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o peso do medo 30 poemas em fúria Wellington de Melo

O peso do medo, 30 poemas em fúria 5.1 - edição do autor

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Livro de poemas de Wellington de Melo, versão do autor, revisada e ampliada.

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o peso do medo

30 poemas em fúria

Wellington de Melo

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Para Aleph.Imola meu medo.

Incendeia meu legado, minha fúria.

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percurso do livro

I – o medo a fúria a alcova 15

II – o medo a fúria o gabinete 37

III – o medo a fúria a rua 59

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PREFÁCIO

Provisoriamente não cantaremos o amor,[...] Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,

Carlos Drummond de Andrade.

“Assaltado pela poesia, leitor incauto sente o peso do medo. Em fúria, populares se apoderam do elemento, que contra-ataca com uma rajada de mais 30 poemas”: essa poderia ser a manchete de algum fanzine de pouca imaginação para fazer trocadilhos com este livro, mas não deixa de ser uma imagem que desejaríamos ver inserida nas sanguissedentas notícias do nosso cotidiano. Mas ― perguntaria aquele leitor incauto ― é disso que é feito o peso do medo 30 poemas em fúria? Não, não é disso.

Este livro de Wellington de Melo faz vibrar aquele tipo de poesia que, ancorada no dia a dia, reconecta palavras e sentimentos que, de tão caóticos e movediços, fazem parecer totalmente vã a tarefa de lhes dar nome. Peso, medo, poema, fúria: tais palavras surgem apenas como um semáforo em que nos espreitam perguntas. como açoitar a agonia: essa é uma das frases que abre o fluxo de imagens que o peso do medo traz. Ao leitor cabe decidir se é pergunta ou instrução, pois não há sinais de pontuação para lhe impor pausas nem este ou aquele sentido. A pergunta (ou instrução) é refletida no próprio fazer poético: açoitar a agonia com a poesia. Mimetizando o caos de informações que desaba sobre nossa mente o tempo todo, o medo e a fúria do poeta vão da alcova à rua, passando pelo gabinete, e ressignificam esse jorro através de imagens poéticas ininterruptas, evitando a palavra domesticada. E se o excesso de informações nos fragmenta, o jorro deste livro nos recolhe para dentro de nós mesmos. Porém, a vertigem provocada não almeja respostas sobre o que somos, mas o reconhecimento de que somos abismos: como carbonizar a

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vontade adormecida das escrivaninhas se sou só isso se isso é só abismo.

Que fizeram de nós, quando tudo o que mais queremos é um momento sem medo e sem fúria? O medo da morte torna-se sem sentido quando nos sentimos mortos, quando o dia morre e algo grandioso já morreu dentro de nós: nossa humanidade. eu me vi rasgando o que há de humano em mim eu temi o que há de humano em mim eu me vi enfim humano eu me vi.

Pesada e dolorida muitas vezes, a voz do poeta se torna nossa voz ao trazer imagens vivas, tão inquietantes quanto familiares: há algo calado nessas ilhas há algo calado que se remove debaixo de capas e capas e capas e capas de tinta dessas paredes silenciadas. A poesia transcende o real para depois retornar a ele. E a poesia de o peso do medo vem marcada por essa circularidade, característica da poética de Wellington de Melo, seja na estrutura dos poemas em que as palavras iniciais se repetem no final, seja na menção explícita ao uróboro, o dragão mitológico representado devorando a própria cauda, símbolo do infinito em muitas culturas antigas. A autodevoração do uróboro se realiza num caráter metapoético, como num dos momentos mais corajosos e belos do livro, o poema wellington de melo: não não não não serás grande poeta porque letra não se faz com afago. A dedicatória ao filho Aleph também não deixa de aludir aos números infinitos, representados na matemática por essa letra do alfabeto hebraico. Aliás, a escrita hebraica é lembrada por outro aspecto significativo em vários poemas: nomes grafados com espaços nos quais uma vogal foi suprimida. Ogum, (São) Jorge, Carlos (Drummond), Pasárgada, Anticristo, (anjo) Gabriel, Artur Rogério, (William) Blake, (Thom) Yorke, (Manuel) Bandeira, Lorca: a grafia de todos esses nomes evoca o lugar de respeito conferido pela cultura hebraica a certas palavras nas quais apenas as consoantes são grafadas, representando a ideia de que com as palavras Deus criou o universo e nelas estariam contidos mistérios ocultos e, ao mesmo tempo, elas seriam sinais abertos a vários significados. E, conciliando culturas semíticas há anos em guerra, também nos deparamos com

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a herança linguística árabe aqui e ali: alcaguetes (delator), alfarrábios (livro antigo ou velho), alcova (aposento, quarto). E por falar em medo, após o 11 de setembro, a palavra “árabe” desperta em muitos imediatamente a ideia de terrorismo. A crítica sutil à paranoia generalizada fica explícita na citação da música Paranoid Android, da banda inglesa Radiohead, cuja letra aparece em fragmento na epígrafe do poema menino menina. A música em questão tem algo de caótico, alternando momentos de guitarras distorcidas e melodia suave. Descobrimos então que a simetria buscada na estruturação do livro, dividido em 3 partes de 10 poemas numerados cada, não se sustenta diante do caos que o medo traz. Descobrimos também a transmutação do medo em ironia, um medo com vergonha de ser medo.

