando a vida retrocede, quando se pas-sa a viver pior, faz sentido afirmar que se avançou um ano? Pelas contas dos calen-dários, chegámos a 2013. Mas, olhando para o tempo, quando foi a última vez que nos sentimos assim? Há quantos anos tínhamos alcançado aquilo que per-demos? Há vinte anos, seríamos capazes de imaginar este tempo com uma sofisti-cação diferente: robôs a fazerem as tare-fas domésticas, teletransporte. Mas agora estamos aqui.Há a internet e os telemóveis mas, sob a perspectiva dos direitos que deixámos

de ter, estamos em que ano? Talvez o tempo não avance como a ciência e os relógios garantem. Talvez o tempo on-dule. Se assim for, é certo que ondula-mos com ele. É até possível que se agi-te por nossa causa. Se assim for, não é certo que estejamos em 2013. Aqueles que têm de emigrar para onde ficam so-zinhos reconhecem a sua realidade em histórias com mais de quarenta anos; aqueles que perdem a casa recuam dez ou vinte anos; aqueles que procuram e não encontram sentem que 2013 não é muito diferente de 2012.Depois de rebentarem as rolhas das gar-rafas de espumante aqui, continuam a rebentar, hora a hora, em direcção a oes-te. Há milhares de pessoas eufóricas em Times Square, as autoridades de certos países advertem para os perigos dos tiros para o ar, centenas de pessoas resolvem tomar banho nas águas geladas de todos os mares.Nestas últimas semanas, ao conduzir por uma estrada onde passo habitualmente, tenho reparado num cartaz que anuncia o fim de ano em Salvador da Baía por mil e quinhentos euros. Com alguma melan-colia, imagino essas pessoas a entrarem

no avião. Como serão os seus rostos? Continuo o meu caminho, ultrapasso e sou ultrapassado, presto atenção a outros cartazes que se anunciam a si próprios: têm um número de telefone e a frase: “saiba como anunciar aqui”. Ultimamen-te, há muitos cartazes assim, vazios, nin-guém quer anunciar nada neles.Enquanto isso, algures, existem as pesso-as reais que se preparam para atravessar o oceano, têm o passaporte em dia. Levam aquilo que imaginam e regressarão com aquilo que encontrarem. Talvez acredi-tem que o tempo que aí vem será melhor se passarem essa data lá longe, naquilo que imaginam. Quase de certeza que imaginam algo melhor do que estar aqui. De outra maneira, não iriam até lá. Não se davam a esses gastos e a esse trabalho.Enquanto isso, há pessoas a dormir du-rante a passagem de ano.Termina um ano, termina um mês, termi-na uma semana, termina um dia, termina uma hora, termina um minuto, termina um segundo. Este segundo, e este, e este, e este.Noutra dimensão, alheio a estes detalhes, há o tempo. Nunca termina, nunca co-meça, continua sempre.

Edvard Munch, O Quarto do Morto (detalhe)

José Luís Peixotoin Visão

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propaganda era uma vez uma revoluçãoUma exposição de cartazes pré-revolUção cUltUral, no mUseU do oriente em lisboa, dá a ver a primeira estética do regime maoísta. depois oUtra senhora piaria

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propaganda era uma vez uma revoluçãoUma exposição de cartazes pré-revolUção cUltUral, no mUseU do oriente em lisboa, dá a ver a primeira estética do regime maoísta. depois oUtra senhora piaria

