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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2612. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE O EXÍLIO E A VIDA

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 18 de Maio de 2012

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2612. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

O EXÍLIO E A VIDA

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Carlos Morais José mente ver terminado o seu “cativeiro” e empreender o regresso à terra natal, os segundos perdem a vida por paragens remotas, encetando relações e práticas que põem em risco a sua própria iden-tidade, o que é como quem diz dificul-tam tremendamente a possibilidade de regresso, na medida em que o próprio chão étnico que os constituiu sofreu abalos consideráveis. Não é em vão que se habita a terra estrangeira e se parti-lham os seus frutos. Algo de muito in-terno vai conhecendo o definhamento e a morte, ao mesmo tempo que dessas cinzas vai renascendo uma nova perso-nalidade, afeita à diferença e modulada pelas novas visões e experiências. Tam-bém não se trata de alguém absorvido totalmente por outro povo (caso muito

“A maioria dos marinheiros compunha-se de homens que, ali lançados como por acaso, tinham ficado na qualiddae de oficiais em

navios da região. Tinham tomado horror às linhas da metrópole, com suas condições mais

duras, seus serviço mais estrito e os azares dos oceanos furiosos. estavam acomodados à paz eterna dos céus e dos mares do Oriente. Ama-

vam as curtas travessias, as moles chaises--longues, as grandes equipagens indígenas e seus privilégios de brancos. Estremeciam ao

pensamento de rudes labores e levavam existên-cias fáceis e precárias, sempre à mercê de uma

despedida, sempre à véspera de um emprego novo. (...) Entretinham-se eternamente de

golpes e contragolpes da sorte (...) em tudo o

podemos confundir com os “emigran-tes”. Estes nasceram para satisfazer as necessidades dos regimes capitalistas e não existem enquanto indivíduos, somento como massa trabalhadora disponível a baixo custo. Com a imposição do ritmo próprio das sociedades capitalistas, estes movimentos de milhares de pessoas intensificaram-se durante todo o sé-culo XX e estão ainda longe de atin-gir o seu término. Já o mesmo não se poderá dizer dos outros, dos que não pertencem a nenhum movimento con-certado e comandado por traficantes de pessoas e receptadores de trabalho desqualificado. São, aliás, bem claras algumas diferenças entre eles. En-quanto os primeiros desejam sincera-

A UM CERTO TIPO DE HOMENS

que diziam, nos seus gestos, nos seus olhares, na sua pessoa, traía-se o ponto fraco, a corda

sensível, o irrestível desejo de uma existência de ociosidade sem perigo.”

Joseph ConradLord Jim

DESDE o grande êxodo eu-ropeu, iniciado com as Des-cobertas, que o mundo tem assistido ao aparecimento

de homens cuja vida se caracteriza por uma deslocação radical do seu ponto de gravidade original para se disse-minarem por regiões estrangeiras, so-bretudo, estranhas. Muitos nomes lhes chamaram, desde “homens da frontei-ra” a “cavaleiros da fortuna”. Não os

Enquanto os primeiros desejam sinceramente ver terminado o seu “cativeiro” e empreender o regresso à terra natal, os segundos perdem a vida por paragens remotas, encetando relações e práticas que põem em risco a sua própria identidade

Robert Louis Stevenson em Samoa. Wenceslau de Moraes em Adem

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raro) mas da construção de uma identi-dade única, de um ser de características singulares. Devemos sublinhar este ponto: a úni-ca coisa comum entre estes homens ou mulheres é o seu despaisamento, a outra é serem radicalmente diferentes e, em geral, nem sequer se apreciarem, como se a visão do duplo trouxesse consigo, como dizem os mitos, o hálito perturbante da morte.Claro que para estes homens o regresso à terra natal é uma asneira e, normal-mente, de pouca duração. Ao contrário dos emigrantes, sonham continuamente com novas viagens e com os ambientes exóticos que abandonaram. É como se a vida só fosse possível se mergulhados numa terra radicalmente estrangeira e o sossego unicamente atingido quando se tem um conhecimento imperfeito as línguas e os costumes, mesmo os mais abomináveis. Penso ser precisamente a distância face aos costumes predo-minantes que imprime no espírito a sensação de liberdade quase absoluta e quem não gosta de se sentir absoluta-mente livre? Daí que estes homens não adoptem os hábitos de nenhum povo, nem as prá-ticas de nenhuma religião. Utilizam, é certo, determinados ensinamentos, mas sempre descontextualizados da cultura original e re-significados nesse ema-ranhado em que se vai tornando cada personalidade.Outro aspecto é que não falamos aqui de heróis mas, precisamente, do seu contrário. O herói existe ao serviço de um povo, estes seres são profundamen-te individualistas, narcisistas, actores do seu próprio teatro, no qual se tor-nam, a um tempo, intérpretes, público e autores de um texto cuja acção se desenrola no palco do mundo. Trata--se de gente em fuga, da reencarnação perfeita do homo mobilis, o homem em movimento, ou seja, o contrário dos se-dentários que impõem as suas leis nas cidades. Quanto a eles, ficam satisfeitos por di-tarem as leis no pequeno território que circunda o seu corpo e por usufruirem dos beneplácitos concedidos aos fan-tasmas.Estas considerações são feitas a propó-sito e de propósito. Um dos grandes problemas da realização da felicidade passa pela nossa própria capacidade de nos reconhecermos, de aceitarmos o nosso modo de ser, de vivermos em paz no labirinto dos nossos desejos. Há momentos na vida em que se tomam as decisões erradas. Por isto ou por aqui-lo, por nós mesmos ou pelos outros. Mas uma coisa é certa: seremos os úni-cos a estar connosco até ao fim, os últi-mos a aturar as nossas manias, excessos e defeitos. Finalmente, é triste não viver por medo de ter uma má vida. Tudo o que experi-mentamos deve ser traduzido em sabe-doria, essa, a que, prudentemente, nos afasta do mundo. Sobretudo, do mun-do que nos é mais próximo.

UALQUER ser humano que se preze (ou despreze) ambi-cionaria viver debaixo de um vulcão. Que isto de ambições tem muito que se lhe diga.

Mesmo muito. Afinal, quantos dos meus estimados leitores e leitoras não tiveram desejos que esqueceram e assim assisti-ram ao mirrar da própria vida e — pior ainda — por culpa própria. De nada va-lem as aspirações enquanto somos crian-ças, mas é grave esquecer a adolescência e os ideais aspirados como linhas brancas sobre um espelho.Nesse espelho reflecte-se a nossa cara, um carão que bem conhecemos e nos é relativamente familiar. Este relativamen-te surge porque — reparem bem — ve-mo-nos sempre invertidos: só os outros nos conhecem.Façam comigo o exercício de se lembra-rem do que queriam, do que aspiravam conseguir e, em seguida, mirem-se outra vez, vejam-se ao espelho na solidão da casa de banho, aí onde mais ninguém nos vê, sobretudo ninguém nos julga, e não tenham medo de tirar conclusões.É isso, não é? Estas nossas carantonhas adormecidas no vai e volta de nada, esgo-tadas por responsabilidades alheias, por deveres sem sentido. Assim se passam as horas, os dias, as semanas, os anos, as dé-cadas. Não fosse estarmos anestesiados pelo dever e a vida seria bem mais dolo-rosa mas fremente. Assim não. O tempo desempenha inexorável o seu papel, as carnes revoltam-se contra os excessos e os defeitos; do tempo — esse cão — sen-timos-lhe os dentes bem afiambrados nos braços. Sem nunca largar, sem nos dar a hipótese de perder pitada.Algo que também nunca quis: perder pitada. Perder um só cheiro da vida que desfila por todo o lado, à nossa frente — a que vemos — e perder a que não sabe-mos, a que somente pressentimos como eventualmente nossa mas que não con-seguimos descer à rua para, simplesmen-te, efectivar a colheita. Definitivamente, deixámos de ser agricultores.Resta-nos esse largo território de caça hoje conhecido por sociedade contem-porânea. Reparemos que, antigamente, a aspiração da ruralidade era ter filhos médicos, advogados ou engenheiros. Em alguns casos sacerdotes. O que há de comum a esta gente? Simples: todos são obrigados a um juramento ético. Hoje a burguesia urbana ensina aos filhos que devem ser gestores, economistas, apre-sentadores de televisão, jogadores de fu-tebol. O que há de comum a esta gente? A inexistência de ética.

