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Saúde em Debate ISSN: 0103-1104 [email protected] Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Brasil Couto, Richard; Alberti, Sonia Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual Saúde em Debate, vol. 32, núm. 78-79-80, enero-diciembre, 2008, pp. 49-59 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Rio de Janeiro, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341773005 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

Redalyc.Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor

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Saúde em Debate

ISSN: 0103-1104

[email protected]

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

Brasil

Couto, Richard; Alberti, Sonia

Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

Saúde em Debate, vol. 32, núm. 78-79-80, enero-diciembre, 2008, pp. 49-59

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341773005

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Page 2: Redalyc.Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor

ARTIGO ORIGINAL I ORIGINALARTICLE

Breve história da Reforma Psiquiátrica para

uma melhor compreensão da questão atual*

Briefhistory 01the Psychiatric Reform for a better comprehension01the current debate

Richard Couto I

Sonia Alberti 2

49

l Mestre em Pesquisa e Clínica em

Psicanálise pelo Instituto de Psicologia

da Universidade do Estado do Rio de

janeiro (IP/UERJ).

[email protected]

2 Professora adjunta do lP/VER);

e pró-cientista da UER); Doutora

em Psicologia pela Universidade de

Paris X~Nanrerre; pós-doutorada pelo

Insriruro de Psiquiatria da Universidade

Fede,,1 do Rio de janeiro (lt'uB/UFRj);

pesquisadora do Conselho Nacional

de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico (CNPq); psicanalista

membro da Escola de Psicanálise dos

Fóruns do Campo Lacaniano.

al [email protected]

RESUMO Opresente artigo visafOrnecer um breve histórico do que se convencionou

denominar RefOrma Psiquiátrica, partindo do pressuposto de que a psiquiatria

moderna, como especialidade médica, nasceu com uma refàrma que seria, portanto,

um conceito intrínseco a ela. Das várias nuanças do termo, em particular, nos

desdobramentos nos anos 1950, na França, Inglaterra, Itália eEstados Unidos, visa­

se depreender o campo instituído da Saúde Mental- dos manuais de Psiquiatria à

Psicanálise, passandopelasPolíticas da saúdepública -, supondo que oconhecimento

da história possa trazer instrumentos para uma melhor compreensão do que se

apresenta atualmente como tensão entre clínica e atenção psicossocial.

PALAVRAS-CHAVE: RefOrma Psiquiátrica; Políticas de saúde; Manuais

psiquiátricos; Psicanálise.

ABSTRACT The article proposes a briefhistory of the so called Psychiatric

RefOrms. It begins with the idea that modem Psychiatry was bom as a refOrm

which would, in consequence, be intrinsic to psychiatry. Plural nuances ofthe

term are studied, particularly, those arisen from the movements in 1950 's and

changes in Psychiatry occurred in France, England, ltaly and the United States.

The instituted field fOr Mental Health will then be examined as a derivation

from the efficts ofPsychiatric manuais andPsychoanalysis, as wellas public health

politics, assuming that the fact ofbetter knowledge ofthe history may provide

instruments fOr a better comprehension than the actual one, which presents a

tension between the clinic work and the psychological and social care.

KEYWORDS: Psychiatric RefOrm; Health politics; Psychiatric manuais;

Psychoanalysis.

.. Texro que se baseia no primeiro capírulo da disserração de Mesrrado de Richard Couro, orienrando da professora Sonia Alberri, que foi defendida e aprovadaem 30 de abril de 2008.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan.ldt."Z. 2008

Anotacao
Título do Artigo: BREVE HISTÓRIA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA PARA UMA MELHOR COMPREENSÃO DA QUESTÃO ATUAL Autor(es): Richard Couto, Sonia Alberti a_Richard_Couto a_Sonia_Alberti
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50 COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da quesrão atual

INTRODUÇÃO

Em toda sua história, é a primeira vez, no Brasil, que

a atual Reforma Psiquiátrica tem uma pretensão prática.

O intuito desta pesquisa não é refazer, em todos os seus

aspectos, a trajetória desta reforma, mas percorrer sua no­

ção, que está intimamente ligada à psiquiatria moderna,

a ponto de se poder levantar a hipótese de que a própria

psiquiatria moderna nasce com uma reforma. Com efeiro,

quando Pinel abriu os portões do Hospital de Bicêtre

para a saída dos mendigos, dos órfãos e dos pobres, de

modo geral, que foram enclausurados devido à grande

mudança dos meios de produção na Europa e que gerou

modificações sociais contundentes no século 18, os loucos

foram mantidos enclausurados (MoRRlsSEY, GOLDMAN e

ICLERMAN, 1980). Assim, pode-se dizer que a primeira

Reforma Psiquiátrica foi empreendida por Pinel, como

uma maneira de delimitar os loucos e suas questões no

espaço hospitalar, submetendo-os ao poder psiquiátrico,

sustentado pelo saber médico. Tal observação não data de

hoje, veja-se, por exemplo, o texto de Tuke (1892). Por

outro lado, no Brasil, a Reforma Psiquiátrica é, atualmen­

te, elevada àcategoria de conceito, guardando relação com

os documentos oficiais que regulamentam, viabilizam e

concretizam as propostas engendradas pelo movimento

sustentado pela lei 10.216. BRASIL. MINISTÉRIO DA

SAÚDE. Lei n.O 10216, de 06 de abril de 2001.

