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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2759. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE NA SOMBRA DE CONFÚCIO

h - Suplemento do Hoje Macau #66

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 21 de Dezembro de 2012

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2759. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

NA SOMBRA DE CONFÚCIO

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INTRODUÇÃO

Basta querer para ser verdadeiramente humano.Ditos de Confúcio,VII.30. 1

Os Ditos de Confúcio (Lun Yu - 論語), erigidos em dogma por alguns manda-rins letrados, exerceram uma grande in-fluência sobre a mentalidade dos povos sinizados do Extremo Oriente. «  O ser humano dos Ditos de Confúcio » é uma selecção de pensamentos veiculados nos Ditos de Confúcio, selecção que realça as qualidades de um ser humano verda-deiramente humano e as tendências con-traditórias da natureza humana.

CONFÚCIO (551/479 A.C.) E NÓSNas suas conversações com os seus discí-pulos Confúcio revela a dupla identidade do espírito humano, espírito que ora se-gue as suas inclinações naturais egoístas ora sacrifica os seus interesses particula-res em nome do interesse geral, embora o motivo latente desse altruísmo aparente possam ser as vantagens individuais que se pensa retirar a medio ou longo prazo. Por meio de alguns conceitos, como os de justiça natural ou equidade, de ritual ou norma social e política, de tolerância, de boa fé, de generosidade, de virtude por excelência ou virtude de humanida-de e de pessoa de bem ou espírito no-bre Confúcio sintetiza a sua concepção de um mundo verdadeiramente humano. Quando se trata de questões metafísicas como a da essência da vida e da morte Confúcio reconhece modestamente a sua ignorância :O Mestre disse (XI.12.) : “ Não sabemos o que é a vida, como saber o que é a mor-te?”No nosso mundo em que a ciência é o símbolo universal do conhecimento ob-jectivo, que sabemos nós da vida e da morte?A não ser algumas leis que regulam os fenómenos de aparecimento e desapare-cimento dos seres vivos a ciência não dá nenhuma resposta objectiva à questão do sentido da vida e da morte. A falta de ex-plicação científica justifica a pluralidade

1 Ditos de Confúcio/ 话说孔子, publicação bilingue chinês/português de Daniel J.L. Carlier - Editora: Jornal Tribuna de

Macau, 2008.

das interpretações filosóficas e religiosas, mas se queremos uma resposta minima-mente objectiva temos que reconhecer a nossa ignorância, tal como Confúcio há mais de dois mil anos. Não é todavia um argumento racional para rejeitar a priori tudo o que não seja científico, duvidar do sentido dado à vida e à morte por uma religião ou uma filosofia não deve logi-camente implicar nem o repúdio nem o desprezo, a dúvida requer a imparcialida-de do juízo e a tomada em consideração de qualquer hipótese. Uma crença pode, até prova do contrário, conter alguma verdade. A consciência da nossa ignorân-cia exige o respeito de todos os credos: O Mestre disse (VI.22.) : “Respeitar os espíritos e os deuses mantendo as distân-cias, pode-se chamar a isso sabedoria.”Os instrumentos de que dispomos para compreender os seres humanos e tentar dar resposta às grandes questões da humanida-de são as várias linguagens que estes utili-zam e essencialmente as línguas que falam, condições da possibilidade do pensamento discursivo e de qualquer análise conceptual:O Mestre disse (XX.3.) : “Quem não en-tende o sentido das palavras não pode compreender os seres humanos.” Uma língua permite-nos reflectir sobre o que quer que seja, mas as suas palavras não são a expressão pura e simples de pensamentos evidentes, o seu sentido não corresponde necessariamente nem às ideias que evocam nem aos actos que sugerem, podem significar exactamente o contrário do que dizem e a sua relação com as atitudes e os comportamentos hu-manos é ambígua. Com o tempo, fonte da experiência humana, aprendemos a fa-zer a distinção entre o que é dito, a forma como o que é dito é dito, o pensamento que é suposto estar por trás do que é dito e a probabilidade do que é dito e supos-tamente pensado corresponder ao que é realmente pensado:O Mestre disse (XI.21.) : “Fala com de-terminação, sem dúvida, mas é um espíri-to nobre ou simplesmente um fingidor?”Conscientes da nossa ignorância e da di-ficuldade em compreender a natureza hu-mana, que via seguir para ser um espírito nobre, um ser verdadeiramente humano?Confúcio disse (XX.3.) : “Quem ignora o destino não pode vir a ser um espírito nobre.”

O SER HUMANO DOS DITOS DE CONFÚCIO

Introdução e tradução

danIel J.l. CarlIer

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Não será o destino o que determina a prio-ri a nossa existência, isto é a época em que nascemos, o lugar onde nascemos, o meio em que crescemos e a educação que rece-bemos? Ter consciência do nosso destino é o primeiro passo na via indicada por Con-fúcio para ser verdadeiramente humano, via cujo fundamento é o respeito pelo outro e em primeiro lugar pelos mais velhos:O Mestre You disse (I.2.) : “A piedade fi-lial e o respeito pelos mais velhos são as raízes da virtude!”Mas o respeito não é inato, é preciso ser educado segundo alguns princípios para aprender a respeitar os outros. Compete aos mais velhos educar os mais novos segundo esses princípios e compete à sociedade completar essa tarefa por meio do ensino que Con-fúcio já considerava como necessário para todos:O Mestre disse (XV.39.) : “Quanto ao ensino, é para todos sem discriminação.”

No entanto é legítimo perguntar porque razão querer ser verdadeiramente huma-no se a hipótese segundo a qual a vida e a morte não têm sentido é plausível. Para Confúcio há uma razão suficiente para querer ser verdadeiramente humano :O Mestre disse (IV.1.) : “É bom viver onde há humanidade.” É bom viver onde há humanidade, isto é onde os seres humanos se comportam de forma verdadeiramente humana. É uma razão suficiente para querer ser verdadei-ramente humano, razão que dá sentido à existência humana mesmo se esta parece não ter nenhum.

I. A virtude de humanidade (仁, ren) ou o ser verdadeiramente humano

I.2. O Mestre You disse: “A piedade filial e o respeito pelos mais velhos são as raí-zes da virtude!” 2

XVII.6. Zizhang perguntou a Confú-cio como ser verdadeiramente humano. Confúcio respondeu: “No mundo em que vivemos, ser verdadeiramente humano é ser capaz de pôr em prática cinco prin-cípios.” Perguntou-lhe quais eram e ele

2 有子曰:“孝弟也者,其為仁之本與”

respondeu: “A deferência, a tolerância, a boa-fé, a diligência e a generosidade.” 3

XIII.19. Fan Chi perguntou como ser verda-deiramente humano. Confúcio respondeu: “Sendo deferente na vida privada, diligente na vida pública e sempre leal.” 4

XIX.6. Zixia disse: “Aumentar os conhe-cimentos, firmar a vontade, questionar abertamente e reflectir profundamente, é onde se encontra a virtude.” 5

XIII.27. O Mestre disse: “A firmeza, a perseverança, a sinceridade e a prudência estão próximas da virtude.” 6

XII.1. Yan Yuan perguntou em que con-siste a virtude. Confúcio respondeu: “ A virtude consiste em dominar-se e seguir os rituais.” 7

3 子張問仁於孔子。孔子曰:“能行五者於天下為仁矣。”請問之。曰:“恭,寬,信,敏,惠。” 4 樊遲問仁。子曰:“居處恭,執事敬,與人忠。” 5 子夏曰:“博學而篤志,切問而近思,仁在其中矣。”

6 子曰:“剛,毅,木,訥近仁。”

7 顏淵問仁。子曰:“克己復禮為仁。”

O Mestre disse (XX.3.) : “Quem não entendeo sentido das palavras não pode compreender

os seres humanos.”

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VI.22. O Mestre disse: “O ser verdadei-ramente humano esforça-se primeiro, mais tarde é que colhe os frutos; assim é que se pode dizer que é verdadeiramente humano.” 8

XII.2. Zhonggong perguntou como ser verdadeiramente humano. O Mestre dis-se: “Não imponha aos outros o que não deseja para si.” 9

XII.22. Fan Chi perguntou como ser verdadeiramente humano. Confúcio res-pondeu: “Amando o próximo.” 10

IV.1. O Mestre disse: “É bom viver onde há humanidade.” 11

VII.30. O Mestre disse: “Basta querer para ser verdadeiramente humano.” 12

IV.4. O Mestre disse: “Basta querer ser verdadeiramente humano e para não ha-ver maldade!” 13

XIV.4. O Mestre disse: “Uma pessoa ver-dadeiramente humana é sem dúvida uma pessoa corajosa, mas uma pessoa corajo-sa nem sempre é uma pessoa verdadeira-mente humana.” 14

IV.2. O Mestre disse: “Uma pessoa ver-dadeiramente humana goza tranquila-mente a sua humanidade; uma pessoa inteligente põe em prática a sua hu-manidade.” 15

IX.29. O Mestre disse: “Os sábios não tem ilusões, os seres verdadeiramente hu-manos não vivem na ansiedade, as pesso-as corajosas não têm receios.” 16

VI.23. O Mestre disse: “Um ser inteli-gente é dinâmico; um ser verdadeiramen-te humano é sereno .” 17

IV.6. O Mestre disse: “Nunca encontrei ninguém que se dedicasse só ao bem nem ninguém que renunciasse totalmente ao mal.” 18

I.3. O Mestre disse: “Lisonjas e fingimen-tos têm pouco a ver com a virtude!” 19

XVII.8. O mestre disse: “O culto da vir-tude sem a dedicação aos estudos conduz à imbecilidade.” 20

XV.9. O Mestre disse: “Um coração no-bre nunca deixa de ser humano, oferece a sua vida em nome da humanidade.” 21

II. O espírito nobre (君子, junzi) e o

espírito vil (小人, xiaoren)

XIV.23. O Mestre disse: “O espírito no-bre dá mais valor aos bens espirituais, o espírito vil dá mais valor aos bens mate-riais.” 22

II.14. O Mestre disse: “Para um espírito nobre o interesse particular desaparece diante do interesse geral, para um espíri-to vil é o interesse geral que desaparece diante do interesse particular.” 23

