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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2797. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE O APELO DE MACAU JACK LONDON

h - Suplemento do Hoje Macau #75

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 15 de Fevereiro de 2013

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PARTE inTEgRAnTE DO HOJE MACAU nº 2797. nÃO PODE SER VEnDiDO SEPARADAMEnTE

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O aspecto geral do chinês Chun--Ah-Chun nada apresentava de surpreendente. De estatura um tanto exígua, era também

magro e estreito de ombros, como a maio-ria dos seus compatriotas. Um turista, ao avistá-lo por acaso nas ruas de Honolulu, tomá-lo-ia sem hesitar por um pacífico chi-nês, sem dúvida proprietário de uma lavan-daria afreguesada, ou de uma próspera casa de modas. E o tal juízo ainda ficaria aquém da verdade, porque Chun-Ah-Chun era tão favorecido de temperamento como de bens de fortuna, de que nem sequer se co-nhecia a décima parte. Diziam que possuía uma enorme riqueza, e eis tudo. Ah-Chun tinha olhos negros, em forma de amêndoa, mas tão pequenos, que dir--se-iam furos de verruma. Contudo, eram bem separados e abrigados sob a vasta fronte de pensador.Ah-Chun debatia-se, com efeito, com problemas que o tinham solicitado toda a vida, sem, contudo, se afligir em ex-cesso; filósofo por essência, quer fosse na condição de cole, multimilionário ou condutor de homens, o seu equilíbrio mental seria sempre o mesmo. Pairava sempre na alta serenidade do seu espírito sem se deixar embriagar pelos favores da fortuna nem vencer pelos azares da sorte. Todos os acontecimentos embatiam con-tra a sua placidez sem a abalar: ou fossem as chicotadas do capataz nas plantações de cana de açúcar, ou se tratasse de uma baixa nos preços do açúcar, depois que ele, por sua vez, se tornou proprietário das mesmas plantações onde trabalhara. Assim, do rochedo invencível da sua se-renidade resolvia dificuldades que pou-cos homens seriam capazes de resolver, quanto mais qualquer camponês chino.Eis o que ele era, na verdade: um campónio chinês que nascera, aparentemente, para penar toda a vida como uma besta de carga, mas destinado a sacudir o jugo da escravi-dão como o príncipe de um conto de fadas.Ah-Chun olvidara o pai, modesto rendei-ro dos subúrbios de Cantão, recordava-se ainda menos da mãe, que morrera quando ele tinha seis anos. Mas lembrava-se mui-to bem do seu respeitável tio, Ah-Kow, a quem servira de escravo desde os seis até aos vinte e quatro anos. Conseguindo fi-nalmente fugir-lhe, contratou-se como cole por um período de três anos nas plantações de cana de Hawai, mediante um salário de

Jack London cinquenta cêntimos por dia.Muito perspi-caz, Ah-Chun sabia observar os mínimos pormenores que aos outros escapavam.Habitou três anos nos campos e ao fim deles sabia mais de cultura da cana que o capataz e até que o próprio director, a quem o mesquinho cole surpreendia pela extensão dos seus conhecimentos técni-cos sobre o fabrico do açúcar.Mas Ah-Chun não se limitara apenas a estes estudos. Queria saber como se chegou a possuir fabrico e plantações. Adquiriu rapidamente a convicção de que os homens não enriquecem pelo seu próprio trabalho; apercebera-se já, com a experiência adquirida durante anos, de que se os favorecidos alcançam fortuna é à custa do labor dos outros, sendo os mais opulentos aqueles que conseguem fazer trabalhar para si maior número dos seus semelhantes.Quando expirou o contrato, juntou Ah--Chun as suas economias e associou-se com um certo Ah-Yung, montando um pequeno armazém de importação, que, com o volver do tempo, se transformou na importante firma “Ah-Chun e Ah--Yung”, que vendia toda a espécie de pro-dutos, desde as sedas da Índia e o ginsão até ao guano e aos brigues para o trans-porte dos coles. Na expectativa de que o negócio se desenvolvesse, Ah-Chun entregou-o à gerência do seu sócio e pelo seu lado empregou-se como cozinheiro. Conhecia tão bem o ofício que três me-ses depois era o chefe de cozinha mais bem pago de Honolulu. Tinha uma carreira garantida e praticou a asneira de a abandonar, como lhe obser-vou o seu patrão Dantin, mas Ah-Chun respondeu-lhe que sabia melhor que nin-guém o que lhe convinha. Pelo sacrifício de lhe chamarem idiota rematado, rece-beu uma gratificação de cinquenta dóla-res, além das soldadas em atraso.Mas se a empresa “Ah-Chun e Ah-Yung” prosperava cada vez mais, porque é que Ah-Chun se havia de conservar cozi-nheiro?Passava-se esta história numa época em que a abundância reinava em Hawai. Plantava-se cana com toda a força, mas faltavam trabalhadores. Ah-Chun entre-via probabilidades de êxito e pôs-se a importar mão-de-obra. Por sua iniciativa, milhares de coles da região de Cantão desembarcaram em Hawai e a riqueza de Ah-Chun começou a aumentar. Colocou capitais. Os seus olhinhos descortina-vam esplêndidos negócios onde outros

OS MILHÕES DE CHUN-AH-CHUN

Passava-se esta história numa época em que a abundância reinava em Hawai. Plantava-se cana com toda a força, mas faltavam trabalhadores. Ah-Chun entrevia probabilidades de êxito e pôs-se a importar mão-de-obra.

O NOME DE JACK LONDON rEsCENDE A MAr

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DE UMA OUTrA MANEirA.

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temiam perder tudo. Comprou por um pedaço de pão um viveiro que lhe rendeu depois quinhentos por cento e constituiu o ponto de partida de um negócio que lhe permitia polizar o mercado de peixe de todo o Honolulu.Nunca recorreu à publicidade para se fazer conhecer. Também se absteve de toda a política e não tomou parte em re-voluções, mas previu os acontecimentos com mais clareza e alcance que os pró-prios que os suscitavam.Em imaginação, viu Honolulu transfor-mada numa cidade moderna, iluminada a electricidade, numa época em que ela era apenas uma miserável aldeia suja, in-vadida pelas areias e construída sobre um recife de coral. Começou então a adqui-rir terras. Comprou-as a negociantes com necessidade urgente de capitais, a indíge-nas pobres, a filhos-família dissolutos, a viúvas, órfãos e leprosos deportados para Molokai. Alguns anos mais tarde, por um capricho do acaso, as parcelas pertencen-tes a Ah-Chun foram procuradas para a edificação de entrepostos, armazéns, ca-fés, hotéis. Anunciava, alugava, vendia, comprava e tornava a vender sem cessar.Mas não pararam aqui as suas especula-ções. Emprestou, sem hesitar, dinheiro a Parkinson, um capitão desertor a quem ninguém se aventuraria a confiar um soldo. A partir deste momento, Parkin-son principiou a empreender misteriosas viagens na pequena escuna Vega, e até à sua morte nunca mais faltou nada ao renegado. Contudo, uns bons anos mais tarde, Honolulu soube com surpresa que as ilhas do guano Drake e d´Acorn, aca-bavam de ser cedidas ao British Phospha-te Prust mediante setecentos e cinquenta mil dólares.Veio a época florescente do reino de Kalakaua, durante a qual Ah-Chun com-prou por trezentos mil dólares o direito de importar ópio. Se ele sacrificou tal soma para possuir o monopólio da dro-ga, os resultados da operação foram com-pletamente apreciáveis, porque os lucros permitiram ao chinês adquirir a planta-ção de Kalalau, a qual, por sua vez, lhe rendeu trezentos por cento durante de-zassete anos e foi finalmente vendida por milhão e meio.Na dinastia do Kamehamehas, muito tempo antes, Ah-Chun servira o seu país como cônsul da China – posto que não era exclusivamente honorífico.Quando reinava Kamehamehas IV, o nosso Filho do Céu naturalizou-se e tornou-se súbdito havaiano afim de des-posar Stella Allendalle. Posto que súbdita do rei de pele parda, corria nas suas veias mais sangue anglo-saxão que polinésio. De facto, a mestiçagem era nela tão ate-nuada que se avaliava apenas nalguns oi-tavos ou décimo-sextos. Nestas últimas proporções, descendia ela da sua bisavó Paahao – a princesa Paahao, pertencen-te à linha real. O bisavô de Stella Allen-dalle, um certo capitão Blunt, aventurei-ro inglês ao serviço de Kamehameha I, torna-se mais tarde pessoalmente chefe tábu. O avô era um capitão pescador de baleia de New-Bedford e o seu próprio

tal forma os ângulos do papá Ah-Chun, que as donzelas Ah-Chun eram esbeltas sem serem magras, com músculos arre-dondados sem engorgitamento. Em cada rosto subsistiam reminiscências tenazes da Ásia modificadas pelo con-tributo do sangue anglo-saxão e latino. À primeira vista, não era possível adivi-nhar-se a importância da hereditariedade chinesa em todas as feições; mas, uma vez que se estivesse prevenido, não era difícil descobrirem-se-lhes imediatamen-te vestígios.As filhas Ah-Chun apresentavam um gé-nero de beleza inédito e incomparável.