AS VÁRIAS NUANÇAS DO TERMO REFORMA

PSIQUIÁTRICA

Primeiramente, parte-se da hipótese de que o termo

Reforma Psiquiátrica está presente no corpo do saber psi-

Stltid~ em Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./de'L. 2008

quiátrico moderno desde seu nascimento, como uma das

muitas especialidades da Medicina. No Brasil, nos últimos

20 anos, no Brasil, é que o termo Reforma Psiquiátrica

ganhou ares de grande novidade, principalmente com

aprovação da lei federal 10.216, em 6 de abril 200 1, con­

solidando a desospitalização gradual dos pacientes psiqui­

átricos e a diminuição dos leitos hospitalares, bem como a

invenção de dispositivos substitutivos. Daí a questão: que

implicação há entre o antigo e os novos dispositivos de

atendimento para os portadores de sofrimento psíquico e

para os usuários da assistência em Saúde Mental no Brasil,

como são denominados pela lei 10.216?

Com base do que foi apresentado na introdução (a

reforma ocorrida no século 18), o intuito desta pesquisa

é verificar que, com Pinel, a circunscrição dos doentes

mentais nos hospitais psiquiátricos (locais onde se pode­

ria melhor estudar e tratar os doentes por meio do então

proposto 'tratamenro moral'), se consolidou como uma

reforma. Para tal tratamento, considerava-se que a cura

das patologias mentais deveria ser conduzida mediante

a atenção integral à mente do doente, partindo da supo­

sição de que restava algo íntegro da razão perdida com a

doença. Pinel sustentava-se em sua relação com a história

natural e a filosofia para especificar as particularidades

das doenças mentais (BERcHERIE; 1989).

Em nome do saber científico, a psiquiatria, para con­

testar Pinel, mais uma vez projeta uma reforma excluindo de

seu campo o tratamento moral da loucura e visa uma nova

maneira de tratamento, baseada no empuxo ao cientificismo

presente no século 19, em particular a partir de sua segunda

metade (ALBERll, 2003). Contudo, o que os historiadores

mostram éque por trás dessa reforma está a exigência feita à

Psiquiatria de retirar das grandes cidades, tanto na Europa,

quanto na América do Norte, aqueles que poderiam abalar

e perturbar a ordem vigente dessas sociedades (FouCAuLT,

1972; REsENDE, 1987; CANDIOTID, 2007).

A massa que ocupou os hospitais psiquiátricos por

longos anos, especialmente a partir do início do século

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COUTO, R.; ALBERT!, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor comprcensáo da questáo amaI 51

20, e o próprio modelo asilar, somente foram novamente

postos em questão depois da Segunda Guerra Mundial.

Muitos fatores contribuíram para esse questionamento

e por uma nova argumentação de Reforma Psiquiátrica.

Dentre os principais fatores que exerceram influência para

a desmobilização das internações psiquiátricas, nos anos

do pós-guerra estão: o crescimento econômico de alguns

países, a reconstrução social e os movimentos sociais e civis.

Há ourros fatores importantes: os psicotumacos - apesar

dos freqúentes questionamentos quanto aos efeitos de

sua comercialização -, a entrada da psicanálise nos meios

psiquiátricos. Tanto nos hospitais ingleses quanto nos fran­

ceses, o número de psiquiatras com formação psicanalítica

cresceu consideravelmente, o que gerou uma nova forma

de postura diante do paciente psiquiátrico. Nos Estados

Unidos, essa influência da Psicanálise gerou a chamada

Psiquiarria PsicodinãIDica; identificada com uma prárica

liberal, a Psicanálise que se impôs no campo da Psiquiatria,

nos anos 1950, era aquela praticada na American Psycho­

analyric Association (APA), restringindo o exercício da

Psicanálise aos médicos - apesar das críticas veementes a

essa prática levantadas por Freud já em 1926 e 1927.