IV.11. O Mestre disse: “Um espírito no-

8 子曰:“仁者先難而後獲,可謂仁矣。” 9 仲弓問仁。子曰:“己所不慾,勿施於人。” 10 樊遲問仁。子曰:“愛人。”11 子曰:“里仁為美。” 12 子曰:“仁遠乎哉? 我慾仁,斯仁至矣。” 13 子曰:“苟志於仁矣,無惡也。” 14 子曰:“仁者必有勇,勇者不必有仁。” 15 子曰:“仁者安仁,知者利仁。” 16 子曰:“知者不惑,仁者不憂,勇者不懼。” 17 子曰:“知者動,仁者靜。” 18 子曰:“我未見好仁者,惡不仁者。” 19 子曰:“巧言令色,鮮矣仁!” 20 子曰:“好仁不好學,其蔽也愚。” 21 子曰:“志士仁人,無求生以害仁,有殺身以成仁。” 22 子曰:“君子上達,小人下達。” 23 子曰:“君子周而不比,小人比而不周。”

bre espera que haja justiça, um espírito vil só espera obter favores.” 24

IV.16. O Mestre disse: “Um espírito no-bre sabe o que é justo, um espírito vil só sabe dos seus interesses.” 25

IV.10. O Mestre disse: “No dia a dia o espírito nobre não é nem rígido nem obs-tinado, conforma-se com o que é justo.” 26

XV.18. O Mestre disse: “ O espírito no-bre guia-se pela justiça.” 27

XV.21. O Mestre disse: “Um espírito no-bre é muito exigente consigo mesmo, um espírito vil é muito exigente com os ou-tros.” 28

XII.16. O Mestre disse: “Um espírito no-bre realça as qualidades e não os defeitos dos outros. Um espírito vil faz o contrá-rio.” 29

XIII.23. O Mestre disse: “Um espírito nobre procura a harmonia e não o con-formismo, um espírito vil procura o con-formismo e não a harmonia.” 30

XIII.26. O Mestre disse: “Um espírito no-bre tem dignidade mas não é altivo. Um espírito vil é altivo mas não tem digni-dade.” 31

VII.37. O Mestre disse: “Um espírito no-bre é generoso, um espírito vil é mesqui-nho.” 32

XII.19. O Mestre disse: “O espírito nobre é como o vento, o espírito vil é como a erva; Quando o vento sopra, a erva incli-na-se.” 33

XI.21. O Mestre disse: “Fala com de-terminação, sem dúvida, mas é um es-pírito nobre ou simplesmente um fin-gidor?” 34

I.8. O Mestre disse: “Um espírito nobre que se exalta não é tomada a sério; é oco o seu saber.” 35 XIII.3. O Mestre disse: “Um espírito no-bre não fala à toa.” 36

IV.24. O Mestre disse: “Um espírito no-bre fala com prudência e age com dili-gência.” 37 XIV.27. O Mestre disse: “Muita parra e pouca uva desonra um espírito nobre.” 38

XII.4. O Mestre disse: “ Um espírito nobre não tem inquietações nem receios.” 39

XV.2. O Mestre disse: “Um espírito no-bre não sucumbe à desventura.” 40

II.12. O Mestre disse: “Um espírito no-bre não é nenhum pote.” 41

III.7. O Mestre disse: “Um espírito nobre não rivaliza com ninguém, a não ser no tiro ao arco!” 42

XIX.7. Zi Xia disse: “Um espírito nobre estuda para encontrar o seu caminho.” 43

24 子曰:“君子懷刑,小人懷惠。”25 子曰:“君子喻於義,小人喻於利。”26 子曰:“君子之於天下也,無適也,無莫也,義之與

比。” 27 子曰:“君子義以為質。” 28 子曰:“君子求諸己,小人求諸人。” 29 子曰:“君子成人之美,不成人之惡。小人反是。” 30 子曰:“君子和而不同,小人同而不和。”

31 子曰:“君子泰而不驕。小人驕而不泰。” 32 子曰:“君子坦蕩蕩,小人長戚戚。”

33 子曰:“君子之德風,小人之德草。草上之風,必偃” 34 子曰:“論篤是與,君子者乎?色莊者乎?” 35 子曰:“君子不重,則不威;學則不固。” 36 子曰:“君子於其言,無所苟而已矣。”

37 子曰:“君子慾訥於言而敏於行。” 38 子曰:“君子恥其言而過其行。”

39 子曰:“君子不憂不懼。” 40 子曰:“君子固窮。41 子曰:“君子不器。” 42 子曰:“君子無所爭。必也射乎!” 43 子夏曰:“君子學以致其道。”

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XX.3. Confúcio disse: “Quem ignora o destino é incapaz de se tornar um espí-rito nobre.” 44

XII.24. Zeng Zi disse: “Graças à sua cul-tura um espírito nobre junta amigos, gra-ças aos seus amigos torna-se verdadeira-mente humano.” 45

VI.4. O Mestre disse: “Sempre ouvi dizer que um espírito nobre é uma pessoa que ajuda os pobres a sair da pobreza e não os ricos a tornarem-se mais ricos.” 46

VII.26. O Mestre disse: “Santos, nunca encontrei! Quando encontro um espírito nobre, já fico satisfeito.”VII.33. O Mestre disse: “Conhecimen-tos, tenho como toda a gente. Para ser um espírito nobre, falta-me muito.” 47

III. O ritual (禮, li) ou norma social e política

IV.13. O Mestre disse: “Um país pode ser governado por meio de rituais e con-cessões? Há alguma dúvida? Se não fosse possível governar um país por meio de ri-tuais e de concessões, para que serviriam os rituais?” 48

III.19. O duque Ding perguntou: “Como deve um monarca tratar os ministros e como devem os ministros servirem o monarca?” Confúcio respondeu: “O mo-narca deve tratar os ministros segundo os rituais e os ministros devem servir o mo-narca com lealdade.” 49

XIV.41. O Mestre disse: “Quando os di-rigentes respeitam as normas, o povo é bom cumpridor.” 50

II.3. O Mestre disse: “Governar com mo-ralidade e administrar segundo as normas torna o povo digno e cumpridor.” 51

III.15. O Mestre entrou no Grande Tem-plo e inteirou-se de tudo. Alguém co-mentou: “Quem é que disse que o filho do tal de Zou percebia de rituais? Entra no Grande Templo e inteira-se de tudo.” O Mestre ouviu e respondeu: “O ritual é isso mesmo!” 52

III.4. Lin Fang perguntou qual era a es-sência dos rituais. O Mestre disse: “Que pergunta! Numa cerimónia, a simplicida-de é preferível ao luxo; num funeral antes a dor do que o aparato.” 53

VIII.2. O Mestre disse: “Sem rituais a de-ferência torna-se enfadonha, a prudência não é senão timidez, a bravura é cega e a franqueza não passa de uma afronta.” 54

I.12. O Mestre You disse: “Nos rituais, o que importa é a harmonia.” 55

44 孔子曰:“不知命,無以為君子也。” 45 曾子曰:“君子以文會友,以友輔仁。” 46 子曰:“吾聞之也:君子周急不繼富。” 47 子曰:“文,莫吾猶人也。躬行君子,則吾未之有得。”48 子曰:“能以禮讓為國乎? 何有? 不能以禮讓為國,

如禮何? ” 49 定公問:“君使臣,臣事君,如之何?”孔子對曰:“

君使臣以禮,臣事君以忠。” 50 子曰:“上好禮,則民易使也。” 51 子曰:“道之以德,齊之以禮,有恥且格。”52 子入太廟,每事問。或曰:“孰謂鄹人之子知禮乎?入

太廟,每事問。”子聞之,曰:“是禮也。” 53 林放問禮之本。子曰:“大哉問!禮,與其奢也,寧

儉;喪,與其易也,寧戚。” 54 子曰:“恭而無禮則勞,慎而無禮則葸,勇而無禮則亂,直而無禮則絞。” 55 有子曰:“禮之用,和為貴。”

I.13. O Mestre You disse: “Quem respeita os rituais não sofre desonras.” 56

III.3. O Mestre disse: “Se não se compor-tarem humanamente, para que servem os rituais?” 57 XVII.11. O Mestre disse: “Falam e falam de rituais, mas falam apenas de jade e seda!” 58

XX.3. O Mestre disse: “Quem não co-nhece os rituais vive à margem da socie-dade.” 59

IV. O que se entende por estudar (學, xue) , saber (知, zhi)

e ensinar (教, jiao).

XV.31. O Mestre disse: “Estive um dia in-teiro em jejum e a noite seguinte em me-ditação. Para nada! Mais vale estudar! ” 60

VII.20. O Mestre disse: “Eu não nasci sá-bio, venero os Antigos e cultivo as Letras sem descanso.” 61

II.15. O Mestre disse: “Estudar sem re-flectir é inútil, reflectir sem estudar é pe-rigoso.” 62

VII.22. O Mestre disse: “As pessoas que caminham pelas ruas têm sempre algo para me ensinar: as suas qualidades ser-vem-me de exemplo e os seus defeitos de aviso.” 63

IX.30. O Mestre disse: “Estudar juntos não obriga a seguir o mesmo caminho; seguir o mesmo caminho não obriga a trabalhar juntos; trabalhar juntos não obriga a ter a mesmas opiniões.” 64

VIII.17. O Mestre disse: “Estudar é perse-guir o inatingível, com medo de o deixar escapar. ” 65

VII.17. O Mestre disse: “Se viver mais uns anos, aos cinquenta estudarei <O Livro Das Mutações>; serei então ca-paz de não cometer erros muito gra-ves!” 66

XIV.24. O Mestre disse: “Antigamente, estudava-se para aprender; hoje em dia, estuda-se para ostentar saber.” 67

IX.4. “Eram quatro as atitudes que o Mestre nunca admitia: As conjecturas, a arbitrariedade, a teimosia e a presun-ção.” 68

XI.12. O Mestre disse: “Não sabemos o que é a vida, como saber o que é a mor-te?” 69

II.17. O Mestre disse: “Saber é ter cons-ciência que se sabe quando se sabe e que não se sabe quando não se sabe!” 70

VI.22. O Mestre disse: “Tratar as pesso-as com justiça, respeitar os espíritos e os

56 有子曰:“恭近於禮,遠恥辱也。” 57 子曰:“人而不仁,如禮何?” 58 子曰:“禮云禮云,玉帛云乎哉!” 59 子曰:“不知禮,無以立也。” 60 子曰:“吾嘗 終日不食,終夜不寢,以思,無益,不如學也。”61 子曰:“我非生而知之者,好古,敏以求之者也。” 62 子曰:“學而不思則罔,思而不學則殆。”