pai inoculara-lhe uma ligeira dose de san-gue italiano e português. Hawaiana aos olhos da lei, a esposa de Ah-Chun des-cendia de três outras nacionalidades.A este anglomerado de raças veio Ah--Chun acrescentar o elemento mongóli-co. Assim, os filhos que ele deu à senhora Ah-Chun foram polinésios, com trinta e dois avos, um sexto italianos, um sexto portugueses, metade chineses e na pro-porção de onze para trinta e dois anglo--americanos. É provável que Ah-Chun se tivesse dispensado de tomar estado, se previsse que descendência tão surpreen-dente ia resultar da união.

Surpreendente era-o, de facto, e por mais de uma razão. Em primeiro lugar pela sua extensão. Tinha quinze filhos, na sua maior parte do sexo feminino. Os varões, em número de três, tinham nascido pri-meiro, depois vieram as filhas, com inter-valos regulares, até completaram a dúzia. O casal não era somente dos mais prolí-ficos; os filhos, sem excepção, eram isen-tos de toda a tara e possuíam saúde mag-nificente. A jovem geração Ah-Chun era sobretudo notável pela beleza. Dir-se-ia que todas as jovens eram belas – delicada e idealmente belas; as linhas generosas da mamã Ah-Chun tinham corrigido de

Ao desembarcar em Macau, apresentou-se no escritório do mais belo hotel europeu, mas o chefe de recepção fechou-lhe o registo dos viajantes na cara, dizendo-lhe que lá não aceitavam chineses. Sem se desmanchar, afastou-se, mas voltou duas horas depois. Mandou chamar o director e o empregado, entregou-lhes os ordenados de um mês e despediu-os.

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Não se pareciam com ninguém, e a pesar da estranha semelhança existente entre elas, cada uma possuía individualidade bem marcada.Não era fácil confundi-las. Por exem-plo, Maud, loura e de olhos azuis, lembrava imediatamente Henrique-ta, de côr morena com grandes olhos sombrios e lânguidos, e cabelos de um negro-azul. Os traços que lhes perten-ciam em comum e harmonizavam as di-ferenças pessoais constituíam o tributo de Ah-Chun. Fornecera o esboço sobre o qual se tinham bordado os caracteres das outras raças. Dele provinha a fraca armadura do chinês, sobre a qual se ha-viam modelado as delicadezas e as sub-tilidades da carne do saxão, do latino e do polinésio.A senhora Ah-Chun possuía certas ideias particulares, às quais se acomodava o ma-rido, mas interdizendo-lhe exprimi-las livremente sempre que elas ameaçassem a sua calma de filósofo. Como ela estava habituada a viver à europeia, Ah-Chun,

condescente, ofereceu-lhe uma residên-cia, à europeia.Mais tarde, quando os seus filhos e filhas chegaram à idade de formular um desejo, ele mandou construir um bungalow espa-çoso e confortável, residência de magní-fica simplicidade.Além disso, com o andar do tempo ele-vou-se um chalé sobre o monte Tântalo, onde a família se refugiava quando o mau vento soprava do Sul.Ele Waikiki, mandou Ah-Chun construir uma casa à beira do mar, numa clareira vasta e tão bem situada que, um dia, o governo dos Estados-Unidos, desejoso de adquiri-la para erigir nela fortifica-ções, teve de pagar a Ah-Chun uma im-portante soma a título de expropriação. Em todas estas residências abundavam salas de jogos, de fumo, quartos de hós-pedes, porque a descendência numerosa de Ah-Chun professava uma hospitalida-de sem limites. O mobiliário era simples e, contudo, despendiam-se nele sem os-tentação verbas que resgatariam prínci-

pes, graças ao bom gosto cuidadosamen-te cultivado dos jovens.Em matéria de educação, Ah-Chun mostrara-se generoso. “Não se preocu-pe com despesas”, objectava ele outro-ra a Parkinson, quando este marinheiro pretendia não ver razão para pôr o Vega em estado de fazer-se ao mar. “O senhor conduz a escuna, eu pago a despesa”. O mesmo aconteceu com a educação dos filhos. Queria que se instruíssem sem se importarem com as despesas. Harold, o primogénito, frequentara Harvard e Oxford. Alberto e Carlos passaram por Yale, seguindo os mesmos cursos. Quan-to às filhas, da primeira à última, inicia-ram os seus estudos no Mill Seminary, na Califórnia, e continuaram-nos em Vassar, Wellesley ou Bryn Mawr. Algumas, con-forme o seu desejo, foram para a Europa receber a consagração final. E quando de todos os pontos do mundo regressaram um dia ao redil, o velhinho aproveitou o seu saber perguntando-lhes como que-riam a decoração dos respectivos apo-

sentados. Para si, Ah-Chun preferiu o esplendor voluptuoso do fausto oriental, mas na sua filosofia compreendeu que os gostos dos seus filhos concordavam mais com o estilo oficial do Ocidente.Ora, é claro que eles não eram conheci-dos pelo nome de Ah-Chun. À medida qua a situação paterna evolui de cole à de multi-milionário, o nome de família adaptava-se às circunstâncias. A mamã Ah-Chun soletrara-o primeiro À Chun, mas a sua descendência, mais precavida, suprimindo o apóstrofo, transformara-o em em Achun. Ah-Chun não pôs objec-ção alguma. A ortografia do seu nome em nada comprometia a sua calma de filósofo. Quer dizer, ignorava o pecado do orgulho. Mas quando os filhos ten-taram obrigá-lo a pôr um colarinho e uma camisa engomada e a vestir trajo de cerimónia, acusou-os de quererem inva-dir as prerrogativas dele e recusou-se a obedecer às suas exigências. Preferia os largos vestidos flutuantes do seu país, e eles, com vontade ou sem ela, não conse-guiram obrigá-lo a abandoná-los. Para o persuadirem, tentaram usar dos dois mé-todos, o brando e o duro, mas o segundo sobretudo redundou em fiasco. A estada deles na América não fora vã; tinham aprendido lá a força da compulsão, como a praticam os trabalhadores organizados. Boicotaram Chun-Ah-Chun, seu próprio pai, em sua casa, com a complacência e até com o apoio da mamã Achun.Mas se Ah-Chun ignorava a cultura oci-dental, as condições do trabalho naquele continente eram-lhe perfeitamente fa-miliares. Como coordenava um número considerável de sindicados, sabia como combater-lhes as tácticas. Sem hesitar, decretou o lock-out contra os filhos re-beldes e a sua transviada esposa.Despediu os seus exércitos de criados, vendeu os cavalos, fechou as casas e foi viver para o Hotel Royal de Hawai do qual era o principal accionista. A família, desamparada, pôs-se a errar pelas casas dos amigos, enquanto Ah-Chun, muito calmo, se ocupava dos seus múltiplos negócios, fumava o seu longo cachimbo de prata e procurava uma solução para o problema que lhe suscitava a sua nume-rosa descendência. Mas tal problema não lhe alterou a serenidade. Na sua alma de filósofo, tinha a certeza de que ele se re-solveria por si mesmo, quando chegasse à maturação. Por então quis apenas de-monstrar que, por maior que fosse a sua complacência, não cedia por nenhum preço o direito de ser o árbitro absoluto dos destinos dos Ah-Chun.A família resistiu durante uma semana, mas depois voltou ao bungalow, na companhia de Ah-Chun e de toda a criadagem.Depois disto, ninguém mais tentou fazer objecções a Ah-Chun quando lhe agradava penetrar no seu brilhante salão com o seu roupão de seda azul, as suas pantufas en-chumaçadas e o seu barrete de seda preta com botões vermelhos, a fumar o seu longo cachimbo de prata nas vastas varandas ou nas salas de fumo, por entre oficiais e civis, fumadores de charutos ou de cigarros.Ah-Chun gozava em Honolulu de si-