Tal conjuntura também trouxe, ao campo da do­

ença mental, a reivindicação da participação da saúde

pública de competência do Estado, obrigando-o a uma

maior implicação nessa área. Isso foi de grande relevância

para os diferentes movimentos de Reforma Psiquiátrica

surgidos a partir da década de 1950, como: a Psicologia

Institucional e a Política de Setor, na França; a Psiquia­

tria Comunitária e Antipsiquiatria, na Inglaterra; a

Psiquiatria Antiinstitucional, na Itália, e a Desinstitu­

cionalização, nos Estados Unidos.

Segundo Desviat (1999), apesar de haver diferenças

entre todos esses movimentos de Reforma Psiquiátrica, as

condições norteadoras e essenciais para suas efetivações

foram as mesmas: 1) um clima social favorável ao ques­

tionamento do modelo manicomial, respaldado num

consenso técnico, político e social, que permitia a elabo­

ração de objetivos alternativos ao hospital psiquiátrico; 2)

a legitimação administrativa, que devetia partir do Estado

em forma de um compromisso de levar adiante o processo

de reforma, auxiliado por um corpo técnico qualificado.

Para o autor mencionado, todas as tentativas de Reforma

Psiquiátrica são marcadas por estas duas condições.

DA PSICOTERAPIA INSTITUCIONAL ÀS

COMUNIDADES

A Psicoterapia Institucional e a Política de Setor, na

França, formaram um conjunto de reformas que influen­

ciaram várias regiões da Europa, mas também a América

Latina, como o Brasil. A Psicoterapia Institucional foi o

braço teórico-clínico da política de setor francesa, aquela

que orientava o atendimento aos doentes mentais de

forma setorizada. Tal forma de serviço pôde ser verificada

depois em outros movimentos de Reforma Psiquiátrica

que estabeleceram sempre a divisão em zonas para os

serviços de atendimento. Pode-se dizer que a experiência

francesa foi a primeira a pôr, na prática, O atendimento em

zona. Naquele país, a marca da Psicoterapia Institucional

foi uma forte adesão à Psicanálise, principalmente a de

orientação lacaniana. A hipótese inicial da Psicoterapia

Institucional estabelecia que a instituição total, seja ela

hospital, presídio, entre ourros, estava doente. Com

isso, não só os pacientes ou usuários eram doentes, mas

também os funcionários e agentes da instituição, e ambos

deveriam ser tratados. Assim, o marco da Psicoterapia

Institucional e da Política de Setor se fez em razão de sua

proposta: ser uma ação de saúde pública'.

1 Tal proposta da Polírica de Secor rinham como princípios fundamenrais: o princípio da serorização ou zoneamenro - delimiraram-se áreas com 50 mil a 100 milhabiranres; O princípio da conrinuidade rerapêurica - uma mesma equipe, no conjunro de cada seror, deveria fornecer o rraramenro e se encarregar do pacienre, nosdiferenres serviços e momemos do rraramenro, desde a prevenção aré a cura e pós-cura; o eixo da assisrência deslocou-se do hospiral para o espaço exrra-hospiralar~ o paciente deveria ser atendido, na medida do possível, na própria comunidade e o efeito cronicizador da instituição deveria ser evitado (DESVIAT, 1999).

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59. jan.ldt."Z. 2008

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52 COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da quesrão atual

Já a Comunidade Terapêutica forneceu subsídios

à Psiquiatria do Serviço Nacional de Saúde da Grã­

Bretanha. As comunidades terapêuticas tiveram seu início

ainda nos tempos da Segunda Guerra Mundial, principal­

mente pelo trabalho realizado pelo psicanalista inglês W

Bion, por meio do atendimento em grupo aos soldados

que apresentavam problemas quanto ao engajamento na

guerra. Essa foi a fotma que ele encontrou para atender

um grande nÚffiero de pacientes. No entanto, seu trabalho

diferia o grupo daquele identificado por Freud (l976C)

na medida em que propunha um grupo sem chefe. Bion

trabalhou com a possibilidade da existência:

de um grupo que não se baseia no Ideal do Um (comoExército e a Igreja nas célebres análises freudianas),mas quefizesse existir o particular do sujeito promo­vendo a heterogeneidade inassimilávela qualquerfu­são identificatória. (LAuRENT et ai.; 1998, p. 259).

Deve-se salientar que as diretrizes da Lei de Saúde

Mental britânica não tinham como objetivo abolir

do sistema o hospital psiquiátrico ou diminuir leitos

psiquiátricos nas unidades; o fechamento deveria ser

tributário do estabelecimento de outras unidades de

assistência aos pacientes e de serviços presentes nas

comunidades onde os pacientes se encontravam. A

estruturação dos serviços, a partir do seu planejamento

em regiões, com a ênfase nos programas de atendimen­

to parcial e nos serviços residenciais completos nas

comunidades, logo foi elogiada por órgãos internacio­

nais como a Organização Mundial de Saúde (OMS).