Vejamos pois como o medo, que leva à fúria, nos permite mastigar a carne da poesia.

João B. Martins de Morais (Johnny Martins).

Recife, outubro de 2010.

Ensaísta, tradutor, Professor de Literatura de expressão inglesa (UEPB), Mestre em Teoria da Literatura (UFPE) e Doutorando em Literatura e Cultura (UFPB).

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Io medo a fúria a alcova

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1. arte poética

morto ventre de livros oróboro prateleiras silêncio pó esse livro não é carne e sangue é mais uma máscara que se arrasta já nada há pra dizer nada esse livro mais medo menos fúria mais fuga de terminar devorador de umbigos ou de seguir cinza ou de ser um dos jovens sérios de fernando monteiro ou de ser raíz e tumba ou de ser mais uma cria-espelho-neruda ou de ser sensação roda-de-samba da lapa odisseia criar manuais de escombros ser diplomático anêmico diferente iconoclasta moderninho ou ser só isso odisseia ó alcaguetes de plantão oh ser pop cult no café-cinema-de-arte ó poetas pós-românticos pós-simbolistas pós-concretistas pós-modernos oh não ser nada só uma palavra depois da outra uma depois da outra o poema após a morte do verso ó maquiadores de dor inventada como estrangular a úlcera dessas letras como multiplicar meu caos-retina como implodir meu corpo rua vazia como incendiar em mim o gabinete como desmembrar a alma dos edifícios mortificados como violar a úmida memória das crianças do caderno cidade como açoitar a agonia das etnias vencidas como retirar o véu de silêncio das bocas dos trens lotados como carbonizar a vontade adormecida das escrivaninhas se sou só isso se isso é só abismo se isso é só odisseia derreter enfim o arquipélago sodomizar as últimas esperanças da plateia enfeitar as vestes da noite com as vísceras de platão

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2. wellington de melo

não não não não serás grande poeta porque letra não se faz com afago não se faz com pena do amigo ou de seus alfarrábios não se faz culpando fúria de crítico frustrado engolindo medo de ser culpado serás funcionário cinza de iniciativa privada terás alguns belos fins de semana na praia e um um ponto zero meio usado uma vidinha classe média e uns poucos amigos sinceros não importa quanto sangre cada livro que letras mortas e pupilas empoeiradas em tuas costas sempre pesarão beberás como um cão sorrisos de canto de boca de burocratas do mecenato sobreviverás a lançamentos solitários em tardes ociosas de shoppings lotados farás rimas fáceis em troca de um trocado bajularás os papas da literatura provinciana do recife por um prefácio velado lerás talvez um dia um comentário insosso num blog pouco visitado darás em tua vida uma entrevista de três minutos um dia morto numa rádio muitos anos depois que te fores depois de os prêmios de todos os grandes poetas de tua geração terem se transformado em notebooks carreiras de coca viagens a cancun programas com boyzinhos descolados teu filho encaixotará teus livros não vendidos num sábado funerário e te esquecerão não serás grande poeta não não não

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3. a alcova

quero na alcova sufocar o espelho quero na alcova ser corpo cataclisma sobre o outro ser só isso um rosto e nada uma máscara fraturada um não escondido um não engavetado só isso quero na alcova esquecer de tudo recriar o mundo meu paraíso-playmobil minha ilha-anfetamina enterrar a beleza redentora do sexo arruinado dos meninos e das meninas em chamas

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4. medidaeu medi minha fúria isso não leva a nada cada palavra comedida cada palavra domesticada como quem mede a sorte entalho minha fúria com tédio e insônia cada palavra acrílico cada palavra lágrima esterilizada cada palavra cemitério cada palavra nascedouro em língua perfurada isso não leva a nada cada palavra lume no crânio diurno das repartições cada palavra precipício rua invadida entre nós a falésia o grito pasteurizado eu peso cada palavra como quem pesa a morte como quem pesa o dia e apesar de seu peso em meu tempo rosa causticada em nenhuma palavra cabe meu medo em nenhuma palavra repousa minha fúria

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5. peso

eu pesei meu medo eu cão estraçalhado pela multidão faminta eu pesei meu medo por toda a vida desejei meu medo esquartejado numa esquina eu pesei meu medo eu fugi da rima rima azeda pré-carnavalesca rima didática educada eu pesei meu medo e não havia nada eu pesei meu medo e o peso de meu medo era eu eu me pesei e não era nada eu pesei todas as coisas e nada eu pesei meu medo e não havia nada a não ser medo a não ser medo a não ser