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DesDe que este vosso serviçal se mu-dou para Macau, e a data já ultrapassou a marca certa dos vinte anos, que tenho mantido um contacto escasso com a Pá-tria de onde tive, num dia muito propí-cio à tomada de grandes decisões, o bom senso de me afastar. A falta de interesse com o que lá se passa não tem relação directa com o meu afastamento físico da Metrópole mas prolonga tão só uma tendência que já se manifestara naqueles tempos em que o ócio me levava não ao Largo do Senado mas ao Rossio ou ao Chiado. Hoje em dia, quando volto a es-ses sítios onde minuciosamente planeei a fuga, sinto pouca nostalgia. A Confeita-ria Nacional não me comove e parece-me excessivamente acanhada e a Chique de Belém já não sei bem onde é. No entanto, acabo por ler alguns textos sobre Portugal ou acabo, por vezes, por ver alguns minutos de televisão nacional, uma estação que eu sei que só é muito pior que as outras porque percebo o que lá se diz. Nestes textos encontro muitas semelhanças na intenção, e ao tentar en-contrar um denominador que lhes seja comum deparo-me com um que exprime uma fixação anormal no passado, quer se trate do passado pessoal quer se trate do passado nacional ou regional. Já não há o aconchego da madrinha, já não há leita-rias nem honra. Baseia-se na ideia pateta e anti-gótica de que tudo antes era melhor.Percebe-se a ideia geral e agora há umas lojas que têm produtos antigos, com de-sign retro e uma dose enorme de nostal-gia não se percebe bem pelo quê. Talvez uma nostalgia por um país aborrecido, sujo e sem estradas, em que a maioria da população não tinha acesso a cuidados de saúde ou a uma educação decente, com brinquedos de lata que se enferrujavam depressa e onde havia apenas 4 marcas de pasta dentífrica. Ou então a nostalgia por uma população honrada e de ousa-dia esmagada por décadas de ditadura, que apenas falava português, de dentes podres e cabelo mal lavado, toda mal vestida de igual e de gosto uniformizado por um serviço de televisão apenas com um canal, já na altura triste e passadista. Os Mercedes-Benz eram todos pretos ou brancos.O mais desconcertante é que esta pro-pensão parece atingir não um número relativamente reduzido de pessoas que escrevem nos jornais e aparecem na te-levisão mas um número muito elevado, inclusivamente de pessoas de quem não se esperava esta imobilizante inclinação. Aqui em Macau, no meio de todo este kitsch, de todo este mau gosto, de toda esta presunção saloia e de toda a água benta que continua a existir, estamos mais ou menos a salvo destes sentimen-talismos. Constrói-se muito mal e muito feio mas constrói-se. A erecção de todos os novos hotéis, por um lado, trouxe uma fealdade

nova (inofensiva ou estimulante? certa-mente inocente) e uma sensação de que a administração se demitiu da sua obriga-ção de servir quem cá vive para se dedicar a servir apenas o turista mas, por outro lado, trouxe alguns avanços e ruídos sig-nificativos.Importou para o território um número não muito elevado mas mais do que su-ficiente de mixordeiros muito capazes e simpáticos (os do Macallan ou do Hotel Mandarin, por exemplo, competentes em qualquer parte do mundo). É mais fá-cil encontrar Hendrick’s ou U’Luvka em Macau que em Lisboa, para não falar de Chinggis, um vodka mongol cavalar de muita finura. Estamos também sempre a uma distância muito decente de compe-tentíssimos martinis secos, negronis ou outras misturas de tom mais contempo-râneo, ou listas de vinhos magníficas. A oferta de saké envergonha qualquer capi-tal europeia.A distância entre os balcões e as mesas, sempre que não se prefere o balcão para repousar, é coberta também por funcio-nários na maior parte dos casos compe-tente, jovem e acomodativo. Temos o melhor restaurante da Ásia. Temos tal-vez a melhor lista de vinhos, a do Hotel Lisboa, com mais de 350 páginas e 9000 títulos – mais de 25 anos de bebida con-tínua à razão de uma garrafa diferente por dia (borgonhas tintos são 33 longas pági-nas). Não há razão para muita lamúria e muito menos para nostalgias parvas. Te-mos disponíveis, à distância de uns passos ou duma insignificante corrida de táxi, distintos restaurantes italianos, japone-ses, cantonenses, portugueses, coreanos, norte-chineses, internacionais, e até fran-ceses e et cetera.Temos, para além de tudo isto, na mão, um trunfo imbatível, um ás de espadas de uma eficácia marcial e decadentista inul-trapassável – a enorme vantagem de não perceber o que se passa à nossa volta e de não sermos levados a sério.Armados de bons produtos, uma invisi-bilidade perfeita e uma hipocrisia que mal se nota, lembro as palavras sábias, sarcásticas e finamente escolhidas de um famoso cronista da revista New Yorker (que em breve terá de ser tema de apre-ciação nesta página a propósito de um livro que junta algumas das suas crónicas sobre as delícias da comida e da bebida), A.J.Liebling : “My old friend looked at me with new respect. He was discovering in me a capacity for hipocrisy that he had never credited me with before”.Quem se sentir amedrontado pelas con-sequências funestas que essa hipocrisia pode vir a acrescentar ao seu futuro, tem uma longa lista de uísques, conhaques, champanhes e vinhos brancos e tintos à sua disposição para poder dissipar, sem que dele se apodere o espectro cavernoso e engolidor do remorso, os anos de vida que lhe restam.

a revolta do emir Pedro Lystermann

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A FugA

Temos, para além de tudo isto, na mão, um trunfo imbatível, um ás de espadas de uma eficácia marcial e decadentista inultrapassável – a enorme vantagem de não perceber o que se passa à nossa volta e de não sermos levados a sério.