63 子曰:“三人行,必有我師焉。擇其善者而從之,其不善者而改之。” 64 子曰:“可與共學,未可與適道;可與適道,未可與立;可與立,未可與權。” 65 子曰:“學如不及,猶恐失之。”

66 子曰:“加我數年,五十以學《易》,可以無大過矣。” 67 子曰:“古之學者為己,今之學者為人。” 68 子絕四:毋意,毋必,毋固,毋我。” 69 子曰:“未知生,焉知死?” 70 子曰:“知之為知之,不知為不知,是知也。”

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deuses mantendo as distâncias, pode-se chamar a isso sabedoria.” 71

XV.39. O Mestre disse: “Quanto ao en-sino, é para todos sem discriminação.” 72

VIII.8. O Mestre disse: “A poesia inspira, o ritual educa e a música forma” 73

VII.25. “Eram quatro os meios de ensino do Mestre: As Letras, os actos, a lealdade e a confiança.” 74

VII.1. O Mestre disse: “Eu transmito, não invento. Venero e amo a Antiguidade.” 75

II.11. O mestre disse: “Formar um novo saber depois de reler os Antigos é ter o dom de ensinar.” 76

V. Alguns ensinamentos tirados da leitura dos Ditos de Confúcio

V.20. Ji Wen Zi pensava três vezes antes de tomar uma decisão. Quando contaram ao Mestre, ele disse: “Duas vezes é sufi-ciente.” 77

XI.4. O Mestre disse: “Como é que o Hui me podia ajudar se nunca desaprovava o que eu dizia!” 78

XII.6. O Mestre disse: “Atingido por uma onda de calúnias e insultos, fica imper-turbável; pode-se dizer que é uma pessoa lúcida.” 79 VIII.10. O Mestre disse: “Exacerbada, uma pessoa desumana desatina.” 80

I.16. O Mestre disse: “Não se aflija por não ser compreendido, aflija-se por não compreender os outros.” 81

71 子曰:“務民之義,敬鬼神而遠之,可謂知矣。” 72 子曰:“有教無纇。” 73 子曰:“興於詩,立於禮,成於樂。” 74 “子以四教:文,行,忠,信。” 75 子曰:“述而不作,信而好古, 竊比於我老彭。” 76 子曰:“溫故而知新,可以為師矣。” 77 季文子三思而後行。子聞之,曰:“再,斯可矣。” 78 子曰:“回也非助我者也, 於吾言無所不說。” 79 子曰:“浸潤之譖,膚受之愬,不行焉,可謂明也已

矣。” 80 子曰:“人而不仁,疾之已甚,亂也。” 81 子曰:“不患人之不己知, 患不知人也。”

XIV.30. O Mestre disse: “Não se pre-ocupe com a sua falta de notoriedade, preocupe-se com a sua falta de compe-tência!” 82

XV.12. O Mestre disse: “Não pensar no futuro traz dissabores no presente.” 83

XIII.17. O Mestre disse: “A ânsia de pe-quenos lucros torna impossível a realiza-ção de grandes projectos.” 84

XIII.30. O Mestre disse: “Enviar um povo inculto para a guerra é deixá-lo ao aban-dono.” 85

IX.26. O Mestre disse: “Pode-se privar um exército do seu general, não se pode privar ninguém dos seus ideais.” 86

XI.16. O Mestre disse: “Tão mau é um excesso de zelo como uma falta a um compromisso.” 87

XII.3. O Mestre disse: “O que se faz com dificuldade pode ser dito sem ambiguida-de?” 88

XVI.11. Confúcio disse: “Viver num re-tiro em prol de um ideal, fazer da justiça um lema para a vida, ouvi tais palavras, nunca encontrei tais pessoas!” 89

II.22. O Mestre disse: “Não entendo como pode desempenhar as suas funções uma pessoa que não cumpre a sua pala-vra.” 90

XIV.20. O Mestre disse: “Quem fala por falar raramente cumpre a sua pa-lavra.” 91

XX.3. O mestre disse: “Quem não enten-de o sentido das palavras não pode com-preender os seres humanos.” 92

82 子曰:“不患人之不己知,患其不能也。” 83 子曰:“人無遠慮,必有近憂。” 84 子曰:“見小利,則大事不成。” 85 子曰:“以不教民戰,是謂棄之。” 86 子曰:“三軍可奪師也,匹夫不可奪志也。” 87 子曰:“過猶不及。” 88 子曰:“為之難,言之得無訒乎?”89 孔子曰:“隱居以求其志,行義以達其道。吾聞其語矣,未見其人也。”90 子曰:“人而無信,不知其可也。” 91 子曰:“其言之不怍,則為之也難。” 92 子曰:“不知言,無以知人也。”

XV.41. O Mestre disse: “Quanto às pala-vras, basta que sejam claras!” 93

XVII.2. O Mestre disse: “A Natureza une, os costumes separam.” 94

XVII.3. O Mestre disse: “Só os sábios e os idiotas é que nunca mudam.” 95

IX.18. O Mestre disse: “Nunca encontrei ninguém que preferisse a virtude aos en-cantos femininos.” 96 VI.29. O Mestre disse: “O princípio - No meio é que está a virtude - é excelente! Infelizmente há muito tempo que não é posto em prática!” 97

IX.25. O Mestre disse: “Adoptem a le-aldade e a confiança como princípios, não estimem aqueles que não mere-cem a vossa amizade, se cometerem algum erro não tenham medo de o emendar!” 98

XII.10. O Mestre disse: “A lealdade, a confiança e a procura da justiça são os caminhos da virtude.” 99

XIV.34. Alguém disse: “Retribuir o bem pelo mal, que tal?” O Mestre disse: “Que retribuir então pelo bem? Deve--se retribuir a justiça pelo mal e o bem pelo bem.” 100

VII.16. O Mestre disse: “Sem a justiça, as riquezas e as honrarias são apenas nuvens no céu.” 101

XIX.1. Zizhang disse: “É com espírito de sacrifício que o letrado encara o perigo e com espírito de justiça que olha para os seus interesses.” 102 II.24. O Mestre disse: “Não tomar as me-

93 子曰:“辭達而已矣。” 94 子曰:“性相近也,習相遠也。” 95 子曰:“唯上知與下愚不移。” 96 子曰:“吾未見好德如好色者也。”

97 子曰:“中庸之為德也,其至矣乎!民鮮久矣。” 98 子曰:“主忠信,毋友不如己者,過則勿憚改。”99 子曰:“主忠信,徙義,崇德也。”

100 或曰:“以德報怨,何如?”子曰:“何以報德?以直報怨,以德報德。” 101 子曰:“不義而富且貴,於我如浮雲。” 102 子張曰:“士見危致命,見得思義。”

didas que sabemos serem justas é uma forma de cobardia.” 103

I.13. O Mestre You disse: “Pode-se confiar numa pessoa que se guia pela justiça.” 104

XII.11. O duque Jing de Qi perguntou a Confúcio como governar. Confúcio respondeu: “O monarca deve comportar--se como um monarca, o súbdito como um súbdito, o pai como um pai e o filho como um filho.” 105 III.26. O Mestre disse: “Governantes in-tolerantes, cerimónias sem dignidade, funerais sem mágoa, como poderia eu suportar isso?” 106

XV.40. O Mestre disse: “Sem princípios comuns, é impossível ter projectos em comum.” 107

VII.27. “O mestre pescava à linha, não usava redes; na caça, nunca alvejava uma ave num poiso.” 108

IX.22. O Mestre disse: “Há rebentos que não dão flores e flores que não dão fru-tos!” 109

III.16. O Mestre disse: “O mais impor-tante no tiro ao arco não é atingir o alvo, pois a destreza dos archeiros di-fere muito. Era assim que pensavam os Antigos. ” 110

VI.17. O Mestre disse: “Alguém pode sair de um sítio sem saídas? Por que razão então andar fora do caminho?” 111

XV.29. O Mestre disse: “É o ser humano que engrandece o Tao e não o Tao que engrandece o ser humano.” 112

103 子曰:“見義不為,無勇也。” 104 有子曰:“信近於義,言可復也。” 105 齊景公問政於孔子。孔子對曰:“君君,臣臣,父父,子子。”106 子曰:“居上不寬,為禮不敬,臨喪不哀,吾何以觀之哉?”107 子曰:“道不同,不相為謀。” 108 “子釣而不綱,弋不射宿。” 109 子曰:“苗而不秀者有矣夫!秀而不實者有矣夫!” 110 子曰:“射不主皮,為力不同科,古之道也。” 111 子曰:“誰能出不由戶?何莫由斯道也?” 112 子曰:“人能弘道,非道弘人。”

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SE levarmos à letra uma asserção do poeta, tradutor, diplomata e pensa-dor mexicano Octavio Paz (1914-

1998), Prémio Nobel da Literatura de 1990, segundo a qual “política é poder e o poder é impuro”´, não há como discu-tir Ética e Política, pois uma palavra seria antagônica a outra. A partir dessa premis-sa, nenhum homem de bem poderia pen-sar em dar passos na política, pois essa prática equivaleria a entrar num lamaçal e manchar a sua honra. Mas, se todos os homens de bem se afastassem com a mão no nariz dos bastidores da política, com certeza, estaríamos condenados a ser go-vernados pelos piores elementos da es-pécie. Não foi isso que mostrou o século XX e mostra este começo de século XXI?No entanto, sem cair no nihilismo, é pos-sível discutir “Ética e Política no mundo contemporâneo”, como provam os en-saios, artigos e resenhas reunidos sob esse tema pela revista Estudos Filosóficos, do Departamento de Filosofia e Métodos (Dfime), da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), de Minas Gerais, em seu nº 6, de janeiro-junho de 2011.  No estudo “Estado e Nação no pensamento de Ortega y Gasset”, por exemplo, José Maurício de Carvalho, professor titular da UFSJ e doutor em Filosofia pela Uni-versidade Gama Filho, do Rio de Janeiro, procura examinar o significado do pen-samento do filósofo espanhol exposto a uma época em que a Espanha vivia numa encruzilhada que a tornava condenada a viver o terror da direita ou o terror da esquerda.Para Ortega y Gasset (1883-1955), se o Estado espanhol daqueles anos 30 precisava passar por uma reforma, essa não podia nascer de revoluções violen-tas, como aquela que ocorrera na Rús-sia em 1917 ou se gerava na Alemanha de então a partir do ovo da serpente hitlerista. No pensamento do filósofo espanhol, o resultado das revoluções é a revolta e ela não provoca transforma-ções profundas no tecido social, isto é, não compromete os cidadãos com as modificações na sociedade, lembra Carvalho, citando “Puntos esenciales” (1931), trabalho de Ortega y Gasset. “As mudanças importantes na vida so-cial necessitam do consentimento e da adesão livre do cidadão”, dizia o filó-sofo espanhol. Em outras palavras, as revoluções pouco favorecem a reorga-