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6. antiquário

guardo a fúria de todas as coisas do antiquário guardo a fúria do velho relógio da viúva cega guardo a fúria do porta-retratos vazio da mãe do natimorto a fúria do abajur da primogênita impura do pedófilo guardo a fúria do livro e da dedicatória esquecida guardo a fúria da caneta tinteiro do traficante de órgãos a fúria da poeira sobre todos os cadáveres abandonados na penumbra do antiquário guardo a fúria das coisas que é a fúria do suicida a fúria de nunca mais voltar

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7. minha fúria

essa fúria não é nada ceder ao desejo de abismo essa fúria não é nada passar o fim de semana high essa fúria não é nada brindar feliz ano novo com os bêbados na praia essa fúria não é nada palavra na garganta sufocada essa fúria não é nada pragas de bajuladores extirpadas essa fúria não é nada as pernas dos meninos da avenida amputadas essa fúria bronca pesada essa fúria jornal nacional essa fúria top 10 fúria sulanca-caruaru fúria brechó-cabeça fúria cocaína-daslu fúria terceiro de magistério fúria ementa teoria três fúria trote de medicina fúria afogados da usp fúria psiquiatras assassinados em semáforos fúria mendigos carbonizados no altar do senhor fúria emiliano zapata fúria beira mar fúria papa doc fúria no sorriso dos voluntários da ong fúria no penteado dos alternativos classe média fúria nas narinas brancas dos porraloucas classe a é minha fúria crack na veia fúria legalize já é minha fúria maconha-de-grife é minha fúria-glamour fúria chimbinha fúria maria gadú todos contra todos fúria limando ossos de índios nas escadarias do bonfim todos contra todos fúria gang-bang com a filhinha do desembargador todos contra todos fúria apedrejando os desejos ocultos da feira livre fúria jesus fúria nietzsche fúria hobbes é minha fúria é minha fúria não é nada não é nada é minha fúria

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8. onde

onde teu medo parede vigiada onde tua fúria fera engaiolada onde teu medo solidão sitiada onde tua fúria manhã mascarada onde teu medo desejo saciado onde tua fúria pânico alado onde teu medo só e metrificado onde tua fúria verso esfacelado onde está tua fúria de fim de semana fúria escondidinha no canto da sala fúria silenciada pelas vitrines pelo diário oficial pelo listão tua fúria beck na gaveta de mamãe fúria bolinhas na festa hype aquela tua fúria cara-pintada onde é essa tua fúria é essa tua fúria é essa onde está teu medo de dizer nada teu medo de dizer sem verso e sem metro teu medo encurralado pela fome pelo tudo-vai-ficar-bem pelo tapinha nas costas teu medo de dizer na cara aquele teu medo de dizer agora onde é esse teu medo é esse teu medo é esse

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9. dois tygres

pra não esquecer quem sou eu pesei minha experiência e plantei dois tygres em minha retina quando adormeço depois do jornal nacional depois da pizza de domingo depois do sorriso do meu filho atiço meus tygres de estimação eles me arranham o juízo mordem o tédio devoram o olho de meu pesadelo meus tygres meus companheiros a fúria e o medo

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10. cria-corvos

é pesado o medo é pesado você acaricia o seu a cada manhã escondido no criado-mudo alimenta-o lentamente na alcova calado é pesado o medo é pesado eu desenhei o medo na umidade do espelho do quarto vomitei meu medo na porta da escola do filho vigiado é pesado eu sei é pesado você saboreia seu medo-fast-food enquanto mima seu casal de tygres siameses enquanto a chuva lambe os corpos dos condenados enquanto a lama lava os córregos da periferia você dá de mamar a seu medo enquanto os meninos se esfaqueiam ao som do danúbio azul você inaugura seu medo a cada dia no lavabo é pesado eu sei é pesado e seu pesadelo é seu medo no bolso do paletó esperando o momento de dizer basta basta basta

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IIo medo a fúria o

gabinete

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11. j rgeeu evoco as sete lâminas de og m contra o medo encravado na pupila da presa eu te evoco ferro forjado de fúria ferro forjado pelo fogo de j rge eu pisoteio o pânico dos para-brisas com exércitos de crianças cegas a og m senhor de todas as demandas eu ofereço meu medo estripado no jornal das seis a j rge guardião da verdade esse poema lança afiada no olho direito dos alcoviteiros eu debulho o medo das repartições com um rosário ensanguentado eu incendeio com a tocha de og m os sorrisos rosados do bistrô lotado eu esmago com o cavalo de j rge as cabeças deitadas sobre terra arrasada da praça de alimentação

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12. domingo

um domingo é um sorriso bossa-nova um colírio ressecando minha fúria um domingo é uma piscina empoeirada diante de um jardim oculto um sim para o gabinete da segunda-feira um domingo se deita sobre mim como uma pantera domesticada um rumor de chumbo em minha madrugada eu sou um domingo querendo ser outro dia