DEBAIXO DE UM VULCÃO

Não quero dizer com isto que os do primeiro grupo sejam gente porreira e os do segundo uns canalhas. Estou simplesmente a falar dos princípios ou da falta deles. Para mim, na realidade, a coisa põe-se noutros termos: cada in-divíduo saberá de si e será responsável pelos seus actos. Isto não quer dizer que não exista uma voz que os instiga ou não, uma consciência profissional ou não, que os faz dizer que não podem ir por ali. É que isto de ser humano não é fácil. Precisamos da ajuda dos outros. Sozinhos vamos a algum lado, sobre-tudo vamos por onde nos empurram as circunstâncias e sem nos apercebemos disso.Hoje para estar vivo é quase preciso um milagre porque estar vivo é uma fé. É preciso uma força comparável à de um peregrino que esfola os joelhos e a alma a caminho de um santuário qualquer. É preciso ainda mais força porque a pere-grinação não tem fim nem se resolve na adoração de estátuas. Toda a nossa vida deve ser entendida como um constante pagar de promessas: não a que se fazem aos santos mas a nós mesmos.Discordo dos que dizem que Deus está

em cada um de nós. Sinceramente, nunca me senti divino (bom... excepto quando me concedo acreditar em certas mentiras, hauridas em inconfessáveis momentos). Confesso também que não acredito na re-denção dos pecadores mas sim no seu sor-riso final, nesse que levam para a tumba e que por outras palavras, menos canónicas, significam papo cheio. Ou como dizia um padre personagem de Eça de Queirós “é o melhor que levamos da vida”.Eu, que tenho a veleidade de escrever, quero exercitar a vocação num lugar im-possível. Ver índios subir e descer as es-cadas das pirâmides. Quero que a minha escrita se transforme numa mescaligrafia, num círculo somente arredondado mas progressivamente mais alto, um sítio em que as formas percam o sentido e reste um cheiro de enxofre e lava derramada. Quero que as palavras se elevem como lava, sim, e queimem cérebros alheios e incendeiem corpos abstrusos. Quero que as palavras se derramem e em sacões ab-surdos, precisamente contrários à sua na-tureza mais própria.Pouco vale uma vida. Menos vale se não for vivida debaixo de um vulcão.

C.M.J.

Uma amante

Talvez tudo isto não passe de uma ilusão de quem ainda não partiu de Macau. Talvez no momento em que aterrar noutra terra um qualquer me pergunte como pude suportar anos e anais de mau clima, de mentalidades provincianas, de jet-foil ordinário, de comunidade basicamente cobarde. Talvez aí sin-ta outra vez como é bom ver o céu azul com nuvens brancas, usufruir dos prazeres do anonimato, comprar revistas, ver mu-seus. Ou talvez não…Talvez me limite a percorrer espaços vergado a um estranho peso de saudade, transportando comigo uma ausência de sa-bor, as papilas desgastadas e os olhos liquefeitos. Mas nin-guém me consegue explicar o que é deixá-la, deixar de sentir o seu insinuante fedor.A maior parte dos que partiu não diz coisa com coisa, não é capaz de esclarecer absolutamente nada. Estão ainda contagia-dos por esse balbuciar de coisas sem nexo, que aqui praticamos inconscientemente. Estão ainda sob o efeito deste ar opiado, com lembranças inelutáveis das mordomias e das patacas.Sobre não estar em Macau, sobre deixar Macau ainda não li nada, nem ouvi nada. Impõe-se normalmente um embaraçoso si-lêncio. Como se esta terra fosse algo doloroso de não ter, aquela amante de que estamos fartos e nos arrependemos de deixar. Até porque, não tenhamos ilusões, ela passa bem sem cada um de nós.Não sei o que me vai acontecer.

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UERO, antes de mais saudar os professores. Durante anos, fui professor. E quando digo isto há uma emoção fortíssi-ma que me atravessa. Eu não

sei se há profissão mais nobre do que a de ensinar. E digo ensinar porque existe uma diferença sensível entre ensinar e dar au-las. O professor no sentido de mestre é aquele que dá lições.Os professores que mais me marcaram na vida foram os que me ensinaram coisas que estavam bem para além da matéria escolar. Não esqueço nunca um professor da escola primária que um dia leu, como-vido, um texto escrito por ele mesmo. Logo na declaração da sua intenção nas-ceu o primeiro espanto: nós, os alunos, é que fazíamos redacções, nós é que as líamos em voz alta para ele nos corrigir. Como é que aquele homem grande se su-jeitava àquela inversão de papéis? Como é que aceitava fazer algo que só faz quem ainda está a aprender?Lembro-me como se fosse hoje: o pro-fessor era um homem muito alto e seco e, nesse dia, ele subiu ao estrado da sala segurando, nos dedos trémulos, um ca-derno escolar. E era como se ele se trans-figurasse num menino frágil, em flagrante prestação de provas. Parecia um mastro, solitário e desprotegido. Só a sua alma o podia salvar.Depois, quando anunciou o título da redação veio a surpresa do tema que pa-recia quase infantil: o professor iria falar das mãos da sua mãe. Éramos crianças e estranhámos que um adulto (e ainda por cima com o estatuto dele) partilhasse connosco esse tipo de sentimento. Mas o que a seguir escutei foi bem mais do que um espanto: ele falava da sua progenito-ra como eu podia falar da minha própria mãe. Também eu conhecera essas mesmas mãos marcadas pelo trabalho, enrugadas pela dureza da vida, sem nunca conhe-cerem o bálsamo de nenhum cosmético. No final, o texto acabava sem nenhum artifício, sem nenhuma construção lite-rária. Simplesmente, terminava assim, e eu cito de cor: “é isto que te quero dizer, mãe, dizer-te que me orgulho tanto das tuas mãos calejadas, dizer-te isso agora que não posso senão lembrar o carinho do teu eterno gesto.”Havia qualquer coisa de profundamente verdadeiro, qualquer coisa diversa naque-le texto que o demarcava dos outros tex-tos do manual escolar. É que não surgia ali, em destacado, uma conclusão moral afixada como uma grande proclamação, uma espécie de bandeira hasteada. Aque-le momento não foi uma aula. Foi uma lição que sucedeu do mesmo modo como vivemos as coisas mais profundas: apren-demos, sem saber que estamos aprenden-do. Lembro este episódio como uma ho-menagem a todos os professores, a esses abnegados trabalhadores que todos os dias entregam tanto ao futuro deste país.Comecei por saudar os professores. Pa-

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Mia Couto interminável lição. Mandela é hoje uma bandeira mundial não apenas porque foi um político que dignificou a política, mas porque nos dignificou a todos nós, seres humanos. Deixem-me falar de Mandela. Este ho-mem, que agora está doente e cansado, viveu encarcerado durante vinte e sete anos. Vinte e sete anos são mais do que o tempo de vida da maior parte dos presen-tes nesta sala. Vinte e sete anos de prisão é tempo suficiente para criar raiva, ódio e insuperáveis ressentimentos. Contudo, este homem converteu esse potencial ne-gativo em força construtiva e reconcilia-dora. Um dos motivos de inspiração de Mandela foi ter encontrado num poema que se chama “Invictus”. Vou ler esse po-ema.

Do ventre da noite que tudo cobreNegra como o fundo da cova escuraAgradeço aos deuses de todos os céusPor quanto a minha invencível alma perdura Ante as garras do cruel acasoNem eu tremi, nem o medo me turvouSob o peso da ameaça e da desumana violênciaEu sangrei mas a minha alma nunca se curvou Não importa se a passagem é estreitaNão importa quantos castigos devo penarEu sou o dono do meu destinoEu sou o capitão da minha alma. Estes versos, meus amigos, foram uma es-pécie de suporte moral que deram força a Nelson Mandela. Vezes infinitas o prisio-neiro 46664 da Ilha de Robin regressou a estes versos para não sucumbir. Como escritor e poeta, dá-me grande alegria sa-ber deste poder da poesia. Neste caso, há qualquer coisa que deve ser acrescentada.Na verdade, este poema foi escrito em 1875. O seu autor não foi um poeta sul--africano, não foi sequer um poeta afri-cano. Quem escreveu estes versos foi um britânico chamado William Ernest Hen-ley. Estes versos viajaram para além de séculos e continentes e iluminaram a es-perança de um homem que, em vez de se vitimizar e procurar a vingança, nos deu uma eterna lição da crença nos outros. Eu venho falar para a Escola de Comu-nicação e Artes. Por isso me demorei nestes episódios. Porque acredito que a comunicação e a arte são ferramentas de mudança tão importantes como a polí-tica. Mandela fez da política um instru-mento de comunicação da verdade. Ele fez da política uma obra na arte da re-conciliação, numa nação dividida pelo preconceito. Talvez a cultura seja o mais poderoso e duradouro instrumento de intervenção social. No nosso continente isso é bem claro. Vejamos um exemplo:Desde há 50 anos, quando começaram a acontecer as independências, o nosso continente conheceu mais de 210 pre-sidentes. O desafio que vos faço é o se-guinte: digam o nome de 10 (apenas 10) destes dirigentes que se tenham notabili-zado como figuras humanas de referên-cia. Terão dificuldade. Será muito mais fácil enumerarmos artistas e intelectuais

maiores professores do nosso tempo é um homem que nunca deu aulas. É um homem que ensinou a sermos mais hu-manos. Mais do que isso, é um homem que ensinou a ter esperança num mun-do tão desesperançado. Esse professor de toda a humanidade, de todas as ra-ças e credos, é um africano. Chama-se Nelson Mandela. A sua vida foi uma

DA CEGUEIRA COLECTIVA

À APRENDIZAGEM DA INSENSIBILIDADE

rece que me esqueci dos estudantes. Ou que os coloquei em segundo plano. Mas não.Todos somos professores, mesmo que não o saibamos. Perante os outros, pe-rante os nossos pais, perante os amigos, perante nós mesmos, com bons ou maus exemplos, com tristes ou gratificantes li-ções, todos somos professores. Um dos

Malangatana, Juventude

Aula inaugural dada pelo escritor moçambicano Mia Couto para alunos da Faculdade de Artes e Comunicação da Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, Moçambique.