Adelto GonçAlvesin Saberes Interdisciplinares

nização social, “pois transformações só são consistentes em política quando chegam sem o uso da força e conven-cem pessoas”.No ensaio “Em diálogo com as filoso-fias políticas de Hannah Arendt e Leo Strauss”, os professores Emília Agnes Assis de Lima, da Faculdade Cenecista de Sete Lagoas-MG, mestre em Filoso-fia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Fábio Abreu dos Passos, do Instituto Presidente Tancre-do de Almeida Neves (IPTAN), de São João del-Rei-MG, doutor em Filosofia pela UFMG, analisam as influências que Hannah Arendt e Leo Strauss  so-freram da época em que se formaram - ou seja, a experiência política da Re-pública de Weimar (1919-1933), seu fracasso e a ascensão do nazismo - bem como as respectivas voltas que empre-enderam em pensamento à Grécia an-tiga.Os autores lembram que contra a ideia do senso comum de que a política é uma teia de velhacaria, tecida a partir de in-teresses próprios e mesquinhos, e que a política é apenas um meio para a con-servação e fomento da vida em socieda-de, conforme o pensamento de Hannah Arendt (1906-1975), há o paradigma da polis  grega segundo o qual a política é erigida com o intuito de preservar a me-mória dos factos e palavras daqueles que se aventuravam a entrar o espaço públi-co, paradigma que, de certa forma, apro-xima as filosofias de Hannah Arent e Leo Strauss (1899-1973).Como se sabe, a polis grega era um espa-ço no qual cada indivíduo podia manifes-tar aos demais ouvintes como o mundo aparecia para ele, ou seja, podia colocar o seu ponto de vista, que podia entrar em conflito ou em concordância com os demais, sem, contudo, anular-se ou submeter-se. Para Arendt, a pluralidade de opiniões era a “lei da terra”. Sem esse espaço público, não haveria possibilida-de de vida saudável.A partir daí, os autores concluem que Arendt e Strauss radicalmente desapro-vam os fundamentos da democracia mo-derna e que, ambos, cada um a seu modo, fazem da antiguidade grega e de sua ex-periência política no âmago da polis um referencial para se pensar os “tempos sombrios” e para apontar os verdadeiros fundamentos da “dignidade política”. Ao mesmo tempo, os dois filósofos perce-bem na modernidade uma manipulação e uma sujeição da opinião à construção de ideologias, “pois se a opinião pública

é manipulada, não há filosofia política, pois é dela que nasce a filosofia política”. Ou seja, é pela opinião que se manifesta como o mundo aparece para cada um. Já no ensaio “Espaço público, política e ação comunicativa a partir da concep-ção habermasiana”, os professores Luiz Ademir de Oliveira, da UFSJ, doutor em Ciência Política pelo Instituto Uni-versitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), e Adélia Barroso Fernandes, do Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-BH), doutoranda em Linguistíca pela UFMG, discutem o pensamento do filósofo Jürgen Habermas (1929), espe-cialmente a sua teoria da acção comu-nicativa, de 1981, que representa uma ruptura com o pensamento da Escola de Frankfurt, da qual o pensador alemão era considerado um dos herdeiros.Os professores lembram que, para Ha-bermas, a decadência da esfera pública está associada à consolidação do capi-talismo e à emergência de grandes con-glomerados de comunicação de massa. Foi a partir da hegemonia da burguesia que o capitalismo passou, sob o domí-nio das grandes empresas, a forçar o Es-tado a intervir no sector privado, a fa-vor da economia de mercado. De fato, há poucos anos, não havia dia em que os editoriais de grandes jornais brasi-leiros não defendessem um Estado cada vez menos intervencionista, deixando que as forças do mercado agissem li-vremente.Hoje, já não é assim. Cada vez mais o mercado livre tem sido substituído por mercados oligopolizados, com a am-pliação das diferenças sociais entre pro-prietários e assalariados. Até mesmo a privatização que sempre foi considerada uma panaceia contra o inchaço do Esta-do, hoje, na verdade, representa mais a tomada de bens públicos por pequenos grupos privados, tal como aconteceu na Rússia pós-soviética, ou seja, a usurpação de bens públicos para atender a interes-ses privados.De qualquer modo, essa prática não deixa de ser vista como dos males o menor, já que o contrário é a apropria-ção de empresas públicas por partidos políticos ou por lideranças oriundas do movimento sindical, com o lotea-mento de cargos por pessoas desqua-lificadas, de baixa escolaridade, que se enquistam nessas organizações só para promover a corrupção em benefício próprio e de seus mentores, na maioria políticos profissionais. Isso só poderá ser superado quando deixarem de exis-

tir os chamados “cargos de confiança” e suas funções passarem a ser desempe-nhadas por profissionais aprovados em concurso públicos acima de quaisquer suspeitas.Com a privatização, o que se constata é que, negociada a empresa pública com grupos privados, a partir desse proces-so, a corrupção desaparece, ainda que a transferência sempre deixe um rastro de suspeitas quanto a possíveis comissões gordas depositadas em paraísos fiscais ou na Suíça. De qualquer modo, o con-solo que fica para o cidadão de bem é que essa será sempre a última vez que se vai ouvir falar de corrupção com dinhei-ro público ao menos naquela empresa. A partir daí, o problema, se corrupção houver, passará a ser assunto exclusivo dos novos proprietários, ou seja, de gru-pos privados.Diante disso, como bem observam os autores do ensaio, com base no pensa-mento de Habermas, surge o conceito de sociedade civil como saída para a reconstrução da solidariedade entre os grupos sociais. Composta por mo-vimentos e organizações livres não--estatais e não-econômicas, a socieda-de civil não quer o poder, mas tentar influenciar as instâncias do poder e a esfera pública geral, em favor dos me-nos favorecidos.Obviamente, toda organização humana é sempre susceptível à corrupção, como mostra o envolvimento das chama-das organizações não-governamentais (ONGs) com a corrupção do Estado, muitas delas criadas por políticos astu-tos apenas com o intuito de promover o desvio de recursos previstos em orça-mentos públicos. Seja como for, como dizem os autores do ensaio, os argumen-tos teóricos e conceituais de Habermas permitem mais bem compreender “as novas configurações sociais e os emba-tes travados entre o mundo sistêmico e o mundo da vida”.Além destes três ensaios, o dossiê “Ética e Política no mundo contemporâneo” traz mais cinco estudos que analisam não só o crescimento da força do Estado nos úl-timos anos como a questão da ação polí-tica e da constituição da esfera pública, contribuindo para uma reflexão filosófi-ca que procura compreender as relações humanas e os enigmas que costumam produzir. Por tudo isso, este número 6 da revista  Estudos Filosóficos  torna-se imperdível e deveria fazer parte de toda biblioteca universitária do mundo lusófo-no pública ou privada.

POLÍTICA COM ÉTICA. É POSSÍVEL?

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CREIO QUE se justifica, de facto, a tese da origem egípcia para o «olho» das em-barcações, embora nem sempre seja fácil traçar o percurso ao longo dos tempos de tal símbolo-signo.Ele existe, de facto, bem identificado, no seio da mitologia e da arte egípcia (jun-to algumas figuras). Segundo a mitologia, morto Osíris, o rei-deus do princípio dos tempos, o trono foi disputado pelo seu fi-lho póstumo (gerado de forma miraculosa) Hórus e pelo seu irmão Set. Os dois rivais envolveram-se numa sangrenta e feroz dis-puta pela posse do trono do Egipto como herdeiros de Osíris. Esta disputa assume o dualismo característico da luta entre a luz e as trevas, o céu e a terra, o Bem e o Mal.Set, durante uma das lutas, arrancou um dos olhos do sobrinho (o olho esquerdo). Este, por sua vez, arrancou os testículos do tio. Inca-

O OLHO EGÍPCIO DOS BARCOS DOS PESCADORES DA COSTA DA CAPARICA

José sales* paz de se reproduzir, não constituía, pois, uma solução válida para a transmissão do poder e o Conselho dos Deuses decidiu que seria Hórus a merecer suceder a seu pai. Dessa forma, o poder passou de Hórus para os futuros faraós terrestres, concebidos ideologicamente como

novos Hórus. No início da época histórica a identificação entre o faraó e Hórus era já total: o faraó era Hórus e vice-versa. Os soberanos terrestres seriam uma reencarnação do deus tutelar da monarquia.Hórus (Hor) era assim considerado no