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13. o gabinete

meu medo não é o teu c rlos não é teu medo ainda que da morte seja que da vida seja que depois da morte da vida da morte não é teu medo c rlos teu aristocrático medo sobrevoando congressos imaginários não é teu medo esquerda engajada medo pupilas no horizonte à espera de fúrias com nome e cpf nem cara tem meu medo c rlos medo máscara medo quarta capa mas conheço meu medo c rlos me visto de vidro pra esquecê-lo é medo com vergonha de ser medo medo noite chuvosa medo currado em banheiro de rodoviária c rlos é medo plantão da globo medinho sem-vergonha esse meu medo c rlos não é teu transatlântico medo da bomba meu medo c rlos é o medíocre medo da bala

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14. um espelho

ah teu medo c rlos teu mofado medo de gabinete teu medo óculos na cara teu higiênico medo vindo de telegrama teu educado medo a milhares de quilômetros se arrastando teu medo funcionário público gratificação no fim do ano teu medo poeminhas safados na gaveta do quarto medinho bossa-nova ah teu medo de bruços na cama do hotel teu medo algemas e cinta-liga c rlos cantá-lo uma última vez antes da hecatombe quero teu medo pupilas rasgadas quero teu medo esbofeteá-lo em praça pública quero teu medo cuspido no jardim da infância quero teu medo arrancar-lhe as tripas fazer um colar para o réveillon em copacabana teu medo para iemanjá quando o mar for cinzas quero teu medo por um instante quero teu medo mas antes quero teu medo para fingir que teu medo não é meu

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15. um cordeiro

pra não esquecer quem sou eu pesei minha inocência e procurei em meu baú em vão meu cordeiro dois tygres devoram o cordeiro a alvorada o enterro cruzes estrelas luas esqueletos de pequenos deuses cabides incinerados não há qualquer perdão para a criança violada dobra teu olhar de domingo dois tygres devoram o cordeiro enquanto eu transito meu tédio pela marginal

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16. pas rgada

volto a pas rgada numa manhã de alumínio ambrosia água suja cacos de sonho céu toneladas de sal chumbo no sol dedos apontando a aurora dedos e as cinzas das últimas certezas no pórtico flácido do palácio de pas rgada a cabeça degolada do rei me sorri amarelo eu atravesso a ponte elevadiça com minha fúria de náufrago minha vontade de ser sem mapa volto a pas rgada numa tarde insone bicicletas dependuradas nas janelas crianças que nunca chegam telefones enfeitando a sala de estar do velório multidão juvenil nos cemitérios as mulheres ah as doces mulheres de pas rgada e seu olhar de vidro carne e osso as mulheres de pas rgada rastejando sua insônia pelas ruas lamacentas ruminando memórias encarceradas em velhos calendários voltei a pas rgada uma última vez numa noite que cheirava a suicídio nada meu mundo querendo ser outro meu mundo querendo ser pas rgada e eu querendo meu mundo aqui eu querendo meu medo aqui

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17. o pátio

anticr sto devorou sua solidão no pátio lotado diante do sexo insepulto das concubinas debutantes anticr sto chorou seu medo por vielas não nascidas não há sorrisos que comprem sua paz de gabinete ah não mais a fuligem do dia seguinte não mais o perdão para as mães dos genocidas não mais as flores nos funerais dos inocentes anticr sto sentou-se à direita do pai para pedir clemência para as almas dos burocratas ah o doce cheiro dos corpos incinerados à beira do lago do incesto ah o café da manhã perturbado entrecortado pelo sublime gemido das crianças mutiladas ah o lamento de anticr sto abafado pelo intestino dos jasmins que eu plantei no bunker eu diante do espelho que apenas cala um dândi pelos escombros da cidade em chamas

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18. g briel

eu vi g briel cruzar tel aviv com um rastro atômico descer sobre a terra com a fúria de mil deuses vi o sorriso carbonizado das meninas de rafah seus dentes arranhando o asfalto derretido vi o touro blindado violando o ventre seco a terra o jordão mudo banhado pelo sangue de setenta e sete virgens eu lambi as seis pontas da estrela eu rocei a palma da mão no fio minguante da lua eu assisti à cruz silenciosa no púlpito escarlate pedir perdão por um toque nefasto eu vi as ruas inflamadas à meia-noite e as novas lágrimas das últimas carpideiras eu vi um homem-bomba se masturbando diante do muro das lamentações maldizendo a chegada da hora fatídica o soldado dizendo amém ao apertar o botão vi as luzes da canção matinal dos obuses o sol deitado nas colinas de golã por seis dias e seis noites vi um muro que não cessa não cessa que avança sobre a luz da alvorada eu medi meu medo e vi que era bom meu medo de presente para os homens do deserto para o peixe-ômega que me olha do altar claudicado para os deuses castrados dos shopping centers todos os anjos viciados para os herdeiros de auschwitz para os desterrados de gaza todos os órfãos de jerusalém eu vi minha dor de existir esparramada no sofá da sala eu me vi tecendo numa manhã ensolarada minha mortalha eu me vi rasgando o que há de humano em mim eu temi o que há de humano em mim eu me vi enfim humano eu me vi

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19. o ventríloquoA Delmo Montenegro

parir palavras mortas é o barato dessa nossa nova bossa o dia envenenado e a tarde amante velha que se abandona meninos passeiam felizes acorrentados a holofotes no teatro os bonecos lamentam à meia luz a voz que nunca tiveram mas seria o afã dos bonecos mais aterrador que o pânico sólido do ventríloquo que esmagado pelo desejo das marionetes esqueceu em alguma gaveta a sua voz primeira

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20. menino menina“The panic, the vomit.The panic, the vomit.