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t e r c e i r o o u v i d o

ApesAr De Norah Jones e apesar de Da-vid Strathairn, “My Blueberry Nights” (2007) foi um indício doloroso de que algo se pas-sava de errado com Wong Kar-wai. Pelo que se lê e ouve sobre o mais recente filme, “The Grandmaster”, confirma-se, aparentemente, que amontoar clichés é agora o ofício de um realizador que, nos seus melhores momentos, encenava poesia, amor e perda (não necessa-riamente por esta ordem) como ninguém. Mas ainda que Wong Kar-wai dedique o resto dos dias a filmes medíocres, será impossível fazer--nos esquecer o que já imortalizou: um certo olhar sobre Hong Kong (e sobre Macau, onde recriou a antiga colónia britânica), uma estéti-ca e um imaginário que têm tanto de sensível (real e visível) como de intangível (ilusório e fugidio). Com as devidas distâncias, essa refe-rência – ou experiência –, é convocada agora por Davwuh, produtor de Liverpool que, no início deste ano, lançou o álbum “Hong Kong”. São 76 minutos de electrónica feita de baixos graves e sussurrantes, ambientes negros e car-regados como o céu de Hong Kong, ‘arpeg-gios’ fantasmagóricos e vozes espectrais, que tanto nos remetem para o tempo sem passado nem futuro de certos filmes de Wong Kar-wai, como para a origem do “dubstep” e do “future garage”, ou seja, Londres, a metrópole cinzen-ta. Mas aquilo que poderia ser um bom ponto de partida acaba também por se revelar, em vários momentos do disco, um ponto morto, uma vez que Davwuh pouco arrisca e pouco se afasta das zonas de influência.

Seja por fascínio ou preguiça (ou as duas coisas juntas), há em “Hong Kong” uma cola-gem por vezes excessiva (expressa, por exem-plo, nos títulos “Room 2046”, “In The Mood For Love”, etc.) a um imaginário alheio que acaba por filtrar a nossa visão ao ponto de tor-nar indefinido o que é mera citação e o que é mera cópia. O mesmo se aplica, aqui e ali, às influências musicais, bebidas sobretudo nas produções de outro inglês, Burial (de resto, uma inspiração confessa de Davwuh, a par com Joy O e Skream, também “perceptíveis”).

Mas do mesmo modo que existem más in-fluências (ainda que boas), é justo realçar que também há ascendentes com efeitos positivos.

próximo oriente Hugo Pinto

“Hong Kong” não ignora essa circunstância. “Syncing Feeling”, por exemplo, serviria apro-priadamente de banda sonora de um encontro fortuito e desejado numa qualquer plataforma futurista de “2046”, e “Kowloon Haze”, com pulsar irregular e linhas sintéticas dramáti-cas expectantes, ajuda a pintar um amanhe-cer fora de horas e solitário nas “mansões” de Chungking. Noutros momentos particular-mente felizes (“Soul Connection”, “Iridescent Sky”, “Their Eyes Meet”), nem sequer nos lembramos de Wong Kar-wai ou de Burial. No entanto, continua lá o ambiente cinemáti-co, desta feita abstraído de ligações concretas a este ou àquele universo.

Em boa parte das 16 faixas de “Hong Kong” está explícito o poder sugestivo da música de Davwuh, ligada à grande tela das salas escuras desde logo pela forma como o

produtor apresenta o disco, no mesmo jeito com que um argumentista descreve uma cena: “A man, a woman. Eyes meet through the ste-am of food stands. The high rises light up the night sky, reflections ripple in the harbour.”

Deste disco pode-se dizer que oferece, a espaços, a banda sonora ideal para uma incur-são às artérias mais recônditas de Hong Kong, numa missão esperada desembocar no porto de onde avistamos com esplendor os arranha céus e os néon a dançarem na superfície es-cura do rio. Aí chegados, que se desenrolem filmes, mas dos imaginários e não dos outros que já vimos vezes e vezes sem conta.

