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Inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício: uma releitura sob a ótica dos princípios do Ne bis in idem e da Proporcionalidade Rodrigo Ferreira 1 RESUMO O presente paper intenta proceder a uma análise de uma das causas de aumento de pena previstas para o homicídio culposo, qual seja a inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício. O estudo se justifica em razão de existir querela doutrinária e jurisprudencial em torno do dispositivo, notadamente quanto ao mesmo configurar, ou não, ofensa aos princípios do ne bis in idem e da razoabilidade. A premissa inicial é de que, sendo a referida majorante circunstância caracterizadora da culpa, não poderia ser novamente utilizada como circunstância como elemento extra que, acrescido ao tipo básico, conduz a uma exasperação da sanção penal. RESUMEN Este artículo tiene la intención de llevar a cabo a análisis de una de las causas del aumento de la pena prevista para el homicidio, consistente en la violación de los reglamentos técnicos de una profesión, arte u oficio. El estudio se justifica porque hay controversia doctrinal y jurisprudencial en torno de esto dispositivo, especialmente en relación a esto establecer o no infracción a los principios de non bis in idem y razonabilidad. La premisa inicial es que, dicha circunstancia, siendo lo elemento a 1 Especialista em direito público, Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, professor do Curso de Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Itabirito e da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana.

Inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício: uma releitura sob a ótica dos princípios do Ne bis in idem e da Proporcionalidade

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Inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ou ofcio: uma releitura sob a tica dos princpios do Ne bis in idem e da Proporcionalidade

Rodrigo Ferreira

RESUMO

O presente paper intenta proceder a uma anlise de uma das causas de aumento de pena previstas para o homicdio culposo, qual seja a inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ou ofcio. O estudo se justifica em razo de existir querela doutrinria e jurisprudencial em torno do dispositivo, notadamente quanto ao mesmo configurar, ou no, ofensa aos princpios do ne bis in idem e da razoabilidade. A premissa inicial de que, sendo a referida majorante circunstncia caracterizadora da culpa, no poderia ser novamente utilizada como circunstncia como elemento extra que, acrescido ao tipo bsico, conduz a uma exasperao da sano penal.

RESUMEN

Este artculo tiene la intencin de llevar a cabo a anlisis de una de las causas del aumento de la pena prevista para el homicidio, consistente en la violacin de los reglamentos tcnicos de una profesin, arte u oficio. El estudio se justifica porque hay controversia doctrinal y jurisprudencial en torno de esto dispositivo, especialmente en relacin a esto establecer o no infraccin a los principios de non bis in idem y razonabilidad. La premisa inicial es que, dicha circunstancia, siendo lo elemento a caracterizar la culpa no se podra utilizar de nuevo como una circunstancia, como elemento adicional que, adems del tipo de base, conduce a la exasperacin de la sancin criminal.

1. Uma Breve Introduo

O direito penal ptrio no admite a chamada responsabilidade penal objetiva, prevendo a possibilidade de crimes somente nas modalidades dolosa e culposa. Rechaa-se, desta maneira, a possibilidade de algum responder criminalmente por um fato que no tenha causado dolosa ou culposamente.

Ainda assim, ou seja, mesmo havendo a possibilidade de punio a ttulo de culpa, esta somente ser vivel em caso de haver disposio legal expressa neste sentido, conforme apregoa o art. 18, pargrafo nico, do digesto penal.

Podemos ento concluir que a regra no direito penal ptrio de que algum somente poder responder criminalmente por um resultado se o causar dolosamente, sendo excepcional a responsabilidade por resultado provocado de forma culposa.

Sobre o tema, assim leciona o Prof. Paulo Queiroz

Diferentemente dos dolosos, os crimes culposos s so punveis quando h previso legal expressa nesse sentido, pois do contrrio a imputao do resultado somente poder ocorrer na forma dolosa.

Mais adiante, prossegue ensinando o referido autor que

O crime culposo constitui, portanto, uma forma excepcional de crime, porque a punio de algum a esse ttulo s admissvel quando o tipo penal previr explicitamente essa possibilidade (assim, o homicdio ou a leso corporal), motivo pelo qual no existe, falta de previso legal expressa, o crime de infanticdio ou aborto culposos. Portanto, jurdico-penalmente, o dolo a regra; a culpa, a exceo.

Por isso, se algum, v. g., provoca um dano em patrimnio alheio por ter agido de forma imprudente, negligente ou imperita, embora persista a obrigao de reparar o dano, no ser responsabilizado criminalmente, vez que o legislador no previu a modalidade culposa para o delito de dano, tipificado no art. 163 do Cdigo Penal. Neste caso, os danos materiais devero ser objeto de ao prpria, no Juzo Cvel.

No caso do homicdio a soluo seria diferente, haja vista a expressa previso de punio do homicdio culposo. E nesse particular que se encontra o cerne da discusso pretendida neste papel, haja vista que no caso do crime de homicdio, alm de haver a previso de modalidade culposa, o legislador ainda trouxe a possibilidade de circunstncias que exasperam as penas deste delito, dentre as quais est a inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ou ofcio.

Aqui existe querela doutrinria, uma vez que uma corrente entende que a referida qualificadora implica na positivao do malfadado bis in idem. Este entendimento deflui do fato de que esta causa de aumento de pena se confundiria com uma das modalidades de culpa, qual seja a impercia, representando, portanto, uma dupla apenao do sujeito em razo da mesma circunstncia. Ainda dentro desta corrente, questiona-se a existncia de ofensa tambm ao princpio da razoabilidade, haja vista a punio mais severa quele que possui habilitao para o exerccio de uma profisso, arte ou ofcio do que para o sujeito que, sem possu-la, imiscui-se na funo e provoca uma morte culposa.