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Egipto antigo como o deus protector da monarquia faraónica, do Egipto unido sob um só faraó do Alto e do Baixo Egipto, e o oponente por excelência de Set. A oposi-ção a Set parece derivar de reais antagonis-mos políticos pré-dinásticos em que Hórus seria a divindade tutelar do Baixo Egipto e Set a do Alto Egipto. A doutrina de Esta-do manteve e sustentou esta incarnação do Baixo Egipto por Hórus em oposição a Set, como incarnação do Alto Egipto.Hórus, era, portanto, o deus hieracomor-fo do céu, representado, pois, como um falcão, personificando o próprio céu. Os seus olhos eram o Sol (olho direito) e a Lua (olho esquerdo). «Magoado» o olho es-querdo pelo tio, foi necessário que o deus Tot fizesse um olho substituto.Como o olho maltratado permaneceu in-tacto e são, é chamado udjat, que significa justamente íntegro, intacto, são,  completo, saudável. Na arte egípcia, oudjat é um dos amuletos mais comuns, como símbolo apo-

tropaico que protegia contra o mau-olhado e contra perigos iminentes ou imaginários.O benfazejo e apotropaico olho restaura-do udjat era um dos amuletos mais comuns no Egipto antigo. Ísis, a mãe de Hórus, era uma deusa que recebeu particular devoção na época helenística, em Alexandria, como divindade do mar e deidade dos marinhei-ros, tendo, nessa condição, conhecido uma considerável diáspora pelo mundo medi-terrânico na época romana (tendo chegado até Roma e até à Península Ibérica).Não é de rejeitar que, além dos seus signos próprios (a sítula, o nó de vestuário, etc.), tivesse «trazido» também símbolos associa-dos ao seu filho, neste caso o olho udjat. Ve-rosimilmente, como signo de protecção e de segurança, pode ter sido associado aos mari-nheiros/ pescadores e à suas embarcações, co-nhecendo, naturalmente, alguma «evolução» formal, resultante dos «contributos» directos de determinadas comunidades ou práticas.Susceptível de constituir um campo de in-

vestigação futura sobre este problemática da transmissão da simbologia hórica de uma ponta do mundo (Mediterrâneo oriental/ Egipto) para outra (Mediterrâneo ocidental/ Atlântico) está o importantíssimo papel de «agentes culturais» desempenhado pelos Fe-nícios . Não foi seguramente apenas do ponto de vista económico que este viajantes oriun-dos da costa dos actuais países da Síria, Líbano e Israel marcaram a história do Mediterrâneo (recordemos apenas o alfabeto que legaram à civilização ocidental)… Por serem grandes navegadores e terem dominado vários pontos comerciais contactaram inevitavelmente com vários povos e várias civilizações, trazendo e levando, de forma consciente ou inconscien-te, conceitos, ideias, artefactos, símbolos. A sua profunda ligação ao mar torna plausível que tenham sido particularmente sensíveis à diversa simbologia protectora daqueles que nele se aventuraram ou nele trabalhavam…

*Egiptólogo, Pró-Reitor da Universidade Aberta

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Fábio Rossano DáRio Pisa

 UMA ANTIGA lenda diz que o Gato foi criado em plena Arca, quando Noé, de-sesperado pela quantidade de Ratos que se proliferavam e devoravam todas as provisões, implorou que Deus o ajudasse. O Gato então, para a salvação de todas as espécies, teria sido criado do sopro de um Leão.Os primeiros representantes da família dos Gatos devem ter surgidos a cerca de dez milhões de anos, muito antes do apa-recimento do homem na Terra. Os pri-meiros contactos sociais entre homens e Gatos selvagens provavelmente foram na época das cavernas, com alguns vestígios pré-históricos evidenciando o facto.Porém, o verdadeiro encontro dos Gatos com o homem começa há cerca de cinco mil anos, no antigo Egipto, nos tempos dos faraós, onde estes felinos eram ado-rados como divindades. A deusa egípcia Bastet, símbolo do amor materno, da ternura e da fecundidade, era retratada com corpo de mulher e cabeça de Gato. Acreditava-se que a bela deusa tinha o poder de fertilizar a terra e os homens, curar doenças e conduzir as almas dos mortos. Bastet também estava associada ao poder do Sol, e defendia Rá dos ata-ques de Apep, a Serpente contra quem o deus supremo lutava todas as noites, quando passava pelo reino da escuridão.Os Gatos foram os animais mais ado-rados no antigo Egipto. Uma célebre pintura da época retrata a mãe do faraó Akhnaton alimentando um Gato num banquete. Eram considerados os guardi-ões da noite, dos mortos, e dos mistérios da vida e da morte. Estes guardiões do outro mundo, quando morriam, eram mumificados e seus donos raspavam as sobrancelhas em sinal de luto.Quem matava ou simplesmente feria um Gato era condenado à morte. Se uma casa pegava fogo, os Gatos eram os primeiros a serem salvos. Na época de Ptolomeu, um membro da Embaixada de Roma ma-

A HISTÓRIA DO GATOtou por acidente um Gato, e só foi salvo da morte por intervenção do faraó.Era proibida a saída do Gato do Egipto, mas alguns destes felinos devem ter sido levados para a Europa em embarcações comerciais fenícias, cerca de mil anos an-tes da Era Cristã.Os romanos, quando invadiram o Egip-to, adoptaram o culto à deusa Bastet, e em Roma, os Gatos também passaram a ser perpetuados em estátuas, pinturas e mosaicos, pois representavam o maior símbolo de liberdade para os romanos. Neste período, o Gato foi associado à diversas divindades, como Diana, deusa da fecundidade, e a sensual Vénus, mui-tas vezes representada como uma Gata. Com a expansão do Império Romano, os

Gatos foram sendo introduzidos em toda a Europa, e durante muito tempo, aceites pelo homem como animais domésticos, pela habilidade em caçar Ratos.Na Grécia clássica, o Gato já era asso-ciado à feminilidade e ao amor, todos atributos de Afrodite, a deusa Vénus dos romanos. Na Babilónia não havia o cul-to aos felinos, mas uma lenda diz que o Gato nasceu do espirro de um Leão, o que coincide com uma antiga lenda he-braica.Na morte de Buda, enquanto todos os outros animais se reuniam para chorar, o Gato manteve os olhos secos enquanto devorava tranquilamente um Rato, mos-trando total falta de respeito ao aconte-cimento solene. Apesar da lenda, o Gato é um dos animais mais venerado pelos budistas, pelo autodomínio e tendência à meditação. No hinduísmo, a deusa Shos-ti, que preside os nascimentos, é repre-sentada montada num Gato.O Gato também foi muito amado na re-ligião islâmica, onde diversos contos o associam ao profeta Maomé, que teria sido salvo da morte por um Gato, que matou uma Serpente no momento que o atacava. A relação do Gato com o Islão seria uma das causas que levaria a Igreja

Católica a relacionar o Gato a Satanás. Os gnósticos, que atribuíam igual impor-tância a Jesus, Buda e Zoroastro, já eram acusados pela Igreja, de adorar o demó-nio na figura de um Gato preto.Na China, estatuetas de Gatos eram usadas para expulsar maus espíritos, e havia dois tipos de Gatos, os bons e os maus, que eram facilmente diferencia-dos porque os maus tinham duas caudas. No Japão, quando um Gato morria, era enterrado no templo do seu dono, e no altar do mesmo era oferecido um Gato semelhante, pintado ou esculpido, para garantir ao dono tranquilidade e boa sor-te durante sua vida.No Camboja, existe um ritual onde um Gato é levado a todas as aldeias, para que

não falte chuva e a colheita de arroz seja boa. Na Tailândia, acreditava-se que as almas das pessoas muito evoluídas migra-vam para o corpo de um Gato, antes de subir aos céus.Na cultura celta, a deusa Cerridwen é relacionada com o culto do Gato. Na Finlândia, havia uma crença de um trenó puxado por Gatos, que levava as almas dos mortos. Os templos pagãos dos paí-ses nórdicos eram todos decorados com imagens de Gatos, e nas lendas nórdicas, Freya, deusa do amor e da cura, havia uma carruagem que era puxada por dois Gatos cinzas, que representavam as qua-lidades da deusa: fertilidade e ferocidade.Na América, antes da invasão dos euro-peus, alguns parentes dos Gatos, como o Jaguar e o Puma também eram venerados com associações aos deuses. Antes do extermínio destes povos americanos, he-réticos, na concepção da Igreja Católica, o Jaguar era símbolo de grande força e sabedoria, e acreditava-se que os curan-deiros mortos se transformassem neste belo animal.O comportamento independente do Gato, sua agilidade e beleza, são atribu-tos que despertou no imaginário popular uma ligação com mistério e magia. Mes-

mo em culturas onde foram adorados como divindades, não escaparam à tor-turas e mortes, devido aos seus supostos poderes sobrenaturais. Durante séculos, foram emparedados vivos, para garantir a solidez das casas, igrejas e castelos, e enterrados no limiar destas para dar sor-te. Foram enterrados debaixo das plan-tações, para a garantia de uma colheita abundante. Foram sepultados nas en-cruzilhadas dos caminhos, crucificados e encerrados em sacos junto à mulheres adúlteras, lançados do alto das muralhas, queimados nas fogueiras e envenenados.No século XI, os Gatos cumpririam um papel crucial na história da humanidade, ajudando os europeus a livrarem-se dos Ratos transmissores da peste bubónica.Os dois principais personagens da Idade Média não foram Carlos Magno e Kublai Khan, mas a pulga Xenopsylla cheopis e o Gato. As constantes mudanças climáti-cas no norte da Ásia obrigaram os mon-góis a percorrerem grandes distâncias, e com eles, veicularam Ratos portadores da temível pulga da peste negra. Foram a seguir contaminados os mercadores de seda e os portos da Europa Mediterrâni-ca. A epidemia, em poucos anos, atingiu todos os países europeus, dizimando quase um terço da população europeia. A França foi um dos países mais atingidos pela peste negra, tendo sua população re-duzida, de 17 a 8 milhões de habitantes.Para enfrentar esta epidemia, os mais sá-