Finalmente, é notória a modificação do tratamento

da questão com essa contribuição especificamente

inglesa e que tange à designação do campo já não

mais chamado de doença, mas de Saúde Mental, pois

foi a iniciativa inglesa que adotou este termo em seus

documentos, tanto que hoje a privilegia em detrimento

à doença mental.

Stltid~ em Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./de'L. 2008

ENTRE HUMANIZAÇÃO E ECLETISMO

A Psiquiatria Antiinstitucional, que se fez ponto

de partida para a Reforma Psiquiátrica italiana, teve

seu início na experiência do psiquiatra Franco Basaglia,

quando, em 1961, ele assumiu a direção do Hospital

de Gorizia, província italiana. O movimento basaglia­

no se caracterizou pela tentativa de humanização e a

transformação da instituição psiquiátrica, apoiando-se

no modelo de Comunidade Terapêutica. Porém, em se­

guida, a tentativa era de levar a experiência dos pacientes

para fora dos muros do hospital, para a sociedade que

os excluiu:

Uma comunidade que se queira terapêutica deve levarem conta esta realidade dupla, a doença e a estigma­tização, para poder reconstruir gradualmente o rostodo doente, como devia ser antes de a sociedade, comseus inúmeros atos de exclusão eatravés da instituiçãoque inventou, agir sobre ele com sua fOrça negativa.(BASAGLlA; 1967 [1985], p. 124).

Ao contrário dos movimentos na França e na Ingla­

terra, o movimento de Basaglia realizou uma contestação

incondicional do modelo manicomial. Uma das críticas

mais enfáticas ao hospital psiquiátrico, realizadas por

Basaglia e seu grupo, foi a violência praticada contra

o doente mental, como o choque elétrico, os métodos

de indução ao desmaio, a contenção e outros. Para o

psiquiatra italiano, a violência é tributária, direta das ins­

tituições, sejam elas a família ou o hospital psiquiátrico,

além de ser condição essencial para o estabelecimento e a

efetivação da instituição e tendo uma função meramente

adaptativa maquilada por um discurso respaldado no

campo médico a inferir uma causalidade biológica ao

sofrimento psíquico. O psiquiatra respalda a objetivação

que fica ainda mais acentuada devido ao assujeitamento

do paciente à instituição e ao saber psiquiátrico. Basaglia

ainda afirma que o problema não é a doença em si, mas

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COUTO, R.; ALBERT!, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor comprcensáo da questáo amaI 53

a relação que se estabelece com ela, pois tanto o psiquia­

tra quanto a sociedade sempre tentaram se defender do

doente mental.

A Desinstitucionalização norte-americana não

ofereceu resultados satisfatórios; na verdade gerou um

grande número de abandonados. Até hoje, o estado

norte-americano não dispõe de Políticas Públicas de

Saúde, tais como os estados europeus ou como O Brasil.

Salvo o período em que John Kenndy foi presidente, o

estado americano pouco fez para se ter uma Reforma

Psiquiátrica no pais. Isso não quer dizer que nos Estados

Unidos não havia hospitais psiquiátricos públicos. Em

1955, havia, no país, cerca de 600 mil leitos psiquiá­

tricos e até 1958 houve uma crescente no número de

internos, sendo que os métodos de tratamento foram

questionados tanto pela opinião pública quanto por

psiquiatras da Associação Norte-Americana de Psiquia­

tria. Diante desse quadro, em 1963, John Kennedy

realizou um discurso inrirulado Mensagem sobre a

doença e o rerardo mentais', no Congresso Nacional

Norte-Americano, para lançar seu programa de Saúde

Mental, que chegou a ser considerado uma revolução

na psiquiarria norte-americana. Depois da mensagem,

foi apresentado ao Congresso Nacional, o projeto cujo

tírulo era Communiry Mental Healrh Centers Acr of

1963, que esrabelecia a criação de serviços que visassem

a prevenção e/ou o diagnósrico das doenças mentais e

que o atendimento a esses pacientes seria realizado ao

nível comunitário.

As propostas dos centros de Saúde Mental norre­

americanos a serem estabelecidos, a cada 75 a 200 mil

habitantes, eram de oferecer à comunidade serviços

essenciais tais como atendimento de emergência e

hospitalização no período de 24 horas, todos os dias da

semana. Como todo projeto de Reforma Psiquiátrica,

os centros de Saúde Mental tinham como princípios:

2 Speciai Message ro rhe Congress on Mental Illness and Mental Rerardation.

a facilidade de acesso pela população aos serviços, que

incluía uma boa localização e descentralização dos refe­

ridos serviços; informações à população da área sobre os

serviços, a assistência e suas características. Além disso,

tais serviços deveriam ser gratuitos e disponíveis a todos.