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dignos de serem lembrados. E é aqui que a figura de Mandela é tão importante para nós, africanos. Podemos não nos lembrar de muitos políticos africanos que nos dignifiquem. Mas o nome de Mandela basta para compensar toda essa ausência e devolver o orgulho de sermos quem somos.Caros amigos, vou entrar agora no tema central desta alocução.Todos os dias centenas de chapas de cai-xa aberta transitam por esta cidade que parece afastar-se do seu próprio lema “Maputo, cidade bela, próspera, limpa, segura e solidária”. Cada um destes “cha-pas” circula superlotado com dezenas de pessoas que se entrelaçam apinhadas num equilíbrio inseguro e frágil. Aquilo parece um meio de transporte. Mas não é. É um crime ambulante. É um atenta-do contra a dignidade, uma bomba reló-gio contra a vida humana. Em nenhum lado do mundo essa forma de transporte é aceitável. Quem se transporta assim são animais. Não são pessoas. Quem se transporta assim é gado. Para muitos de nós esse atentado contra o respeito e a dignidade passou a ser vulgar. Achamos que é um erro. Mas aceitamos que se trata de um mal necessário dada a falta de alternativas. De tanto convivermos com o intolerável, existe um risco: aos poucos aquilo que era errado acaba por ser “normal”. O que era uma resignação temporária passou a ser uma aceitação definitiva. Não tarda que digamos: “nós somos assim, esta é a maneira moçam-bicana.” Desse modo nos aceitamos pe-quenos, incapazes e pouco dignos de ser respeitados.O caso dos chapas é apenas um exemplo, uma ilustração de um processo que eu chamaria de “construção do inevitável”. E é simples: aos poucos, os passageiros do “chapa” deixam de ser visíveis. Na nossa sociedade essas pessoas já contavam pou-co. É gente pobre, gente sem rosto, gen-te que não aparece na TV nem no jornal. Essa gente surgirá no jornal quando o “chapa” se acidentar. Mas aparecerá sem voz e sem nome. Um simples número para se contabilizar feridos e mortos. Em contrapartida, outras coisas ganharam brilho na nossa sociedade. Por exemplo, adquiriram toda a visibilidade os carros de luxo de uma pequena minoria. Dei-xamos de ver os “chapas” mortais, mas estamos atentos aos sinais de ostentação dessa minoria.O assunto que quero abordar convosco hoje é esta operação que banaliza a injus-tiça e torna invisível a miséria material e moral. Esta vulgarização faz perpetuar a pobreza e faz paralisar a história. Saímos todos os dias para a rua para produzir ri-queza mas regressamos mais pobres, mais exaustos, sem brilho, nem esperança. De tanto sermos banalizados pelos outros, acabamos banalizando a nossa própria vida.Estamos perante uma espécie de forma-tação mental e moral. A mensagem é a seguinte: querem dizer-nos as nossas do-enças sociais são incuráveis. Resta-nos viver de remendos e expedientes.

Visitou-me um escritor amigo da Nigéria. Ele percorreu as cidades de Moçambique e ligou-me de Pemba. A primeira coisa que ele disse: Estou maravilhado! Vocês têm estações de gasolina a funcionar! O seu espanto espantou-me a mim. Princi-palmente porque esse assombro provinha de um cidadão da Nigéria, o maior pro-dutor de petróleo de África. Só depois entendi. O que passa na Nigéria - depois de 50 anos de exportação de petróleo - é que as cidades nigerianas não possuem aquilo que para nós é comum: estações de gasolina vendendo gasolina. As bombas de combustível naquele país estão quase todas fechadas e a gasolina é vendida em

garrafas e jerricans nos passeios públicos. Para alguns esse é um processo natural em África. Mas não é. O que sucedeu foi o seguinte: o governo subsidiou os pre-ços dos combustíveis mas não foram os mais desfavorecidos que lucraram mais. Foi uma parte da elite nigeriana que se

apoderou dos circuitos formais e desviou para os mecanismos informais a distri-buição e venda do combustível. Uma vez mais, os ricos tornaram-se ainda mais ri-cos. Mas não é a questão politica que eu quero trazer aqui. A questão é que, para o cidadão da Nigéria, aquele sistema de venda, à maneira do dumba-nengue, se tornou normal. Ver bombas de gasolina a funcionar numa nação bem mais po-bre como é Moçambique foi, para ele, um motivo de surpresa. Eu vejo muito africanos proclamarem que os mercados informais são a única maneira que Áfri-ca sabe fazer comércio. Que apenas nas barracas sabemos comer e beber. É men-

tira. A dumba-nenguização da economia é uma estratégia escolhida para fugir dos impostos, para escapar das obrigações para com o património público. Quando o meu amigo nigeriano voltou a Maputo ele disse-me o seguinte:- A minha surpresa não foi tanto o que eu

vi em Moçambique. Foi sim o que já não sabia ver na Nigéria.O principal aliado dos tiranos é a cultura da aceitação. Talvez alguns de vocês sabem que sou um dos autores do Hino Nacional. Quando entregamos o Hino para aprova-

ção na Assembleia da Republica nós não podíamos imaginar que alguns deputados se sentissem incomodados com a passagem da letra que diz: Nenhum tirano nos irá escravizar. É claro que a letra não fala do presente. Mas um hino é feito para durar. E quem pode garantir que um candidato a tirano não assaltará a nossa futura história? O melhor modo de prevenir esse risco não é apenas consolidar a democracia política. É investir numa cultura viva, numa cidadania de construção do futuro. O que me interes-sa falar aqui, numa Escola de Arte e Cultura é a dimensão cultural das nossas pequenas e grandes misérias.

A invocação da chamada “africanidade” é uma das armadilhas mais usadas pelos tiranos. No Malawi atacaram e rasgaram a roupa de mulheres pelo simples facto de andarem de calças. Mulheres de calças não é uma coisa africana - foi o que invo-caram os agressores. Em nome de África se agrediram e mataram pessoas apenas porque eram homossexuais. Em nome da pureza africana se continua a impedir que, apenas por serem do sexo feminino, milhares de crianças não prossigam os seus estudos. Em nome de África se co-

O principal aliado dos tiranos é a cultura da aceitação.

As dinâmicas de mudança confrontam-se com uma identidade feita de passado e tradição.

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metem os maiores crimes contra África. O nosso continente é feito de passado e tradição, sim. Mas é feito de modernida-de. É feito de mudança. Como todos os outros continentes.As dinâmicas de mudança confrontam--se com uma identidade feita de pas-sado e tradição. Tudo isto tem a ver com o processo da construção do ine-vitável. Esse processo envolve o meca-nismo da acomodação e o mecanismo da invisibilidade. A acomodação tem várias facetas. Sabemos que está erra-do, mas nada fazemos. Porque temos medo. Porque achamos que não tem a ver connosco. Ou porque fazemos cál-culos. É melhor calar e ser promovido. É melhor recolher uns magros favores em troca do nosso silêncio e da nossa cumplicidade.O mecanismo da invisibilidade foi tratado por José Saramago no livro O ensaio so-bre a cegueira. Nós estamos doentes, não porque os olhos tenham alguma deficiên-cia, mas porque deixamos de saber olhar. Deixamos de querer ver. E deixamos de nos ver a nós mesmos. No fundo, este é o desfecho desse processo de alienação. Tornamo-nos cegos. Quem não vê, aceita que outros lhe digam como é o mundo.Eu rabisquei uma lista de fenómenos so-ciais que se tornaram invisíveis em Mo-çambique. A lista é bem extensa. Men-cionarei apenas de alguns.

A VIOLÊNCIACONTRA OS MAIS FRACOSO primeiro desses fenómenos é a violên-cia. Dizemos com frequência que somos um povo pacífico. Isso é verdade. Mas os povos todos, do mundo, são pacíficos por natureza. O que muda é a sua histó-ria. Assim, é verdade que somos um povo pacífico, mas também é verdade que foi esse povo pacífico que fez uma guerra ci-vil que matou cerca de um milhão de pes-soas. A guerra terminou em 1992, e essa data é talvez a mais importante da nossa história recente, depois da Independên-cia Nacional. Terminou o conflito mili-tar, mas não terminaram outras guerras silenciosas, invisíveis e perversas.Hoje somos uma sociedade em guerra consigo mesma. Os alvos dessa guerra são sempre os mais fracos. Estamos em conflito com as mulheres, com as crian-ças, com os velhos, estamos em guerra com os pobres, com aqueles que não têm poder. Somos uma sociedade obceca-da pelo Poder. Quem não tem poder é como quem circula na traseira do chapa: não existe. Tudo tem uma leitura políti-ca, o mais pequeno detalhe é um reca-do, uma definição de hierarquias. Quem chega primeiro à reunião, onde se senta, quem não comparece à cerimónia, com que carro chegou, de quem se faz acom-panhar, tudo isso são sinais de poder. Nas ruas sou chamado de patrão, sou chama-

do de “boss”, porque a minha cor da pele é tida como um sinal de Poder. O vende-dor de viaturas insurgiu-se com a escolha de um carro que eu queria comprar. Dei-xe que escolho um carro compatível com o seu estatuto. Estamos em guerra connosco mesmos e o primeiro desses alvos é curiosamente uma maioria: as mulheres. Em Moçam-bique há mais um milhão de mulheres que homens. Mas ao nível das percep-ções, os homens dão pouca importância a essa verdade. Eles são chefes, os donos, e olham as mulheres como uma perten-ça privada. As mulheres, por outro lado, ainda pedem licença para existir. A maio-ria das mulheres que são objecto de vio-lência dos maridos acha que isso não é um crime. Acham normal, acham natural. Ser agredida faz parte do seu destino, da sua imutável natureza.E conto-vos três episódios reais, que reti-rei da nossa imprensa apenas nas últimas semanas:Em Cabo Delgado 17 homens violaram uma mulher que se atreveu a atravessar o acampamento onde se praticavam os rituais de iniciação. Da parte das autori-dades locais houve uma inaceitável pas-sividade. Foi necessária insistência da fa-mília e de ONGs para que houvesse uma insuficiente resposta.Em Manica dois jovens violam sexualmente uma mulher no sétimo mês da gravidez.