Em sentido contrrio, trazendo interpretao diversa com a inteno de salvar o dispositivo, uma segunda corrente defende que no h identidade entre os institutos. Defendem os adeptos desta ultima corrente que a impercia se revela quando o profissional demonstra inaptido tcnica para o exerccio da profisso, arte ou ofcio, enquanto que a causa de aumento de pena estabelece um grau maior de culpa, aplicando-se aos casos daquele sujeito que, conhecendo a regra tcnica a ser aplicada no caso concreto, deixa de observ-la, provocando dano a terceiros.

Ento, uma das indagaes a ser investigada neste trabalho se a causa de aumento de pena do crime de homicdio culposo consistente na inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ou ofcio implica em dupla apenao pela mesma circunstncia, configurando bis in idem. E em uma segunda linha de raciocnio, indaga-se tambm se ela ofende o princpio da proporcionalidade, na medida em que impe uma pena mais severa quele que tinha aptido tcnica para a prtica do ato do que quele que o praticou sem que sequer tivesse aptido para tanto, circunstncia que parece denotar uma maior reprovabilidade.

Para responder a estas questes, ser estudada a estrutura do tipo culposo, com nfase na modalidade de culpa conhecida como impercia, seguindo para uma anlise de alguns dos princpios limitadores deste ramo do direito.

2. A Culpa no Direito Penal Brasileiro

Conforme salientado acima, no Brasil somente h que se falar em crimes dolosos ou culposos, afastada que est a responsabilidade penal objetiva.

O professor Luiz Regis Prado ensina que, em sede histrica, a noo de culpa, ainda que quase sempre adstrita matria no penal, j tinha no Direito romano clssico o significado tcnico de negligncia ou imprudncia, sob as formas de luxuria, ex lascivia (culpa consciente) e de negligentia, imperitia (culpa inconsciente). E prossegue o autor esclarecendo que posteriormente, foi incorporada pelo Direito cannico e desenvolvida pelos praxistas italianos do Direito medieval como quase delictum, com trs formas diferentes: culpa lata ou magna, leve e levssima.

O dolo ao qual nos referimos o chamado dolo natural. Com o advento da teoria finalista da ao, que tem como o seu maior expoente Hans Welzel, o dolo e a culpa, antes modalidades de culpabilidade, foram transferidos para o fato tpico, integrando a conduta. Este dolo, por sua vez, veio com apenas dois elementos, um cognitivo e outro volitivo, traduzindo-se como a vontade consciente de praticar o fato descrito no tipo penal incriminador. Abrange tambm os meios executrios escolhidos. No o integra, contudo, a conscincia da ilicitude do fato.

A culpa, por outro lado, sendo o elemento normativo do tipo penal, haja vista que a sua verificao exige um juzo de valor sobre o fato ocorrido no mundo real, revela-se quando um indivduo pratica uma conduta voluntria, mas acaba produzindo um resultado involuntrio (no desejado e nem aceito), mas que, ainda que no tenha sido previsto, era objetivamente previsvel.

Para a sua configurao tambm existe um outro elemento, que a quebra do dever objetivo de cuidado. Assim, podemos resumir os elementos do tipo culposo em i) conduta voluntria; ii) resultado involuntrio; iii) nexo causal; iv) tipicidade; v) previsibilidade objetiva; vi) ausncia de previso (exceto na culpa consciente, onde o resultado previsto, mas no aceito); e, vii) quebra do dever objetivo de cuidado.

3. O tipo culposo

Neste momento, preciso conhecer adequadamente a estrutura do tipo culposo.

A conduta culposa aquela que, conforme salientado, sendo voluntria e, geralmente, dirigida a um fim lcito, provoca um resultado ilcito indesejado, no previsto, mas previsvel, e, em algumas situaes, at mesmo previsto, mas no aceito, que podia, com a observncia do dever objetivo de cuidado, ser evitado.

Os professores BONFIM e CAPEZ definem culpa como o elemento normativo da conduta, sendo assim considerada porque sua existncia depende de um juzo de valor, consistente na comparao entre a conduta praticada pelo agente no caso concreto e a conduta que um homem de diligncia normal teria naquela mesma situao.

O legislador, para definir os tipos culposos, viu-se compelido a utilizar uma frmula genrica, um tipo aberto, cujo contedo dever ser revelado pela anlise do caso concreto, fazendo incidir um juzo de valor. Para tanto, o parmetro ser a conduta de um homem de diligncia mediana. Isso acontece pelo fato de que so incalculveis as formas pelas quais pode se revelar uma conduta culposa, entendida como aquela na qual se vislumbre uma quebra do dever objetivo de cuidado a todos imposto.

Valendo-nos uma vez mais das lies de BONFIM e CAPEZ, em passagem na qual explicam qual o modelo de conduta a ser considerada como normal e, portanto, que dever ser tomado como parmetro de comparao para aferio da culpa, levando em considerao o comportamento do homem de diligncia mediana, comungamos do seu entendimento no sentido de que

A conduta normal aquela ditada pelo senso comum e est prevista na norma, que nada mais do que o mandamento no escrito de uma conduta normal. Assim, se a conduta do agente afastar-se daquela prevista na norma (que a normal), haver a quebra do dever de cuidado e, consequentemente, a culpa.