Outra marca do projeto implantado por Kennedy foi sua

ênfase na prevenção da doença mental, como também

a tentativa de abrangência das necessidades da comuni­

dade atendida e não somente dos doentes mentais, que

já tinham tratamento.

O método utilizado para realizar o tratamento

poderia ser considerado eclético ou multidisciplinar:

psicoterapia de várias orientações, psicofármacos, tera­

pia ocupacional, etc. Todavia, a orientação que mais se

destacou nos centros de Saúde Mental foi a Psiquiatria

Preventiva, de Gerald Caplan, que pode ser considerado

o seu criador. A concepção de doença mental para a Psi­

quiatria Preventiva residia na postulação de que as várias

formas de doença mental, nas diferentes populações,

eram resultado de fatores contrastantes, fatores positivos,

denominados subsídios e fatores negativos, denominados

práticas de risco. O trabalho da Psiquiatria Preventiva seria

identificar rais farores negarivos e tentar corrigi-los de

maneira positiva, para que eles não viessem a desencadear

uma doença mental. A teoria da crise, desenvolvida em

1944 por Lindemann, tornou-se a base da Psiquiatria

Preventiva. Caplan também se valeu das noções de crises

evolutivas e acidentais do psicanalista norre-americano

Erik Erikson. O projeto apresentado por Kennedy previa

a criação de 2.000 centros, mas foram criados somente

600. Além disso, na ausência de um sistema nacional de

saúde e o estado crôn ico de alguns pacientes - e a pouca

imporrância que se deu ao fato r da causalidade social tão

enfatizada na Mensagem do Presidente, em 1963 - aca­

bou por restringir os efeitos originalmente desejados ao

funcionamento dos centros de Saúde Mental.

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A SAÚDE MENTAL COMO CAMPO DE LUTA

E DEBATE: OS MANUAIS E A PSICANÁLISE

Logo após as iniciativas de Kennedy, um movimen­

to de psiquiatras, surgido da Psiquiatria universitária

de orientação bioquímica, iniciou uma campanha de

rerorno da Psiquiatria aos pressupostos médicos e cien­

tíficos do século 19, movido pelas pesquisas de cunho

psicobiológico e psicofarmacológico, principalmente

os trabalhos publicados em 1962 por Donald Klein

sobre a eficácia da imipramina. Esse movimento ficou

conhecido como a Escola de Saint Louis, que, na dé­

cada de 1970, deu partida à eliminação, por meio da

eficácia do medicamento, da diferença existente entre

psicose e neurose, iniciando a depreciação das entidades

clínicas presentes na Psiquiatria clássica e mantidas pela

Psicanálise, com Lacan, que, na França, conceituou-as

como estruturas clínicas. No lugar da descrição e con­

ceituação das entidades clínicas como psicose, neurose e

perversão, preferiu-se uma lógica do conceito descritivo,

apoiada na noção de rranstorno (disorder). As condições

para esrabelecer o DSM-III e suas posteriores edições

estavam dadas:

o Manual de Diagnóstico eEstatística da AssociaçãoPsiquiátrica Norte-Americana (DSM) constitui oresultado melhor acabado das propostas empírico­operacionais da chamada Escola de Saint-Louis,liderada por Feighner, Robins e Guze na década de10. A criação de um sistema operacional de diagnós­tico para pesquisa como o RDC (Research DiagnosticCriteria) e, posteriormente, do DSM-flJ derivamdiretamente das proposições daquele grupo. (PEREI RA,

1998, p. 4).

Os manuais que se seguiram pretenderam ser cada

vez mais desvinculados do saber psiquiátrico, a ponto

de, atualmente, a ptóptia prática da Psiquiatria neles

sustentada set de interesse cada vez menot pata os

estudantes de Medicina: "deliberadamente ateóricos

Stltid~ em Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./de'L. 2008

[...excluem] toda e qualquer hipórese etiopatogênica,

como também [fazem desaparecer] o próprio conceito

de doença" (QUINET, 2006, p. 12).

Por que não considerar a criação dos manuais de

diagnósticos ateóricos como uma Reforma Psiquiátrica?

Porque a Reforma Psiquiátrica não é somente movi­

mentos que contestam o saber psiquiátrico e visam a

substituição do modelo asilar de reclusão, mas é também

aqueles movimentos que tentam salvar a Psiquiatria, seja

com propostas de trabalho diferentes das anteriotes, seja

insttumentalizando-a com as descobertas do saber médi­

co-científico ou tentando eliminar a confusão conceituai

entre as diversas disciplinas psiquiátricas. Levantou-se

a hipótese de que a proposta do DMS de ser 'ateórico',

além de ser um projeto empírico-pragmático, também

deve ser examinada como uma proposta de Reforma

Psiquiátrica. Segundo Pereira, a orientação 'ateóricà é

uma tentativa de não estar "submetido aos ptessupostos

de qualquer uma das inúmeras disciplinas concorrentes

no campo da psicopatologià' (I998, p. 4). Tal tentativa

é centrada de maneira enfática no empirismo dos fatos

clínicos, ou seja, tão somente nos fenômenos clínicos,

identificados e sustentados pela chamada Medicina

Baseada em Evidências (MBE).