Em Tete um homem mata a criança de dois meses e esfaqueia gravemente a mu-lher porque a meio do dia ele chegou a casa e a mulher recusou fazer sexo com ele. O jornalista da televisão que en-trevista o confesso culpado sugere uma quase legitimidade do acto ao perguntar: “o senhor devia estava necessitado não é verdade?”.Reclamamos a violência da rua, mas é mais provável uma mulher ser agredida dentro de casa do que fora de casa. É mais provável uma criança ser agredida e violentada no espaço da sua família. Esta tendência não sucede apenas em Mo-çambique, mas no mundo. As estatísticas são reveladoras e assustadoras: cerca de 70 por cento dos actos de violência con-tra a mulher acontecem dentro da casa. Mais de 60 por cento dos assassinatos de mulheres são cometidos pelos seus com-panheiros ou ex-companheiros. Em todo o mundo, uma em cada três mulheres ou já foi ou irá ser agredida ou violentada. Não é pois Moçambique que é afectado de modo particular. O que sucede é que para nós essa violência é legitimada por razões que se dizem culturais. Nós ainda banalizamos muito facilmente. É ainda prevalecente a ideia de que a mulher é que é culpada, porque ela é quem provo-ca a violência. Ainda achamos que este assunto não tem a ver connosco, que é para ser denunciado pelas ONGs. Isto é,

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desresponsabilizamo-nos. Mesmo sen-do mulheres, achamos que este assunto tem a ver com os outros. Mesmo sendo homens, que têm mães, irmãs e filhas, achamos que isto não tem nada a ver connosco. OUTRA GUERRA - AS VIÚVASSugiro que leiam o livro de Fabrício Sa-bat, chamado “As viúvas da minha terra”, para ficarem com uma ideia do crime ge-neralizado que é cometido contra mulhe-res que vivem um momento dramático da sua vida. E nesse exacto momento de fragilidade, são assaltadas pelos próprios parentes. Levam-lhes os bens, os filhos, o sossego.

CASO DAS VELHASAcusadas de feitiçaria, roubaram-nas du-rante a vida, fizeram sumir a sua infân-cia e juventude e, no final, roubaram a possibilidade de uma velhice tranquila, usufruída com os netos e as lembranças. Está longínqua a imagem de África como um lugar especial porque os velhos são respeitados. GUERRA CONTRAOS GAYS E AS LÉSBICASMoçambique nem é dos países menos tolerantes. Há países que consideram formal e legalmente um crime o simples facto de ser ter uma orientação sexual di-ferente. Mesmo assim, há entre nós, uma enorme intolerância. CASO DOS DOENTES MENTAISNós estamos tão ocupados com outras doenças que esquecemos que não é ape-nas o HIV SIDA que tem implicações do ponto de vista do estigma social. As doenças mentais são outro mal não visí-vel. Não creio que existam estatísticas da prevalência de doenças mentais em Mo-çambique. Mas a média em África é de 14 por cento da população. ALBINOS Vou contar-vos um episódio real. Co-nheci um pedreiro que chamarei apenas por Fabião, que certa vez executou uma obra para minha casa. Um dia, uma moça albina veio à minha porta pedir água. O pedreiro desceu do escadote onde traba-lhava para me dar conselhos: “é melhor não dar, ou usar um copo que depois dei-ta fora”. Quando lhe perguntei porquê, ele respondeu: “aquela tjidajna é alguém que tem muitos problemas”. E reproduziu os habituais mitos e preconceitos sobre os albinos. No final confessou: “ainda bem que na minha família nós não temos disso».Passaram-se anos e a semana passada o mesmo Fabião ligou para mim a pergun-tar se era possível entrar sem convite na exposição “Filhos da Lua”, na Fortale-za de Maputo. Ele ouviu na rádio que a exposição tinha por tema “os albinos” e estava muito interessado em levar a sua filha a esse evento. “É que a minha filha nasceu albina.” Fabião não podia nunca imaginar ser pai de uma tjidjana. Mas foi. E ele agora, por amor a essa menina, que-

mim. Nessa altura, já não havia mais nin-guém para reclamar.”O segundo texto é um apelo na forma de verso, escrito pelo dramaturgo Bertolt Brecht: “Nós pedimos-vos com insistência:Nunca digam - Isso é natural.Diante das barbaridades de cada dia,Numa época em que corre sangueNum tempo em que a arbitrariedade tem força de lei,Num momento em que a humanidade se desumanizaNão digam nunca: Isso é naturalSe aceitamos as coisas como naturaiseste nosso mundo torna-se imutável Caros amigosO nosso tempo também está em guerra contra os jovens. À nossa frente, e não falo apenas de Moçambique, se anun-ciam tempos difíceis. À nossa frente está um futuro magro em que parece que ape-nas alguns podem caber. O que nos su-gerem é que briguemos uns com outros para ver quem cabe nessa estreita porta. Mas talvez seja possível criar um outro futuro mais amplo.Vão ser assediados. Por forças políticas que estão mais preocupadas com o Poder do que com a resolução efectiva dos pro-blemas. Por forças que se lembram dos jovens quando se trata de colher votos. Por forças que falam aos jovens, não fa-lam com os jovens.Vocês são jovens. Ser jovens é uma con-dição inerente, que se exerce sem esfor-ço. Mais do que jovens, sejam diferentes. Tragam para o nosso tempo o inespera-do, o que é novo, o que é historicamente produtivo.Uma nova classe está povoando o po-der político em Moçambique. São os papagaios. Reproduzem o discurso dos chefes. A maior parte deles são jovens. Mas são jovens de alma envelhecida. Os papagaios podem pensar que o seu futu-ro está assegurado porque olham o país como se fosse um aviário. Mas o nosso futuro como nação não se constrói senão com ousadia, com vitalidade e um infini-to respeito pelos outros.Ficamos muitas vezes à espera, ficamos à espera que o governo faça. Temos medo de tomar iniciativa. Achamos arriscado. Não agimos porque dizemos que faltam recursos, falta orçamento, falta autoriza-ção do chefe. Mas existem lições que pa-recendo pequenas podem tocar alguém para toda a vida.O professor primário que leu uma redac-ção sobre as mãos calejadas de sua mãe não imaginava que estaria marcando para sempre um aluno seu. O poeta William Henley não poderia imaginar que versos seus poderiam sustentar, cem anos mais tarde, a vontade de lutar de um africano que iria mudar o destino de milhões de pessoas.Fazemos o que fazemos não porque se-jam grandiosas iniciativas mas porque necessitamos mudar as coisas e melhorar o mundo. Fazemos o que fazemos por-que, como diz o poema, nós queremos ser donos do nosso destino e capitães da nossa alma colectiva.

ria enfrentar junto com ela os preconcei-tos que ele mesmo guardava dentro de si. Chamei Fabião e ofereci-lhe que levasse para a sua filha dois discos. Um de Salif Keita, outro do nosso Aly Fake. E disse “esses são os melhores copos de água. Re-frescam a alma”.Muitas vezes pensamos que essas dife-renças vivem fora de nós. A diferença está dentro de nós. Um em cada 35 mo-çambicanos é portador do gene do albi-nismo. Um em cada 35 pessoas é porta-dor dessa gente. Nenhum de nós sabe à partida se poderá ser pai ou mãe de uma criança albina. GUERRA COM OS MORTOSAté aqui falei de conflitos com mulhe-res, crianças, velhos. Mas todos esses segmentos sociais são compostos por gente viva. O mais triste é que a nossa sociedade entrou em guerra com os seus próprios mortos. Este é o sintoma mais grave da nossa patologia social: passa-mos a maltratar até os nossos mortos. O que acontece nos nossos cemitérios é um atentado contra os mais básicos princípios morais. As famílias enterram os seus entes queridos e são obrigadas a retirar o mais ínfimo valor que acom-panhe o falecido. Sabem que no dia se-guinte, o caixão foi assaltado, o morto foi despido. As próprias jarras de flores são quebradas antes de serem colocadas para prevenir que sejam roubadas e ven-didas. Não contentes em assaltarem os

vivos, há gangs que se especializaram em roubar os mortos. Nem depois do último suspiro estaremos a salvo dos la-drões. Meus amigosEu disse que estávamos em guerra con-nosco mesmos. Esta guerra doméstica compõe-se de duas violências. A violên-cia daqueles que agridem. E a violência dos que se calam. Marthin Luther King disse O que me entristece não é apenas o clamor dos homens maus. É o silêncio dos homens bons.A lista das nossas guerras domésticas estende-se por mais domínios. Os exem-plos que escolhi ilustram o facto de que não somos a sociedade pacificada que pretendíamos ser. Há um percurso enor-me a percorrer e esse caminho é sobre-tudo uma viagem interior. Essa viagem só acontecerá se vocês souberem ver, souberem não aceitar. Tudo o que aqui disse pode ser resumido em dois textos pequenos de autores alemães. Peço-vos que escutem. O primeiro é uma parábola e diz o seguinte:“Um dia, vieram e levaram o meu vizi-nho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vie-ram e levaram o meu outro vizinho, que era comunista. Como não sou comunis-ta, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram o meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomo-dei. No quarto dia, vieram e levaram-me