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tuação excepcional. Não frequentava a sociedade, embora fosse convidado para toda a parte, e só saía para se dirigir a casa dos negociantes chineses da cidade. Em sua casa, porém, recebia muitas pes-soas e presidia pessoalmente à sua mesa. Este antigo camponês da China pairava num ambiente tão culto e tão requintado como não havia outro nas ilhas, e nenhu-ma personagem, por maior que fosse a sua posição social e o seu orgulho, se re-cusaria a transportar o limiar da sua porta e a aceitar a sua hospitalidade. Antes de mais nada, porque o bungalow de Ah--Chun era de um bom gosto irrepreensí-vel. Depois, porque Ah-Chun constituía uma potência. Finalmente, porque era um modelo de moralidade e de integri-dade em negócios. Embora a probidade

comercial reinasse em Honolulu numa escala maior do que no continente, Ah--Chun excedia ainda todos os seus con-correntes por uma honestidade rígida e escrupulosa. Dizia-se correntemente que a sua palavra valia um contrato; com ele não eram precisas assinaturas; nunca fal-tou aos seus compromissos.Vinte anos depois da morte de Hotchkiss, da Companhia Hotchkiss e Monterson, descobriram entre os papéis esquecidos uma nota mencionando o empréstimo de vinte mil dólares a favor de Ah-Chun. Datava da época em que este fora con-selheiro privado de Kamenhameha II. Naqueles dias de abundância e de de-sordem, em que dominava a loucura do ganho, Ah-Chun perdera este pormenor de vista. Não existia contra ele nenhum documento que pudesse servir de base a uma acção judiciária; apesar disso, pagou integralmente a dívida aos herdeiros de Hotchkiss e, de sua livre vontade, acres-centou à importância líquida os juros acumulados que ultrapassavam muito a importância do débito.

deles; só em charutos pago uma fortuna importante todos os meses. Porque será que eles não as pedem em casamento?A mamã Achun encolheu os ombros e não respondeu. - Eu conheço a natureza dos homens e das mulheres – continuou ele – e, conhe-cendo-a, não compreendo porque não casam. Não agradarão as nossas filhas a esses jovens?- Ah! Elas não lhes agradam pouco – retru-cou a mamã Achun – mas, que queres, eles não podem esquecer que és o pai delas! - Contudo, - observou gravemente Ah--Chun – quando pedi a tua mão, não es-queceste quem era meu pai? Não é certo que só me manifestaste o desejo de que cortasse a minha trança?- É porque esses jovens são mais exigen-tes do que eu, sem dúvida.- Qual é a coisa mais importante do mun-do? – interrogou de repente Ah-Chun sem a menor transição. A senhora Ah-Chun reflectiu um instante e respondeu:- Deus.O marido fez-lhe um sinal de aprovação.- Há deuses e deuses: alguns de papel, outros de madeira e até mesmo de bron-ze. Tenho no meu gabinete um peque-no deus que me serve de pesa-papéis. O museu da diocese possui quantidades, de coral e lava.- Mas só existe um Deus verdadeiro! – exclamou ela peremptoriamente, erguen-do, como em ar de desafio, a sua ampla pessoa.Ah-Chun percebeu o sinal de alarme e derivou:- Não sabes então o que há maior do que Deus? Está bem, vou dizer-to. É o dinhei-ro. Na minha juventude comerciei com judeus e cristãos, maometanos, budistas e até negritos das ilhas Salomão e da Nova-Guiné, que transportam com eles o seu deus envolvido em papel untado. Estes homens possuíam deuses diversos, mas todos adoravam em primeiro lugar o dinheiro... Tomemos, por exemplo, o capitão Higginson. Ele parece que gosta da Henriqueta.- Nunca a desposará – observou a mamã Achun. – O seu amor morreu na pele de um almirante...- Ou de um contra-almirante – insinuou Ah-Chun. – Sim, eu sei. É nesse posto que esses tipos habitualmente se refor-mam.- A sua família ocupa uma alta situação nos Estados-Unidos e há-de querer que ele despose... uma americana.Ah-Chun sacudiu a cinza do cachimbo e, com, um ar absorto, carregou-o com uma minúscula pitada de tabaco. Acendeu-o, fumou-o até à última fumaça e retomou a palavra.- Henriqueta é a primogénita. No dia do seu enlace, dou-lhe um dote de trezentos mil dólares. Vejamos depois o que nos diz o capitão Higginson e a sua nobre e dis-tinta família. Ficas encarregada de lhe dar a novidade; deixo isso ao teu cuidado.Ah-Chun sentou-se, continuando a fu-mar. Entre as espirais de fumo que ondu-lavam à sua volta julgava ver desenhar-se

O mesmo aconteceu com a desastro-sa empresa de aterros em Kakiku; dera a esta sociedade a sua garantia verbal, numa época em que o homem menos confiado não teria julgado tal caução necessária. “Assinou o seu cheque de du-zentos mil dólares sem pestanejar, senho-res, sem pestanejar”, assim se exprimiu o secretário da extinta empresa, enviado en désespoir de cause para ir sondar as intenções de Ah-Chun.E além destes numerosos testemunhos verídicos que circulavam sobre a sua integridade, não existia talvez nas Ilhas um único homem em evidência que não tivesse, num dado momento, sido susten-tado financeiramente por Ah-Chun.Explica-se que todo o Honolulu consi-derasse o futuro da sua admirável família

como um problema árduo. Toda a gente testemunhava ao chinês uma secreta sim-patia, mas ninguém podia imaginar a ma-neira como ele resolveria o enigma.Mas Ah-Chun encarava-o com notável penetração. Ninguém sabia até que pon-to ele era estranho aos seus. Eles pró-prios, aliás, o ignoravam. Nunca houvera lugar para ele naquela raça maravilhosa descendente do seu sangue, e, ao chegar ao declínio dos seus anos, via cavar-se cada vez mais o abismo e uma incessan-te incompreensão reinar entre ele e os filhos. Os temas das suas conversas ou eram para ele enigmas ou o aborreciam prodigiosamente. A cultura ocidental roçara por ele sem o atingir. Era asiáti-co até ao fundo da alma, quere dizer, até ao paganismo. Qualificava o cristianismo deles de teia de absurdos. Mas em rigor Ah-Chun tê-lo-ia perdoado, se pudesse compreender melhor os filhos.Não quere isto dizer que ele se insurgisse contra as suas exigências materiais para satisfazerem os seus hábitos civilizados. Quando Maud, por exemplo, lhe decla-