Uma outra nota caracterstica do tipo culposo o fato de que somente se configura com a ocorrncia de um resultado naturalstico, uma modificao no mundo exterior. Nota-se que se tratam necessariamente de delitos materiais, como revela claramente a dico legal do artigo 18 do Digesto Penal, onde o legislador definiu que diz-se o crime culposo quando o agente deu causa ao RESULTADO por imprudncia, negligncia ou impercia.

Aps essa breve introduo conceitual aos tipos culposos, passaremos a uma anlise pormenorizada dos seus elementos, caractersticas e peculiaridades.

4. Elementos do tipo culposo

Conforme mencionado em passagem anterior, o tipo culposo exige, conforme o caso, seis ou sete elementos para sua configurao.

Nesse toar, dever ocorrer uma conduta voluntria, que provoca um resultado involuntrio, revelando-se a existncia de um nexo de causalidade entre um e outro. Este resultado material deve ser tpico e previsvel, ou seja, dever haver previso legal expressa da forma culposa e o caso concreto dever revelar que o causador deveria ter previsto o referido resultado. O resultado dever ter sido produzido por imprudncia, impercia ou negligncia. E, por fim, temos o requisito da ausncia de previso, presente somente nos casos da chamada culpa inconsciente.

Note que ao Direito Penal somente interessam as condutas humanas voluntrias, inclusive aquelas que revelam a culpa penal. Conforme sabido, se no houver voluntariedade, no haver sequer que se falar em conduta e o fato ser atpico.

Ocorre que nos tipos culposos a conduta, ao ou omisso, embora seja voluntria, em regra no dirigida para a produo do resultado criminoso, mas sim, dirigida a um fim lcito, indiferente do ponto de vista criminal. O resultado ilegal, no desejado ou aceito, ocorre pela inobservncia do dever objetivo de cuidado, a todos imposto, e, portanto, cuida-se de um resultado involuntrio.

Neste sentido, BITENCOURT aduz que

O contedo estrutural do tipo de injusto culposo diferente do tipo de injusto doloso: neste, punida a conduta dirigida a um fim ilcito, enquanto no injusto culposo pune-se a conduta mal dirigida, normalmente destinada a um fim penalmente irrelevante, quase sempre lcito. O ncleo do tipo de injusto nos delitos culposos consiste na divergncia entre a ao efetivamente praticada e a que devia realmente ter sido realizada, em virtude da observncia do dever objetivo de cuidado.

Conforme propalado linhas acima, para que se revele a culpa ser necessrio aferir-se a previsibilidade do resultado, haja vista que o Direito Penal no se ocupa de punir o imprevisvel. Isso pelo fato de que nesta situao de imprevisibilidade no haveria como fazer incidir um juzo de reprovabilidade sobre a conduta do causador, ante a sua inevitabilidade voluntria.

Todavia, preciso lembrar que estamos tratando de um juzo objetivo de previsibilidade. Nessa linha de raciocnio, a previsibilidade da conduta ser aferida, lembre-se, com base na conduta do chamado homem mdio.

Note que no haver que se falar na verificao da possibilidade de previso em relao a esta ou aquela pessoa, especificamente. Aqui, no interessa se a pessoa, em particular, era extremamente diligente e, por ter uma prudncia acima da mdia, poderia ter previsto o resultado. A via inversa tambm verdadeira, sendo que tambm aquela pessoa que tiver uma caracterstica de ser bastante distrada no se livrar da responsabilidade por ter causado o resultado ao argumento de que, por ter uma diligncia abaixo da mdia, no poderia t-lo previsto.

Portanto, haver previsibilidade objetiva se, no caso concreto, for possvel concluir que qualquer pessoa de prudncia mediana poderia ter previsto o resultado danoso. Neste caso, ser possvel a responsabilizao penal do causador, haja vista que este juzo positivo quanto a possibilidade de previso revela um verdadeiro dever de previso, com alicerce na conduta de uma pessoa de diligncia mediana.

Vejamos como se manifesta sobre o assunto o professor BITENCOURT

O resultado deve ser objetivamente previsvel. O aferimento da ao tpica deve obedecer s condies concretas, existentes no momento do fato e da necessidade objetiva, naquele instante, de proteger o bem jurdico.

Ainda com base na ctedra do professor BITENCOURT, estamos com ele quando afirma que a previsibilidade, ou seja, a possibilidade de previso, um dado objetivo e, por isso, foroso concluir que o fato de o agente no prever o dano ou perigo de sua ao (ausncia de previsibilidade subjetiva), quando este objetivamente previsvel, no afasta a culpabilidade do agente, pois a culpa reside exatamente nessa falta de prever o previsvel.Pois bem, neste momento, diante da importncia do tema para o desenvolvimento do trabalho, inaugurar-se- um novo tpico para tratar da chamada inobservncia do dever objetivo de cuidado.

5. Inobservncia do dever objetivo de cuidado

A inobservncia deste dever objetivo de cuidado, a todos imposto, revela-se atravs de trs modalidades diferentes de conduta, quais sejam a imprudncia, a negligncia e a impercia.A primeira modalidade, ou seja, a imprudncia, tratada pela doutrina como a culpa de quem age. Revela-se de forma concomitante com a prtica do ato. Cuida-se de comportamento positivo, uma ao, na qual o agente deixa de observar as cautelas necessrias durante o seu agir, demonstrando precipitao e insensatez.