“Hong Kong”www.davwuh.bandcamp.com 2013Davwuh

CidAde repetidA

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perspectivas Jorge rodrigues simão

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metrópolis

A sociedAde dos dois terços

É um hábito do ser humano pensar que o futuro é algo que chega com o decorrer do tempo, mas quando a humanidade atenta contra si, converte-se numa ameaça fatal, quer seja através de conflitos com uso de armas de extermínio massivo ou cirúrgico, atómico, químico e biológico, quer seja através da destruição progressiva do meio ambiente, o futuro deixa de ter grande sen-tido, para converter-se nalguma outra “coi-sa”, que é preciso criar de forma consciente.A duração do futuro, depende do ser hu-mano que tem de procurar continuamente na forma como conduz a sua existência, novas soluções e dilações, se quiser que as gerações futuras, e os demais seres nossos companheiros no planeta, sobrevivam. O género humano, tornou-se vulnerável. O nosso momento histórico, tornou-se limi-tado. Este momento que vivemos, é uma nova situação na história da humanidade, em que a fé e a teologia das diferentes crenças religiosas, ainda têm de encontrar o seu verdadeiro caminho e lugar. Nessa presumível destruição, no tempo em que se tornou possível o fim da huma-nidade, e de todos os demais seres vivos liderados pelo homem foi denominado de “tempo final”, no sentido comum e de alguma forma apocalíptico. É neste mo-mento, mais importante compreender as novas questões da vida e da morte, para as quais nunca tivemos, não temos e não te-remos resposta, do que repetir as habituais réplicas às perguntas postas pelas gerações passadas. Todavia, e parecendo contradição, num mundo único de profundas divisões, o ser humano torna-se mais forte à medida que aprofunda o conhecimento da sua exis-tência. Quanto mais se comprometer pela paz e pela comunhão de ideias, interesses e esforços, cuja falta são as grandes causas das divisões existentes no mundo, e que constatamos numa Europa que se pretende una, mas dividida pela crise da sua moeda, entre os Estados-membros intervenciona-dos e os não, por uma coligação onde duas instituições que a todos pertence, com o papel de as integrar, vai consentindo, de-fendendo e permitindo, que uma terceira entidade desnecessária e estranha ao pro-cesso integrativo europeu, aplique e con-trole a implementação de erradas políticas macroeconómicas. Alguns Estados-membros desgovernados, pelos demais Estados-membros seus com-panheiros de rota integrativa, apesar de todos os desconcertos, incertezas e deses-

“I have a dream that my four little children will one day live in a nation where they will not be judged by the color of their skin, but by the content of their character.”

An Ebony Picture Biography Martin Luther King Jr.

1929-1968

peros, têm alguma energia para continuar a pugnar pelo aprofundamento de uma união política, no meio do desatino económico e financeiro que os afasta irremediavelmen-te. O princípio da solidariedade, que é um dos pilares fundamentais da Europa, que os fez unir e crescer, encontra-se prestes a desabar. Solidariedade, significa que cada Estado-membro deve resolver os seus pro-blemas em comum, com o olhar posto nos problemas dos restantes. Todas as sociedades estão sujeitas a uma permanente mudança. Saímos da era in-dustrial e entrámos na era da informação ou digital, há pouco menos de três décadas. As mudanças de forma de produção, exigem do ser humana mobilidade e flexibilidade, que por sua vez requerem capacidade para fazer da realidade novas possibilidades, e energia para superar as contradições que observam e vivem. Só estando disposta a transformar-se, a sociedade, pode realizar todas as suas oportunidades.A qualquer reforma social é necessário uma visão histórica, ou seja, a visão de um futu-ro pelo qual mereça a pena viver e esforçar, especialmente nos momentos em que as transformações técnicas de produção com ciclos cada vez mais rápidos, fazem incor-rer muitos em grandes contradições sociais e assumir grandes riscos económicos, por não serem dela portadores. Quando não existem visões, o povo morre, parafrasean-do a conhecida expressão bíblica (Provér-bios 29,18). As pessoas conservadoras, pessimistas, cépticas e os tontos como dizia Freud não têm futuro, porque estão incapacita-das para a mudança. Pretendem que tudo permaneça sem alteração, pois desejam prolongar o presente no futuro, para de-fender uma situação de posse ou estatuto social, real ou psicológico mantido a custo e que muitas das vezes imaginam ter, mes-mo que se apresente quase impossível, mas que permite mesmo esperneando e à custa de umas tantas ilegalidades que ninguém descobrirá, e de outras tantas bengaladas como diz Eça de Queiroz, resistir às raja-das da mudança que nunca tarda.Temem um futuro que seja diferente do presente que conhecem. A mudança não lhes infunde esperança, mas temor. Quem pretende prolongar o seu presente no fu-turo, perde as novas possibilidade que este lhe oferece, terminando por nele se afogar. A simples continuação do presente ou pro-longamento do “status quo”, não dá lugar a nenhum futuro que mereça ser conside-rado. Só através de mudanças e reformas é possível salvar para o futuro, o que se con-sidere digno no presente. O medo ao futuro que caracterizou os ul-tra direitistas, conservadores, marxistas e anti-marxistas, substituído pelos populis-tas histriónicos que tem os seus melhores representantes em Fidel de Castro, Hugo