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ZHUJIAJIAO FICA situada ainda dentro do mapa urbano do grande município de Xangai, uns cinquenta quilómetros a oeste dos arranha-céus de Pudong, alguns deles os maiores do mundo. E que diferença!... É uma vila pacata e repousante encostada a nove colinas que cresceu, nobre e nostálgi-ca, em volta do lago Dianshanhu, cruzada por pequenos canais, atravessada por trin-ta e seis pontes de pedra, cortada por nove ruas, tudo números auspiciosos de acordo com o fengshui, a geomância chinesa.Estamos num lugar com mil e setecentos anos de idade que, para bem do visitan-te, parece suspenso na roda, no carrocel da História. Que bom sair da confusão da megalómana Xangai e uma hora depois desaparecer por detrás das velhas casas da dinastia Ming encalhadas na berma do lago e dos canais, entrar no colorido do templo

taoista dos Deuses da Cidade, saudar de esguelha estas divindades onde quase tudo soa a falso, e depois deixarmo-nos conduzir por um gondolieri chinês, como os de Vene-za, numa barca pelas águas verde pálidas que afagam o coração do burgo. Por aqui ficar, num hotelzinho barato mas decente, adormecer em paz e sonhar com a Zhujiajiao de mil e quinhentos, do tem-po do nosso rei D. Manuel, povoada por gente laboriosa, pescadores, mercadores, camponeses e meninas de jade entre leques e lençóis de seda...Após curta viagem para norte, chegamos a Zhouzhuang, já na província de Jiangsu. Outra pequena cidade também mergulhada no alicerce dos séculos, entre lagos, rios e canais. Na primeira visita, no Verão de 2004, trouxe sete valentes portugueses. Viemos desde Xangai meio à aventura, num au-tocarro público cheio de chineses e, para alvoroço e prazer de todos, por aqui en-

caminhámos nossos passos no fascínio de mais um pedaço exemplar da China mile-nar. Fazia muito calor e prometi aos meus companheiros que, para o almoço, havia de descobrir um restaurante com ar con-dicionado e vista sobre os canais e o velho burgo. Junto a Shuangqiao, na Dupla Pon-te que data da dinastia Yuan (1279-1368), lá estava uma simpática e vetusta casa de comidas. No primeiro e único andar, com janelas envidraçadas sobre um dos canais, existia uma sala só para nós, com um ru-dimentar mas funcional ar concidionado. A lista de iguarias estava toda escrita em chinês, os nomes eram arrevezados, wo pu tong, “eu não entendo”. Fui à cozinha es-colher a comida. A especialidade do lugar são uns deliciosos pernis de porco assados temperados com especiarias da região, primos afastados dos eisbein alemães e dos pernis que conhecemos por terras lusas. Atabancámos e enchemos a mesa com per-na de porco e mais uma dezena de capri-

chosos pratos de comida regional, delícias locais. Comemos como ricos mandarins em viagem, bebemos uma enormidade de cervejas bem geladas e limpámos uma gar-rafa de Wuliangye, uma aguardente obtida a partir da fermentação de cinco cereais, com 52 graus, famosa em toda a China. Não saímos todos do restaurante a cantar o “Bailinho da Madeira”, porque enfim, era preciso manter um certo decoro lusitano.Regressei a Zhouzhuang em 2009, para estadia mais prolongada. Deu para visitar serenamente o templo budista de Quanfu, da Felicidade Completa. Aí, reclinado no sorriso de Buda, esvaziei a mente iluminado pela brisa do vazio e deixei a alma levitar por estas terras planas do arroz e do pei-xe. Dormi num hotelzinho de três estrelas, bem enquadrado na arquitectura Ming e Qing da cidade, com as paredes das casas caiadas de branco e os telhados negros le-vemente revirados. Dentro das habitações, havia salões, quartos e uma sucessão de pá-

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tios e jardins. À noite fui assistir a um es-pectáculo de cantos e danças que teve lu-gar num palco enorme no cenário natural de um canal enquadrado pelas velhas casas de Zhouzhuang. Muita cor, barcos enfeita-dos, música estridente, quase duas centenas de pessoas em cena – aqui como em quase toda a China, a mão de obra é barata! – e o show terminou com um animado casamen-to à moda da terra. No final do espectáculo, fui tirar uma fotografia com a hong niang, a casamenteira, a imprescindível intermediá-ria nos matrimónios tradicionais chineses, e com a formosa noiva. Tongli, a vinte e cinco quilómetros de Zhouzhuang, já muito perto de Suzhou, apresentou recentemente a sua candidatura a cidade Património Mundial pela Unesco. Será talvez a mais bonita destas três mini--Venezas, toda rodeada por canais e com mais um grande lago a seus pés. Visitada na Primavera de 2011, deixou-me o travo amargo de não poder permanecer ali du-

rante uma semana, como seria recomendá-vel. Mas havia que continuar viagem rumo a Suzhou e a estada foi apenas de um dia, com almoço num restaurante velho de du-zentos anos – a antiguidade estava escrita na fachada, mas pode ser mentira! O pas-seio curto por esta típica vila aquática, 水 乡 shuixiang em chinês, deu para sentir as ambiências da bonita Tongli, retratada na paleta de pintores e, no papel, nos caracte-res sensíveis dos poetas.Na parte norte da terra existe um original museu da Antiga Cultura do Sexo que veio transferido desde Xangai e, pela sua rarida-de e originalidade, vale todas as penas vi-sitar. As fotos falam por si e basta ver na fotografia o contentamento desta jovem chinesa diante do vigor e potência do ma-cho acorrentado. Cinquenta e cinco pontes de pedra atra-vessam os canais em Tongli e três delas assumem-se como especialíssimas. Dão pelos nomes de Changqing ou da Longa

Vida, Jili ou dos Bons Auspícios, Taiping ou da Grande Paz. São sobejamente co-nhecidas porque, quando da realização de um casamento, os noivos devem-nas atravessar exactamente para garantir uma longa vida, bons auspícios e uma grande paz para os nubentes. O mesmo se aplica a uma criança que nasce e é ver o bebé nos braços da avó ou da mãe a atravessar as pontes.Na casa senhorial de Chongben, no meio de um harmonioso jardim, fui encontrar um conjunto de baixos-relevos em ma-deira com gravuras de “O Pavilhão do Ocidente”, a mais famosa peça de teatro da China escrita no século XIII e que foi a minha primeira tradução do chinês, já lá vão quase trinta anos. Como costuma acontecer nestes trabalhos, a publicação da peça passou ignorada e despercebida em Portugal.1

Depois caminhei em direcção ao grande lago e escrevi um poema:

As antigas vilas lacustres, água, pedra, jade mais o labor dos homens.Pontes ziguezagueiam ao acaso,canais e casas mergulham no alicerce dos séculos,templos, terraços, o canto das mulheres de Wu.Gentes da terra,os olhos acompanhando o fluir das águas,os corações batendo devagar, amando no beijo da brisa da Primavera,suando no calor húmido do Verão,recolhendo-se na noite luminosa de Outono,respirando a neve fria num Inverno triste.

Em Tongli, um barco e um velho pescador,sereno a caminho do lago,príncipe das águas e da névoa.

1 - Wang Shifu, O Pavilhão do Ocidente, trad. António Graça de Abreu, Macau, ICMacau, 1985.