Conforme leciona BITENCOURT, nestes casos o agente sabe que est sendo imprudente, tem conscincia de que est agindo arriscadamente, mas, por acreditar, convictamente, que no produzir o resultado, avalia mal, e age, e o resultado no querido se concretiza.

A segunda modalidade de culpa a negligncia. Ao contrrio da primeira, que a culpa de quem age, a negligncia a chamada culpa por omisso, haja vista que ela se caracteriza nas situaes nas quais o sujeito, antes de comear a agir, deixa de observar os cuidados necessrios.

Sobre o tema, BITENCOURT ensina que

a negligncia no um fato psicolgico, mas sim um juzo de apreciao, exclusivamente: a comprovao que se faz de que o agente tinha possibilidade de prever as consequncias de sua ao (previsibilidade objetiva). Enfim, o autor de um crime cometido por negligncia no pensa na possibilidade do resultado; este fica fora do seu pensamento, adequando-se melhor a negligncia denominada culpa inconsciente, isto , culpa sem previso.

Ento, fcil perceber que aqui a culpa acontece antes de o sujeito comear o agir, pois o agente sequer cogita a possibilidade de produzir o resultado danoso, deixando de se acautelar para evit-lo, haja vista nem ter pensado na sua possibilidade, embora, nas circunstncias, isso fosse exigvel.

Por fim, a ultima modalidade legal da culpa a impercia. Esta conhecida na doutrina como a culpa profissional. Paulo Queiroz a define como sendo uma forma especial de imprudncia ou negligncia: a inobservncia, por despreparo prtico ou insuficincia de conhecimentos tcnicos, das cautelas especficas no exerccio de uma arte, ofcio ou profisso.

Esta modalidade ocupa-se especificamente das condutas praticadas por profissionais ou tcnicos que demonstram falta de preparo para a execuo de suas tarefas, causando resultados danosos ilegais. Desta forma, percebe-se que a impercia pressupe a qualificao ou habilitao legal para o exerccio da profisso, arte ou ofcio.

Luiz Regis Prado, ao tratar do assunto, exemplifica a impercia com o caso do motorista profissional que no tem a habilidade necessria para conduzir o veculo, recordando tambm do caso de um mdico que no saiba praticar uma interveno cirrgica ou prescrever um medicamento ao paciente.

A doutrina unnime em admitir que a impercia pode ocorrer fora da arte ou profisso, mas, neste caso, sob o ponto de vista jurdico, ser tratada como imprudncia ou negligncia.BITENCOURT, nesta mesma linha de raciocnio, adverte que a inabilidade para o desempenho de determinada atividade fora do campo profissional ou tcnico tem sido considerada, pela jurisprudncia brasileira, na modalidade de culpa imprudente ou negligente, conforme o caso, mas no como impercia.

Esclarecidas as modalidades de culpa, chegado o momento de nos ocuparmos especificamente do homicdio culposo e sua majorante, qual seja a da inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ou ofcio, oportunidade em que pretendemos demonstrar que esta causa especial de aumento de pena, evidncia, configura ofensa aos Princpios do non bis in idem e da proporcionalidade.6. O homicdio culposo majorado

Pune-se no ordenamento brasileiro aquele que, por inobservncia do dever objetivo de cuidado, por praticar conduta imprudente, negligente ou com impercia, causar a morte de outrem.

Outrossim, conforme mencionado anteriormente, a morte provocada de forma culposa mereceu especial ateno por parte do legislador, o qual previu que se o evento fatal houver sido causado por profissional que tenha deixado de observar regra tcnica de profisso, arte ou ofcio, haver uma exasperao da sua pena.

O motivo pelo qual o legislador se ocupou especificamente desta modalidade de crime culposo o fato de que existem inmeras normas tcnicas, relacionadas com o exerccio das mais variadas profisses, que estabelecem padres de atuao, exigindo a observncia de certas cautelas, justamente para evitar a provocao de danos a terceiros.

Os professores Andr Estefam e Victor Eduardo Rios Gonalves, referindo-se s normas tcnicas, lembram que somente no Cdigo de Obras, por exemplo, existem centenas delas para a construo civil. Outras inmeras existem para motoristas, pessoas que operam mquinas, eletricistas, agricultores, mdicos, dentistas, pilotos etc. Por isso, o legislador reputou mais reprovvel a conduta daquele que, sendo profissional, deixa de observar uma regra tcnica prpria do seu ofcio e, desta forma, acaba provocando uma morte que poderia ter sido evitada caso tivesse agido de forma diferente, notadamente observando as normas de segurana prprias do exerccio de seu mister.

Entretanto, a redao do dispositivo legal, ao estabelecer que a causa de aumento de pena incidir no caso de a morte ser provocada por inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ou ofcio, aponta claramente para a dupla apenao da mesma circunstncia, conforme veremos.

Ento, vejamos em que consiste o princpio do ne bis in idem.

7. Princpio do Ne Bis In Idem

Este princpio, corolrio dos princpios constitucionais da legalidade e da proporcionalidade, implica em vedao possibilidade de que um indivduo possa ser processado, condenado e apenado mais de uma vez em decorrncia de um mesmo fato, de uma mesma circunstncia. A expresso, por si s, j indica que estamos nos ocupando daquilo que no deve ser repetido.

por esse motivo que se algum foi processado e julgado por um fato supostamente criminoso, tendo sido absolvido, no poder ser novamente processado pelo mesmo fato. O mesmo raciocnio se aplica no caso de condenao; desta maneira, caso algum tenha sido processado e condenado, desde que transitada em julgado a deciso, no h possibilidade de imposio de nova pena pelo mesmo fato, ainda que se apurem circunstncias que, em tese, pudessem agravar a pena.