rou que as despesas da casa se elevaram a trinta mil dólares por mês, ou que Al-berto lhe pedira à queima-roupa cinco mil dólares para comprar o iate Murel e se inscrevera como membro do “Yatch Clube de Hawai”, o caso não levantou nenhuma questão. Mas as suas aspira-ções mais íntimas, mais complicadas, o seu modo de ser espiritual permanecia--lhe oculto. Não tardara a convencer-se de que a alma de cada um deles era um misterioso labirinto onde se erguia na sua frente, a cada instante, a velha muralha que separava o Oriente do Ocidente. As mentalidades deles eram-lhe tão inaces-síveis como a sua lhes era impenetrável.E à medida que avançava sentia acordar cada vez mais em si o apelo da raça.Os odores fétidos do bairro chinês pa-reciam-lhe aromas. Aspirava-os com de-lícia ao passar nas ruas, as quais evoca-vam ao seu espírito as vielas estreitas e tortuosas de Cantão, formigando de vida e de movimento. Lastimava ter cortado a sua trança para ceder aos desejos de Stella Allendalle na época das suas bodas e encarava seriamente a ideia de mandar rapar o crânio para deixar crescer outra.Os manjares complicados que um chefe de cozinha bem pago elaborava para ele não conseguiam satisfazer o seu paladar, fiel às recordações, tão bem como os pra-tos esquisitos do estreito restaurante do abjecto bairro chinês.Preferia incomparavelmente mais ta-garelar e fumar durante meia-hora com dois ou três compatriotas do que presi-dir aos jantares elegantes e caros do seu bungalow, onde se reunia a fina flor dos americanos e dos europeus, as mulheres recamadas de jóias cintilantes que faziam sobressair a alvura dos seus colos e dos seus braços e os homens vestidos com traje de cerimónia. Gracejavam e riam a propósito de assuntos de espírito que, se não correspondiam absolutamente a gre-go para ele, não lhe interessavam, contu-do, nem o divertiam.Mas não era somente a solidão que lhe pesava e o seu desejo crescente de rever as marmitas chinas que o preocupavam. A sua fortuna complicava-lhe também a solução do problema. Trabalhara duran-temente e encarara uma velhice plácida. Normalmente, encontraria a sua recom-pensa na tranquilidade e no repouso; mas não ignorava que a sua imensa riqueza lhe interdizia gozá-los. Tinha bem pa-tente na memória certos exemplos. Um deles era o caso do seu antigo patrão, Daton, a quem os filhos, pelas vias legais, tinham arrancado a administração dos seus bens, obtendo dos tribunais que eles fossem administrados por tutores. Ah--Chun sabia experimentalmente que, se Daton não fosse um pobre diabo, encon-trar-lhe-iam suficiente inteligência para gerir pessoalmente os seus negócios. E o velho Daton apenas tinha três filhos e só possuía meio milhão, ao passo que ele, Ah-Chun, tinha quinze filhos e tantos milhões que só Deus e ele conheciam.- As nossas filhas são belas – confiou ele uma noite à mulher. – Em Honolulu não faltam jovens. A casa está sempre cheia

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nas suas recordações a imagem de Toy Shuey, aquela jovem que serviu na casa do seu tio, numa pequena aldeia perto de Cantão. E por entre os meandros de fumo do seu cachimbo parecia-lhe ver um jovem de dezoito anos, a trabalhar no campo de seu tio para receber um salário pouco mais elevado. Actualmen-te ele, Ah-Chun, o antigo camponês de Cantão, dava à sua filha Henriqueta um dote equivalente a trezentos mil anos de semelhante trabalho. E ela era ape-nas a primeira de uma respeitável dúzia. Contudo, longe de orgulhar-se com esta ideia, deduziu que o mundo é bizarro e caprichoso; riu-se às gargalhadas, arran-cando a mamã Achun a um devaneio, que ele sabia profundamente sepultado nas criptas secretas do seu ser, onde ele próprio nunca teve acesso.A promessa de Ah-Chun deu bons resul-tados e o capitão Higginson esqueceu o seu posto de contra-almirante e a sua nobre e distinta família para desposar tre-zentos mil dólares e uma jovem elegante, instruída e bem educada, mas de raça po-linésia um por trinta e dois, italiana um por dezasseis, portuguesa um por dezas-seis, anglo-americana onze por trinta e dois e chinesa por metade.A munificência de Ah-Chun não tardou a produzir os seus frutos: as suas filhas tornaram-se de repente muito desejadas.Clara foi a segunda a encontrar pre-tendente; mas quando o secretário do território fez a sua declaração oficial,

Ah-Chun advertiu-o de que tinha de esperar a sua vez, porque Maud, mais velha que Clara, devia contrair casa-mento antes dela. Era um processo mui-to hábil. A família ocupou-se depois em casar Maud, e passados três meses ela desposava Ned Humfhreys, Comissário de Imigração dos Estados-Unidos. Cla-ra, Maud e ele queixaram-se de que os seus respectivos dotes se elevassem ape-nas a duzentos mil dólares. Ah-Chun explicou-lhe que a sua generosidade ini-cial não teve por fim senão determinar o movimento: de futuro, as suas outras filhas deveriam contar com uma cifra ainda menos elevada.Em seguida, durante dois anos, houve no bungalow uma série contínua de ca-samentos.Entretanto, Ah-Chun não esteve inacti-vo. Realizou os títulos uns após outros. Cedeu a parte que possuía numas vinte empresas e, pouco a pouco, para evitar

uma baixa no mercado, vendeu as suas vastas propriedades e bens imóveis.Quási no fim, contudo, desfez-se das suas acções com tal precipitação que provocou uma baixa de preços e teve de se resignar a pesados sacrifícios, por-que via acastelarem-se densas nuvens no horizonte. Quando, por sua vez, Lucília se casou, rumores de mau augúrio che-garam aos ouvidos do chinês. À sua vol-ta, a atmosfera parecia condensar-se de complots e contra-ataques destinados a ganhar as suas preferências ou a preveni--lo contra este ou aquele dos seus genros. Estas conspirações não eram certamente de natureza a favorecer a paz e a tranqui-lidade que ele desejava para a sua velhice.Era preciso agir depressa. Havia muito que ele se correspondia com os princi-pais banqueiros de Xangai e de Macau, e havia já diversos anos que cada correio lhes levava letras de câmbio em nome de um certo Chun-Ah-Chun para serem

creditadas naqueles estabelecimentos do Extremo-Oriente. O montante destas transferências aumentou numa propor-ção importante. As duas filhas mais no-vas ainda estavam por casar. Sem esperar mais, o pai estabeleceu-lhes um dote de cem mil dólares, que consignou ao Banco de Hawai, a fim de tais quantias rende-rem juros até que se casassem.Alberto tomou conta da gerência dos negócios da casa Ah-Chun e Ah-Yung; Harold, o primogénito, preferiu rece-ber duzentos mil dólares e ir viver para a Inglaterra; Carlos, o mais novo, viu-se senhor de cem mil dólares, de um tutor legal e com os estudos pagos a um Insti-tuto de Kuby.À mamã Achun deixou-lhe o bungalow, o chalé na montanha de Tântalo e uma nova residência à beira do mar, para substituir a que tinha sido vendida ao Governo. Além disso, recebeu meio mihão de dóla-res em valores sólidos.Depois, Ah-Chun propôs-se enunciar a solução do problema que o preocupava há tanto tempo.Uma bela manhã, durante o almoço, - diligenciara para que todos os seus gen-ros e as respectivas esposas estivessem presentes – anunciou solenemente a sua intenção de regressar à terra dos seus an-tepassados.Num curto discurso, tão claro como substancial, explicou que tinha provido amplamente ao bem-estar de sua famí-lia e formulou diversos princípios que, em sua opinião, permitiriam a seus filhos viver em paz e em boa harmonia. Em seguida, dispensou a seus genros exce-lentes conselhos para tratarem dos negó-cios, elogiou os benefícios de uma vida sóbria e colocações prudentes de capitais e deu-lhes uma útil exposição dos seus conhecimentos enciclopédicos sobre as condições industriais e comerciais de Havai.Pediu, enfim, a carruagem e, acompa-nhado pela mamã Achun, debulhada em lágrimas, fez-se conduzir ao paquete da Pacific Mail, deixando atrás de si a cons-ternação e o pânico no bungalow.O capitão Higginson reclamou a sua interdição ruidosamente. As filhas der-ramaram abundantes lágrimas. Um dos maridos, ex-juiz federal, pôs em dúvida a plenitude das faculdades mentais de Ah--Chun e correu a consultar as autoridades competentes sobre este ponto. Foi-lhe respondido que Ah-Chun comparecera na véspera diante da Comissão, solicitara um exame mental e se retirara com todas as homenagens.

No seu sumptuoso palácio, cercado das delícias e das voluptuosidades do Oriente, Ah-Chun fuma placidamente o seu cachimbo escutando o alarido de além-mar. De Macau para Honolulu cada paquete do correio leva, redigida em impecável inglês e dactilografada, uma carta cheia de citações e de preceitos admiráveis, na qual Ah-Chun aconselha a sua família a viver em fraterna harmonia.