O Gato também foi muito amado na religião islâmica, onde diversos contos o

associam ao profeta Maomé, que teria sido salvo da morte por um Gato, que matou

uma Serpente no momento que o atacava. A relação do Gato com o Islão seria uma das causas que levaria a Igreja Católica a

relacionar o Gato a Satanás

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bios procuraram a ajuda dos Gatos, os únicos capazes de combaterem os Ra-tos. Houve então, em toda a Europa, um grande empenho na criação de Gatos, e o papel destes felinos foi mais uma vez indispensável para a sobrevivência da humanidade (eles já haviam, quatro mil anos antes, contribuído para o desenvol-vimento da civilização egípcia). Mes-mo assim, a Igreja considerou os Gatos culpados pela proliferação da peste e de tantas mortes, ordenando a sua destrui-ção na fogueira.A Igreja Católica foi a maior perseguidora dos Gatos, e na Idade Média, trava uma dura e longa cruzada contra os Gatos e seus adoradores. No ano 1232, o papa Gregório IX funda a Santa Inquisição, que atuou bar-baramente durante seis séculos, torturando e executando, principalmente na fogueira, mais de um milhão de pessoas, essencial-mente mulheres, homossexuais, hereges, ju-deus e muçulmanos, convertidos, médicos, cientistas e intelectuais, e também os Gatos, “ad majorem gloriam Dei”.O papa Gregório IX afirmava na bula Vox in Roma que o diabólico Gato preto, "cor do mal e da vergonha", havia caído das nuvens para a infelicidade dos homens. Para acabar com a resistência dos celtas ao catolicismo, a Igreja Católica pregava que os sacerdotes druidas eram bruxos. Como os druidas vivam isolados e cer-cados de muitos Gatos, a Igreja associava os Gatos às trevas, devido a seus hábitos nocturnos, e dizia que tinham parte com o demónio, principalmente os de cor pre-ta. Milhares de pessoas foram obrigadas a confessar, sob tortura, que haviam vene-rado o demónio em forma de Gato preto, e depois, eram condenadas à morte.A mesma perseguição foi realizada no sé-culo XV, contra os povos germânicos do vale do Reno, adoradores da deusa Freya, uma divindade pagã, segundo a Igre-ja, que considerava o seu culto um acto de heresia, associando-o à adoração de maus espíritos. Imagens da deusa foram destruídas, mulheres que tinham Gatos foram torturadas e queimadas vivas. Os Gatos, que eram protegidos pela deusa Freya, foram acusados de serem demoní-acos, capturados, enforcados, e jogados nas fogueiras da Santa Inquisição.A tradição mágica e outras habilidades naturais sobreviviam em alguns locais, du-rante a Idade Média, mas eram não oficiais e eficientemente perseguidas pela Igreja, cuja religião monoteísta tornar-se-ia um instrumento institucionalizado do Estado. A magia torna-se uma atividade suprimi-da simplesmente porque os sacerdotes da Igreja não eram adeptos a ela, e também não queriam correr o risco de que alguém pudesse sobrepujar suas habilidades limi-tadas. Desta forma, tudo o que a Igreja considerava não ideal, seria identificado na forma de várias imagens do Diabo.Nos séculos em que a Inquisição agiu na Europa e América, uma pessoa que fosse vista com um Gato, principalmente os de cor preta, estava sujeita a ser denuncia-da como bruxa e a sofrer tortura e mor-te, sem nenhum direito de defesa. Uma vez acusada de bruxaria, a pessoa podia

ser considerada responsável de qualquer desgraça natural, como perda de colhei-tas, acidentes, doenças e mortes. No ima-ginário medieval, o Gato preto tornava--se mais uma figura mística, fruto da ig-norância, associado ao culto ao demónio.Em 1484, o papa Inocêncio VIII promul-ga uma bula contra os feiticeiros, acusan-do de heresia milhares de pessoas, um bom número das quais sendo culpadas apenas por possuírem um Gato. Por toda a Europa, milhares de pessoas inocentes foram torturadas em nome de Deus, por serem acusadas de feitiçaria e adoração à Satanás. E com elas, os seus Gatos. Este papa inquisidor incluiu o Gato na lista dos perseguidos pela inquisição, campa-nha assassina da Igreja contra supostas heresias e bruxarias. Nesta mesma época, Leonardo da Vinci escreveria: "chegará o dia em que um crime contra um animal será considerado um crime contra a hu-manidade." Leonardo amava os Gatos, e considerava o menor dos felinos uma obra-prima.Em toda a Europa, o dia de Todos os San-tos passava a ser comemorado, atirando--se para a fogueira, sacos cheios de Ga-tos vivos. Em Metz, na França, todos os anos, durante quatro séculos, no culto a São Vito, seriam queimados vivos 13 Gatos presos numa gaiola. Em Ypres, na França, centenas de Gatos eram atirados do alto de um campanário num festival religioso. Durante séculos, milhares de Gatos seriam sacrificados em rituais du-rante a Páscoa. Estas práticas, incitadas pela Igreja, acabaram por se estender a qualquer tipo de comemoração religio-sa, como a noite de São João e de outros Santos, o que acabou por quase dizimar a população de Gatos no século XV, o que consequentemente, contribuiu para a multiplicação de Ratos, que transporta-vam a peste bubónica.Na coroação da rainha Elizabeth I, cen-tenas de Gatos foram aprisionados e levados em procissão, representando o demónio sob o controlo da Igreja e, no final da procissão, formam todos queima-dos vivos. Na Inglaterra elizabeteana, era comum que Gatos fossem colocados em sacos de couro e usados como alvos para os arqueiros. Desta e de outras formas, o

homem descarregava nos animais, todos os seus complexos e crueldades.Com todo o cuidado para não ser quei-mado vivo como herege, o navegador genovês Cristovão Colombo tomara a precaução de embarcar nas suas três cara-velas, Santa Maria, Pinta e Niña, dezenas de Gatos, os quais, ao longo de 35 dias de viagem transatlântica, travaram ver-dadeiras batalhas contra os Ratos, pro-tegendo as provisões alimentícias e per-mitindo que os membros da tripulação desembarcassem vivos nas margens des-conhecidas, em 12 de outubro de 1492.No século XVII, período conhecido como o da caça às bruxas, a Inquisição agiu fervorosamente em toda a Europa e América. Mulheres idosas e solitárias, que possuíam um Gato como compa-nhia, eram acusadas de bruxaria, tortu-radas até que confessassem aquilo que a Igreja queria, e então eram condenadas à morte, queimadas vivas em público, e seus bens imediatamente roubados pela Igreja. O julgamento das bruxas de Sa-lem, em Massachussetts, é um dos prin-cipais registos deste período negro da história dos Estados Unidos.Mesmo nestes tempos de tanto ódio, os Gatos foram amados em alguns países, como na Rússia, onde era comum serem

encontrados em conventos e mosteiros. Com o tempo, a Igreja também foi sen-do mais tolerante à presença do Gato e a perseguição aos felinos foi diminuindo. O cardeal Richelieu chegou a ter muitos Gatos, entre eles um angorá preto cha-mado Lúcifer. No século XVIII, são abo-lidas as leis sobre a feitiçaria. Neste perí-odo, Isaac Newton, para maior conforto dos seus Gatos, inventa a portinhola, que permitia que os Gatos entrassem e saís-sem de casa quando bem entendessem. No século XIX são aprovadas na Ingla-terra as primeiras leis anti-crueldades, e fundadas as primeiras organizações em defesa do Gato e de outros animais. Fi-nalmente os Gatos passariam a receber cuidados especiais.Mendel não estudou apenas ervilhas, mas também os Gatos. O pai da genética ficou impressionado com a alta diversi-dade resultante dos cruzamentos e com certas permanências que lhe sugeriram a hipótese de dois factores, um recessivo e outro dominante. Ainda hoje os Gatos continuam a dar o seu contributo à ciên-cia e à sobrevivência da espécie humana. Em 1961, milhares de Gatos foram trans-portados de avião para Bornéu, para aca-barem com uma grande invasão de Ratos nos arrozais, e com o sucesso esperado, evitaram que milhares de pessoas daque-la ilha morressem de fome.Lord Byron proclamou a superioridade do Gato em relação ao homem: Ele pos-sui a beleza sem a vaidade, a força sem a insolência, a coragem sem a ferocidade, todas as virtudes do homem sem os ví-cios. Foram também exaltados por Victor Hugo, Charles Baudelaire, Mark Twain, Pablo Neruda, amados por Chopin, Liszt, Monet, Renoir, e outras importan-tes figuras da nossa história, pessoas de talento e sensibilidade.Os Gatos domésticos fazem parte da fa-mília Felidae, que é dividida em seis gê-neros: Felis, dos Gatos, Jaguatirica e Su-çuarana (Puma); Panthera, do Leão, Tigre e Onça pintada (Jaguar); Acinonyx, da Cheeta; Uncia, do Leopardo das neves; Lynx, dos Linces; e Neofelis. No total são 37 espécies de felinos, das quais oito ocorrem naturalmente no Brasil: o Gato do mato pequeno, o Gato do mato gran-de, o Gato maracajá, o Gato palheiro, o Gato mourisco (Jagurundi), a Jaguatirica, a Suçuarana, e a Onça pintada. O Gato, apesar de domesticado, ainda possui ca-racterísticas em comum com os seus pa-rentes selvagens, como a técnica de caça. Gracioso, sociável, higiénico, inteligente e independente, passam cerca de 50% da vida em sono leve, 15% em sono profun-do, e a maior parte dos 35% restantes, caçando, namorando, brincando e prin-cipalmente limpando-se.Infelizmente ainda hoje os Gatos conti-nuam a ser perseguidos, por pessoas que se julgam representantes de uma raça su-perior. Há condições para uma vida har-moniosa entre Gatos e humanos. Inúme-ros factos da nossa história comprovam que estes felinos sempre estiveram do nosso lado, mesmo que só para consegui-rem um simples afago.