Chavez, Evo Morales, Rafael Correa e Ollanta Humala, deve ser interpretado, como uma preocupação face à destabiliza-ção. Sem uma desestabilização consciente e permitida pelo sistema, não existe trans-formação possível nem esperança em novo futuro, ou seja, sem crises não existem oportunidades e sem crítica não há liber-dade. A sociologia como a ciência humana que interpreta a realidade social, depara-se com a grande questão de saber se a socie-dade actual tem futuro. Os que sofrem e reconhecem as contradi-ções desta sociedade têm sérias dúvidas. Os que sofrem tais antinomias sociais, mas não as reconhecem, duvidam de forma di-fusa. Poder-se-á dizer, que em geral, jamais houve nas sociedades tanta desorientação, resignação, cinismo, auto-aborrecimento e agressividade entre as pessoas e face às instituições, como a que se observam nos países desenvolvidos do ocidente. Uma das grandes contradições reside no facto de não terem apenas uma estrutura classista de sociedade, ainda que a crise fi-

os Estados Unidos, com uma taxa de 7,8 por cento, correspondente a 12,2 milhões de trabalhadores, passando pelo Canadá, com 7,2 por cento, até à União Europeia (UE), nomeadamente a “Zona Euro”, com uma taxa de 11,8 por cento, liderada pela Grécia, com 28,6 por cento, seguida da Espanha, com 26,6 por cento e Portugal, com 16,3 por cento. Quando ao desemprego juvenil a “Zona Euro”, apresenta uma taxa de 24,4 por cen-to, liderada pela Espanha, com 58,5 por cento, seguida de Portugal, com 38,7 por cento, a República Eslovaca, com 35,8 por cento e a Itália, com 37,1 por cento.Os governos dos países desenvolvidos do ocidente vão atabalhoadamente preparando a sociedade para viver com o desemprego estrutural, sem futuro, o que será a conde-nação à morte, quando os direitos humanos estão consagrados no Tratado da União Eu-ropeia, e reforçados na “Carta dos Direitos Fundamentais da UE”, cujo n.o 1 do artigo 15.o estipula que “Todas as pessoas têm o direito de trabalhar…” A UE não sendo membro da ONU, não deixa de respeitar a “Declaração Universal dos Direitos Huma-nos”, aprovada em resolução da III Sessão Ordinária da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de Dezembro de 1948, que se poderá considerar como o sistema global da protecção dos direitos humanos, apli-cável no entanto, aos Estados-membros da UE, membros da ONU. A “Declaração Universal dos Direitos Hu-manos” diz no seu artigo 23.o “Que toda a pessoa tem direito ao trabalho”. Além do sistema global existe o sistema regional de protecção dos direitos humanos na UE, que é um verdadeiro “quebra-cabeças”, realizado por força do consignado nas constituições nacionais, na “Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, de 4 de Novembro de 1950 e pela “Carta de Direitos Fundamen-tais da UE”, de 18 de Dezembro de 2000. Independente da complexa mecânica, de como se articula o sistema global e regio-nal de protecção dos direitos humanos na UE, é de salientar que o artigo 3.° do Tra-tado UE que tem por epígrafe os (objec-tivos da União), ao afirmar que a UE, tem o compromisso expresso de garantir todos os princípios, comuns a todos os Estados--membros, da democracia e do Estado de direito, bem como a protecção dos direitos humanos e dos direitos fundamentais e que uma violação grave e duradoura destes va-lores e princípios, por parte de um Estado--membro, poderá dar origem a uma sanção.É de crer não existir dúvidas que as polí-ticas macroeconómicas aplicadas a alguns Estados-membros, com o patrocínio e su-pervisão de outros e das instituições comu-nitárias, são uma clara violação do sistema global e regional de protecção dos direitos humanos e do Tratado UE, sendo nulas e sem efeito.