A confecção do DSM também se serviu da di­

mensão sanistarista que sempte esteve subsidiada pela

epidemiologia e pela Medicina Social, encontrando,

assim, um lugar dentro das políticas de saúde públi­

ca. Tendo em vista que o estado considera necessária

a intervenção da Medicina no social, no cotidiano,

principalmente quando a clínica passa a ser regida por

parâmetros normatizados, o DSM acabou sendo bem

recebido por se fazer um instrumento para o estado. A

marca dos últimos 30 anos é a busca de um ideal de

eficácia que a consolidação do DSM visa em garantir

a normatização dos usuários, apagando as diferenças

subjetivas que cada paciente pode ter se lhe é dada a

oportunidade de comparecer com sua singularidade.

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COUTO, R.; ALBERT!, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor comprcensáo da questáo amaI 55

Não é sem razão que muitos governos, inclusive no

Brasil, ado taram como modelo de tratamento, em

muitos hospitais e ambulatórios, as prescrições dadas

pelos Manuais de Diagnósticos, como a classificação

diagnóstica e o uso de medicação correspondente; as

fichas de prontuários são a prova disso, tendo em vista

que exigem a sigla do transtorno que se supõem ser os

mais adequados ao paciente.

Numa vertente oposta à eficácia normatizada, à

biologização e à medicalização do sofrimento huma­

no está a Psicanálise. O rompimento da ortodoxia

psicanalítica se deu, em parte, mediante o ensino de

Lacan, na França, que possibilitou o reconhecimento

da Psicanálise por teóricos do campo da Saúde Mental

como um saber que tem contribuições importantes

à Saúde Mental (cf. FIGUEIREDO, 1997). Mas o uso

da Psicanálise nessas iniciativas não deixou de causar

questões em Lacan, que, em vários momentos de seu

ensino, advertiu seus alunos sobre a extraterritorialida­

de da Psicanálise em relação à Medicina, aos psicólogos

e "outros distintos assistentes terapêuticos" (LACAN,

1966[2001), p. 32).

A CONJUNTURA QUE LEVOU À ATUAL

REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA

Em 1852 foi o surgimento da instituição psiquiá­

trica brasileira. O hospital Dom Pedro II, inaugurado

pelo próprio imperador, destinado aos doentes de rodo

o território nacional, rinha uma capacidade para so­

mente 350 doentes e, no momento de sua abertura, já

contava com 144 internos. Uma caracrerísrica peculiar

da Psiquiatria brasileira foi sua associação à Medicina

Higienicista. No governo de Rodrigues Alves (1902­

1906), dois nomes se destacaram na então ciência

brasileira: Oswaldo Cruz e Juliano Moreira. A missão

desses médicos era 'limpar' a cidade do Rio de Janeiro

do risco de infecção gerada pela falta de saneamento e

planejamento urbanos e da massa de desempregados e

indigentes que habitavam as ruas (REsENDE, 1987). Por

meio de Juliano Moreira, criaram-se os hospitais colônia,

promovendo o uso do trabalho agrícola como instru­

mento de tratamento global dos doentes mentais. Como

tal projeto não vingou, os hospitais agrícolas acabaram

aderindo a sua verdadeira função, isto é, a exclusão dos

doentes mentais em locais geograficamente distantes.

A massa presente nos hospitais psiquiátricos, nas

colônias e as condições dessas instituições não sofreram

grandes modificações na era Vargas, no Estado Novo.

Pelo contrário, houve apenas reforma e ampliação das

instalações já existentes e a criação em larga escala de

outros hospitais estaduais, financiados pelo Governo

Federal, que obedeciam ao modelo de colônia agrícola.

O modelo manicomial sempre foi a mola mestra das

Políticas Públicas de Saúde Mental no Brasil. Com o go­

verno militar na década de 1960, o que se testemunhou

foi a criação de clínicas e hospitais privados subsidiados

pelo estado, movidos pelos favorecimentos políticos e

o enriquecimento de seus proprietários, às custas das

diárias pagas pelo estado por cada paciente internado.