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luz de inverno Boi Luxo

DER TOD DER MARIA MALIBRAN, 1972

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Bald bist du ein engel im himmel (em breve se-rás um anjo no céu)Descrição : Maria Malibran foi uma can-tora de ópera oitocentista nascida em Paris numa família de músicos de origem espanhola. Este filme de Werner Schroe-ter exibe, entre outros episódios, quadros relativos à vida e à figuração de Malibran, figura icónica da moda operática da época romântica. Da sua vida curta e excessiva e do seu temperamento colérico sai a cor vermelha que colora os lábios dos rostos do filme. Se este apenas a mais de meio se começa a debruçar mais directamen-te sobre a vida da famosa diva é porque ele, que é uma celebração aveludada da nobreza e da beleza da morte romântica, encontra outros modos de se apresentar que não sejam a narração linear. Curio-samente, alguns dos seus projectos mais radicais, de inícios dos anos 70, foram apenas possíveis graças ao apoio de um pequeno departamento experimental da ZDF.Terá a morte de Malibran sido causada pelo desenvolvimento das complicações que uma queda de um cavalo nela provo-cou, como se depreende da sua biografia? Ou terá esta origem na sua prodigiosa tessitura, como Schroeter insinua, uma es-pécie de morte causada pelo canto, uma espécie de morte causada por um excesso de arte? Os rostos que obsessivamente percorrem

esta história ilustram um ponto essencial do programa cinematográfico de Schro-eter (que foi também, inevitavelmente, encenador de teatro e ópera): a exibi-ção de um sentido do maravilhamento que não anda muito longe de uma ideia de uma arte “mais total” que a do cine-ma tradicional, a par da exibição de uma disponibilidade para o poder sugestivo do rosto. Assim fez Andy Warhol e as-sim fez o próprio Schroeter a propósito de um outro filme sobre a mais icónica de todas as cantoras líricas do século XX, outra Maria, outra figura excessiva, que a Malibran prefigura – Maria Callas. O fil-me é um filme de stills animados - Maria Callas Portrait (1968).Se outros autores alemães muitas vezes se utilizaram da ópera como elemento do excesso e do espectáculo, como Sy-berberg, Kluge, Straub e Huillet ou (mais conhecido) Herzog, nenhum é tão es-sencialmente operático como Schroeter. Nele, a ópera é essencial à gramática de toda a sua obra.Adjectivação : Der Tod der Maria Malibran é um filme musical insuportavelmente ro-mântico, de um sumptuoso romantismo de sabor alemão, abandonado e desespe-rado, quase tribal. Nele assistimos a uma longa récita sobre os momentos (que po-dem ser toda uma vida) que antecedem a morte. Este é o filme que todos os rea-lizadores desejaram fazer mas não ousa-

ram. Vejo um desejo idêntico em alguns instantes do doloroso As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de Fassbinder, um dos muitos admiradores alemães do cinema de Schroeter.Uma sucessão bestialmente desorgani-zada de rostos acusadores da nossa falta de compaixão e compreensão, um can-to desesperado à ausência e à falta, um exemplo perfeito da actualizção possível do sehnsucht alemão em imagens e música, uma tentação que encontramos deliciosa-mente desenvolvida num filme mais tar-dio, rodado em Portugal, Rosenkönig (não é o único).A falta deliberada de sincronia e o apa-rente desfazamento dos vários episódios que compõem o filme da Malibran, as mudanças bruscas de tom e de estilo, a diversidade das escolhas musicais - que varia entre a música séria e o exemplo kitsch ligeiro - ilustram a admiração por um outro génio animalesco e surreal, o de Lautréamont. Do encontro destes gostos - da disposição operática romântica (es-pecialmente italiana) e da música ligeira, do gesto vampírico, do surrealismo primi-tivo de Lautréamont, do paisagismo géli-do de Caspar David Friedrich - promana este produto lânguido e essencialmente bondoso cuja seriedade e delícia só pode-rão ser desfrutadas por aqueles com uma inclinação semelhante. Infelizes os que se não deixam tocar por este encantamento.

Conclusões : Este filme de Schroeter, recen-temente chegado à disposição do públi-co, pertence a um tipo de filmes extrema-mente necessários ao entendimento do papel do cinema actual. Nele se inscreve uma necessidade violenta de explorar o que nele deve ser puramente artificial e deliberadamente caótico. Nele se inscre-ve uma necessidade de entender o modo como a pura verdade pode ser inventada. Contra a ditadura do realismo e do seu cortejo de misérias. Depois de Der Tod Der Maria Malibran e Chronik der Anna Magdale-na Bach, 1968, de Straub e Danièle Huil-let, todos os filmes me parecem estúpidos e inúteis. A figuração da morte de Maria Malibran, que morreu tão nova, instiga apenas dois tipos de reacção ao cinema actual: o desprezo total ou uma militância violenta, a sua geometria poética de uma sinuosidade fluvial imparável. A sucessão sensual de tableaux vivants que Schroeter muito generosamente nos oferece (seria difícil imaginar realizador mais generoso) atravessa uma paisagem sentimental e na-tural inclementes. Com Der Tod Der Maria Malibran o realizador alemão condena-nos à busca da sua constante re-actualização.Este filme será sempre um anjo no céu.

Ps: decorre presentemente, entre dia 11 de Maio e dia 11 de Junho, no MoMA, em Nova Iorque, uma gigantesca retrospectiva da obra de Schroeter.

WERNER SCHROETER

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T E R C E I R O O U V I D O

UMA CONVERSA NO TEXASCOM A “INDIECHINA” EM FUNDO IINo último texto, a conversa da conferência que tinha por título “Why the Global Music Industry Needs China”, no festival norte--americano South by Southwest (SXSW), ficou no ponto em que os intervenientes repetiam as pa-lavras que ouvimos muitas vezes da boca de empresários ociden-tais com olho posto no Império do Meio: o negócio da música, na China, “é um investimento e tem que haver uma visão de longo pra-zo”, pois “as coisas acontecem de-vagar”, observava Tony Ward, an-tigo executivo de várias editoras multinacionais sedeado em Hong Kong, cidade a partir da qual di-rige a empresa de consultadoria e “marketing” musical Man On the Ground.Se é verdade que, na China, por regra, o retorno dos investimentos surge a passo de caracol, o mesmo não se pode dizer do ritmo de de-terminadas dinâmicas sociais.Tomemos o exemplo dos festivais de música. Há poucos anos, em toda a China havia uns três ou quatro – o primeiro inteiramente dedicado a música electrónica re-alizou-se em 2009. Actualmente, estima-se que haja cerca de 150 festivais organizados em cidades de todo o país. Esta verdadeira explosão é encarada de forma po-sitiva tanto por parte das bandas chinesas como de bandas estran-geiras.Neste contexto, parece óbvio que a indústria da música precisa do país mais populoso do mundo. Li Si Si, fundadora da S.T.D. Promo-tions, uma das maiores empresas de promoção de eventos musicais da China, entende que qualquer indústria verdadeiramente glo-bal precisa da China, “um grande mercado de consumo”, para afir-mar-se. Da perspectiva das bandas e das próprias editoras, acrescenta Tony Ward, “as actuações ao vivo são cada vez mais importantes” enquanto fonte de receitas, devi-

do à quebra das vendas de discos. Por isso, “fazer uma digressão na China representa uma grande oportunidade”. No país, observa Ward, há cerca de uma centena de cidades com mais de um milhão de habitantes. Em muitos aspectos, a China apresenta um crescimento incon-sistente, ora pautando-se por mu-danças bruscas sem impacto pro-fundo ou duradouro, ora por mu-danças de grande significado, mas que demoram demasiado tempo a tomar forma. Na opinião de Josh Feola, norte--americano que vive na China, onde trabalha na promoção da música experimental e “avant--garde”, há a reter duas mudan-ças essenciais: por um lado, pela primeira vez na história da mú-sica alternativa chinesa, há hoje bandas que reclamam influências de outras bandas chinesas – “um pólo geracional cativa mais jo-vens” –, algo que Feola conside-ra “prometedor”. Por outro lado, uma mudança ainda mais recente, “com um ano ou menos”, nota Fe-ola, está relacionada com o cada vez maior número de edições e iniciativas feitas de acordo com um princípio “sagrado” dos tem-

pos áureos do Punk, o DIY (“Do It Yourself”). O fenómeno, diz Feola, é novo, mas está por todo o lado: jovens que estabelecem editoras DIY, que vendem cassetes e discos de vinil que eles próprios editam. Para Feola, o movimento é um si-nal de que “estes jovens entendem a música, sobretudo, como uma forma de arte. Valorizam o produ-to físico, produtos pensados, con-cebidos do princípio ao fim.” No limite, isto significa que as pesso-as vão encarar e pensar na música “como uma forma de expressão”, o que irá atrair “pessoas criativas” para todo este processo.Esta espécie de regresso às origens que, na China, é transversal a ou-tras expressões artísticas, é bem vista, também, por Charles Sali-ba, o moderador do debate, e um dos fundadores da editora Maybe Mars, sedeada em Pequim, con-siderada a segunda maior editora independente da China. Saliba é o primeiro a admitir que a edito-ra “não dá dinheiro”. No entanto, diz, “a criatividade é incrível” e é isso que o faz mexer. Compara o que acontece na China com o que se passa na Europa e nos Estados Unidos, onde “os putos já não

olham para os 60 anos de cultura popular, de história do rock, mas apenas ouvem o que está a dar no momento, o que está na moda.” Isso, aponta Saliba, faz com que as bandas soem todas iguais. Na China, isso não acontece, e Saliba dá o exemplo da própria Maybe Mars, em que não há duas bandas com o mesmo tipo de som ou de influências. O optimismo acabou por ser o tom geral do debate, que contou ainda com a participação de Xi Chen, vocalista da banda Snapli-ne, presente na mais recente edi-ção do SXSW.Foi Xi que contou que “já há clu-bes com música ao vivo nos bair-ros universitários”, uma verdadei-ra revolução se tivermos em conta que nas universidades chinesas entra-se apenas para duas coisas: estudar e estudar.O vocalista mostrou-se convenci-do de que “a mentalidade dos jo-vens está a mudar no sentido em que estão mais interessados em melhoras, são mais críticos e mais participativos”. Mas, quando vão os putos ame-ricanos e europeus ter quatro ou cinco bandas chinesas nos seus leitores de mp3?

próximo oriente Hugo Pinto

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metrópolis Tiago Quadros*

VILLA HYUGA

O DIÁRIO japonês de Bruno Taut contém a seguinte entrada para 20 de Setembro de 1936: “Domingo, com um grupo de amigos e o escritor, e fotógrafo, da “Asahigraph” (“revista ilustra-da de Tóquio”) fomos a Atami, a casa de Hyuga. Finalmente, também aqui, depois de cinco anos, o que tantas vezes tivemos o prazer de fazer em Berlim: revelar uma construção acaba-da ao olhar crítico de amigos e pessoas queridas... Eu também estava cheio de curiosidade, animado e feliz por me encon-trar lá, perante o meu trabalho, concluído em todos os seus de-talhes ... “.