Na coroação da rainha Elizabeth I, centenas de Gatos

foram aprisionados e levados em procissão,

representando o demónio sob o

controlo da Igreja e, no final da procissão,

formam todos queimados vivos

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metrópolisRicaRdo GueRRa

Qual é a função do governo dentro de um sis-tema de saúde?Eu acredito que qualquer governo decente vê como sua responsabilidade a obrigação de ofe-recer um sistema de saúde para toda sua popu-lação. Em essência, o governo tem a responsa-bilidade de supervisionar o sistema de saúde. Eu sou a favor de um sistema de saúde sem fins lucrativos, providenciado e administrado pelo governo, que garante tratamento para todos. Eu proibiria o lucro dentro da medicina, pois acre-dito que este seja o cerne do problema.Então não haveria um sistema privado que concorresse lado a lado com o sistema gover-namental que você propõe?Marcia Angell: Não. Eu não acredito num siste-ma que tenha dois níveis. Eu acho que um dos pontos fortes do sistema canadiano é que todas as pessoas fazem parte daquele sistema. Mesmo com recursos financeiros, o sujeito não tem a opção de um outro sistema de saúde, ou seja, o paciente não encontra uma alternativa para a opção que o governo oferece no Canadá. Eu acredito que nos Estados Unidos todos devem fazer parte de um sistema único incluindo o presidente e os membros do Congresso. Des-sa forma, você teria as pessoas mais poderosas certificando-se de que tal sistema fosse adequa-damente financiado. Se você permitir que um sistema de saúde tenha dois níveis, o sistema público ficará inevitavelmente cada vez mais enfraquecido e menos financiado… Isso acon-tece porque pessoas com maior poder aquisitivo podem pagar para obter outro tipo de atendi-mento.Qual país tem um sistema de saúde ideal? Qual o país que tem um sistema que seja exemplo de todos os atributos que você almeja? Consi-deraria o Canadá um bom exemplo?Não é o Canadá. O Canadá tem alguns proble-mas, e as províncias têm muito controle e poder. O sistema não inclui certos serviços que deveria, como, por exemplo, a assistência em longo pra-zo e nem sempre cobre o custo dos medicamen-tos prescritos. Embora eu acredite que o sistema canadiano seja muito bom porque ninguém é excluído, ele não abrange tudo o que eu acre-dito que seja importante. Eu simpatizo com o sistema britânico como era há alguns anos atrás. Ao longo dos últimos anos, no entanto, tem en-fraquecido. Mesmo assim, no Reino Unido se gasta um terço do que gastamos por pessoa nos EUA e eles têm uma maior expectativa de vida, menor taxa de mortalidade infantil e um sistema de saúde que é considerado significativamente superior ao nosso em todos os parâmetros. Na verdade, se você olhar para as taxas de morta-lidade infantil e de expectativa de vida, nosso desempenho deixa a desejar quando comparado a outros países industrializados. Em termos da satisfação das pessoas, eu diria que os franceses são os que estão mais satisfeitos com o seu sis-tema de saúde.Você é da opinião que os médicos devem ter um salário fixo?Eu acredito que médicos deveriam ter um salário fixo. A influência do dinheiro deve ser removida da prática da medicina e ela pode ser vista de duas maneiras diferentes. Se você examinar al-gumas situações de atendimento médico, você pode se deparar com um cenário no qual quanto menos o médico oferece ao paciente, mais ele é pago. Ele é pago para fazer o menos possível. Por outro lado, existem outras situações nas quais ele é pago para fazer o máximo possível, ou seja, a quanto mais testes ou procedimen-tos ele submete o paciente, mais ele ganha. As duas situações são injustas. Numa delas, há um incentivo para oferecer o menos possível, e na

outra, para fazer o máximo possível. O que eu gostaria de ver é que a boa medicina fosse de-finida pelo que um médico bem preparado faria se não houvesse nenhum interesse financeiro. A melhor maneira de fazer isso seria através de um salário tabelado, que iria obviamente variar de acordo com a especialidade. Tanto a especiali-dade médica (algumas requerem maior tempo de treinamento) como os anos de experiência seriam fatores que determinariam qual o salário a pagar. O ponto essencial é que o salário de um médico deve ser tabelado, sem bônus por fazer um procedimento em vez de outro.Qual é a principal razão para os medicamen-tos serem muito mais caros nos EUA do que nos países latinos ou até mesmo no Canadá?Muitos países têm alguma forma de controlo nos preços de medicamentos. Tanto o Canadá como o Reino Unido, por exemplo, têm. Nós não temos controle de preços nos EUA. Os medicamentos de marca (não genéricos) são duas vezes mais caros. Nos EUA, as empresas farmacêuticas recebem todo o tipo de favores e privilégios por parte do governo. Ironicamente, estas mesmas companhias afirmam ser adep-tas e defensoras da iniciativa privada e do livre mercado. No entanto, tais empresas recebem isenções fiscais e vivem de pesquisas custeadas pelo National Institutes of Health (NIH), que é financiado com fundos públicos.Nos EUA as empresas farmacêuticas podem co-brar o que quiserem. Durante muitos anos elas têm usado a desculpa do elevado gasto finan-ceiro relacionado com as pesquisas como razão para o preço de medicamentos ser tão altos, mas isso não passa de uma grande mentira. Na ver-dade, elas estão pouco envolvidas na pesquisa, e de fato, a maior parte de suas despesas são decorrentes de diversas manobras de marketing para atingir os consumidores de forma indiscri-minada. Finalmente, o grande objectivo dessas companhias é maximizar o lucro a qualquer cus-to, ao ponto de serem considerados imorais e de serem até um exemplo grotesco de ganância incontrolável.Os Estados Unidos e a Nova Zelândia são os dois únicos países do mundo onde quaisquer medicamentos que requerem prescrições mé-dicas são anunciados directamente aos con-

sumidores na televisão. Qual é a repercussão desse modelo para o paciente?As pessoas mais idosas quando assistem tele-visão são bombardeadas com propaganda de diversos medicamentos de alto custo para tra-tar todos os tipos de condições médicas como a disfunção eréctil, o colesterol alto, a azia e outros sintomas. Basicamente, é o paciente que tem a iniciativa de procurar o fármaco e de obter a prescrição de um médico na busca de um de-terminado medicamento. Na verdade, o oposto deveria acontecer. Os médicos, em geral, estão extremamente ocupados nos seus consultórios, não tendo o tempo disponível para submeter o paciente a um exame completo. Assim sendo, muitas vezes é mais fácil ceder ao pedido do paciente receitando o medicamento requerido.O que deve fazer um paciente quando ouve falar de um tratamento ou de um medicamento que é apresentado como uma cura para tudo?Marcia Angell: Eles devem estar sempre cientes de que os interesses comerciais são muito in-fluentes dentro da medicina americana. Desta forma, acredito que os pacientes não devem to-mar qualquer medicamento que esteja no mer-cado por menos de três anos, até que haja tem-po suficiente para poder determinar quais são os problemas e os efeitos secundários que estes possam ter. É óbvio que há excepções a estes casos, em que o paciente não pode e nem deve esperar para tomar um medicamento. Evidente-mente, numa situação de vida ou morte, como por exemplo, no caso de uma infecção que só pode ser tratada com um antibiótico novo, o pa-ciente não deve esperar para tomar o fármaco. De modo geral, em relação à maioria dos me-dicamentos eu não tomaria nada que tenha en-trado no mercado recentemente. Acredito que procederia da mesma forma no que diz respeito aos procedimentos médicos. Sempre que possí-vel, sou a favor da cautela, ou seja, de aguardar por mais provas, pois, se algo parece ser bom de mais para ser verdade, é realmente bom demais para ser verdade. Eu tenho uma maneira muito conservadora de encarar a medicina.Quais são as especialidades médicas nas quais você vê maior abuso de procedimentos e tra-tamentos?Esse abuso o qual você se refere pode ser cons-

tatado em qualquer especialidade onde há uma utilização maciça de medicamentos e dispositi-vos médicos como, por exemplo, na cardiolo-gia e na ortopedia. Existem outras áreas como a dermatologia, a endocrinologia e a pediatria, em que a utilização de dispositivos médicos não é tão prevalecente. As áreas que usam alta tecnologia são precisamente aquelas nas quais existem os maiores abusos.Que regras devem ser adotadas pelos editores de periódicos científicos para que suas publi-cações tenham maior credibilidade e transpa-rência?Eu realmente acredito que os editores de pe-riódicos científicos devem continuar com as políticas que o New England Journal of Medi-cine iniciou. Uma delas foi adoptada em 1984 e estipulava que todos os autores de pesquisas científicas originais tinham a obrigação de avisar os editores sobre quaisquer vínculos financeiros que tivessem com companhias que poderiam ser afetadas pelas conclusões da pesquisa. O nosso periódico foi o primeiro a adoptar essa política e, eventualmente, a maioria das outras publica-ções de renome na área seguiram o nosso exem-plo. A outra política que instituímos em 1990 determinou que a divulgação (dos vínculos fi-nanceiros do autor) não era suficiente em alguns casos como, por exemplo, em artigos editoriais e de análise crítica. Por outras palavras, deter-minamos que pesquisadores que tinham a res-ponsabilidade de escrever editoriais ou artigos de análise crítica para a nossa publicação que envolvessem um alto teor de objetividade e de averiguação dos fatos dentro da literatura, não poderiam ter vínculos financeiros com empresas que pudessem ser diretamente afetadas por tais matérias. Essa política continuou durante todo o meu tempo como editora-chefe, porém, tendo sido abandonada pelo meu sucessor. Por que o editor que lhe sucedeu não conti-nuou com as mesmas regras?Ele deixou claro que encontrar pessoas sem conflitos de interesse para escrever artigos de revisão e editoriais se tornou muito difícil. Eu acredito que ele deveria se esforçar mais para encontrar essas pessoas mesmo que seja difícil.O leitor deve olhar com cepticismo para peri-ódicos científicos que não têm regras de divul-gação de conflitos de interesses?Claro que sim. Sem dúvida nenhuma. Eu acho que uma política transparente de divulgação seja um critério muito importante quando o leitor for determinar qual periódico científico ele vai dar sua atenção. Existem milhares de periódicos científicos e muitos deles são meras operações de transmissão de anúncios da indústria de medicamentos, de dispositivos médicos e para publicar artigos que são favoráveis aos diversos anunciantes.Existem fontes de informação isentas de inte-resses financeiros, nos EUA,  a quem os con-sumidores ou os pacientes possam recorrer com o intuito de obter informações de forma objectiva e imparcial sobre questões relacio-nadas à medicina?Existem diversas fontes de informação sobre a saúde. Uma delas é o Public Citizen Health Research Group que é dirigido por um médico chamado Sidney Wolfe. Esta organização lan-çou um livro intitulado Worst Pills, Best Pills. Outra fonte importante é o trabalho desenvolvi-do pela publicação Consumer Reports, que faz uma avaliação de diversos medicamentos e de outros assuntos relacionados com a medicina e a saúde em geral.Resumindo, qual é o problema do sistema de saúde norte-americano?É um sistema baseado nas tendências do merca-do, que distribui os cuidados de saúde de acordo com a capacidade de pagamento e não de acor-do com as necessidades médicas.

Saúde

A Dra. Marcia Angell foi editora-chefe do New England Journal of Medicine, um dos periódicos

científicos mais respeitados do mundo. Actualmente, é professora no Departamento de

Medicina Social da Harvard Medical School

QUAL O MELHOR SISTEMA?