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Perdida a esperança, foram todos ao pa-quete para dizerem adeus ao velhinho, que os saudou com a mão, da amurada, enquanto o grande vapor apontava a roda da proa, por entre os recifes de coral.Mas o velhinho não se dirigiu a Cantão. Conhecia muito bem o seu país e o des-potismo voraz dos mandarins para se ar-riscar com a opulência que o aureolava. Dirigiu-se, pois, a Macau.Tendo durante largo tempo exercido à sua volta uma potência inaudita, Ah--Chun tornara-se tão autoritário como um rei.Ao desembarcar em Macau, apresentou-se no escritório do mais belo hotel europeu, mas o chefe de recepção fechou-lhe o re-gisto dos viajantes na cara, dizendo-lhe que lá não aceitavam chineses. Ah-Chun mandou chamar o director e foi trata-do insolentemente. Sem se desmanchar, afastou-se, mas voltou duas horas depois. Mandou chamar o director e o emprega-do, entregou-lhes os ordenados de um mês e despediu-os. Tornara-se proprietá-rio do hotel e instalou-se nos mais luxu-osos aposentos durante os longos meses de que necessitou para a edificação, nos subúrbios, de um palácio sumptuoso. Mas neste intervalo, graças à sua competência universal, fez subir os lucros do seu grande hotel de três a trinta por cento.Os desgosto de que Ah-Chun julgava ter-se desembaraçado não tardaram a re-aparecer. Alguns dos seus genros tinham efectuado más operações e outros lança-do os dotes das suas mulheres pelas ja-nelas. À falta de Ah-Chun, voltaram-se para a mamã Achun e para o seu meio--milhão, o que em nada contribuiu para a boa harmonia da família. Os advoga-dos tomaram parte na questão. Houve inquirições, processos, citações no Palá-cio de Justiça de Havai. Até os tribunais correccionais foram envolvidos no caso. Produziram-se furiosas altercações segui-das de palavras violentas e de pancadas mais violentas ainda. Atiraram à cabeça uns dos outros vasos de flores e outros objectos semelhantes para darem peso às palavras aladas. Houve depois retumban-tes processos de difamação, nos quais as testemunhas fizeram tão espantosas re-velações que causaram pasmo em toda a população de Honolulu.No seu sumptuoso palácio, cercado das delícias e das voluptuosidades do Orien-te, Ah-Chun fuma placidamente o seu ca-chimbo escutando o alarido de além-mar. De Macau para Honolulu cada paquete do correio leva, redigida em impecável inglês e dactilografada, uma carta cheia de citações e de preceitos admiráveis, na qual Ah-Chun aconselha a sua família a viver em fraterna harmonia.Quanto a ele, longe de todo o tumulto, goza de uma paz e de uma tranquilidade inalteráveis.Por vezes ri à socapa, esfregando as mãos, e os seus olhitos oblíquos cintilam de ale-gria quando pensa na bizarria do mundo.Porque, de toda a sua experiência da vida e da sua filosofia, resta-lhe a convicção de que este mundo é, no fim de contas, muito estranho...

As fotografias que abrilhantam este artigo, exceptuando as de Jack London, foram obtidas, com a devida vénia, no blogue Macau Antigo

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O cantO de FenghuangA povoação antiga de Fenghuang está virada apenas para o turismo e as casas de madeira das minorias Miao e Tujia, serpenteando ao longo do rio Tuo, são actualmente apenas pensões e bares.

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ViajáVamos à noite de carro na parte Oeste da província de Hunan, quando a luz dos faróis se projecta contra uns vultos no meio da estrada a caminhar estranhamente. Após uma buzinadela, afastaram-se para a berma e deixaram a via livre. Chegamos a Fenghuang, povoação cujo nome promete algo de grande pois significa Fénix que, no período da monarquia chinesa, era o símbolo da imperatriz, enquanto o Dragão es-tava reservado apenas ao imperador. Já a noite vai adiantada quando, junto ao rio Tuo, encontramos ainda abertos inúmeros bares e restaurantes ao longo das margens. Desassossegando toda a povoação, há uma mistura dos vários sons das músicas que saem de cada um dos locais cheios de jovens turistas chineses, com as mesas atafulhadas de garrafas de cerveja e de vinho local. Só perto das duas da manhã o murmurar do rio se ouve e, no seu embalo, adormecemos. O dia desponta num crescendo de vozearia a sobrepor-se ao som da corrente de água. Olhando para fora do quarto, a vista dá para a outra margem onde as casas de madeira com estacas sobre o rio, conhecidas por diao jiao lou, muitas com mais de cem anos, despertam-nos a curiosidade e levam-nos à varanda. Estamos sobre o rio e a paisagem espanta pela serenidade, contrastando com as luzes que à noite iluminam as formas dos edifícios de dois andares a serpentear por ambas as margens. As pessoas divertem-se a saltar de pedregulho em pedregulho para atravessar o rio ou pela ponte estreita situ-ada ao lado e feita por tábuas onde é difícil

o cruzar das pessoas. Pelas margens, mui-tos são os habitantes que lavam roupa ou vegetais e limpam as miudezas dos patos e galinhas mortos para as refeições.Os barqueiros, em pé e empunhando uma longa vara de bambu, guiam os pequenos botes cobertos e repletos de turistas, que descem o rio. Esse trânsito ganha dimen-são, sendo cada vez maior à medida que o tempo passa e ainda a manhã não vai a meio, já esses barcos têm de esperar em fila para ultrapassar um desnível no leito. Após o desembarque dos passageiros no pagode Wan Ming, regressam vazios e são ajudados por um gancho manuseado por uma pessoa na margem que os puxa para ultrapassar o desnível de água.Os turistas, na sua grande maioria chine-ses, são sobretudo jovens. Gostam de ser fotografados com as roupas e ornamentos de festa dos Miao e Tujia, minorias que aqui vivem. Este negócio prosperou de tal maneira, que as vestes antigas característi-cas de várias dinastias chinesas estão agora também à disposição.

Fora do mundo

Fenghuang só começou a ser controlada pelo governo chinês há 1300 anos, duran-te a dinastia Tang, mas o líder continuou a ser um habitante local da minoria Miao. No final da dinastia Ming, início da Qing, foi construída uma Grande Muralha, conhe-cida como a do Sul, para se diferenciar da existente no Norte da China e servia para separar o povo Han dos Miao, que não qui-seram ser integrados. A cidade foi também muralhada e aí colocada uma guarnição mi-

litar Han. Em 1913, Fenghuang tornou-se numa prefeitura e com a República Popu-lar da China, em 1949, foi criada a região autónoma Xiang Xi (Hunan do Oeste) das minorias Tujia e Miao. Atravessou incólu-me a Guerra Civil e a Revolução Cultural. Por isso, ainda conta com edifícios muito antigos e os costumes das duas minorias preservados, devido aos maus acessos.Situada na encosta Sul da montanha Wu Ling, próximo da fronteira com a província de Guizhou, Fenghuang esteve escondida aos olhos do turismo até 1966. Foi o escri-tor da Nova Zelândia, Rewi Alley, que aqui esteve e fez referência a este lugar como sendo fora do mundo, já que nele se esque-ce de tudo e não se deseja daqui jamais sair.A zona turística, situada principalmente en-tre a porta Norte da muralha construída em 1715 e a ponte Hong feita no período da dinastia Ming com dois andares cobertos, encontra-se nas margens do rio Tuo, que na língua Miao significa serpente, estendendo--se a povoação pelas encostas dos montes das duas margens.Fenghuang, com uma população de 350 mil pessoas, tem um clima ameno, não muito quente no verão, nem muito frio no inverno e por isso, é um bom local para ser visitado durante todo o ano.Esperamos um táxi para chegar ao terminal de autocarro, quando param dois camiões de onde sai um imenso número de pesso-as de nacionalidade Miao, vestidas com os seus trajes. Vêm para apresentar os seus an-tigos cantos à desgarrada entre o grupo de mulheres e o dos homens.Deixamos Fenghuang e o autocarro vai acompanhando a Grande Muralha do Sul,