O projecto para a conclusão da Villa Hyuga não é apenas a única obra de arquitectura rea-lizada por Bruno Taut durante a sua permanência, de dois anos e meio, no Japão. É também o seu primeiro trabalho depois de cinco anos de inactividade, após as dificuldades em Moscovo, e a sua última obra a ser concluída em detalhe. No mesmo período, durante o qual Taut trabalhou no projecto da Villa Hyuga, en-tre meados de Abril de 1935 até finais do mês de Julho de 1936, Taut também havia concluído sucessivas fases de trabalho na fachada e projectado o mobi-liário e tapetes da Villa Okura. Este edifício havia sido desenha-do pelo seu amigo, o arquitecto Gonkuro Kume.

A habitação do casal Hyuga, localizada na cidade de Atami, na costa do Pacífico a oeste de Tóquio, tinha sido projectada, em 1934, pelo seu proprietário com base em critérios de funcio-nalidade e bom gosto. O Senhor Hyuga tinha sido capaz de com-binar, com grande clarividência, pavimentos de madeira para ca-deiras e plataformas elevadas a 35 cm para tatamis, fazendo com que os dois estilos de vida japo-nesa fossem possíveis na mesma sala: pessoas sentadas em tatamis e outras sentadas em cadeiras. Taut foi surpreendido por esta

conjugação quando pela primei-ra vez visitou a casa: “Que invul-gar… na casa do Senhor Hyuga, ele e a sua mulher sentam-se em tatamis, enquanto que nós nos sentamos em cadeiras, de frente para eles” (18 de Abril de 1935). Fazer uma casa japonesa moder-na significava alcançar uma espé-cie de síntese entre uma lingua-gem arquitectónica “ocidental” e um estilo arquitectónico japonês. Em resultado da utilização de ca-deiras e também de mesas mais elevadas, do que os habituais 25-30 cm usados com os tatamis, Taut sentiu, por exemplo, a ne-cessidade de propôr tectos mais altos.

A Villa Hyuga está situada numa encosta íngreme, benefi-ciando de uma impressionante vista do Oceano Pacífico. Com vista a criar espaço para um rel-vado, em frente da casa, Hyuga tinha construído uma plataforma artificial, com cerca de 8 metros de altura e 25 metros de largu-ra, assente numa base em betão armado delimitada por uma pa-rede de um metro de altura e coberta com telhas. A missão de Taut era completar o longo espa-ço criado como uma subestrutu-ra após a inserção da fundação. A encomenda da obra chegou através de um admirador de Taut e amigo de Hyuga que também contribuiu para o financiamento da obra, Tokugen Mihara. Os espaços por baixo do “jardim suspenso” não deviam ser espa-ços de vida do dia-a-dia, mas antes salas para festas e entrete-nimento, também adequadas a actividades tradicionais, como a cerimónia do chá. Taut dese-nhou três salas, duas “ocidentais” e uma japonesa.

A primeira sala, para dançar e jogar pingpong, é compos-ta por duas secções quadradas. O efeito é agradável, apesar da estrutura rígida do ângulo rec-to. Uma porta de correr separa e une a sala de entretenimento “barulhenta” e um segundo espa-ço, mais intimista. O tecto cinza

claro é mais alto do que nas ou-tras salas, recebendo iluminação indirecta a partir de uma cornija que se projeta para baixo. A sala japonesa é mais abstracta e aus-tera. Está separada da “zona de estar” por grandes portas de cor-rer cobertas com papel, enquan-to que a parede superior, perme-ável ao ar, é coberta com uma grelha muito fina inserida numa armação de madeira. A sala ja-ponesa pode ser completamen-te aberta para o mar e para uma varanda lateral, parecendo estar suspensa como uma ilha sobre o piso inferior dos quartos vizi-nhos.

Numa carta ao seu colega Martin Wagner, que se tinha mudado para Istambul em Junho de 1936, Taut não esconde um certo orgulho a propósito da sua condição nos três anos anterio-res: “Eu construí um grupo de espaços em estilo clássico japo-nês, extremamente austeros na sua simplicidade e proporções, e ao mesmo tempo eu organizei--os por forma a que a grande parede com portas de correr se abrisse para as duas salas moder-nas, espaços com pavimento em madeira. Eu ficaria feliz se você pudesse ver a obra realizada”.

Certamente que Bruno Taut não foi capaz de aplicar todo o seu conhecimento nesta peque-na obra de arquitectura, mas o arquitecto germânico tinha que se sustentar, projectando todo o tipo de objectos de consumo. Taut tinha esperanças que Mar-tin Wagner o pudesse ajudar a sair do Japão. E foi precisamente graças a Wagner que, em No-vembro de 1936, Taut foi capaz de assumir o cargo de director do Departamento de Arquitec-tura da Academia de Belas Artes, e de director do Departamento de Escolástica e da Universidade de Construção do Ministério da Cultura de Instambul.

*Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa

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À S U P E R F Í C I E

Noam ChomskyIn Truthout

O ENSINO público está sob ataque em todo o mundo e, em resposta, realizaram--se protestos estudantis recentemente na Grã-Bretanha, no Canadá, no Chile, em Taiwan e noutros países.A Califórnia também é um campo de batalha. O  The Los Angeles Times  in-forma sobre outro capítulo da campanha para destruir o que foi o maior sistema de ensino superior público do mundo: “Funcionários da Universidade Estadu-al da Califórnia anunciaram planos para congelar as matrículas na próxima prima-vera, na maioria dos campus, e para pôr em lista de espera todos os candidatos no próximo outono, dependendo do que for decidido sobre uma iniciativa fiscal na eleição de novembro.”Cortes de financiamento semelhantes es-tão a ocorrer em todo o país. “Na maio-ria dos estados”, diz o New York Times, “são os pagamentos de propinas, não o dinheiro do estado, que cobrem a maior parte do orçamento”, de forma que “a era dos quatro anos nas universidades públi-cas a preços acessíveis, pesadamente sub-sidiadas pelo Estado, pode ter acabado”.As faculdades comunitárias enfrentam cada vez mais problemas semelhantes – e os cortes de financiamento chegam ao ensino secundário.A ideia de que beneficiamos, como na-ção, de uma educação superior, foi subs-tituída pela crença de que são aqueles que recebem a educação que se benefi-ciam dela em primeiro lugar e por isso devem pagar a conta”, conclui Ronald G. Ehrenberg, administrador do sistema da Universidade Estadual de Nova York e diretor do Cornell Higher Education Re-search Institute.A descrição mais precisa, penso eu, é “Erro de projeto” [Failure by Design], o título de um estudo recente do Econo-mic Policy Institute, que desde há muito é uma importante fonte de informação confiável e de análise do estado da eco-nomia.O estudo do EPI reexamina as conse-quências da transformação da economia, há uma geração, da produção domésti-ca à financeirização e à transferência da produção para outros países. Por projeto; sempre houve alternativas.Uma primeira justificação para o projeto é o que o prémio Nobel Jospeh Stiglitz cha-mou de “religião” que afirma que “o mer-cado leva a resultados eficientes”, e que recentemente enfrentou mais um revés es-magador com o colapso da bolha imobili-

O ATAQUE AO ENSINO PÚBLICOOs cortes de financiamento, os aumentos das propinas, a empresarialização das universidades, a instituição do ensino para o teste e outros mecanismos que pretendem destruir o interesse dos estudantes e moldá-los, são exemplos deste ataque

ária, ignorada por princípios doutrinários, desencadeando a atual crise financeira.Houve também denúncias de alegados benefícios da expansão radical das insti-tuições financeiras desde os anos 70. Uma descrição mais convincente foi dada por Martin Wolf, correspondente económi-co sénior do Financial Times: “Um sector financeiro fora de controlo está a devorar a moderna economia de mercado desde dentro, tal como uma larva da marabunta come o hospedeiro onde foi depositada.”O estudo da EPI observa que o “Erro de Projeto” tem uma base de classe. Para os projetistas, foi um clamoroso sucesso, tal como revela a espantosa concentração de riqueza no 1% de topo, de facto no 0,1%, enquanto a maioria foi reduzida à virtual estagnação ou ao declínio.Em resumo, quando têm oportunidade, “os Senhores da Humanidade” aplicam a sua “máxima vil” – “tudo para nós e nada para os outros”, como há muito explicou Adam Smith.O ensino público massificado é uma das grandes conquistas da sociedade ameri-cana. Teve muitas dimensões. Um objec-tivo foi preparar agricultores indepen-dentes para a vida de trabalhadores assa-lariados que tolerassem o que encaravam como virtual escravidão.O elemento coercivo não passou desper-cebido. Ralph Waldo Emerson observou que os líderes políticos defendem a educa-ção popular porque temem que “Este país está a encher-se de milhares e milhões de eleitores, e é preciso educá-los para os manter longe das nossas gargantas.” Mas educados de forma correta: limitando as suas perspetivas e compreensão, desenco-rajando o pensamento livre e independen-te e formando-os na obediência.A “máxima vil” e a sua implementação provocaram regularmente uma forte re-sistência, que por seu lado despertou os mesmos temores entre a elite. Há 40 anos, houve grande temor de que a po-pulação se estivesse a libertar da apatia e da obediência.