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metrópolis Tiago Quadros*

O PARAÍSO nunca pertence ao mun-do em que vivemos, existe sempre para além do mundo em que vivemos, mesmo que nele esteja incorporado. A Casa Península, construída em 2002 por Sean Godsell, em Vitória, na Aus-trália, é em certo sentido um fragmen-to do idílico. O termo “paraíso” tem a conotação de um lugar fora do con-texto do mundo e evoca uma série de imagens diferentes. Derivada da pa-lavra persa Pairi-daeza, originalmente significava um jardim sumptuoso mu-rado, numa paisagem agreste, destina-da a reis e outras pessoas escolhidas. Definia-se como lugar especial e a sua importância media-se através do es-tabelecimento de limites e normas de acesso restrito. No imaginário cristão o paraíso foi transformado em futuro, tendo sido pintado como o estado que melhor define o início da criação do homem e também o final da história da humanidade.Uma estrutura em aço oxidado, re-alizada em pórtico e com as dimen-sões de 30 metros por 7,2 metros, foi implantada ao lado de uma duna de areia. Esta estrutura forma o “ex-oesqueleto” da casa, na qual estão integrados todos os sistemas de som-breamento e controlo da luz solar. O programa simples da casa – uma sala de estar/biblioteca, uma sala de jantar, e um quarto, definem o “en-doesqueleto” do edifício. O quarto é um espaço interior cujo acesso se faz por uma escada privada. As noções de espaço interior (moya) e varanda fechada (hisashi) tinham já sido ex-ploradas por Sean Godsell num tra-balho anterior (a casa Carter/Tucker) onde a ideia de fluidez espacial está na base do projecto de arquitectura. Enquanto que na Casa Carter/Tucker os três espaços primários foram trata-dos de forma igual em dimensão, volume, e qualidade de luz, na Casa Península os três espaços principais são distintos em dimensão, em vol-ume e em qualidade de luz – a sala de estar é muito luminosa, o quarto é moderadamente luminoso e a bib-lioteca é, por comparação, um espaço escuro.A varanda tornou-se ainda mais aus-ente neste trabalho para se definir enquanto camada exterior de pro-tecção do edifício. Nesse sentido, não há nenhuma distinção entre a função da cobertura e a função das paredes. A casa, ela própria, é a sala de jantar interior, protegida dos res-tantes elementos por uma pele ex-terior muito densa. A interacção do habitante entre estes dois elementos,

A CASA PENÍNSULA activa a forma simples do edifício (pela abertura e oclusão da fachada) transformando-o num corpo orgâni-co. Este efeito é ainda mais acentua-do pelo esvaziamento e enchimento do edifício com luz, filtrada através dos prumos de madeira, que mapeiam o decurso do dia e da época do ano, com a forma e dimensão das sombras que projectam.Sean Godsell nasceu, em Melbourne, em 1960, tendo concluído a sua formação na Universidade de Mel-bourne, em 1984. Durante o ano de 1985 viajou no Japão e na Europa, tendo trabalhado em Londres, entre 1986 e 1988, no atelier de Sir De-nys Lasdun. Em 1989 regressou a Melbourne para ingressar no Grupo Hassell. Em 1994, o arquitecto aus-traliano formou a Godsell Associ-ates Pty Ltd Architects. Em 1999 Sean Godsell concluiu o Master em Arquitectura pela Universidade de Melbourne, com a tese intitulada “A apropriação da habitação australiana contemporânea”. O seu trabalho foi publicado em revistas internacionais de arquitectura, incluindo a Archi-tectural Review (UK), a Architectural Record (EUA), a Domus (Itália), a A + U (Japão), a Casabella (Itália), entre outras. Godsell leccionou nos Estados Unidos, no Reino Unido, na China, no Japão, em França e na Nova Zelândia, assim como em toda a Austrália. Sean Godsell foi um dos oradores principais do simpósio Al-var Aalto, na Finlândia, em Julho de 2006. Em Julho de 2003, recebeu uma menção do presidente do Instituto Americano de Arquitectos pelo seu trabalho para os sem abrigo. O seu protótipo Future Shack foi exibido, entre Maio e Outubro de 2004, no Instituto Smithsonian Cooper Hewitt Design Museum, em Nova Iorque. Sean Godsell foi distinguido com vários prémios, nacionais e interna-cionais. Em 2006, o arquitecto aus-traliano recebeu o Victorian Premier’s Design Award e o RAIA. De acordo com Sean Godsell a Casa Península é uma investigação apro-fundada sobre as semelhanças entre a varanda fechada da casa tradicional japonesa e “o sun room” da casa aus-traliana. Na verdade, a importância do trabalho de Godsell reside na interpre-tação que o arquitecto australiano faz da natureza icónica desses mesmos el-ementos.

*Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitecturapela Faculdade de Arquitectura da UniversidadeTécnica de Lisboa

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gente sagrada José simões morais

O L H O S A O A L T O

DEUS LOCAL DA RIQUEZA

地方财神 JÁ NOS debruçámos sobre dois deuses da Riqueza, (财神 Choi San), o Deus Civil da Riqueza, Bi Gan (Pei Kón) e o Deus Mili-tar da Riqueza, Zhao Gongming (Chiu Kông Mêng). Mas em Macau aparece um deus local da Riqueza, sem aquelas histórias de heróis oficiais civis ou mili-tares chineses, que serviram de representação aos dois anterio-res deuses.São muitos os templos de Ma-cau onde se pode encontrar uma figura dum rapaz trajando um burel com capuz, variando a cor entre o branco, que se encontra sempre na veste interior, tendo por vezes em cima outra veste em bege ou verde. Quase sem-pre a escultura parece ser feita de cartão, pelo seu ar tosco e porque nela nunca tocamos, não sabemos ser também de madei-ra, como noutras vezes aparece. Mas também as há em porcela-na. Em algumas está represen-tada com lágrimas vermelhas a correr pela face e noutras o seu aspecto é de um ser infeliz.Ao perguntar à senhora Kong, que toma conta do templo de Sin Fong, quem era aquela es-tranha figura, sem direito a um altar, nem mesmo a uma estátua digna de um deus, ela diz-nos chamar-se Tei Fong Tchoi San. É um deus local, mas não sabe a história dele, nem mesmo o nome da pessoa que se presta-ra a servir de divindade, após passar esta vida. Está ligado ao Deus da Riqueza, como indica parte do nome Choi San.Se neste templo, no Pátio Co-elho do Amaral, o deus está logo à entrada, já no templo de Nuwa, encontra-se no segundo andar e como sempre, colocado no chão. Por cima da sua ima-gem, um papel vermelho com os caracteres Xiao Zai tan, altar que remove os desastres.Foi no I Leng Miu, na Rua da Figueira, onde o Deus local da Riqueza está colocado na parte de baixo do altar de Bao Sheng Da Di, que ouvimos a história da vida desta enigmática perso-nagem.Proveniente de uma família abastada de agricultores, quan-do o pai morreu passou a ter a obrigação de cuidar da mãe. Como filho único, vivera com

as atenções viradas para si e eram-lhe sempre feitas todas as suas vontades, sobretudo pela mãe. Quando foi ele a ter que sustentar a mãe, a sua revolta de criança mimada, levou a co-meçar a maltratá-la. Habituado a nada fazer, vagueava durante todo o dia e era a sua progenito-ra que trabalhava, no campo nas horas do dia e à noite, na lida da casa. Anos a fio decorreram e das insultuosas palavras, passou a bater e a maltratar a velhinha senhora.Estava um dia nas suas fúteis ca-minhadas, fazendo tempo para ir jantar a casa, quando foi con-templado com uma normal cena da vida animal: uma mãe a ali-mentar no ninho o recém-nasci-do pássaro. Mas esta “banal” ac-ção despertou a sua consciência e percebendo todo o trabalho de amor de Mãe, resolveu mu-dar a sua atitude para com a sua.No caminho para casa, o jovem viu ao longe a mãe carregando lenha e um cesto. Chamando-a, correu para a ajudar, mas a triste idosa, pensando que, como de costume, o filho lhe vinha bater, fugiu. Tropeçando, caiu e baten-do com a cabeça numa pedra, aí faleceu.Desesperado pela perda, logo quando se arrependera dos tra-tos que dera à sua mãe, junto a ela se quedou em grande pranto, maldizendo a sua desventura e pedindo-lhe desculpa pelas suas atitudes. Passou dias a chorar e as lágrimas de sofrimento eram já de sangue quando os deuses se apiedaram dele, pois rege-nerado, pela penitência tinha percebido o significado de amor filial (xiao), na China, a primeira virtude.Vestindo-se de branco com um burel (xiao fu) para o funeral da sua mãe, nunca mais o deixou de usar e por isso, assim está repre-sentado e devido a tal, é tam-bém chamado Ma Yi Hau Chi.As pessoas de Macau, conhe-cendo a história desta per-sonagem, mas esquecidas do seu nome, colocaram no chão a sua entronizada figura em muitos dos templos da cida-de e vêm-lhe pedir ajuda para resolver pequenos problemas ligados à felicidade e fortuna da família.

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HUAI NAN ZI 淮南子 O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

Acção e inacção opõem-se, mas podem ambas ser usadas para preservar nações.

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 28

Noutra altura, houve um homem chamado Duan Ganmu que desistiu da sua carreira e decidiu ficar em casa. O senhor de Wei visitou a sua cidade e prestou os seus respeitos formalmente ao povo da localidade. Quando o seu servo lhe perguntou porque o fazia, o senhor respondeu: “Porque Duan Ganmu vive aqui”.O servo disse: “Duan Ganmu é um homem irrele-vante. Não será ir longe demais ao prestar respeito à sua cidade deste modo?”O senhor respondeu: “Duan Ganmu não busca po-der ou lucro, mas leva a peito a via dos iluminados. Apesar de viver anonimamente e num bairro pobre, o seu bom nome é conhecido em toda a parte. Como poderia eu não honrar esta cidade?”E o senhor continuou: “Ele brilha de virtude; eu brilho de poder. Ele é eticamente rico; eu sou materialmente rico. O poder não é tão honrado como a virtude; as posses não são tão nobres quanto a ética. Mesmo que pudesse trocar de lugar comigo ele não o faria”.Posteriormente, quando o reino de Qin levantou um exército para atacar Wei, um dos pares de Qin opôs--se ao plano, dizendo: “Duan Gan mu é um homem sábio e o seu soberano o honra. Todos sabem disto, todos os senhores tal ouviram. Se levantarmos um exército para atacar Wei, não será isso eticamente condenável?”E assim, o rei de Qin desistiu do seu plano de atacar Wei.Mozi correu um milhar de milhas para garantir a sobrevivência [dos reinos] de Chu e Song; Duan Ganmu pacificou Qin e Wei sem sair de casa. Acção e inacção opõem-se, mas podem ambas ser usadas para preservar nações. A isto se chama atingir o mesmo objectivo por caminhos diferentes.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

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