Neste sentido, ensinam Andr Estefam e Victor Eduardo Rios Gonalves que

A vedao, que se funda em critrio de equidade, no direito de liberdade e no devido processo legal, interessa tanto ao Direito Penal quanto ao Processo Penal. Uma vez imposta e executada a sano, esgota-se a funo da pena, de tal modo que a renovao do apenamento pelo mesmo ato constituiria punio gratuita e infundada, fazendo do Direito Penal instrumento de vingana, e no de Justia.

Nas palavras de Luiz Regis Prado, o princpio do ne bis in idem ou non bis in idem constitui infranquevel limite ao poder punitivo do Estado. Atravs dele procura-se impedir mais de uma punio individual compreendendo tanto a pena como a agravante pelo mesmo fato (a dupla punio pelo mesmo fato).

Investigando o alcance do referido princpio, embora j tenhamos explicitado que busca afastar desde a possibilidade de duplo processamento pelo mesmo fato at a dupla punio, no demais atentar para o fato de que este raciocnio restritivo-limitador tambm aplica-se s circunstncias que permeiam os tipos bsicos, sendo tambm inaceitvel que elas possam ser duplamente levadas em considerao para efeito de aplicao e/ou exasperao de sanes criminais.

Por fim, preciso salientar o fato de que este princpio tambm tem como uma de suas funes marcantes servir de auxiliador no respeito ao princpio da razoabilidade, vedando o excesso e, consequentemente, a aplicao de uma punio que transborde os limites da reprovabilidade da conduta praticada. Ento, servindo de auxlio no respeito ao princpio da proporcionalidade, a conseguimos vislumbrar um vis constitucional no Princpio do ne bis in idem.

Sendo assim, revela-se como inegvel que o malfadado bis in idem ofende princpios de ordem constitucional, relacionados com alguns dos mais importantes direitos fundamentais do cidado, devendo ser fortemente combatido.

Passemos agora a um breve estudo do princpio da proporcionalidade, haja vista a sua j explicitada ntima relao com a vedao de bis in idem.

8. Princpio da proporcionalidade, quantidade de pena e a majorante do homicdio culposo

Este princpio, conforme preleciona Ferrajoli, encontra as suas razes na antiguidade, contudo, somente no perodo histrico que ficou conhecido como perodo da ilustrao, ou seja, no iluminismo, que o mesmo ganhou visibilidade e conseguiu se impor, oportunidade em que, notadamente com a publicao do livro intitulado Dos Delitos e Das Penas, de autoria de Cesare Bonessana, conhecido como Marqus de Beccaria, apresentou-se um novo vis e uma nova forma de sentir e entender do Direito Penal, buscando-se, sobretudo, a sua humanizao. Foi nesse perodo em que se passou a discutir os princpios da legalidade, humanidade, certeza, igualdade e a necessidade de penas proporcionalmente adequadas ao mal causado. Esta nova perspectiva, que influenciou e continua a influenciar o desenvolvimento do moderno direito penal, adveio da necessidade de combate quela ideologia at ento predominante, a qual implicava na imposio de penas desmedidas, excessivamente rigorosas e cruis.

Nesse toar, sob uma perspectiva garantista do Direito Penal, o qual deve ser lido sempre sob uma tica constitucional, evidente a exigncia de que o legislador e o aplicador do Direito no se divorciem da lgica que estabelece a necessidade de coerncia entre o mal injusto, praticado pelo infrator, e o mal justo, imposto pelo Estado em resposta. Ento, a indagao principal ao analisar este princpio dentro do direito penal a seguinte: qual a quantidade de pena necessria e proporcional para cada caso?

preciso lembrar que o princpio da proporcionalidade, hodiernamente j bastante conhecido e integrado ao arsenal jurdico constitucional brasileiro orienta desde o legislador at o aplicador do direito, exigindo do primeiro que estabelea as sanes de forma equilibrada, sendo mais severas na conformidade da gravidade do ato ilegal praticado. Aplica-se tambm ao julgador, o qual dever, analisando pormenorizadamente o caso concreto submetido ao seu exame, tomando como parmetro o que dispe a legislao, individualizar a pena para aquele indivduo e caso, de forma a concretizar uma sano que seja bastante a adequada para a punio, preveno e, qui, para a ressocializao daquele infrator, em particular.

Luigi Ferrajoli ocupou-se do tema da proporcionalidade que necessariamente haver de ser observada entre o mal causado pela infrao e a pena cominada e/ou aplicada, enfrentando-o com propriedade em sua conhecida obra Derecho y Razn. Ento, aduz que

El hecho de que entre pena y delito no exista ninguna relacin natural no excluye que la primera deba ser adecuada al segundo en alguna medida. Al contrario, precisamente el carcter convencional y legal del nexo retributivo que liga la sancin al ilcito penal exige que la eleccin de la calidad y de la cantidad de una se realice por el legislador y por el juez en relacin con la naturaleza y la gravedad del otro. El principio de proporcionalidad expresado en la antigua mxima poena debet commensurari delicto es en suma un corolario de los principios de legalidad y de retributividad, que tiene en stos su fundamento lgico y axiolgico.