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Poder-se-á dizer, que em geral, jamais houve nas sociedades tanta desorientação, resignação, cinismo, auto-aborrecimento e agressividade entre as pessoas e face às instituições, como a que se observam nos países desenvolvidos do ocidente.

nanceira ocidental e consequente recessão vá esbatendo, mas também, por continua-rem a caracterizar-se por serem sociedades de dois terços, em que tal fracção da popu-lação, força o restante terço a viver abaixo do limiar da pobreza e a ser uma espécie de população supérflua (surplus-people), apesar de existirem meios que permitiria a todos os membros da sociedade dos países desenvolvidos do ocidente gozar de uma vida livre e justa. Nesta fracção de população subjugada, incluem-se as crianças, idosos, inválidos, analfabetos e grupos sociais marginali-zados. As altas taxas de desemprego dos países desenvolvidos do ocidente desde

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metrópolis Tiago Quadros

“4 de Maio de 1933: é o seu aniversá-rio e daí a dois dias Bruno Taut chegará ao Japão.”1 Depois de ter atravessado a Euro-pa e a Sibéria, Taut deixa para trás a fase mais dramática da sua carreira. Desde que concluiu a sua formação com Theodor Fischer em Munique, esteve entre os pro-tagonistas das experiências mais relevan-tes que um arquitecto europeu, nascido em 1880, poderia realizar. Ao chegar ao Japão, acompanhado por Erika Wittich, as decepções e as dificuldades enfrentadas nos anos anteriores tinham-no afectado, mas não derrotado a sua vontade. Desem-barcado do navio que tinha partido de Vladivostok, é recebido e saudado afectu-osamente por Shotaro Shimomura e pelo arquitecto Isaburo Ueno. Como presen-te para o seu aniversário, os dois amigos tinham obtido a permissão para Bruno Taut visitar a Villa Imperial de Katsura, em Quioto. De regresso da visita à obra de Katsura, Taut anota no seu diário: “Foi provavelmente o melhor aniversário de sempre.”2 A partir deste momento, Katsu-ra preencherá os dias da estadia japonesa de Taut, que se prolongará até 1936, e a ele será reconhecido o mérito de ter “des-coberto” a Villa Imperial.O diário japonês de Bruno Taut contém a seguinte entrada para 20 de Setembro de 1936: “Domingo, com um grupo de ami-gos e o escritor, e fotógrafo, da “Asahigra-ph” (“revista ilustrada de Tóquio”) fomos a Atami, a casa de Hyuga. Finalmente, também aqui, depois de cinco anos, o que tantas vezes tivemos o prazer de fazer em Berlim: revelar uma construção acabada ao olhar crítico de amigos e pessoas queri-das... Eu também estava cheio de curiosi-dade, animado e feliz por me encontrar lá, perante o meu trabalho, concluído em to-dos os seus detalhes ...”3 O projecto para a conclusão da Villa Hyuga não é apenas a única obra de arquitectura realizada por Bruno Taut durante a sua permanência, de dois anos e meio, no Japão. É também o seu primeiro trabalho depois de cinco anos de inactividade, após as dificuldades em Moscovo, e a sua última obra a ser concluída em detalhe. Desde a segunda metade do Século XIX que a arquitectura japonesa foi objecto de estu-

1 DAL CO, Francesco (2004). “L’invenzione di una diversa tradizione moderna”, Casabella, nº 725, Milão: Mondadori, pp. 4-11.2 Idem.3 SPEIDEL, Manfred (2006). “Il magnifico esilio giapponese”, Casabella, nº 743, Milão: Mondadori, pp. 45-51.