God loves His children,God loves His children, yeah!”

Thom Yorke

menino tua perna-borboleta-sahara teu sonho-milícia-amputação a lágrima-facão-mina menina teu sexo-náusea-primavera tua mutilação-rosa-quasímodo a lua-gilette-clitóris menino teu sorriso-coxa-alabastro teu lençol-inocência-caniço a carícia-pai-bestafera menina tua cabeça-almofada-catapulta teu suor-chão-matadouro a bala-seixo-columbine menino teu sorriso-balanço-labareda tua paz-lírio-armagedom a nave-rocha-tomahawk menina tua matrioska-crack-bordel teu pesadelo-cárcere-salvação a calma-planalto-cafetina menino menina menina menino

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IIIo medo a fúria a rua

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21. a ruaA Marcelino Freire

há algo calado nessas ilhas há algo calado que se remove debaixo de capas e capas e capas e capas de tinta dessas paredes silenciadas algo com cheiro de fúria calado debaixo da solidão imóvel dos grafites algo incinerado no altar da vila madalena há há uma fúria encoberta por jasmins aéreos há uma amputação em cada sorriso uma fratura em cada sonho há algo há algo calado debaixo das rodas dos carros há algo por debaixo do alabastro das faces há algo há algo calado calado calado

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22. o para-brisa

desaba sobre o para-brisa a tempestade o peso do medo afoga enfim o plástico sobre o para-brisa desabam o caos o sol ramalhetes de cadáveres pássaros acorrentados o para-brisa ignora o reflexo da chuva ácida na retina da câmera de vigilância o letreiro emudecido a pólvora por trás do para-brisa um éden laboratório uma ilha furta-cor além do para-brisa a fúria entrega a última pétala antes do armagedom

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23. o medo a fúria

teu medo engaiolado vidro aço couro plástico teu medo ar-condicionado acerta a hora do dial acerta no olho do dia teu medo domesticado muda a estação que teu medo não muda mudo teu medo aguarda o sinal fechado ao lado teu medo levanta o vidro balança o dedo teu medo oh teu medo blindado poderoso teu medo pupila dilatada no mais leve acenar do menino vendedor de balas tua fúria céu aberto carne asfalto lama concreto tua fúria ferro carregado acerta o olho do inimigo acerta o olho de tudo que é outro pena tua fúria mudando o canal se perdendo por um relógio no sinal fechado ao lado tua fúria roça o medo cuidado pra não perder tua fúria teme teme tua fúria anti-playboyzinho um dia vendendo livros de autoajuda tua fúria na livraria cultura

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24. fábulaI.cão

cão em ruínas emolduradas passa prosa por pátio roça focinho em pé de moço cão osso que não chega moço bala em cabeça amigo de todo dia osso em marmita todo dia essa hora osso agora silêncio ossos de moço bebendo som de sirene

II. balaquando o sorriso se desmanchou na incandescência da bala quis devolver meu medo naquela tarde os sonhos eram multidão a paz zen-budismo no engarrafamento paz solidão nem todo aço para o chumbo nem todo amor para a bala nem todo o medo para a fúria o medo para a fúria é nada

III. bote

sol no lombo fúria no copo suor no corpo medo no olho paralisado do outro eu desse lado o outro torando aço dia escaldado calma dia macerado dia escorrido sol no lombo fúria no corpo suor no copo o outro parado na parada não é outro sou eu e o dia escapa a sorte resvala o bote certeiro o dia inteiro na palma da mão o cão ainda espera o moço o outro saca o ferro uma bala sem dono outra bala cavalgando o sonho alheio o olho sem sombra uma sílaba sem verbo sem ver o bote a verdade verde no canto da boca nas ruínas na construção cão chão moço e nada e nada e nada

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25. morto

o osso do morto ainda percorre a pálpebra da marginal há em mim o seio seco da mãe abortada em mim o osso o pedaço do osso e o osso renascido duma tarde insone há em mim o globo o olho perfurado pelo osso e o osso inundado pelo parachoques há em mim a rua atravessando um barco vazio há em mim o osso do morto navegando o osso do edifício o vidro da janela do escritório a distância sempre a distância há em mim a ânsia e o vômito engolidos pelo osso do morto embebido de fúria e solidão há em mim um não