No extremo internacionalista liberal, a Comissão Trilateral – um grupo políti-co não governamental a partir do qual foi desenhada em grande parte a admi-nistração Carter – tornou públicas em 1975 sérias advertências de que havia demasiada democracia, em parte devido a erros das instituições responsáveis pela “doutrinação dos jovens”. Na direita, um importante memorando de 1971, assina-do por Lewis Powell, dirigido à Câmara de Comércio dos EUA, o principal lóbi empresarial, lamentava que os radicais estavam a tomar tudo – universidades, média, governo, etc. – e apelava à comu-nidade empresarial para que usasse o seu poder económico para reverter o ataque ao nosso apreciado modo de vida – que ele bem conhecia. Como lobista da in-dústria do tabaco, conhecia bem o Esta-do paternalista para com os ricos ao qual chamava de “mercado livre”Desde então, muitas medidas foram to-madas para restaurar a disciplina. Uma é a cruzada pela privatização – pondo o controlo em mãos confiáveis.Outra foi o grande aumento das propi-nas, até perto de 600 por cento, desde

1980. Este aumento produziu um sistema de ensino superior com “muito mais es-tratificação económica do que em qual-quer outro país”, segundo Jane Wellman, ex-diretor do Delta Cost Project, que monitoriza estas questões. Os aumentos de propinas empurram os estudantes para a armadilha das dívidas de longo prazo e, assim, a subordinação aos poderes pri-vados.Dão-se justificativas de base económica, mas muito pouco convincentes. Em pa-íses ricos e pobres, incluindo o vizinho México, as propinas mantêm-se gratui-tas ou simbólicas. Isto era assim também nos Estados Unidos, quando eram um país muito mais pobre, depois da Segun-da Guerra Mundial e muitos estudantes conseguiam entrar nas universidades sob a lei GI1 – um fator de crescimento eco-nómico singularmente alto, mesmo pon-do de lado o significado em termos de melhoria de vida.Outro dispositivo é a empresarialização das universidades. Esta levou a um dra-mático aumento das camadas da admi-nistração, muitas vezes recrutadas fora em vez de serem oriundos da faculdade, como antes; e a imposição de uma cultu-ra empresarial da “eficiência” – uma no-ção ideológica, não apenas económica.Um exemplo disto é a decisão das uni-versidade estaduais de eliminar os pro-gramas de enfermagem, engenharia e ciências da computação, porque são ca-ros – e acontece que são profissões onde há falta de mão de obra, como informa o The New York Times. A decisão pre-judica a sociedade, mas está de acordo à ideologia empresarial dos ganhos de curto-prazo sem consideração pelas con-sequências humanas, de acordo com a máxima vilUm dos efeitos mais insidiosos afetam os professores e monitores. O ideal das Lu-zes na educação era plasmado na imagem do ensino como uma corrente que os es-tudantes seguiam a seu modo, desenvol-vendo a sua criatividade e independência de espírito.A alternativa, a ser rejeitada, é a imagem de derramar água num vaso – muito fu-rado, como todos sabemos da experi-ência. Esta última abordagem inclui o ensino para o teste e outros mecanismos para destruir o interesse dos estudantes e procurar moldá-los, de forma a melhor controlá-los. Hoje, isso é tudo muito fa-miliar.

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gente sagrada José simões morais

O L H O S A O A L T O

O ANCESTRAL SHEN NONG

Os sacrifícios a Shen Nong fazem-se no dia 26 da quarta Lua, que este ano aconteceu a 16 de Maio e apesar de no templo de Lin Fong haver uma estátua, poucos são os que o reco-nhecem.Um dos três Ancestrais, que viveram no terceiro milénio antes da nossa era, foi Shen Nong que, como chefe de uma tribo, ficou com o nome de Yan Di. Oficialmente é dito que nasceu em Suizhou, hoje província de Hubei, mas outros reclamam ter sido em Baoji, em Shaanxi. Terá vivido entre 2852-2737 a.C. e era chefe da tribo Jiang.Shen Nong, como deus da Agricultura e Medici-na, representa o período em que a agricultura e os conhecimentos sobre as plantas têm um grande de-senvolvimento e por isso é considerado que deu uma nova visão à sociedade desse tempo, já virada para o comércio. Impul-sionador da agricultura, criador de instrumentos agrícolas e da confecção de roupas, Shen Nong descobriu o chá há cerca de 4750 anos, pois tinha o hábito de ferver a água antes de a beber. Ingeria plantas selvagens para classificar quais as co-mestíveis e as venenosas. Conta-se que num só dia foi envenenado 72 vezes, mas foi salvo por umas verdes folhas tenras, de um arbusto com flores bran-

cas. Segundo a história, a sua barriga transparente permitia observar o que se passava dentro dos seus in-testinos e estômago. Uti-lizou as ervas medicinais e ensinou ao ser humano as artes de curar, por isso se tornou também o Deus da Medicina. Está também ligado à tecelagem e à ce-râmica.Shen Nong é o terceiro dos três Ancestrais, sendo Fu Xi o primeiro e Nu Wa o segundo, casada para sal-var a humanidade com o seu irmão Fu Xi. E é a par-tir de Fu Xi e Nu Wa que se abarca Shen Nong, que pelas suas acções fizeram a transição dos arquétipos para o Neolítico. Com eles consciencializa-se um ci-clo que fechou e definem--se os novos espaços, esses que chegaram até aos nos-sos dias, apesar desse ciclo já também ter terminado.Conhecido em cantonense por San Nong é também denominado o Imperador Terrestre e um dos cinco Imperadores do Céu, o Vermelho, que se localiza a Sul, com a virtude do Fogo, simbolizando o Ve-rão.Nasceu em Suizhou, o seu mausoléu encontra-se no concelho de Yanling, na província de Hunan, e foi construído antes da dinas-tia Han, sendo renovado e ampliado em 1986. Shen Nong também é comemo-rado no dia 15 do primeiro mês lunar e nas festivida-des do duplo 9.

神农

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L E T R A S S Í N I C A S

HUAI NAN ZI 淮南子 O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

HUAI NAN ZI (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huai-nan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

Aquilo em que outrora assentava a ordem é hoje a base do caos.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 5

Quando os líderes políticos arruínam seus países e destroem as suas terras, indo eles mesmos morrer às mãos de outros e sendo motivo de troça para todo o mundo, tal sempre sucede por causa dos seus desejos.

* * *

Em tempos antigos, os governos exigiam pouco e as pessoas tinham o suficiente. Os soberanos eram benévolos e os seus ministros eram leais. Os pais eram gentis e os filhos obedientes. Todos agiam por amor e não existia ressentimento entre ninguém.

* * *

Nas guerras antigas não se matavam os jovens ou capturavam os velhos. Porém, aquilo que na antiguidade se considerava justo é hoje tido por risível. Aquilo que era considerado honrado outrora é hoje considerado vergonhoso. Aquilo em que outrora assentava a ordem é hoje a base do caos.Os chefes da mais alta antiguidade não ministravam castigos ou recompensas e, ainda assim, o povo não praticava o mal. Mas aqueles que hoje estabelecem governos não conseguem passar sem a lei para governar o povo. Um certo líder antigo subjugou as tribos desordeiras apenas através de uma dança marcial; porém, aqueles que hoje se encarregam

de acções de policiamento são incapazes de controlar os fortes e violentos sem recorrerem às armas.No espaço de uma geração, aquilo que é cultural e marcial pode mudar em ter-mos de significado relativo, desde que hajam ocasiões em que cada um seja útil. Porém, hoje em dia, os que seguem uma abordagem marcial desprezam a cultura e os cultos desprezam o que seja marcial. Os adeptos das artes marciais e culturais rejeitam-se uns aos outros, ignorando as suas funções assim como exigidas pelos os ditames dos tempos.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

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O SOL, A LUA E A VIA DO FIO DE SEDA

FERNANDA DIASU m a l e i t u r a d o

YI JING

A nova tradução do livro que há milénios ilumina a civilização chinesa