Um ArqUitecto não se pode sentir em cAsA onde não constrUir

do por parte de observadores ocidentais. A publicação de obras como a de Christopher Dresser (Japan: Its architecture, Londres, 1882), Edward S. Morse (Japanese Ho-mes and their Surroundings, Salern, Mass., 1886) e F. Baltzer (Das Japanische Haus, Berlim, 1903) atestam do interesse genuíno que se vinha gerando e que de certa forma acabou por contribuir para uma renovação da arquitectura ocidental. Se por um lado Wright demonstrava, com a sua obra cons-truída na América e no Japão, uma ampla compreensão do pensamento japonês, por outro, um interesse contínuo pelo Japão po-dia ser observado em publicações de Bruno Taut e Walter Gropius, ambos defensores de que o Japão podia representar um mode-lo para a arquitectura ocidental.Passados 80 anos da sua chegada ao Japão, o exílio de Bruno Taut continua a ser ob-jecto de estudo. O período, documentado em diário, tem sido analisado e estudado por investigadores e arquitectos. Nume-rosas publicações, como ensaios, críticas e alguns inéditos do próprio Taut, têm, so-bretudo nos últimos anos, contribuído para uma leitura mais clara e informada sobre o seu exílio. Os primeiros meses da Viagem de Taut revelam uma enorme inquietude. O tempo é de efusão lírica e a cada página do seu diário vamos sendo confrontados com as primeiras impressões de um olho europeu e modernista em contacto com as “maravilhas universais” de Nara, Ise e, aci-ma de tudo, a Villa Imperial de Katsura, na altura desconhecida na Europa.Algumas páginas depois dá-se uma infle-xão na Viagem. O desencanto surge após uma análise mais cuidada e crítica da vida quotidiana e da arquitectura residencial. A casa tradicional, inicialmente apresentada como consequência lógica do estilo de vida japonês é, aos olhos de Bruno Taut, tudo menos ideal ou adequada ao clima, muito severo, do Japão. A nova arquitec-tura que Taut observou não ia além de um pastiche importado, uma imitação de mo-delos ocidentais e portanto inadequados à geografia e ambiente locais. No seu diário, Taut defende a ideia de que havia no Ja-pão uma carência de bases para o nasci-mento de uma nova arquitectura japone-sa que, entre outros factores, se pudesse desenvolver em harmonia com o meio ambiente, a geografia e cultura locais, em vez de os evitar. Esta teoria, que se recor-ta luminosa no seu diário, não encontrará nas palavras de Taut um caminho linear e muito menos conciliador. Bruno Taut reconheceu a solução do pro-blema, mas ainda assim não conseguiu construir quase nenhum dos 14 projectos que tinha em estudo. A inquietude inicial do olhar dará, mais tarde, lugar a um de-sencanto que parece fundar-se na obsessão de um arquitecto, vítima do seu próprio pragmatismo. O desencanto e o desânimo de Taut parecem revelar uma verdade por muitos conhecida: “um arquitecto não se pode sentir em casa onde não construir”.

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gente sagrada José simões morais