O mesmo autor, observando a dificuldade que deflui da ausncia de critrios concretos e objetivos de ponderao para a aferio da referida proporcionalidade, adverte que o parmetro sero critrios pragmticos baseados em valoraes tico-polticas ou de oportunidade.

Ferrajoli prossegue em suas consideraes sobre o tema e conclui que, quanto predeterminao legal da pena, ou seja, quanto aos seus limites mnimo e mximo cominados em abstrato, se do ponto de vista externo dois delitos no so considerados da mesma gravidade ou um estima-se menos grave do que o outro, contraria o princpio de proporcionalidade que sejam castigados com a mesma pena ou, pior ainda, o primeiro com uma pena mais elevada do que a prevista para o segundo. Em todos os casos, o princpio de proporcionalidade equivale ao princpio de igualdade em matria penal.

Sendo assim, parece-nos que o legislador uma vez mais andou mal neste dispositivo que disps acerca da exasperao das penas do homicdio culposo no caso de inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ou ofcio, haja vista que alm de ter ofendido vedao de bis in idem, tambm operou com ofensa ao princpio da proporcionalidade.

Ocorre que, ao contrrio do que sustentam os defensores da causa de aumento de pena sob enfoque neste papel, a conduta daquele que, possuindo os conhecimentos e a habilitao tcnica necessrios para a prtica do ato, por descuido ou desleixo, deixa de observ-los e, assim, causa dano a outrem, no caso especfico, provocando resultado morte, no merecedora de maior reprovabilidade do que a conduta daquele que provocou este resultado gravoso pelo fato de sequer possuir a habilitao tcnica necessria.

Vejamos os seguintes exemplos. Em uma primeira situao, um mdico especializado em cirurgias, por descuido, deixa de observar uma regra tcnica prpria da profisso e daquele tipo de interveno, provocando, por conseguinte, a morte do paciente. Neste caso, conforme a dico legal vigente, responder no somente pelo homicdio culposo, em razo da flagrante impercia, mas tambm incidir a majorante, por no ter observado a regra tcnica por ele conhecida. Em um segundo cenrio, a hiptese leva em considerao tambm a conduta de um mdico. Todavia, neste caso, cuida-se de mdico no habilitado para a realizao de procedimentos cirrgicos mas que, mesmo assim, ou seja, mesmo no tendo a especializao necessria para a prtica do ato, realiza cirurgia e, por no possuir os conhecimentos necessrio, provoca a morte do paciente. Neste ultimo caso, nos termos da legislao atual, o profissional da medicina responder pelo homicdio culposo na sua forma simples.

Ora, a anlise casustica acima revela flagrante desproporcionalidade de tratamento desses dois indivduos.

Evidente que a conduta deste segundo mdico merece maior reprovao, haja vista que ele se aventurou, praticando um procedimento mdico de alta complexidade, qual seja uma interveno cirrgica, sem que tivesse a especializao profissional necessria. Esta circunstncia , por bvio, implica em flagrante imprudncia, diante da sua impercia manifesta para aquele tipo de procedimento, aumentando em grande proporo, alis, transpondo a barreira da possibilidade, sempre mais lata, e chegando mesmo a um juzo de probabilidade, mais restrito, da ocorrncia do resultado indesejado.

Desta forma, resta evidente a incoerncia do dispositivo legal ao apenar de forma mais rigorosa aquele que possua a habilitao necessria para o ato, mas que, por descuido, deu causa ao resultado, enquanto ao segundo que, sem o treinamento necessrio, aventura-se de forma irresponsvel, comina uma pena mais branda. Nesta perspectiva, sendo certa a ofensa ao constitucional princpio da razoabilidade, impe-se concluir pela inaplicabilidade da referida causa de aumento de pena.

9. Da ocorrncia de bis in idem no homicdio culposo majorado

No bastasse tudo quanto foi dito at o momento, a demonstrar de forma inequvoca a ofensa ao princpio da proporcionalidade, passaremos a anlise do caso sob o enfoque do princpio do ne bis in idem, tambm desrespeitado pelo mesmo dispositivo legal.

Em que pese o esforo doutrinrio para operar uma diferenciao entre a impercia, frmula genrica da culpa, e a causa de aumento de pena do homicdio culposo consistente na inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ou ofcio, a redao do dispositivo que trouxe a previso da referida majorante deixa claro que se trata de situao de bis in idem.

Reproduzindo o dispositivo legal em comento, veja que a lei dispe que, no homicdio culposo, a pena aumentada de um tero, se o crime resulta de inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ou ofcio.

A doutrina, majoritariamente, dispensou um grande esforo hermenutico para tentar salvar o dispositivo e afastar esta constatao de dupla apenao pela mesma circunstncia. O argumento utilizado j h muito tempo, desde as lies do saudoso mestre Nelson Hungria, o de que haveriam peculiaridades capazes de diferenciar a simples impercia da causa de aumento de pena do homicdio culposo.

Defendem os adeptos desta posio que a culpa profissional pura e simples, ou seja, a impercia, revela-se nos casos daquele profissional que demonstra falta de habilidade para o desempenho da arte, profisso ou ofcio, enquanto a causa de aumento se configura em situaes nas quais o agente demonstra aptido para desempenh-las, porm, provoca a morte de algum porque, por desleixo, por descaso, por desateno, deixou de observar regra tcnica inerente quela funo.