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26. contacorpos

na esquina paralisada avança o contacorpos seus números avançam pela manhã cintilante enquanto o café bebe a insônia avançam os números contra os sorrisos do telejornal avançam os números pelos pés das imagens carcomidas da procissão o contacorpos avança inexorável pela tarde azeda da cidade enquanto o feijão repousa na panela os números avançam sobre as costelas das crianças mutiladas avançam sobre a lógica vertical da província o contacorpos não vê idade desenha com sua certeza de máquina banhada em alumínio os números do dia avança o contacorpos pela noite brilhando em vermelho seus números temerários o contacorpos avança sobre os sonhos dos mortos os sonhos das pessoas da parada de ônibus o contacorpos sozinho na madrugada enfurecida contanto contando contando aguardando o dia seguinte na esquina diante dos olhos paralisados da turba

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27. pina

o aço dos trilhos o sorriso das crianças na ciranda aérea do coque o peso do para-brisa a máscara o vácuo passeio pedestre roço os fios de alta tensão bicicletas adormecidas arranham inocências de terra batida manilhas-infância eu sou caminhos que você não entende seu olho agora nas casas que se derramam umas sobre as outras empilhadas sonhos numa gaveta perfurada há um muro que recorta o esqueleto da casa pessoas entalhadas nas paredes seus sorrisos cinza na frente da ruína o muro diante do muro diante do muro eu uma noite querendo ser dia eu uma cisão classe-média um eterno sim estrangeiro de mim as casas vomitando espelhos meu olho sugando essa paisagem quadrada meu olho incrustado nas vozes das cantigas dos meninos descalços sobem o muro os meninos com sua voz de esponja e vertigem eu avanço por pontes não nascidas árvores mortas cemitérios de automóveis e casas e casas destelhadas que sem teto a casa é uma virgem nua eu caminho sobre o asfalto mastigado pelo medo eu mastigo meu medo e limo letras mudas avanço para o pina enquanto ficam para trás as ruínas enquanto abandono a vertigem que a vertigem é a vontade de pular

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28. o dia

eu levanto do meu dia e cambaleio feliz até a praça há no meu coração-classe-média um desejo de não ser há no meu coração classe média a parábola a pétala e o obus macerados meu coração-classe-média não quer essa fúria além do vidro além da alcova além do espelho viva a paz meninos de branco pisoteando pássaros cindidos viva a paz um gol de placa antes de assistir ao inimigo no telhado degolado ao vivo viva a paz uma rosa murcha no cabelo da adúltera linchada na praça viva a paz viva a plácida paz do domingo dia de nosso senhor

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29. fotografia

agora quando a fúria já se faz ausência volto ao ofício de apagar-me ser só sombra dissipar lentamente toda vontade grudar-me enfim ao frio inaugural das paredes da casa verter-me em silêncio assumir sem culpa o abismo deixar-me capturar pelo instantâneo oblíquo da kodak acorrentar-me outra vez ao sótão ao sofá ao controle remoto à remota solidão da alcova amanhecer cada dia na mesmíssima cama calar calar calar e ser feliz eternamente feliz fotografia amarela em velho álbum de família

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30. ART R ROG RIO

um último poema mas te elevas com um lagarto acesocom uma verdade de sete estrelas plantada na boca com um não incinerado na língua

um último poema num varal de esperanças apodrecidasmas tu me rasgas a pálpebra com filetes de madressilvas me presenteias um espelho oco um terno mofadolarvas de poetas abortados

só queria um último poema mas último poema não háporque um último poemaé como encaixotar palavras em dez livros porque não há poema que caibanão há poema

eu tentei destruir o verso e o peso do medomas não acaba eu tentei mastigar a carne da poesia mas não acababarr to c mpello não acaba dr mmond não acaba bl ke não acaba y rke não acaba b ndeira nãoart r rog rio não acaba p ssoanão acabaporque é muita carne pra pouca boca

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não acaba porque desliza como aquele lagarto aceso como o olhar de l rca aquele olhar de l rcaantes do fuzilamento como a pupila de l rca soterrada pela areia quente de granada

como a presa de um cão andaluzna construção mordendo o derradeiro olho de l rca mas l rca não cabe na boca do cãonão não acaba fed rico numa vala anônima fed rico sorrindo do meu último poema e de teu último livro porque ele sabe não cabe não acaba

mesmo que a tua letra seja línguae a minha olhoa tua letra seja risoe a minha náuseanão acabanão cabe em nenhuma parte

porque a pupila de aleph na minha refletida carbonizou todos meus poemas retalhou toda a carne da poesiadinamitou a solidão do blog esquecido de rodr go de souza leão

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esse reflexovale mais que o medo vale mais que a fúriaporque poesia não é nada

porque em recife ou salamanca em são paulo ou barreiros um olhar feio um trejeito um tiro certeiro uma estocada depois disso nada

porque no final a conta tem que ser paga porque de nós só restarão mornas tardes em seminários inúteis com meninas menstruadas e esses livros de ventre morto

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POSFÁCIOO medo: elogio à coragem

Por Bruno Piffardini1

Dizia o escritor, cineasta e artista multimídia chileno Alejandro Jodorowsky, que fazia seus filmes “con sus cojones”. De fato, nenhuma arte poética conseguiria ser tão sucinta e precisa, rápida e rasteira. Fazer arte, fazer literatura, é um exercício de coragem por vezes brutal. Coragem de dar a cara a tapa ao público e, principalmente, a si mesmo; a coragem de encarar suas próprias falhas e fantasmas. A coragem dos dez-porcento-de-inspiração-noventa-porcento-de-transpiração.