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朱大仙 Algumas pessoas ligadas ao negócio do peixe em Macau comerciali-zam-no pela costa norte de Guangdong e Fuquiam (Fujian). Tinham o hábito de após a transacção, pararem em Pinghai e dirigindo-se ao templo. Aí rezavam, pagando as fortunas que tinham tido na viagem e para regressavar pediam protecção, sabendo que, quem aí agradecia obtinha o que pedia.Certa vez, um desses homens de Macau aproveitou para pedir a cura da sua esposa e tal foi concedido pelo deus Chu Tai Sin.Conhecido em Macau por Chu Tai Sin, tem como nome em man-darim, Zhu Da Xian, havendo sobre este deus diferentes versões e personagens, ficcionadas ou da História. Nesta segunda história encontramos Zhu Li, nascido a 26 de Fevereiro do ano de 967 em Xinhui, província de Guangdong, durante o período da dinastia Song do Norte.Aos 7 anos, os pais já tinham morrido e por isso foi criado pelo seu tio. Aos 12 anos, quando pastava o gado em Ma shan aconteceu-lhe um desastre, mas foi ajudado por um Imortal que lhe salvou a vida. Depois o Imortal retirou um zong zi (粽子, arroz com cogumelos embrulhado numa folha de bambu) e oferece-lhe. Estava quase todo o bolo comido e na boca, já a última dentada tinha sido dada, quan-do apareceram os seus dois irmãos. Retirando da boca o que restava ofereceu ao seu irmão. Este comendo metade passou o que sobrava ao irmão mais velho, mas este recusou comer. O que não sabiam era que este zongzi era uma pílula da Imortalidade e por isso Zhu Li e o irmão tornaram-se Imortais. Já o outro, pouco tempo mais viveu e acometi-do por uma doença, passou desta vida.Regressando à povoação, Zhu Li disse às pessoas que a localização da aldeia não era boa e deveriam mudar-se para a outra montanha, Yun Feng shan, no outro lado da montanha em que viviam. Esse lo-cal era pertença da família Wu e como se realizavam as Festividades do Qingming, ou seria Chongyuan (o Qingming do povo), quem foi negociar encontrou os Wu reunidos em torno das campas da família. Ficou aceite que as treze famílias com diferentes apelidos mudassem para Yun Fang Shan e se juntassem com a Wu.Numa noite após a mudança, Zhu Li Da Xian apareceu em sonhos a um dos membros da família Wu, aconselhando-o a mudar a localiza-ção das campas, o que foi realizado.Após fazerem as cerimónias de translação dos corpos para o novo lugar onde a família Wu colocou os seus antepassados, a meio da ce-lebração apareceu um rato. Este agarrando um bocado de carne, que servia de oferenda aos deuses, fugiu. Perseguindo o animal, viram-no a entrar para uma toca e como não faltavam pás, logo escavaram um buraco para o apanhar. Só que pouco depois, deram com uma série de potes todos guardando imensas riquezas, entre elas ouro.A família Wu passou a ser detentora de uma grande fortuna e as pes-soas que vieram viver com ela tiveram uma boa vida. Por isso, a aldeia resolveu em 980 construir o templo Yun Feng para agradecer a Zhu Li as auspiciosas mudanças por ele realizadas às suas vidas.Quando de novo o homem de Macau regressou ao templo Yun Feng, para agradecer a Zhu Da Xian, por sugestão do mestre levou uma estátua do deus para Macau. Quando chegaram de barco ao porto de Hong Kong, onde alguns dos passageiros do mesmo ramo iriam ficar, um grande temporal se formou e durante três dias não deixou conti-nuar a viagem. Então, como forma de perguntar ao deus a sua vontade entre ficar em Hong Kong, ou ir para Macau, através do lançamento do “seng pui” (blocos do Oráculo) o deus escolheu ficar em Hong Kong e assim em 1928 foi aí construído o templo.A imagem de Zhu Da Xian, um dos deuses da Medicina e deus do Mar em HK e Macau, esteve exposta no IPM durante as conferências realizadas para preparar o processo de tornar a festividade em honra a Chu Tai Sin Património Intangível da Humanidade .

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Zhu Da Xian, O granDe imOrtal Zhu

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huai nan Zi 淮南子 o livro dos Mestres de Huainan

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Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Provín-cia de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refina-ram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

O Estado executa os criminosos sem qualquer ira por parte do líder.

Do EstaDo E Da sociEDaDE – 34

Quando os súbditos não obtêm aquilo que desejam dos seus líderes, os líderes são incapazes de obter aquilo que desejam dos seus súbditos. Aquilo que líderes e súbditos dão uns aos outros é motivado pela reciprocidade, em nome da qual os súbditos se esforçaram ao máximo e darão suas vidas em nome dos interesses dos seus líderes, ao passo que os líderes disponibilizarão honrarias para benefício de seus súbditos.Se os líderes não conseguirem recompensar súbditos iméritos, então os súbditos não conseguirão morrer por líderes iméritos. Se as benesses oferecidas pelos líderes não chegarem aos cidadãos, mas, ainda assim, os líderes quiserem dispor das pessoas, tal é como chicotear um touro enraivecido. É, na verdade, o mesmo que esperar que as colheitas se desenvolvam sem chuva, ou seja, uma impossibilidade.

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Se se oferecem ricas recompensas a quem não merece, ou altos títulos a quem não trabalhou, então, os detentores de postos oficiais serão preguiçosos e os indolentes avançarão com rapidez.Se se põem as pessoas à morte sem que tenham cometido qualquer crime, ou se se punem as pessoas honestas, então, aqueles que se dedicam ao cultivo próprio não sentirão encorajamento para prosseguir e os malévolos pouco se incomodarão em trair.Num governo iluminado, o estado executa os criminosos sem qualquer ira por parte do líder. A corte recompensa os meritórios sem qualquer envolvimento por parte do líder. Aqueles que são executados não se ressentem do líder, dado que o castigo é ade-quado ao crime. Aqueles que são recompensados não o atribuem ao líder, dado que só os seus feitos o justificam. É assim que o povo sabe de que só dele depende ser-se castigado ou recompensado.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

Page 16: h - Suplemento do Hoje Macau #73

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