Todavia, esta argumentao no resiste a um olhar atento e criterioso. A lei foi clara ao afirmar que para a configurao da majorante a inobservncia da regra tcnica deve ter sido a causa da morte. Assim, se a desdia profissional em observar a regra de cautela se revelar como a causa da morte, resta claro que essa a circunstncia caracterizadora da prpria culpa, no podendo ser uma vez mais levada em considerao para a finalidade de exasperar a pena do agente.

Lembremos que as majorantes tm a natureza jurdica de circunstncias. Ao contrrio das elementares do tipo legal incriminador, que so aqueles dados essenciais da figura tpica, sendo que a sua ausncia implica em uma atipicidade, absoluta ou relativa, conforme o caso, as majorantes, sendo circunstncias acidentais, podem ou no ocorrer e, quando presentes, implicaro em um aumento ou diminuio da pena.

Todavia, observe que, sendo acidentais, as circunstncias no compem a figura delitiva na sua forma simples. Caso no estejam presentes no evento concreto, o fato continua sendo tpico. Ao contrrio, ou seja, fazendo-se presentes, tero como consequncia uma alterao da pena, abrandando-a ou exasperando-a.

Logo, fcil perceber que tais circunstncias so dados acessrios que se agregam ao tipo simples, ou seja, so dados outros, extras, que se somam descrio do tipo bsico para modificar a sua pena.

Assim, no caso do homicdio doloso, que na forma simples se configura pelo simples fato de algum provocar a morte de outrem, este poder tambm ser praticado com emprego de veneno e esta circunstncia acessria, agregada ao simples matar algum, implicar na exasperao da pena do tipo bsico, haja vista ser uma das circunstncias que qualificam aquele delito. Entrementes, fcil perceber que se cuida de dado acessrio, sendo que, na sua ausncia, o simples matar algum continua a configurar o crime de homicdio, todavia, na forma simples. fcil de ver que o emprego de veneno um dado a mais que, em determinadas situaes, agrega-se ao tipo bsico, no se confundindo com as suas elementares.

A diferena desta situao e daquela prevista na majorante da inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ou ofcio flagrante. Repito, a lei disps expressamente no dispositivo legal em comento que a causa de aumento de pena se configuraria quando a morte fosse resultado da inobservncia da regra tcnica. Logo, resta evidente que se esta circunstncia a causa do evento fatal no pode ser, ao mesmo tempo, uma circunstncia acidental e acessria. Pela redao do dispositivo legal foroso concluir que se retirssemos a inobsevncia da regra tcnica do contexto ftico, o fato morte de outrem deixaria de ter ocorrido, sendo tal inobservncia, portanto, a circunstncia principal.

Esta circunstncia polmica na doutrina e jurisprudncia ptrias, havendo divergncia at mesmo dentro de um mesmo tribunal. o que ocorre na jurisprudncia do Superior Tribunal de Justia, onde podemos perceber que a quinta turma refratria da tese de configurao de bis in idem, enquanto a sexta turma, em sentido contrrio, tem reiteradamente afastado a aplicao da majorante por reconhecer a dupla apenao nos casos em que a exordial acusatria descreve a inobservncia de regra tcnica como caracterizadora da prpria culpa.

Demonstrando a divergncia existente na jurisprudncia, a quinta turma do STJ, ao julgar o HC 231241/SP, na data de 26 de agosto de 2014, decidiu que o homicdio culposo se caracteriza com a imprudncia, negligncia ou impercia do agente, modalidades da culpa que no se confundem com a inobservncia de regra tcnica da profisso, que causa especial de aumento de pena que se situa no campo da culpabilidade, por conta do grau de reprovabilidade da conduta concretamente praticada. 2. No h bis in idem pelo aumento implementado com base no 4. do art. 121 do Cdigo Penal, em razo de constatar-se circunstncias distintas, uma para configurar a majorante, outra para o reconhecimento do prprio tipo culposo. 3. No caso, as instncias ordinrias ressaltaram que o Paciente agiu com negligncia, pois no notou os evidentes sintomas de meningite que a vtima apresentava e inobservou a regra tcnica da profisso de mdico, porque deixou de realizar o exame indicado quando h probabilidade de infeco e ministrar tratamento especfico a base de antibiticos.

Todavia, a sexta turma do mesmo tribunal, ao julgar o HC 167804/RJ, na data de 13 de agosto de 2013, decidiu que 3. A causa especial de aumento, prevista no art. 121, 4 do Cdigo Penal (inobservncia de regra tcnica de profisso) figura no campo da culpabilidade e, pois, para incidir, deve estar fundada em outra nuance ou fato diferente do que compem o prprio tipo culposo, rendendo ensejo a maior reprovabilidade na conduta do profissional que atua de modo displicente no exerccio de seu mister, dando causa ao evento morte. Precedentes desta Corte e do STF (RHC n. 26.414/RJ, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe 26/11/2012). 4. Em relao causa de aumento de pena, a pea acusatria restringiu-se a afirmar que, por inobservncia de regra tcnica nos cuidados dispensados vtima, a paciente e demais agentes causaram leses que foram a causa eficiente de seu falecimento. No houve, portanto, o devido esclarecimento do que configurou a majorante em comento, evidenciando que a prpria inobservncia de regra tcnica foi utilizada para caracterizar a impercia. Ocorrncia de bis in idem. 5. Habeas corpus no conhecido. Ordem concedida de ofcio, para excluir da imputao a causa de aumento de pena contida no art. 121, 4, do Cdigo Penal e possibilitar o oferecimento de proposta de suspenso condicional do processo.