E é uma felicidade saber que Wellington de Melo faz parte dessa tribo rarefeita de artistas que reconhecem, tal qual Jodorowsky, essa mola propulsora de sua arte. Em seu o peso do medo: 30 poemas em fúria, Wellington alcança a coesão de sua dicção poética, iniciada com O diálogo das coisas e [desvirtual provisório], assumindo em sua obra uma estrutura bastante peculiar e original que dá um tom “furioso” a seus versos: o caos de versos ininterruptos e sem pontuação, limpo de quaisquer âncoras pré-estabelecidas de entonação – mas jamais expurgadas de um ritmo intenso. Vogais propositadamente desaparecidas dentro de nomes e palavras importantes, talvez terror, respeito e veneração a tais entidades poderosas, talvez para aniquilar significante e significado, reduzindo tais nomes e uma casca rudimentar, fragmentada e despojada de um sentido outrora pesado? Repetições de palavras, muitas vezes em sequências triplas: o número três é bastante caro a Wellington, como se percebe claramente em “menino menina”: menino tua perna-borboleta-sahara teu sonho-milícia-amputação a lágrima-falcão-mina. Também a repetição de palavras, não apenas em sequência, mas também no começo e no fim de diversos poemas, ou mesmo do livro em si, chama para a obra os 1 Escritor, professor e crítico literário, Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco.

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atributos místicos do “ourobouros”, a serpente que devora a própria cauda, símbolo alquímico que representa o movimento cíclico, e por conseguinte infinito, multiplicando assim todas as possibilidades labirínticas do livro, como se este fora capturado borgesianamente entre dois espelhos. Seria o medo então o aleph pessoal de Wellington de Melo?

É preciso respeitar o espírito do Medo. Não é difícil concluir que o Medo é a matéria primordial do homem, o Medo que conduz ao Amor, ao Ódio, aos conceitos de Divino e de Propriedade. Para o caso específico de o peso do medo, pode-se adaptar uma linha de raciocínio que se encaixa bem ao livro. O medo leva à fúria; a fúria leva ao sofrimento. O sofrimento leva – a poucos, é verdade – ao desejo de realização de seu próprio luto, tornando suportável o peso desse fardo. O medo atrai aquele que tem medo, e o maior ato de coragem é compreender e aceitar a existência desse medo. Ignorá-lo, ou resignar-se a ele, é transformá-lo em covardia. E essa é imperdoável aos guerreiros e aos poetas. Recorde-se o livro O mágico de Oz: o Leão, dito “covarde”, busca ganhar do tal Mágico a coragem que ele acredita não ter. Em compensação, durante a jornada, ele demonstra a todo instante coragem e bravura para enfrentar feras perigosas e obstáculos intransponíveis: ele urra e luta porque tem medo, e para não ser vencido por esse medo, o Leão o ataca primeiro.

Sendo o Medo o leitmotiv de sua obra, Wellington de Melo o assume, combatendo-o com a fúria de versos caóticos e atípicos (porém milimetricamente ordenados e azeitados como uma m@quina, noventa-porcento-de-transpiração exaustivamente bem empregados), e que imploram, a cada página, serem lidos em voz alta. O peso do medo é um livro marcadamente sonoro, seu ritmo desviado das marcações simbólicas da acentuação e encontrado plenamente através do exercício da palavra viva, um artifício que faz com que o “funcionamento” total do livro opere na junção de palavra escrita, recebida, falada e ouvida. Enfim, sejamos cruéis: para aqueles que acreditam que a palavra declamada e encenada esvazie seu sentido em detrimento de uma performance “fugaz”, de

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momento, o peso do medo prova por A mais B que essa tese crua pode dar tranquilamente com os burros n’água.

Wellington de Melo constrói em seu livro uma “genealogia do medo”, dividindo-o em três partes que compõem uma geografia para um jogo entre identidade e alteridade: “o medo a fúria a alcova”, “o medo a fúria o gabinete”, “o medo a fúria a rua”. A primeira parte é simbolizada pela alcova: historicamente, a parte mais íntima da morada, de acesso apenas à família e aos seus privados. O tom é dado pela primeira pessoa do possessivo – Wellington aqui trata de assumir e compreender, poema a poema, o “meu” medo, a “minha” fúria, seus próprios pequenos terrores e indignações, e que compreendem tudo o que é inalienavelmente seu: seu corpo, sua casa, seu filho, sua obra e fazer poético. A própria voz insidiosa do medo se manifesta no poema que leva seu nome, “Wellington de Melo”: não não não não serás grande poeta porque letra não se faz com afago não se faz com pena do amigo ou de seus alfarrábios não se faz culpando fúria de crítico frustrado engolindo medo de ser culpado serás funcionário cinza de iniciativa privada terás alguns belos fins de semana na praia e um ponto zero meio usado uma vidinha classe média e uns poucos amigos sinceros (...) teu filho encaixotará teus livros não vendidos num sábado funerário e te esquecerão não serás grande poeta não não não.