Em contraposição, durante os anos 1970, o mo­

vimento que resultou nas 'Comunidades Terapêuticas'

instaladas em alguns hospitais psiquiátricos, passou

a apostar na possibilidade de efetivamente sustentar

um trabalho terapêutico em função das propostas que

vinham das reformas realizadas em outros países e dos

investimentos pessoais de alguns psiquiatras. Delgado

(1998) circunscreve três eventos políticos que desenca­

dearam o início da contesração e aquilo que se deno­

minou Reforma Psiquiátrica brasileira: 1. Congresso

Brasileiro de Psiquiatria, entre agosto e setembro de

1977, em Camboriú, Santa Catarina; 2. I Congresso

Brasileiro de Trabalhadores de Saúde Mental, em São

Paulo, em janeiro de 1979; 3. III Congresso Mineiro de

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59. jan.ldt."Z. 2008

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Psiquiatria, em novembro de 1979, com a presença de

Franco Basaglia, que teve uma influência marcanre no

movimento de Reforma Psiquiátrica no Brasil.

A partir do projeto de lei, conhecido como projeto

Paulo Delgado, apresentado à Câmara Federal, em 1989,

iniciou-se, em nível nacional, um movimento crescenre

de reformulação das Políticas Públicas de Saúde Menral,

que abriu as portas dos hospitais psiquiátricos tanto

para a entrada de pesquisadores e técnicos de diversas

áreas quanto para a saída de pacienres que, muitas ve­

zes, enconrravam-se internados há décadas. Uma das

grandes contribuições da primeira versão do projeto de

lei foi possibilitar o debate sobre a Lei Federal de Saúde

Menral, tendo em vista que a referida lei datava de 1934,

baseando-se, mormente, na exclusão dos pacientes do

convívio social.

o CONCEITO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA

NO BRASIL A PARTIR DE 1995

Nos textos estudados, deparou-se, algumas vezes,

com uma referência à Reforma Psiquiátrica como um

conceito (cf. DELGADO, 1998; AMARANTE, 1995). Sua

formulação como conceito depende de cada autor que o

propõe e seu uso é tributário das afinidades intelectuais

e/ou políticas daquele que escolhe utilizá-lo. É interes­

sante acompanhar o desenvolvimento desse conceito

ao longo dos últimos anos e é por isso que se retomam

aqui algumas de suas incidências.

Em 1995, Amarante idenrificava a Reforma Psi-., . . .

qUlatrlca com um Importanre questlonamento e con-

seqüenre elaboração de propostas conrrárias ao modelo

asilar. Propunha a Reforma Psiquiátrica como um:

processo histórico deftrmulação crítica eprática quetem como objetivos e estratégias o questionamento e a

Stltid~ ~m Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32, n. 78/79/80, p. 49-59. jan./de'L. 2008

elaboração de propostas de transfOrmação do modelocldssico e do paradigma da psiquiatria. (AMARANTE,1995, p. 91, grifo nosso).

No Brasil, associa tal processo à redemocratização

do país e à

crítica estruturalao saber e às instituiçõespsiquiátricascldssicas, no bojo de toda a movimentação político­social que caracteriza essa mesma conjuntura deredemocrtatização. (AMARANTE, 1995, p. 91)

Três anos depois, Delgado (1998) chamava a aten­

ção para certa imprecisão do termo Reforma Psiquiátri­

ca, do qual seria feito uso para designar as modificações

do modelo da assistência pública no serviço psiquiátrico

brasileiro, no qual se deu início um diálogo enrre a Psi­

quiatria e outras áreas do campo da Saúde Menral:

Reforma psiquiátrica é uma expressão algo impre­cisa. Nela temos insistido como recurso de designaçãopara o conjunto de modificações recentes que vêm sendoproduzidas ou tentadas, a partir do final da décadade 10, interessando ao modelo assistencial psiquiá­trico público, sua sustentação te6rica e técnica, e asrelações discursivas que se vêm estabelecendo entre aPsiquiatria, as demais disciplinas de saúde e do camposocial, e as instituições e movimentos sociais. (1998,p. 42, grifo nosso).

Ainda três anos depois, Amarante (2001) apre­

senta uma outra definição, o que permite depreender

um avanço no próprio uso do termo. O autor mantém

o termo 'processo', mas ele deixa de ser histórico e

passa a ser 'social' e 'complexo', tendo uma dimensão

epistemológica, técnico-assitencial, jurídico-política

e cultural, pois haveria várias dimensões nesse mo-•

vlmento:

''sendo um processo, é antes de tudo permanente, nãotem fim predeterminado e articula várias dimensõessimultâneas e inter-relacionadas" (AMARANTE, 2001,p. 104).

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COUTO, R.; ALBERT!, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor comprcensáo da questáo amaI 57

Nesse momento, lê-se uma primeira tentativa de,

efetivamente, definir o termo Reforma Psiquiátrica, não

como um termo cujas incidências históricas podem ser

buscadas em vários con textos, mas que passou à referên­

cia do que acontecia no Brasil, no final do século 20, ou

seja, a desinstitucionalização -que estabelece outro mo­

delo de tratamento, diferente do modelo de isolamento

terapêutico - e a mudança - que redefine o conceito de

doença mental. O autor defende que debater o conceito

de doença é suficiente para transformar as relações das

pessoas envolvidas com a questão da Saúde Mental, além

de viabilizar a modificação dos serviços, dos dispositivos

e dos espaços na maneira de ver o usuário.