que por vezes se esconde dos nossos olhos e depois aparece no cume do monte. Men-talmente, relacionamos a história inicial com a contada pelo escritor chinês Shen Cong Wen (1902-1988), natural de Fen-ghuang, que na sua juventude diz ter visto figuras a caminhar de uma maneira estranha pela estrada e buzinando, estas desviaram--se para a berma. Pesquisando descobre o conceito daoista de Gan Shi. Gan (condu-zir), shi (corpos mortos) vestidos com um manto preto a tapar todo o corpo e a cabe-ça coberta com um barrete preto onde, na frente apresenta um papel amarelo (fuzhou) que esconde o rosto. Indumentárias que os mortos trajam quando regressam a pé para a sua terra, onde os espera a sua sepultura. Algo nos leva a um episódio lendário ocor-rido há cinco mil anos e que se reporta ao regresso dos mortos, após a tribo Dongyi, chefiados por Chi You, ter sido derrotado pelo exército comandado por Huang Di. Para quem aqui chega, as serenas manhãs passadas sentadas na varanda suspendem o Tempo e à noite, despertos, sem perceber a corda dada pelo andar da vida, somos trans-portados para um ruidoso mundo de luz e som, com que a povoação se envolve, pois este é um lugar fora do mundo.A água passa já sem as correntes tumultu-osas do final da Primavera que, no ano de 2007, foram de tal maneira destruidoras que levaram uma ponte, mas as casas com estacas de madeira estão salvaguardadas das inundações. Fenghuang, como um simbó-lico pássaro que representa bom presságio e longevidade, fica na memória como uma das mais bonitas povoações que encontrá-mos na China.

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a revolta do emir Pedro Lystermann

d e p r o f u n d i s

Poderá parecer um pouco deslocado falar de um bar, o Whisky bar do Hotel Star World, que desapareceu na sua for-ma primitiva e se encontra actualmente em fase de remodelação.

Esta deslocação explica-se porque a sua ausência veio sublinhar algumas das carac-terísticas que o tornaram no melhor bar da cidade. Se um texto apreciativo das suas qualidades tardou a aparecer durante a sua existência foi porque estas o tornavam mais difícil de descrever. Neste momento seria imperativo lembrá-las se tudo isto não passasse de uma útil frivolidade.

A menor das quais não será a que se prendia com a diversidade da sua geo-grafia e parece que esta será uma carac-terística que deixará de exibir no futuro (se a ganância prevalente lhe permitir um futuro). Ao contrário do que acontece com quase todos os outros bares da cida-de, como o Lan, o Bar Azul ou o Cristal, o Whisky bar do décimo sexto andar per-mitia usufrutos diversos: um balcão onde, raridade local, se encontravam clientes habituais ao fim da tarde; uma vasta va-randa de chão de madeira e mobiliário su-ficientemente confortável e surpreenden-temente bem pensado; uma sala de fumo mais fechada, de poltronália confortável e ambiente mais íntimo onde se juntavam não apenas fumadores de charuto a “ba-forar colunas de fumo”, se me é permitido citar Camilo Castelo Branco, mas outras categorias de fumantes; uma zona menos bem definida mas nem por isso menos cobiçada situada por trás do balcão e, fi-

nalmente, uma sala mais vasta com vista larga a partir de um grande janelão para algumas das mais destacadas monstruosi-dades arquitectónicas da cidade, propícia a grupos maiores e em plateia de um pe-queno palco. 5 lugares diferentes.

Como qualquer frequentador de ba-res sabe, há um lugar (que é mais cine-matográfico que literário) que pode ter uma importância maior na sua geografia. É o balcão. Este era o melhor balcão da cidade. Não apenas pela sua construção, pelo comprido e com uma largura e dis-posição que permitia ao mesmo tempo uma proximidade e um afastamento para com o pessoal que por trás dele trabalha e que prepara bebidas por vezes com uma generosidade inesperada, mas porque como em nenhum outro este foi, duran-te anos, um local de encontro que a sua localização tão bem permitia. Nenhum outro preenchia tão eficazmente este re-quisito essencial de um bar citadino, o da promoção do encontro ao fim da tarde, que vemos em Hong Kong e em muitos outros sítios civilizados. Esta dimensão fundamental de um bar, de através da reunião de conhecidos e desconhecidos de diferentes proveniências se fomentar o nascimento e a troca de ideias e opi-niões, apenas neste se conseguia porque apenas neste se criara uma convivialidade entre a clientela e um corpo de serviçais habituais.

Um serviço em que a ocasional, e cada vez mais rara, incompetência, se esbatia completamente na simpatia dos seus fun-

cionários, alguns dos quais trabalhadores da casa há vários anos e excelentes prati-cantes das misturas clássicas. Se há algo de negativo a que a este lugar se possa apon-tar é a falta de imaginação da lista de bebi-das. Não era aqui que encontraríamos um Sidecar semelhante ao do Hotel Ritz, mas a oferta era suficiente para nela encontrar-mos algo que nos entontecesse a alma.

Bem localizado e longe de corredores de centros comerciais, mais escondido que outros bares, escapava à ruidosa in-tromissão turística que os invade enquan-to reuniu especialmente patrocinadores locais durante mais de cinco anos. O seu encerramento pode fazer parte de um plano comunista diabólico, mais ou me-nos consciente, que impede que se criem hábitos de convívio.

O interior do hotel em si não priman-do pelo bom gosto, o bar conseguira es-capar a algumas das suas cegueiras mais óbvias. Elogie-se, no entanto, o intento de criar, através do seu desenho exterior em blocos, um conjunto original, o que não se poderá dizer de muitos outros pro-jectos recentes, alguns deles indecentes na desconsideração pela cidade que a sua monotonia ou simples intenção copista testemunham.

Era o mais alegre dos bares de hotel de Macau e o que oferecia mais iniciativas, ladie’s nights, shows ao domingo, até passa-gens de moda, entre outras.

O show burlesco de domingo era de um amadorismo que não perturbava, an-tes predispunha a uma leve despreocupa-

ção. Na sala que o acolhia, assim como na sua varanda, e este não será um dos seus fenómenos menos interessantes, juntava--se (e, repito, em mais nenhum hotel de Macau isto acontece) uma multidão inte-ressante. Um fenómeno local. Pode tam-bém ser que esta disposição indulgente mais não seja que o abandono desistente a uma absurda inclinação para a banalidade a que a persistência do mau gosto obriga. Aqui se juntava alguma da juventude de Macau, pessoas nos seus vintes e possi-velmente primeiros trintas, uma classe média que fuma pouco e consome prepa-rações alcoólicas da moda, uma geração que não quer certamente transformar o mundo mas que à de seus pais acrescen-tou a convicção de que o encontro num bar de hotel traz avanços à sua qualidade de vida. Num território sem celebrida-des (dizem-me que o que mais se pode aproximar em Macau desse estatuto são alguns apresentadores da televisão local) esta era uma pequenina amostra de uma gente classe média quase gira, inofensiva, razoavelmente inclinada para a diversão. Este foi o único bar de hotel da cidade em que muitas vezes, durante a noite, era difícil de arranjar mesa. Se a sala deste bar que incluía o palco for transformada para acolher outro propósito (ouvi falar em mais jogo) perder-se-á esta montra úni-ca da cidade, e estas pessoas, cujos pais certamente não frequentavam bares, que vão ter filhos a quem ensinarão o valor e o encanto do ócio e do encontro, deixarão de ter lugar para os praticar.