No gabinete estão as relações interpessoais. Passada a primeira estação, quando Wellington pesa seu medo e o compreende, é hora de medi-la e confrontá-la com aqueles que se aproximam: o poeta se torna um observador. Na abertura desse segundo momento, Wellington conclama para si a força de sua fúria que lhe permitirá prosseguir com esse confronto, no poema chamado “J rge”: eu evoco as sete lâminas de og m contra o medo encravado na pupila da presa eu te evoco ferro forjado pelo fogo de j rge. Nesse momento surgem outros interlocutores, cuja fúria e cujos medos servirão de contraponto àqueles presentes no próprio poeta: São Jorge e Ogum, uma dedicatória a Delmo Montenegro e a epígrafe de Thom Yorke, além de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, que surge nos poemas “o gabinete” e “espelho”, onde os grandes medos

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metafísicos e generalizados de Drummond são reduzidos a pó diante do medo real e imediato das ínfimas coisas corriqueiras do cotidiano – afinal, uma bala perdida é sempre uma presença mais concreta que a bomba nuclear.

As duas partes possuem dois poemas análogos que esclarecem a posição entre o “eu” e o “outro”: “dois tygres” e “um cordeiro”, referências implícitas a William Blake e seus Songs of innocence e Songs of experience. Em “dois tygres”, na Alcova, a Experiência do poeta, que se desenvolve em sua relação com o “outro”, é personificada pelos tigres da Fúria e do Medo: pra não esquecer quem sou eu pesei minha experiência e plantei dois tygres em minha retina. Já no Gabinete surge “um cordeiro”. Nesse espaço de confronto a inocência, que representa o “eu” do poeta, é destroçado pelos mesmos dois tigres plantados pela experiência, ou o desejo de sobreviver ao tal “outro” que permeia essa segunda parte do livro: pra não esquecer quem sou eu pesei minha inocência eu procurei em meu baú em vão meu cordeiro dois tygres devoram o cordeiro.

Quando o medo desce para a rua, na parte final, o confronto é deflagrado: na cidade, “eu” e “tu” se tornam “nós e “eles” e já não há distinção: tudo mergulha na “turba”. O medo e a fúria se prismam em caos, em pânico, na distensão do corpo cavernoso após um antigozo sombrio. A paranoia estampada no contacorpos que nos atira diariamente, na cara, o pavor muito real e inescapável de uma violência burra e cega e impessoal que destrói, deliberadamente, o cordeiro e os dois tygres, os corvos acalentados na alcova bicam os olhos e o fígado de seus donos: o contacorpos avança sobre os sonhos dos mortos os sonhos das pessoas da parada de ônibus o contacorpos sozinho na madrugada enfurecida contando contando contando aguardando o dia seguinte na esquina diante dos olhos paralisados da turba . Essa paranoia, por mais estranho que possa soar, também é o momento mais nítido da visão de Wellington, agora tornado definitivamente um flâneur. Afinal, não é a paranoia a chave para o método crítico de Salvador Dalí, o momento em que a realidade desdobra-se delirante em todas as suas camadas mais objetivas? Por fim, com o poema “Art r Rog rio”, a curva

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atinge seu ponto mais descendente, voltando a voz resignada do poema “Wellington de Melo” – a fúria parece arrefecer, o texto toma pela primeira vez no livro um formato comum de versos e estrofes. Wellington retornou de sua epopeia e tudo volta ao lugar. Mas agora ele está plenamente consciente de seu medo. Sua fúria não foi catártica, e sim contemplativa como um grande exercício zen. A fúria de vinte e nove poemas endureceu seus terminais nervosos para que seu medo conhecido e consentido revele sua coragem. O tom resignado é falso, pois não há fim para o peso do medo: a serpente morde a cauda e assim Wellington prossegue o ciclo, infinitamente.

O peso do medo: 30 poemas em fúria mostra que a fúria de Wellington de Melo é a minha mesma fúria, e a sua, e a de Delmo e a de Artur Rogério, e a de Drummond e a de Bandeira. É a fúria dos objetos do antiquário: implodida, porém consciente de si.

Pura coragem.

Jaboatão dos Guararapes, outubro de 2010

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O peso do medo, por Raoni Assis. Técnica mista sobre papel, 2010.

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Este livro foi composto com os tipos Day Roman corpo 10 para os títulos e Garamond Premier Pro corpo 10 para o resto do livro.

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