Observando a divergncia jurisprudencial apontada, podemos notar que, embora os posicionamentos sejam divergentes nestes dois julgados, existe um ponto de concordncia, o fato de que a circunstncia determinante para a configurao, ou no, do bis in idem o fato de a inobservncia da regra tcnica ser, ou no, a causa do evento morte, caracterizando a prpria culpa.

Nesse contexto, no h como negar o fato de que, havendo identidade entre a circunstncia que deu causa morte, e, portanto, configurou a inobservncia do dever objetivo de cuidado, esta mesma circunstncia no poderia ser utilizada, em dois momentos distintos, primeiro para a configurao da culpa e, aps, para exasperar a pena do crime culposo, sendo evidente e inegvel a ofensa ao princpio do non bis in idem, sendo foroso concluir ser a majorante inconstitucional.

10. Concluso

Aps transitar brevemente pelas nuances do tipo culposo, recordando quais so as suas caractersticas preponderantes, bem como as modalidades de conduta indicativas da inobservncia do dever objetivo de cuidado, buscou-se conjugar tais caractersticas com um dispositivo legal especfico, qual seja a causa de aumento de pena prevista para o caso de o homicdio culposo ter sido provocado em razo da inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ou ofcio.

Para tanto, foi necessrio analisar, ainda que brevemente, quais as caractersticas e a extenso dos princpios do ne bis in idem e da proporcionalidade, haja vista a hiptese inicial de que o dispositivo legal estudado implicaria, a um s tempo, em ofensa a ambos.

O desenvolver da pesquisa, ao que parece, confirmou as expectativas inicialmente existentes, demonstrando que a referida causa de aumento de pena do homicdio culposo, sendo definida pela prpria lei como a circunstncia causadora do resultado morte, consiste na prpria conduta caracterizadora da culpa, na modalidade impercia, logo, de fato no poderia, uma vez mais, ser utilizada a mesma circunstncia, relativamente ao mesmo fato, para exasperar a pena do infrator, o que implica em dupla apenao do sujeito em razo de uma mesma circunstncia.

Tambm se confirmou a hiptese inicial de ofensa ao princpio da proporcionalidade, na medida que a punio de um profissional habilitado para o exerccio da funo que, por descuido, provocou um resultado morte, por inobservar uma regra tcnica por ele conhecida, , certamente, menos reprovvel do que a conduta de um outro profissional que, sem dominar os conhecimentos necessrios para o ato, ou seja, sendo inabilitado para aquele tipo de atuao, irresponsvel e aventureiramente pratica-o, provocando a morte de outrem.

Por tudo, a concluso final de que o dispositivo legal que predispe a inobservncia de regra tcnica de profisso arte ou ofcio como causa de aumento de pena para o homicdio culposo, por ofender os princpios da razoabilidade e do ne bis in idem, ambos de vis constitucional, integrando o arcabouo dos direitos individuais fundamentais do cidado, deve ter a sua aplicabilidade rejeitada, ante sua inconstitucionalidade.

11. REFERNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral vol. 1. 17. Ed. So Paulo: Saraiva, 2012.

BONFIM, Edilson Mougenot; CAPEZ, Fernando. Direito Penal: parte geral. So Paulo: Saraiva, 2004.

ESTEFAM, Andr; GONALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Esquematizado: parte geral. So Paulo: Saraiva, 2012.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razon: Teora del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta, 1995.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1: parte geral, arts. 1 ao 120. 11 ed. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: parte geral. 4. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

Especialista em direito pblico, Analista do Ministrio Pblico do Estado de Minas Gerais, professor do Curso de Direito da Faculdade Presidente Antnio Carlos de Itabirito e da Faculdade Presidente Antnio Carlos de Mariana.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1: parte geral, arts. 1 ao 120. 11 ed. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 415.

BONFIM, Edilson Mougenot; CAPEZ, Fernando. Direito Penal: parte geral. So Paulo: Saraiva, 2004. p. 399.

Op. Cit., p. 399.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral vol. 1. 17. Ed. So Paulo: Saraiva, 2012. p. 798. Verso e-book.

Op. cit. p. 809.

Op. Cit. p. 816.

Op. Cit. p. 816/817.

QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: parte geral. 4. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 225.

Op. Cit., p. 420.

Op. Cit., p. 817/818.

ESTEFAM, Andr; GONALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Esquematizado: parte geral. So Paulo: Saraiva, 2012. p. 125. Verso e-book.

preciso lembrar que o Direito ptrio repele a reviso criminal pro societate, conforme se depreende do disposto nos artigos 621 e seguintes do Cdigo de Processo Penal.

Op. Cit., p. 78.

Op. Cit., p. 184.

A partir da deciso do Tribunal Constitucional Espanhol (STC n. 2/1981) no sentido de se deduzir o ne bis in idem do postulado da legalidae (art. 25.1, CE), a doutrina espanhola passa a questionar essa concluso, tanto do ponto de vista de sua insuficincia quanto em relao aos critrios utilizados para tanto. De outra parte, erige-se ele como uma manifestao do princpio da tipicidade (corolrio da legalidade), mas, especialmente, do princpio constitucional penal da proporcionalidade. dizer: se essa limitao ao poder de punir estatal no fosse imposta, restaria prejudicado o ajuste da pena a qualquer medida ou critrio de proporo. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1: parte geral, arts. 1 ao 120. 11 ed. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 186.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razon: Teora del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta, 1995. P. 398.

Op. Cit., p. 397/398.

Op. Cit., p. 323.