O Whisky bar that is nO mOre

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t e r c e i r o o u v i d o

Sete anos depois de “Sensuous”, eis que Cor-nelius está de volta com um novo disco. Ain-da que feito de composições originais, “Design Ah” não encaixa completamente na definição de disco em nome próprio, já que se trata de um projecto encomendado pela televisão públi-ca japonesa, NHK, para que Keigo Oyamada (Cornelius) musicasse um programa intitulado, precisamente, “Design Ah”, uma série educativa dedicada a “repensar os objectos que fazem par-te do quotidiano a partir da perspectiva do seu desenho e concepção, por forma a educar crian-ças e adultos sobre as maravilhas do ‘design’”. A ideia do programa partiu da colaboração de Taku Satoh, realizador da série e um dos di-rectores do museu 21_21 Design Sight, de Tó-quio, com o ‘designer’ Yugo Nakamura e Cor-nelius, entre outros criativos e artistas, sendo que o trabalho conjunto estendeu-se, ainda, à exposição “Design Ah”, com curadoria de Taku Satoh (já agora: a mostra está patente no mu-seu 21_21 Design Sight até ao próximo dia 2 de Junho). Como nota a revista italiana Domus no texto sobre a exposição, além de ser a primeira das sílabas no “hiragana”, um dos alfabetos silábi-cos da língua japonesa, “Ah” é igualmente a mais genuína expressão de espanto que asso-ciamos a uma descoberta ou surpresa, não sem algum traço de inocência ou infantilidade.A sensação de maravilhamento que o programa e a exposição incitam através da procura de um olhar diferente sobre objectos e experiências comuns do dia-a-dia é reproduzida no disco com alta fidelidade pelos 25 temas, que, nunca ultrapassando, cada um, a marca dos dois mi-nutos, compõem uma viagem que suscita mais adjectivos que os minutos que dura (37). Convocando cúmplices como Minekawa Takako, Ohno Yumiko (Buffalo Daughter), salyu x salyu ou Yakushimaru Etsuko, entre outros, Cornelius propõe uma música que, tal como o programa, ensina a ver – ouvir, neste caso –, pela primeira vez, objectos (sons, me-lodias) que, de tão presentes, já mal damos por eles. Praticamente instrumental, com as vozes a surgirem em fragmentos que, na maioria, repe-tem, por inúmeras vezes, “Oh” e “Ah”, estamos em território da chamada “música incidental”, acessória, feita propositadamente para acom-panhar uma obra teatral, um programa de rá-dio ou um programa de televisão, entre outros formatos.Mas esta aproximação de Cornelius à “músi-ca de fundo” não é, de todo, depreciativa ou

próximo oriente Hugo Pinto

castradora do génio e criatividade do artista que foi buscar o nome ao personagem que, no filme “Planet of the Apes”, de 1968, tem por missão servir de tradutor entre os humanos feitos prisioneiros e os macacos civilizados. Como noutras produções de Keigo Oyamada, mas aqui talvez numa dose intencionalmente mais concentrada, abunda nas composições--miniatura de “Design Ah” a desconstrução lúdica de algo que tem tanto de vibração sen-sual como de actividade puramente intelectu-al, racional. “Pop”, “funk”, “glitch”, notalgia ou pura diver-são, e, sobretudo, a ideia de música funcional, expressão directa de uma intenção, tudo se condensa para caber em cada um dos temas de “Design Ah”, complexamente simples e simplesmente complexos, contendo multitu-

des e onde aventura e experimentalismo são sinónimos que vão dar à mesma descoberta suposta causar o espanto, tal como intencio-nado pelos criadores do programa televisivo, com as novas visões acerca das coisas que po-voam o quotidiano.

Os sons, na verdade, são outras dessas coi-sas que nos são diárias. No entanto, é quando são organizados e tratados por Cornelius que a experiência comum se pode converter numa epifania. Pena que não seja todos os dias e que, por vezes, seja preciso esperar sete anos.

“Design Ah”Warner Music Japan2013 Cornelius

O ah! que O sOm tem

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perspectivas Jorge rodrigues simão

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ObjectivOs de desenvOlvimentO dO miléniO

A AssembleiA-gerAl da ONU rea-lizou a “Cimeira do Milénio” (Cimeira), entre 6 e 8 de Setembro de 2000, em Nova Iorque, como forma de definir as consequências da globalização, que afec-ta de forma diversa os países. A “Cimeira”, aprovou a “Declaração do Milénio”, cujo documento reconhece fundamentalmen-te, que o mundo é detentor de tecnologia e de conhecimentos científicos capazes, de solucionar a maior parte dos proble-mas, que enfrentam os países pobres, e que nunca foram aplicados a nível global.

A instituição de determinados pro-pósitos, conhecidos por “Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM)”, representa um esforço dos países, num tempo não previsível, de futura crise fi-nanceira e recessão mundial, sendo men-suráveis e delimitados no tempo. Os “ODM” definidos, passam pela erradica-ção da pobreza, alcançar o ensino primá-rio universal, a igualdade entre homens e mulheres e a autonomia das mulheres, reduzir a mortalidade infantil, melhorar a saúde materna, combater o “Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA)”, a malária e outras doenças, garantir a sustentabilidade ambiental e estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvi-mento.

Apesar da crise e da recessão mun-diais, não previstas, o relatório de 2012 da ONU, apresentou as conquistas al-cançadas, no âmbito dos “ODM”. O re-latório destaca as várias metas, a serem atingidas, na concretização dos “ODM”. Quanto à meta relativa à erradicação da pobreza extrema, para metade, foi con-seguida, três anos antes do prazo fixado de 2015.

Quanto à meta relativa à redução, para metade, do número de pessoas, que carecem de acesso a fontes de água potá-vel tratada, foi igualmente atingida, três anos antes do mesmo prazo fixado. Ao ser alcançada antecipadamente, tal ob-jectivo, significa que no período compre-endido entre 1990, que representam 76 por cento da população mundial e 2010, que representam 89 por cento da popu-lação mundial, ou seja, mais de seis mil milhões de pessoas, consumiram água

“The twenty-fifth anniversary of the Montreal Protocol on Substances that Deplete the Ozone Layer comes this year, 2012, with many achievements to celebrate. Most notably, there has been a reduction of over 98 per cent in the consumption of ozone-depleting substances. Further, because most of these substances are also potent greenhouse gases, the Montreal Protocol has contributed significantly to the protection of the global climate system.”

The Millennium Development Goals Report 2012United Nations, 2012

potável proveniente de fontes melhora-das, sendo um aumento de um por cento, relativamente aos 88 por cento, constan-te dos “ODM”.

O sucesso alcançado, conjuntamen-te pela “UNICEF” e pela “Organização Mundial de Saúde (OMS)”, reveste de capital importância, pois melhora as con-dições de vida de 200 milhões de pessoas que vivem nos bairros mais pobres das cidades, sendo o dobro da metade pro-posta para 2020.

Tratou-se do primeiro “ODM a ser alcançado, demonstrando, que o eficaz empenho, no sentido de oferecer um maior acesso a água potável, são a pro-va contra o cepticismo reinante, de que os “ODM” são uma miragem, quando na realidade, é um mecanismo fundamental, para a melhoria da condições e qualidade de vida, dos muitos milhões de pessoas, consideradas das mais pobres do mundo.

Os residentes dos bairros mais pobres das cidades dos países em desenvolvi-mentos, incluído o “BRIC”, diminuíram de 2000 a 2012, de 39 por cento para 33 por cento, respectivamente. As previsões apontam, que até 2015, 92 por cento da população mundial, tenha acesso a fontes de água potável melhorada. Os resulta-dos obtidos, representam uma extraor-dinária redução no sofrimento humano, e constituem uma clara confirmação da ênfase dado aos “ODM”.

O trabalho que permitiu tal sucesso, tem de continuar sem esmorecimentos, dado que as previsões indicam, que mais de 600 milhões de pessoas no mundo,

continuarão a carecer de acesso a água potável tratada, em 2015. O sucesso não é total, porquanto, mais de 11 por cento da população do mundo, ou seja, cerca de 785 milhões de pessoas, continuam a não ter acesso a água potável tratada e a saneamento básico.

Quanto à meta para alcançar o ensino primário universal, a igualdade no ensino primário entre crianças do sexo masculi-no e feminino foi atingido, encontrando--se mais crianças matriculadas nos esta-belecimentos de ensino primário, desde 2000, a nível mundial.

A situação tem tendência a ser inverti-da nos próximos dez anos, pois em 2010, por cada 100 crianças do sexo masculino, existiam 97 crianças do sexo feminino, matriculadas em estabelecimentos de en-sino primário, ou seja, um aumento de 91 crianças do sexo feminino, para cada 100 crianças do sexo masculino, matriculadas nos estabelecimentos de ensino primá-rio, em 1999. O número de matrículas de crianças em idade escolar na África Sub-saariana, entre 1999 e 2010, aumentou drasticamente, passando de 58 por cento para 76 por cento.