Esse novo paradigma já traz consigo também

o debate da dimensão jurídico-política dos direitos

dos doentes à cidadania, pois exige que se rediscuta e

redefina "as relações sociais e civis em termos de cida­

dania, direitos humanos e sociais" (AMARANTE, 2001,

p. 105). Promover o resgate dos direitos de cidadãos

dos usuários, quase que perdido devido às internações

forçadas no passado, tornou-se a principal reivindi­

cação da Reforma Psiquiátrica, pois o movimento

entende cidadania como a tentativa de garantir, por

meio de meios legais e oficiais, e da apresentação de

projetos e aprovação de leis, os direitos civis e sociais

dos portadores de sofrimento psíquico. Além disso, é

necessária a implantação de serviços e/ou modificações

dos serviços já existentes para que a cidadania possa

ser uma conquista diária.

Com a lei 10.216, por exemplo, a internação passou

a ser voluntária ou involuntária; neste caso é obrigatório

informá-la, via formulário, ao Ministério Público Esta­

dual, justificando os motivos da decisão. Em sete anos,

a lei 10.216 promoveu grandes mudanças - os CAPS, as

residências terapêuticas, o trabalho articulado em rede

-, principalmente nos grandes centros. Nas áreas mais

afastadas deles, ainda há muita resistência e, freqúente­

mente, as coisas avançam muito lentamente.

O que fica notório, tanto na idéia central da lei

10.216 quanto nas propostas dos dispositivos criados

a partir dela, é a centralização da cidadania e o resgate

da contratualidade social, de modo que não há dúvida

quanto à importância que a lei sustenta no cuidado e

na atenção, ambos em primeiro plano, revertendo um

quadro calamitoso do contexto da institucionalização.

CONSIDERAÇÓES FINAIS

Nos últimos anos, no entanto, multiplicaram-se os

estudos sobre a necessidade de investimento na clínica

da Reforma Psiquiátrica, sintagma retomado no título

do livro de Fernando Tenório (2001). Apesar de serem

criados locais de tratamento que têm como objetivo

sustentar a clínica da Reforma Psiquiátrica, observa-se,

por um lado, que a cidadania e o cuidado são tomados

como referência do tratamento dos usuários, mas, por- .outro, promove-se uma preocupaçao maJOr com a es-

pecificidade de uma clínica que caminhe paralelamente

à atenção psicossocial.

Neste âmbito, percebe-se, nos últimos anos, que

sem um trabalho clínico que leve em conta o sofrimento

psíquico, o próprio resgate da cidadania e da autono­

mia pode ficar comprometido. Assim, surge uma nova

tensão: entre clínica e atenção psicossocial, no campo

da Saúde Mental. Algumas propostas por uma solução

sugerem ser preciso sustentar um enfoque multidiscipli­

nar: "o campo da saúde mental é [...] multidisciplinar,

heterogêneo e plural, onde diversos saberes e práticas se

entrecruzam" (RJNALDI, 2006, p. 142).

Essa orientação visa o enlaçamento de vários sabe­

res. Mas, seria possível sustentar a clínica propriamente

dita sem uma orientação clínico-teórica que tenha con­

sistência para enfrentar os problemas diários de nossa

prática? (BARBOSA, 2004) Desde o início da história

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59. jan.ldt."Z. 2008

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da psiquiatria moderna, com Pinel e Esquirol, não há

clínica sem orientação definida (BERCHERlE, 1989). Por

razões que transcendem este artigo e que precisariam

ser aprofundadas no futuro, é o campo psicanalítico

que mais se ocupa com essa busca na atualidade, o que

não deixa de levantar novos questionamentos. Por ora,

nota-se que a reação que alguns setores da Reforma Psi­

quiátrica atual dirigem contra O trabalho de psicanalistas

que se instrumentalizam do movimento da reforma e,

ao mesmo tempo, procuram instrumentalizá-lo com as

contribuições de sua própria formação, relaciona-se com

O que já se observou, na década de 1970, nos Estados

Unidos, quando da publicação dos manuais como O

DSM. Revisitar a história para verificar possíveis inci­

dências anteriores de questões atuais transcende a função

da história como registro e permite estudar as determi­

nações - nem sempre conhecidas - de movimentos e

resistências com as quais se tem que lidar atualmente.

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Recebido: abr.l200S

Aprovado: ago.l200S

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78179/80, p. 49-59. jan.ldt."Z. 2008