Quanto à meta relativa à redução da mortalidade infantil, deu-se um progres-so rápido, na diminuição da mortalidade materna e infantil de crianças de idade inferior a cinco anos. O conveniente abastecimento de água e saneamento beneficiam as crianças, pois diariamente morrem mais de três mil crianças, moti-vadas por doenças diarreicas. A realiza-ção total desta meta, ajudará a salvar a

vida a um número incontável de crian-ças.

Os números são assustadores, mas os esforços dispendidos na última década demonstram a sua utilidade e capacida-de de resolução, provando que as metas dos “ODM”, podem ser atingidas, com empenho, energia e através da disponi-bilização de meios técnicos, humanos e financeiros por parte da comunidade in-ternacional.

O mundo presenciou e tem benefi-ciado de novas descobertas científicas, no campo da medicina, que criou nas últimas quatro décadas, novas vacinas, que fortalecem o sistema imunológico, a melhoria de práticas de saúde, os inves-timentos na área da educação e a partici-pação de governos, sociedade civil e de outros sectores, que contribuíram para a diminuição da mortalidade infantil em mais de 50 por cento.

Anualmente, morrem milhões de crianças menores de cinco anos, nome-adamente, na África subsaariana e Sul da Ásia, por motivos que se podem evitar. A taxa de mortalidade dentro desta faixa etária foi de 57/1000 nascidos vivos, em 2010.

É possível diminuir até 2035, em to-dos os países, a mortalidade na referida faixa etária, passando para 20/1000 nas-cidos vivos, e salvar no mesmo período, a vida de mais de quarenta e cinco milhões de crianças, atingindo as metas constan-tes dos “ODM” nesta área.

Só sendo possível, desde que sejam observadas, cinco situações prioritárias, como a geografia, que passa por aumen-tar os esforços nos países onde ocorrem 80 por cento das mortes de crianças me-nores de cinco anos e as populações mais gravemente afectadas, por meio do refor-ço dos sistemas nacionais de saúde, com vista a aumentar o acesso das populações mais desprotegidas, e abranger comuni-dades rurais e com baixos rendimentos.

As soluções de grande impacto, é uma terceira situação a considerar, que passa pelo combate a cinco causas responsá-veis, por quase 60 por cento das mortes de crianças, que são a pneumonia, diar-reia, malária, nascimentos prematuros e as mortes perinatais, devendo a quarta situação ser a educação das raparigas e mulheres, que para além do investimen-to em programas de saúde, deve ser na educação das raparigas e autonomização das mulheres e promover um crescimen-to económico, do que possam aproveitar.

A última situação, tem a ver com a responsabilidade mútua, traduzida na união de esforços, em torno de um objec-tivo partilhado, utilizando indicadores comuns para acompanhar o progresso.

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gente sagrada José simões morais

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灶神 O deus do Fogão, conhecido em Macau por Tchôu--Sân (em mandarim Zao Shen), é o mais importante das divindades domésticas e duas vezes por mês (du-rante a Lua Nova e a Lua Cheia) recebia oferendas, apesar do seu aniversário apenas ser celebrado no ter-ceiro dia, da oitava Lua. No entanto, as cerimónias mais importantes realizadas a este deus são as que ocorrem antes da viagem de uma semana, quando o deus deixa o lar e vai ao Céu fazer o relatório anual ao Imperador de Jade sobre a família da residência onde está coloca-do. E é por isso que este deus, também conhecido por deus da Cozinha, como por simplificação passou a ser chamado o deus da Chaminé da Cozinha, tem grande poder sobre a vida das pessoas que formam o agregado familiar. É na última semana do ano lunar, que sobe ao Céu para se reunir com o Imperador de Jade, onde lhe relata os acontecimentos ocorridos na habitação a seu cargo, regressando no primeiro dia do ano, onde de novo é colocado na cozinha, atrás do fogão.Na véspera da viagem, no vigésimo terceiro dia do úl-timo mês lunar, os habitantes da casa oferecem sacrifí-cios a esta divindade, enchendo-o de guloseimas para que apenas conte coisas boas ao Imperador de Jade.Numa cerimónia realizada apenas pelos homens, o deus do Fogão parte transportado num cavalo e para que a viagem seja fácil e agradável, um dos seres mas-culinos da casa pega numa vela e queima a imagem do deus para que mais facilmente ascenda pelo fumo ao Céu. Antes de ser nomeado pelo Imperador de Jade como Deus do Fogão, ou da Cozinha, fora um marido que, tendo gasto todo o dinheiro ao jogo e vendido a sua mulher, anos mais tarde ao mendigar pelas ruas che-ga à casa da sua antiga esposa. Esta, reconhecendo-o e com pena dele, leva-o para a cozinha onde lhe dá de comer. Mas o actual marido chega e para que não o veja, esconde-o na lareira. Quando a criada acende o lume este, para não comprometer a caridosa mulher, ali se deixa ficar. O Imperador do Jade vendo o seu sa-crifício, nomeou-o deus do Fogão, conhecido também como deus da Cozinha, ou deus do Lar.Existem outras versões tanto para como o homem per-deu o dinheiro, como a sua ex-mulher o apoiou. Esta, sem ser reconhecida pelo ex-marido, deu-lhe alguns bolos onde colocou uma moeda em cada um. O ho-mem, no caminho encontrou um outro pedinte, que ao ver o saco com os bolos, lhe pediu um. Este ao desco-briu a moeda no meio do bolo e percebendo que o ou-tro não sabia do recheio propôs ficar com todos, o que conseguiu a troco de uma pequena quantia. Quando mais tarde veio a saber o que tinha feito, percebendo a sua pouca sorte, resolveu suicidar-se. O Imperador do Jade vendo a sua bondade, nomeou-o deus da Co-zinha.A celebração da viagem até ao Céu desta divindade começou por se realizar no Verão, mas na dinastia Han passou para o Inverno e durante a dinastia Ming foi celebrada pelos populares no dia 24, realizando-se os sacrifícios no dia anterior. Zao Shen é representado numa imagem onde consta apenas a sua figura, ou associada com a consorte, ou ainda apenas com caracteres, que se coloca no primei-ro dia do ano lunar na cozinha por detrás do fogão.

Zao Shen

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o deus do Fogão

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Huai NaN Zi 淮南子 O livrO dOs Mestres de Huainan

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Se deste modo se confiar autoridade política às pessoas, tal será como usar uma faca para derrubar uma árvore.

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huai-nan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patro-cínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canóni-co completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da So-ciedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

Do EstaDo E Da sociEDaDE – 36

Alguém que disponha de uma grande capacidade estratégica geral não deve deixar-se seduzir por uma solução fá-cil. A alguém que dispunha de parco conhecimento não se deve confiar trabalho de monta.As pessoas têm os seus talentos espe-cíficos; as coisas têm as suas formas específicas. Alguns sentem demasiado pesada a responsabilidade por uma coi-sa, enquanto que outros sentem como ainda leve a responsabilidade por cem.

Assim, as políticas mesquinhas con-duzem inevitavelmente à perda da in-tegridade geral da sociedade. Aqueles que não faltam a uma eleição relativa a assuntos menores podem perder uma escolha deveras importante.Um texugo não pode ser usado para apanhar bois; um tigre não pode ser usado para caçar ratos. Porém, os talentos das pessoas de hoje podem ser de tal ordem que desejem pacificar toda a terra e ganhar a fidelidade de outros países, preservar nações e perpetuar povos moribundos. A sua ambição é endireitar o caminho, corrigir o que saiu dos eixos, resolver

imbróglios e trazer ordem à confusão. Quando deles se exige cortesia pessoal, os homens espertos e ardilosos progre-dirão pelo elogio e insinuação junto de outros, ao mesmo tempo que usam de vulgaridades provincianas para captar a atenção do povo.Se deste modo se confiar autoridade política às pessoas, tal será como usar um machado para cortar o cabelo, ou uma faca para derrubar uma árvore – ambos estarão fora de lugar.

tradução de Rui cascais ilustração de Rui Rasquinho

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